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Filosofia
da Ciência
Manaus 2006
FICHA TÉCNICA
Governador
Eduardo Braga
Vice-Governador
Omar Aziz
Reitor
Lourenço dos Santos Pereira Braga
Vice-Reitor
Carlos Eduardo S. Gonçalves
Pró-Reitor de Planej. e Administração
Antônio Dias Couto
Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários
Ademar R. M. Teixeira
Pró-Reitor de Ensino de Graduação
Carlos Eduardo S. Gonçalves
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
Walmir de Albuquerque Barbosa
Coordenador Geral do Curso de Matemática (Sistema Presencial Mediado)
Carlos Alberto Farias Jennings
NUPROM
Núcleo de Produção de Material
Coordenador Geral
João Batista Gomes
Projeto Gráfico
Mário Lima
Editoração Eletrônica
Helcio Ferreira Junior
Revisão Técnico-gramatical
João Batista Gomes
Inclui bibliografia
Palavra do Reitor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07
A realidade amazônica, por si só, é um desafio à educação tradicional, aquela que teima em ficar arraigada
à sala de aula, na dependência única dos métodos triviais de ensino. A Universidade do Estado do
Amazonas já nasceu consciente de que o ensino presencial mediado é a única estratégia capaz de respon-
der aos anseios de um público que, por estar disperso, tem de ser atendido por projetos escudados em
dinamismo técnico-científico.
Assim, a Licenciatura Plena em Matemática, ancorada no Sistema Presencial Mediado, nasceu para ofere-
cer aos discentes as habilidades necessárias para que eles venham a construir seus próprios objetivos exis-
tenciais, estimulando-lhes a ousadia de aceitar o novo e de criar novas possibilidades de futuro, dando-lhes
uma visão multifacetada das maneiras de educar.
Os livros-textos em que o curso se apóia são produzidos com o rigor didático de quem sabe que a história
da educação, no nosso Estado, está sendo reescrita. Os agentes desse processo têm visão crítica e apos-
tam na formação de novos professores que saberão aliar inteligência e memória, não permitindo que o ensi-
no em base tecnológica ganhe a conotação de “um distanciado do outro”.
A autonomia de agir que cada um está aprendendo a conquistar virá, em breve, como resposta aos desafios
que se impõem hoje.
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UEA – Licenciatura em Matemática
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Filosofia da Ciência – Ciência, natureza e cultura
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UEA – Licenciatura em Matemática
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Filosofia da Ciência – Ciência, natureza e cultura
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Filosofia da Ciência – Ciência, natureza e cultura
A condição da crítica. É a primeira e funda- atender a pelo menos duas exigências lógicas.
mental condição da filosofia. Hegel compre- A primeira, de ordem formal, concerne à cons-
ende-a como “a coragem da verdade e da fé tituição interna do discurso, à sua estrutura
no poder do espírito”. Pensar criticamente é lógico-conceitual. Ou seja, trata-se da exigên-
pensar contra os preconceitos, é questionar o cia do discurso correto. O que ainda não é
estabelecido, é pôr em duvida as certezas de tudo. É necessário, mas não suficiente. Afinal,
uma razão por demais segura de si, é ultra- é possível mentir ao se falar corretamente. Daí
passar as evidências e as crenças constitutivas ser imprescindível ao rigor da filosofia uma se-
do senso comum. Sem atitude crítica, não há gunda exigência lógica, de ordem dialética,
filosofia digna desse nome. Não é próprio da não mais relativa somente à ordenação interna
filosofia tomar as coisas pela aparência, pelo do discurso, mas à relação deste com a reali-
que se apresenta como óbvio e inquestionável. dade. Não basta que o discurso seja correto, é
Ao pensar o ser – e o ser, conforme Aristóteles, necessário que ele se faça verdade, isto é, que
pode ser dito de diversas formas – a filosofia possa objetivar o real, torná-lo legível e inte-
quer pensá-lo radicalmente, em seus funda- ligível por meio de categorias e conceitos ho-
mentos constitutivos. O pensamento verda- nesta e corretamente articulados e submetidos
deiramente crítico é sempre radical. E ser radi- aos critérios do verdadeiro. Não há caminho
cal, conforme sábia observação de Marx, “é fácil para a filosofia. Quem dela quer cuidar
tomar as coisas pela raiz. Ora, a raiz, para o não pode abrir mão do rigor, da paciência e da
homem, é o próprio homem” (1984, p. 19). continuidade no esforço reflexivo.
A condição da verdade. A grande – e por A condição da totalidade. Trata-se de outra
demais otimista – pretensão da ciência no sé- condição indispensável à filosofia em sua tare-
culo XIX foi a de crer que o discurso sobre a fa de compreender e significar a realidade. A
verdade era monopólio do conhecimento cien- totalidade é sempre síntese de múltiplas deter-
tifico. E a configuração positivista da ciência foi minações. Para o senso comum, a realidade
a que levou mais a fundo essa crença. Para o nada mais é do que uma justaposição aleatória
positivismo, o acesso à verdade era prerrogati- e empírica de fenômenos. A condição da tota-
va da ciência, e fora da ciência não havia ca- lidade exige que a reflexão filosófica, ao se
minho legítimo de objetivação do ser. Como da debruçar sobre a realidade, atenda ao princi-
classificação positivista da ciência a filosofia pio dialético de que tudo se relaciona, de que
fora excluída, excluída também fora do con- tudo se condiciona. Conforme Karel Kosik, “a
hecimento da verdade. Ora, a questão da ver- compreensão dialética da totalidade significa
dade é por demais complexa e problemática não só que as partes se encontram em relação
para ser tratada exclusivamente pela ciência, e de interna interação e conexão entre si e com
menos ainda por uma ciência de feição posi- o todo, mas também que o todo não pode ser
tivista. A filosofia, como as demais formas de petrificado na abstração situada por cima das
conhecimento, constitui-se também em via partes, visto que o todo se cria a si mesmo na
possível e legítima de busca e de expressão da interação das partes” (1976, p. 42). Por isso,
verdade. Não de uma verdade absoluta, abs- enquanto objeto de compreensão dialética, a
trata, mas de uma verdade mediada pelo co- totalidade é sempre totalidade concreta.
nhecimento historicamente constituído e dis-
A condição da historicidade. Diante da ideolo-
ponível. Porque para a filosofia a verdade só
gia pós-moderna, que se constitui no interior do
pode ser pensada no horizonte da história.
capitalismo neoliberal e cujas características
A condição do rigor. Muitos há que pensam são, dentre outras, a de ser um discurso ne-
ser a filosofia uma forma refinada ou dissimula- gador de referenciais, refratário às determina-
da do senso comum, de tal modo que qual- ções de natureza ontológica, histórica, social,
quer forma de devaneio revestido de retórica, política e sobretudo ideológica, torna-se sobre-
de falsa seriedade, pode ser tomado por filo- modo imprescindível explicitar na reflexão filo-
sofia. Para a filosofia, a condição do rigor deve sófica – tanto quanto na reflexão filosófica
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sobre a ciência – a condição da historicidade. tista. Pode até ser ambos, ou nenhum deles. A
Filosofia e ciência são produções históricas. sabedoria é a ciência com consciência, o que
Ocorre que a ideologia pós-moderna é a ideo- na sábia referência agostiniana apresenta-se
logia da recusa ideológica e do fim da história. como “medida da alma”. A ciência que não
A civilização do capital converte a cultura em pensa os seus fundamentos, seus limites, que
barbárie sob a forma de semicultura. Recorre não reflete sobre seus fins e meios, não é
ao mecanismo de dispersão da razão e do digna desse nome. Por sua vez, se a filosofia
tempo para neutralizar qualquer idéia de proje- não reconhece na ciência uma expressão obje-
to histórico. O seu pragmatismo, que reduz o tiva da razão, capaz de proporcionar aos
tempo à urgência, mutila a vontade, conver- homens os indispensáveis meios para o apri-
tendo-a na exterioridade de uma vida reificada moramento de suas vidas em âmbito pessoal e
pelo caráter heterônomo de um desejo igual- coletivo, corre o risco de se transformar num
mente reificado. Não há progresso histórico exercício meramente retórico, em vazia abs-
sem projeto, sem utopia. A história é também o tração metafísica. Filosofia e ciência devem
campo aberto do ensaio permanente da au- encontrar sua medida na sabedoria.
tonomia, da coragem de ousar e do criativo
exercício da liberdade pessoal e coletiva.
A condição do contraditório. Constitutivo fun-
damental do pensamento dialético, o princípio
da contradição inscreve-se na própria gênese
do pensamento filosófico. Para Heráclito, cuja
teoria do ser se fundamenta na unidade do
diverso, é a contradição que dá origem e move
todas as coisas. Nada na realidade é, tudo está
sendo. O real é o vir-a-ser. Se no interior da rea-
lidade natural e humana não coexistissem for-
ças em permanente estado de oposição e atra-
ção, transformação alguma seria possível. A
contradição habita o interior do próprio ho-
mem. Ele é síntese de múltiplas determina-
ções: biológicas, sociais, históricas, culturais,
econômicas, psicológicas. Nada progride line-
armente. As crises, por exemplo, são momentos
em que a contradição se torna mais aguda, com-
portando igualmente forças de vida e de morte,
de geração, degeneração e regeneração.
A condição da sabedoria. É a condição da
própria filosofia. Em sua gênese, a filosofia
constitui-se sob forma de cultivo da sabedoria.
