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\ico Gpitulo Il] A FABULA, TEMA, FIGURA E EFEITOS DE SENTIDO “Um livro pode valer pelo muito que nele ndo deveu caber.” Joko Gurmarizs Rosa uma otra Ki bie [re oma vee ums oot ae do pressuposto tedrico defendido pela And- lise do Discurso de que a linguagem nao é transparente, visto que nao ha relagao direta entre linguagem/pensamen- ‘to/mundo. Assim, somos levadas a considerar que 0 sentido sempre pode vir a ser outro, como no enunciado“O cachor- 20 do seu irmao esté ait” Desse modo, discutimos, neste capitulo a leitura de uma fi- bula ealgumas possibilidades de interpretagao. Consideramos fundamental analisar 0 conceitoatribuido a determinados ter- ‘mos, muito usados nos livros didticos quando a proposta € Ikitura, produgio c interpretagao de textos. Trata-se dos termos: ‘tema e assunto que, para ns, deixam implicito que existe um. linico “assunto” circulando no texto out anda, que ha um tema pronto, determinado, que o leitor deve reconhecet. Essa visio de sentido tinico diverge de nosso embasa- ‘mento teérico, pois defendemos, em concordincia com a Analise do Discurso, que toda texto sempre oferece varias possibilidades de leitura, que 0 sentido € sécio-historica- ‘mente construido e que essa construcio esté relacionada & posigdo que o sujeito ocupa na sociedade. Isso significa que a palavra “liberdade” pode ser usada pelo pai, pelo filho, pelo professor, pelo aluno, ¢ para cada um essa palavra pode ter um sentido novo. Indo além, em tempos de ditadura,o sentido dessa mesma palavra pode nio set 0 mesmo que em tempos de democracia, ou em tempos de guerra, ou em tempos de paz. Por tudo isso, doravante uusaremos as expressoes regides de sentido e teia significativa para nos referirmos as palavras temas ¢ assuartos, visto que, nos textos, 0 que temos so sentidos que se cruzam, dialo- gam, confirmam-se ou, também, entram em confronto. Buscando sinalizar para o leitor 0 jogo desses sentidos € dessa teia de significasdo, reproduzimos, a seguir, duas versdes da mesma fabula, a primeira de Esopo, “O ledo ¢ rato”; € a segunda de Millor Fernandes (1978), cujo titulo “O ledo, 0 burro € 0 rato”, Depois, procederemos & anilise ¢ a interpretagdo das duas versdes. O ledo eo rato Um leae, cansado de tanto cagar, dormia espichado debaixo 4a soma boa de urna drvore, Vierarn uns ratios passear em cima dele cle acordow. Todos conseguiram fugir, menos umn, que 0 ledo prendeu debaixo da pata, Tanto o ratinko pedi implo- row que 0 leao desist de esmagd-lo e deisou que fosse embora. Algun tempo depois o leo ficou preso na rede de uns eagadores. ‘Nao conseguindo se soltar, facia a florestainteira tremer com seus urros de saiva. Nisso aparece o ratinho,e com seus dentes aflados ren as cordase soto 0 eno. ‘Moral: Uma boa acao ganha outra Amigos pequenos podem ser grandes amigos. A nosso ver, o trabalho com a fibula é de grande rele- vancia na sala de aula, principalmente, quando a concep- A fabnl, tema, figura e its de seni fo de leitura ultrapassa a visio reducionista de repeticao do sentido literal do texto, Defendemos isso, pois a fabuila € muito mais do que hist6rias sobre animais e deve ser lida ¢ interpretada considerando-se a dentincia sécio-hist6rica que nela se encerra. A leitura da fabula pode estimular a dis- cussao (portanto, permite que 0 discurso polémico se insta- le) acerca do relacionamento social, ou seja, faculta a reali- zagio de uma leitura polissémica ¢, sendo assim, apresenta varias possibilidades de leitura. Diante disso, julgamos que 65 leitores podem usufruir a interpretagao da fabula para contestar determinada situagao que esteja fora da ordem. Oledo, 0 burro e 0 rato Um lei, wm