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eres LEU ET CIDADANIA, UMPROJETO _ EM CONSTRUCAO MINORIAS, JUSTICA a) tt teh) André Botelho Lilia Moritz Schwarcz Lei Cer Nira lel fereltallo ar) VIOLENCIA E CRIME: SOB 0 DOMINIO DO MEDO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Sergio Adorno ‘A palavra violéncia tem origem no verbo latino violare, que significa tratar com violencia, profanar, transgredir. Faz refe- réncia ao termo vis forca, vigor, poténcia, violencia, emprego de forga fisica em intensidade, qualidade, esséncia. Na tra fo cldssica greco-romana, violénciasignificava o desvio, pelo emprego de forca externa, do curso “natural” das coisas. Hoje, o termo é empregado de modo polissémico, Designa fa- tos ¢ ages humanas que se opéem, questionam ou perturbam 4 paz ou a ordem social reconhecida como legitima, Seu uso corrente compreende o emprego de forca brutal, desmedida, ‘que no respeita limites ou regras convencionadas. Seus miltiplos significados gravitam em torno do univer- so de valores que constitui o “sagrado” para determinado grupo social. Por exemplo, na civilizagéo ocidental moderna o direito & vida é considerado universal a despeito do modo como diferentes culturas o respeitam e 0 garantem para pes- soas pertencentes a distintos grupos sociais. rime, por sua vez, é a violéncia codificada nas leis pe nais. £ parte do repertério de agées violentas. Dado que as sociedades se transformam no tempo e no espaco, muitas ages hoje reconhecidas como violentas néo estavam até hi pouco reconhecidas como crime nas legislagdes penais, como, por exemplo, a violencia nas relagdes de género. Do mesmo modo, certos comportamentos eivados de preconcei- tos contra grupos determinados — negros, migrantes, mu- Iheres, pobres, homossexuais — dificilmente sao caracteri- zados como erimes. Compreendem violéncia simbélica, pois agridem valores culturais relativos ao respeito miituo ¢ & dignidade das pessoas. (s efeitos da violéncia produzem danos & integridade fi sica, psiquica, moral, aos bens materiais e simbdlicos. Resul- tam em dor e sofrimento impostos por uns contra outros. Por isso, compreendem tanto dimensBes objetivas — a morte de alguém, a perda de um direito, restrigbes 4 livre circula- «fo inclusive de ideias — quanto experiéncias subjetivas Sob essa perspectiva, atos violentos estao referidos ao mun- do das percepgdes coletivas e das representagées. Ora a vio- lencia aparece como caos e desordem normativa, ora como rransgressio nos valores cansideradas “sagrados", como a inviolabilidade do domicilio, do corpo, da privacidade. ‘Na chamada era da globalizacéo, vem adquitindo sentido liico ou performético, expresso em estéticas contemporaneas de existéncia to bem narradas na literatura, nos filmes, na representagao das lutas € dos esportes, da sexualidade e da competicao pela existéncia cotidiana, Por fim, esta presente com maior frequéncia e intensidade em sociedades autorica- rias ou nas ditaduras (militares e civis), onde predominari re laces assimétricas de poder. Por certo, ndo esté ausente das sociedades democréticas, embora estas disponham de meios {nstitucionais, legitimamente reconhecidos, para conté-la de acordo com as leis que limitam o uso arbitrério da frca. Essas caracteristicas da violéncia acompanham a hist6ria das sociedades. Na Antiguidade cldssica, compreendia ajustes na esfera das relagées privadas entre senhores, seus escravos dependentes domésticos. Na Idade Média, incorporou-se a0 éthos cavalheireseo ¢ guerreiro. Com o colonialismo moder no, esses habitos migraram para o Novo Mundo ¢ para outros continentes que ndo 0 europeu, Nessas sociedades, a violencia ppassou a ser uma espécie de linguagem da vida cotidiana. Com a marcha do processo civilizatério ocidental na Eu- ropa (séculos xv a XIX), que se irradiard para o resto do mundo, aleancando especialmente as Américas, 0 emprego cotidiano e recorrente da violéncia comeca a ser socialmente reprovado, Dois processos ocorrerdo simultaneamente: uma nova economia moral baseada na conten¢o dos impulsos agressivos (psicogénese) se dissemina por todos os estratos sociais; ¢ a destituigéo dos particulares (civis) do direito de recorrer as armas ¢ & fora para resolucao de conflitos nas relagées sociais e interpessoais (Sociogénese). O Estado mo- derno passa a ser a tinica comunidade a deter 0 monopélio legitimo da violéncta regulado pelas Constituigées nacionais € convengées internacionais. Esse modelo de comportamen- to tenden a se formalizar com a contolidagio da