Ela não é em si mesma a sabedoria, nem o filó-
sofo o sábio. Cabe ao filósofo cuidar da sabe-
doria, manter vivo o seu vigor, não permitir que
o labor filosófico converta-se numa “técnica de
explicação pelas últimas causas”, conforme
observa Heidegger (1967, pp.30-31). A con-
dição da sabedoria implica, desde sua origem,
um empreendimento interdisciplinar. O sábio é
sempre um homem de síntese. Não é simples-
mente um metafísico, menos ainda um cien-
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UNIDADE II
Filosofia, Ciência e Técnica
Filosofia da Ciência – Filosofia, ciência e técnica
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Filosofia da Ciência – Filosofia, ciência e técnica
até agora nada nos autoriza a crer numa con- suas formas de vida pelo conhecimento tradi-
sciência inteiramente constituída pela objetivi- cional, com pouca ou quase nenhuma influên-
dade cientifica. Se vivemos na idade da ciência cia da razão científica moderna? Desse modo,
(é verdade), também é verdade que o senso ao indicarmos em seguida sete notas que car-
comum, ou seja, o nosso modo rotineiro de acterizam o espírito científico, não significa que
existir ainda orienta a maior parte da nossa essas notas sejam um atributo exclusivo da ci-
vida. Nem mesmo Einstein era Einstein o ência, e menos ainda legitimar a ciência como
tempo todo. O espírito cientifico ainda orienta expressão própria da racionalidade, porque
muito pouco no que pensamos, dizemos e esta com igual direito e legitimidade também
fazemos. Mas não resta duvida de que tudo se expressa no senso comum e noutras formas
que se reveste do rótulo da ciência e da tec- de exercício da razão.
nologia impõe aceitação e credibilidade. O que
há de legitimidade nisso tudo? O maniqueísmo “O que distingue a atitude científica da atitude
positivista resiste à dúvida: ou a verdade ou o costumeira ou do senso comum? Antes de
erro. Pensa que a verdade é da ciência, como mais nada, a ciência desconfia da veracidade
de nossas certezas, de nossa adesão imedi-
do senso comum é o erro. Um pouco de aten-
ata às coisas, da ausência de crítica e da falta
ção ao que abaixo transcrevemos de autoria de curiosidade. Por isso, onde vemos coisas,
de Boaventura de Sousa Santos: fatos e acontecimentos, a atitude científica vê
problemas e obstáculos, aparências que pre-
“Ao contrário, a ciência pós-moderna sabe cisam ser explicadas e, em certos casos,
que nenhuma forma de conhecimento é, em afastadas” (CHAUÍ, 2003, p. 218).
si mesma, racional; só a configuração de
todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar
Os pontos a seguir, apresentados na forma de
com outras formas de conhecimento deixan-
do-se penetrar por elas. A mais importante ideais, ajudam-nos a caracterizar o espírito
de todas é o conhecimento do senso co- científico:
mum, o conhecimento vulgar e prático com
que no quotidiano orientamos as nossas
• O ideal da objetividade. Busca, por meio
ações e damos sentido à nossa vida. A ciên- de mediações teóricas ou práticas, com-
cia moderna construiu-se contra o senso preender a estrutura objetiva das coisas.
comum que considerou superficial, ilusório
e falso. A ciência pós-moderna procura
• O ideal da universidade. Vale para todos
reabilitar o senso comum por reconhecer os casos e não para esta ou aquela situ-
nesta forma de conhecimento algumas virtu- ação.
alidades para enriquecer a nossa relação
com o mundo. É certo que o conhecimento • O ideal da causalidade. Vai além dos
do senso comum tende a ser um conheci- efeitos, para definir, em cada fenômeno,
mento mistificado e mistificador mas, apesar suas relações causais.
disso e apesar de ser conservador, tem uma
dimensão utópica e libertadora que pode • O ideal da regularidade. Busca recon-
ser ampliada através do diálogo com o con- hecer, mesmo em cada fenômeno diferente,
hecimento científico” (SANTO, 2004, pp. 88- o que se mantém como constância.
89).
• O ideal da medida. Circunscreve o fenô-
meno em seus elementos quantitativos por
O que é o espírito científico? O que é a ciência? meio de critérios de mensuração, compara-
Poderíamos responder: é uma forma lógica, ção e avaliação.
sistemática e objetiva de organizar o pensa-
mento. Não há espírito científico fora desse
• O ideal da imparcialidade. Julga com
isenção cada fenômeno, livre de precon-
enquadramento. Mas essa não é a única forma
ceitos, de opinião.
de organização do pensamento. Não é a única
forma de acesso ao real. Do contrário, como • O ideal da singularidade. Busca distinguir,
teriam resistido e sobrevivido aquelas comu- mesmo em fenômenos aparentemente
nidades que ainda hoje produzem e orientam iguais, o que pertence à natureza diversa.
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Filosofia da Ciência – Filosofia, ciência e técnica
mar mais baixo entre os conhecimentos verda- será prerrogativa de um novo personagem sur-
deiros. Aí reside o motivo pelo qual o artesão, gido no bojo das transformações históricas,
o arquiteto, o médico, o poeta e o retórico econômicas e sociais pelas quais o trabalho
eram vistos como possuidores de um conhec- escravo e servil da antiguidade será substituído
imento menos nobre do que aquele detido pelo trabalho livre: o indivíduo, átomo social,
pelo filósofo. Ademais, o caráter escravista das capaz de pensar por si mesmo e sem os outros
relações políticas e econômicas na Grécia anti- e que, como tal, pode ser conhecido.
ga determinava a predominância de uma ética
Nesse contexto, o conhecimento da verdade
aristocrática na qual o trabalho manual, o culti-
dependerá exclusivamente das operações do
vo de conhecimentos a partir da observação e
indivíduo, tomado como sujeito autônomo do
da experimentação e a fabricação de artefatos
conhecimento e como consciência reflexiva de
eram julgados atividades desprezíveis, relega-
si (CHAUÍ, 1994, p. 106). Assim, concebida co-
das aos escravos, aos estrangeiros e a todos mo objeto de dominação e dependente das
que não possuíssem entre os gregos a pre- operações do sujeito do conhecimento, a ver-
rrogativa da cidadania. dade finalmente será associada à idéia de util-
De todo modo, nas concepções de Platão e idade ou eficácia, passando a ser julgada con-
Aristóteles, estava patente o fato de que o ho- forme seu uso prático e verificável. Ela será ori-
mem pode conhecer a Natureza porque dela entada pelo princípio do crescimento e da acu-
participa e porque nela habita uma inteligência mulação que, conforme a lógica do capitalis-
que a dirige. Segundo Marilena Chauí, os ver- mo, exige a produção de resultados práticos.
sos do poeta alemão Goethe exprimem a con- A partir do século XX, a concepção de verdade
cepção antiga do conhecimento: e o valor do conhecimento sofreram novas
Se os olhos não fossem solares mudanças. A Europa ocidental e o os Estados
Jamais o Sol nós veríamos: Unidos da América iniciaram a formação de
Se em nós não estivesse a própria força divina, uma sociedade altamente tecnológica que
Como o divino sentiríamos? tende a se expandir por todas as culturas. Na
(Apud CHAUÍ, 1994, p. 113). sociedade do conhecimento, os objetos de
pesquisa passaram a ser criados nos próprios
Entretanto, tal pressuposto não associa a idéia
laboratórios, isto é, deixaram de ser vistos
de verdade à noção de utilidade e à eficácia
como resultados da simples observação, da
prática. O verdadeiro somente pode ser objeto
experiência e da formulação de hipóteses so-
da contemplação pura da realidade, isto é, da
bre os seres para se transformar em con-
theoria. Tratava-se, portanto, de uma con-
struções do pensamento científico. O objeto
cepção bastante diferente da maneira pela
não será mais nem um dado nem uma repre-
qual a verdade passará a ser concebida na era
sentação da realidade, será o artefato produzi-
do capitalismo.
do tecnicamente pelas teorias e pelas experi-
Nessa nova era, a verdade não mais será con- mentações. A verdade, por sua vez, será avali-
siderada a forma superior do espírito humano, ada em função de sua forma lógica e da
valorizada, em si mesma, como um conheci- coerência interna da própria teoria e definida
mento dos princípios racionais da realidade, mediante o consenso da comunidade de
independente dos interesses, das circunstân- pesquisadores (CHAUÍ, 1994, p. 106).
cias e das exigências da vida prática.
Na civilização moderna, o desenvolvimento da
A atividade contemplativa será substituída pela ciência baniu da esfera da educação formal o
atitude intervencionista do homem sobre a Na- culto religioso, substituindo-o pelo ensino dos
tureza, pensada agora como uma dimensão conceitos científicos e dos valores republica-
da existência suscetível à dominação, ao cont- nos e igualitários. Nesse contexto, o conheci-
role e à transformação promovidos pela ação mento científico torna-se objeto do senso co-
humana. A razão universal, cósmica já não se- mum, através da ideologia do cientificismo,
rá mais o apanágio dos espíritos mais nobres; que promove a confusão entre ciência e téc-
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teóricos exige do cientista um certo distancia- trabalho pela qual se reconhecem que as
mento dos objetos e fenômenos por ele estu- responsabilidades pela escolha dos temas a
dados; a metodologia e a lógica da investi- serem pesquisados assim como o próprio tra-
gação científica requerem certas precauções balho da pesquisa são distribuídos entre mui-
para que o pesquisador não incorra em precip- tas pessoas e instituições e não recaem ape-
itações e idéias preconcebidas nem se deixe nas sobre alguns indivíduos. Em outras pa-
levar pelos hábitos decorrentes de sua for- lavras, o fato de que a pesquisa científica re-
mação, das influências sociais e psicológicas quer da sociedade vultosos investimentos e
que recebeu ou com as quais se envolveu ao uma complexa divisão social de tarefas em
longo dos anos; da mesma forma, essa lógica uma hierarquia que envolve professores, estu-
se desenvolve mediante uma linguagem deno- dantes, militares, dirigentes de empresas, diri-
tativa, dotada de precisão, despojada de am- gentes políticos, autoridades públicas, etc.
bigüidades, de meias sugestões e de mal- leva-nos a compreender que a neutralidade
entendidos; uma linguagem técnica para aten- científica não passa de um mito, e sua repro-
der à necessidade de rigor, certeza e coerência dução pela publicidade possui evidente viés
formal. Tudo isso levou o senso comum a for- ideológico.
mular a falsa concepção de que o trabalho do Ora, o uso ideológico dessa concepção da
cientista é neutro; ou seja, a supor que ele é ciência como atividade politicamente neutra
indiferente aos embates sociais e aos conflitos aparece, freqüentemente, na constituição de
de interesses, aos desequilíbrios políticos e requisitos formais para a atribuição de com-
econômicos da sociedade. petências profissionais, técnicas e políticas.