burroe wm rato voltaram, afnal, da cagada que avian empreendido juntos ecolocaram tudo que tinham caga- do: dois veados, algunas perdizes, tes tatus, uma paca e muita «aga menor. O leo sentow-se num tronco e, com voz tonitruante {que procurava suavizar, berrou: “Bem, agora que terminarios wn magnifico dia de trabalho, descanseros, agui, camsaradas, ‘para ajusta parttha do nosso esforgo conjuto. Compadte burro, ‘por favor, vocé que & 0 mais sdbio de nés trés (com licenga do compadie rato), vocé, compacire burr, vai fazer a partilha desta caga cmt trés partes absohutamente iguais. Vannes, compadre ato, até rio, beber um pouco de dgua, deixando nosso grande ansigo ‘burro em paz para deliberas” (0s dois se afastaram, os dois foram ao ri, beberam dgua e ficaran ue ternpo. Voltaramn e verifcarans que o burro tisha fe 10 wm trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caga en tes partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, 0 burro perguatou ao ledo: “Prost, compadre leo, a est, que acha da partilha?” © leao ndo disse uma palavra, Dew wma vio~ lenta patada na nuca do burr, prostrando-o no chia, orto. Sorrindo, 0 ledo voltow-se para o rato ¢ disse: “Compadre rato, amento muito, mas tenko a impress de que concorda em ‘que niio podiaenos suportar a presenga de tamanha inaptidio ¢ brurrice. Desculpe ew ter perdido a paciéncia, mas nao havia ou- tra coisa a fazer Hit muito que eu nao suportava mais 0 compa- «dre burro. Me faca um favor agora — divida vocéo bolo da caga, incluindo, por favor, 0 corpo do compadre burro. Vow até 0 ri, novamente, deixando-the calma para uma deliberagdo sensata’ Mal o leo se afastou, 0 rato nao teve a menor dtivida, Divi- dis 0 monte de caga em dois, De um: lado toda a caga, inclusive 0 corpo do burre. Do outro apenas um ratinho cinza morto por caso. 0 ledo ainda nao tinha chegado ao rio quando 0 rato 0 chamou: “Corapadte ldo, est feita a partifhal” O lea, vendo a caca dividida de maneira tdo justa, nto pode deixar de cumpri- ‘mentar 0 rato: “Maravitioso meu caro compadre, maravithoso! Como voce chegou to depressa a uma partitha tao certa?” E 0 rato respondeus “Muito simples. Estabeleci wma relagio mate- ‘matica entre seu tamano e 0 meu — é claro que voce precisa comer muito mais, Traced uma comparacio entre a sua forga ¢ 4 minha — 6 claro que voce precisa de muito maior volume de alinientagao do que eu. Compare, ponderadamente, sua posigao 1a floresta com a minha — e, evidentemente, a partitha s6 po- da ser esta, Além do que, sou um intelectual, sou todo espirito!™ “Inacreditével, inacreditével! Que compreensio! Que argica!’ exclamou o lea, realmente admirado, “Olka, juro que nunca tinha notado, em voce, essa cultura, Como voct escondeut isso 0 tempo todo, e quers Ihe ensinow tanta sabedoria?® “Na verdade, leao, eu nunca soube nada. Se me permite um elogio fimebre, se nao se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com 0 burro morte.” ‘Moral: 86 un burro tenta fcar coma parte do leo (faba ema figura edits de seatdo Podemos analisar esse texto partindo dos conceitos de tema e figura, entendidos aqui como efeitos de sentido que circulam nos textos, por meio de elementos concretos e re- presentagdes que recobrem toda a superficie da narrativa. Uma leitura ingénua ou literal poderia levar o leitor a crer que o texto se refere a trés animais, um leao, um burro € uum rato, que esto repartindo uma caga que empreende- ram juntos. No entanto, partindo do que estamos propondo @ duvidando da transparéncia da linguagem, perccbemos {que esse texto, assim como qualquer outro, apresenta varias possibilidades de leitura. Considerando a rede figurativa do texto, o leitor poderd fazer algumas