democracia representativa, que reconhece a existéncia de canais institu- cionais (oficiais e piblicos) para a resolugo de conflitos. No Brasil, desde a colonia a violencia esteve incorporada a0 cotidiano dos homens escravos e livres, inclusive sitiantes ;pobres, esposas,filhos e agregados domésticas. No mesmo sen- ‘ido, da colbnia a Republica, a violéncia desmedida foi utilizada hhabitualmente na repressdo a movimentos sociais contestat6- +s, como as revoltas regionais, em especial contra 0 movi- ‘mento operério nascente no final do século XIX. Foi trago mar- cante dos periodos de vigéncia de ditaduras militares, como ra Repiblica da Espada — isto 6, os dois primeiros governos militares no inicio do periodo republicano (1889-94) —, no Estado Novo (1937-45) e no golpe de Estado (1964-85), regi mes que perseguiram dissidentes politicos. Surpreendentemente, apds 0 retorno da sociedade brasil +a a0 estado de direito, explodem conflitos de diversa nature za: crescimento dos crimes, em especial em torno das formas ‘organizadas (por exemplo, trafico de drogas), graves violacées de direitos humanos ¢ contlitos com desfechos fatais nas rela g6es interpessoais. Aumentaram destacadamente os homic- dios com concurso de arma de fogo, cujos alvos privilegiados sii homens de quinze a 29 anos, habitantes dos bairros que -compoem as chamadas periferias das regiGes metropolitanas. Arresposta do Estado tem sido caracterizada por ambivaléncia, ‘ora legislando e apostando em polticas do tipo “mio dura” ou tolerdncia zero, ora em politicas “Iiherais®e inseritas no terri- tério dos direitos humanos, priorizando a humanizacio do tra- tamento penal ¢ focalizando a proteco dos direitos de grupos sdeterminados (mulheres, criangas, negros,idosos) Nesse novo contexto social politico, a violéncia no Bra: sil deixou de ser pensada como afeita a drbita das relagbes privadas. Cada vez mais, é matéria de inquietagéo publica, alimentando sentimentos coletivos de medo e inseguranca ¢ estimulando debates piblicos. Nao menos relevante foi o in- teresse das ciencias soctats e das humantdades desde mea- dos da década de 1970, debate entre cientistas sociais foi muito influenciado pela transigéo politica. Muitos acredicavam que a reconstru- Gio da democracia conduziria inevitavelmente & pacificacao da sociedade, Mas no foi o que econteceu, diante justamen- te do creseimento dos crimes ¢ da violéncia em geral. Era preciso entao explicar 0 cendrio social que estava se arman- do, assim como suas causas. Os argumentos gravitavam em tomo dos efeitos da desigualdade produzida pelo capitalis- mo, das herancas autoritirias da sociedade brasileira que se encontravam ancoradas nas agéncias policiais ¢ judiciais ou das caracter(sticas da “cultura’ na sociedade brasileira, Che: gava-se, na tradigéo do pensamento social, a reconhecer que a sociedade civil no Brasil nunca existira, o que contribuia para acentuar a histérica desconfianca das elites politicas nas leis e nas insttuigdes republicanas. Em quase quarenta anos de investigagao empirica (1970- 2010), muitos desses argumentos foram retificados, mitos foram questionados e demolidos, hipéteses foram sendo ela- boradas e mesmo revistas com base em resultados de rigoro- sas investigagGes etnogriicas ou com apoio em inimeras otras perspectivas metodolégicas, como tratamento estatis- tico de dados primérios ou secundsiios, andlises de fontes documentais, realizagdo de hist6rias de vida e entrevistas com o¢ protagonistas dos acontecimentos ; ‘Um dos esforgos realizados foi conhecer as caracteristicas € a evolugéo dos erimes e da violéncia com base em estatist- cas oficiais,cuja qualidade e fidedignidade eram aquela época questionéveis. Os estuclos revelavam o crescimento, desde fins da década de 1970, de quase todas as modalidades de crimes contra patriménio ¢ contra a vida. Aumentavam em volume e intensidade os chamados crimes violentos, aqueles que ameacam a integridade fisica das pessoas, como roubos, estupros, extorso mediante sequestro e homicidios. O cresei mento acelerado dos homicfdios, sobretudo na regio Sudeste do pais, passou a frequentar 0 noticidrio e exerceu forte pres- séo sobre as agendas governamentais e das ciéncias sociais. Nao apenas esas modalidades de crime estavam cres- cendo. Paradoxalmente, os avancos da democracia corriam paralelos a graves violagdes de direitos humans. Ao crime vinha se associar a ago de justiceiros e esquadrdes da mor- te, compostos por pessoas civis e policiais. Linchamentos, que sempre existiram na