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226 LEMOS, Renata. Qotd, por @umairh: a inteligência coletiva no Twitter.

Revista Galáxia, São Paulo,


n. 19, p. 226-239, jul. 2010.

Qotd, por @umairh:


a inteligência coletiva
no Twitter
Renata Lemos

Resumo: Este artigo analisa o uso inovador do site de microblogging Twitter, como um espaço de
dinâmicas sociais de inteligência coletiva e de articulação de design colaborativo interna-
cional de ideias em tempo real. Tendo a etnografia digital como base metodológica, foi
efetuada a observação do processo de evolução de comunidades internacionais móveis a
partir do entrelaçamento social e midiático permitido pelas funcionalidades e aplicativos
do Twitter. A dinâmica qotd de inteligência coletiva, elaborada por Umair Haque, serve de
referência principal ao relato etnográfico das implicações práticas e teóricas das redes de
interação multimodal dentro do Twitter, apontando para as mutações contemporâneas das
estratégias de sociabilidade.

Palavras-chave: inteligência coletiva; twitter; redes sociais; mídias móveis; microblogging.

Abstract: Qotd by @umairh: colletive intelligence on Twitter: This article analyzes the innovative
use of microblogging site Twitter as a space of social dynamics of collective intelligence
and collaborative idea design. Using digital ethnography as methodology, the processes of
evolution of a mobile and international community evolution are observed from the point of
view of social and media intertwining allowed by functionality and applications of Twitter.
Qotd dynamics of collective intelligence, designed by Umair Haque, is our case of study and
provides a rich example of theoretical and practical implications of multimodal networks
within Twitter, highlighting contemporary mutations of media strategies of sociability

Keywords: colletive intelligence; twitter; social nets; mobile media; microblogging.

“It’s about knowing how and knowing who and knowing who knows who knows
what” - Howard Rheingold
LEMOS, Renata. Qotd, por @umairh: a inteligência coletiva no Twitter. Revista Galáxia, São Paulo, 227
n. 19, p. 226-239, jul. 2010.

Introdução

As mudanças trazidas pelas redes sociais móveis estão começando a alterar as dinâ-
micas comunicacionais globais. A recente e meteórica história do Twitter e sua descrição
operacional como plataforma global de interação social em rede já foram abordadas
extensivamente por outros autores (BOYD et al., 2009; HUBERMAN et al., 2009; MIE-
MIS, 2009; RHEINGOLD, 2009). Este artigo traz outro tipo de contribuição: um relato
etnográfico de uma faceta ainda inexplorada desta plataforma e de sua potencialidade
como nicho de debates intelectuais globais, em tempo real, e no design colaborativo de
produções intelectuais sobre tópicos de interesse mundial.
A etnografia digital tem sido usada como um método pertinente ao estudo de redes
sociais no ciberespaço, sendo a ciberantropologia uma disciplina emergente que cada vez
mais tem se consolidado como um espaço privilegiado para o estudo da sociabilidade em
rede (GUIMARÃES, 1997; McCLEARY, 1996; RIFIOTIS, 2002). A observação direta e parti-
cipativa dentro da comunidade permite ao etnógrafo desenvolver uma percepção acurada
e extremamente sensível às variações comportamentais nas relações entre os membros
de comunidades digitais. Este artigo é o resultado de um mergulho etnográfico dentro da
plataforma de microblogging Twitter, trazendo o relato de uma experiência específica de
interações diretas dentro desta rede, as quais compõem os subsídios principais à análise
do caso qotd1 e também de seu contexto digital.
A riqueza etnográfica desta experiência com o Twitter certamente ultrapassa os limites
deste artigo, que aborda apenas um aspecto das múltiplas dimensões antropológicas desta
micromídia: a inteligência coletiva. A inteligência coletiva pode ser compreendida a partir
das mais diversas abordagens teóricas. Hofstader (1979) e Bloom (2004), por exemplo,
fazem paralelos entre os sistemas de inteligência coletiva humana e as dinâmicas inteli-
gentes que podem ser encontradas na natureza. Aqui, a metáfora principal usada como
ilustração da inteligência coletiva humana é a colméia: um sistema complexo natural de
auto-organização.
Engelbart (2008) é outro autor importante no campo da inteligência coletiva, dando
ênfase ao estudo das tecnologias da informação como catalisadoras de processos de
inteligência coletiva. Muito embora exista um vasto manancial epistemológico à nossa
disposição nesta área, nenhuma destas abordagens teóricas integra tão bem os elementos
sociais, antropológicos e relacionais às possibilidades tecnológicas das redes sociais digitais,
quanto as de Lévy (2000) e Rheingold (2002; 2009a; 2009b; 2010).
A partir do viés conceitual usado por Lévy (2000), segundo o qual toda inteligência
coletiva tem uma base social - “pensamos ... com ideias, línguas, tecnologias cognitivas
recebidas de uma comunidade” (LÉVY, 2000, p. 29) - é que articulamos neste artigo nossa
resposta à pergunta “O que é o Twitter?”. Nossa definição irá descrever o Twitter como

