You are on page 1of 10
Colegio Espttice Cxtico Conseho editorial Alfredo Bort Antonio Candido Augusto Massi Davi Arrigucci J. Flora Sussekind GGilds de Mello e Souza Roberco Schwarz Erich Auerbach ENSAIOS DE LITERATURA OCIDENTAL Filologia e critica Orgeniagito Davi Argue fe Samuel Tite J Tradusdo Sanauel Titan J Jest Merc Marian de Macedo CM) Livraria CAI duas Cidades editoralll34 Enssios oe liteoture acldental prcendido pelos homens, A evocacio nao é apenas analitica; tem de ser sintécica, em de ser comprecnsio de cada estigio histrico como um todo integral, e de seu espirivo (seu Geist, como ditiamy ‘05 romanticos alemaes), como um espérito que penetra todas as atividades e expresses humanas do periodo em questo. Com esta teoria, Vico criou o principio da compreensio histstica,to- talmente desconhecido para seus contemporineos: os rominxi- cos conheciam e praticavam esse principio, mas nunca encontra- ram uma base epistemoldgica poderosa e sugestiva para ele, Queto sublinhar, por fim, sua concepsao particular do que seja a perspectiva histOrica: ela pode ser melhor compreendida por sua interpretagdo da natureza humana, Contra codos 0s testi- cos de sua época, que acreditavam numa narureza humana abso- luca e imutivel, oposta a variedade e As muclangas da histéria, Vico criow e afirmou apaixonadamente conceito da natureza histérica dos homens, Identificava historia humana e natureca humana, concebia a natureza humana como fungio da histéria. HI muitas passagens na Scienza nuovat em que a palavra natura poderia ser mais bem cradurida por “desenvolvimento histérico” ‘ou “estigio do desenvolvimento histérico”. A Divina Providén- cia faz a natuteza humana mudar de periodo a periodo, eem cada perfodo as instituigGes esto em pleno acordo com a natureza hu- mana coetanea; a distingao entre natureza humana ¢ histéria humana desaparece; como Vico afirma, a histéria humana é um estado platdnico permanente, Isto parece soar irdnico num ho- mem que nao acreditava no progresso, mas num movimento ciclico da historia, No entanto, Vico nio estava sendo irénicor a afirmagio era sincera, * Bor exemple, exponen? 246, 346, 347 da edigdo Nicolini em dois vol mes (Bari, 1928), 356 Filologia da literatura mundial “Nonna pas inventionis est anes quid quer.” Santo Agostinho, Questines in Heprateuchan, Proto J tempo de nos perguntarmos sobre qual significado pode conservar o termo “literatura mundial” (Weltliteratur), em seu sentido goethiano, quando referido ao presente ¢ a0 futuro pro- vivel. Nossa Tetra, que constitui todo o universo da literatura mundial, corna-se a cada dia menor € mais pobre em diversida- de, Ora, a literatura mundial no se refere simplesmente aos cra 08 comuns da humanidade, e sim a esta enquanto fecundagio reciproca de elementos diversos. Seu pressuposto € a felix culpa da dispersio do géneto humano numa variedade de culturas. E ‘© que acontece hoje, o que se esté preparando? Por mil rexdes, conhecidas por todos, a vida humana uniformiza-se em todo 0 planeta, © processo de nivelamento, originério da Europa, es- tende-se cada vez mais ¢ soterra todas as tradigdes locais. E cer- to que, por toda parte, 0 sentimento nacional é mais Forte € mais barulhento do que nunca, mas em toda parte ele coma a mesma ‘o¢d0, isto é, rumo &s modernas formas de vida; ¢ j4é claro para © observadar imparcial que os fundamentos intrinsecos da exis- téncia nacional estio se dissolvendo. As culturas europeias ou fundadas por europeus, acostumadas a um longo e frutifero in- rercimbio entre si, e além disso apoiadas pela consciéncia de seu priprio valor © modernidade, so as que melhor preserva a 357 Ensaios de iteratuca ocidenta! autonomia, ainda que eambém aqui o processo de nivelamento progrida muito mais rapidamence do que antes. Mas a estandar- dizagao — seja conforme 0 modelo europeu-americano, seja con- forme o russo-bolchevista — espalha-se sobre eudas e, nao im- porta qui diferentes sejam os modelos, suas diferencas sio rela- tivamente pequenas se os compararmos com os atigos substratos — por exemplo, com as eradigi mica, hindu ou chinesa, Se ahumanidade conseguir escaparilesa a0s abalos que ocasiona um processo de concentragao tio violento, tio vigorosamente