sociedade brasileira, comecaram a ocorrer com maior frequéncia, sobretudo nas capitais de So Paulo e Salvador. Tudo concorria para que préticas de justica popular e risticas ocupassem 0 espaca deixado pelas insti- ‘tuigées oficiais de aplicacio das leis e distribuigao de justica, Contra esses cendrios de violencia, policiais, néo raro esti- mulados pela formacio adquirida nas agéncias de policia, recorreram ao uso abusivo da forga, contribuindo para o au- mento, nas estatisticas, de casos de morte. ‘Compse ainda esse cendrio de violencia a explosio de confi- tos nas relagdes interpessoais ¢ intersubjetivas, que nada pare- ‘cem ter em comum com a criminslidade cotidiana. Compreen- dem conflitos entre os homens e suas companheiras, entre parentes, vizinhos, amigos, colegas de trabalho, entre conheci- dos que frequentam os mesmos espacos de lazer, entre pessoas que se eruzam diariamente nas vias pablicas, patres e empre- gados, entre comerciantes e seus clientes. Resultam, em nao poucas circunsténcias, de desentendimentos variadas acerca da posse ou propriedade de um bem, de paixGes no corres- pondidas, compromissos néo saldacios, ce reciprocidades rom- pidas, de expectativas nfo preenchidas quanto ao desempenho convencional de papéis, como os de pai, mae, mulher, filo, es ‘tudante, trabalhador, provedor do lar. Entre os pesquisadores, nao ha consenso a respeito das possiveis explicaces para essas tendéncias de evolugéo do crime ¢ da violencia no Brasil. Algumas hipéteses tém sido mais bem exploradas ¢ podem ser agrupadas em duas or- dens de explicagées. Primeiramente, referem-se ao conjunto de mudangas pe- Jas quais vem passando a sociedade brasileira desde a segun- da metade do século passado, e sobretudo a partir do retorno a0 Estado Democratico de Direito. No espaco de trés gera- 6es, o Brasil deixou de ser uma societlade agraria. Proces- s0s acelerados de urbanizacio, industrializacdo, crescimento e diversificacéo do setor de servigos alteram padrées tradi- ionais de recrutamento dos trabalhadores, exigindo cada ‘vez mais investimentos em profissionalizagio e expansdo da escolaridade, ampliando as oportunidades de acesso ao mer- cado de trabalho para setores da populagao antes pouco re- presentados, como mulheres ¢ jovens. Cresce a circulacio da riqueza ¢ da renda. O crime segue a rota da riqueza e no da pobreza, como muitas vezes se acreditou, Mudam as relagdes entre as classes sociais, que se diversificam ese tornam menos polarizadas, assim como re- laces intergeracionais, entre os géneros, entre as etnias, tornando mais complexas as hierarquias sociais. Mais mo- dernizada e conectada com as transformagées globais, ¢ tudo o que isso representa em termos dos usos das tecnolo- gias nos modes de vida cotidianos, a sociedade brasileira se torna mais suscetivel as mobilidades verticais e horizontais. Pouco a pouco emergem novos padrdes de relagdes entre go- vernantes e governados, expressos nas eleigdes € nas ten: déncias majoritarias do voto popular. Todo esse conjunto de mudangas incide também na esfe- ra das representagSes sociais e da cultura. Como as sonda- gens de opinido tm demonstrado, a sociedade brasileira vem revelanéo atitudes ambiguas com relacao as leis € as instituigées. Ora apoia a democracia, o respeito a legalidade € a0s direitos humanos. Ora, contrariamente, reconhece que as leis nao valem para todos, as instituigdes privilegiam gru: ‘os sociais, os direitos nao so universais, vale a vontade do ‘mais forte. Cenérios como esses contribuem para enfraque cer a confianga dos cidadios nas instituigSes encarregadas de aplicar as leis e oferecer seguranga & populacio. E nessa espécie de “vacuo” que a sociedade brasileira as sistiu impass{vel & chegada do crime organizado entre as clas- ses populares, notadamente em torno do tréfico comércio ilegal de drogas. Atraindo para si outras modalidades de cri- ‘mes, como assaitos a bancos e sequestros de pessoas, 0 narco- trdfico tem adquirido caracteristicas particulares em distintas regides do pals. Em So Paulo, nao tem sido diferente, com o surgimento do crime organizado, altamente centralizado hierarquizado, controlado a partir das prisdes e se irradiando pelos bairros populares e com o concurso de pistoleiros pro- fissionais. Além do mais, o envolvimento de segmentos da classe média e mesmo de elevados estratos socioecondmicos nas atividades conexas, como lavagem de dinheiro, fraudes bancérias, corrupgao de autoridades e governantes, tem se tornado recorrente. Esse quadro se completa com as