1 qotd: sigla que tem diversos significados, mas que neste artigo será usada em caixa baixa, para designar o
experimento de inteligência coletiva desenvolvido pelo economista Umair Haque no Twitter.
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sendo uma mídia social que, unindo a mobilidade do acesso à temporalidade always
on (PELLANDA, 2007), possibilita o entrelaçamento de fluxos informacionais e o design
colaborativo de ideias em tempo real, modificando e acelerando os processos globais de
inteligência coletiva. Retomando a questão “O que é o Twitter?” é possível classificá-lo
como uma verdadeira ágora digital global: ambiente de aprendizagem, clube de entrete-
nimento, “termômetro” social e político, instrumento de resistência civil, palco cultural,
arena de conversações contínuas.
À pergunta “Para quê serve o Twitter?”, respondemos: este atua como um meio mul-
tidirecional de captação de informações personalizadas; um veículo de difusão contínua
de ideias; um espaço colaborativo onde perguntas que surgem a partir de interesses dos
mais microscópicos aos mais macroscópicos podem ser livremente debatidas e respon-
didas; uma zona livre – pelo menos até agora – da invasão de privacidade que domina a
lógica do capitalismo corporativo neoliberal que invade tudo, até mesmo o ciberespaço.
Apesar de pertencer à categoria geral de mídia social móvel, o Twitter inova em alguns
aspectos fundamentais que o diferenciam de outras plataformas sociais. Muito embora
seja possível incluí-lo na mesma categoria de outras redes sociais como Facebook e Orkut
(RECUERO, 2009); ou analisá-lo em relação ao encadeamento midiático com outros tipos
de mídia (PRIMO, 2008); escolhemos aqui considerar seu potencial como catalisador de
novos processos de inteligência coletiva.
Enquanto nas outras redes sociais como Facebook, Orkut, etc., o foco da interação
social está nos contatos pessoais entre usuários, no Twitter a ênfase está na qualidade
e no tipo de conteúdo veiculado por um usuário específico. O foco do Facebook, por
exemplo, é disponibilizar informações e meios de interação direta para redes de relacio-
namentos que em sua grande maioria já existiam offline antes da entrada do usuário na
plataforma. Novos contatos surgem através da rede, é claro, mas quase sempre em função
de um contato pessoal, ou de um amigo em comum. Estas redes se caracterizam por uma
atuação predominantemente focada em redes de relacionamentos pessoais familiares, de
amizade e/ou profissionais.
Este não é o caso do Twitter, onde temos uma ecologia relacional completamente
diversa das outras redes sociais. Aqui, nos deparamos com uma ecologia complexa de
veiculação de ideias. A pergunta “O que você está fazendo agora?” se transformou em “No
que você está pensando agora?”, fazendo com que cada stream se tornasse literalmente
um fluxo de dimensões cognitivas, onde sinapses trafegam em tempo real, ativando tramas
complexas de redes neurais digitais que integram impulsos maquínicos a consciências.

Tweet: micromídia pluridirecional e multiespacial

A interpenetração entre as funcionalidades de retweet - RT, reply - @usuário e


#hashtags) é inerente à arquitetura informacional do Twitter e em muitos casos estas
podem acontecer simultaneamente (um RT em forma de reply mencionando diversos
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@usuários e hashtags). Nesse caso, temos em um único tweet a penetração simultânea em


múltiplos streams individuais e/ou coletivos em tempo real, caracterizando a interatividade
pluridirecionada desta micromídia móvel.
Esta indexação permite que um mesmo tweet seja inserido em redes distintas ao
mesmo tempo, muitas vezes atingindo comunidades e espaços físicos que o autor do
tweet original nunca poderia ter acessado de outra forma. Estas funcionalidades permitem,
assim, a multiplicação exponencial dos laços sociais em rede, atuando de forma similar
a uma rede de conexões neurais.
Em pesquisa recente, as seguintes porcentagens foram constatadas no uso de RTs,
hashtags e menções de @usuário:

36% of tweets mention a user in the form ‘@user’; 86% of tweets with @user
begin with @user and are presumably a directed @reply 5% of tweets contain
a hashtag (#) with 41% of these also containing a URL 22% of tweets include
a URL (‘http:’) 3% of tweets are likely to be retweets in that they contain ‘RT’,
‘retweet’ and/or ‘via’ (88% include ‘RT’, 11% include ‘via’ and 5% include ‘re-
tweet’) (BOYD, GOLDER & LOTAN, 2009, p. 4)

Tais dados confirmam a importância destas funções dentro da arquitetura infor-


macional do Twitter, e nos dão uma boa ideia do tipo de entrelaçamento relacional que
começa a acontecer a partir do cruzamento de referências entre usuários e comunidades.

A Ecologia Sociocultural do Twitter

Embora o Twitter possa ser considerado uma única comunidade virtual, de acordo
com Rheingold (2009) e Miemis (2009), é melhor entendido como sendo uma ecologia de
comunidades integradas em um ecossistema flexível, no qual comunidades são formadas
e dissolvidas à medida que o interesse por um tema específico aumenta ou diminui. Di-
versos tipos de comunidades podem existir simultaneamente, algumas mais permanentes
que outras. Cada usuário possui duas comunidades permanentes que tendem a mudar
lentamente com o tempo: sua comunidade de seguidores, e a comunidade daqueles
a quem o usuário segue. Outras comunidades, porém, surgem e desaparecem a todo
instante através do uso de #hashtags, que formam comunidades temporárias de usuários
interessados no acompanhamento de um tema específico; e outras que são formadas a
partir do monitoramento de stream relativo a um @usuário (search: @usuário).
Isto faz com que a ecologia cultural de hábitos interativos no Twitter seja extremamen-
te diversificada, e esteja em constante adaptação. A arquitetura informacional do Twitter
permite que comportamentos sociais possam emergir, se adaptar e até mesmo servir como
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referência para a reengenharia da plataforma em si. Há aqui um sistema de feedback loop,


no qual a arquitetura da plataforma origina determinados padrões de interação social, sendo
que a evolução destes padrões de interação social pode dar origem, posteriormente, a
modificações na arquitetura da plataforma. O design da plataforma Twitter tem sido, até
agora, altamente participativo, devido às suas características principais: abertura, interação
multicanal em tempo real, diversidade, reciprocidade e sociabilidade.

Design Colaborativo via Twitter: arte, inteligência coletiva e


entrelaçamento social

Diversas comunidades estão ativamente desenhando novos formatos de interação via


Twitter com dezenas de experimentações acontecendo simultaneamente. A quantidade
de usos inusitados das #hashtags tem sido tanta, que até mesmo um serviço de indexação
de #hashtags foi criado para veiculação em tempo real de informações e estatísticas sobre
#hashtags que estejam em ascensão2. A grande maioria destas #hashtags é direcionada a
conteúdos que funcionam como apêndices das mídias de massa: lançamentos hollywoo-
dianos, nomes de celebridades, palavras-chave de escândalos midiatizados, etc.
O uso do Twitter como um mero apêndice midiático para circulação de conteú­
do de mídias de massa é responsável pela grande maioria do seu fluxo informacional,
juntamente com seu uso recreacional, ou apenas como diário pessoal. São usos próprios
a uma comunidade específica dentro da ecologia cultural do Twitter; comunidade esta
que se caracteriza pelo interesse compartilhado pelo entretenimento popular de massa.
É evidente que o perfil intelectual do usuário irá determinar o tipo e a qualidade das
relações e interações sociais.
Comunidades acadêmicas, artísticas e/ou profissionais são por excelência os nichos
onde surgem demonstrações de inteligência coletiva e design colaborativo dentro desta
plataforma. As dinâmicas interativas dentro de comunidades específicas vão desenvolvendo
estratégias múltiplas de entrelaçamento social a partir das mesclas entre as necessidades
específicas a um determinado tipo de conteúdo e as diversas funcionalidades e aplicativos
disponíveis. Para fins ilustrativos da potencialidade destas dinâmicas móveis de entrelaça-
mento social, escolhemos quatro exemplos de interação colaborativa:

#FF (Follow Friday), 2. #draw365, 3. #journchat e 4. #MonTwit.

