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CAPITULO I Oradores e historiadores “Pelo fato de que nés {seres humanos] recebemos 0 poder de nos convencer mutuamente ¢ de fazer aparecer claramente a nés proprios o objeto de nossas decisdes, nio somente nos libertamos da vida selvagem, mas também nos reunimos para construir cidades, estabelecemos leis; descobrimos as artes (technai)” (Is@crates, Nico- cles, 5-9; cf. MACIFL DE BARROS, 1993). Assim comeca 0 elogio da linguagem (logos) como aptidio para falar €, a0 mesmo tempo, para falar bem, atribuido a Isdcrates, o mestre da cloquéncia atenien- se; elogio semelhante encontra-se em Cicero, mestre no menos incontestado da cloquéncia latina, que 0 coloca nos discursos do orador Crasso. “Que outra forga [além da energia da palavra] teria conseguido reunir no mesmo lugar os homens dispersos, tiri-los de sua vida grosseira e selvagem, para levi-los a nosso grau atual de civilizagao, construir as cidades e fazer reinar 25 leis, os tribunais € 0 direito?” (Cicero, Do oradar 1, 8, 33) Proprio do homem, 0 logos — como capacidade de falar e de se falar, de convencer e de se convencer~é colocado, portanto, no fundamento da vida civilizada, ou seja, da vida em sociedade. © cidadio seri, entio, orador, ¢ © melhor cidadio seri o melhor orador. De Isécrates a Cicero, © mesmo elogio soa afinado na medida em que exprime uma caracteristica essencial e de longa duragio da civilizagio antiga e, ao mesmo tempo, desafinado por estar amplamente defasado em relacio as realidades politicas dos séculos IV e La.C. Na Guerra do Peloponeso, Atenas quase desapareceu, 7 E/mE.04 ark —O as HOM Ae e, logo depois, Filipe da Maced6nia triunfir sobre Deméstenes toda a sua eloguéncia. Em Roma, a Repiblica esti moribunda, e, contrariamente 3s teses ciceronianas, os generais sio mais impor- tantes que o orador. A toga cede 4s armas: Crasso, Pompeu, César divider entre si o poder, ao paso que, proscrito, Cicero acabari assassinado no ano 43, Eloquéncia e cidade “Bom para dar opinides” e “bom para realizar faganhas” (erga): esse deve ser o herdi homérico. Duplamente excelente: em palavras & em ages, tanto na guerra como na assembleia, Seja diante de Troia, a assembleia dos chefes aqueus, em que cada um, alternadamente, 6 convidado a fazer prevalecer sua opinigo e em que, passando de mio em mio, o cetro régio marca a inviolabilidade do orador € torna visivel o primeiro modelo de circulagao regulada de uma fila quase “politica”; seja em Esquéria ou em ftaca, territérios em que a assembleia, convocada em principio por iniciativa do rei, reine os membros (0 demos) da comunidade. Nessa ocasiio, Telémaco exige até ser tratado como “orador de agora”. Quase dez séculos mais tarde, em sua obra Precitos politicos, dirigidos a um jovem desejoso de fazer carreira, Plutarco apoia-se na mesma férmula homérica, como a melhor definigio do “poli- tico”, ou seja, aquele que dai em diante, personalidade importante entre as personalidades importantes, é visto como o “‘chefe natural” da cidade. Mas estamos, pelo menos parcialmente, no registro da metifora: com eftito, desde que se estendeu o reinado da “paz romana”, deixava de ser questio trater de guerras € de combates Em compensagio, sua fila , ao mesmo tempo, lagos ¢ ergo, fala & acio, porque ¢ unicamente com esse “instrumento” que ele “mo- dela” a cidade. Com a cidade clissica, da qual Atenas permanece como 0 tipo ideal, a fala se torna, segundo a formula de Jean-Pierre Vernant, “o instrumento politico por exceléncia. [...] Ela jé nio é a palavra ritual, a férmula exata, mas o debate contraditério, a discussio € a argumentagio. Ela supde um piiblico a0 qual se dirige como a 38 Quon nssomoonis um juiz que decide em tiltima instincia, com as mios levantadas, entre