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Hermenéutica e Ciéncias Humanas* uando pensamos na_herme- néutica, corremos _ simulta- neamente varios riscos. Em primeiro lugar, o risco mais 6bvio de tomar por singular e univoco © que é miltiplo e plurfvoco: sao v: rias e opostas, teoricamente, as tradi- des hermenéuticas, isto ¢, as vertentes reflexivas que lidam diretamente com a problematica da interpretagdo. Pro- blematica cujas raizes, alids, remontam & teologia e a filosofia, e cujo espaco de referéncia primordial € a filosofia, ainda que o direito e a estética consti- tuam campos também centrais. Contemporaneamente, e apenas a ti- tulo de ilustrago, poderfamos mencio- nar o choque entre as concepges de Emilio Betti e Hans-Georg Gadamer para demonstrar a pluralidade de pon- tos de vista, que se estendem da apos- ta na possibilidade de plena recupe- ragéo de um suposto sentido original abjetivo a uma perspectiva muito pré- Luiz Eduardo Soares A Italo Moriconi Jr., Otavio G. Velho e Roberto Cardoso de Oliveira xima do que se paderia denominar nao sem equivocos, relativismo, Em segun- do lugar, corremos 0 risco de reificar o problema da interpretagao e as teorias a respeito. De um modo geral, é licito admitir a presenga de teorias herme- néuticas em obras nao dedicadas ex- pressamente ao tema. Afinal, assim como nossa comum humanidade reside na faculdade de disponibilidade para a interpretacfo (somos seres capazes de produzir e captar sentido), as obras que lidam com o social dificilmente teriam como abster-se de explorar 0 universo das significagdes e, conse- qiientemente, de propor, ainda que de modo implicito, um conjunto de con- cepgdes a respeito de seu prdprio pro- cesso de exploragiio. Nao obstante, 0 reconhecimento desta — digamos as- sim — porosidade das obras, apesar de necessdrio, nos remete ao terceiro risco: a diluigdéo do problema herme- néutico. Claro, se ele esté em todo lugar, se emerge confundido com * Agracleso & FINEP, a Fulbright e, muito especialmente, a ftalo Moriconi Jr., Luiz Costa Lima, Otavio G. Velho, Roberto Cardoso de Oliveira, Ruben Cesar Fer- mandes ¢ aos meus ex-alunos do mestrado da UNICAMP, Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, m, 1, 1988, PB. 100-142. HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS tudo, nao esté, de fato, em lugar al- gum e ndo tem nenhuma relevancia. Gostaria que essas ressalvas servis- sem como sinal de alerta contra as vulgarizacdes_simplificadoras, tipicas de todo modismo. Especialmente nos Estados Unidos, ¢ muito particular- mente na antropologia, a hermenéuti- ca tem-se prestado a toda forma de diluicao intelectual, da ideologizacao do didlogo @ capitulagao tedrica. Se encontramos sempre a interpre- tagio no cotidiano e nos livros, para que serve a reflexdo hermenéutica? Certamente nfo para gerar um méto- do capaz de orientar as praticas inter- pretativas, na vida cotidiana ou na academia. Pelo menos se nos situar- mos, como pretendemos, neste ensaio, préximos a perspectiva de Hans-Georg Gadamer, A reflexio hermenéutica pode, isto sim, nos ajudar a entender melhor o que esté em jogo nos pro- cessos interpretativos, no movimento da compreensao. Mais do que isso, e a partir pode nos apoiar na ten- tativa de lidar com os préprios limi- tes das assim chamadas ciéncias hu- manas. Pelo menos se os definirmos nos termos propostos pelo tradicional debate entre iluminismo e romantis- mo, cujos enfoques antagénicos cor- respondem, de um lado, & énfase na universalidade da lei acessivel & raziio e, de outro, a énfase no pertencimento particularizante que submete a razéo a sua légica singularizante. E daf que devemos partir, sendo nosso tema, afinal, o interesse da her- menéutica para as ciéncias humanas. As ciéncias do espitito ou humanas — assim definidas por oposigao as ciéncias ditas naturais — foram sem- pre marcadas por’uma tenséo que pa- rece menos um obstdculo do que um trago constitutivo de nossa tradigio, como nos ensina Octavio Paz. Tensio 101 derivada do atrito aparentemente in- superdvel entre a busca de leis que estruturam a vida humana, realizada através do exercicio da razaio — ava- tar do universal, a que se reduz em esséncia todo individuo —, e o reco- nhecimento da relatividade das razées, acionadas na pratica singularizante de individualidade radicadas em horizon- tes particulares. Choque entre dois in- dividualismos, se quisermos glosar Simmel: aquele tipico do século XVIII, no qual 0 individuo era per- cebido como a expressio varidvel de uma esséncia comum e universal, a razGo; e aquele préprio século XIX, para o qual individualidade era sind- nimo de singularidade: irredutivel, de diferenga (Simmel, 1950). A linhagem predominantemente ins- pirada em concepgdes iluministas * restringe 0 ambito de pertinéncia de seu foco heuristico aos fendmenos in- dividuais passfveis de subsungio pelo social ou as variagSes do objeto pas- siveis de subsungao pelo que, nele, seria permanente. A variacio erratica, sem compromissos com a regularida- de de estruturas, ou o individual sin- gular, irredutfvel a padrdes universali- zantes, escapariam a possibilidade de jratamento conceptual ou ao dmbito circunscrito pelo poder de abrangén- cia do conhecimento cientifico. O re- sultado é que o centro de interesse e atengio se desloca dos agentes, das agdes, para os paradigmas recorrentes que os explicam ou, em outras pala- yras, da virtd para a fortuna (neste caso desencantada, desmistificada, lai- cizada, supGe-se). Este € um bias caro aos estruturalismos e funcionalismos que marcaram tao profundamente as ciéncias humanas. No pélo oposto encontramos os es- forgos que apontam na diregao do re- conhecimento da pertinéncia, para todo empreendimento racional e para 102 o saber sobre 0 homem e o social, es- pecialmente, das experiéncias intran- sitivas, dos fenémenos incomensurd- veis, das formas particulares de vida, dos universos singulares-valorativos, culturais —, das individualidades (mesmo que coletivas) irredutiveis em suas especificidades, das diferencas sincrénicas e diacrOnicas (estas gera- das pela imersfo tragica, conforme ve- remos, na historicidade). A fortuna pode ser aqui reencantada, e o dié- logo com o dominio mitolégico nao tem por forga que set tao marcada- mente assimétrico, ainda que o prego seja a neutralizagfio parcial das fron- teiras entre as disciplinas — muito es- pecialmente entre as chamadas cienti- ficas © o pensamento ordinério, ou seja, as razOes comuns nas quais jo- gamos nosso jogo de linguagem, onde, afinal, emerge o sentido. Aten- cdo e interesses podem aqui se voltar para a agéncia humana e a agdo, em seu momento de indeterminacéo, em sua dimenséo virtual de autonomia, entendida em termos efetivamente ra- dicais. De unidade, estabilidade, per- manéncia, passamos 4 énfase inversa (0 compromisso agonistico, polemica- mente dialégico, entre as tradigdes deve ser mais uma vez sublinhado) na diferenca irredutivel, na inconstancia da histéria, entendida em sua tragi- cidade, na aio dotada virtualmente de autonomia radical (dominio da Poiesis e da phronesis, da imaginagao produtiva e do juizo prético, do po- tencial irruptivo e criador da agéncia humana, correspondente & limitagao do poder de antecipacao e controle, isto é, equivalente ao reconhecimento da debilidade relativa da razao e da precariedade de toda ordem insti- tuida). Esta segunda tradiciio, que denomi- namos aproximativamente e com as cautelas assinaladas neo-romintica, se ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 subdivide, segundo nosso préprio pris- ma interpretativo, em duas vertentes principais: uma delas retoma Hei- degger A luz de Nietzsche; a outra filia-se A linhagem heideggeriana, mas a submete ao desafio que lhe dirige, do passado, o pensamento hegeliano. A primeira hesita entre o elogio do sa- ber fragmentério correspondente a um real parcializado, que resiste as totali- zagdes impostas pela unidade do con- ceito, ¢ um “neo-positivismo” critico (vide as obras mais recentes de, por exemplo, Deleuze, Guattari, Paul Vey- ne, Lyotard e Baudrillard). A segunda — representada principalmente pela obra de Hans-Georg Gadamer — pro- cura apropriar-se do legado hermenéu- tico e busca situar-se num horizonte marcado pelo primado da categoria re- lativizadora pertencimento, pelo foco na diferenga e no particular, sem abdi- car (eis a presenga de Hegel e de um Aristéteies reinterpretado) da totaliza~ 40 operada pelo conceito, mesmo que se trate, agora, apenas do exercfcio implicado por um movimento muito peculiar da razo, no qual a imagi- nagdo produtiva desempenha um papel basico, e do qual resulta uma dialé- tica estranhamente t6pica, fragmen- téria, em que universal e particular se co-determinam, Cumpre explicar esta formulagéo enigmatica e justificar 0 quadro pro- posto, para demonstrar, enfim, o inte- resse especial que a vertente herme- néutica gadameriana da tradicéo neo- romantica deve merecer. Tomemos como ponto de partida a discussio de alguns aspectos do pensamento de Dilthey. Parece ser este o momento em que se encontram iluminismo e ro- mantismo ante o esforco de delimita- a0 da especificidade e, portanto, da identidade das ciéncias humanas. Uma esquina feliz e particularmente con- trovertida da historia intelectual recen- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS te, étima para a conversa que se inicia. O tratamento interpretativo das tra- digdes focalizadas dependeré, como ocorre em toda interpretacdo, de qua- tro ingredientes fundamentais: das preconcepgées formadoras do horizon- te do intérprete; da positividade dos “objetos” visados; de recursos analf- ticos; da imaginacio produtiva. Por este tiltimo ingrediente s6 os deuses podem zelar. O segundo sera posto, como desafio, pelas tradigdes interpre- tadas. O terceiro expressa nosso ne- cessdrio compromisso com as ciéncias humanas, sobre as quais pretendemos esbocar reflexdes, e a partir das quais, afinal, pensamos. Mas as precon- cepgdes que, por definicdo, jamais se tornarfo, todas, concepgGes conscien- tes, exigem um esforco de garimpa- gem do préprio solo, até o limite, re- lativamente arbitrério, passivel de ser tido como razodvel. Sem salientar o sonho positivista de eliminar comple- tamente os preconceitos, cabe a0 au- tor de um empreendimento hermenét tico estender ao maximo (indefinivel ex ante) a consciéncia critica com a qual acolheré o “objeto”, de modo a compreender — explicitando as con- seqiiéncias para cada caso — 0 caré- ter parcial de toda compreensio, que é sempre uma fusao de horizontes. Nés nos situamos, como veremos, na tradigao da didspora, marcada pela contraposi¢go insuperdvel (e pelas ar- ticulagdes) de trés tradicdes. Insupe- ravel porque até hoje pensamos, nos Ambitos das trés tradigdes, com cate- gorias comuns, ainda que apropriadas diferentemente, tais como: unidade e multiplicidade; permanéncia e incons- tancia; universalidade e particularida- de; identidade e diferenga; sujeito e objeto; pertencimento e distancia; parte e todo etc. E deste enclave que podemos falar, compreender-nos e¢ 103 compreender os outros, as outras lin- guagens, os outros valores e as outras culturas. Por isso, parece indispensé- vel, para eventuais e posteriores mer- gulhos de mais félego nas tradicGes em que se poem as ciéncias humanas, uma reflexao (antropoldgica, dir-se-ia) sobre nés mesmos e o mundo (fraturado e plurivoco) da cultura a que pertence- mos; um exercicio hermenéutico para, situando-nos, situar a tradigéo herme- néutica, Resta abrirmo-nos para a ver- tigem deste jogo e a ameaca de seus riscos — que sao tantos. 1. PRODUTIVIDADE, CONTINGENCIA E O ESTATUTO DO SINGULAR Um lance de dados jamais aboliré o acaso Mallarmé (Haroldo de Campos) Aprendemos muito com a filosofia da vida, esbogada no quadro do idea- lismo alemao, em fins do século XIX (Dilthey, 1979). Desta fonte, alimentada por tradi- Ges associadas, nasceriam conceitos- chave para a fenomenologia de Hus- serl, como Lebenswelt (mundo da vida), inspirador do Dasein heidegge- riano (ser ai, no mundo), concepcao estratégica na leitura critica da ego- logia antipsicologista e antipositivista de Husserl, que Heidegger nos legou (Theunissen, 1984). A obra de Hus- serl representou um primeiro movi- mento filos6fico de questionamento radical da ideologia cientifica que do- minaria nosso século# A hermenéuti- ca que permitiu a Heidegger desvelar e retomar a problemética ontolégica classica, esquecida pela metaffsica ocidental, levou-o a aprofundar a cri- tica & ignorancia constitutiva da cién- cia, relativa As suas condigdes de pos- sibilidade e¢ a seus pressupostos onto- légicos, ao prego, entretanto, de um 104 afastamento progressivo da orientagao substantivista de seu mestre, Husserl. A centralidade do tempo na determi- nago do ser torna-o, na obra de Hei- degger, um projetar-se incessante, des- provido da substéncia que a negli- géncia 4 consideracio do tempo impés & filosofia husserliana (Ricoeur, 1967; Steiner, 1978; Lyotard, s/d). O ser para a morte, puro projeto e salto, que vive sua negatividade inex- tirpdvel na morada paradoxal consti- tuida pela linguagem, esté bem dis- tante da subjetividade husserliana, niicleo experimental das suspensdes e reducGes fenomenolégicas. Mas esté muito préximo da categoria vida, explorada por Dilthey, a qual identifi- céramos como uma das fontes do pen- samento fecundante de Husserl. Hei- degger volta a Dilthey e a Nietzsche, e desse encontro, em parte, se tém nutrido importantes debates contem- porfneos, por vezes aparentemente alheios &s questdes que tentaremos descrever. A solugdo proposta por Dilthey nao guarda qualquer afinidade com a postura sofistica, “desconstruti- vista” ¢ guerreira de seu contempo- raneo Nietzsche. Mas o problema re- lativo & vida, sim. A resposta, até por se pretender uma alternativa a Kant, e por se fundar em uma critica do abandono kantiano da historicidade, pode ser definida como um esforgo neokantiano, em que a problemitica herdada do grande mestre das criticas € submetida a um aggiornamento, num contexto marcado pela presenga inci- siva da temética romantico-relativista do historicismo. Quais so as condigdes de possibili- dade do conhecimento histérico sobre © ser hist6rico? — pergunta Dilthey. A radicalidade da questao s6 € com- preendida se o significado da propria ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 historicidade € adequadamente apre- endido. Histéria nfo se confunde com a realizacdo teleoldgica da razio, como em Hegel, na esteira do iluminismo. Se Real e razdo tendem a se superpor, na unidade do espirito absoluto, facul- ta-se 0 acesso seguro 4 objetividade, independentemente do pertencimento particularizante e relativizador do agente do conhecimento a comunida- des historicamente circunscritas. Nao € assim que pensa Dilthey. Razio corresponde — para Hegel e os ilumi- nistas — a realizagio mesma da es- séncia do humano, garantia da univer- salidade subjacente as particularidades. Dilthey, sem abdicar desta perspectiva francamente iluminista, como tam- pouco — e paradoxalmente — o fize- ra Herder, assume uma postura rela- tivista, sintonizada com a tese de que a esséncia do humano est em seu per- tencimento, ou seja, em sua partici- pagéo no particular (Berlin, 1982). Em outras palavras, o que define es- sencialmente o humano é sua diferen- ga. E a hist6ria, alheia 4 unidade imposta pela suposta convergéncia para um felos, representa o movimen- to produtor da dispersao, gerador de particularidades, de experiéncias t cas, de sociedades e culturas singula- res. A hist6ria € 0 processo que rea- liza a esséncia humana, entendida a moda romantica, como a ilimitada particularizagéo. Um desafio, entdo, cumpre enfrentar: como resgatar a unidade sintética que suporta a inteli- gibilidade universal, propria ao conhe- cimento yerdadeiro, quando o objeto do conhecimento sao seres, cuja natu- reza, entretanto, esté na resisténcia & subsungéo por categorias uniformi- zantes? O neokantismo de Dilthey esté no espirito de sua pergunta, que busca a definigao de categorias uniyersais. Seu HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS romantismo se expressa na atribuigéo de um cardter irredutivel & particula- ridade histérica, tanto do agente do conhecimento, quanto de seu objeto: o mundo humano, o sentido, o espiri- to (dai Geisteswissenchajt, ciéncia do espirito, oposta a4 Naturwissenchaft, ciéncia da natureza). O cruzamento — patente nos trabalhos de Dilthey — entre: iluminismo e romantismo, tor- nando problematicos o universalismo kantiano e o relatiyismo romAntico, confere & obra ¢ a seu autor uma po- sigdo estratégica e uma clarividéncia antecipatoria, relativamente aos des- dobramentos das “ciéncias histéricas” ou “‘do espirito”, até nossos dias, Sua inquietacdo ainda é a nossa, seus im- passes ainda sfio os nossos, mesmo que no possam ser nossas as suas solu- goes. A categoria vida pode agora ser me- lhor entendida. Vida é em termos ele- mentares, produtividade. A vida pro- duz, dé existéncia, faz aparecer 0 que nao era, realiza. O novo posto pela vida nfo necessariamente repde regu- laridades, atualizando leis, expondo & observagao conexdes causais explicd- veis. E tipico da vida dar & luz a di- ferenga, o