2 Este serviço é feito tanto dentro quanto fora do Twitter, através de aplicativos especializados como o TweetScan,
ou internamente através do perfil @wthashtag, por exemplo.
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1. #FF

O primeiro, #FF, é uma convenção social que já se tornou tradicional no Twitter, e


que toda sexta feira dá origem ao stream #FF, onde os usuários postam tweets nos quais
recomendam que outros usuários sejam seguidos, em uma forma de seleção espontânea
das lideranças digitais específicas a cada comunidade:

@Julio_aQbm3X  #FF  @TwiDazzledGal  @SheevaC  @Alice_InTwiland@KS-


tewsTwins  @kristenlover19  @TeamTayandTayy  @KristeneeL@TwisneyLover  @
JakeChrissi (21/12/2009)

2. #draw365

O segundo exemplo, o stream #draw365, é uma experimentação social na qual o


Twitter é usado por uma comunidade de artistas para postar seus desenhos diariamente.
Qualquer artista pode participar do #draw365 enviando um tweet que contenha um link
para uma foto do seu desenho:

@RubiesAreBlue http://twitpic.com/ukq1u - Declan’s drawing No. 6#draw365a-


bout 10 hours ago from TwitPic (21/12/2009)

São centenas de artistas participando de todas as partes do mundo, trocando ideias


sobre seus trabalhos e formando laços sociais em tempo real. Também nesta comunidade
existem determinados artistas que emergem como lideranças naturais, atraindo um maior
número de seguidores pela qualidade de sua produção artística. No stream #draw365, o
Twitter atua tanto como espaço de criação e interação, como também como uma galeria
aberta de exposição artística.

3. #journchat

O experimento #journchat exemplifica ainda outra forma de interação social em


rede. Neste experimento, o stream #journchat atua como ponto de encontro virtual com
hora marcada e temática específica, em uma versão hiperconectada de uma sala de chat
tradional:

@LauraGlu 250+ journalists will be chatting @ 5PM in a LiveFyre for #journ-


chat  -  http://su.pr/2y0u4p  (via @KonaTBone)about 10 hours ago  from web
Retweeted by robinsloan and 1 other (22/12/2009)
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Neste exemplo, a função do stream é gerar fontes múltiplas de conteúdo jornalísti-


co que se reforçam mutuamente, assim como estabelecer um ambiente de networking
profissional.

4. #MonTwit

O experimento #MonTwit foi uma iniciativa dos usuários Esteban Kolsky, @ekolsky,
consultor; e @VenessaMiemis, pesquisadora sobre redes sociais e responsável pelo Projeto
Ideas3, nódulo online de pesquisa colaborativa. O #MonTwit foi iniciado em dezembro
de 2009, quando Venessa Miemis postou uma chamada para todos os usuários de sua
comunidade de seguidores pedindo que, na segunda-feira do dia 21/12/2009, todos pos-
tassem uma entrada em seus blogs com textos sobre o tema “what I´ve discovered about
Twitter”. Esteban Kolsky criou a hashtag #Montwit, alguns tweets de chamada foram
postados, e o resultado foi uma experiência riquíssima em inteligência coletiva e design
colaborativo de ideias.
Durante todo o dia 21/12, a stream do hashtag #MonTwit fervilhou de entradas para
textos em blogs de pesquisadores, artistas, jornalistas e estudantes de vários países, que
traziam suas ideias para esta metadiscussão sobre o Twitter dentro do Twitter. No dia se-
guinte, com o uso do aplicativo WhatTheHashtag4 foi possível acessar os dados e estatísticas
referentes a este experimento: “...there were 86 contributors (people using the hashtag)
164 times.  Twenty blog posts, and 14 opinions expressed via Twitter” (KOLSKY, 2009).
Houve o cruzamento de ideias entre os diversos autores, que ao lerem os textos uns
dos outros sobre o mesmo tema deixavam comentários nas páginas, e também a divulgação
feita pelos membros das suas comunidades sobre o experimento em si, como nos exemplos:

@seamuswalsh Need to learn about the value of #twitter? Read#MonTwit first.


