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XVI Congreso da Associagéo Nacional de Pesquisa e Pés-graduagio em Miisica (ANPPOM) Brasilia - 2006 As atualizagées da nostalgia na musica moderna Enrique Menezes Composicéo — ECAIUSP e-mail: menezesenrique@ gmail.com Sumétrio: A composigéo musical pode ajudar-nos a esclarecer problemas filoséficos modernos, assim como tais problemas podem orientar-nos em uma interpretagéo da histéria da muisica. A cisdo entre Eu e Mundo ‘experimentada com 0 advento da modernidade cria relagées com a estética, e os perfodos da histéria da musica moderna podem ser interpretados também como atualizagies dessa cisio. Tal aproximagio serd feita pelo vigs estétio-filosofico de G. Lukacs e T.W.Adoro, Palavras-Chave: composigio, estética, racionalidade, modernidade. "Filosofia é na verdade nostalgia" Novalis Introdugao © homem experimenta na modernidade o sentimento de perda. Parece que alguma coisa sempre Ihe falta - auséncia que ele carrega consigo, mas ndo sabe bem 0 que é - e The causa sérios calafrios patolégicos ¢ ataques histéricos. A fim de refletir sobre a perda, ele a transforma num sentido ideal e © projeta num passado qualquer, no qual a modemnidade ainda nao estivesse consumada, Essa nostalgia move a filosofia, se cristaliza na estética ¢ a hist6ria da mdsica pode ser interpretada como ciclos de atualizaciio desse proceso. Para o homem que faz essa projecdo, noutros tempos, a vida e as coisas estavam impregnadas do sentido que ele nao cansa de procurar, e parece que esse s6 se retirou das coisas na medida em que aquele iniciou sua busca: num mundo dotado de mais sentido, ndo pensarfamos na distingdo entre vida e esséncia, palavra e coisa, pois seriam conceitos idénticos. Experimenta-se algo semelhante ao passado ideal, quando se interpreta a Musiké grega, que articulava sobretudo misica, poesia, danga e mimica como um mesmo acontecimento ndo separado em diferentes termos: as partes constitufam um todo organico, repletas de um sentido prontamente existente. A totalidade estava impressa em cada particularidade, e cada particularidade era expresso do todo. "Bis porque os tempos afortunados nao tém filosofia, ou, 0 que 44 no mesmo, todos os homens desse tempo siio fildsofos, depositérios do objetivo utdpico de toda filosofia." (Lukacs, 2000, p.26). O sentido da vida seria imanente, ou seja, 0 trabalho filoséfico dos modernos seria algo tio simplesmente bvio que nio teria razo de ser. Na Modernidade, a existéncia de no-sei-o-qué obscuro, esse vazio irrepardvel, indica que 1hé anseios do sujeito burgués que ndo se ligam a representacdes racionais. Em conseqUéncia dos progressos de seu racionalismo, o irracional sobra como esquisita nostalgia, & qual o poeta, assim, se refere: "Guardar um segredo / em si € consigo, | ndo querer sabé-lo / ou querer demais". (Andrade, 1992, p.98). E 0 conceito obtém primazia sobre a intuigdo: "O abismo que surgiu com a separacao, a filosofia enxergou-o na relago entre a intui¢do € 0 conceito e tentou sempre em vao feché-lo de novo: alias, é por essa tentativa que ela € definida. Na maioria das vezes, porém, ela se colocou do lado do qual recebia o nome.” (Adorno, 1985, p.31). ‘Trabalho aceito pela Comissdo Cientifica do XVI Congresso da ANPPOM. 2443 — XVI Congreso da Associagéo Nacional de Pesquisa e Pés-graduagio em Miisica (ANPPOM) Brasilia - 2006 O desamparo surge como seqtiela necesséria & dura formagao do individuo modemno e as estruturas racionais deixam para trds 0 que h4 de obscuro do Eu. Trata-se de uma concepco oposta 8 de um mundo no qual as coisas carregam consigo sua esséncia bruta. Contudo a primazia da razio € apenas um momento. O seguinte comentério de Adorno apresenta a mésica como uma figuragio dialética interessante para nosso referido problema: “Por seu puro material a musica € a arte em que os impulsos pré-racionais ¢ miméticos se afirmam irredutivelmente, entrando ao mesmo tempo em constelagao com as tendéncias ao progressivo dominio da natureza e dos materiais.” (Adorno, 1983, 262). O sistema tonal: matriz artificial doadora de sentido O anseio pela reconciliago com o Todo converte-se nio s6 em nostalgia e desamparo, mas também em arquétipos artificialmente formados, cuja intengo é semelhante ao da projecao ideal do passado: a imanéncia orgénica do sentido. Em miisica, que ser nossa ocupagio a partir de agora, 0 tonalismo € uma forma artificial de grande importincia. Por