singular, 0 novo em senti- do radical, o particular em sentido irredutivel. Vida €, portanto, contin- géncia, acidente, acaso. E geragao nio- governdyel ou antecipével de aconte- cimentos. A facticidade dé lugar & vi- véncia, descosturada internamente pela arbitrariedade, pelo acaso.? Somente @ posteriori podem-se imputar, aos re- talhos cadticos de vivéncia, as cone- xdes de sentido que os convertem em “experiéncia”. Idealmente, € em seu termo que a vida ganha sentido, inte- ligibilidade. A biografia, escrita por quem chega ao fim e procura com- preender seu proprio passado, repre- sentaria a culminancia do empreendi- mento intelectual yoltado para a reve- 105 lagéo do sentido, para a compre- ensao.4 Atentemos para as articulagdes en- tre os conceitos vida e sentido, media- dos pela dialética todo-parte, elabora- da por Schleiermacher. Isso porque é do fim que se pode ter uma visio de conjunto que transforme globalmente as vivéncias acumuladas em experién- cias interconectadas por uma dire¢ao, um sentido. O periodo conclusivo da vida superpde o fim da existéncia in- dividual ao telos subjacente, norte que permite a configuragao do senti- do ou que resulta apreensivel — mes- mo que nao o fosse antes — a partir, justamente, do estabelecimento do sentido, isto é, das conexdes entre os epis6dios desordenados que marcaram a biografia. As articulagdes entre os conceitos vida e sentido s6 se tornam possiveis em fungao do papel mediador desem- penhado pela dialética parte-todo, qua- dro te6rico herdado de Schleierma- cher, sobre o qual Dilthey escreveu, com grande admiragao, um estudo biogréfico. Schleiermacher tampouco pode ser apontado como o inventor da teoria em causa. Deve-se & sua obra a sistematizagao — claro que criati- va —, em proposigdes simples, dos procedimentos acionados tradicional- mente pelas exegeses biblicas e pela prética hermenéutica, de um modo geral. Por isso, € com Schleierma- cher que a questio hermenéutica transcende o campo da teologia e dos debates sobre os critérios de corre¢io das leituras dos textos sagrados para se situar no centro das preocupagdes dos estudos histéricos e culturais (Dil- they, 1979; Ricoeur, 1977). Segundo Schleiermacher, retomado por Dilthey, o sentido advém de uma relagdo entre partes e todo e pode ser rastreado através do seguinte percur- so reflexivo, compreensivo e imagina- 106 tivo: sendo o primeiro contato do intérprete com seu objeto necessaria- mente tangencial, parcial, fragmenté- rio, cabe-lhe enfrentar o enigma for- mulando uma _ interpretagdo-tentativa da parte acessivel, correspondente a uma hipétese interpretativa inicial sobre a totalidade do objeto. Esta cor- respondéncia se deve ao fato de que o sentido de cada parte é forcosamen- te relacional, posicional, dependendo da apreensao simulténea do conjunto das partes, ou seja, da totalidade, a qual, por sua vez, deriva seu sentido do sentido das partes. Portanto, a primeira hipétese interpretativa sobre uma parte requer um movimento de antecipacao-tentativa do sentido do todo, denominado por Hans-Georg Ga- damer pré-compreensio (1982). A aposta hermenéutica, ou hipétese — para usar a expressio de Hirsch (1967) — , se nutre basicamente de duas fontes: a tradigfo na qual se situa o intérprete, e que se projeta em seu salto antecipatério,5 e a imagina- ¢40, sobre cuja importancia insiste Gadamer (1977), numa linha préxima a Bachelard (1948). A tentativa inicial de captar o sen- tido de uma parte tornando-a compre- endida por (em) um todo hipotético sera testada quando a parte seguinte for examinada. E possivel ¢ provavel que este passo imponha uma revisao na atribuicdo de sentido proposta ini- cialmente para o todo. A revisao sera necesséria quando a segunda parte avaliada resistir & assimilago compre- ensiva do todohipotético antecipado. Corregées sucessivas do percurso con- duzirio a antecipagSes apoiadas em suportes parciais mais amplos, a ilu- minagGes corretivas reciprocas, entre partes e todo, até que uma formulacgao compreensiva global se revele perti- nente, razodvel, provavel, aceitavel pelos interlocutores virtuais. O para- ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 doxo da dependéncia mitua entre par- tes e todo revela a um sé tempo a ne- cessidade da démarche analitica, que submete a totalidade & decomposicio, e a insuperdvel exigéncia de ante- cipagdes (projetivo-criativa) compre- ensivas.© Quando a vida & o objeto da in- terpretagao, é preciso que se a tome em seu conjunto, para que partes € todo mutuamente se atribuam senti- do. Por isso, a autobiografia tem que ser escrita quando o ciclo vital se com- pletou. A vida representa para os indivi- duos o que a histéria representa para as sociedades. Como a vida, a histé- ria produz mais que regularidades apreensiveis por explicacOes, voltadas para o estabelecimento de leis e de nexos causais: € o reino da contin- géncia, ¢ requer um tratamento her- menéutico @ posteriori, para que os fenémenos adquiram sentido. Mas, ao contrério da existéncia individual, a vida das sociedades € intermindvel — tomando-se a existéncia individual como referéncia comparativa — e, por conseqiiéncia, também a interpretagao histérica. Nao ha como situar-se no ponto terminal e vislumbrar o con- junto, de modo a acionar o disposi- ivo dialético do desvendamento her- menéutico. Por isso mesmo, tampouco ha um telos ultimo, definitivo, objeti- vo, que corresponderia a uma direcdo evolutiva (a um sentido) caracterizé- vel pelos mesmos adjetivos. Eis o impasse que embaraca o his- toricismo e que atormentou Dilthey. A solugao cético-relativista néo pare- cia aceitével ao espirito objetivista e neo-iluminista do filésofo da Geiste- swissenchaft. Seu esforco conduziu-o a uma posicgo bastante complexa e fecunda. Defendia a viabilidade do conhecimento hist6rico-objetivo. Po- der-se-ia ler sua argumentacdo nos seguintes termos: cada ponto histé- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS rico de observac&o propicia uma vi- sio de conjunto, ainda que parcial, porque proviséria. A imputagao retros- pectiva de sentido torna-se possivel, ¢ este sentido pode ser considerado obje- tivo, respeitadas as limitagGes deter- minadas pelas condigdes de sua apre- ensdo (produgao). Adiante na hist6ria, © que era totalidade converter-se-d em parte a ser incluida num jogo dialéti- co mais abrangente. Outros sentidos redefinirfo novas partes € novo con- junto. Outro telos revelar-se-4 ma pon- ta do processo até ent&o experimenta- do pela sociedade do intérprete e por aquelas submetidas & sua investigacao. A unidade do conhecimento histérico, ainda que precdria, é garantida pela universalidade de algumas categorias que se impdem aos seres de razfio sub- metidos a historicidade: sentido, valor e propésito. Trata-se de categorias es- pecificamente referidas @ experiéncia histérica (sentido: passado; valor: presente; propésito: futuro), e que se acrescentam aquelas descritas pela fi- losofia transcendental de Kant, con- correndo para a ordenagao da ex- periéncia (no caso, da experiéncia histérica), tornando-a inteligivel, por- que congenial as préprias condicdes de inteligibilidade (histérica). Este breve panorama da filosofia da vida de Dilthey e da hermenéutica de Schleiermacher, que se combinam intimamente, nos seré muito util na elaboragéo de algumas quest6es con- tempordneas, justamente porque elas, apesar das mudangas terminoldgicas, nao ultrapassaram 0 quadro de dile- mas que descrevemos. Vida e histéria, nas margens de suas regularidades, poem o novo, a dife- renga radical, criam fendmenos sin- gulares, so fontes da particularidade irredutivel. Ambas — vida e histé- ria — portam, ainda que apenas vir- tualmente (nao interessam aqui as 107 énfases), a ruptura das leis que o acompanhamento analitico de seu des- dobramento usual permitiria formular. Ambas trazem a poténcia instabiliza- dora de expectativas, desafiando 0 co- nhecimento ¢ a razio, exigindo, desta, flexibilidade equivalente a elasticida- de representada pela contingéncia dos eventos, pela diferenga posta pelo noyo ante a rigidez conceptual dos universais. Toda ordem social sucum- be a sua intrinseca precariedade. A agéncia humana revela-se virtualmente capaz de engendrar a positividade, capaz do ato radical que pde sob o dominio do ser o que nao era. A agao humana mostra-se potencialmente ca- paz de um excedente, de mais-valia relativamente ao estabelecido, ao ja dado, ao codificado nas instituigdes, nas linguagens, nos padrdes, na cul- tura, O homem € capaz de mudangas e de negagdes. Pode mais — ainda que nao seja o sujeito consciente ¢ intencional desta poténcia, ¢ que usualmente nao atualize este poder —, pode mais que aplicar regras ¢ exe- cutar cédigos. O homem nega, muda, inventa, além de repor, repetir, obe- decer, acompanhar, mimetizar. O destino, trégico na Grécia clés- sica, era governado pela ira e pela piedade dos deuses, por suas disputas e seus caprichos. A fortuna era ardi- losa, na tradi¢ao latina, restando aos homens as chances residuais de inter- yengao ¢ controle facultadas pelas ar- tes da virtd. A histéria ¢ a vida, segundo as versOes filos6ficas que vi- nhamos tematizando, sao palcos (e fontes) da irrupgao do tragico, isto é, do acaso (Rosset, 1971). © acaso, en- tendido como o inesperado e 0 nao- controlével antecipadamente, decorre dos efeitos perversos da aco social e das possibilidades criativas da virtd, geradora de efeitos imprevistveis sobre a (e pela) coletividade. 108 A partir desta cosmologia (ou desta antropodicéia — na caréncia de uma teodicéia, quando as-luzes da razio supostamente ofuscaram o brilho de Deus), bifurcam-se as ciéncias do ho- mem: quando o interesse € 0 controle eo planejamento, busca-se maximizar a aptidao antecipatéria ou retrospecti- va. Neste caso, o foco dos estudos deve ser as conseqiiéncias inesperadas da agao humana agregada (Popper, 1978); quando o interesse é a comu- nicagdo, procura-se maximizar o po- tencial hermenéutico das dinamicas intersubjetivas. Neste caso, 0 objeto privilegiado séo as experiéncias ja vidas e os fenémenos produzidos, pas- siveis de atribuicéo (suplementar ou complementar) de sentido.” A questo do trégico, do acaso, da criatividade e da diferenga, vale repe- tir, chega a nds via filosofia da vida, produzida na Alemanha do século pas- sado. Nao por acaso nasce, no centro desta filosofia, a preocupagao com a especificidade das ciéncias humanas, cuja matéria é plastica e acidentada, surpreendente e sinuosa como a vida: éa vida social e a hist6éria. Hoje, estas caracteristicas ultrapassam © espaco da cultura, do sentido, das produgdes espirituais do homem, e se estendem até a natureza, qualificando também os fendmenos fisicos e diluindo conse- qiientemente a oposigao tao nitida en- tre os dominios das ciéncias que o século do positivismo nos legou. A énfase na contingéncia e no va- ridvel, tfpica do romantismo e do his- toricismo, encontra fortes resisténcias na tradigdo iluminista e na filosofia empirista da ciéncia, para as quais apenas 0 permanente, o invaridvel, 0 regular e necessério podem ser objeto pertinente da focalizagio cientifica. Conhecer, para o filésofo iluminista ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 e o cientista empirista, é formular em termos universais e unificados uma proposicao atinente a esséncia dos fe- némenos observados, cuja correcio possa ser verificada pela experiéncia — 0 teste da pratica substitui a or- ganicidade do sistema cartesiano co- mo controle do valor heuristico das proposicdes. A esséncia do fenémeno corresponde a lei que explica sua ne- cessidade. As diferengas de suas for- mas de manifestagdo nao séo, em si mesmas, pertinentes. S6 importam na medida em que expressarem a essén- cia permanente. A contingéncia nao merece qualquer atengao especifica. O acidental, a variagao, a particularida- de do modo de existéncia de um fe- némeno, sao, por definig&o imper nentes. Cabe ao agente do conheci- mento descobrir, sob o mutivel, o constante. Portanto, a vida como ge- radora de contingéncias e produtora de diferengas irredutiveis a uma uni- dade integradora escaparé ao trata- mento cientifico. Da vida sé se leva, para o tesouro cientifico, a regulari- dade. As variagGes servirao, na me- Thor das hipsteses, de pistas para o essencial, para 0 permanente. Serao meios para a formulagao das leis que as negariio enquanto realidades irre- dutiveis. Compreende-se 0 compromisso da perspectiva te6rica inspirada pelo inte- resse prospective com as tradigGes fi- loséficas ¢ cientificas que negligenciam a dimensdo trégica da existéncia hu- mana. Afinal, antecipagdes s6 sao possiveis se houyer processos regu- lares. Descobrir uma lei da vida so- cial € 0 momento decisivo de um pro- jeto antecipatdrio. A prospecgao de- corre da simples derivagéo de coro- lérios e de jogos combinatérios. Mes- mo os efeitos perversos podem, no limite, ser reduzidos, se pensarmos a HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS realidade histérica em termos de acdes como cumprimento — consciente ou inconsciente, voluntério ou ndo — de leis. Normalmente, o interesse pros- pectivo esté associado ao desejo de intervengdo (nas formas de planeja- mento, controle, reforma ou revo- lugdo). Os iluministas, filésofos engajados demonstravam a eficdcia da participa- cao racionalmente orientada na vida politica, comparando-a a experiéncia cientifica: o cientista, diziam, decom- poe analiticamente seu objeto em com- ponentes minimos, apreende as leis de sua organizagao e procede a sin- tese, que restitui ao objeto fragmen- tado sua unidade. A sintese é a pro- dugio pelo saber (Cassirer, 1979). Atuando na politica sob as luzes da razao, caberia ao filésofo intervir, con- correndo para a produgao de sinte- ses, isto é, para a realizag&o de resul- tados desejados e, como se vé, alcan- cdveis mediante andlises apropriadas. Um projeto prospectivo, de vocagao participante, teria, portanto, duplo motivo para se dedicar a descoberta de leis e reconfortar-se com a idéia de uma realidade social estavel, estru- turada por regularidades. E, seria acrescentar, dupla atragao pela io iluminista. Reconhecer a pos- sibilidade de intervengdo criadora da ago humana implicaria, no limite e paradoxalmente, abandonar veleidades intervencionistas mais ousadas em be- neficio de posturas mais modestas e conformes a precariedade da ordem social. Em certo sentido, pode-se dizer (eis a contraface do paradoxo) que uma boa dose de ceticismo, antes de expri- mir niilismo blasé do intelectual en- tediado, é condigéo de comprometi- mento radical com a razio e a von- 109 tade politica: na falta da seguranca Prospectiva, resta a acio que inter- vém, convertendo a precariedade em esperanga. Il. ALGUNS IMPASSES DA TRADIGAO ILU- MINISTA Para demonstrar o vivo interesse que a filosofia da vida ou as linha- gens neo-romanticas — e particular- mente a hermenéutica — guardam ainda para n6s, impGe-se chamar a atengdo para alguns pontos especial- mente débeis das orientagdes opostas, fundadas na redugao do particular & generalidade das leis. Esta debilida- de se revela mais claramente quando os objetos de investigacio sao deter- minados fenémenos da realidade so- cial. Poder-se-iam destacar alguns des- tes fenémenos a titulo de ilustragao das limitagdes do tratamento cienttfi- co, entendido nos termos com que o define a vertente neo-iluminista: movi- mentos sociais; a inconstancia ideolé- ica; a incongruéncia ideolégica e a ‘dade de processos identifica- térios; a decisdo entre paradigmas, em momentos de crise cientifica; o juizo na pratica do direito; a expe- riéncia ética; a pratica e 0 juizo es- téticos. 