répi- do e to mal preparado, entio reremos que nos acostumar com aidéia de que, numa Terra uniformemence organizada, sobre- viverd uma s6 cultura literéia, ¢ que dentro em breve permane- cerio vivas somente umas poucas linguas literérias (¢talvez logo apenas uma), E assim a nogao de literatura mundial seria simul- taneamente realizada e destruida. Se nao me engano, essa situagdo é, por seu carter inelutd- vel e pela pressio dos movimentos de massa, bem pouco goe- thiana. Goethe preferia afastartais pensamentos; por vezes ocor- riamcthe idéias que apontavam nessa direcio, mas néo mais do que isso, pois ele ndo poderia imaginar que a coisa que lhe era mais desagradavel pudesse realizar-se de modo tio répido e ines- peradamente radical. Como foi breve a época a que cle perten- ceu ea que os mais velhos centre nds ainda puderam assistir em sua fase final! Passaram-se aproximadamente cinco séculos des- de que as literacuras nacionais européias conquistaram conscién- cia de si e preeminéncia sobre o latim, ¢ pouco mais de dois sé culos desde o despertar de uma mentalidade histérico-perspecti vistica, que permitiu a criacZo de um conceito como o de litera ura mundial. O préprio Goethe, morto hi 120 anos [1832], contribuiu decisivamente, com seus esforgos ¢ seu estimulo, para 2 formagio dessa mentalidade histérico-perspectivistica ¢ para a pesquisa filolégica subseqtiente. E jd podemos ver o surgimento 388 Filolagia da fiteratura mundial de um mundo onde essa mentalidade nao poderé mais ter gran- de significado pritico. ‘A época do humanismo goethiano foi breve, mas af reali- zou-se ou deu-se inicio a muita coisa ainda hoje em curso, e mes- ‘mo em expansio ¢ ramificagio crescentes. No fim de sua vida, Goeche sinha & sua disposicio um macerialliterdtio mundial mui- 10 mais rico em comparagio 20 que se conhecia 3 época de seu nascimento — e muito menor do que nosso pattiménio atual. Esse patriménio, nés 0 devemos ao impulso do humanismo his- térico daquela epoca; € nfo se trata aqui apenas da descoberta de novos materiais ou do desenvolvimento de métodos de pesqui- sa, mas, além disso, de sua difusio e utilizagio com vistas a uma histéria imanente da humanidade, a uma nogio unitéria do ho- ‘mem em meio a coda sua mulriplicidade. Foi esse, desde Vico Herder, o verdadeito objetivo da filologia, e foi esse objetivo que Ihe conferiu seu lugar de lideranca: ela atraiu. para si a historia das artes, a histria religiosa, juridica ¢ politica, associando-se a clas a partir de principios sistemicicos ¢ do estabelecimento de metas comuns. Nao ¢ preciso evocar 0s resultados obridos, tan- to no campo da pesquisa como no da sintese. Pode haver algum sentido em prosseguir nessa atividade, sob condigdes ¢ perspectivas completamente alteradas? O sim- ples fato de que ainda seja praticada, € mesmo que continue a se expandir, nio diz muita coisa, Tudo o que se transforma em habito ow instituigao ¢ capaz de persistir por muito tempo, até porque mesmo aqueles individuos que se dao conta de uma subs- tancialalteragio dos pressupostos gerais da vidae a compreendem em scu significado completo nao esto necessariamente prontos ou em condigies de extrair as conseqtiéncias praticas dessa sua consciéncia, Mas, rendo em mente a paixio que, agora como no passado, leva um grupo pequeno mas seleto de jovens & ativida- de filolégica, podemos conceber a esperanga de que seu instinto 58 Ensaios de literatura ecidontal no os tenha trafdo, de que essa atividade ainda hoje tenha sen vido e fucuo. O cstudo da realidade mundial por meio de métodos cien- tificos preenche ¢ domina nossas vidas; por assim dizer, € este o ‘nosso mito, uma ver que nio temos nenhum outro dotado de valor geral. Dente os aspectos da realidade, a Historia é aquele que nos atinge mais de perto, que nos interessa mais profunda- mente ¢ que com mais eficfcia nos leva a uma consciéncia de nds ‘mesmos. Pois ¢ ela o tinico objeto em que os homens se apre- sentam a nds por inceiro, entendendo-se por objeto da Historia no apenas 0 passado, mas o progresso dos acontecimentos em geral,incluindo-se assim o presente vivide. A histéria imanente dos iltimos milénios, da qual se ocupa a filologia enquanto di

You might also like