as duas propostas que Ihe sio apresentadas; é essa escola pu- ramente humana que avalia a respectiva forga de persuasio dos dois discursos, garantindo a vit6ria de um dos oradores em relacdo a seu adversirio” (VERNANT, 1962, p. 45). Esta nitidamente marcado 0 vinculo essencial existente entre a cidade como tale a fala persuasiva: € impossivel a existéncia de uma sem a outra. Mas, imediatamente depois, se introduzem uma ambiguidade ¢ um risco inelutivel. A persuasio (peitho) niio é, nem pode ser, univoca. Ao lado da boa persuasio, preocupada com a verdade, hé outra que, para conven- cer, adula, desencaminha, engana o interlocutor; no alvorecer da civilizacio grega, Ulisses surge j4 como mestre de eloquéncia ¢ como mestre velhaco. Acé aqui, trata-se apenas de oralidade, mas, entre 0 século VIT 0 final do século V a.C., a cidade se poe a escrever suas leis, seus decretos, seus regulamentos; imprimindo e exprimindo sobre seus miuros a mesma exigéncia de publicidade que jé manifestava, i sua maneira, a circulacio da palavra entre os cidadios. Movimento de gzande consequéncia: a importincia reconhecida 3 fala (como ins- trumento politico) e a pritica da escrita (pelo poder de objetivacio que ela implica) levaram ao desenvolvimento das reflexdes sobre © logos, sobre seus poderes ¢ sua influéncia: com a retérica ~ cuja ienda pretende que ela tenha aparecido na Sicilia justamente apés a derrubada dos tiranos (tnicos senhores da palavra, especialmente em matéria de justiga) ~e a sofistica, escola do “falar bem”, portanto, escola do poder na cidade. Se as grandes figuras de Atenas do século V, Temistocles ou Péricles, no deixaram nenhum discurso escrito (de certa maneira, suas obras, embora andnimas, sio os decretos votados e expostos sobre os muros da cidade), Deméstenes, por sua vez, redigia-os (pelo menos, parcialmente) e, no século I, Cicero afirmari que o melhor treino para o orador ¢ a escrita; quanto a Isécrates, sabe-se que ele nunca compés senio discursos ficticios, em estilo trabalhado pacientemente ¢ de forma esmerada. No mundo homérico, o aedo estava encarregado da memoria social do grupo, Ble celebrava a gesta dos heréis que, para escapa~ rem do anonimato dos mortos comuns, tinham preferido morrer 39 mien DA SoH ~O oe Os STOO YR na primeira fileira da batalha, garantindo assim uma gléria (leos) imortal para cles: tal como ocorreu com Aquiles, acima de qualquer outro. A Musa era a sua inspiradora; todo o sew saber havia sido adquirido por intermédio dela, O aedo era declamador ou porta voz, mas nio “autor”. Em compensacio, quando, bem no comeco do século V, He- cateu de Mileto inicia suas Histérias com estas palaveas ~“Hecateu de Mileto fila assim” —, ele se apresenta como autor, assinando sua obra, enquanto Hecateu, cidadio de Mileto. Depois, na frase seguin- te, a assinatura se reduplica e se desioca (a primeira pessoa sucede 8 terceiza): “Bu eserevi essas narrativas, como elas me parecem ser verdadeiras. Com efeito, as narrativas dos gregos, de acordo com a minha impressio, sio miiltiplas ¢ risiveis”. O narrador transforma-se em um sujeito de enunciagio que se constréi e se reconhece como “eu” que escreve; além disso, pela escrita, ele mantém distincia das narrativas dos gregos, cuja multiplicidade se torna de repente visivel. Dai, 0 riso que ele mio consegue conter (DETIENNE, 1981, p. 137-145), Nesse novo espaco politico e intelectual, hi condigdes para o comego da historiografia e para que o historiador venha substituir o aedo. ‘Mas, enquanto o aedo inspirado via, imediatamente, pelos olhos da Musa, 0 historiador no tem outro recurso além de investigar (historein) para tentar ver mais longe ¢ aumentar seu saber. Se 0 aedo era 0 porta-voz da Musa, 0 historiador, que recotre & escrita, reivindica-se como