Mas tal concepção desconhece as hesitações Ainda é corrente o preconceito de que certos
e as dúvidas que os cientistas experimentam cargos políticos não podem ser ocupados por
em suas pesquisas bem como os processos cidadãos que não tenham percorrido todos os
econômicos e políticos pelos quais os projetos graus de escolaridade.
de pesquisa, os laboratórios e as áreas de con- Isso mostra o quanto a atividade científica está
hecimento são escolhidos como prioritários distante do modo como vive a sociedade em
para receber financiamentos, incentivos e out- seu dia-a-dia e em suas relações econômicas
ras formas de apoio. Assim, no passado, quan- e culturais. Por um lado, a idéia de competên-
do eram os próprios cientistas ou um pu- cia aí se formula como a mera aquisição de
nhado de mecenas que investiam na pesquisa, capacidades para reproduzir conhecimentos
a imagem que se formulava para representá- desenvolvidos no conjunto das instituições
los era a de um gênio cujo brilhantismo era que formam o chamado complexo industrial
responsável pelos formidáveis aparelhos nos militar. Assim, no Brasil, por exemplo, multi-
quais se materializavam as teorias. Hoje, entre- plicaram-se os cursos técnicos profissional-
tanto, como nos ensina Marilena Chauí izantes. Por outro lado, essa idéia de com-
(CHAUÍ, 1994, p. 282), o cientista é visto como petência descarta, como desnecessários para
engenheiro e como mago porque seu ambi- o funcionamento e as finalidades desse com-
ente de trabalho é representado como um plexo industrial-militar, os estudos das humani-
enorme laboratório, onde todos trabalham ves- dades tanto quanto os da ciência pura. Em
tidos de branco – signo da isenção e da cla- conseqüência, ela não apenas contribui para
reza, mas, também, de um certo sacerdócio –, desestimular a sociedade a discutir sobre a
manipulando grandes computadores e reali- finalidade da ciência e os recursos públicos
zando cálculos misteriosos. que são investidos em pesquisa, mas também
impede que o conhecimento teórico funda-
Portanto, mesmo a falsa imagem, cujo senso
mental de onde decorre a produção dos arte-
comum representa atualmente a assepsia ideo-
fatos da ciência seja facilmente acessível à
lógica da ciência, permite-nos compreender
sociedade.
que atividade da pesquisa é realizada por um
complexo sistema ou uma divisão social do Na medida em que os investimentos em
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Filosofia da Ciência – Filosofia, ciência e técnica
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UNIDADE III
A Ciência na História: o Mundo Grego
Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo grego
Convencionalismo
TEMA 09 Eles acreditavam que as leis são convenções
humanas, isto é, que elas são expressões dos
interesses de um indivíduo ou de um grupo e,
OS SOFISTAS E SÓCRATES: portanto, mudam conforme as transformações
O HOMEM COMO MEDIDA DO SABER da cultura, dos hábitos, da classe social ou do
temperamento dos legisladores.
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UEA – Licenciatura em Matemática
ao saber, não vale absolutamente nada”. (Platão) As idéias de Sócrates chegaram até nós pelos
comentários e referências dos seus discípulos
De um modo geral o pensamento de Sócrates
e contemporâneos, como Platão e Xenofonte.
enfocou o homem, suas ações e as maneiras
Ele não deixou uma obra escrita, além disso,
pelas quais ele produz o conhecimento. Este é
não dava aulas e nem cobrava para ensinar.
um ponto que assemelha nosso pensador aos
Seu pensamento era disseminado por meio
sofistas. Assim como estes, ele também enten-
das conversas que mantinha com pessoas de
dia que a filosofia e o saber têm uma função
todas as categorias e de todos os segmentos
social importante, a qual consiste na formação
sociais nos mercados, nas praças, nos está-
dos cidadãos e dos dirigentes políticos.
dios e nas casas de seus amigos em Atenas.
A questão do método
Nascido de pai pedreiro ou escultor e mãe
Apesar dessa semelhança, acima descrita, era parteira, Sócrates era um homem rude, mas de
radicalmente contrário ao relativismo dos sofis- fina inteligência, com um aguçado sentido de
tas. Acreditava que a verdade é uma só, que civismo e cumpridor de suas obrigações mil-
ela é permanente e pode ser conhecida. A seu itares e políticas. Convicto de que os homens
ver, portanto, a ciência era possível e, também, aspiram ao bem e de que eles, intimamente,
desejável. Além disso, entendia que a razão sabem o que isso significa, entendia que esse
pela qual muitos não praticavam o bem é o conhecimento não podia ser ensinado, mas re-
desconhecimento da verdade. tirado de cada um, mediante um método se-
Para sair dessa ignorância, seria preciso recor- melhante ao utilizado por sua mão na arte de
rer a um método único, cuja finalidade não auxiliar as crianças a nascer. A ironia era o
deveria ser, como ocorria na retórica e na are método pelo qual Sócrates pretendia ajudar os
de argumentar, levar a diversas opiniões pos- homens a dar à luz as idéias verdadeiras que
síveis, mas sim à verdade, isto é, a alguns con- eles possuem, mas que se encontram adorme-
ceitos que expressam, de forma definitiva, o cidas. Esse método consiste em um diálogo
bem, a justiça e a beleza, que foram consider- marcado pelo raciocínio indutivo, isto é, pela
ados os valores fundamentais para a organiza- passagem do conhecimento dos exemplos
ção de uma cidade estável, una, ordenada e, particulares para o das idéias universais.
portanto, justa. Esse diálogo era dividido em duas partes: a
A maiêutica ou a arte de partejar idéias primeira era o momento da refutação das cer-
tezas que seus interlocutores afirmavam pos-
Uma das frases mais conhecidas de Sócrates suir; após a demonstração da inconsistência
é “Conhece-te a ti mesmo”. Ele entendia que a dessas certezas, Sócrates passava à maiêuti-
sabedoria começa com o autoconhecimento e ca, isto é, ao partejamento das idéias que se
que a filosofia é um exercício pelo qual se iam consolidando como verdadeiras nas res-
examinam o comportamento individual e as postas desses interlocutores.
idéias que cada um tem em si mesmo sobre a
virtude , o bem, a justiça, a beleza e a verdade. Essa prática tornou-se incômoda para muitos
entre os poderosos de Atenas, pois colocava
Para ele, esse exame deveria levar ao conhe- em xeque a legitimidade dos seus atos e ad-
cimento de conceitos universais, isto é, a moestava a todos para que agissem com dig-
idéias concernentes não a uma virtude, a um nidade. Por isso, alguns acusaram Sócrates de
bem ou a uma qualidade humana em particu- impiedade e de corromper a juventude. Jul-
lar, as quais apenas expressam opiniões e gado e tendo recusado o exílio que lhe foi ofer-
aparências, mas sim à Virtude, ao Bem ou ao ecido, foi condenado à morte pelo tribunal de
Homem, isto é, às essências dessas coisas. Atenas, pela ingestão de um veneno chamado
Portanto a filosofia e a ciência, em seu entendi- cicuta, aos 70 anos de idade.
mento, devem buscar definições e essências, e
não argumentos para impressionar e con-
vencer.
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo grego
Esquema de Platão
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UEA – Licenciatura em Matemática
Até se acostumar com a claridade e conseguir coisas, mas a verdadeira realidade da qual
perceber com nitidez as coisas visíveis no mun- tanto os seres materiais quanto as suas ima-
do exterior, esse homem irá convencendo-se gens são apenas cópias.
de que os objetos que ele via enquanto estava
Nas etapas representadas pelo segmento A-B
preso eram apenas sombras e reflexos dos
do esquema de Platão, encontra-se a opinião
homens que passavam em frente à entrada da
(doxa), que é o conhecimento referente ao mun-
caverna e das coisas que eles transportavam.
do sensível e na qual a inteligência atua junto
Da mesma forma, a saída da ignorância dá-se
com os sentidos apara apreender as sombras,
em etapas nas quais os homens trabalham
as imagens e os objetos sensíveis. Aí o conhe-
para reconhecer as diferenças entre a aparên-
cimento não passa de ilusão e de crença.
cia e a essência da verdade.
