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PIERRE SALAMA ee ESTADO E CAPITAL: O ESTADO CAPITALISTA COMO ABSTRAGAO REAL «Por que a dominagio de classe nao fica sendo o que 6 sujeigao de uma parte da populagio a uma outra? Por que ela reveste a forma de uma dominagio estatal oficial ou, 0 que yem a ser 0 mesmo, por que o aparelho de coercio estatal nao se constitui como o aparelho particular da classe dominante, por que ele se separa desta ultima e reveste a forma de um aparelho ptblico impessoal, separado da sociedade»?* & a esta interrogacao essencial 4 compreensdio do Estado, e tao freqiientemente negligenciada se nfo ignorada, que co- mecaremos a responder, Uma resposta completa a esta per- gunta conduz a por em destaque dois pontos: o fetichismo da mercadoria, a dedug&éo do Estado, a partir do capital. O primeiro permite compreender por que 0 Estado pode apare- cer como estando «ao lado da sociedade civil e exteriormen- te a ela», o segundo conduz a considerar 0 Estado como um «capitalista coletivo em idéia», permitindo assim compreen- der por que «a dominagio politica de classe n&o est4 direta- mente ligada ao direito de dispor dos meios de produgio».? & uma abordagem como esta que nos permitiria compreen- der em que a intervencio do Estado visa a regenerar 0 ca- pital. Este seré o objeto de nossa primeira parte. A andlise do Estado deve ser distinguida da andlise da sua forma fenomenal que é o regime politico. Esta delimita- eo conceitual é essencial e funda a originalidade do nosso estudo. Se quiséssemos parafrasear Coletti, diriamos que o Estado capitalista 6 uma abstrac&o que se efetiva na realida- de da luta de classes sob a forma do regime politico.* & esse tipo de distincio que nos permite compreender que a maneira concreta pela qual o Estado age, para assegurar a reproducio da relagio de producdo capitalista, é determinada, no seu conteiido, tanto pelo tipo de problema que conhece o regime de acumulacio dominante e a evolugdo da luta de classes, como, quanto & forma, pela instalacéo de tal ou qual regime Politico, sem que por isso tenhamos de cair num determi- nismo qualquer. Concebe-se assim que a intervencio ptblica Possa levar a marca da procura de uma certa legitimagio, e Possa se situar, em certos momentos, em oposicéio aos inte- resseg do conjunto do capital. Porque ela deduz o Estado do capital e insiste sobre a disting&éo entre o Estado e as formas de existéncia, tal abordagem permite propor claramente a 121 questao da natureza do Estado e evita assim as numerosas ambigiiidades que implica qualquer outra abordagem. Tal sera o objeto de nossa segunda parte. I. O ESTADO CAPITALISTA: PRODUTO E PRODUTOR DE CAPITAL 1. O fetichismo da mercadoria ou a negagéo do Estado a) Um dos aspectos mais importantes da teoria do valor de Marx é o que concerne & andlise das ca- racteristicas da produgio mercantil. Dela decorrem tanto a andlise do dinheiro (a sua génese), como a analise do feti- chismo. Recordemos do que se trata. Quando escrevemos que X de tecido = Y de roupa, dize- mos que, para além da igualdade matematica‘, X de tecido exprime o seu valor em Y de roupa. «Entretanto, a roupa no pode representar o valor diante do pano ‘sem que 0 valor tome ao mesmo tempo o aspecto de uma roupa’, sem que nasca a impressio de que a roupa, «esta coisa, tal e qual, exprime valor, e, em conseqiiéncia, possui naturalmente a forma de valors.* Dai, o cardter social do trabalho deve aparecer «como um carater das coisas, dos préprios produ- tos».° Como «a sociedade capitalista é sobretudo uma socie- dade de proprietarios de mercadorias, isto significa que as relacées sociais dos homens no processo de producéo revestem uma forma coisificada nos produtos do trabalho, os quais aparecem, uns em relacio aos outros, como valores. A merca- doria é um objeto no qual a diversidade concreta das pro- priedades uteis se torna simplesmente o envoltério coisifica- do da propriedade abstrata do valor que se exprime como capacidade de ser trocada numa relagio determinada por outras mercadorias».7 Mas, «se a coisa domina economica- mente o homem, porque ela reifica enquanto mercadoria uma relagéo social que n&o esté subordinada ao homem, o homem em compensagio reina juridicamente sobre a coisa, porque, na qualidade de possuidor e de proprietario, se torna simples encarnagdo do sujeito juridico abstrato, impessoal, puro pro- 122 duto das relagdes sociais».* Portanto «as relagées entre os jyomens na produgio se revestem assim, num certo estagio de desenvolvimento, de uma forma duplamente enigmatica. Eles ~ gparecem por um lado como relagdes entre coisas (mercado- fias) e por outro lado como relagées de vontade entre uni- dades independentes umas em relacéo as outras, iguais entre si: como relagdes entre sujeitos juridicos».