escritor. Preocupado com 0s mortos e senhor da imontalidade, seu desejo seria 0 de conservar tal pretrogativa, mas a imortalidade que ele proclama ou consigna ji no & a dos herdis individuais, mas a da cidade. Os cidadios mortos na guerra s6 podem, de fato, exigir a gléria da lembranga porque cumpriram seu dever, obedecendo as ordens da cidade, Tal como Tucidides leva Péricles a expor na famosa Oragio fiinebre pronunciada no des- fecho do primeiro ano da Guerra do Peloponeso (Tucinines, 2, 34-47; Lonaux, 1981, p. 183-204). Dai em diante, a imortalidade & questio da cidade; no entanto, em breve, Atenas vai descobrir que cla mesma é mortal. 40 woes «sonar Palavras e acdes Logoi e erga: © herdi homérico deve sobressair nesses dois do- minios, sem que ainda tenha sido realmente formulada a questio das relagdes entre eles. Com 0 desenvolvimento da cidade, assim como das reflexdes sobre a propria linguagem, a situagio passa por mudangas. Seria até mesmo possivel, ao longo da histéria da cidade antiga, identificar uma tripla escansio: do logos inspirador do ergon, a0 logos como emgon e, inclusive, ao logos sem ergon. Ou, para formular isso de outro modo, do politico — por exemplo, Péricles — como orador, a0 orador (rhetoi) como politico —Deméstenes ou Cicero—e depois 20 politikas de Plutarco ou, melhor ainda, ao sofista (no sen= tido assumido pelo termo no século II d.C., tais como Elio Aristides ou Dion de Prusa; cf: RakDON, 1971). Reeleito, com regularidade, estratego em Atenas, Péricles refine eloquéncia e a¢io, 20 passo que os estrategos do século IV serio, antes de tudo, homens de guerra. A conducio da politica se torna, entio, tarefa dos rhetores, como Deméstenes, que sio oradores profissionais, independentemente de qualquer cargo eletivo. Se 0 poder deles reside em seu lags, sua palavra tende a ser também seu ergon. Retomando e prolongando Isécrates no contexto de Roma, Cicero “heroiciza” o orador. Certamente, Roma nio esperou por Cicero para possuir grandes oradores. Catio ji 0 definia como “homem hibil em falar bem” (vir bonus dicendé peritus). Existiam até mesmo usos “puramente latinos” ou “fiancionais” da palavra orator Independentemente de qualquer ideia de arte oratéria, 0 romano “tomava-se” oratorao sair do exército, antes de retomar as armas como cchefé militar (imperator), e, em seguida, ingressar no Senado (Miciiet, 1961, p. 8). Mas Cicero desenvolve, em particular em Do orador, uma concepgio da eloquéncia e da cidade que atribui a primeira posico a0 ‘orador, transformando-o no verdadeiro princep: da cidade, Parodiando as afirmagdes de Platio sobre os reis € 0s fildsofos, ele poderia dizer: “quanto os bons oradores no forem reis das cidades, e enquanto aqueles que, atualmente, S30 chamados reis e soberanos nfo forem verdadeira ¢ seriamente oradores, no cessario os males das cidades” Os logo’ e os erga: as palavras e as ages, mas também os dis cursos ¢ as facanhas ~ eis problema para historiador. Ele deve 4 EmDADA ASTRA ~O OE OS HTORAEORES VBA encontrar as palavras (adequadas, precisas, verdadeiras) para relatar as proezas dos homens e as agdes das cidades com 0 objetivo de preservé-las do esquecimento. Mas ele sabe que as palavras correm sempre o risco de ser inferiores, insuficientes, ou, como observava Herédoto, os erga sio maiores que as palavras. “Herédoto de Tiirio expe, aqui, suas investigagSes para impedir, por um lado, que as obras dos homens venham com o tempo a apagar-se da memaéria e, por outro, que as grandes ¢ maravilhosas facanhas realizadas, tanto pelos barbaros quanto pelos gregos, cessem de ser relatadas” Mesmo depois de se tornar um topos literfrio, a polaridade logoi/erga no cessari de exercer infiuéncia sobre a escrita da his~ téria. Ela comega por atravessar A Guerra do Peloponeso