O segmento B-C representa as etapas corres-
Essas etapas são apresentadas em um esque-
pondentes ao conhecimento do mundo inte-
ma que se pode referir tanto às fases da edu-
ligível, isto é, ao conhecimento científico ou
cação dos jovens aspirantes ao governo quan-
episteme. Trata-se de um conhecimento que se
to ao processo pelo qual se adquire o conhec-
refere às idéias, sendo que, no estágio repre-
imento filosófico e científico.
sentado pelo segmento B-E, essas idéias ainda
Assim como o homem do mito precisou subir correspondem a certas coisas sensíveis, pois
até a entrada da caverna para perceber a luz do designam a figura, a extensão e certas relações
sol, o aprendiz de filósofo precisa ascender ao entre os seres dessa natureza. Por isso, ele é
mundo inteligível para contemplar a idéia do chamado de conhecimento matemático ou
bem que, tal como o sol, ilumina e esclarece, discursivo (dianóia). É um estágio preparatório
deixando-nos ver com inteligência a ordem, a para alcançar a dialética (noêsis), que é o co-
unidade e as causas de todas as coisas. nhecimento das idéias puras e, portanto, o ver-
dadeiro conhecimento.
Essa ascensão exige grande esforço, pois nela
a inteligência é requisitada para, pouco a Todo esse percurso é pensado como um
pouco, perceber a distinção entre as imagens, processo mnemônico, isto é, um processo de
os objetos e as idéias. O que não se realiza por recordação. Platão acreditava que o homem é
acaso, mas pelo uso de um recurso matemáti- feito de corpo e de alma e que esta última é
co, cuja prática nos ensina a fazer abstrações imortal. Além disso, ele estava certo de que há
e a compreender as relações – como o maior, dois mundos, o das idéias e o das coisas sen-
menor, a igualdade e a desigualdade – e as síveis. Sendo imaterial e eterna, a alma é
qualidades – como a extensão, a figura e o semelhante às idéias. Além disso, ela esteve
número – por meio das quais nós identificamos no mundo das idéias antes de encarnar no
e distinguimos os seres. corpo no qual vive atualmente no mundo sen-
sível. Portanto, a sua capacidade de aprender
Com a prática matemática, o futuro filósofo
não se deve à percepção das coisas pelos sen-
aprende, segundo Platão, a prestar atenção
tidos, ,mas, antes, à sua natureza e à lem-
não aos objetos particulares como, por exemp-
brança das idéias, que é despertada pela
lo, um quadrado em particular ou um triângulo
experiência.
em particular que lhe são dados como exem-
plos visíveis, mas sim às idéias do quadrado
em si e do triângulo em si, que só podem ser
alcançadas pelos “olhos” do intelecto.
Cada etapa desse esforço corresponde a um
tipo de conhecimento que deve ser adquirido e
ultrapassado até a apreensão do objetivo final
da educação filosófica, que é o conhecimento
das idéias do bem, da justiça e da beleza, as
quais não são apenas os modelos de todas as
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo grego
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UEA – Licenciatura em Matemática
O Silogismo e o cuidado com a linguagem palavras, pois, uma vez que o conhecimento
consiste em fazer distinções, apresentar defi-
A perspicácia de Aristóteles revelou-se na sua
nições e argumentar mediante demonstrações,
demonstração de que a dialética, tal como foi
o uso correto da linguagem torna-se indispen-
praticada por Platão, não poderia ser utilizada
sável para assegurar ao pensamento a certeza
pela ciência como um instrumento que a con-
das suas conclusões.
duzisse de forma segura à verdade. A razão
dessa ineficácia seria a ausência de uma regra Nos livros que constituem o Organon, além de
que permitisse ao filósofo escolher, sem qual- apresentar os princípios do raciocínio correto –
quer vacilo, a melhor entre as hipóteses exami- o que lhe conferiu o título de criador da lógica
nadas no exercício do diálogo. Essa escolha, – Aristóteles fez um minucioso exame das am-
no método platônico, dependia da pressupo- bigüidades e dos equívocos, ou seja, dos erros
sição da idéia do Bem no último degrau do co- nos quais podemos incorrer quando usamos
nhecimento. Na ausência dessa pressuposi- as palavras sem atentar para a exatidão de
ção, todas as hipóteses passariam a ter o mes- seus significados, como nos casos dos homô-
mo valor. Isso, implicava, segundo Aristóteles, nimos – as palavras que possuem a mesma
que o método platônico deixava margem para grafia ou o mesmo som, mas designam coisas
a probabilidade, a incerteza e o ceticismo. diferentes – e dos sinônimos – as palavras
com grafias e sons diferentes, mas que desig-
Para conduzir a investigação filosófica ao cam-
nam as mesmas coisas.
inho seguro da ciência, Aristóteles forjou um
método de raciocínio pelo qual, no exame de Ele também fez uma classificação das catego-
certas hipóteses, o pensamento é levado, ine- rias pelas quais os seres podem ser definidos
vitavelmente, a uma só conclusão, que deverá em diferentes níveis: gênero, espécie, classe,
ser considerada como verdadeira, desde que o próprio e acidente. As três primeiras situam os
ponto de partida esteja, ele próprio, fundado seres nos conjuntos dos quais eles podem
na verdade. fazer parte, permitindo a definição de suas es-
sências; as duas últimas distinguem a essência
Esse método é o silogismo e consiste em
e as qualidades dos seres, permitindo a identi-
determinar uma proposição – chamada con-
ficação dos indivíduos.
clusão – a partir da percepção intelectual de
uma ligação entre duas outras proposições – Assim, por exemplo
chamadas premissas.
Assim, por exemplo: “O homem é um animal racional”.
Espécie Gênero Classe
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo grego
leis da lógica e fazendo um rigoroso uso das quais se pode compreender o ser. Essa ciência
palavras. Além disso, a seu ver, ela deve ex- seria anterior a todas as outras, pois, enquanto
pressar a realidade. Ora, para ele, a realidade estas se ocupam apenas com determinados
que se pode e se deve conhecer não se encon- entes, caberia à Metafísica explicar os funda-
tra separada do mundo no qual os homens mentos e as causas do Ser em geral.
nascem, vivem e morrem.
A Cosmologia de Aristóteles
Em vez de considerar que os seres materiais
O interesse que Aristóteles manifestava, ao
são cópias imperfeitas das idéias, Aristóteles
mesmo tempo, pelas questões humanas e as
compreendeu que as formas essenciais das
da natureza indicam que, em seu entendimen-
coisas são imanentes, isto é, são estruturas
to, o conhecimento da ordem natural e o da
que lhes pertencem e que determinam aquilo
ordem social e política não são incompatíveis,
que elas são, mas que só existem separadas
mas constituem uma unidade. Assim, o caráter
da matéria na mente humana, como conceitos.
sistemático de seu pensamento expressa a sua
A elaboração dessa teoria – chamada hilemor- busca de um princípio único – uma lei – pelo
fismo (o que é relativo à unidade de forma e qual todos os seres seriam regidos e todos os
matéria) – fez-se pela análise das teses de anti- fenômenos, explicados. A determinação desse
gos filósofos como Parmênides e Heráclito, princípio exigiu a formulação de uma con-
que tinham concepções opostas sobre o Ser – cepção geral da ordem do universo, uma cos-
aquilo que existe – e o devir – as alterações mologia.
dos seres. Aristóteles também estudou a dou-
Para ele, o universo é único, finito e eterno,
trina de Platão segundo a qual o não-ser, isto
mas composto por duas dimensões que se
é, o contrário do ser, é o outro – aquilo que
diferenciam pela natureza dos seres que nelas
permite a sua definição e lhe serve de comple-
se encontram. No Mundo Celeste, a matéria
mento.
dos seres seria o éter, cujas características são
A solução proposta por Aristóteles para este a perfeição, a infinitude e a incorruptibilidade.
problema consistiu na demonstração de que a Estes seres só estariam sujeitos ao movimento
palavra “ser” pode designar coisas muitos dife- circular, o único que é perfeito e eterno.
rentes entre si. Mas o principal sentido dessa
A outra dimensão seria a do Mundo Terrestre,
palavra e o que deve ser considerado em pri-
que se encontraria no centro do universo e
meiro lugar é o de substância ou essência
onde os seres seriam constituídos pela com-
porque esse conceito designa um atributo que
posição de quatro elementos essenciais: a
pertence necessariamente ao ente considera-
terra, o ar, o fogo e a água. Nessa dimensão,
do – isto é, sem o qual ele não pode ser o que
as coisas estariam sujeitas a dois tipos de
ele é. Por exemplo, “Sócrates é homem”. Ser
movimento: o movimento natural e o movi-
homem é a essência ou a substância de Só-
mento violento.
crates.