1 ago from TweetDeck (22/12/2009)

@ekolsky If you are interested in #MonTwit - releasing a post later today with
more details, asking for topics, how to go forward. Stay Tuned!about 10 hours
ago from TweetDeck (23/12/2009)

Os resultados mais significativos do #MonTwit para o estudo da potencialidade do


Twitter como plataforma coletiva inteligente de design colaborativo de ideias foram de
detectar a existência de uma percepção compartilhada sobre a temática e de uma linha
conceitual comum perpassando os diferentes textos (uma identidade coletiva conceitual?);
e de fomentar o surgimento de novos laços sociais entre usuários interessados pela temática

3 Ideas Project disponível em: http://ideasproject.com


4 http://wthashtag.com/Montwit
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(o stream #MonTwit atuou como uma vitrine de perfis pessoais que gerou a multiplicação
do entrelaçamento social entre membros da comunidade = aumento de sua coesão interna
– contatos indiretos passam a ser diretos / membros apresentam pessoas novas ao grupo).
A formação de comunidades potencialmente globais, no contexto das redes sociais
móveis, enseja o surgimento de novos códigos globais de conduta social online; novas
formas de expressão cultural específicas a cada comunidade; novos mecanismos internos
de seleção de lideranças comunitárias digitais; e maior coesão interna ao redor de uma
identidade coletiva que se estabelece ao redor de interesses compartilhados. A partir desta
compreensão sobre o potencial dos experimentos de design colaborativo inteligente no
Twitter é que iremos analisar o experimento qotd, criado pelo economista Umair Haque,
que é ele próprio um exemplo de liderança intelectual dentro do Twitter.

qotd, por @umairh

O experimento qotd em inteligência coletiva através do Twitter foi articulado por


Umair Haque aliando as duas conotações digitais desta sigla: um sistema de indexação
e distribuição de citações pessoais interessantes através do uso do RT; e um mecanismo
eficiente para o levantamento de informações sobre e para sua comunidade de seguidores
e para o estabelecimento de fios topicais em streams específicos. Fios topicais (McCLEARY,
1996) são linhas de conversação em redes sociais que interligam um mesmo tópico de
discussão, evoluindo a partir desta interação.
Muito embora o próprio autor do experimento tenha restrições ao uso da palavra “líder” -
como diz em seu Builder´s Manifesto: “The very word “leader” feels like a relic of 20th century
thinking” (HAQUE, 2009a); não há como negar que sua voz é ressonante no meio digital, e a
quantidade dos seus seguidores no Twitter aumenta a cada dia. Nos últimos meses de 2009,
houve um aumento substancial no número de seus seguidores, que eram aproximadamente
4.000 em outubro e em 22 de dezembro de 2009 passaram para 5.442. Estes, por sua vez,
são em sua maioria formadores de opinião ocupando altas posições em empresas inovadoras,
autores, pesquisadores, estudantes e profissionais dos mais variados países.
Assim, em relação aos seguidores, a quantidade não é o dado mais significativo, mas
sim a qualidade e a diversidade de perfis intelectuais articulados ao seu redor. E Haque vem
exercendo, sem sombra de dúvida, forte liderança intelectual de alcance global via Twitter,
engajando consistentemente uma comunidade internacional de formadores de opinião
que está se tornando cada vez mais coesa e integrada através de iniciativas como o qotd.
Não é o objetivo deste artigo apresentar um estudo aprofundado sobre os conteúdos
de discussão e temática específicos ao qotd, mas sim fornecer um relato da sua estrutura
comunicacional e de seu desenvolvimento midiático como experimento de interação e de-
sign colaborativo de ideias via Twitter. A evolução do design do qotd enquanto experiência
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social de inteligência coletiva também tem sido um produto da colaboração multidirecio-


nada entre Haque, sua comunidade de seguidores, e entre os próprios seguidores.
O qotd começa quando, antes de finalizar a redação de seu próximo texto, ele envia
um tweet para seus milhares de seguidores fazendo uma chamada para ideias, sugestões
e contribuições, ou então fazendo uma pergunta que deve ser respondida em poucas pa-
lavras. Em tempo real, dezenas de respostas começam a surgir no stream correspondente
a @umairh; gerando dezenas de discussões paralelas entre os participantes do qotd. As
melhores respostas são selecionadas e retweetadas pelo próprio Haque em tempo real,
gerando uma linha de pensamento sobre a questão apontada que contempla a diversidade
das perspectivas e opiniões dos participantes, invariavelmente dando origem a diversos
insights criativos que influenciam no conteúdo do texto final a ser postado em sua coluna.
Este experimento surgiu como uma evolução do hábito de Haque de, logo após
postar um novo texto em seu blog da Harvard Business Review, simultaneamente postar
um tweet a todos os seus seguidores avisando que estava online, atento ao movimento de
seu stream de respostas, e aberto a perguntas e reações sobre o texto, como nos exemplos:

@umairh qotd: what do builders need to build/rebuild most? what are the biggest
opportunities for builders? (thx to @openworld) (26/12/2009)

@umairh happy to take questions this morning - hit me if you have (17/12/2009)

@umairh hey folks, if you have a sec, let us know your answer to the poll of the
day. would you buy facebook shares if there was an ipo tomorrow? (17/12/2009)

As respostas, dadas em tempo real, são abertas, gerando um debate que ultrapassa a
comunicação bidirecional entre Haque e cada participante, em um fluxo de comunicação
pluridirecional no qual os seus seguidores começavam a discutir a questão paralelamente
entre si. A quantidade de respostas interessantes era tamanha, que o economista começou
a usar a funcionalidade de RT para divulgar as melhores respostas e/ou ideias.
O uso do RT foi fundamental para determinar os rumos do qotd, que se tornou
praticamente uma seleção online em tempo real das melhores respostas, dando origem
a uma nova espécie pluridirecional de articulação de inteligência coletiva em redes de
streams, em tempo real.

Implicações Práticas e Teóricas do qotd

O qotd, enquanto instância representativa de um novo tipo de inteligência coletiva


em rede, na qual o entrelaçamento social dá origem a outros entrelaçamentos: globais,
conceituais, culturais e políticos; aponta para as seguintes tendências:
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1. A evolução de comunidades sociais e colaborativas a partir do debate intelectual


pluridirecional em plataformas de mídia móvel;
2. O surgimento de uma pauta temática de interesse global ao redor da qual tais co-
munidades se articulam – ex.: aquecimento global, colapso do sistema financeiro mundial,
novos modelos organizacionais, etc;
3. A constatação comum do descaso da mídia de massa em relação a determinados
aspectos desta pauta temática, o que torna a obtenção de informações através das redes
sociais ainda mais importante;
4. A seleção espontânea de lideranças intelectuais através da própria interação social
em rede;
5. O design colaborativo de estratégias coletivas de interação social em rede com
vistas à produção de um resultado específico.
As implicações práticas do uso cultural e político das novas funcionalidades carac-
terísticas às mídias móveis se dão através do design colaborativo do que Santaella chama
de “modalidades diferenciais”:

A mediação tecnológica do ciberespaço condiciona a emergência de novas


práticas culturais. Não é por meio da criação de uma esfera separada que isso
se dá, mas pela abertura de modalidades diferenciais de práticas que se inserem
à sua maneira na vida cotidiana, refletindo e condicionando novas formas de
acesso à informação e ao conhecimento. Os espaços eletrônicos estão firme-
mente situados na experiência vivida, motivados por ela e tomam forma em
resposta às suas demandas (SANTAELLA, 2008, p. 96).

O qotd, enquanto experimento, é uma destas “modalidades diferenciais de práticas”


que se formam em reação e conseqüência às pressões contemporâneas vividas pelos indi-
víduos de nossa época. Vivemos a transição de uma experiência bidirecional das mídias
digitais para uma experiência pluridirecional onde a conversação se torna o elemento
principal na arquitetura informacional das mídias sociais. É uma evolução significativa,
que reposiciona a localização individual de cada um na hierarquia digital de suas relações
sociais. Outro nível de distância é eliminado neste percurso: não apenas a distância geo-
gráfica desaparece, mas também a distância social que estabelece os graus de separação
entre diferentes níveis de status social.
No qotd, a ideia vinda de Haque aparece lado a lado e em pé de igualdade com as
ideias de estudantes, estagiários, designers, autodidatas e ilustres desconhecidos. É apenas
a qualidade e o valor da ideia em si que determina ou não sua adoção pela comunidade,
e é também a partir da divulgação e produção continuada de ideias de qualidade que um
usuário se torna conhecido e respeitado dentro da comunidade.
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O fato de que os participantes do qotd atuam a partir de localidades com fusos


horários tão diferentes quanto Austrália, Canadá, Brasil e Londres, por exemplo, aponta
para um “tempo social compartilhado” que não pertence à mesma dimensão do tempo
culturalmente e localmente associado a cada tipo de relação social. A mobilidade do
acesso ao Twitter faz com que a conversação atravesse as fronteiras espaço-temporais e
sua carga de significações específicas a cada cultura.
O Twitter tem sido usado como um vórtice intercultural, onde expressões verdadei-
ramente transculturais começam a surgir como manifestações espontâneas das interações
sociais dentro do contexto das mídias móveis. A complexidade das linhas de conversação
espalhadas territorialmente em múltiplos fusos horários pertence a uma dimensão na qual
“o tempo das interações na rede se altera (...) com o quadro de conexões always on, onde
a conexão acontece de maneira contínua e persistente” (PELLANDA, 2007, p. 8).