de Tucidi- des, na qual se verifica a sucessio, a correspondéncia, a oposigio ea contradigio entre discursos € narrativas dos acontecimentos. Qual é, portanto, a parte dos logoi na historia, seus efeitos? Qual é © peso das coisas e a fungi das palavras? Uma historiografia que iio tivesse reservado espaco para os discursos teria sido totalmente inconcebivel nesse mundo da palavra politica, tal como era a cidade antiga. Mas, a0 mesmo tempo, introduzia-se um problema que, durante muito tempo, vai atormenti-la: como coneciliara exigéncia de verdade coma filsidade inevitivel dos discursos que ~ de acordo com © beneplicito do proprio Tucidides — nfio conseguem, de modo algum, ir além do verossimil? Para compor tais discursos, © historiador no deveria distinguir-se na arte oratéria? Cicero jul- gava, als, que competia ao orador, de preferéncia ¢ em melhores condigdes do que outra pessoa, escrever a histéria, concebida de fato como opus oratorivm maxime (Cicero, Das leis, 1, 2,5 e infra, p. 157-158). Nesse ponto, a fronteira entre o historiador ¢ 0 orador, entre a eloquéncia e a histéria, corre o isco de se emaranhar ou desaparecer: o historiador julga-se, entio, orador ou faz o papel de politico que ele nio é ou deixou de ser. Se Herédoto nio tivesse conhecido 0 exilio e as viagens, ser que ele teria sido comsiderado, mesmo assim, “o pai da Historia"? Se Tucidides nao tivesse sido obrigado a se exilar de Atenas apés seu fracasso como estratego, seri que ele teria permanecido um homem politico? Se Poltbio tivesse conservado seu posto como 42 Quoc somone tum dos chefes da Liga Aqueia, sem ter conhecido a condigio de refém e 0 exilio em Roma, ele nfo teria escrito provavelmente sua histéria. Outros tantos “se” que sio suficientes para sugerit 0 vinculo — nem que seja de um ponto de vista negativo — entre a politica a histéria: a pritica da histéria na falta da politica. Em Roma, a relacio ¢ ainda mais nitida: durante muito tempo, assunto reservado aos senadores, a histOria é a atividade séria que serve de refiigio para quem abandonou a politica ou foi abandonado por essa. Tal foi o procedimento de Salistio ou, até mesmo, de Tacito (SaLUsTIO, Guerra de Jugurta, 4; SyME, 1970). Classificada do lado do tiv, ela nio deixa de ser mais “Gtil” que a atividade (negotium) de um grande nimero de pessoas, de acordo com a tentativa de Saltistio. para convencer, além de seus leitores, a si mesmo. Afinal de contas, cla nao seri uma forma de tirar desforra do politico? Ao dedicar-se 2 essa profissio, 0 historiador acaba almejando, além do presente e de suas vicissitudes, uma sobrevida para sua obra e, portanto, para si mesmo além de si mesmo. Frequentemente um exilado, 0 historiador —de modo diferente do orador ~ nio € ou deixou de ser o homem de uma s6 cidade, mesmo que essa permanega seu horizonte. Ao mesmo tempo, fora e dentro, entremeio [entre-deus], intermediirio, até mesmo “traidor”, ele conserva algo da itinerincia do aedo épico; além disso, sua escri~ ta, obrigando-se a ser suggraphie (de sun, com, e graphein, escrever), colocando junto, estabelecendo relagdes, aplica-se a construir uma visio sindptica do mundo habitado. Assim fez, no grau mais eleva- do, Polibio a partir de Roma. Até mesmo exilados do interior, os historiadores romanos permaneceram os homens de uma cidade: Roma foi sempre seu tinico objeto. Eles se mostraram, assim, mais especialistas do género da hist6ria local do que da grande historio- grafia i maneira de Herddoto. Essa, talvez, teria sido também uma forma de continuar fazendo politica por outros meios? Do mesmo modo que hi uma eloquéncia dos historiadores (0s discursos fabricados por eles), assim também ha uma histéria “oratéria” ou para 0 uso dos oradores: a dos exempla que, através de personagens ou de