1. Gondicées de possibilidade da aco nao a tornam a priori necesséria Os estudos sobre movimentos so- ciais tm podido realizar com éxito duas tarefas: descrevé-los a posteriori, restabelecendo o sentido dos eventos em que se desdobraram, e inventa- riar as condicdes que os tornaram pos- siveis. Jamais os puderam explicar, isto é, jamais foram capazes de de- monstrar sua necessidade e, muito menos, de formular as leis gerais de sua eclosio. Mesmo os esforgos em espiral, que alinham supostas causas 110 mediatas e abrangentes, seguidas das progressivamente préximas, até as es- pecificas ¢ imediatas, mesmo esses nao lograram capturar o pulo do gato, © salto com que irrompem os movi- mentos do solo que Ihes garante a viabilidade. Quem leu o magnifico oitavo capi- tulo do terceiro volume de A Histd- ria da Revolugdéo Russa de Trotsky (1967: 898 a 925), “A tomada do Palacio de Inverno”, talvez nao tenha percebido que o fascinio da narrativa © conduziu inadvertidamente da des- cricdo historiogréfica minuciosa ao encadeamento dramitico, fazendo pas- sar o efeito literdério da verossimi- Ihancga pelas conexGes causais que justificariam a pretensdo explicativa do texto. O centro permanece obscuro e€ misterioso. O ponto de emergéncia da deciséo que presidiu ao inicio da insurreigéo, o salto no escuro ence- tado em meio as incertezas e ambi- giiidades, os estranhos desacertos do couragado Aurora da Liberdade (Za- ria Zvebody) frente ao Palacio de Inverno, um alvo tio macigo, as com- binagdes de suposigdes, sempre inse- guras, por vezes completamente fal- sas: tudo se deu tal como se deu, € essa tautologia € 0 maximo que se pode dizer quando a ambicao € expli- car a irrupgdo, e nao descrever as condigdes de sua possibilidade ¢ a génese ou o desenvolvimento dessas condigdes. Nao so novidades, afinal, as inti- mas relagSes entre historiografia e literatura (Hayden White, 1978). A pergunta “por que a revolta explo- diu, © quebra-quebra se desencadeou, © movimento estourou?” nao tem res- posta. O fato de as condigées esta- rem dadas é necessdrio, mas nao su- ficiente para explicar a irrupgio da ordem. Tanto que, muitas vezes, a situagdes andlogas nao cortespondem teagdes semelhantes. Isto porque ha ESTUDOS HisTORICOs — 1988/1 um fator imprevisivel e incontrolavel, além dos efeitos perversos das acdes sociais: a deciséo individual e sua repércussao sobre as demais imstin- cias individuais ou pluriindiyiduais de decisio: aceitar ou recusar percorrer um caminho possfvel, que aponta para sucessos provaveis, com chan- ces razodveis de obter adeséo dos interlocutores, é sempre uma decisao, um desafio, um processo afetivo, sim- bélico, cognitivo-reflexivo tumultuoso, esteja a decisdo subordinada ou nao a um cflculo que se queira estrita- mente racional-utilitério. Em boa me- dida tende a transcender o circuito consciente, intencional e pragmitico. Afirmando a_ insuperabilidade da questo decis6ria, nao recuperamos ingenuamente o antigo primado hu- manista da subjetividade ou da cons- ciéncia. Os mecanismos e as dinami- cas atuando no processo decisério podem perfeitamente decompor o su- jeito em pontos de subjetivacdo de cadeias mais complexas. Nao importa, por ora. Basta dei- xar clara a insuficiéncia da perspec- tiva analitica voltada ao estabelecimen- to das leis supostamente explicativas das acées sociais, de um modo geral. Por um lado, as agées criativas cons- tituem-se a si préprias, em seu pré- prio movimento, impondo-se como reais ao se projetarem a partir — mas também acima — de suas con- digdes de possibilidade, as quais nao podem ser confundidas com fatores determinantes. Por outro lado, as agdes subservientes aos padrdes vi- gentes, por serem regulares, nem por isso perdem seu compromisso intrin- seco com a autonomia de que vir- tualmente sao portadoras. Pode-se di- zer, € ébyio, que no dia-a-dia da vida social as estruturas atuam e impoem, até certo ponto, sua reproducao. Este truismo, entretanto, nao resol- ve nosso problema central: ¢ possi- HERMENEUTICA E CUENCIAS HUMANAS vel o ato nao-determinado estrutural- mente (vide a propésito, Santos, 1981). E sendo ele possivel, nao sera a propria determinagaéo uma forma especifica de exercicio da liberdade? Se isto € yerdade, perdem-se as ga- rantias de perpetuagdo da ordem so- cial. Sua fragilidade deixa de corres- ponder a residuo improvavel, para instalar-se em seu centro, como quali- dade constitutiva de seu ser (Sartre, 1982), 2. Limites da unidade do sujelto e da cultura Denominamos inconstincia “‘ideo- ldgica” um fenémeno comum, porém significativamente pouco explorado do ponto de vista da teoria social. Res- salte-se que a palavra ideologia esté sendo empregada em seu sentido mais yago e¢ teoricamente neutro: conjun- to de representagdes, constelagio de idéias sobre 9 mundo, O fendmeno a que nos referimos é 0 da hetero- geneidade de concepgdes ou valores gos quais aderem os mesmos atores sociais, em esferas diferentes de sua experiéncia cotidiana. Neste caso, as rupturas que marcam a descontinui- dade ideolégica correspondem As fron- teiras que distinguem os Ambitos da vida social: doméstico, trabalho, la- zer, religiao, politica etc. A cada do- minio podem corresponder certas idéias, certos discursos, determinadas normas e valores, certa hierarquia de relevincia na definigéio de pertinén- cia temética, os quais tenderiam a for- mar totalidades independentes, mais ou menos sistemdticas ¢ coerentes in- ternamente, mas por vezes incoeren- tes ou mesmo contraditérias entre si, ainda que se focalize a articulagao entre esferas, tecida por uma traje- téria individual. A multiplicidade, nem sempre re- dutivel a uma unidade abrangente, 1 dado que nem sempre se pode abolir a incongruéncia, representa um obstd- culo para as teorias uniformizantes geradas a partir de nogdes como ideo- logia, dominagao ideoldgica, cultura, sistema de representagdes ou visio de mundo, para dar apenas alguns exemplos. A unificagéo do mundo espiritual, valorativo-ideativo, ou su- perestrutural é problemética. Assim como problemitica é a suposig’o de um ator uno, estével, sdlido, identi- ficado com uma substincia subjetiva idiossincrdtica e delimitavel, racional, apto a rejeitar incoeréncias e contra- digdes. sujeito-igual-a-si-mesmo nas di- versas circunstancias de seu percurso cotidiano. Nem sempre se sustenta empiricamente a hipétese de uma in- teligéncia que subsuma as razdes in- dividuais tépicas, as consciéncias in- dividuais éticas especificas, gestadas em “ecossistemas” particulares. O individuo, protagonista de nossa cultura e de nossa ciéncia, unidade que suporta totalizagdes conceptuais, nao resiste ao reconhecimento da plu- ralidade das provincias de significa- ao (Schutz, 1974 a e b). Nem por isso sucumbiria a hipétese de subjetivida- des circunscritas pelas esferas da ex- periéncia social dotadas de coeréncia e identidade, nos limites dessas esfe- ras, tragados institucional, simbélica ou ritualmente. A figura conceptual da individualidade ressuscitaria, ani- mada pela possibilidade de recuperar legitimidade ao prego de se restringir e de abdicar da antiga vocagio to- talizante-unificadora. Cada ator social concreto acionaria miiltiplas indivi- dualidades, na medida em que se de- frontasse com uma sociedade caracte- rizada pela diferenciacio de freas de experiéncia, como € 0 caso da me- trépole contempordnea. A psicandlise @ aos rituais metassociais (entendida a pratica social como necessariamente 112 encapsulada e subordinada a descon- tinuidade) caberia a responsabilidade pela costura do “texto” final, pela tecitura da rede que interconecta sub- culturas, submetendo-as ao sentido univoco de uma ordem, gragas a qual a vida em seu conjunto ganha inteligi- bilidade — ainda e mesmo quando se caracterize pela dispersdio — para um individuo que recupera, ao nivel sim- bélico, a prépria unidade, perdida na pratica cotidiana e no pensar fra- cionado que lhe corresponde. Esta hipétese, ultimo refigio unidade individual e do substantivis- mo subjetivista, é torpedeada pelos fe- némenos de que nos ocuparemos a seguir. 3. Unidades fraturadas, inconseqiéncia, precarledade da ordem A denominagao é mais uma vez im- propria: incongruéncia ideolégica e a instabilidade de processos identifica- t6rios. Sob esta férmula incluimos todas as referéncias empiricas que tes- temunham experiéncias de assistema- cidade ou mesmo contraditoriedade ideoldgica, vividas no interior de uma nica “provincia de significacao”. Des- loca-se, portanto, a incongruéncia da relagdo inter-esferas para a relacio entre idéias e valores postulados por um mesmo individuo, no interior de uma mesma esfera de experiéncia so- cial. O individuo deixa de ser o cen- tro estdvel ¢ uno que restitui a con- tinuidade e a coeréncia as suas pré- prias manifestagdes dispares. Nao ha mais o regime Iégico acionado por um sujeito racional, idéntico a si, que garanta a totalizagéo, na qual a mul- tiplicidade dos valores e das concep- goes expressas se reduzam & unidade de um sistema ou de uma estrutura. So as préprias nogdes de sujeito, individuo, ideologia, cultura e identi- EsTUDOS HisTéRIcos — 1988/1 dade que sofrem um sério abalo. Cer- tamente os antropélogos com boa ex- periéncia de trabalho de campo ja se terfio deparado com esta realidade ba- nal, quase prosaica: seus informantes Ihes dizem A e A’l, sem que a alte- ragio seja objeto de qualquer justifi- cacéo ou responda aos imperativos das circunstancias. Nao é preciso ser antrop6logo para ter observado em outros e — por que nfo? — por ve- zes em si mesmo o mergulho nitido na contradigao. Ela pode ou nao ser focalizada; em o sendo, pode ou nfo exigir harmonizagao que a neutralize ou explicagao que a legitime; reque- rendo ou nao atencao e algum tipo de tratamento especifico, apresenta-se mais ou menos constrangedora, va- riando os graus de desconforto em fungio da definigao, normalmente prescrita socialmente, do tipo de tema e de sua relacio com o rigor concep- tual ou de seu compromisso com a racionalidade. Para nés nao é constrangedor, em situagdes normais de diélogo infor- mal, assumir posicdes contraditérias frente aos mesmos interlocutores, sem o envolvyimento em nenhum processo persuasivo ou de elaboracdo e revi- so racionais, quando a tematica de referéncia €, por exemplo, o amor, 0 juizo moral sobre comportamentos alheios ou a suposigao do préprio comportamento ante desafios hipotéti- cos excepcionais. Para alguns de nés, opinides politicas se incluiriam nesta faixa de elasticidade e tolerdncia. Para outros, ao contrério: contradi- zer-se quando o assunto € politica im- plicaria caréncia de princfpios, de personalidade ou de dignidade. A co- branca teria colorages psicolégicas, ideolégicas e éticas, Evidentemente as condigdes de in- teragéo ma qual se expressam as po- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS. sigdes contraditérias do mesmo ator sao decisivas para a caracterizagao das relagdes entre graus de tolerfncia e tematica abordada. Grupos distin- tos hierarquizam diferencialmente a relevancia das questdes e dos enga- jamentos dos individuos aos posicio- namentos que enunciam. O tema do amor é da maior gravidade ¢ tende a requerer coeréncia e preciséo quan- do os interlocutores o tém como me- diador, isto é, quando sio amantes, casados, namorados etc. Por outro lado, como a sinceridade é superva- lorizada no setting psicanalitico, sio tidas como positivas, ai, as incon- gruéncias dos discursos sobre afetivi- dade e as oscilagdes do préprio mo- vimento afetivo, posto que sao perce- bidas como sinais de que o apelo da sinceridade, proposto pelas condigdes fundamentais da interagao, foi acolhi- do e de que a disponibilidade confis- sional tem a primazia, esté no co- mando, © belo ¢ sdbio elogio a inconse- qiiéncia de Kolakowski, (1968), rei- terado em outros termos — nao me- nos belos e sabios — por I. Berlin (1981) e também por James Fishkin (1979), revelam muito claramente que, dada a estrutura de nossa vida social, nao € comum, nem desejével — ¢€ talvez tampouco seja possivel, senao ao prego do paradoxal colapso da ordem —, a observancia rigorosa dos princfpios da coeréncia, da ndo-con- tradigao, em todas as circunstancias, independentemente de consideragdes tOpicas sobre as particularidades que as tornam dnicas, diferentes, a ponto de exigirem uma adaptacao muito fle- xivel de principios de julgamento e comportamento — por vezes sua ne- gacio —, adotdveis corretamente em outras situagdes. Democracia nao se faz apenas com o estabelecimento pac- 113 tado de regras formalmente claras ¢ com a expectativa de sua aplicagao rigorosa. A interpretagao se interpo- ré entre princfpios e circunstancias singulares, como mediacio inevitavel, requerendo mais do que o simples espirito de fidelidade as regras, de leal- dade ao pacto celebrado, de rigor subserviente ao legitimamente fixado. Esta exigéncia que extrapola o for- malismo légico-positivo das leis nao significa concesséo 4 selva hobbesia- na, mas © reconhecimento da inevita- bilidade de uma intervengao criativa contemplada em todo empreendimen- to hermenéutico, sem o qual, por sua vez, as regras nao sfo, na pratica his- térica, reapropriadas pelos homens (Perelman, 1977a, 1980a e b). Esta grande ligéo de certa tradi¢ao liberal, que enaltece a virtude simultane: mente criadora e respeitosa do legiti- mamente estabelecido, remete a dis- cussdo politica para o campo da phro- nesis aristotélica, da razao pratica ¢ da hermenéutica filoséfica (Gadamer, 1977, 1979, 1982), Além disso, re- trata muito bem as condigdes de nossa vida, que néo sé permitem, como por vezes estimulam as incongru€ncias. Obviamente, uma pequena comunida- de relativamente homogénea do pon- to de vista sociolégico tenderd a dei- Xar menos espaco para a prolifera- cao. de papéis sociais, settings intera- cionais e balizamentos institucionais capazes de promover fortes desconti- nuidades nos fluxos cotidianos ¢ nas identidades individuais, ¢ por conse- guinte tenderé a deixar também me- nos espaco para a disseminacado de condigdes favordveis & assungfo de PposigGes incongruentes. © problema da identidade ficard mais claro quando discutirmos as re- laces entre o sujeito e a linguagem. 114 4. Aquém dos paradigmas, uma curiosa agitagdo © que orienta um cientista no mo- mento em que sua ciéncia vive uma crise de paradigmas? ® Quando dois ou mais paradigmas se defrontam, cada um produz seus préprios crité- trios de avaliacdo da legitimidade de proposicées e verificagdes. Portanto, a crise radical é sempre também uma crise dos critérios de selegio entre opsGes. O ideal de um solo fixo, a histérico, independente dos paradig- mas ¢ de suas convulsGes, mo qual se radicassem principios de juizo cri- tico, garantiria o acesso a verdade ¢ justificaria, portanto, os anseios de objetividade absoluta. Mas a realida- de & bem diferente para uma cultura nao-tefsta: a ruina de concepgGes, mé- todos e tradicdes cientificos traga a seguranga cartesiana dos critérios de decibilidade. Assim como o conheci- mento € uma construgao sujeita a re- visdes sucessivas e ilimitadas, os cri- térios de validagao do conhecimento cientifico so produzidos por certos corpi de categorias, a partir do actmu- lo de determinadas experiéncias, or- denadas segundo padroes seletivos ¢ hierarquizantes especificos. Quando a co-naturalidade entre su- jeito e objeto, que sustenta sua ade- quagao miitua, representada pelo co- nhecimento, nao encontra mais o su- porte da onipresenga unificadora ou harmonizadora da divindade, tem de se apoiar em hipéteses integradoras, como o monismo lévi-straussiano, ou se transferir para o circuito eminen- temente cultural da relagio entre os sujeitos. A co-naturalidade passa a ga- rantir a homogeneidade mental, propi- do a adequagio entre as conscién- cias, ou seja, o entendimento mituo, O mundo fenoménico, habitat dos objetos reais, estd irremediavelmente perdido. A empiria possivel € aquela ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 projetada em comum pelas conscién- cias dos agentes do conhecimento, quando estes se poem de acordo ¢ compartilham uma linguagem. Nao ha um ponto de Arquimedes, exterior as linguagens ¢ aos paradig- mas, eqijidistante, neutro, plataforma sélida para um discernimento plena- mente racional. Toda deciséio compor- ta por definicéo o é6nus de um com- promisso prévio com algum horizonte, a partir do qual questées e¢ alterna- tivas ganham inteligibilidade e se hie- rarquizam. A decisio ja foi tomada para que qualquer decisao atinente ao confronto de paradigmas incomen- surdveis possa ser exposta racional- mente. Ja se tomou partido por um paradigma, quando uma opgao exclui. as demais de um modo racional. E a decisio primitiva, condig&o daquela posterior, que se deriva racionalmente da adeséo a um ponto de vista para- digmaticamente comprometido, é sem- pre indiferentemente racional e irra- cional (Bernstein, 1983). A posteriori, sim, um juizo hist6rico pode demons- trar a superioridade de uma opcdo. Isto porque o paradigma hegeménico, para afirmar-se contempla necessaria- mente a histéria cientifica, atrihuin- dothe sentido e hierarquizando as op¢ées retrospectivamente visiveis. Guardadas as devidas proporgdes € respeitadas as diferencas gritantes, pode-se aproximar o salto no escuro que lanca um cientista em uma ou outra direc&io, num momento especial- mente dramitico da histéria de sua disciplina, ao salto com que um mo- vimento social estala o casulo que o gesta — suas condigdes de possibil dade — e irrompe no cenério histé- rico. Nos dois casos hé um sem-ni- mero de fatores que tornam a decisao possivel e razodvel, mas que nao bas- tam para impor o caminho escolhido, Em ambas as situagdes, as agdes de- cisivas nao podem ser descritas como HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS aplicagdes de regras ou leis, como ma- nifestagdes particulares de principios universais. O processo decisGrio, ine- xoravelmente singular, revela nos dois casos idéntica autonomia. O universo que dard consisténcia racional ou mes- mo inteligibilidade ao particular em que se constitui cada deci especi- fica, nas circunstancias em causa, é gerado paradoxalmente pelo proprio particular que ele supostamente sub- sumiria e antecederia. Em outras pa- lavras, cada decisao justa por um pa- radigma que se tem por superior, num momento de confronto radical entre paradigmas cientificos — momento no qual, com boas razdes (e, portan- to, também com més razdes) a co- munidade de especialistas se divide —, estabeleceré sua prépria justeza e superioridade, desenvolvendo a pers- pectiva a partir da qual o futuro re- construiré sua génese. A decisio apro- vada pelo futuro firmard jurisprudén- cia, e o que um dia foi criatividade, aposta da imaginagao produtiva as- sociada ao controle racional sobre o saber disponivel (no caso, insuficien- te), tornar-se-4, na posteridade, mo- delo exemplar, procedimento paradig- miatico. A analogia com o direito nao € arbitréria. Temas j4 trabalhados me- lhor revelam, assim, suas interco- nexdes. Por isso é que A. Maclutyre nos diz que o tinico ensino possivel de me- todologia cientifica é a historia das grandes decisOes, as quais sempre fo- ram mais que meras escolhas passi- vas entre caminhos jé dados: foram intervengdes criativas que contribui- ram para a construgao dos caminhos (MacIntyre apud Bernstein, op. cit.) ‘Thomas Kuhn nos ensina que, em pe- riodos de crise de paradigmas, os cri- térios disponfveis orientam os posicio- mamentos dos cientistas, nao como normas que impGem respostas ou 115 como regras que se aplicam, mas como valores (Kuhn apud Bernstein, op. cit. A prdtica hermenéutica se instala no seio do fazer cientifico, que se mostra, assim, aberto ao investimen- to reflexivo relativamente liberto de constrangimentos operativos, exigindo, portanto, mais sensibilidade, maturi- dade, sabedoria ¢ criatividade — € proposital o emprego destas palavras, aparentemente imprdéprias em um tex- to sério, Com a hermenéutica vem & tona, no centro mesmo do drama cientifico, a questo ética, isto é, a problemitica relativa ao estabeleci- mento de valores, a suas apropriages interpretativas e a suas articulagdes com a pratica. 