Os demais sentidos dessa palavra são as qual- A Teoria do Movimento
idades ou atributos que designam os aspectos Para Aristóteles, o conceito de movimento
não-essenciais do ente e por isso são consid- abrangia o deslocamento dos corpos no es-
erados acidentes, como por exemplo: “Sócra- paço e, também, as transformações qualitati-
tes é magro” ou “Sócrates é grego”. Ser grego, vas e quantitativas dos seres. Como os seres
ou magro, é um aspecto contingente – ou celestes seriam perfeitos, eles não poderiam
seja, casual – de Sócrates que não interfere sofrer este último tipo de movimento e, além
naquilo que determina a sua natureza. disso, o seu deslocamento no espaço, de mo-
do circular, era concebido como uma maneira
O surgimento dessa teoria indicou ao filósofo a
de perpetuar a perfeição.
necessidade de organizar um domínio do co-
nhecimento científico que se ocuparia com a No que diz respeito aos movimentos dos seres
determinação dos diversos sentidos pelos terrestres, a teoria de Aristóteles afirma que as
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UEA – Licenciatura em Matemática
mudanças a que eles estão sujeitos são regu- A solução oferecida por Aristóteles consistiu na
ladas pela sua natureza, isto é, pela maior ou concepção de que o ser é uno, e sua identi-
menor quantidade dos elementos que estão dade, inalterável, mas pode-se manifestar de
presentes na sua composição material. Assim, diversos modos. Isso significa que a essência
por exemplo, nos seres em cuja composição o dos seres será sempre a mesma, mas ela po-
fogo está presente em maior proporção do que derá se encontrar, alternadamente, em dois
os demais elementos, o movimento natural é o diferentes estados: em Potência, isto é, como
deslocamento em linha reta para cima, isto é, uma possibilidade latente, como no caso da
na direção do éter, que é incorpóreo, destituí- semente, que é uma planta em potência, e em
do de peso e, portanto, semelhante ao fogo Ato, como no caso da árvore adulta que atual-
que é rarefeito e leve. Por outro lado, o movi- izou (isto é, tornou reais, neste momento, as
mento natural dos seres onde a terra predomi- potencialidades que já possuía quando era
na como elemento material é o deslocamento apenas uma semente).
em linha reta para baixo, isto é, na direção da
O Processo de Conhecimento
Terra, que é densa e pesada.
Para Aristóteles, conhecer alguma coisa con-
Além do movimento natural, os seres terrestres
siste na determinação das suas causas. Mas
estão sujeitos, conforme essa teoria, a mudan-
causa, em seu entendimento, pode significar,
ças e a deslocamentos causados pela ação de
ao mesmo tempo, aquilo de que a coisa é feita
forças estranhas à sua natureza, como, por
– causa material –, o agente que determina a
exemplo, o arremesso do disco pelo atleta nos realização da coisa – causa motora –, a forma
jogos olímpicos, quando um ente denso e pe- segundo a qual ela é realizada – causa formal
sado é forçado a percorrer uma trajetória difer- – e a razão pela qual ela vem a existir – causa
ente da que lhe é natural. Esse tipo de deslo- final.
camento foi denominado movimento violento.
Estes sentidos podem, entretanto, ser resumi-
As alterações qualitativas e quantitativas dos dos a apenas dois: o de causa material e o de
entes, como, por exemplo, a transformação de causa formal porque a forma está tanto no
uma única árvore em várias peças e em diver- agente quanto na finalidade do processo de
sos instrumentos, também são consideradas realização ou atualização da coisa. Assim, uma
como movimentos por Aristóteles. Elas seriam vez que a investigação da essência deve levar
regidas pelo mesmo princípio que ordena o em conta a unidade da matéria e da forma, ela
movimento dos seres celestes e o movimento se desenvolve como um processo no qual são
natural dos seres terrestres, isto é, o princípio empregadas todas as faculdades sensíveis e
de que todos os seres buscam a sua perfeição intelectuais: a sensação, a memória, a imagi-
ou o seu Bem. nação e o raciocínio.
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo grego
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UNIDADE IV
A Ciência na História: o Mundo Medieval
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UNIDADE V
A Ciência na História: o Mundo Moderno
Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo moderno
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UEA – Licenciatura em Matemática
Como estes sábios da antigüidade, Galileu na forma de pensar. Elas carregam os princi-
acreditava na possibilidade de explicar os fe- pais traços caracterizadores da atitude intelec-
nômenos físicos utilizando a matemática, a ob- tual da ciência moderna. Pode-se dizer que
servação e a experimentação. estes traços são a destruição da idéia do
cosmo e a geometrização do espaço. Ou
Conta-se que, com esse intuito, ele subiu ao topo
seja, o universo deixou de ser concebido como
da torre de Pisa e, de lá, atirou dois objetos de
uno, limitado e hierarquizado, as leis que o
massas e pesos diferentes que, como ele havia
regem deixaram de ser concebidas a partir da
previsto, atingiram o solo ao mesmo tempo.
idéia de finalidade; por outra parte, ele passou
Embora esse episódio não possa ser atestado a ser pensado como um espaço homogêneo,
por fontes documentais, não há dúvida de que onde todos os seres obedecem, de modo
a primeira lei da física moderna foi formulada igual, às mesmas leis, que, por sua vez, se
por Galileu. expressam como enunciados matemáticos.
Constituída por dois enunciados, a lei da Além de determinar os pontos fundamentais
queda dos corpos afirma que: da lei da inércia, Descartes forneceu ao pensa-
a) “A velocidade de um corpo que cai aumenta mento moderno os fundamentos metafísicos e
proporcionalmente ao tempo.” os recursos metodológicos para a destruição
do edifício aristotélico e a transformação da
b) “A aceleração da queda é a mesma para
ciência em um instrumento de intervenção do
todos os corpos.”
homem sobre a natureza
A partir de algumas informações sobre um ins-
trumento que permitia ver a distância, Galileu
inventou, em 1609, o perspicilli ou telescópio e
passou a fazer observações do céu.
As teses de Galileu abalaram definitivamente a
idéia de que os astros são incorruptíveis. Elas
também resgataram o papel da observação,
embora Galileu a tenha associado, de forma
oposta à teoria de Aristóteles, a uma concep-
ção matemática e mecânica do mundo.
As idéias de Copérnico já enfrentavam muita
resistência por parte das autoridades eclesiás-
ticas. Após a publicação, em 1632, do livro
Diálogo sobre os dois maiores sistemas do
mundo – ptolomaico e copernicano, Galileu foi
processado e condenado pelo Tribunal do
Santo Ofício. O processo foi reaberto em 1983,
e o filósofo, absolvido.
Apesar da condenação de Galileu, suas idéias
ganharam cada vez mais adeptos. Alguns de
seus contemporâneos, como Ticho Brahe,
Kepler e Giordano Bruno, também contri-
buíram para a consolidação do heliocentrismo
e da física moderna, da qual, como se sabe,
Isaac Newton, no século XVIII, sistematizou as
leis e completou a teoria.
As teses de Copérnico e dos filósofos do sécu-
lo XVII provocaram uma verdadeira revolução
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo moderno
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A organização da sociedade sofre um grande Exemplo disso é Leonardo da Vinci, que é pin-
impacto: enquanto, na ordem social medieval, tor, engenheiro, matemático e físico ao mesmo
o homem está fortemente atrelado à tradição tempo. Mas também podemos lembrar Maqui-
religiosa, cioso da hierarquia e da permanên- avel e Francis Bacon, teóricos importantes do
cia da ordem cósmica, o homem da renas- novo estado moderno e do novo espírito cien-
cença é, principalmente, um espírito individual- tífico respectivamente.
ista que busca abarcar e dominar o mundo Lembremos, no entanto, que o ideal do uomo
com seu pensamento. singolare que configura o arquétipo do human-
Esse novo espírito decorre, é claro, de fatores ismo renascentista, expressão maior do an-
que contribuíram para sua formação. Assim tropocentrismo nascente, não constitui um mo-
podemos destacar: as múltiplas influências so- delo acabado. Trata-se, na verdade, de um
fridas pelo Ocidente cristão a partir do mundo ideal dinâmico, em que a insatisfação de quem
árabe, notadamente no que se refere às tra- busca a perfeição está sempre presente.
duções, realizadas nas universidades, das Por fim, já mencionamos, acima, que o período
obras da ciência antiga; a descoberta do Novo do Renascimento não apresenta uma unidade,
Mundo, no final do século XV; as leituras dos mas tendências do pensamento, o que o torna
autores antigos; o aumento das técnicas, não um período rico e variado. Dentre as tantas
somente graças à bússola, à prova e à impren- tendências que despontam no panorama do
sa, mas também devido às invenções industri- pensamento renascentista, podemos citar: a
ais ou mecânicas, muitas das quais se deve de inspiração neo-aristotélica, que marca um
aos artistas italianos que eram simultaneamen- retorno ao pensamento do Estagirita, de orien-
te artesãos. tação pagã e não cristã ; a de inspiração neo-
Todos esses fatores colaboraram para a platônica, representada por Nicolau de Cusa,
eclosão de uma nova forma de liberdade e de Leão Hebreu, Giordano Bruno, Tomás Cam-
pensamento, em que a fome de saber abarca- panella, entre outros; a de inspiração científico-
va todos os temas. Podemos dizer que os experimental, representada por Leonardo da
homens dessa época, mesmo os que ainda, Vinci e Galileu Galilei; o neoceticismo de Mi-
de alguma maneira, se encontravam apegados chel de Montaigne. São tendências distintas
à tradição, têm a impressão de que a vida, por que, entretanto, apresentam pontos comuns,
largo tempo suspendida, recomeça, que o dado o paradoxal ambiente místico-experimen-
destino da humanidade renova-se. tal que caracterizou o Renascimento.
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UEA – Licenciatura em Matemática
dárias (cor, odor, sabor) e qualidades primárias não submetido à ação de uma força perma-
(forma, figura, número e movimento). As pri- nece indefinidamente em repouso ou em movi-
meiras são subjetivas, enquanto as segundas mento uniforme. Sabe-se, no entanto, que isso
são objetivas e passíveis de aplicação mate- não acontece de fato, pois não é levado em
mática, o que permitiu a Galileu assimilar o es- conta o atrito, mas pode ser pensado como se
paço físico ao espaço geométrico de Euclides. ocorresse.