conexses ‘entre mercados ilegais e mercado politico, das quais resultam financiamento também ilegal de campanhas politicas, corrup- ‘io de autoridades e enriquecimento ilicito. Uma segunda ordem de explicagdes reside no ambito ‘mais propriamente institucional. No Brasil, suspeita-se que ‘nunca se consolidou 0 monopélio estatal legitimo do uso da coergao fisica. Se isso é verdade, a emergéncia ¢ a dissemi- nagio do crime organizado contribuiram ainda mais para enfraquecer a capacidade do poder pilblico de exeroer eom- trole legal do crime e da violéncia. A sociedade mudou, os crimes cresceram e se tornaram mais violentos; 0 crime or- ganizado se espraiou inclusive com o apoio de armas pos- santes ¢ de tecnologias de informagio. Todavia, o sistema Judicial permaneceu apegado aos padres tradicionais, ali- cergados na criminalizagao do comportamento dos pobres e voltados para perseguir e prender bandides conhecidos, ‘As agéncias policiais custam a reconhecer a necessidade de reforma institucional, seja em suas préticas de policia mento repressiva © preventiva, seja nas réenions de investi- gacio polical, assim como nas suas formas de recrutamento e€ formacdo profissional de seus quadros. Muitos policiais persistem acreditando que o problema do controle do crime € da violencia é de exclusiva competéncia das autoridades policiais, daf as demandas em torno de mais armas e reapa- relhamento das forcas. Ignoram que seguranca publica cada vex, mais, objeto de planos de acio que envolvem nao apenas conhecimento especializado, mas também parcerias entre governos e organizagoes da sociedade civil. ~ ‘A despeito das mudancas recentes impressas nas leis pe nais, 0 modelo de aplicagio de sancdo permanece preso &s twadigées liberais de individualizagao da responsabilidade e de punicdo, em resoluto contraste com as formas sociais orga nizadas de criminalidade e violéncia. Fechando 0 circulo, os governos federal e estaduais tém enderecado vultosos investi- ago de vagas e modernizacio do sistema penitenciério, E verdade que a situagio de aberta violagdo de direitos humanos tem recomendado a ampliagao da oferta de ‘vagas para conter a superpopulacao carcerdria em obediéncia as convengées internacionais. Contudo, 0 outro lado desse quadro € perverso, pois eriou condigdes favordveis para a ex pansio do crime organizado no interior das prises, Nio € estranho que a violencia tena se apropriado do cotidiano dos cidados e cidadas brasileiro. Por um lado, in- tensificou o sentimento de medo e inseguranga coletivos, de que as leis néo so aplicadas, de que a impunidade é regra, de que os mais fortes podem impor sua vontade sob ameaga do uso da forga. Por outro, a violéncia paradoxalmente inst tui linguagens, representagbes do mundo que parecem orde- nar e hierarquizar relages e atribuir sentido ao inevitavel —as mortes, os ilegalismos, a arbitrariedade das autoridades no controle social. Os rumos da sociedade democratica no Brasil esto exigindo maior conexéo entre politicas de segu- | SUGESTOES DE LETURA ranga publica e polticas de protegao e promagéo de direitos { hhumanos, capazes de realizar o esperado desejo de uma so- BIAS, Norbert. O procesto civlzador, So Paulo: Companhia das Letras, ciedade mais justa,solidéria e internamente paci 1890 1993.2 } Peete HoBSaaW, Ere. Glbalzagd, democrat etrrorizmo,SSo Paulo: Com: ania das Ltrs, 2007 ISS, Michel, rime ¢ vnncia no Bras! contempondnen. Eudos de socio logiadoerine eda voles urban, Rio de Janeiro: Lumen ui, 2006 oon, Pillppe. Sociologia do crime etopoi: Votes, 2007 \ "awuak, Alba. Integragdo peers: pobrease trfco de digas Rlo de J neo alorada Fo, 2004, SEGURANCA PUBLICA: DIMENSAO ESSENCIAL DO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO Luiz Eduardo Soares Estd af um daqueles temas sobre os quais todo mundo tem opiniao. Quando todos conhecem o assunto, entramos em Area de perigo ¢ 0 alerta do pesquisador dispara. Por um ‘motivo muito simples: 0 excesso de noticias, converses e opt nies transmite a impressio de que falamos da mesma coisa e concordamos quanto ao essencial, o que pode ser —e, fre quentemente, é — falso, O melhor a fazer, entdo, é esquecer co que sabemos sobre seguranca e recuar para o estégio pre liminar, responéendo a pergunta mais simples: 0 que € segu ranga publica? A resposta parece ébvia, mas ndo é, Testemos uma pri- meira hipétese: seguranga descreve uma situacao da vida social em que nao ocorzem crimes ou em que eles so raros. (Ou: seguranga é 0 nome que se dé a um estado de coisas que caracteriza