5. E, no entanto, ha leis Jé mencionamos a insuficiéncia do positivismo legal, que pretende, seja fundar racionalmente, de modo obje- tivo e atemporal, os principios legi- timos do direito, seja extrair, por de- rivagio Idgica, as orientagSes parti- culares aplicéveis aos casos concre- tos, objetos do juizo legal. A lei per- feita deveria permitir que as avalia- ges especificas prescindissem comple- tamente da “‘subjetividade” do juiz, dado que, por um simples expediente dedutivo, ela se estenderia o necessé- rio para subsumir as circunstancias singulares produzidas pela vida (Pe- relman, op. cit.). Nao ha contingén- cia que nao se defina como variagao redutivel & invaridncia das leis. Di- zendo-o de outro modo: a aplicacdo da lei pode prescindir de interpreta- go, ou esta pode se reduzir & leitu- ra fiel da esséncia intencional objeti- vada na forma significativa, que ¢ a letra da lei (Betti, 1980). Nés sabemos que nao ha juizo alheio aos padrdes de racionalidade 116 que herdamos (critico-criativamente) das tradigdes que formam nossa cul- tura: nem para optar por paradigmas cientificos, nem para investigar retros- pectivamente as opgdes e muito me- nos para resgatar o espirito das lei O juizo, a avaliacao, a leitura se dio a partir de nosso horizonte cultural, Nao sao simples projegdes das con- cepgdes herdadas, elas mesmas sem+ pre sujeitas a tratamento hermenéu- tico, mas dependem dessas projecGes, como vimos nos pardgrafos consagra- dos a Schleiermacher e Dilthey. Os objetos sobre os quais se langam exi- gem perguntas e respostas que trans- cendem o preconcebido, o conheci- mento antecipado — cujas raizes nio so sequer acessiveis a critica racio- nal, porque nossa consciéncia sobre a perspectiva que informa nosso mo- vimento cognitivo é limitada, na me- dida em que é esta perspectiva que © constituinte nos torna possiveis en- quanto sujeitos. O horizonte delinea- do pela linguagem em que nos cons- tituimos como sujeitos é aberto, mé- vel e suscetivel de incorporar o ain- da nao-integrado, 0 novo: nao fosse assim, 0 conhecimento nfo passaria de redundancia, tautologia, reiteragio do mesmo. A interpretacao estende o horizonte, levando-o a iluminar uma face da realidade visada. E, portanto, a atividade hermenéu- tica, construtiva e captadora, ativa ¢ passiva, oferecendo uma estrutura de acolhida para o objeto. Revela-se pas- siva, na medida em que deixa a este a configuracao de seu proprio ser; por outro lado, constituindo uma angula- do (vé-se sempre de algum lugar, si- tuado em algum plano, sediado em alguma cultura), uma estrutura, a terpretago impde recortes ao objet acolhe-o seletivamente, Acolhélo im- plica recusar sua plenitude ontoldgi- ca, a0 mesmo tempo que significa re- ESTUDOS HisTéRICos — 1988/1 nunciar & prépria auto-suficiéncia, isto 6, a plenitude da prépria cultura — definida, por isso, pela metéfora es- pacial “‘horizonte”, que corresponde a limite. Compreensao é, assim, fu- sao de horizontes. Nao vemos apenas a propria imagem narcisicamente re- fletida, esmagando a positividade do Outro; mas o Outro aparece para nés sempre situado, porque também nds sempre estamos situados: ele se re- corta para nds sobre o fundo de nos- sos conhecimentos e valores, determi- nando o préprio perfil com autono- mia e clamando por nossa contem- plagao ativa-criativa, capaz de trans- cender limites e preconcepgées. To- davia, a autonomia nfo o traz com- pleto, facultando a nés o saber abso- luto e objetivo de seu ser, pois con- tra o movimento autéctone do objeto se ergue o filtro seletivo pelo qual o mundo nos € acessivel, sendo, como somos, seres hist6ricos, culturalmente marcados, finitos. Por isso, Gadamer, retomando Hei- degger, nos diz que nao é exato pen- sar em termos da déade sujeito-objeto, quando o tema é a pratica hermenéu- tica: 0 sujeito esté compreendido por aquilo que se estenderd até o objeto, compreendendo-o. Sujeito e objeto participam do mesmo. O sujeito nao é apenas ativo, nem o objeto somente passivo: ele é constituide por aquilo que o leva ao objeto, ¢ o define em sua objetividade (Gadamer, 1982). Aquilo, para Gadamer, é a tradigao, para Wittgenstein sfo os jogos de lin- guagem, para a antropologia constru- tivista € a cultura. O importante € sublinhar que, além da tradigio — ela mesma “objeto” deste processo complexo, sinuoso e dinamico —, atua o poder criador da reflexdo, como Iembra Habermas (Habermas, 1970, 1980), e da imaginagao pro- dutiva. HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS Sejam as leis contempordneas dos julgamentos ou nao, sua interpreta- cao envolve um investimento reflexivo complexo, o que os tornam bem mais complicados do que se fossem sim- ples aplicagdes neutras e objetivas. Temos discutido as relagdes entre leis e seu exercicio na pratica concreta do direito, mas nada dissemos sobre © que determina a legitimidade das leis, sobre 0 que as torna respeitaveis. Passemos, entao, a questao ética. 6. Etica: o impossivel relativismo neces: ‘sario Richard Bernstein nos alerta para © impasse provocado pelo que cle chama “ansiedade cartesiana”; ou € possiyel o conhecimento objetivo, en- tendido em seu sentido mais forte, isto €, como aquele respaldado em cri- térios de decidibilidade quanto ao seu contetido de yerdade que sejam atem- porais e independentes de paradigmas, ‘ou nao é possivel nenhum conheci- mento, nenhum princfpio de decisao, porque tudo se torna relativo ¢ 0 es- pectro do solipsismo nao pode mais ser exorcisado (Bernstein, op. cit.). Na mesma diregao se empenha James Fishkin, ao criticar o simplismo do tudo ou nada a revelar que nossa pré- pria cultura, em suas .manifestagdes cotidianas, deixa espaco para grada- gdes que complexificam a polarizagao (Fishkin, 1984). Muito antes, no final dos anos 40 e inicio da década de 50, o jurista e filésofo belga Chaim Perelman, criador da nova retérica (1977b e com Tyteca Olbreichts, 1958) *, insistia neste ponto: o abandono moderno das garantias absolutas para o conheci- 117 mento verdadeiro — sejam teolégicas, sejam positivistas — nfo nos deve conduzir ao ceticismo radical ou nos reduzir ao siléncio (Perelman, op. cit.). Especialmente nas dreas em que a caréncia de garantias se faz sentir mais intensamente, como na ética ou no direito. Por nos faltar em pontos fixos, bases sdlidas, por serem os principios todos discutiveis, nem por isso perdemos toda possibilidade de sermos racionais. Ao contrério, a pis- ta para a saida esté exatamente na discutilibilidade dos princfpios, Basta ler a expresséo “os principios sao sempre discutfveis” por um dngulo positivo, Negativamente, a expressao Positivamente, eminentemente discutivel, argumentativa, intersubjetiva dos prin- cipios, de sua definigao, aceitagao ou recusa. enuncia a natureza dial6gica, Ha, ai, na discutibilidade, todo um potencial a explorar (Perelman, op. cit.; Habermas, Apel, entre outros). Pode-se, assim, superar a aporia em que a disting&o fato x valor, traba- Thada por Hume, nos langou** (cf. MacIntyre, 1984). Pode-se, ao custo da extensio do conceito de razao, submeter a axiologia & racionalidade. Valores nao tém de ser subjetivos, ar- bitraérios, irracionais, alheios a todo movimento cognitivo e reflexivo, o qual se aplicaria exclusivamente aos fatos — o real se esgotaria em sua facticidade. Valores podem ser objeto de justificacao, persuasio e acordo. Os agentes sociais, quando nao-coagidos por violéncia direta ou indireta, po- dem se entender quanto & superiori- dade ¢ inferioridade de valores e sua adequac&o ou inadequagio a circuns- * Devo aos professores José Américo Pessanha e Marco Anténio Mello a contato com a obra de Perelman. ** Devo a Luis R. Cardoso de Oliveira a atengao para a gravidade do problema. 118 tamcias especificas. Da dinfmica in- tersubjetiva dos processos dialégicos surgem argumentos mais ou menos fortes, mais ou menos vulnerdveis a critica, mais ou menos convincentes. Os interlocutores sao racionais, isto 6, basicamente capazes de captar, terpretar, emitir discursos, participar de jogos de linguagem, ponderar e julgar argumentos rivais, valendo-se de seus recursos intelectuais, do sa- ber de que dispdem, dos padrdes cul- turais legados pelas tradigdes em que se situam e do potencial criativo, cri- tico e autocritico da reflexao. Certa- mente a disparidade maior ou menor entre as tradigdes ou as culturas dos interlocutores, por exemplo, constitui- ra bices de qualidades e eficdcia va- riadas & comunicacio plena, isto ¢, constituiré obstéculos de tipos dife- rentes a realizagdo da comunicagio ideal ou, como diria Habermas (1984), da situagéio ideal de discurso. As condigées da racionalidade se deslocam da rela¢o ldgica, interna aos discursos, ou da relagéo entre estes e o real visado, para as rela- ges entre interlocutores, os quais, por definic&o, se encontram na lin- guagem e af atuam, requerendo para sta compreensio uma teoria pragmé- tica yoltada para a prética da lingua+ gem, pritica esta’ circunscrita por cir- cunstancias sociais, balizamentos ins- titucionais e situagées interacionais. Vé-se por que a linguistica saussure- ana é insuficiente para lidar com a problematica da linguagem (Austin, 1962; Dascal, 1982; Williams e Mon- tegiore, 1971; Searle, 1969, 1972, 1981; Ducrot, 1972, Vogt, 1980). Conhecimento nio sendo mais ade- quacio platénica entre sujeito e obje- to, assegurada pela filiagio comum & matriz divina, tem de ser adequacao produzida no Jocus exclusivo de toda ESTUDOS HIsTORICos — 1988/1 inteligibilidade — a linguagem —, entre sujeitos que se poem de acor- do sobre objetos, através de procedi- mentos argumentativos. Os conheci- mentos cientificos passam a circular, entéo, no mesmo circuito dos valo- res e a depender do mesmo regime de julgamento: a anuéncia dialogica- mente alcangada, fruto das préticas argumentativas. Claro que isso nao basta para uniformizar os critérios dos julgamentos cientificos e éticos, © que nao seria possivel nem desejé- vel. Mas exerce o efeito benéfico de dissipar a barreira que condenava as decisGes valorativas & arbitrariedade irracional. Sao, por tudo isso, extre- mamente atuais os temas e as pers- pectivas antecipatérias de Perelman, entre os quais se destaca seu esforgo em fazer yer aos filésofos que cles tém algo a aprender com a pratica juridica, ao contrério do que se con- vencionou considerar natural, isto é, que a ultima se submete ao saber dos primeiros (Perelman, 1980 a). Aristételes ¢ a grande referéncia para as discussdes sobre ética (Ga- damer, 1982; Ricoeur, 1977; Macin- tyre, 1984). Sua insuperdvel contri- buigéo reside principalmente na dis- tingao entre epistemé ou conhecimen- to, techné ou técnica e phronesis ou saber pratico. A ética é matéria da phronesis. Nao esté sujeita, portan- to, a légicas ou procedimentos tipica- mente cientificos ou técnicos. Por outro lado, isto ndo significa que cla ndo represente um fmbito de exer- cicio da razio. O saber pratico lida com a matéria surpreendenie da vida, que requer plasticidade no relaciona- mento entre os valores da comunida- de e as situagSes concretas vivencia- das. O grande desafio que nossa época langa & concepgao aristotélica € a pluralidade das pautas valorativas que iluminam os juizos ¢ os comportamen- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS tos ordindrios. Pluralidade de orienta- des, por vezes contraditérias, eis o que produz nossa complexa socieda- de industrial, sediada em grandes cen- tros urbanos. Hoje, a phronesis teria de fundar a prépria diretriz axiold- gica que supostamente lhe serviria de referéncia. Este o dilema crucial, por vezes negligenciado por grandes auto- res ligados a tradicfo aristotélica, como Gadamer (cf. Bernstein, 1983). Importa, sobretudo, reter a grande contribuigfo para nosso debate que os estudos neo-aristotélicos sobre a questao ética oferecem: se o objeto é essencialmente varidvel, contingen- cial e irredutivel a matrizes invarian- tes ou leis permanentes e universais, a razio humana nfo deve capitular, mas, a0 contrdrio, multiplicar seus esforgos, impondo-se a si prépria a flexibilidade caracteristica de seu obje- to, 0 que $6 é possivel se sua prépria definicdio deixa de referi-la a relagdes exclusivamente intradiscursivas (légi- cas ou semidticas) ou extradiscursi- vas (entre discurso e real), para reme- té-la a relagGes interdiscursivas. 7, Estética e a reinveng&o do universal O campo da experiéncia estética, talvez mais claramente de que qual- quer outro, requer uma racionalidade que nao se restrinja a projetar pressu- postos soi-disant universais ou leis permanentes sobre cada objeto par- ticular, como se estes pudessem se reduzir 4 manifestagao t6pica de cé- digos, linguagens, padrées ou essén- cias definiveis prévia e independente- mente da investigagao de suas pré- prias e respectivas singularidades. O par langue-parole da linguistica saus- sereana nao da conta das realizacGes de linguagem que reinventam a lin- gua ou complexificam sua ordem in- terna, produzindo novas dimensdes 119 seméntico-referenciais e inauditas ar- ticulagdes sintéticas, cuja gramaticabi- lidade nao pode ser facilmente ver ficdvel, mesmo porque, em certa me- dida, tais discursos constituem os pa- rametros de sua prépria compreen- sibilidade, comunicabilidade ou gra- maticalidade: produzem o préprio uni- versal que atualizam em sua existéncia particular. E como se a particulari- dade antecedesse ¢ fundasse a univer- salidade, Como isto representaria um contra- senso, 0 que se pode dizer é que, nas obras de arte, assim como nas pi ticas criativas de linguagem, o part cular ¢ o universal se fundam simul- taneamente, co-determinando-se diale- ticamente. E © que nos ensina Gada- mer, referindo-se especialmente — nao-exclusivamente — as artes plas- ticas (Gadamer, 1985). Sendo a cri Ao artistica um didlogo com a tradi- gao da qual provém, projeta sobre esta um novo olhar, desnudando uma das faces desconhecidas da tradigaéo pelo contraste revelador que a rup- tura proposta configura. O quadro de referéncia de uma obra & (re)posto por ela: reposto porque a tradigao esta criticamente implicada na produ- gio do novo; posto, porque a obra inaugura um universo proprio, na me- dida em que dispde de uma estrutura imanente que a singulariza. O movimento da interpretagao deve acompanhar seja a remissio a tradi- cao, o resgate da cultura, seja a ul- trapassagem critico-criativa represen- tada pela obra de arte. Para fazé-lo, © intérprete tem de reagir reflexiva- mente, estabelecendo, em sua pratica hermenéutica, a co-determinacao ex- perimentada pela obra: co-determina- cao interna, entre partes e todo, € externa, entre o todo e€ a totalidade cultural que o subsume como parte © que € yisada como o universal do 120 qual extrai inteligibilidade a parti- cularidade em que se constitui a obra. Mas, neste caso, interno e externo se fundem. © principio da co-determinagao apenas reflete o reconhecimento da verdade da filosofia da vida, na me- dida em que é dela que herdamos a consciéncia da irredutibilidade do sin- gular e da essencialidade do perten- cimento. E para ser fiel a este prin- cipio hermenéutico fundamental, 0 intérprete tem de incluir-se a si prd- prio, ou melhor, a sua propria inter- pretagao, no circuito da co-determi- nagao. O que da obra o hermeneuta resgata resulta do que esta pde diante de si como significagio realizada, acréscimo de ser (Ricoeur, 1978) € do que o horizonte cultural em que ele se situa permite incorporar. Vimos que o horizonte nao é fixo, no aprisiona: pode-se estendé-lo. Mas vimos também que horizonte corres- ponde a limite, parcialidade, recorte assinalado por uma perspectiva. O corpus conceptual que acolhe um novo objeto, uma nova ordem significativa, se recompée ao fazé-lo e para fazé-lo. O acolhido cede em seu ser, renun- cia, como dissemos, 4 plenitude onto- légica e se deixa recortar e reordenar. Sujeito e objeto se determinam mu- tuamente no