No que se refere ao movimento, Galileu desfez Galileu Galilei, sem sombra de dúvidas, é um
a diferença aristotélica entre movimento quali- dos expoentes que marcam o surgimento dos
tativo e movimento quantitativo, pois toda mu- novos tempos: a ciência nascente não é o re-
dança torna-se quantitativa. Com isso, estabe- sultado de simples evolução, mas surge de
lece um corte – ruptura – entre as duas leituras uma ruptura, da adoção de uma nova lingua-
do mundo, pois, onde Aristóteles via quali- gem, que, pontua na verdade uma indiscutível
dades (corpos pesados ou leves), Galileu revolução científica. Com Galileu começa, en-
descobre relações e funções. A partir dos seus tão, o processo de separação da ciência das
estudos sobre Arquimedes, percebe que as antigas bases filosóficas. O núcleo dessa rev-
leis do equilíbrio dos corpos flutuantes são ver- olução pode ser visto na mudança de perspec-
dadei-ras, o que o leva a destruir a teoria da tiva a partir da qual se aborda a natureza ou,
“gravidade” e “leveza” dos corpos. “Subir“ e dito de outra forma, a partir da mudança de
“des-cer” não atestam mais a ordem imutável método que agora reúne e privilegia experi-
do mundo, a essência escondida das coisas. mentação e matemática.
A título de exemplo de destruição dessa teo-
ria, podemos citar: onde está a “gravidade” da
madeira quando mergulhada na água? Torna-
se “leve” a ponto de só poder mover-se para
baixo se forçada. Ao explicar “como” os cor-
pos caem (e não “por que” caem), Galileu des-
cobre a relação entre o tempo que um corpo
leva para percorrer o plano inclinado e o es-
paço percorrido. A repetição dessas experiên-
cias confirma as relações constantes e neces-
sárias e abre caminho para a formulação da lei
da queda dos corpos, explicitada numa forma
geométrica.
A percepção dos fenômenos a partir dessas
relações constantes e necessárias não nos au-
toriza, no entanto, a concluir que a nova men-
talidade científica, proposta por Galileu, deve-
ria ser de caráter estritamente experimental,
empírica. O procedimento de Galileu não é
sempre indutivo, não é sempre que ele parte
dos fatos para as leis. Muitas vezes, realiza
“experiências mentais”, por meio das quais
imagina situações impossíveis de verificar ex-
perimentalmente e tira conclusões desses ra-
ciocínios. Ora, o que dá validade científica aos
processos intelectuais é que os resultados de-
vem ser submetidos à comprovação. Foi uti-
lizando esse método que descobriu o Princípio
da Inércia, segundo o qual qualquer objeto
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: o mundo moderno
“Ciência e poder do homem coincidem, Esses ídolos, no original Idola Tribus, Idola
uma vez que, sendo a causa ignorada, frus- Specus, Idola Fori e Idola Theatri, atingem
tra-se o efeito. Pois a natureza não se vence,
igualmente os homens em sua natureza
senão quando se lhe obedece. E o que à
contemplação apresenta-se como causa é
humana, em sua individualidade, em sua lin-
regra prática” (BACON, 1984, p. 13). guagem e em suas representações intelectu-
ais. Nos aforismos abaixo transcritos, de n.o
XLI, XLII, XLIII e XLIV, Bacon apresenta-nos
Segundo Bacon, os novos tempos estavam a
como se constituem os ídolos.
exigir novos métodos. Era necessário instaurar
uma nova mentalidade cientifica, tal é o seu • “Os ídolos da tribo estão fundados na
projeto da instauratio magna, com sua critica à própria natureza humana, na própria tribo
esterilidade da ciência antiga e escolástica, ou espécie humana. É falsa a asserção de
notadamente a Aristóteles, a quem ele tratava que os sentidos do homem são a medida
como “o pior dos sofistas”, embora, por mais das coisas. Muito ao contrário, todas as
de dois mil anos, tivesse se constituído em percepções, tanto dos sentidos como da
modelo e referência da atividade científica. Sua mente, guardam analogia com a natureza
obra mais conhecida, o Novum Organum, de humana e não com o universo. O intelecto
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Para tanto, fez-se necessário um novo exame subir, pouco a pouco, como por degraus, até o
de suas idéias do qual resultou a constatação conhecimento dos mais compostos; e, supon-
de que a idéia de Deus não somente é uma do mesmo certa ordem entre os que não se
evidência tão firme quanto a primeira, mas, precedem naturalmente uns dos outros.”
também, impõe ao entendimento a certeza de
“E o último, em fazer enumerações tão com-
que Ele existe, é onipotente, eminentemente
pletas e revisões tão gerais que eu estivesse
bom e perfeito de tal forma que, por estas qual-
seguro de nada haver omitido.” (Apud BRÉHIER,
idades, a ação de enganar ou a de iludir seri-
1977, pp. 62-63).
am incompatíveis com sua natureza.
Portanto a exatidão almejada por Descartes
Mediante a prova da existência de Deus, a me-
dependia de um procedimento por meio do
tafísica cartesiana proporciona uma garantia
qual o pensamento se desenvolve de acordo
de que a ciência, tal como Descartes e os raci-
com uma medida – como determinam os dois
onalistas a concebem, possui não somente um
preceitos iniciais: clareza e distinção realizados
conteúdo formal, mas, também, objetivo.
por uma análise – e uma ordem – como deter-
Essa garantia se mostrou necessária em fun- minam os dois últimos preceitos: progressão
ção do modo pelo qual Descartes concebeu o ascendente visando a uma síntese dos obje-
processo de aquisição do conhecimento. Co- tos da série.
mo se disse anteriormente, o método cartesi-
Assim, essa exatidão corresponde a uma rela-
ano era matemático. Isso não significa que es-
ção entre as idéias analisadas. A verdade, nes-
se recurso servisse apenas para apresentar
se processo, encontra-se, antes de tudo, no
quadros e tabelas com dados quantitativos. O
campo do pensamento ou da razão. A idéia de
pensamento, para Descartes, deveria ser exa-
verdade como adequação entre o pensamento
to. O que, em seu entendimento, não poderia
e a realidade – desenvolvida pelos escolásticos
ocorrer nos casos do silogismo aristótelico, da
e retomada no século XVII pelos empiristas –
interpretação dos autores clássicos pelos eru-
será considerada pelos racionalistas apenas
ditos e das experimentações dos alquimistas,
como uma conseqüência secundária do fato de
os quais somente chegavam a resultados
que o mundo é ordenado pelas leis da razão.
aproximados.
Nessa concepção da verdade, a idéia de Deus
Para ser exato, o raciocínio científico deveria
exerce um função crucial. O Deus dos racional-
obedecer às mesmas regras utilizadas pelos
istas e a ordem racional da natureza não são
matemáticos para calcular proporções e equa-
incompatíveis. Tanto assim, que o mais radical
ções. Regras que Descartes apresentou no li-
entre eles, Espinosa, retira de Deus qualquer
vro O Discurso do Método na forma de quatro
poder de alterar, através dos milagres, o curso
preceitos fundamentais:
natural das coisas. Para uns, como Descartes
“O primeiro era não aceitar por verdadeiro e Malebranche, permanecem alguns poucos
nada que eu não conhecesse evidentemente mistérios, mas a ação e o pensamento divinos,
como tal... e de não aceitar em meus juízos pela sua própria essência, não são arbitrários,
senão aquilo que se apresentasse tão clara e mas conforme princípios racionais e imutáveis.
distintamente a meu espírito, de modo a não O conhecimento é exato porque a razão
ser possível colocá-lo em dúvida.” humana – embora limitada – participa da razão
universal, isto é, da razão de Deus.
“O segundo, de dividir as dificuldades que eu
examinasse em tantas parcelas quantas pudes- Esquematicamente, pode-se dizer, a partir das
se ser e fossem exigidas para melhor com- preocupações de Descartes que serão reto-
preendê-las.” madas pelos demais racionalistas, que essa
corrente do pensamento deteve-se sobre três
“O terceiro, de conduzir por ordem meus pen-
problemas fundamentais para a ciência e a
samentos, começando pelos objetos mais sim-
filosofia modernas: a questão do sujeito, a
ples e mais fáceis de serem conhecidos, para
questão da causa e a questão da substância.
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UNIDADE VI
A Ciência na História: o Iluminismo
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dido à metafísica, uma vez que o nosso con- própria faculdade cognitiva. Deixemos a Kant a
hecimento dos objetos depende do sujeito conclusão deste momento:
conhecente pelo menos tanto quanto depende
“Não conhecemos a priori nas coisas senão
do objeto conhecido? Temos aqui o que acima
aquilo que nós mesmos nelas colocamos” (B
foi enunciado como revolução copernicana.
XVIII).
Vejamos como Kant a enuncia:
“Até hoje admitia-se que o nosso conhecimen-
to se devia regular pelos objetos; porém, todas
as tentativas para descobrir a priori, mediante
conceitos, algo que ampliasse nosso conheci-
mento, malogravam-se com este pressuposto.
Tentemos, pois, uma vez, experimentar senão
se resolverão melhor as tarefas da metafísica,
admitindo que os objetos se deveriam regular
pelo nosso conhecimento, o que assim já con-
corda melhor com o que desejamos, a saber, a
possibilidade de um conhecimento a priori
desses objetos, que estabeleça algo sobre
eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui
de uma semelhança com a primeira idéia de
Copérnico; não podendo prosseguir na expli-
cação dos movimentos celestes enquanto ad-
mitia que toda a multidão de estrelas se movia
em torno do expectador, tentou senão daria
maior resultado fazer antes girar o expectador
e deixar os astros imóveis. Ora , na metafísica,
pode-se tentar o mesmo, no que diz respeito à
intuição dos objetos.” (B XVI-XVII).