a vida social quando ela ¢ pacifica e transcorre sem crimes, afitmando-se, portanto, a plena vigéncia do res peito as leis. Ou ainda: seguranga é a qualidade que distin gue sociedades sem crime — ou quase desprovidas de cri- ‘mes. Elas seriam sociedades “seguras”; nelas os individuos viveriam “em seguranca’. Duas objecdes: onde ha mais crimes? Nos paises regidos por Estados autoritdrios, como Coreia do Norte, China, Cuba € Ir8, ou nos Estados Unidos? Pelo pouco que se sabe, ha ‘menos crimes sob o totalitarismo, Contudo, o fato de haver ‘menor niimero de crimes em sociedades politicamente auto: ritdrias nao significa que teocracias, fechamento cultural, perseguigdes, torturas, censura e execusdes gerem seguran- «a piblica. Afinal, a paz dos cemitérios nao figura em nosso sono feliz de cidade. Resumindo: nem sempre auséncia de crimes (ou poucos crimes) corresponde seguranga publica, Basta observar o medo. Supostamente, se hé seguranga néo hd medo, pelo menos nao ha medo constante e difuso de ataques fisicos e morais, intervengoes arbitrérias ¢ imprevi- siveis, abusos, violagies, violencia. Pois, se é assim, sob 0 totalitarismo nao ha seguranga, porque o medo é onipresen- te € corréi a confianga — inclusive nas instituigées do Esta- do, a comecar pela Justica. Ou seja, © que entendemos por seguranga tem menos a ver com crime e mais a ver com con- fianca e auséncia do medo. ‘Uma explicagao para o erro da primeira resposta: crime é 0 que o Estado define como tal e, por consequéncia, nio pode servir de critério fixo e moralmente digno. Como sabe ‘mos, ao longo da histétia e no mundo contemporaneo, os Estados se organizam das mais variadas maneiras ¢ classifi- ‘cam as agées humanas das mais diversas formas, vendo cri- ‘mes onde outros identificam virtude e enxergando legitimisla- de em atos que outros abominam como perversio intolerdvel, Evitemos, pois, falar em crime sem examinar o valor ¢ 0 con- tetido de cada prética e de cada qualificagéo. ‘Outra resposta insuficiente (a segunda) poderia ser assim formulada: seguranga publica é a duradoura auséncia de violéncia — qualquer que seja a sua forma de manifestacéo —na vida de uma sociedade, Algumas sociedades tradicio. nais apresentam pequena quantidade de préticas violentas, ‘no espaco piblico, mas intimeros casos de violencia domésti- a contra mulheres e criancas, porque a desigualdade entre ‘5 géneros ¢ sancionada pela cultura e a brutalidade perpe trada contra 0s filhos & definida como recurso educativo. Quem observasse apenas os dados convencionalmente exa- minados em pesquisas sobre seguranca provavelmente no ccaptaria esses processos draméticos e em certo sentido sub- terrdneos. 0 alibi evocado para justificar a negligéncia do estudioso seria o adjetivo piiblico, como se a experiencia dos individuos, transposta a porta de casa, deixasse de ser perti- nente para a fruigéo disso que se chama seguranca. Ela ¢ considerada publica porque afeta a coletividade, constituin do-se em um bem universal. O adjetivo publico, aqui, nao se op6e ao significado de privado enquanto sinénimo de domés tico, mas a privado enquanto exclusive, isto ¢, corresponden- do & qualidade daquilo que ndo se compartilha. [Apesar das virtudes do aposto ~ estendendo o campo de observagao das préticas qualificiveis como violentas, deslo- ceando nosso foco para 0 mundo doméstico e até para a esfe- +a invisivel, porém densa, das relagGes intersubjetivas esse movimento de ampliagdo traz.consigo alguns proble- ‘mas. A comegar pelo fato de que talvez nem toda forma de violencia seja negativa e se oponha & seguranca. Considere, por exemplo, uma luta de boxe ou um campeonato de artes marciais, rigidamente disciplinados por regras ¢ limites. Se gundo a visio de seus mestres, as artes marciais cumpririam papel educativo, Eles fazem questo de enfatizar a diferenca entre a violéncia e a forga no esporte, onde é usada com téc nica e limitada por normas severas, ‘Trata-se de um tpico interessante para reflexio. Basta ‘enuncié-lo para mostrar que expandir 0 campo semantico da vvioléncia tem vantagens e desvantagens. Nem sempre seria adequado fazé-lo. Hé argument eriticos que merecem aten- «io e encontram boas bases ne filosofia,na psicandlise e nas iéncias sociais. Outro complicedor proviria do olhar antropo- dgico sobre a categoria violencia, Em diferentes culturas, o que denominamos violéncia — palavra que como vimos é po: lissémica em nossa prépria cultara — se divide e se ramifica, se refrata em miltiplos sentidos, vinculados a