® Entretanto, «é somente na forma dinheiro que ela (a coisificacio das re- lagdes sociais de produgio) adquire uma figura marcada e tangivel. (...) A partir dat se consolida definitivamente a «falsa aparéncia» de que o objeto no qual a quantidade de valor de um outro objeto é representada possuiria sua forma -equivalente independentemente desta relacgio, como uma pro- priedade social que vem da sua natureza».'° Compreende-se entéo que a fonte real desta inversio vem da metamorfose histérica do produto em mercadoria, pois «é sé nos limites da troca que se afirma inicialmente o carater social dos seus trabalhos privados».'! «OQ resultado principal da teoria do fetichismo nfo é (portanto) o de que a Economia Poli- tica dissimula por traés das categorias materiais relagdes de producg&o que se estabelecem entre os homens, é o de que numa economia mercantil capitalista essas relagdes de pro- dugio adquirem necessariamente uma forma material e sé podem existir nesta forma». ?? Esta andlise é dificil, mas essencial. «Com efeito, em Marx = escreve com razio Habermas sobre este ponto — a and- lise tedrica da forma valor tem como dupla tarefa a de re- yelar o principio de regulago da circulacio na economia de Mercado e a ideologia na base da sociedade de classe bur- Suesa» *, de tal modo, acrescenta Mandel, que «a permanén- Gia e a aceitagio das relacdes mercantis é interiorizada na imensa maioria dos «cidadéos livres» (...) E @ forca su- Perestrutural principal do poder politico da burguesia. (...) 4 interiorizagio das relagdes mercantis corresponde portan- to uma interiorizagio da democracia puramente formal». . b) Mas uma andlise como esta, tal e qual, limitada a forma dinheiro e ao fetichismo da mercadoria, é insuficiente. Nao se pode deduzir disto a necessidade tanto légica como histérica do Estado, pois: — Se limitarmos a andlise aos produtores individuais de Mercadorias, nio poderemos dizer nada do Estado como for- 123 ma de dominac&o de classe, nio poderemos deduzi-lo histo- ricamente como necessidade para a burguesia de se repro- duzir. Nesse nivel, néo se interroga sobre as causas do des- dobramento das mercadorias, Pode-se somente analisar o impacto dessa generalizagéo sobre a consciéncia que dela tém os individuos e a interiorizacgéo da democracia puramente formal que decorre disto, e deduzir dessa abordagem a possi- bilidade que tem o Estado de aparecer como estando ao lado e no exterior da sociedade civil. Se agora considerarmos que a forga de trabalho é uma mercadoria, a andlise permanece apesar de tudo insuficiente, Com efeito, nio mostramos a necessidade do Estado. Para- doxalmente, mostramos o contrario, Esta andlise revela, na realidade, que a generalizacio das mercadorias — cujas condi- gdes de possibilidade ainda nfo se estudou — produz ilusdes de tal ordem sobre as relagdes reais de produgio!® que nfo se apreende a necessidade que tem o Estado de reproduzir a relacdo social dominante.* Em outros termos, pode-se com- preender o Estado como algo que est4 ao lado e no exterior da sociedade, mas nao se vé, fundamentalmente, a sua raz&o de ser. No maximo — mas é essencial — esta andlise mostra os fundamentos objetivos, as causas materiais daquilo que Lenine chamava o «tradeunionismo» espontaéneo da classe operaria. — Estabelecer um paralelo entre a -forma valor que é 0 dinheiro e o Estado é interessante mas se revela pouco fe- cundo para a analise. «Os leitores do Capital podem facilmente compreender este desenvolvimento do Estado como entidade particular ao lado e de fora da sociedade civil lembrando o desenvolvimento dialético da forma valor, e assim da forma dinheiro a partir da contradigio entre valor e valor de uso que contém a mer- cadoria. (...) O dinheiro nos aparece como uma coisa inde- pendente, e o cardter sdcio-histérico do valor passa a ser ligado a ele seja como um carater natural, seja em virtude de um suposto acordo comum entre os individuos. O mesmo fetichismo pode ser visto na forma do Estado».1" De maneira mais precisa em Hirsch: «Do mesmo modo que o vinculo entre os seus trabalhos, como ele é estranho aos individuos, se representa por uma coisa (o dinheiro), é necessdrio que a totalidade social revista uma forma particular. Do mesmo 124 modo que o valor de troca, incorporado no dinheiro, produz independentemente da vontade dos individuos a unidade so- cial da producio, esta totalidade social tem necessidade do Estado para garantir as condicées gerais da produgio e da reproducio, que existem fora dos produtores individuais». '* As formulacgées de Miiller e Neusiiss e as de Hirsch nao deixam de ser prudentes. O paralelismo é interessante, mas limitado. Porque forma do valor, o dinheiro é deduzido do valor. Porque é deduzido do capital, o Estado —- como vere- mos —, é portanto deduzido igualmente do valor.'