episddios célebres, recorre ao pasado a fim de fornecer precedentes ou propor modelos a imitar. O exemple é um momento da argumentagio ¢ um expediente da persuasio 43 Frome on ste O cic os soRMBORE O recurso aos exempla é, portanto, uma maneira adotada pelo ora dor para relatar a historia de sua cidade; e, em relagio ao piiblico, € uma forma de aceitar que Ihe seja relatada essa histéria, Atenas no se privou dessa pritica: eis o que foi testemunhado de maneira profusa pelos oradores do século IV (Novnaup, 1982). Tampouco Roma, cidade em que a importincia do mos majonum conferia a tal procedimento ainda um acréscimo de autoridade. Na cidade helenistica e romana, verifica-se © pleno fanciona~ mento dessa eloquéncia hist6rica com seu cortejo de exempla (Rhéio- rique et histoire, 1980). E ainda mais pelo fato de que, em uma Grécia dominada por Roma, “a fortuna neutralizou qualquer tipo de desafio. em nossas lutas”. A formula é de Plutarco, que a retoma diretamente de Homero, significando literalmente que, daf em diante, j4 no ha “nenhum prémio do combate depositado no meio do circulo dos guerreiros”. Como a guerra tinha deixado de ser um problema para as cidades, ja no existem evga (a realizar), mas somente logoi (a pro duzit), discursos que valem como erga. Eles imitam a aio, ocupam seu lugar e sio também a¢io. O principal efeito dessa eloguéncia, a dos sofistas da segunda sofistica, tende de fato a preservar a concérdia (homonoia) no interior da cidade, ou seja, o poder das personalidades importantes e 0 statw quo social na moldura do Império Romano. Em Roma, Cicero pensava que a cloguéncia era a “compa- nheira da paz”, incapaz de se desenvolver nos tumultos que acom- panhavam o surgimento das cidades ou quando se alastrava a guerra (Cicero, Brutus, 12, 45). Nem sequer um século depois, Tacit se questiona sobre a répida decadéncia da eloquéncia. Sua resposta pode ser entendida como um contraponto desiludido ou irénico. Um Estado bem organizado, observa ele, nio tem nenhuma ne- cessidade de eloquéncia, ao passo que cla floresce, pelo contririo, no meio dos disttizbios. “Para que serve acumular os discursos, visto que no incumbe aos incompetentes, nem 4 multidio, tomar deliberagSes, mas ao mais sibio dos homens sozinho?” (TAcrto, 1936, 41). Em Roma, também deixou de haver qualquer desafio, qualquer prémio depositado no centro, Deixou de haver centro ou tum centro investido por um homem sozinho. Resta apenas compor panegiricos ao imperador ou elogios a Roma. 44 CAPITULO IV O olhar de Tucidides e a histéria “verdadeira” Historia “verdadeira”: o historiador entende, asim, prevenir o leitor de que seu texto é verdadeiramente historia, de fato, his- t6ria sem nenhum qualificativo; a histéria é verdadeira ou ela no € histéria, Além de estabelecer uma postura metodol6gica, esse titulo é, no mesmo movimento, polémico, Com efeito, escrever uma historia “Verdadeira” € uma forma de afirmar que as outras nao 0 sio, seja por falta de método (no chegaram a encontrar © caminho do verdadeiro), seja por qualquer outra razio, relacionada mais diretamente com a posigio e © papel do historiador na soc dade. Historia “verdadeira”, “veridi recentes, histéria “cientifica” ou, ainda, “nova” -, eis algo que, hi jc ¢ cinco séculos, atravessa o projeto de escrever a historia ou de fazer hist6ria, pelo menos no Ocidente, e ainda que 0 contetido do que tem recebido a antiga denominagio de histéria tenha as- sumido um grande nimero de variagdes. Através de seu texto e, inevitavelmente, através de algumas de suas leituras, eu gostaria de ‘evocar aquele que foi 0 iniciador da histéria “verdadeira”: Tucidides. Ele “teve sempre em vista a verdade, cuja sacerdotisa é a historia”, observava Dionisio de Halicarnasso (Sobre Tucidides, VIII). E a esse