ter elaborado uma interpretagdo completa de tal sistema, usaremos para 0 nosso entendimento a reflexao de Arnold Schoenberg em seu tratado de harmonia, Sua primeira afirmagao sobre 0 modo maior, baseada na teoria dos harménicos, é categérica: "A nossa escala maior, a seqiiéncia do-ré-mi-fé-sol-Id-si, cujos sons se baseiam nos modos gregos eclesidsticos, pode ser explicada como uma imitago da natureza." (Schoenberg, 2001, p.61). E um raciocinio no qual se podem perceber ecos pitagéricos da concepcao musical. Para alguns te6ricos antigos, as melodias jé existiam na natureza, plenas de virtuosismo beatitude. A representagdo artistica que as respeitasse estaria de acordo com a esséncia do Universo. Boécio, por exemplo, em seu De Institutione Musica afirma que os movimentos orbitais dos astros estariam vinculados a uma relagdo perfeita ¢ bem combinada, e que suas diferentes velocidades consistitiam numa ordem racional de movimentos. Segundo ele, a harmonia uniria as diferentes e contrérias poténcias dos quatro elementos que, juntos, formariam cada corpo ¢ organismo. A mtisica humana é entendida como 0 universo ¢ 0 si mesmo, j4 que 0 corpo humano também é dotado de diferentes componentes unidos, formando um nico organismo que produz uma consonancia. Nao é A toa que niio se assinavam as composigdes dessa época — para eles, a misica ja estava escrita nas leis naturais, bastava imité-las. Era a concretizagio singularizada - no homem, na matemética, na arte etc. - de um Uno essencial e indiviso. Essa concepedo de mundo univoca € que permite para a antiguidade uma segura imanéncia de sentido, sua organicidade positiva; e para o homem moderno, um lugar para projetar um mundo de sentido ideal. Assim, "se a escala € a imitagao do som horizontalmente, em sucesso, os acordes sAo a imitagdo vertical, simultanea. A escala é a andlise do som, assim como o acorde € a sintese.” (Schoenberg, 2001, p.67). O sistema tonal, entendido nessas bases, seria entao uma representagao da natureza na mdsica, como acontecia com 0 pensamento grego. Mas Schoenberg € cauteloso ao chamar a atengiio para o fato de que "O descobrimento de nossa escala foi um feliz acaso para o desenvolvimento da nossa miisica. Ndo s6 pelos resultados obtidos, como também porque poderiamos ter encontrado outra sucesso diferente, como os arabes, 0s chineses, os japoneses ou os ciganos. (...) E, acima de tudo: semelhante escala ndo é o fim, a meta dltima da mésica, mas t4o-somente uma etapa provisGria.” (Schoenberg, 2001, p.64). O cuidado que Schoenberg toma € 0 de lembrar que o tonalismo possui um contexto hist6rico, evitando assim considerar natural o que é socialmente desenvolvido. Tanto a concepgio de Boécio e da Musiké grega quanto a do tonalismo encontram na imitagdo da Natureza sua matriz doadora de sentido. Entretanto, as diferencas que as separam siio visiveis: enquanto naquelas os acontecimentos estavam organicamente relacionados num sentido indiviso e nico, o tonalismo se autonomiza em relag&o 4s outras artes, sendo essa separacdo um sintoma da perda da totalidade orgdnica, da cisio entre Eu e Mundo. Na Musiké,o sentido surge da relagdo mimética com a natureza em sua forma pura, direta e sem mediagdo, enquanto que 0 ‘Trabalho aceito pela Comissdo Cientifica do XVI Congresso da ANPPOM. = 4d XVI Congreso da Associagéo Nacional de Pesquisa e Pés-graduagio em Miisica (ANPPOM) Brasilia - 2006 tonalismo € um sistema de imitagdo artificialmente criado, onde o sentido jé esté envolvido pelas formas mediadoras, o que impossibilita aquela totalidade homogénea do pensamento de Boécio. ‘Mas o sistema tonal ainda é depositério de um sentido comum, capaz de expressar os vinculos da esfera artfstica com a sociedade. Rigorosamente légico, os encadeamentos e leis actisticas que regem suas estruturas esto em conexao com a vida comum, ¢ cada composigao realizada dentro desse sistema € a expresso particular fechada de um sentido maior, ficando automaticamente atrelada aos valores de um povo, cultura ou época. Em todo caso, € um estilo sécio-cultural orginico, capaz de realizar vinculagdes somente através da realizagio de seus funcionamentos internos. Apés o declinio tonal na musica erudita da nossa época, é para alguns experiéneia de espanto e algum pesar ouvir um compositor do sée. XVII como Mozart, que to bem expressou aquele sistema. Seu pleno dominio técnico sobre a linguagem tonal converte-se - exatamente por ser um