cosmalogias, crengas e valores 05 mais diversos. O mesmo vale para as ca- tegorias medo, seguranca, piblico, privado, forca, autoridade, poder, liberdade, obediéncia, coercio, direito, dever, indivi dualidade ete. E razodvel — ainda que incerto, em vistude da variagio de situacées entre culuras diferentes e no interior dda mesma cultura — definir ‘violéncia negativa” como a im- posi, por a¢do ou omissio, de sofrimento evitavel ao outro, provocando-Ihe danos (fisicos ou psicolégicos) ou ferindo seus direitos (nesse caso, se 0 contexto social for regido pelo prine(pio da equidade e pelo Estado Democratico de Direito).. ‘Uma consequéncia do reconhecimento da diversidade cul- tural é a necessidade de restringir essas reflexdes as socieda- des com Estado, Essa restrgio remete a problemética da se- {guranca pblica a0 Estado, entendido como o aparato institu- cional que detém o monopélio da violéncia legitima, Eis ai ‘mais uma acepelo postiva da violéncia, nesse caso definida como o emprego potencial dos meios de coergo (armas, pol cia, forga organizada) a servigo de objetivos aprovados pela sociedade, porque conformes as determinagbes legais, sendo 2 legislagao fruto da vontade popular, nos terms instituldos democraticamente pelo Estado Democrético de Direito. Em coutras palavras: a violéncia seria legitima quando empregada pelo Estado para proteger direitos e liberdades, evitando, por tanto, a violéneia ilegitima. Também seria legitima aquela adotada por um individuo para defender-se da violencia ilegi tia, Em todos 0s casos, a ideia de proporcionalidade cumpre ‘um papel central, uma vez que nio se justficaria fazer a ou- ‘cem um mal maior do que aquele que se procura evitar, em sendo possivelcalibrar a reagio defensiva, Mas ndo percamos o fio da meada. A segunda resposta —seguranga piblica & a auséncia de violéncia — também & insuficiente, Por qué? Simples: se a expresso “seguranca paiblica” se restringir « descrever sociedades em que a vio Jencia esteja ausente, vai ter pouco uso. Talvez fosse melhor aposenté-la endo perder mais tempo com ela, Ha gradacées € mediagdes da maior importéncia, ¢ essas dferengas gra- uais ndo so pouca coisa. A inviabilidade de prevenirmos inteiramente a violéncia nao significa que no haja grada- Ges de imensa relevancia para a sociedace. Seo “tudo ou nada” ndo se aplica (ausércia de viokzncta ou guerra de todos contra todos), uma terceiraresposta pode sur. sit, inspirada pela necessidade de busear slgum ponto inter mediério de equilirio talver um certo padtio ou alguma me- dida que fossem razodveis, Alguém talvez se sentsse disposto a propor a hipétese de que certa média de atos geradores de inseguranga seria aceitavel, para sociedades de determinado Porte, com certas caracteristicas. Quem sabe, partindo da ex peritncia real de sociedades existentes, que sejam avaliadas pelo senso comum internacional como razoavelmente segu ras? Por exemplo, os paises ndrdicos europeus, de tradicéo social-democrata, que apresentam ao mesmo tempo baixas taxas de violencia (adotando-se uma interpretagio frouxa da palavra) e os melhores indicadores mundiais relativos a des- gualdade, educagao, qualidade de vida, e acesso a bens e ser- vigos, em regimes democriticos, Nao seria despropositado to- mar esses paises como referéncia e fixar um patamar para definir com mais firmeza e substincia o que seria seguranga publica. Na medida em que as taxas se afastassem do pata- ‘mar, negativamente, uma sociedade seria mais insegura. Apro- ximando-se da referéncia, tornar-se-ia mais segura Nenhum absurdo nessa proposta. Entretanto, sua utiidade também seria questionavel, Digamos que um pafs ou uma ci- dade reduza a metade as préticas por ela mesma classificadas como inaceitavelmente violentas. Digamos também que essa diminuicdo dos casos intolerdveis de violencia seja perceptivel € se sustente ao longo de um tempo razodvel. E provavel que «a populagao beneficiada por esse declinio da violencia se sinta mais segura e avalie positivamente a seguranga em sua cida- de, ou pats. Ainda que o patamar, isto é, 0 mimero de casos, continue elevadissimo, em termos absolutos, A comparagio que realmente Ihe importa, aquela que vai sensibilizd-la, € a que se estabelece com sua prépria experiéncia anterior, € néo com paises ou cidades distantes ou com taxas, mimeros e célculos abstratos. O mesmo vale na direcio oposta Se a populacao valoriza a comparacdo endégena (consigo mesma), nao o faz por ignordncia ou falta de cultura socio. sgica, mas porque ¢ 0 mais relevante para sua