processo hermenéutico, neutralizando-se como entidades ex- teriores uma & outra ¢ independentes. Sendo isto o que se dé, cumpre ao intérprete superar a ingenuidade com que é tentado a tratar seu objeto, to- mando-o como auténomo, destacdvel de si proprio — o sujeito da ope- ragao reflexiva —, para, entao, ino- cente e inadvertidamente, escolher um dos caminhos: ou a via apaziguadora do essencialismo, na qual se aplica a capturar o contetido intrinseco do objeto, ou a trilha solipsista do sub- jetivismo, que paga o pesado tributo da impoténcia cognitiva ao reconhe- ESTUDOS HisTORICOS — 1988/1 cimento da alteridade radical do obje- to, que o tora inexpugndvel, intan- givel. As duas hipéteses repousam no tra- tamento objetivista do objeto, que o define como um ser dotado de predi- cados, posto como a expresso do real que resiste ao investimento do sujeito, igualmente entendido como entida- de dotada de qualidades intrinsecas, alheio ou independente dos objetos sobre os quais eventualmente se de- bruga. Se sujeito e objeto prescindem da relacao que os anima e articula, comprometendo-os reciprocamente, € claro que mais cedo ou mais tarde serd inevitével 0 encontro com as con- seqiiéncias da separacao: as dificulda- des da religacdo, estabelecida pelo conhecimento. Ou ambos, sujeito ¢ objeto, pertencem a Deus, ou perten- cem-se mutuamente, fundindo seus horizontes, para que o que denomi- namos conhecimento possa se dar. Desde que abandone a ingenuidade objetivista, o imtérprete pode levar avante sia tarefa. A superacdo da in- genuidade serd demonstrada por seu reconhecimento da necessidade de ver- sé ao ver 0 outro ou o “objeto”, isto é, por seu reconhecimento da neces- sidade de investigar a prépria tradi- ¢ao ou a apropriacao critico-criativa a que a submete ao projetar-se, em seu movimento hermenéutico, para a compreensao. Mais uma vez produzir- sed a co-determinagio, neste caso entre a interpretagio e a hermenéu- tica da propria interpretacdo. Portan- to, toda compreensao hermenéutica darse-4 como metainterpretagdo. A metainterpretagao também é suscetivel de uma reflexao distanciada, de uma abordagem interpretativa, capaz de expor pressupostos nao-tematizados. Também esta abordagem se poderia sujeitar a outra interpretagao, que re- yelasse seu proprio solo oculto. E HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS assim sucessivamente, numa regressao infinita. Certamente nao é possivel a cons- ciéncia absoluta. Fosse vidvel 0 pro- jeto onisciente da consciéncia plena de si ou a transparéncia completa do préprio movimento hermenéutico, a regressdo nao lancaria o intérprete na vertigem parandica da onipoténcia, condenando-o ao siléncio ¢ a parali- sia. Mas ele nao € vidvel. Conseqiien- temente, a regressiio € de fato infi- nita, esté fadada a jamais encontrar solo em que se radique o saber ple- no, a partir do qual brilhe o real in- dentificado inteiramente ao racional. Cabe ao hermeneuta, entio, a tnica saida racional (apesar de aparente- mente paradoxal): renunciar a pros seguir, a partir de alguns movimentos reflexivos ou metainterpretativos sufi- cientemente enriquecedores ou escla- recedores. A humildade € racional e corresponde & assungao da falibilida- de e da finitude, ou seja, ao reconhe- cimento da insuperdvel parcialidade de toda compreensao, que nasce sem- pre do didlogo entre preconcepgdes € a novidade auténtica do Outro. O advérbio suficientemente foi su- blinhado porque ele aponta para uma constelagéo importante de questdes afins & problemética em pauta. Sendo vejamos: 0 ingrediente basico para a rendncia racional a prosseguir na es- piral-simultaneamente iluminadora destrutiva (virtualmente) — da me- tainterpretagao é saber o ponto a par- tir do qual nao se deve continuar, sob pena de converter o percurso desve- lador em autofagia da razio, Nao ha tampouco aqui critérios definiveis ex ante. O ponto proprio para a parada sera aquele indicado pelo acordo té- cito, subjacente ao estabelecimento da legitimidade de todo empreendimento racional, laborado e julgado critica- mente por processos dialégicos. 121 Anuir-se-4 ou resistir-se- a defesa da conyeniéncia de fazer girar mais uma yez sobre si o mecanismo refle- xivo da interpretagao. A parada, como a verdade, seré pactada. Nao é outra coisa a razio, sendo o proprio pacto que antecede qualquer outro, mas que, ele mesmo, prescinde de ante- dentes: solo sem solo (Heidegger, 1962). Pacto primitivo que oferece a medida (ratio) correspondente & emergéncia do socius, como veremos. Estranho ser, a razio: nutre-se, para subsistir, da reducg&o de sua po- tencialidade, alimenta-se da prépria negagio. Como o ser, que depende do nada para ser mais que ele, para ser. Como a luz, que precisa da sombra para ser seu contrario e delinear-se como o que é, o conhecimento nao pode prescindir do desconhecido (Hei- degger, 1962). A arte suscitou com veeméncia o deslocamento do racionalismo ilumi- nista legiferante para a interpretagao auto-refletixa, imaginativa e radica- da em tradigdes, submetida ao que Gadamer chama a historia efetiva (Ga- damer, 1982), yoltada para e envol- vida em processos de co-determinagao, porque essencialmente receptiva a tra- gicidade da vida e ao cardter insupe- ravel, seja de nosso pertencimento ao social, seja de nossa finitude, contra- faces da mesma moeda. a a er Ml, HERMENEUTICA, LINGUAGEM E TE LEOLOGIA NO HORIZONTE DA RA- ZAO ROMANTICA Os impasses enfrentados pelas cién- cias sociais para lidar com as dificul- dades inventariadas, das quais elas muitas vezes sequer tém consciéncia, expoem a fragilidade e a insuficién- cia de nossa concepgaio neo-iluminista de ciéncia. Dizé-lo nao implica recusar a heranga iluminista em bloco ou vol- 122 tar a opor explicagéo e compreensio de modo a descrever formas de abor- dagem, tornando-as excludentes, mes- mo porque entendemos a hermenéutica como uma consciéncia que complexi- fica 0 processo cognitive, mas nao ne- cessariamente prescinde do momento analitico (Ricouer, 1977). Fomos levados & atualidade de al- gumas perspectivas romanticas, enfa- tizando a pertinéncia, para o conheci- mento da vida social, das singularida- des e da contingéncia. E o momento de focalizarmos mais detidamente duas propriedades constitutivas de nos- so ser € cruciais para uma correta aproximagao do social, em todas as suas dimensdes; a finitude e o perten- cimento. Ambos decorrem de nosso inevitdvel e paradoxal encontro com a linguagem, sendo, como somos, mor- tais e dotados de certas qualidades fisicas-especificas, no reino da natu- reza, e universais, no mundo humano. E ambos nos ajudam a evitar a trans- formacao do desafio representado pela diferenga, em seu sentido forte, diga- mos assim, numa problemética mera- mente decisionista,® que faria ressus- citar as filosofias da consciéncia e da intengao, negligenciando toda a dis- cussio contemporanea sobre o sujeito. Conforme ficara claro, a falta de regras metodicamente aplicdveis a fe- némenos ou circunstancias que resis- tem a se definirem como variagdes de estruturas, ordens ou leis, nao de- volve ao individuo consciente e in- tencional ou a subjetividade reificada a liberdade que as ciéncias do social The capturaram com desdém. Entre © individuo e sua circunstincia valo- rativa ou genericamente desafiadora — em se o reconhecendo racional — se interpdem as mediacdes da lingua- gem, da tradicao, da cultura, dos pro- cessos identificat6rios, enfim, se inter- poe a rede complexa em que 0 su- jeito se eclipsa, constelado. Tampou- ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 co se pretende restabelecer a sobera- nia absoluta do j4 dado, com novos (antigos) nomes. O brilho da criati- vidade,!® sem repor o grosseiro elitis- mo do culto ao génio (ao contrario, a hermenéutica gadameriana, muito especialmente, busca revalorizar os as- pectos sébios e criativos do senso co- mum), recupera a incémoda questio dos limites da ciéncia iluminista ¢ da nogao iluminista de leis (j4 pro- yavelmente muito distante das con- cepedes da ciéncia natural contempo- ranea), no contexto da fragmentagao dinamica dos sujeitos. Fragmentago da qual as proprias idéias de agdo auténomas e diferenga representam uma expressio e um suporte. tratamento dessas questées re- quer um longo percurso. Comecemos identificando a marca di: ‘a do humano: 0 acesso & inteligibilidade, ao sentido, facultado pelo simbolo, pela linguagem, Hoje, as ciéncias so- ciais e humanas concordam; o hu- mano s6 se realiza enquanto tal se puder atualizar sua capacidade espi- ritual através da linguagem. Sendo atualizagaio, a linguagem € manifesta- ¢@o, expressio. Mais do que isso, preexistindo ao sujeito concreto, por ele apenas apropriada de modo par- ticular, a linguagem € uma prética em que se combinam elementos so- ciais mais gerais e ingredientes inci- dentais, criativos e singularizadores, que se co-determinam. Como a linguagem antecede o su- jeito, instaura com este uma dialéti- ca, na qual representa o universal aquilo que, oferecendo-se ao sujeito, o precede e sucede, o inclui — tor- nando-o possivel — e o exclui, pres- cindindo de sua intervengao para con- figurar-se em sua essencialidade uni- versal, mas que, simulténea e parado- xalmente, depende dele para existir, assumindo concretude nas particulari- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS zacgdes que ele realiza, A linguagem transcende o sujeito, tornando-lhe pos- sivel a autotranscendéncia: o encon- tro com 0 Outro e o real, o conhe- cimento e a comunicagao, a signifi- cago e a imaginacao, a identidade, indissociével do reconhecimento da alteridade. Isto porque constitui um acordo que antecede o sujeito, pois forma 0 espaco (simbédlico) em que ele pode existir com identidade e acesso ao mundo, que assim emerge do caos, Acordo que antecede o sujeito, mas que s6 tem vigéncia em sua prética, isto é, que s6 pode existir como ante- rioridade (e transcendentalidade ou universalidade), quer dizer, que s6 pode existir na e pela pritica concreta e multipla dos sujeitos, que jogam, in- tersubjetivamente, jogos de linguagem. ‘odos os acordos celebrados pelos su- os decorrem do pacto fundador, em que se fixam a medida, o valor, os parametros, a partir dos quais as uni- dades serdio compardveis e reversiveis, quando equivalentes, o que quer di- zer: sera significativas. Qualquer contrato depende de, no minimo, dois agentes e uma ratio, uma medida, uma razio, um solo: uma linguagem. Sem esta medida (linguagem), os dois agen- tes mencionados nao tém qualquer sentido, lugar ou eficdcia. A prépria linguagem, quando praticada por um sujeito particular, implica duas fun- gGes, sem as quais a medida — a interconexao, a conversibilidade —, que ela tem que, por natureza, ‘re- presentar, perde sua razdo de ser: a fungio de enunciagao ou de sujeito enunciador e a de recep¢ao ou de su- jeito receptor. Além disso, implica a presenga de uma virtualidade; a me- dida, que torna toda medida concreta e particular possivel. Ou seja, a lin- guagem realizada na pratica supde sua propria presenga, enquanto universa- lidade virtualmente fundadora, en- 123 quanto solo metarreferido pelas refe- réncias singulares produzidas pelos discursos (essas qualificagdes salvam este postulado da tautologia), que par- ticularizam a linguagem. Nao saimos do circuito dialético da co-determina- gao entre particular e universal, tao decisivo para a conceptualizagao her- menéutica. Eis af a confirmagao, por perspec- tiva complementar, de nossa critica ingenuidade iluminista, que atribui autonomia e status fundante, seja ao sujeito, tido entdo como artifice (idea- lizaggo do poder da reflexdo ou yo- luntarismo da raz&o, da intencionali- dade, da consciéncia e da acao) de estruturas, linguagens, leis ¢ contra- tos, seja as estruturas, linguagens, leis ou contratos, tidos, neste caso, como determinantes do sujeito (da fungdo sujeito, entenda-se), H4, isto sim, co- fundagio, que se dé como linguagem e razio, O que € razfo, pergunta Heidegger, estendendo a interrogagio ao ser, sendo solo sem solo, fundan- te sem fundagao, o limite além — ou aquém — do qual nao se vai, sob pena de perder-se na incompreensi- bilidade e incomunicabilidade da des- medida dissipadora das unidades e de suas relagdes, da representagio ¢ da referéncia, do sentido, do real, do sujeito ¢ seus pares (espéculos e in- terlocutores), da identidade e da di- ferenga? Nao se vai, normalmente, mas se pode ir — ainda que nao se possa saber ou dizer aonde —, € a razdo poder-se-ia ter estabelecido como o acordo neste aquém, o qual ento nos pareceria tao natural como 0 solo que hoje vislumbramos e que, ingenuamente, por vezes reverencia- mos como a fundagao segura, sobre a qual repousa o mundo. Pois esta base é tao sélida quanto pode ser o arbitrio compartilhado, Mas que sen- tido tem “arbitrio”, neste contexto em 124 que j4 somos, e somos razao ¢ lin- guagem? A pratica da linguagem, parcial, fragmentéria, dispersa, orienta-se para um felos, que nao é mais que sua ori- gem, a qual, como vimos, sé pode existir como fim (norte, direcio, sen- tido): a linguagem, enquanto coesio virtual ou ponto de fuga universali- zante, que garante a articulacao, uni- dade ¢ intertraduzibilidade dos enun- ciados, emitidos sob formas que im- poe tensdes € desequilibrios, expres- sOes mesmas de sua natureza parti- cularizante. Em outras palayras, toda Pratica de linguagem se realiza pro- duzindo, paralelamente a seus efeitos de sentido diretamente gerados, uma metalinguagem, cuja referéncia esté posta como A Linguagem (telos — significado abstrato e geral de ificagac ticulari- sentido), enquanto a priori, presenga virtual, realidade transcendental. Observe-se a inversdo expressa nes- tas proposigdes: paroles ndo so rea- lizagdes ou execugdes da langue. Ao contrario, os atos de linguagem visam & lingua, enquanto sistema ultimo de referéncia, sentido posto adiante do discurso como acréscimo de ser, re- presentagao teleologicamente regulaté- ria que supée o finalismo de toda pré- tica de linguagem, a qual se volta, em seu nivel metalingufstico, para um ho- rizonte de ordem ou de coesao, aonde se dirigiriam os fios dispersos dos sen- tidos miiltiplos produzidos. Os senti- dos realizados sao variados, apreen- siveis em suas circunstancias especi- ficas, mas s6 se afirmam como sen- tidos porque guardam o sentido dos sentidos concretizados na prética da linguagem, o qual nao € mais do que a virtualidade da ordem que eles con- teriam, nos fossem dados o todo, o universal. Voltamos a Schleiermacher: as parcelas so significativas somente ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 na medida em que se combinarem em um todo antecipado. A operagio da linguagem se desdobra reflexivamente em uma metalinguagem que enuncia a realidade, enquanto virtualidade, de um todo — origem e fim do sentido — universalizante. Dizendo-o sim- plesmente: quando dizemos algo, di- zemos que estamos dizendo; quando enunciamos um sentido, enunciamos que © que enunciamos é um sentido. Referido, nao-enunciado como o que poe a referéncia, o sentido determi- na-se como a realidade em si mesma significativa, porque subsumida por uma ordem de inteligibilidade mais abrangente — universal —, dissocia- da da forma particularizante de cada sentido particular (de seu poder re- ferencial, metaférico, etc... especifi- co). Esta ordem mais abrangente € 0 universal representado pelo ser da lin- guagem, enquanto entidade abstrata, visada como coesao (atual ou virtual, isto é, j& dada ou que se dara nos movimentos subseqiientes da pratica linguistica, os quais, supostamente, impordo inflexéo ordenadora a uma eventual dispersdo irredutfvel momen- tdnea: o que importa é a suposi¢ao, a expectativa). A imposig&o @ outrance de unidade as produgées de linguagem confunde a necessidade da tendéncia com a rea- lidade necessdria. A pratica de lingua- gem tem, via de regra, a unidade (na complexidade e na diferenca) como ponto de fuga ou tendéncia. Isso nfo quer dizer que a unidade se realize ou que as ordens virtuais derivadas do telos unificador de todas as pré- ticas sejam as mesmas, isto €, sejam elas mesmas, unificdveis. A incorporagao da metalinguagem como dimensao essencial da linguagem determina imediatamente uma disso- ciagao estratégica entre a fungao refe- rencial da linguagem — que a define como expressiva, informativa — e sua HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS fungao comunicativa ou dialdgica. Esta Ultima se liga 4 dimenséo metalinguis- tica, pois € esta que tem como con- dig&o de existéncia e telos regulatério a linguagem, enquanto universal. No coracao da prética particularizada da linguagem, encontramos assim o Outro em sua universalidade, ou seja, a im: néncia do lugar em que assumirao existéncia os outros concretos, indi dualizados. A mera referéncia poe a dialogia e a alteridade pela mediacao do nivel metalinguistico, no qual a lin- guagem ascende ao status de reflexi- bilidade que a distingue de cddigos semiéticos formalmente precisos, ana- liséveis e utilizaveis mediante pleno rigor metodolégico. A {é hermenéutica na miitua com- preensio dos homens nao se radica necessariamente na crenga ingénua de que eles se entendem — fregiiente- mente nao o fazem e apenas adminis- tram a