domfnio ativo - em elogio do compositor ao sistema, e sua composigao transforma-se em um prazer estético socialmente partilhado. Para 0 nosso ouvinte nostélgico de hoje, o pesar se dé ao reconhecer como esse prazer vinculativo aparece de modo tio inesperadamente simples. Mas, mesmo nos autores que melhor realizaram suas l6gicas, 0 tonalismo permanece como uma aparicio fantasmitica daqueles tempos nos quais a vida nao se separava da esséncia, e 0 sentido estava impregnado em cada objeto e em cada ago. Alids, toda a histéria da musica, desde o inicio da polifonia, evolui através de rupturas e descontinuidades que atestam a perda de uma totalidade comum por meio do progresso da racionalizago. Frente 4 racionalidade crescente, a estética musical recebe um lugar curioso: sua assemanticidade, sua incapacidade de expressar conceitos (Hanslick ¢ Fubini nao cessaram de reiterar essa particularidade) colocam-na em posigdo aniloga aquele ndo-sei-o-qué obscure que sobra na razo, ela toma a forma desse vazio. Adomo € preciso ao comentar essa especificidade: "Nao hé diivida de que a hist6ria da misica é uma progressiva racionalizagao. Teve pasos, como a reforma guid6nica, a introdugio da notagdo mensural, a invengao do baixo continuo, a afinagio temperada, ¢ finalmente a tendéncia & construgao integral da misica, irresistfvel desde Bach e hoje levada ao extremo. Nao obstante, a racionalizago - insepardvel do proceso histérico do aburguesamento da misica - é apenas um de seus aspectos sociais, assim como a racionalidade ela prpria, "Alfklirung"', & apenas um momento da hist6ria da sociedade, que permanece irracional, presa ainda a formas "naturais". No interior da evolugdo total de que participou através da progressiva racionalidade, a misica foi também, e sempre, a voz. do que ficara para trés no caminho dessa racionalidade, ou do que fora vitima." (Adorno, 1983, p.262). Anova misica e a auséncia de uma pratica composicional comum Por meio da realizagao de suas préprias 16gicas e possibilidades, o sistema tonal entra em colapso. Sua utilizagdo anacr6nica transforma-se em um pastiche: um aglomerado de siglas gerais, progressées estereotipadas, funges que se mecanizam e todo tipo de cliché sentimental jogam o afeto em direco ao valor de troca, A mercadoria. O tonalismo se reifica, e aparece desqualificado enquanto expressio. Para usar de uma metéfora da época, o compositor "perde a casa". Agora estio impossibilitadas tanto a totalidade mimética da Musiké quanto a linguagem comum do tonalismo. compositor enfrenta um problema de consciéncia: coagido pelo proceso histérico do material musical ateou fogo em sua prépria casa. Aqui encontramos nos problemas da composigao mais uma atualizagio do homem moderno: ele se encontra sozinho, amputado de seus meios expressivos costumeiros, consternado por ter ele proprio os queimado; seu desejo é de que ressuscite um sentido que existia em um passado préximo, mas que ele sabe impossfvel. Aqui, a Nova Musica é que carrega a aparigio ' Bsclarecimento, ‘Trabalho aceito pela Comissdo Cientifica do XVI Congresso da ANPPOM. = 4s = XVI Congreso da Associagéo Nacional de Pesquisa e Pés-graduagio em Miisica (ANPPOM) Brasilia - 2006 fantasmética do tonalismo, mostrando-se em tendéncias distintas, que podem ser percebidas em solugdes diferentes. H compositores que remontam os cacos que restaram da casa que se perdeu e ‘os juntam com as conquistas téenicas de que dispoem, com a esperanga de que em uma nova organizagiio ou em novo tratamento os cacos arruinados ao menos deixem aparecer uma fagulha daquele sentido que outrora estava vivo. Em outros casos, os restos também sao reunidos, colocados artesanalmente um ao lado do outro, mas apenas para ostentar o fracasso a que foram submetidos. Hi ainda as tendéncias mais novas que procuram renunciar ao temperamento - e assim ao tonalismo. definitivamente. Schoenberg é um caso exemplar do primeiro modo de aparig&o; suas primeiras obras revelam o limite tenso entre a tonalidade e a atonalidade. © material que aparece nessas composigdes provém frequentemente da gramética tonal, tanto do que a formou quanto do que a extinguiu: tergas, tritonos, sensiveis, dominantes, cromatismos, seqiiéncias de quartas, pés-métricos de danga ete. so colocados de modo que nunca representam a fungo que tinham naquele sistema. O sentido da composigéo comega a se deixar transparecer em uma dificuldade acarretada pela insatisfagéo