Conclusões

Primeiramente, descobrimos que a utilização bem-sucedida do Twitter exige não ape-


nas a fluência em relação aos seus códigos de uso, mas principalmente o desenvolvimento
de uma estratégia consciente de quais são os objetivos e resultados que se pretende atingir
através da entrada na rede. Foi apenas por haver efetuado uma análise e escolha prévia do
idioma a ser utilizado, do conteúdo a ser disponibilizado, e do campo de laços e relações
a serem estabelecidos, que nossa experiência etnográfica tornou possível a visualização
dos processos comunicacionais que são apresentados neste artigo.
Outra importante constatação desta pesquisa foi de identificar a interdependência
entre os upgrades na estrutura de suporte tecnológico e as novas estratégias de sociabilidade
em rede. A existência prévia de determinadas atribuições e funcionalidades tecnológicas e
seu upgrade continuado são constantemente reestruturados pelo design de interface que
responde diretamente à experiência dos usuários, assim como a experiência do usuário
evolui em compasso com as novas funcionalidades e aplicativos.
Neste contexto, fica difícil determinar com precisão onde começa e termina a inteli-
gência humana (dos usuários e desenvolvedores) e onde começa e termina a artificial (em
suas miríades de aplicativos móveis, intricados e sensíveis). Temos na experimentação de
design colaborativo de ideias em redes sociais móveis um objeto complexo de estudo,
dentro do qual a inteligência coletiva é um misto de criatividade e comunicação humanas
e de adaptação, processamento e análise computacional simultâneos.
Nas redes sociais móveis, inteligências humanas e artificiais atuam em uníssono
em um grande corpo híbrido de micro mensagens, que permeiam tempos e espaços,
culturas e códigos, esferas e redes. Bruno Latour (2009) aponta para a tensão latente
LEMOS, Renata. Qotd, por @umairh: a inteligência coletiva no Twitter. Revista Galáxia, São Paulo, 237
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entre natureza e sociedade, onde a experiência dos espaços se transforma de uma “ida”
ao externo das esferas em uma “vinda” para o interno das redes. Esta tensão entre redes
(sociais e tecnológicas) e esferas (naturais) expressa claramente o dilema fundamental da
nossa época: a inteligência coletiva das redes é ciborgue, mas ao mesmo tempo em que
abraça o hibridismo midiático e a pulsão maquínica, busca resgatar valores humanos e ir
ao encontro da natureza.
É a busca por este ideario comum e por um senso de cidadania global compartilhada
que faz com que estas redes intelectuais se articulem no Twitter e fora dele. É possível
perceber, a partir da evolução dos fios topicais e das linhas de conversação entre usuários
de dezenas de países, que uma rede social global começa a produzir, colaborativamente,
propostas sociais baseadas em valores compartilhados. A dimensão política destas redes
sociais globais é inegável:

A constituição dessa esfera pública mundial conversacional tem implicações


políticas profundas (...) uma reconfiguração social, cultural e política do sistema
infocomunicacional global (...). Se houver alguma possibilidade de ampliação
da esfera pública, ela se dará na produção aberta e coletiva dos sentidos, na
esfera da conversação planetária (LEMOS, 2009, p.18-19).

O experimento qotd, de Haque, demonstra claramente o potencial ciberpolítico das


redes sociais móveis, especificamente do Twitter.

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RENATA LEMOS é doutoranda do PPG em


Comunicação e Semiótica da PUC SP e visiting
scholar na EGS, Suíça É membro do coletivo de
pesquisa internacional Space Colletive. É surfista
midiática profissional e já viveu e trabalhou nos EUA,
França, Canadá e Israel.

Site: http://renatalemos.org
Email: me@renatalemos.org
Twitter em português: @renatalemosbr
Twitter em inglês: @renatalemos

Texto recebido em janeiro


e aprovado em maio de 2010.

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