respeito, David Hume (2004, citado in Pires, 2006), afirmava: “A primeira pagina de Tucidides é, em minha opiniio, o comeco da ‘verdadeira’ historia (real history)”. — ou, em suas variantes mais Sinal procminente de uma historia austera, Tucidides de Atenas, marca 0 ponto de partida da histéria entendida como discurso da verdade; com efeito, sua razio de ser e sua exigéncia consiste em 7 Bratton oa arom ~O a or ronanone ene dizer o que é verdadeiro nas rerum gestarum; além disso, seu privilé- gio € o de transformar seus profissionais em “mestres da verdade”’ Nas primeiras paginas da Histéria da Guerra do Peloponeso, ests inscrita, de fato, uma vontade de ruptura com as outras Histérias e, principalmente, a comegar pelas mais célebres: as de Herddoto. Ao expor sua investigario, Herddoto pretendia “impedir que as obras realizadas pelos homens, no decorrer do tempo, fossem suprimidas da meméria e que grandes e admiraveis agdes [...] deixassem de ser relatadas”. © fato de nio estar preocupado coma verdade esti longe de significar que seu maior prazer consista em mentir: seu projeto € simplesmente diferente. Ele pretende “dizer 0 que se diz”, nio por acreditar forgosamente, nem para obrigar o pablico a acreditar sempre necessariamente em tal versio; mas ele julga que seu dever, ‘enquanto narrador, consiste em dizer 0 que se diz, com a condi- lo, se necessirio, de privilegiar (pela ordem de apresenta¢io, por ‘exemplo) a versio que Ihe parece ser a mais “confidvel” (pithanes). ‘Com eftito, uma das provas suscetiveis de ser fornecidas de seu saber — portanto, uma de suas prerrogativas para obter crédito por parte de seus leitores — é 0 mtimero de versdes que conhece a respeito do mesmo acontecimento, contentando-se is vezes em sublinhar, de passagem, que procedeu 4 coleta de outras que nio serio expostas. Nessa narrativa, que obedece as exigéncias da persuasio ¢ nunca esté acabada (visto que o narrador, se pretender ser “o mais confié— vel” dos investigadores, deve ter sempre disponivel uma versio de sobra), 0 narrador é onipresente. Tendo o dever de dizer o que se diz, ele € 0 Ginico avalista desses miiltiplos dizeres; enquanto tinico sujeito de enunciacdo, ele 6, por suas intervengdes diretas ¢ indiretas em sua narrativa, aquele que sabe. Ele &, de acordo com um termo utilizado por Herédoto, aquele que semainei, aquele que faz ver € (que faz saber (ver supra, p. 61-62), Tucidides desqualifica, em algumas palavras, essa maneira de fazer histOria. Ela éa obra dagueles que ele designa por “logografos”, ou seja, pessoas que transcrevem 0s logoi, que dio forma (sunethesar) 3s narrativas que circulam boca a boca. Por que sio condenaveis? © No orginal de owe & File Berabmenes, a boca x0 oxida. (NT). 78 (ous oe Tocnoes are “vata” Fundamentalmente, porque seu discurso obedece a uma economia do prazer: eles procuram agradar o audit6rio € cedem ao prazer do ouvido; ¢, mesmo que tivessem tal desejo, eles seriam incapazes de evitar essa postura porque se trata de uma das condigdes peculia- res do fancionamento da comunicagio oral, que leva a produzir “trechos aparatosos” para um auditério do momento. Resultado: em vez de fazerem histéria, cles estio impregnados pelo muthodes, termo condescendente, para nio dizer, desdenhoso, jé que nio se “verdadeiramente” do muthos, como ocorre com os poetas, mas de algo que se parece com 0 mutes ~ apesar da aparéncia, no © é efetivam a0 mesmo tempo, incrivel, indemonstravel e permeado de verossimil. trata te A sedugio da palavra efémera, Tucidides opde a propria es colli: ser, simplesmente e de forma duradoura, verdadeiro. De saida, cle se distingue do empreendimento de Herdédoto, ao evitar cuidadosamente retomar por sua conta a palavra jOnica histori (in vestigagio): “Herédoto de Tirio expde ao piiblico (apodexis) suas investigagdes...”