A revolução copernicana de Kant é, portanto, a
substituição, em teoria, do conhecimento de
uma hipótese idealista, por uma hipótese rea-
lista. O realismo admite que uma realidade nos
é dada, quer seja de ordem sensível (empiris-
tas), ou de ordem inteligível (racionalistas), e
que o nosso conhecimento deve modelar-se
sobre essa realidade. Conhecer, nessa hipó-
tese, consiste simplesmente em registrar o
real; o espírito, nessa operação, é meramente
passivo. No entanto o idealismo supõe, ao
contrário, que o espírito intervém ativamente
na elaboração do conhecimento e que o real,
para nós, é resultado de uma construção.
Portanto, operando uma síntese entre o realis-
mo e o idealismo, Kant permite-nos entender
que o objeto, tal como o conhecemos é, em
parte, obra nossa e, por conseguinte, pode-
mos conhecer, a priori, em relação a todo obje-
to, as características que ele recebe de nossa
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UNIDADE VII
A Ciência na História: os Dilemas do Mundo Contemporâneo
Filosofia da Ciência – A ciência na história: os dilemas do mundo contemporâneo
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amontoado caótico de substâncias, mas o des- Não poderíamos deixar de mencionar o pro-
dobramento progressivo de uma espirituali- cesso dialético no pensamento hegeliano.
dade racional (que pode ser denominada de Tudo o que até então foi dito sobre o pensa-
Absoluto, Espírito, Idéia, Razão, Deus), que mento hegeliano está dinamicamente inserido
se exprime inconscientemente na natureza e nesse processo. Assim, se aplicarmos a qual-
conscientemente no homem. Na segunda quer elemento da realidade que se queira, a
par-te desse aforismo,a racionalidade coin- doutrina do devir dialético constitui a estrutura
cide com a realidade, indica que a razão não do sistema hegeliano. A transformação é uma
expri-me uma abstração, um dever-ser ideal lei universal (nada lhe escapa) regulada por
ou utó-pico, mas a estrutura profunda do três momentos. O primeiro deles, a tese ou
mundo real. Assim, de um lado, tudo aquilo afirmação, indica a coisa em si, o que ela é no
que é possui uma razão necessária para exis- início da transformação considerada; o segun-
tir; do outro, tudo o que tem uma razão para do momento ou momento intermediário, a
ser existe de fato. antítese ou negação, exprime o estado de
Para justificar o que acima dissemos, recor- passagem. Isso significa que, para haver mu-
ramos a um trecho dos princípios da filosofia dança, toda coisa deve negar a si mesma para,
do Direito de nosso autor: no fim, achar uma síntese que conserve algo
do estado inicial. O terceiro e último momento,
“O que é racional é real e o que é real é a síntese ou a reafirmação, indica o que a
racional. Esta é a convicção de toda a cons- coisa será no fim do processo.
ciência livre de preconceitos e dela parte a
filosofia tanto ao considerar o universo espiri- O resultado que se tem, então, desse proces-
tual como o universo natural (...) A missão da so, é o de que cada estado da realidade, cada
filosofia está em conceber o que é, porque o ser, se encontra a cada instante em uma con-
que é é a razão. No que se refere aos indiví- dição contraditória. Aquilo que é se afirma e
duos, cada um é filho do seu tempo; assim existe de um determinado modo, mas ao
também para a filosofia que, no pensamento, mesmo tempo se nega, torna-se uma outra
pensa o seu tempo” (Hegel, 2003, págs. XXXVI coisa. Hegel partilha da idéia de Heráclito de
- XXXVII). que todo ser, existindo, realiza a unidade dos
contrários.
Para Hegel, toda a realidade pode ser justifica-
da, uma vez que acredita que, para se filosofar,
precisa-se partir de um método científico e
objetivo. Assim, podemos compreender porque
sua idéia de que tudo o que é real – tudo o que
existe na natureza e todos os eventos da his-
tória humana – é, per se, racional e, portanto,
necessário, justificado. Não se deve pensar a
racionalidade como algo abstrato e imaterial,
ou então como um dever-ser do mundo em
relação àquilo que o mundo é de fato, porque a
racionalidade é a substância de tudo o que
existe, inclusive da matéria e da natureza.
Assim, poder-se-ia dizer que nunca nada acon-
teceu por acaso; nada existe no mundo de for-
tuito ou ocasional; tudo o que acontece tem
uma profunda razão de ser; o mundo não
poderia existir de modo diferente do que é, e
tudo o que existe tem a sua importância como
parte necessária da totalidade.
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Filosofia da Ciência – A ciência na história: os dilemas do mundo contemporâneo
Esse projeto possui como um de seus pressu- Trata-se da lei dos três estados, segundo a
postos fundamentais a concepção de que a qual a humanidade, em seu curso histórico,
história da humanidade é regulada pela “lei atravessou três grandes estágios ou estados.
dos três estados”, isto é, pelo inevitável pro- O primeiro é o estado teológico ou religioso,
gresso de uma idade teológica primitiva que no qual todas as explicações dos fenômenos
dá lugar a uma idade metafísica até atingir seu são atribuídas a forças sobrenaturais. O segun-
ponto final de amadurecimento em uma idade do é o estado metafísico ou filosófico, que é
científica. Para essa concepção, todas as uma fase de transição entre o estado religioso
idéias e todos os raciocínios que não e o positivo, no qual, conforme Comte, “os
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agentes sobrenaturais são substituídos por o fato social pudesse ser matematicamente
forças abstratas” inerentes aos seres. O ter- reduzido a fenômenos quantificáveis; em
ceiro é o estado positivo ou científico, que segundo lugar, o de sacralizar o racional ou
representa o estágio definitivo e mais elevado racionalizar o sagrado, conforme a pretensão
do desenvolvimento da humanidade, no qual de fundar uma religião (a religião da huma-
todos os fenômenos – naturais e sociais – po- nidade) em bases exclusivamente científicas.
dem ser explicados cientificamente.
Para Comte, as explicações produzidas pela
ciência são as únicas capazes de atingir o
estatuto da verdade. Positivamente, a ciência é
tida como única forma válida de conhecimen-
to. Como se vê, o positivismo rejeita a filosofia
como forma de conhecimento; a filosofia é tão-
somente a filosofia positiva, que se divide em
cinco ciências fundamentais: a astronomia, a
física, a química, a fisiologia e a física social. A
física social ou a sociologia desenvolvida pelo
positivismo apresenta-se como a última e a
mais complexa das ciências que integram a
classificação geral das ciências definida por
Augusto Comte.
A sociologia positiva inclui em seu interior
princípios morais, políticos e religiosos, todos
definidos a partir da ciência, e compreende
duas partes : 1) a estática social, que se ocupa
do equilíbrio e da ordem na esfera social ; 2) a
dinâmica social, que estuda as formas de de-
senvolvimento do corpo social com base na lei
dos três estados, ao mesmo tempo em que
define as leis do progresso. O conceito de
ordem, que Augusto Comte vai buscar na
sociedade hierarquizada do medievo, confere
à sociologia comtiana um caráter ao mesmo
tempo conservador e autoritário.
Os conflitos sociais, a luta de classes, nada
disso encontra lugar em sua física social, a não
ser sob a designação de anomia social. A influ-
ência do positivismo no Brasil faz-se presente
até hoje, desde o sistema educacional (o tecni-
cismo pedagógico), até o econômico (a tec-
nocracia financeira), sendo o único país do
mundo que tem cravado em sua bandeira o
lema positivista: ordem e progresso.
Dentre outros, os dois grandes equívocos da
concepção positivista da ciência são, em
primeiro lugar, o de tentar generalizar para as
ciências sociais os mesmos procedimentos
metodológicos das ciências naturais, como se
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UNIDADE VIII
Os Novos Rumos e os Desafios da Ciência nos Séculos XX e XXI
Filosofia da Ciência – os novos rumos e os desafios da ciência nos séculos XX e XXI
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O pensamento de Marx e mais ainda os mar- Enquanto a razão não recuperar sua legítima
xismos não estão imunes ao otimismo da ciên- dimensão ético-iluminista, a Teoria Crítica con-
cia do século XIX, sobretudo fortalecido pela tinuará sendo a arma fundamental contra as
idéia cumulativa do progresso, dileto filho da formas opressivas e desumanizantes do cien-
revolução industrial capitalista. Segundo Cris- tificismo e da tecnocracia da razão instrumen-
tovam Buarque, “a história do pensamento eco- tal. Dizia Horkheimer que “a filosofia que pre-
nômico transformou-se em história do pensa- tende se acomodar em si mesma, repousando
mento do progresso da economia” (1990, p. numa verdade qualquer, nada tem a ver, por
50). Ainda segundo este autor, Marx pode ser conseguinte, com a Teoria Crítica” (1983, p.
visto como “um empedernido defensor do pro- 161).
gresso, e sua crítica ao capitalismo baseava-se
na impossibilidade deste sistema em elevar o
nível do progresso” (Idem, p. 54). Ao contrário
de Marx, os pensadores da Teoria Crítica sus-
peitaram da idéia mesma do progresso e de-
nunciaram o seu caráter reificante, sobretudo
no campo da cultura por meio do que eles
denominaram de indústria cultural, ou forma
mercantil da cultura.