com um sistema de referéncia que apresenta seus meios tradicionais de expressio ja praticamente catalogados, ¢ a impossibilidade ou contra-senso de separar-se dele. Essa antinomia ‘opera um movimento de negacio reciproca que mantém a idéia em eterna circularidade, sem nunca chegar a uma sintese, como um péndulo, trazendo a idéia para perto da infinitude. O que vemos & um manuseio da forma através de uma "variagdo progressiva" a 1é Brahms desses "“materiais impossibilitados", construindo assim uma pega fechada e coerente, calcada na tradi¢Zo alemd. A fratura entre eu e mundo verte o que era pressuposto formal em material composicional. Quanto as obras de sua fase dodecafénica, & Pierre Boulez. quem nos aponta a continuidade da mesma antinomia (embora para chegar a conclusdes diferentes): “A série intervém, em Schoenberg, como um mfnimo denominador comum para assegurar a unidade semantica da obra; mas os elementos da linguagem assim obtidos so organizados por uma ret6rica preexistente.” (Boulez, 1981, p.244). Essa retérica preexistente é 0 que entendemos como apari¢ao fantasmatica do tonalismo, cristalizada no caminho das inovagGes técnicas racionais da mtsica como um entrave, carregado de forga expressiva. Algo parecido acontece em Alban Berg em sua suite Ifrica ou no concerto para violino, onde formas e gestos de extremo lirismo, tipicos do auge romfntico do tonalismo, aparecem exagerados e impossibilitados de acontecerem tal como eram, por ocasido de estarem ligados nao mais a uma gramitica tonal mas sim a seu inverso: o dodecafonismo. Outro modo de apariga0 da Nova Musica jé estava operando, de alguma forma, em Gustav Mahler, apesar de ser um compositor imerso na tiltima fase da era tonal. Os "cacos" com os quais cle compde nao s40 os mesmo de Schoenberg - so temas tonais que ja existem, sobretudo na tradigdo popular, que ele remonta & sua maneira. O terceiro movimento de sua primeira sinfonia, por exemplo, é construido sobre a cangfio popular "Frére Jacques", retrabalhado ao gosto do criador (a mudanga do tema para uma tonalidade menor, 0 tratamento contrapontistico); e a negacdo reciproca que dai resulta embaralha as distingdes entre arte alta e baixa, ostentando, em iltima anilise, 0 fracasso de uma e de outra. Em nossas terras também surgem safdas para o problema. Como compositor nascido em um pais no qual a grande miisica cléssica é estrangeira, Heitor Villa-lobos nao precisa colocar-se como participante de sua tradico. Retira material tanto de festas folcléricas brasileiras quanto da tradigdo européia que aqui chegou. Composigdes como o seu trio para palhetas carregam uma certa "esquisofrenia", uma identidade que se confunde entre brasileiro popular e europeu erudito - definida, aliés, exatamente por meio desse quiproqué. A melodia de caréter folclérico aparece organicamente misturada a um contraponto de tradig&o européia em passagens abruptas, onde 0 tratamento dado aos materiais no € 0 da tradi¢Go tonal, como em Mahler. Também o desenvolvimento harménico aparece impedido em sua acepedo tradicional por essa confusio de uma coisa com outra, costurando e tecendo a nogio de um sujeito artistico envolto por duas tradigdes que pouco tém em comum, Essa maneira de compor o encaixa em um novo modo de ‘Trabalho aceito pela Comissdo Cientifica do XVI Congresso da ANPPOM. = 446 = XVI Congreso da Associagéo Nacional de Pesquisa e Pés-graduagio em Miisica (ANPPOM) Brasilia - 2006 aparigao da Nova Miisica, que surge agora sob a forma objetiva da ostentagao do fracasso tonal por compositores que, apesar de estarem envolvidos com sua légica, esto fora de sua formagdo tradicional e hist6rica. Referéncias Bibliograticas Adomo, Theodor W., Max Horkheimer. (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Adomo, Theodor W. (1983). Idéias para a sociologia da musica. In Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural. (1989). Filosofia da nova musica. Sao Paulo: Perspectiva. Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Carrego comigo. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Boulez, Pierre. (1981). Apontamentos de Aprendiz. Sio Paulo: Ed. Perspectiva. Lukaes, Georg. (2000). A teoria do Romance. Séo Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. Schoenberg, Arnold. (2001). Harmonia, Sio Paulo: Unesp. ‘Trabalho aceito pela Comissdo Cientifica do XVI Congresso da ANPPOM. = 447=

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