. Mas “Tucidides de Atenas compés por escrito (sunegrapse) maneira como se desenrolou a guerra entre 0s pelo- ponésios ¢ os atenienses”. No lugar em que o primeiro havia intro- duzido a historie, 0 outro, situando-se de saida no mundo da escrita, instala a sugeraphie. Ho sugerapheus, aquele que consigna por escrito: eis o termo que acabari designando, em particular, o historiador Enquanto os nuthoi dos poetas niio tém idade e os logo! dos logégrafos sio uma mistura de diferentes épocas, a determinacio refletida implica limitar-se ao presente: a ania hist6ria “verdadeira” éno presente. Assim, 0 (faturo) historiador da Guerra do Pelopo- neso teria iniciado seu trabalho 20 mesmo tempo que comegavam as hostilidades. Dos dois recursos do conhecimento historico — a vista (opsts) ¢ © ouvido (akoe) — apenas a primeira pode levar (com a condigio de ser utilizada de maneira adequada) a um conhecimento claro e distinto (saphos eidenai): ndo s6 0 que vi, pessoalmente, aquilo que outros dizem ter visto, mas com a condicio de que essas visdes (anto a minha quanto as outras) resistam a uma rigorosa exitica. Por sua vez, 0 ouvido nunca é confidvel. Em primeiro lugar, porque ‘0 que se divulga desse modo € aceito sem nunca ser questionado 79 robo pA HSIAO a Os HORNDINE DK (abasanistos) por ninguém:; em seguida, porque é impossivel se apoiar na meméria: ou ela esquece ou ela deforma; e, cdimulo do infor- tiinio, as palavras de meméria correm o sério risco de receber um. acréscimo de falsidade em decorréncia da lei do prazer que regula © contetido das informacées fornecidas oralmente, Assim Nicias, a0 pretender avisar sua cidade a respeito da situagio critica em que cle se encontra, envia ~ jé evocamos esse episddio ~ mensageiroy; no entanto, por temer, diz Tucidides, que esses tenham um branco. ‘ou que, para resumir, em vez de descrever a realidade, falem para a multidio o que esta gostaria de ouvir, ele escreve uma carta porque, “em sua opiniio, cra a melhor mancira para que os atenicnses trufdos por seu sentimento sem que nada pudesse obscurecé-los por negligéncia dos mensageiros — viessem a tomar uma decisio com pleno conhecimento da verdade” (bowleusasthai peri rs aletheias; TUciDIDES, 7,8, 2). No face a face da comunicagio oral, 0 mensageito é passivel de impedir 0 acesso 3 verdade, de deformi-la, a0 passo que a escrita conserva sua integridade, Mas a historia no fica por ai, visto que a carta de Nicias~ que, obrigatoriamente, deveria ser lida em voz alta, nna Assembleia — havia sido forgosamente redigida nesa perspectiva. ‘Tal fato comprova unicamente a impossibilidade, na época, de escapar completamente da oralidade, no que se refere tanto a Nicias quanto 20 proprio Tucidides, o qual estava perfeitamente ao corrente de que, 20 escrevé-la, sua suggraphie seria objeto de leituras piblicas. saber historico se fandamenta na autépsia (0 fato de ver por si mesmo) ¢ se organiza com base nos dados fornecidos por essa; 6 olhar esti no centro da hist6ria, e a hist6ria se faz no presente. Saber historicamente é ter um conhecimento claro € distinto, é também fo saphes skopein, “wer claro”, “descobrir em sua clareza” ou, ainda, saphos heurein, “encontrar claramente”, “tornar evidente”. Saber historicamente é ver. Mas ver no é, de saida, saber. E ainda necessirio o trabalho do historiador que é, para Tucidides, inves- tigagio da akribeia, no da simples exatidio, mas da conformidade com os fatos (Kunz, 1970, p. 48-53; Fanrasia, 2004), Abribes se refere, por exemplo, a uma armadura que se adapta bem ao compo, que “colt” no corpo. A “acribia” 6 0 que deve, tanto quanto seja possivel, transformar 0 ver em saber ou em “ver claro”, garantir a 80

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