vida, Ndo é 8 toa ue 0s formuladores de politica publicas optam pelo mesmo vies. Afinal, se Ihes cabe elaborar politicas ¢ orientar ages que reduzam a violéncia, de que Ihes servem os ntimeros esla- vos ou patamares artificialmente concebidos por estudiosos preocupados com a definicéo do conceito de seguranca pibli- 26 ca? Os dados pertinentes sao 05 que descrevem as dindmicas ‘em curso na realidade que Ihes compete transformar. Os ni- ‘meros importantes referem-se a0s anos anteriores e a0 pre- sente, So essas as referéncias que fazem sentico para técni- cos, governantes e profissionais que atuem na érea, Tanto quanto para a populagao. Sendo assim, uma boa dose de rela- tividade passa a perturbar as definicées gerais e abstratas, ‘A quarta resposta é também insuficiente: seguranca pui- blica € a propria ordem social, desde que seja conforme as determinacées legais — “o império da lei e da ordem”. O pro: bleme dessa hipétese esta na reificagao da ordem, ou seja, em traté-la como se fosse uma coisa, um objeto, uma subs- tancia, que existe por si mesma, tem permanéncia e é inde- pendente da vontade de quem a compde e a observa. Pois no existe tal coisa, O que h4, quando se declara que a ordem existe, sdo constelagées de individuos interagindo de modo dinamico, segundo certo padréo, quer dizer, confirmando de- terminadas expectativas, derivadas da observacdo do passa- do. A confirmagao das expectativas, isto 6, a reprodugo de certo padrao, néo garante a continuidade desse processo de reprodugdo, ainda que funcione como um predicor poderoso. Um padtro de interagies dindmicas ¢ 0 modelo que se pode deserever com base no exame da experiéncia pregressa. Um flagrante desse conjunto de interagées dinamicas é apenas uum flagrante, néo a fotografia de uma ordem permanente, cuja durabilidade se assemelhe a ideia que fazemos de um objeto fisico. Bastaria que os trabalhadores interrompessem suas atividades para que a ordem entrasse em calapso. Aoordem é, na verdade, expectativa de ordem. Ela é uma prospecgio. E funciona como uma profecia que se autocum- pre: na medida em que todos esperam que os demais repitam sua rotina, a tendéncia € que cada um busque fazé-o, tornan. do real a expectativa generalizada, até porque cruzar os bra- 08 e ficar em casa, no contexto em que os outros trabalham ‘ou desempenham suas atividades regulares, custaria caro nos 89 mais diferentes sentidos, inclusive econdmico, Se a expecta vva € de desordem ou se as expectativas predominantes so instaveis, a ordem ja foi rompida e a inseguranga reina, Aqui, é preciso culdado: inseguranca pode provir de aciden. tes naturais, crises econdmicas, dramas familiares, epidemias, sendo em esséncia uma experiéncia miiltipla e polissémica, Por consequéncia, seguranca piiblica engloba, potencialmen- te, essa pluralidade de esferas da vida coletiva, Entretanto, para fins de delimitagdo analitica e divisio do trabalho entre as instituigbes do Estado, convém circunscrever nosso obje to, restringindo-o ao plano das experiéncias relacionadas & Paz ou ao uso da forca, ao respeito a regras socialmente san- cionadas ou & sua ruptura, sobretudo quando esto em risco © corpo, o5 bens € a identidade moral de individuos, e a ne- cessidade de intervencdo legitima da coergio do Estado, seja preventiva, seja repressiva, seja reparadora — auxiliando a Justiga criminal Revendo 0 que aprendemos nessa camintada, chegamos as seguintes conclusdes: 1) seguranga puiblice nao se reduz 8 existéncia ou inexisténcia de crimes; 2) ndo se esgota na presenga out auséncia de fatos visiveis e quantifiedveis, em- bora diga respeito a relagio com a experiércia emocional, fisica e/ou simbélica da violencia intolersvel; 3) incorpora a dimensio subjetiva, como o medo, que é sempre intersubje- ‘iva, porque experimentada em sociedade; 4) ¢ indissociével de algumas dimensées politicas fundamentais, como demo- cracia ou ditadura, e da regéncia de formas locais (ou capila res e domésticas) de poder, tirénicas ou libertérias; 5) diz respeito a toda a coletividade; 6) seu aleance envolve as es- feras piblica ¢ privada; 7) ndo pode ser definida por um critério fixo e permanente, nem mensurada de forma abstra- ta. artificial; 8) depende de contextos especticos e de histé- rias singulares — nesse sentido, é social, histérica e cultu- ralmente relativa, ainda que essa relatividade seja limitada pelos balizamentos substantivos referidos acima (como, en- 90 tre outros, a pratica de violéncia inaceitével, o regime politi- co € as formas de poder