incompreensio, circunscreven- do-a, para que alguma estabilidade de expectativas seja vidvel. Os ho- mens, eis o fundamental, se entendem sobre o entendimento, visam ao en- tendimento nas atividades espirituais, nas realizacdes intelectuais, nas ma- nifestagdes simbdlicas, nas _praticas significativas. Compreensibilidade é 0 telos. No nivel em que nos situamos, sequer importa discutir as condigdes da aproximagZo ou afastamento do ideal da linguagem que a anima — sendo ela sempre pritica e processo. A linguagem tem sentido, por isso: tem direcéo, norte, a sua Meca, seu ponto de fuga, definivel como sua propria realizacéo ou como sua exis- téncia virtual, enquanto universal abstrato, constituidor de condigées de possibilidade de todo discurso (daf origem, além de fim, vale repetir). O universal € 0 abrigo dos significados,. a unidade que os torna — aqueles do mesmo discurso ou de discursos dife- rentes — mutuamente relacionados 125 (mensurdveis), que os torna aquilo que sao; icativos. Subsume, esta unidade, a diversidade dos efeitos de sentido particulares, _estabelecendo condigdes de comutagao ou traducaio intra e interdiscursiva. O universal compreende. Os sujeitos compreen- dem sendo compreendidos pelo mes- mo. O mesmo, aqui, é o universal, virtualidade visada por toda pratica da linguagem, que the dé sentido, real ou virtualmente — porque, mesmo que ele nfo se produza, seré sempre foco.de expectativa, tera sempre seu lugar, ser sempre visado pelo sujei- to-receptor da interlocucgao. Associando universalidade e com- preensibilidade, a equacao se fecha: a pratica da linguagem visa a com- preensdo. Os homens, portanto, esto envolvidos — mergulhados inapela- velmente, como estdo, na linguagem — no movimento continuo orientado para a mitua compreensio. A lingua- gem é a prdtica de um acordo quanto @ factibilidade e desejabilidade da mUtua compreensao. Acordo que atra- vessa 0 fogo cruzado dos mal-enten- didos inintencionais, da plurivocida- de e dos ardis arquitetados por inte- resses, conscientes ou inconscientes, de despistamento. Atravessa as turbu- Iéncias nao impunemente. O telos mais se furta, se afasta. Contudo, nao deixa de reger os discursos, mesmo como espectral maestro impotente. De- finida assim, a linguagem se funde A razio e ao ser — o que explode ¢ vem & luz e é a existéncia sem solo, sem outra raiz: nascido da explosiio fundante em que se pde como o que é (Heidegger). Acordo, medida, ratio, razio, grund, em alemao, também tra- duzido por solo ground, em inglés): a linguagem, em sua universalidade fun- dante, é a ratio, medida de valores, razao, possibilidade do sentido, orien- taco miitua, ordem. 126 Creio que agora estamos aptos para compreender mais profundamente as concepgdes de Gadamer sobre a lin- guagem, a historicidade, a pré-com- preensao, a finitude e as implicacdes éticas de suas reflexdes, apenas insi- nuadas. Concepgdes subsumidas pela atribui¢ao de estatuto ontoldgico a in- terpretacao. A classica compreensao do simbolo agora se esclarece. Sua origem se liga ao significado da expresso fessera hos- pitalis, que na Grécia se referia a um caco, dividido pelo anfitrigéo com o hdéspede, Partindo-o, o primeiro re- presentava a permanéncia de seu vin- culo e a possibilidade de reatualizé-lo no futuro, quando o visitante ou seu filho apresentasse ao anfitriio ou a algum dos seus a parte quebrada da tessera hospitalis (cf. Gadamer, 1985). Ai esté a origem de nosso simbolo: um acordo tacito, materializado num representante segmentado. Uma pega que sé se completa ou recupera sua unidade quando © contrato se atuali- za ou, diriamos hoje, quando ha en- tendimento. Mas a tessera hospitalis existe como promessa de acolhida, in- dependente de seu cumprimento e do reencontro das partes e dos amigos apartados. O cumprimento é 0 telos, que faz do caco o antincio de uma falta, de uma incompletude, de uma auséncia bem-determinada, de uma negatividade especularmente definida no contorno figurado pela ruptura. Além de ser’ promessa, aposta no fu- turo, € expresso permanente de um encontro significativo que se deu, de fato, e ficaré no passado. Antecipagao e meméria — sentido, valor e propé- sito: ai esto as categorias universais da experiéncia hist6rica, segundo Dil- they. A unidade a ser teleologicamen- te reconstitufda nao passa do resgate da integridade original da pega de- pois partida. O acordo foi firmado ¢ yivido pelas partes: héspede e anfi- ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 triao. Os cacos respectivos, sendo por definigao incompletos cada um, por- que a cada um falta a parte que lhe foi subtrafda, assinalam o encontro que ja se deu e 0 compromisso que 0 perpetua. O compromisso esta por as- sim dizer incorporado aos cacos, por- que cada um é 0 que € por faltar-lhe a outra parte. Ou seja, a unidade foi paradoxalmente afirmada com a divi- sio da pega e estd contida em cada parte por sua auséncia expressiva. A unidade marca 0 objeto partido que passa a se desdobrar: além de sua ma- terialidade particular e de seu even- tual sentido funcional ¢ pratico, guarda uma dimensao virtual. Esta dimensio é a da metalinguagem, que associa duas auséncias — a origem e o fim —, transcendendo a sua particula- ridade e apontando para a unidade que inclui a alteridade (a outra parte perdida), isto é, atribuindo cardter significativo ao significado puramen- te referencial eventualmente contem- plado por um caco. Mas 0 extraordindrio poder revela- dor dessa genealogia, & qual Gadamer nos faculta 0 acesso, nao se esgota ai; sentido, na origem do simbolo, mais do que a ela se vincula, resulta da incompletude, Para que haja incom- pletude, € preciso que haja referén 4 completude; para que a primeira seja yivida como superayel, € necessério que a Ultima seja tida por realizdvel; para que a incompletude seja vivida, nao sé como superdvel (completavel), mas também como proyiséria, ¢ im- perioso que, além de superdyel, a completude seja visada, se constitua em felos que mobilize a intencionali- dade, isto é, se torne um ideal em di- regao ao qual aquele que experimenta a incompletude se movimente. Sinte- tizando; sentido implica, se imputar- mos ao seu modelo cléssico um papel paradigmético, incompletude vivida HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS como superayel no interior de um mo- vimento dirigido para a completude, que nao se realiza, que visa: negativi- dade negada, mas nao abolida por uma positividade que, fechando o cir- cuito, dissipa o sentido. Quando as partes separadas se reencontram, nao € mais 0 sentido posto pelos cacos que se realiza, pois este ¢ promessa de acolhida, nao acolhida efetiva. Por isso mesmo, o sentido prescinde do encontro futuro para se realizar, pois se realiza exatamente como antecipa- go, vinculo de promessa, compromis- so. Traduzindo 0 raciocinio para a lin- guagem de nosso tempo: 0 sentido nao € 0 referente, mas sim sua auséncia; ocupa lugar numa ordem — a da lin- guagem — que, por sua natureza, ex- clui a realidade fenoménica para rep6-la como significacio ou refe- réncia. Essa genealogia ou mito de origem do simbolo remete ainda a uma outra questao, extraordinariamente interes- sante e relativamente muito pouco de- batida — to negligenciada quanto a problematica étic qual se associa. Trata-se da phili da amizade ou, para ampliarmos o enfoque, da solida- tiedade, da cooperagdo, da piedade, no sentido rousseauista, Philia € potencializagao da sociabi- lidade, nos termos da tradigao aber- ta por Hume, pode, na melhor das hi- péteses, ser explicada como um fato, mas nao pode ser racionalmente pos- tulada como um fim, da mesma forma que nenhum valor encontra amparo racional para converter 0 ser — ma- téria de conhecimento — em dever ser — matéria subjetiva e arbitrdria, atinente aos caprichos da voligao indi- vidual. A perspectiva passivel de se derivar de nosso mito de origem é bem diver- 127 sa. Em palayras simples, resumir-se-ia do seguinte modo: a cumplicidade, o compromisso, 0 pacto, a relacao, a philia, nao sao fins, senao sob a con- digdo de serem o comego, a origem, um estado de coisas j4 dado que cos- tumamos confundir com a natureza, € que precisamos reiterar, projetando-o como telos ou tipo ideal regulatério, para levar adiante o jogo em que so- mos, em que ascendemos ao simbolo, a linguagem. Origem e fim estiio pos- tos sobre o mesmo horizonte, aquele que € nosso limite e nossa abertura, nossa disponibilidade. A Odisséia ainda € 0 melhor mode- lo: busea-se o que se perde — atual ou virtualmente, pela ameaca provo- cada por constantes instabilidades e distirbios nos processos comunicati- vos. Nenhum homem ou sociedade é capaz de atribuir sentido a prépria vida sem a dupla referéncia da géne- se e do fim projetado, sendo este um simulacro da origem, mesmo que in- vertido. Ai esté a estrutura de toda cosmogonia e das ideologias (Ri- coeur, 1977), Nossas tedrias sobre a sociedade, a histéria e a vida dificil- mente deixam de dialogar com o qua- dro cosmogénico em que seus formu- ladores sao socializados. Até nosso argumento sobre o simbolo procura na fonte — nao importa se mftica — inspiragdo para a abordagem teleo- légica. E esta a ordem possivel do ser que é projeto e vive a historicida- de radicalmente, como sua condic&o essencial. Voltando a tessera hospitalis, mais detidamente, poderemos explicar me- lhor a identificagdo de sua perspecti- va iluminadora sobre a philia. Se pen- sarmos a diviséo da pega entre héspedes e anfitrido, que os enlaca, nado apenas como a forma geral do * 0 professor José Américo Pessanha vem chamando a atengio, ha muitos anos © contra a corrente, para a importincia desta questo. 128 simbolo e do simbédlico ou da lingua- gem, mas também como seu contetido, idéias instigantes ocorrerao. Por for- ma entendemos a atribuicio metalin- guistica ou metassimbélica de sentido ao signo previamente atualizado pela pega. A peca é suporte material da tessera hospitalis e portadora de signi- ficagdo, independente e anteriormente ao gesto-pacto que a divide. Analisan- do esse mecanismo, aprendemos bas- tante sobre a estrutura do simbolo, a pluralidade de niveis que encerra ¢ a complexidade dos processos que supde. Mas este recorte formal nao é sufi- ciente. Por contetido entendemos © sentido especifico com que o sentido mencio- nado em abstrato na andilise formal se realiza. Qual o sentido do sentido referido abstratamente? A philia, a so- lidariedade, 0 compromisso, 0 acordo entre dois seres humanos. Sublinhe-se a nao acidentalidade deste sentido. Se © simbolo encontra na fessera hospi- talis sua fonte filolégico-conceptual, ele nfo tem por que herdar apenas a estrutura formal de sua origem, a qual, inclusive, sé é dissocidvel do conteido nos termos necessariamente reducio- nistas de uma andlise. A philia faz parte do legado. Por isso é intrinseca ao simbolo, desde que fagamos este nosso conceito subsumir toda a rique- za histérica de sua fonte. Forma ¢ contetido sao faces inextrincavelmente ligadas. A estrutura do simbolo ¢ o pacto constituem uma unidade. Sim- bolo € pacto. A natureza do contrato atualizado no simbolo define-o como uma cum- plicidade que, sendo representada na propria pratica da comunicagao, nos préprios jogos da dialogia, é também sempre ja uma condigao de possibili- dade da comunicagao, do didlogo, do entendimento miituo, Circulo vicioso, tautologia? Nao cremos. Afinal, nds ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 nascemos como seres que compreen- demos ja imersos em jogos de lin- guagem. Uma ponderacao se faz necessdria: a passagem sub-repticia da philia ao acordo latu senso, intrinseco a pratica da linguagem, omitiu as descontinui- dades que tornam a transicao proble- mética. Independentemente da redu- ¢do conceptual que o orgumento pode implicar, o que ele pretende acentuar € apenas a continuidade entre philia ¢ acordo, mesmo reconhecendo que en- tre ambos nao hé identidade. Defini- mos philia do modo mais simples possivel, como potencializagdo da so- ciabilidade. Acordo, por sua vez, nao € mais do que exercicio de entendi- mento, pratica de gregarismo, atual zagao da sociabilidade. A aproxima- ¢ao, portanto, ainda que ao prego do sacrificio de diferengas eventualmente significativas, se justifica, dados os propésitos da reflexao em curso. Neste ponto, trés temdticas centrais ao neo-romantismo hermenéutico de Gadamer se articulam: philia, perten- cimento ¢ finitude. Senao vejamos: 0 fato de mascermos para o mundo hu- mano j4 mergulhados em plena flores- ta de simbolos — se quisermos usar a expressao que Victor Turner tomou emprestada a Baudelaire —, de ai vi- vermos nossos processos identificaté- rios, distinguindo-nos dos outre . 0 fato de compreendermos a partir do horizonte que nossas linguagens € nossas culturas delineam, determina para nés uma paradoxal relagéo com o ser. Somos na linguagem, a qual nos precede e sucede, isto €, possui rea- lidade auténoma, conformada por materialidade propria (f6nica e/ou grafica) e por Idgica propria (com- posta pelos conjuntos de leis fonolé- gicas, sintdticas e semanticas). Se a linguagem é independente de nds e se constitui de matéria prépria, a lin- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS guagem nao somos nds. E, relativa- mente a nds, um outro. Mas nds enten- demos o mundo e nés mesmos por seu intermédio. Nés, em seu meio, adquirimos nome, nos expressamos ¢ nos fazemos reconhecer pelo prono- me pessoal com o qual assinalamos nossa posigao de sujeito do que emi- timos. Dizemos eu e, sob a forma e © regime do eu, existimos. Isso, nao obstante, é valido para todos. Nossos pares e interlocutores também enun- ciam “eu”, sinalizando sua presenga ativa, marcando, de modo inteligi- yel e comunicdvel, para si e para os demais, sua existéncia singular. Mdl- tiplas, ‘ilimitadas singularidades séo portanto subsumidas na linguagem ou representadas pela mesma massa fénica, dotada de determinado papel sintdtico e de certo significado — tio variével quanto os enunciadores que se substituem na fungao sujeito. Em outras palavras: assim como a lingua- gem nio somos nés, tampouco nés somos a linguagem. Somos mais ou menos, estamos além ou aquém. Mas s6 articulamos nossa existéncia signi- ficativamente quando nos instalamos na linguagem, no simbolo, reino do sentido. sendo os sujeitos, os ho- mens, as individualidades — os quai entretanto, a tornam possivel, na pré- tica —, a linguagem os faz aparecer, Thes dé existéncia inteligivel, lhes con- fere humanidade, ao preco de ex- clui-los da sua propria ordem, de seus préprios limites. O eu que enuncia “eu” (Benveniste, 1972) é o referido pelo sentido “eu”, pela referéncia. E sabemos bem que o referido é negado pela referéncia; cujo destino € tor- nar presente sua auséncia, evocando-a sob a forma de um representante sim- bélico. Conseqiientemente, pronun- ciando 0 pronome que nos faz sujeitos, homens, seres da linguagem, conde- namo-nos a auséncia, excluidos pelo 129 ser da linguagem. O que somos ver- dadeiramente, ¢ onde estamos em nos- sa plenitude idealmente absolutizada? Nossa tnica morada nos repele: a lin- guagem. Somos na linguagem topica- mente, fragmentariamente e subor- dinados & sua estrutura material © légica. Nossa intervengdo a subverte, e nesta subversao também estaremos representados e excluidos. © encontro do sentido realizdvel por nés com nos- so ser integral, substantivizado, que engendraria a plena consciéncia de si do sujeito, é apenas um sonho — ou um pesadelo — narcisico, onipotente, parandico. Por definigio, eu e “eu” no se superpoem, amalgamando-se numa tinica realidade, jamais. Isso é tao absurdo quanto supor o encontro do referente com o referido. Se isso se desse, 0 primeiro deixaria de ser referente, isto é, o sentido deixaria de sé-lo, pois seria tragado pela silen- ciosa, incomunicvel, solitéria e abso- luta imanéncia: a coisa repousaria em si mesma, tdmulo e esséncia indizivel. Sentido supGe fratura, tens&o, assime- tria, desequilibrio em varios niveis. Pertencemos & linguagem, & cultura, de um modo radical, pois tal perten- cimento neutraliza nossa propria auto- definigaio como sujeitos ou indivi- dualidades. Se apenas podemos ser topicamente, fragmentariamente, par- celadamente, no desdobrar-se da lin- guagem — na qual pensamos (isto é, dialogamos conosco) e nos comunica- mos —, sujeito € sempre uma fung’o da linguagem com a qual nos identifi- camos. Fungao subordinada & ordem da linguagem e referéncia enunciada, mesmo sendo também condigao de sua existéncia. O sujeito é tao carente de imanéncia e substancia cognoscivel quanto o real, que s6 se constitui como: realidade no nivel da referéncia, sen- do, nao obstante, também condigao da linguagem, na medida em que re- 130 presenta a exterioridade, a qual ga- rante a incompletude de que a lin- guagem extrai vida e sentido. Somos. ai, na funcao sujeito, na linguagem, descontinuamente, manifestagdes pon- tuais de uma esséncia que s6 pode ser este lancar-se adiante de si, nao estan- do mais onde (no presente) existimos — a linguagem nos faz ser excluin- do-nos dos limites em que, paradoxal- mente, existimos — e tampouco onde (no passado) supostamente estévamos, antes da prontincia que nos eleyou & condigao do ser — na linguagem. O passado existe enquanto