® Mas nio é porque duas coisas podem ser deduzidas de uma mesma terceira, que uma poderia explicar a outra. Se é verdade que «o valor de troca, incorporado no dinheiro, produz, indepen- dentemente da vontade dos individuos, a unidade social da producio», nio se pode por causa disto deduzir dai que é necessdrio que esta totalidade social precise do Estado para garantir as condicdes gerais da producio e da reprodugio. *° A determinacio dessa necessidade exige uma andalise «sinuo- sa». No mdximo se pode dizer com Hirsch: «Quanto mais se desenvolve a troca entre produtores privados, com a pe- netragio da sociedade burguesa, mais valor de troca é a origem da coesdio social, e mais cedo desaparecem a possi- bilidade e a necessidade de instaurar a coeséo da sociedade através das formas de relagéo de dependéncia pessoal e de sujeicéo direta». * Mostramos que o Estado capitalista ndo poderia ser dedu- zido diretamente do valor. Mostramos tarabém e sobretudo que é este fetichismo que, fundamentalmente, faz com que © Estado apareca ao lado e de fora da sociedade. Devemos portanto ultrapassar a categoria do dinheiro e deduzir o Es- tado do capital. Por isso mesmo ndo ha independéncia entre a categoria dinheiro e o Estado. A generalizacéo das mercadorias ne- cessita da apariciio do dinheiro, mas também, sobretudo, da aparicio do capital. A deducio do Estado a partir do capi- tal nao significa portanto que se possa conceber o dinheiro 8em o que vem do Estado, mas significa que se toma o Esta- do no que ele tem de essencial. Um esquema, tomado parcial- mente de Rosdolski, permitiria esclarecer 0 que dissemos: Em lugar de ter: mercadorias — valor — dinheiro — Estado, temos na realidade: mercadorias — valor — dinheiro — capital — Estado. 125 2. Capital, crise, Estado As relagdes entre 0 Estado e o capital podem se conceber de dois modos. O primeiro consiste em estabe- lecer uma relac&o de exterioridade entre eles. O segundo insis- te no aspecto orgdnico dos lagos que os unem. O primeiro nio pode apreender a natureza do Estado e legitima pra- ticas reformistas, O segundo levanta de imediato o proble- ma da natureza do Estado e conduz a rejeitar a concepcdo segundo a qual seria possivel & classe operdria investi-lo gradualmente. Antes de expor longamente a segunda con- cepcio, lembremos sucintamente os problemas que levanta a primeira. Quando se consideram o Estado e o capital como duas enti- dades separadas, a primeira mantendo relagées com a se- gunda, nio se pode apreender os limites da intervengio do Estado. Separado organicamente do capital, mas mantendo relagdes com ele, o Estado poderia se situar acima da lei do valor. O Estado poderia assim, pela sua acio sobre a lei do valor, superar as contradigdes inerentes ao sistema. Uma acio como esta poderia ser possivel através de uma modi- ficagio substancial das despesas ptblicas.?? Dai decorre uma concepcio tecnicista e instrumental. O Estado poderia ser investido do interior. Esta intrusfo no. Estado poderia per- mitir que uma politica em beneficio da classe operdria po- deria ser levada adiante. 0 Estado poderia assim se tornar um instrumento a servigo da classe operdria.** 0 Estado seria por isso neutro, estaria acima das classes, na medida em que precisamente o Estado, hoje «a servico dos grandes monopélios», poderia amanh& estar a servico da classe ope- raria. Com esta concepcio se introduz a idéia de que o cardter atual do Estado seria capitalista. ** N&o estabelecer uma rela- cdo orgdnica entre o Estado e o capital conduz assim a eludir a questéo da natureza do Estado. A caracterizacio de ca- pitalista serve de definicio da natureza do Estado e conduz assim por um deslizamento, e embora freqiientemente se pre- tenda se defender disto, A idéia de que o Estado seria na realidade neutro. Limitar a andlise ao estudo das relacdes que o Estado mantém com o capital conduz a esse tipo de problematica e fundamenta uma politica de tipo reformista. Inversamente, 126 * eonsiderar que o que concerne ao Estado faz parte das re- slagdes sociais de produgéo 6 compreender que essas mesmas relacdes exprimem lagos organicos entre o Estado e o capi- tal, Esta 6 a raziio pela qual nesse ponto estamos de acordo com Poulantzas, quando ele escreve: «

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