local ou capilar) ‘Aleangamos, entlo, uma definigdo sintética — isto é, ca- paz de reunir todos os requisitos acima listados — e bastan: te simples: seguranga piblica é a estabilizacdo universaliza- da, no ambito de uma sociedade em que vigora 0 Estado Democritico de Direito, de expectativas positivas a respeito das interagées sociais — ou da sociabilidade, em todas as esferas da experiéncia individual. O adjetivo “positivo” sina. liza a inexisténcia do medo e da violencia (em seus significa- dos negativos), e a presenca da confianga, em ambiente de liberdade. Corresponde, portanto, & fruigdo dos direitos constitucionais, em particular daqueles que se relacionam mais imediatamente com a incolumidade fisica e moral, e & expectativa de sua continuidade ou extensio no tempo, re- duzindo-se a incerteza e a imprevisibilidade, o medo ¢ a des confianga. E assim concorrendo para que circulos virtuosos substituam circulos viciosos — dindmicas negativas que se retroalimentam, estimuladas por narrativas dominadas pelo medo e pela demonizacéo do outro. Em vez de atitudes de- fensivas de quem espera agressoes e as acaba precipitando, no ambiente seguro predominam posturas desarmadas e coo perativas, que estimulam a difusdo de respostas e expectati ‘vas socidveis e produtivas Expectativas envolvem percepgdes sobre o presente, ali- mentadas pot narrativas sobre o pasado, ¢ prefiguragoes do futuro. Trata-se, portanto, de fendmeno plural, por excelén- cia, frequentemente contraditério, subordinado a distintas mediagGes. Nesse contexto, a midia opera como importante elo na cadeia das desiguais produgGes narrativas, concorren- ddo para a formagio diferenciada de expectativas. Essa multipl cidade dificilmente é redutivel a uma tendéncia hegeménica, nas sociedades de massa, 0 que torna a seguranca piiblica também sujeita a avaliagSes miltiplas e converte os esforgos dirigidos a promové-la em simples ages orientadas para a a redugdo de danos © para a geracao capilar de experiéneias narrativas positivas. A estabilizacio referida no conceito de seguranga publica constitui um proceso e, como vimos, é sempre nao mais do {que uma tendéncia — que ndo se realiza como um fendémeno objetivo localizado no tempo e no espago, e que é vivenciado diferentemente por distintos grupos ¢ individuos —, para a qual concorrem diferentes fatores, entre os quais as institui- Ges do Estado cuja funcio constitucional ¢ oferecer e garan- tir a fruigdo desse bem eoletivo, Por isso, entende-se que o papel das policias, assim como de todas as insticuigdes do campo da seguranca publica, 0 de atuar, se preciso com o uso comedido e proporcional da forca, para prevenir desrespeito aos direitos e as liberdades, promovendo a estabilizagao generalizada de expectativas po- sitivas, inclusive relativamente a seu préprio comportamento, que nao pode trair sua missio constitucional, eminentemente democratica, protetore da cidadania, da vida ¢ da dignidade humana. 0 acesso a Justiga é componente fundamental do proceso de construcao interativa, intersubjetiva e multidi- mensional — isto é, envolvenco Estado e sociedade — da se- guranga piblica, porque esta apenas subsiste caso faga parte das expectativas de individuos e grupos a suposigo de que eventuais ataques aos direitos — sobretudo os mais sensiveis € diretamente ligados & vida, integridade fisica e moral, & iberdade e & propriedade dos bens mais préximos — serio teparados tempestivamente e com equidade. Qual o impacto prético desse conceito de seguranca pi- blica? Se o levarmos a sério, as politicas responsaveis por promovésla teriam de ser multidimensionais ou interseto- riais, isto é, ndo se restringiriam a ages policiais, e estas, por sua vez, respeitariam a vida, a equidade, os dircitos e as liberdades, rejeitando atitudes que ampliassem o medo ea iniquidade no acesso & Justia. 2 SUGESTOES DE LEITURA KANT OE LIMA, Robert. A pols da cidade do Rio de Janeiro: seus lems ‘ paradoxos. Rio d> Janeiro: Forense, 1995 _— Policia ¢ sociedade, Série publicada pela Edusp, organizada pelo Név, ‘OLIM, Marcos. sindromeda rainha vermoelha:policiamento eseguranga ‘blica no século xX Ro de Janeico: Zahar, 2006 sENTO-S€, Joo Trajano (Org). Prevengo da voléncia. O papel das cidades, Rio de Janeiro: Civilizaio Braslere, 2005, SOARES, Luis Eduardo, Legiidadeliberedra, Riv de Jaleo: Lumen-Jurs, 2006, Mes casaco de genera: $00 dias no Front da seguranga publica do Rio Ge Janeiro. Séo Paslo: Sompanhia das Letras, 2000. va

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