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Filosofia da Ciência – os novos rumos e os desafios da ciência nos séculos XX e XXI
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podem ser vistas como condições para o sur- levaria a um irracionalismo e a um relativismo
gimento de uma nova teoria. O paradigma po- terminantemente recusados por Kuhn.
de ser estudado como uma estrutura lógica ou
Essa incomparabilidade ou incomensurabilida-
como uma série de pressupostos que são con-
de entre duas teorias, consiste numa diferença
dições de possibilidade da investigação cientí-
estrutural nas relações de termos-tipo (Kind-
fica.
terms) usados em distintas comunidades. Ela é
As idéias de Thomas Kuhn, sobre a estrutura sempre local, quer dizer, uma mudança teórica
das revoluções científicas, alcançaram grande revolucionária afeta sempre alguns conceitos,
ressonância devido ao fato de: abarcarem um mas nunca sua totalidade. Esse caráter local
campo muito amplo que vai da lógica da des- (específico, não geral) da incomensurabilida-
coberta científica à psicologia (e à sociologia) de, é o que permite uma ampla base conceitual
da produção científica; seus conceitos básicos comum para que se possa, apesar das dife-
terem suficiente flexibilidade para admitir inter- renças conceituais pontuais, comparar teorias.
pretações as mais diversas. Assim, é preciso
Bem entendida, a incomensurabilidade não
considerar que uma mudança de paradigma
impede – como alguns podem pensar – um
pode acontecer subitamente, a exemplo da-
real progresso do conhecimento. Ao contrário,
quele “deslocamento” da visão, antes indica-
é ela que, na realidade, leva ao progresso
do, como também pode acontecer que a for-
cognoscitivo, uma vez que este progresso não
mação de um novo paradigma leve muito tem-
é meramente quantitativo, implicando, assim,
po para se consolidar, o que pode implicar a
uma profunda reorganização do conhecimen-
coexistência de dois ou mais paradigmas num
to até então estabelecido. Não se trata de uma
mesmo momento histórico.
busca progressiva da verdade, pois Kuhn
Kuhn sempre rejeitou interpretações extremas nega a existência de uma verdade indepen-
de suas idéias. Assim, recusou todo reconstru- dente da teoria.
cionismo e mesmo todos os falseamentos in-
O progresso científico precisa ser entendido de
gênuos; não aceitou que sua teoria sobre a
forma instrumental, como um crescimento in-
estrutura e a história das teorias científicas fos-
trateórico da capacidade de resolver proble-
se tratada como uma mera manifestação de
mas e de fazer previsões. É claro que essa
historicismo, psicologismo ou de sociologis-
compreensão do desenvolvimento teórico as-
mo. Seu trabalho está voltado para o desen-
sinala um preço a ser pago pelas comunidades
volvimento, por meio da descrição e da análise
científicas, a saber: a crescente especialização
histórica, de uma teoria da racionalidade den-
que isola as comunidades umas das outras.
tro da qual talvez se possam explicar as no-
ções de paradigma e de mudança de paradig- NB: Cf., Ferrater Mora, 2001, págs. 1669s,
ma, incluindo-se aí toda mudança radical ou 2199s.
revolucionária.
Neste sentido, dado o caso, num determinado
momento histórico, de um paradigma diferir fun-
damentalmente de outro e, de modo específi-
co, se um paradigma novo difere fundamental-
mente do velho paradigma que, com o adven-
to da crise, chegou a substituir, parece que se
tem de concluir que os dois são completa-
mente incomparáveis entre si. Esta situação de
incomparabilidade entre os dois paradigmas
não só tornaria difícil, mas também impossível
uma história da ciência, que é justamente o
que Kuhn procura fazer. Além disso, a ausên-
cia de uma história da ciência, fatalmente
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A pensadora brasileira Marilena Chauí, nos teira rigorosa entre sujeito e objeto, de tal
parágrafos a seguir transcritos, mostra como forma que este é conhecido em sua inteira
se dá o processo da ideologização-mitologiza- objetividade, isento de qualquer elemento
ção no campo cientifico, tanto na esfera de sua subjetivo ou valorativo. A isso chamamos de
produção quanto na de sua aplicação: mito ou ilusão da neutra-lidade. Ocorre que os
mitos atuais são produzidos de modo bem
“Quando Darwin elabora a teoria biológica mais sofisticado e eficiente, e ao contrário dos
da evolução das espécies, o modelo de relatos figurativos da consciência mítica, a sua
explicação usado por ele permitia-lhe supor
linguagem é de extração técnico-instrumental,
que o processo evolutivo ocorria por seleção
natural dos mais aptos à sobrevivência.
travestida de autoridade cientifica.
Ora, na mesma, a sociedade capitalista
estava convencida de que o progresso “Ideologia da ciência: crença no progresso
social e histórico provinham da competição e na evolução dos conhecimentos científi-
e da concorrência dos indivíduos, segundo cos que, um dia, explicarão totalmente a
a lei econômica da oferta e da procura. Um realidade e permitirão manipulá-la tecnica-
filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria mente, sem limites para a ação humana.
darwiniana à sociedade: nesta, os mais Mitologia da ciência: crença na ciência co-
“aptos” (isto é, os mais capazes de compe- mo se fosse magia e poderio ilimitado sobre
tir e concorrer) tornam-se naturalmente as coisas e os homens, dando-lhes o lugar
superiores aos outros, vencendo-os em que muitos costumam dar às religiões, isto
riqueza, privilégios e poder. é, um conjunto doutrinário de verdades in-
Ao transpor uma teoria biológica para uma temporais, absolutas e inquestionáveis”
explicação filosófica sobre a essência da (CHAUÍ, 2003, p. 234).
sociedade, Spencer transformou a teoria
científica da evolução em ideologia evolu-
cionista. Por quê? Em primeiro lugar, porque
A ciência é força produtiva e, como tal, insere-
generalizou para toda a realidade resultados se e está a serviço do modo capitalista de pro-
obtidos num campo particular de conheci- dução que, por sua vez, é movido muito mais
mentos específicos. Em segundo lugar, pela férrea lógica do lucro do que por exigên-
porque tomou conceitos referentes a fatos cia de natureza ética. No paradigma clássico
naturais e os converteu em fatos sociais,
definido por Sócrates, Platão e Aristóteles, a
como se não houvesse diferença entre
natureza e sociedade. Uma vez criada a ide- ciência é condição da vida virtuosa. No para-
ologia evolucionista, o evolucionismo digma instrumental da produção capitalista,
tornou-se teoria da história e, a seguir, ela se converte em mecanismo de geração da
mitologia científica do progresso humano” mais-valia, refratária a princípios éticos. Segun-
(CHAUI, 2003, p. 237). do Marx, são dois os traço fundamentais do
modo de produção capitalista: em primeiro
É um equívoco pensar que o mito é mero sub- lugar, é um sistema universal de mercantiliza-
produto de uma consciência pré-científica. As ção, tudo o que produz, produz como mer-
ciências também produzem seus mitos, suas cadoria; em segundo lugar, a finalidade direta e
ilusões. Comte, em pleno século XIX, não quis o movente da produção é a produção da mais-
transformar a ciência na única e verdadeira valia (Marx, 1985, pp. 312-313). O valor de tro-
religião da humanidade? O que é isso senão o ca sobrepõe-se ao valor de uso. A capacidade
cientificismo? Uma forma de crença e de dog- produtiva, ampliada pela ciência e pela técni-
matismo que confere à ciência poder que ela ca, longe de direcionar-se pela satisfação das
não tem, que ela tudo pode explicar e que a necessidades humanas básicas, submeteu-as
realidade, seja ela subjetiva, objetiva ou social, à estreita lógica do lucro. O fundamentalismo
é em si mesma redutível às leis cientificas. monolítico do lucro é o responsável pelo mais
Mais do que isso, acredita que suas expli- imoral dos indicadores sociais do modo de
cações gozam da prerrogativa da neutrali- produção capitalista: a fome. Como explicar,
dade, porque a ciência, como nenhuma outra se não por esse fundamentalismo, o fato de o
forma de co-nhecimento, estabelece uma fron- Brasil apresentar a maior mancha de famintos
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das Massas afirma “que hoje, quando há maior Para Gusdorf, o movimento interdisciplinar do
número de homens de ciência que nunca, há saber e da ciência implica a necessária pas-
menos homens cultos do que, por exemplo, sagem “das ciências humanas à ciência do
por volta de 1750” (ORTEGA Y GASSET, 1987, homem”, o que também implica uma unidade
p. 126). Desse modo, ao processo da fragmen- dialética de movimentos complementares en-
tação do saber cultivado no regime da miopia tre uma “pedagogia da especialização” e uma
disciplinar e que concorre para uma compre- “pedagogia da unidade” (1984, p. 29). Para a
ensão igualmente fragmentada do homem e cultura interdisciplinar, não é admissível a ciên-
do mundo, deve suceder o cultivo da unidade cia sem o cultivo da reflexão filosófica nem a
do saber e da ciência como fecundo exercício filosofia sem o cultivo do conhecimento cientí-
interdisciplinar. fico. Ciência sem sabedoria é ciência insensa-
ta. A cultura interdisciplinar pressupõe a supe-
“Daí decorre o paradoxo: o século XX pro- ração de uma visão inculta da ciência e a con-
duziu avanços gigantescos em todas as stituição de uma ciência com consciência, ci-
áreas do conhecimento científico, assim ente de seus limites e suas possibilidades.
como em todos os campos da técnica. Ao
mesmo tempo, produziu nova cegueira para
os problemas globais, fundamentais e com- “Os problemas fundamentais e os proble-
plexos, e esta cegueira gerou inúmeros mas globais estão ausentes das ciências dis-
erros e ilusões, a começar por parte dos ciplinares. São salvaguardados apenas na
cientistas, técnicos e especialistas” (MORIN, filosofia, mas deixam de ser nutridos pelos
2000, p. 45). aportes das ciências” (MORIN, 2000, p. 40).
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