referéncia ne- cessariamente presente, estando, como este, sujeito a paradoxal exclusao cor- respondente & sua eventual atuali- zagao. O pertencimento nos radica na lin- guagem, o que vale dizer: o pertenci- mento nos condena a finitude. A mor- te € a companheira insepardvel deste ser que brilha onde nao pode estar, sendo antes a negatividade negada do que a positividade posta pela super- posicao entre o sentido e a esséncia ontolégica, O inevitdvel engajamento na linguagem condiciona o ser do ho- mem ao regime da finitude, espelhan- do, no dominio focalizado, sua ines- capdvel natureza mortal. E finito o ser que sé existe representando-se, pois sua extensao corresponde a suas rea: zagdes de linguagem, por definigaéo descontinuas ¢ limitadas, submetidas a légicas extrinsecas e aos horizontes culturais em que emergem as lingua- gens que lhe servem de morada. O ser s6 se realiza — respeitados os li- mites determinados por seu cardter paradoxal — situando-se, isto ¢, fa- zendo-se sujeito de uma visada par- ticular, circunscrita por um horizonte especifico, balizado por concepgoes & valores herdados de tradigdes tam- bém especificas. Situar-se significa li- mitar-se, renunciar & completude, & ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 totalidade, & consciéncia plena, ao absoluto. Significa assumir o cardter parcial de sua relagéo com o mundo eo ser, de um modo geral, o cardter parcial de sua relacgio consigo pré- prio. Significa reconhecer a limitagao da propria reflexividade. Significa re- conhecer a indissociabilidade entre in- teligibilidade ¢ perspectiva, recorte, redugdo, angulagao. Situar-se implica mergulho fundo na historicidade. Si- tuar-se ou pertencer € também da- tar-se; ser finito. A philia encontra-se fundada no pertencimento, que € sempre co-per- tencimento. E significativo que a pri- meira expresséo do lago entre solida- riedade e simbolo, a tessera hospitalis, tenha por referéncia o pacto entre an- fitriéo e héspede, representado pela abertura do territério, da casa do pri- meiro, ao segundo e aos seus. E a mo- rada que se compartilha quando se exercita em toda sua potencialidade o gregarismo atualizado no co-pertenci- mento. Co-pertencimento pode ser en- tendido como pertencimento comum ao mesmo, identificando os estranhos e reduzindo a diferenca, a distancia e o siléncio, que em algum momento parecem insuperdveis. Talvez estejamos agora em condi- gGes de compreender melhor a perma- néncia, para nés, de certa temética que a tradicéo roméntica nos legou, enfeixada sob a categoria pertenci- mento. A sabedoria hermenéutica complementarmente nos revelou a efi- cdcia histérica, expressa em nossa de- pendéncia das linguagens, das tradi- des, que recortam, para nds, os limites da inteligibilidade, determinan- do nossa insuperdvel finitude e, a0 mesmo tempo, nossa abertura para o outro, esteio da mitua compreensibi- lidade humana. No cruzamento das tradigGes romanticas ¢ historicistas com as exigéncias neo-iluministas do HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS 131 kantismo redivivo, Dilthey, na esteira de Schleiermacher ¢ nao-livre da in- fluéncia hegeliana, retoma o classico desafio que a natureza trdgica da exis- téncia representa para o conhecimen- to, e nos lega, embutida em sua fi- losofia da vida, a insuperabilidade do contingente, do varidvel, do singular, do criativo, do insubmisso a modelos © prospecgGes. IV. UM ROMANTISMO GAUCHE: A DIFE- RENCA EM LUGAR DA REPRESEN- TAGAO A Natureza € partes sem um todo. Isto é talvez o tal mistério de que falam. Alberto Caeiro Depois de inventariarmos alguns im- passes da tradic¢ao iluminista e de assi- nalarmos a sensibilidade roméntica para essas dificuldades, desenvolve- mos uma concepgao do social, do sa- ber e do simbolo, articulando alguns temas esquecidos, como pertencimen- to, philia e finitude, Retomemos, agora, um ponto portante para demonstrar a possibili. dade de uma apropriacao nao-dialéti- ca € totalizante do fenémeno da lin- guagem, do pertencimento e da iden- tidade. Pretendemos, apresentando uma configuragéo conceptual alterna- tiva, mostrar que o reconhecimento da problemética da qual partimos é essencial para a compreensao das ba- ses das duas principais orientagGes in- telectuais — uma das quais ja expu- semos — que se antepdem no cendrio contemporaneo das chamadas cién- cias humanas. Ambas respondem as questGes estratégicas, afastando-se, embora em diregGes opostas, do es- quematismo aqui aproximativamente denominado neo-iluminista, Ambas devem muito a filosofia da vida, a Dilthey, Nietzsche e Heidegger. Am- bas, evidentemente, se recobrem, em certa medida, assim como retomam perspectivas iluministas, mesmo que critica e criativamente. As superposi- gOes sao miltiplas e significativas. As diferengas muitas yezes sao sutis, di- zem respeito a gradagOes e nuances, & retérica, a énfases, & eleicao diferen- ciada de objetos. Seria impraticével mapear univer- so t8o complexo. Faltam-nos compe- téncia e disposigio, mesmo porque tamanha ambigao exorbitaria o campo de pertinéncia desse estudo. Nossa intengado é modesta. Reduz-se a de- monstrar a natureza da didspora in- telectual contempordnea, na drea das Geisteswissenchaften, sua raiz em tra- digdes recentes e, em certo sentido, sua insuperabilidade. Em outras pa- lavras, tentaremos mostrar que serd preciso enfrentar esta didspora sem- pre que se quiser reconhecer 0 solo do qual compreendemos, sempre que se desejar conhecer melhor as pré-con- cepgdes com as quais interpretamos, @ que constituem, por assim dizer, nosso horizonte hermenéutico; e esta autoconsciéncia deve ser, como vi+ mos, momento indispensdvel da refle- xo interpretativa, com a qual exer- citamos nossas “ciéncias sociais”. Pa- rece-nos ingénua a ousadia de solu- cionar o dilema tedrico, seja optando unilateralmente e recusando atribuir legitimidade & opgfo relegada, seja formulando uma sintese ou uma ter- ceira posigaéo, absolutamente descom- prometida com as tradicdes enfeixadas na tradigao da diaspora, que é a nossa. Passemos & apresentacéo da abor- dagem nao-dialética, sensivel, como a abordagem dialética que expusemos, as questées suscitadas pela filosofia da vida. O ponto escolhido para dar partida @ apresentagdo € o da racio- nalidade, entendida como acordo ne- 132 gativo pelo qual os circunstanfes re~ nunciam a escavar 0 sensus commu- nis, 0 commom ground, o solo com- partilhado. Sendo sempre possivel um. pacto mais fundo, o fundamento € sempre vulnerdvel a desafios subver- sivos. Tem de se passar por natural, indiscutivel, justamente por ser con- yencional, essencialmente discutivel e, portanto, por definicfo, instdvel, ou pelo menos dotado de estabilidade frégil e efémera. © pacto ndo se dé apenas nos ter- mos genéricos e abstratos descritos por Heidegger (1962). N6s o reedita- mos, de modo fragmentério, no coti- diano, em cada didlogo. Por exemplo, se eu ando acompanhado de um in- terlocutor, posso ver-me instado a in- dagar-lhe, por gentileza, se nfo estou caminhando muito répido. Posso con- siderar, no entanto, a interrogagéo dibia e evité-la, porque ela pode ser interpretada como apelo indireto ao outro, para que aumente sua veloci- dade, que supostamente me parece- ria excessivamente lenta. Qualquer tentativa de esclarecer a ambigiiidade poderia gerar por sua vez novas du- biedades, em progressao geométrica. Verbalizando a gentileza e as inquie- tagdes, eu apenas condenaria o inter- locutor a perturbagdes equivalentes. O diflogo, no caso, nao teria fim, desdobrando uma cadeia de interpre- tagdes, em que se combinariam con- fianga, cordialidade, suspeita e incom- preensdes. Em suma: ou me imponho 0 siléncio, ou desencadeio um diélo- go insélito que lhe é equivalente, co- mo seu simétrico inverso. O diélogo razodvel s6 € possivel — o interior, subjetivo, e o real, objetivo — quan- do os participantes nele se engajam com a disposigao de viabilizé-lo, com- partilhando a rentincia a prosseguir indefinidamente 0 jogo metalingiiisti- co que, a cada momento, ele pode proyocar. Isto se faz ao prego da bus- ESTUDOS HISTORICOs — 1988/1 ca da compreensao perfeita, da razfo exata, da interpretagio precisa. Re- nuncia-se em comum a continuar de- limitando as condigdes da compreen- so muitua, a continuar indefinida- mente a procurar reduzir a taxa dos mal-entendidos provaveis. A cigncia vive idéntico desafio, de outra forma, evidentemente. O esta- belecimento de axiomas supde (e/ou propée) um pacto entre os membros da comunidade critica cientffica — como a chama Karl-Otto Apel — quanto as bases das quais decola © argumento, e que permaneceriio aquém (ou além) de seu poder de explicagao. © telos da opgao ultra-racionalista, hiperinterpretativa e, paradoxalmen- te, “parandica”, autofagica, irracio- nal, é a plenitude do sentido, alcan- cavel através do acesso gradual & to- talidade, da qual se deriyam as par- tes, representadas no caso pelas diver- sas formagdes discursivas com as quais se trava contato no didlogo. Vis- lumbra-se a analogia desta perspecti- va “parandica” com a hermenéutica dialética de Schleiermacher ¢ Dilthey. Como o diélogo nao é uma obra fe- chada — indagar-se-ia com pertinén- cia: que matéria significativa 0 €? —, a totalidade mais se afasta quanto mais se a persegue via extenséo do didlogo. Diziamos, quando o foco era a com- preensibilidade reciproca dos homens, a intertraduzibilidade das linguagens, das culturas, que o didlogo nfo pode prescindir de seu éxito — a comuni- cagio — como telos, mesmo enten- dendo-se por felos apenas a meta ina- tingivel. Mencionamos também a di- mensdo negativa da racionalidade, fundadora do espago comum que via- biliza todo diélogo. Cumpre-nos, nes- te momento, deslocar o foco para os limites do métuo entendimento de- HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS terminados pelas prdprias condigdes que tornam possivel 0 didlogo. Sen- do este um processo por definigao inconcluso, porque sempre sujeito & retomada, a totalidade jamais se dé. O que se tem, nos didlogos, sao par- tes. Acompanhar sua sucessio néo per- mite, como pensava Schleiermacher, a progressiva corregio das antecipa- gdes de totalidade, a qual daria sen- tido conclusivo as partes de que se compée. Nao permite, porque no hé uma unidade virtual de cada série dis- cursiva, sustentada pela identidade- a-si de cada sujeito. Em contraponto com a tendéncia @ coesio, imanente & linguagem, h4 a potencialidade dis- persiva dos sujeitos da enunciacio, em si mesmos plurais. Chegaremos lé. Voltaremos, por ora, & natureza dis- juntiva, centripeta da parcialidade, vi- ‘Sivel desde que nos libertemos das suposigGes de unidade e totalidade, pretensas condicgdes do sentido e da comunicacao idealizados. ‘O que € a parte, quando o pano de fundo é 0 acordo negativo, que instala a racionalidade? Bem diferen- te, por certo, da parte recortada con- tra o fundo da sistematicidade ou da estruturalidade tendenciais da lingua- gem, mesmo quando estas caracteris- ticas sfo transferidas para o nivel me- talingiifstico. A parte, mo contexto marcado pela énfase na negatividade da razio, é ponto de dispersao, assim como suas subunidades — as partes da parte — ser&o nucleamentos de dispersfo de diferengas, para usar uma linguagem em moda nos circu- los deleuzianos (Deleuze ¢ Guattari, 1980). O motivo é simples: a dialética parte-todo sé pode ser mantida en- quanto se trabalhar com determinada concepgao de representagdo, que faz da parte algo mais que sua propria positividade, que sua propria imanén- cia; faz dela uma caré1 uma rea- lidade lacunar, cuja existéncia recla- 133 ma complementacao."! Para que esta seja possivel, extravia-se, o analista, pelo atalho da virtualidade — do oculto, nao-dito, do paradigmatico —, buscando, na unificagéo que impée uma totalidade, o tinico meio de esta- belecer conexdes Iégicas capazes de fechar (ou completar) com coeréncia a representacdo partida. A totalidade funciona como o reencontro no ho- rizonte da tessera hospitalis. A re- presentagao se esgota em sua propria positividade — em sua insuperdvel parcialidade, dir-se-ia — quando re- pousa sobre uma renincia. Seno ve- jamos; em primeiro lugar, lembremo- nos de que a propria razdo se esta- belece pela resignago & sua insané- vel caréncia — todo esforgo de tota- lizagao seré inGtil, pois exigiré outros —, nfo havendo nada a buscar sob © solo que ela funda, nao por impos- sibilidade de ir além, mas por deci- sio necesséria, Em segundo lugar, observemos que o acordo negativo que tora posstvel a razio e 0 didlo- go nfio & firmado de uma vez por todas; ao contr&rio, tem de ser nego- eiado ¢ celebrado nos processos dia- légicos. Ambas as caracterfsticas, a positi- vidade da “negatividade” constitutiva da razfio (sua definic¢fo como positi- vidade se opde & sua definigéo como caréncia a requerer complementagdo) e a reatualizagéo freqiiente da pri- meira caracteristica, através do reco- nhecimento cotidiano da conveniéncia da rentincia a levar adiante os jogos da razio — exercitados como inter- pretagdes —, ambas as caracteristicas, repetimos, tornam as formagées dis- cursivas produzidas nos processos di légicos, de que se nutrem as culturas, matérias significativas pelo que po- sitivamente dizem e fazem (Paul Vey- ne, 1983). S6 0 atualizado é perti- nente. Virtualidades nao importam. A teoria critica da representagio sé 134 ESTUDOS HISTORICOs — 1988/1 concebe o sentido reconhecendo-lhe a positividade da “parte” ¢ recusando tomé-la como evocagao de uma carén- cia, que remeteria a uma totalizagao em progresso, desenvolvida no plano da virtualidade. Quando opomos partes a todo, nao designamos este ou aquele recorte dis- cursivo especifico, por contraste a uma totalidade vaga e relativamente abrangente. Designamos, antes, uma estratégia de definicao, gracas & qual acentuamos o fato de que qualquer compésito de partes voltaré a formar uma parte, restando 4 nogfo de tota- lidade o lugar absoluto da abrangé1 cia infinita, Vé-se que a critica A dia- lética pela filosofia da parcialidade ou da diferenga tem como alvo su- premo sua versio hegeliana, Sua pers- pectiva, tanto quanto a hermenéutica gadameriana (neste aspecto hé identi- dade), é a assuncao radical da fini- tude. Finitude e parcialidade, eis dois bons substitutos para diferenca, cujo contetido é todavia mais preciso. que, afinal, a critica & teoria dialética da representacado atribui a “parte” ou 4 insuperdvel parcialidade do sentido é 0 mesmo que a chamada filosofia da diferenca, também herdeira (sem reconhecé-lo) da filosofia da vida, atribui a diferenca: positividade. Para esta orientagéo filoséfica, cada seg- mento do real nao € apenas portador de caracteristicas diferenciais que o especificam ao integré-lo em uma to- talidade, em que as singularidades se reduzem a expressdes coerentes de uma unidade subjacente. Cada seg- mento do real extrai seu sentido da irredutibilidade da diferenga consti- tuida por sua positividade. Diziamos que a totalizagaio nao po- deria repousar na razéio, nao poderia confundir-se com esta, sendo esta, co- mo é, um fundamento (sem funda- mento) conyencionado, um artiffcio intersubjetivo fragil para garantir pre- cariamente a unidade, suporte da identidade-a-si dos elementos signifi- cativos, Ora, se a razio nao assegura a coesao capaz de religar a fragmenta- riedade dos jogos de linguagem, das praticas discursivas, resta examinar outro suporte possivel da totalizagéo e da dialética: o sujeito. Fosse © sujeito uma substancia in- varidvel, dotada de um potencial ge- rador de simbolos ou discursos e, so- bretudo, de unidade (psicoldgica ou lgica), profunda e eficiente o bas- tante para transferir-se aos seus pro- dutos, subordinando-os a seu poder ordenador, dar-se-iam as condigdes para que o sentido tivesse de ser ras- treado pela remisséo de suas manifes- tacdes parciais a um centro unifica- dor virtualmente presente. Contudo, © sujeito € uma funcdo da linguagem, nao uma substancia, apenas invarid- vel em seu sentido formal, relativo & estrutura da linguagem; nao dispée do poder de gerar simbolos — ele os combina, reinterpreta e recria; nao € uno — senao ao nivel formal que o define em sua generalidade —, mas plural, quando nao contraditério. Conforme j4 vimos, 0 pertencimen- to a linguagem faz do sujeito uma condicao do discurso e uma referén- cia, além de uma fungdo recorrente. O que ele representa, nds sabemo: ser humano. Este ser existe nas signi- ficagGes que produz e que o excluem de sua esfera prdpria de existéncia, tornando-o auséncia evocada, objeto de remissfo dos discursos que emite, por definicgéo fragmentérios, descon- tinuos, parcializantes, Se as diferen- gas entre as formagées discursivas que engendra so irredutiveis, nao-sinteti- zaveis por uma dialética, como resti- tuir ao sujeito sua suposta unidade? Ao invés de assistir-se & transferéncia da unidade do sujeito para sua lin- guagem, € a natureza descentrada, HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS miltipla e plurivoca desta que se transfere para 0 sujeito, dissolvendo-o e 0 convertendo no incessante proje- tar-se de que nos fala Heidegger. On- de 0 sujeito se cristaliza nao é: paga © tributo da propria exclusdo para “cristalizar-se”, fazendo-se linguagem. Onde se “manifesta” nfo est4, sendo © “manifestado” puro deslocamento, pura errancia, no limite. Respeitando-se este quadro con- ceptual, como conceber a identidade- a-si do sujeito? Ela é vicéria da irre- dutivel pluralidade da linguagem exercitada. Isto €, s6 hé ide de pontualmente, tomando-se por refe- réncia determinadas séries simbdlicas ou discursivas, em que certa unidade interliga as significagdes, submeten- do-as a0 poder integrador do princi- pio da transitividade (vide Soares, 1983). Mas tais séries so sempre re- cortadas de séries mais extensas, e a estrutura invariante observada nao pode ser indutivamente transposta pa- ra as séries ndo-consideradas. A via- bilidade desta transposigéo tem de ser necessariamente demonstrada. Nao hé qualquer garantia de que a estrutura se mantenha e de que, con- seqiientemente, se possa legitimamen- te postular a unidade do sujei transpondo para o nivel da enuncia- gio a estrutura captada no plano dos enunciados. Se, nao obstante, isto eventualmente ocorrer, os resultados nao sero generalizdveis, havendo, como hi, nos jogos de linguagem, po- tencial enunciativo capaz de por a di- ferenca irredutivel, condenando a “parte” a “expressar-se" nos limites de sua positividade. Mesmo no caso de permanéncia € extenséo de uma estrutura invariante, considerando-se o pertencimento do sujeito & linguagem, nfo seria razod- vel atribuir-se a este propriedades desta. A verdade de tal ponderagéo é facilmente verificdvel pelo simples 135 exercicio de delimitacado de estruturas da linguagem, em todos os seus ni- veis: elas resistem ao estabelecimento de correspondéncias com autores ou sujeitos. As estruturas os ultrapassam ou sao inferiores ao conjunto de suas respectivas producées. A relacéo ego-alter, mediada pela linguagem, na qual ambos se consti- tuem como cristalizagdes efémeras, se modifica, na medida em que se enfa- tiza a fugacidade em detrimento das cristalizagdes. O jogo de definigdes reciprocas da dialética identificatéria cede seu lugar 4 primazia absoluta do processo de alteragio, que faz de ego apenas um movimento na direcdo de alter, um projetar-se para o Outro, um transformar-se continuo visando a tor- nar-se Outro. Alter deixa de ser a re- feréncia exterior para a construcdo, por contraste, de um centro que se delimitaria excluindo de si a alteri dade, ou afastando-a de si como a ferenca, a qual, negada, lhe permit ria ser idéntico a si. Ao contrério, a identificagio, no contexto da critica 4 representacao e & dialética, cinge-se ao processo que visa ao Outro, sem por isso marcar polaridades idénticas a si, isto €, dotadas de estabilidade e, por- tanto, de independéncia e precedén- cia relativamente aos jogos de lingua- gem praticados."* Tanto quanto fora para a herme- néutica gadameriana (em certo senti- do neo-aristotélica) — alinhada na sé- rie reflexiva que antepusemos, em primeiro lugar, ao neo-iluminismo —, a categoria “‘pertencimento” € decisi- va para as concepgées antidialéticas, que se definem pela atribuigio de po- sitividade & diferenga ou de irreduti- bilidade as “partes”. No quadro da primeira orientagao intelectual — que no abandona a dialética, ainda que a suibmeta A moderacdo determinada pela centralidade da finitude ou da historicidade —, a nogo romantica, 136 legada por Herder, de pertencimento se traduzia na primazia concedida a linguagem e a tradigao (ou a.cultura). No quadro da segunda orientago in- telectual, esta primazia é mantida e continua sendo a forma de resgate (nao-assumido) da tradigao roménti- ca, Mais do que primazia, no entan- to, a linguagem conquista, ai, mono- polisticamente, a cena reflexiva, con- vertendo o pertencimento (do homem a linguagem) na aboligéo de qualquer lugar conceptual para uma subjetivi- dade permanente, para uma identida- de estabilizada (ainda que flexivel), para um sujeito transdiscursivo, isto €, que se mantenha o mesmo indepen- dentemente das variagées discursivas. A finitude, tal como a definimos, é como que hipertrofia. Mas, como o universo conceptual da filosofia da diferenca exclui o sujeito, a prépria finitude perde o sentido, convertendo- se em seu contrério, pois, ndo hayen- do sujeito, tampouco pode haver ex- terioridade. A linguagem confunde-se com o mundo. A objetividade é plena e perde o sentido por excesso, nao por caréncia. Estariamos no patamar de uma nova arrogancia demitirgica, hou- vesse um sujeito para receber o titulo. Nao é dificil compreender a curiosa proximidade com a imanéncia plena spinozista. Nao por acaso, o grande fildsofo luso-holandés € 0 epigono longinquo dos te6ricos criticos da dia- lética, dos que se situam nfo na ver- tente neo-iluminista e neo-positivista, mas numa das vertentes neo-roman- ticas. V. PARADOXOS DO QUADRO “The way to solve the problem you see in life is to live in a way that will make what is problema- tic disappear”. (Wittgenstein, 1980) ESTUDOS HISTORICOs — 1988/1 Eis ai o triptico cultural contempo- raneo. A primeira clivagem ope as tradigdes iluminista e¢ romantica. A referéncia que postulamos para 0 con- traste foi o reconhecimento da con- tingéncia, da singularidade e da va- riagéo como: (1) manifestagdes, em si mesmas impertinentes, de regulari- dades, leis ou estruturas, permanen- tes e invaridveis; (2) realidades posi- tivas e irredutiveis, pertinentes em sua especificidade, Nunca € demais insistir no fato de que oposigGes nfio impedem superposigées, as quais, no caso, sao muitas. Todavia, sao as di- ferengas que importam para os obje- tivos deste ensaio. A segunda clivagem distingue duas modalidades de apropriagdo da pers- pectiva romfntica: uma delas, aquela exposta em primeiro lugar, poderia ser denominada hermenéutica, porque se constitui em torno da questéo da interpretagio; a outra, exposta por tiltimo, foi chamada 20 longo do tex- to por um titulo que jé se populari- zou nas discussdes das ciéncias so- ciais e humanas: filosofia da dife- renca. As duas linhas (hermenéutica ¢ fi- losofia da diferenca) divergem quan- to A énfase na apropriaco da velha idéia de pertencimento: a hermenéu- tica, mais prudente, nfo extrai deste legado romantico conclusdes to radi- cais, preferindo respeitar a categori- zacao dialética da representacao, do sujeito, da identidade. Categorizagao que a teoria da diferenga recusa, o que a leva a dissolver as nogdes tao caras ao humanismo (tributério, por sua vez, do universalismo racionalis- ta iluminista), 0 qual a hermenéutica tenciona recuperar criticamente. Estas sfio, a meu juizo, as princi- pais tradicdes, responsdveis _pelas principais perspectivas, de cujos cho- ques resultam as mais importantes di- vergéncias no campo das chamadas HERMENEUTICA E CIfNCIAS HUMANAS. ciéncias sociais ¢ humanas.'* Este quadro de impasses ¢ oposigdes nao é superdvel, ainda que as diversas po- sigdes possam se desenvolver e recom- binar. Tal como o entendo, constitui nosso horizonte. As divergéncias em pauta sdo referencias estratégicas para as trés vertentes e suas subdivis6es internas (€ seus cruzamentos). A tal ponto, que cada posigo tende a se converter, hoje, numa metaposi¢ao, pois qual, ao situar-se, devora (antidialeticamente) as demais (vide a brilhante andlise da antropofagia que Eduardo Viveiros de Castro rea- liza, op. cit.) ou se define por oposi- cao As correntes rivais, incorporando em seu proprio discurso, criticamen- te, os outros discursos. Abandonar este quadro é como sal- tar do mundo ou da vida: s6 é pos- sivel pelo siléncio, pela morte ou por um fiat apenas inteligivel a posteriori, jamais antecipavel. Este mundo é 0 nosso. Nés, seres histéricos, finitos, datados e¢ marcados por inscrigdes particularizantes, nos situamos no ho- rizonte caracterizado pelo choque des- sas tradigSes. Esta interpretagio nfo foge & regra, obviamente. Ela foi elaborada a par- tir da perspectiva hermenéutica, e 0 proprio quadro, a idéia de horizonte, a @nfase nas tradicdes derivam do ponto de vista assumido. Sua vanta- gem é definir a metalinguagem ou a metaconsciéncia da critica ou da in- terpretacao como o nivel em que se deve desenvolver a reflexdo sobre os temas que nos desafiam. A reflexiio se torna, nesses termos, sempre tam- bém uma auto-reflexdo. Como o qua- dro impde as posigdes 0 esforgo de se auto-refletirem contextualizando-se (convertendo-se em metaposigdes, co- mo dissemos), isto ¢, enfrentando os limites determinados pelo _préprio quadro, a natureza metalinguistica ou metainterpretativa, ou ainda auto-re- 137 flexiva da hermenéutica a transforma, em certo sentido, na posigao do qua- dro mesmo, entendido como conver- géncia de tradigdes divergentes — mas necessérias e insuperdveis pelas ‘oponentes —, enquanto convivéncia de diferengas inconcilidveis. Quadro ou horizonte nada tém a ver com con- ceitos estruturalistas, como problemé- tica (Althusser, 1970) ou episteme Foucault, s/d). A simultaneidade de tradigdes nao as torna, de modo algum, redutiveis a estruturas co- muns. Ou seja, a hermenéutica, ao postular como necessério a legitimi- dade da interpretacdo 0 movimento auto-reflexivo — fadado, no limite, ao malogro —, que visa a situar his- t6rico-culturalmente o préprio movi- mento compreensivo (a definigao da necessidade decorre da consciéncia do pertencimento, matriz da finitude), define-se como postura plural ou in- trinsicamente dialdgica (nao-eclética, porque situada e critica), compativel com © universo irremediavelmente agonistico de nossa cultura cientifico- filoséfica. Procuramos localizar a hermenéu- tica no cruzamento de alguns desafios ja tradicionais, langando-a ante as aporias das ciéncias humanas, néo com 0 intuito de fazé-la desempenhar uma fungdo instrumental ou oferecer métodos eficazes, mas com 0 propé- sito de contribuir para a abertura de um horizonte enriquecedor de refle- xdo, que se possa constituir em esti- mulo aos esforgos inconclusos e sem- pre renovados de autoconhecimento, subjacentes a todo investimento cog- nitivo. Muitas questdes apenas se abrem ante as conclusdes parciais deste en- saio. Entre as tarefas perturbadoras atraentes por desenvolver, talvez me- recesse destaque a elaboragao da idéia (apenas sugerida) de quadro e de suas relagSes com as teorias que suposta- 138 mente o compdem: nao se confunde com nenhuma delas — nem com seu conjunto —, ainda que s6 possa ser definido por uma entre elas, pois se houvesse a hipdtese de algo como uma metateoria exterior ao quadro, ele perderia seu sentido, deixaria de sé-lo. E caso ampliasse seu escopo para incluir a metateoria que se defi- nisse do exterior, tomando-a como objeto, reduzi-la-ia a mero componen- te (do quadro), incapaz de exercer as fungdes a que originalmente se dest nava. A regressio ao infinito é o limi te externo; o paradoxal papel total zante-parcializador, o limite interno; 0 ecletismo é o risco permanente. Mas a riqueza da concepgao e de suas im- plicagdes pode ser significativa. A discussdo reposta recentemente entre estudiosos da literatura sobre as fron- teiras das obras, a tensdo entre unida- de e inacabamento virtual, a rede dia- légico-agonistica em que se inscre- vem, certamente apontard elementos decisivos para o desdobramento cri- tico das hipéteses aqui sugeridas. Estas, todavia, so questdes para outros ensaios. Seria dtimo que eles pudessem provir de outras vozes, em outros tons. Como nos ensinaram T< quato, Drummond e Pessoa, desafi- nar € preciso. Sendo, como navegar? 1. £ preciso estar atento para evitar abusos reificadores desta dualidade, 36 € vilida para referencias gerais, © util apenas para um esboco de mapcamento necessirio. De fato, ambas as vertentes s¢ superpdem, se recortam mutuamente, pro- duzindo configuragdes muito complexas. 2. A idéia de que a ciéncia tem sido apropriada como uma ideologia, significa- tivamente a predominante em nosso tem- po, constitui uma tese recorrente dos autores ligados & chamada Escola de Frankfurt, como Adorno, Marcuse, Hor- kheimer e, inclusive, Habermas. Husserl ESTUDOS HISTORICOS — 1988/1 e Heidegger, assim como Marx, exerce- ram influéncia decisiva na formulagio desta concepgio, em sua versio, digamos, mais socioldgica. 3. Ainda que esta leitura se apéie em referencias claras © explicitas de Dilthey, ha, por outro lado, farta evidéncia de uma compreensio bem diversa, segundo a qual vida surge como ordem, estrutura, @ dominio de leis. Nao se trata de con- tradic&o. Ambos os sentidos podem ser verdadeiros; basta que os fagamos reme- ter a momentos, dimensdes ou aspectos distintos, Para o desenvolvimento a que nos propomos, importa destacar o caréter avesso a ordem, o qual, vale insistir, deve ser admitido como limite, virtualidade, mas nem por isso como menos relevante. 4. Dilthey distingue a compreensio da explicagéo, sendo esta a determinagio de relagdes causais. 5. Os graus de subordinagdo da inter- pretagio opéem explicitamente Gadamer (1971 © 1979) a Habermas (1970 © 1980), implicitamente o primeiro a Wittgens- tein (1975) € a Steiner (1976). 6. Acentuese, todavia, que nem todos os autores que discutem o assunto con- cordam com a idéia de que hd uma com- plementariedade entre anélise, passfvel de orientagao metodolégica, e interpretagdo, que requer mais e menos que aplicagio metodolégica; menos: nfo é vidvel liber- tarse plenamente do cativeiro das tradi- gées, das preconcepgdes, do préprio hori- zonte delineado pela situagao histérica € pela finitude — ainda que o horizonte seja, por definigio, mével, e que as pré- prias tradicdes nfo devam ser reificadas, j& que se submetem, elas mesmas, a reapro- priagdes interpretativas (Steiner, 1976); mais; antecipagio hermenéutica € mais que derivagio de corolérios a partir de axiomas, ou elaborago de respostas a per- guntas jf formuladas. E a propria formu- lacdo de hipdteses ou perguntas, é o salto {de que fala Heidegger: 1962 e 1983), 6 produgdo imaginativa, geradora do novo, correspondente & contingéncia da yida & criagdo de sentido, de que o objeto in- terpretado € portador. 7. Esta distingfo € inspirada em Ha- bermas (1976), mas procura incorporar critica de Ricoeur & oposig¢ao entre inte- ressc emancipatério ¢ comunicativo (Ri- coeur, 1977). HERMENEUTICA E CIENCIAS HUMANAS 8. Todo o encaminhamento deste tépico deve a Bernstein, 1983. 9. Devo a Ruben Cesar Fernandes 0 re- conhecimento da necessidade de enfatizar esta cautela. (Vide, a propésito de uma importante questéo concxa, Vaz, 1987). 10. Estou amplamente consciente dos riscos implicados por estas palavras bani- das, de um modo geral com boas razdes, de nossa linguagem “cientifica” (Feyera- bend. 1987). Recorro a elas com uma dis- posicgo intencionalmente provocativa. Po- deria ter optado pelo yocabulirio mais nobre do desejo. Mas 0 peso do conceito seria excessivamente oneroso. 11. Por isso o nticleo da perspectiva de Gadamer, a co-determinagio entre univer- sal e particular, é tributario de Hegel da filosofia da representacio, opondo-se fortemente, neste aspecto decisivo, a cha- mada filosofia da diferenca, ainda que haja muitas distingdes apenas de énfase e importante identidade na atencéo cen- tral & diferenga, 12. Esta hipétese foi aplicada a teoria da cultura (Soares, 1983 e 1984) e se encontra bastante desenvolvida no estudo da sociedade Araweté (Viveiros de Cas- tro, 1986). Esté presente em Heidegger © em varias obras de G. Deleuze. En- quanto para Heidegger o fendmeno era inteligivel e reconhecivel ao nivel da vi- véncia, 0 notével antropdlogo e filésofo Lévy-Briihl teve grandes dificuldades, até al de sua vida, em extrair conseqiién- de seus insights reveladores sobre “participagdo”, esta aventura do espi que se projeta sobre o mundo, tornan- do-se outro, antes de firmarse como o idéntico-a-si (sujeito), ao qual cumpriria debrugar-se (néo mais langarse) sobre 0 outro (objeto). As razdes dessas dificulda- des estavam provavelmente no forte matiz cartesiano de sua formagao (sobre a revo- lugéo a que Heidegger submete o carte- sianismo, vide Ricouer, 1978). 13. Ricardo Benzaquen de Araujo lem- bra, com razio (em comunicagao pessoal). © lugar muito peculiar ocupado neste qua- dro pela Escola de Frankfurt, caracteri zada justamente pelo esforco de combinar tradigdes diferentes. O desenvolvimento deste tema exigiria, por si mesmo, um ensaio & parte. Fica assinalada, entre tan- tas, mais esta insuficiéncia do presente estudo. 139 BIBLIOGRAFIA Apel, Karl-Otto 1980. “The a priori of the communica- tion community and the founda- tions of ethics: the problem of a rational foundation of ethics in the scientific age”. In: Towards @ transformation of philosophy. Londres, “Routledge & Kegan Paul. Austin, J. L. 1962. How to do things with words. ‘Oxford University Press. Bachelard, Gaston 1948. La terre et les réveries de la vo- Fonté. Paris, Librairie José Corti 1970. La formation de lesprit scientifi que, contribution a une psycha- nalyse de la connaissance objec- tive. Paris, Librairie J. Grin. Benveniste, Emile 1966. “De Ia subjectivité dans le lan- gaje”. In: Problémes de linguis- jue générale, vol, 1. Paris, Gal- Timard. 1972. “La naturaleza de los pronom- bres”. In: Problemas de linguis- tica general. México, Siglo Vein- tiuno. Berlin, Isaiah 1981. Quatro ensaios sobre a liberdade, Brasilia, UnB. 1982, Vico e Herder. Brasilia, UnB. 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