leituras e no outras. Partindo do postulado de que nao hi relagio unilateral entre palavra e mundo, entre linguagem € representa¢do, somos levados a duvidar de que o significado de ledo seja simplesmente um animal, quadripede, fero7, mamiéfero que habita as savanas africanas e € considerado o rei da selva, Nessa mesma direcdo, duvidamos que um burro seja apenas, o retrato de um animal de carga, também mamifero, qua- dripede ¢ usado para trabalhos repetitivos, cuja conotagao do senso comum indica pouca ou nenhuma inteligéncia. © mal alu, pur sua ver, ndo € entendido aqui como um a pequeno, sujo, que causa asco, nojo e vive em bueiros e sub- terrineos de esgoto E preciso considerar, para realizara leitura desse texto, que ele foi escrito em 1978, em plena ditadura militar, 0 que se torna um clemento contextual importante para a interpreta- 40, indicando 0 que poderia ser dito e 0 que deveria perma- necer em silencio naquela época e contexto, Ou seja, havia, entio, certos sentidos que nao poderiam ser ditos de maneira explicita e que aqui retornam sob a cifra das metéforas mate rializadas nas figuras do ledo, burro e rato. Temos a dentincia de uma luta desigual entre classes, cujo poder nao era dist bufdo de maneira homogénea (¢, diga-se de passagem, ainda nao o é) e que aparece simbolizada na narrativa pela despro- porgio de tamanho, forga ¢ ferocidade dos animais, Hi todo um interdiscurso que sustenta os sentidos atri- bbuidos ao leao, burro e rato, e é nesses sentidos que o leitor se apéia para realizar a interpretacao, considerada pela And- lise do Discurso como sécio-histérica e ideol6gica. Neste capitulo, estamos tratando de um género textual muito antigo e conhecido, a fabula, mas que, as vezes,é tra- bathado nas cacolas de mancira ingénus. Por isso, julgamos relevante que este livro apresente uma andlise de fabula, a fim de que oleitor entre em contato com outras possibilida- des de leitura para esse género de texto. Iniciaremos com algumas consideragdes acerca das ca- racterfsticas e origem da fabula, Segundo Machado (1994, p-57),2 fabula nasceu no Oriente e foi reinventada no Oci- dente pelo escravo grego Esopo, que criava histérias basea- das em animais para mostrar como agir com sabedoria. Suas, fabulas, mais tarde, foram reescritas em versos, com acen- tuado tom satirico, pelo escravo romano Fedro. Contudo, © grande responsivel pela divulgagao ¢ reconhecimento da fi- bula no Ocidente moderno foi o francés Jean de la Fontaine, poeta que conhecia muito bem a arte e as manifestagées da cultura popular. Motivado pela natureza simbélica das fabulas, La Fontai- ne criava suas histérias com um tinico objetivo: apresentar os animais como os principais agentes da educacao dos homens. Para isso, 0s animais sao colocados numa situagao humana exemplar, tornando-se uma especie de stmbolo, Por exemplo: a formiga representa o trabalho; o ledo simboliza a forga; a ra- posa,a asticia; 0 lobo, o poder despético; € assim por diante, boa, ena, figura its de sete ra uma ve me ote histéria {A fabula apresenta-se como uma narrativa curta, empre~ ga linguagem culta ou cologuial, dependendo do efeito de sentido que se deseja construir, e, no final, destaca-se uma ‘moral, com 0 objetivo de transmitir ensinamento. Partindo dessas consideragdes, podemos levantar algu- ‘mas pistas de leitura que subjazem as caracteristicas desse género textual e sio fundamentais pata que a interpretagio caminhe para determinada diregao. Vejamos, se os personagens da fabula séo animais e esses animais engendram uma narrativa simples, de cunho popu- Jat, que se encerra com untra mural, entendemos quc exte tex to é produzido a fim de manter a ordem ¢ controlar os sen~ tidos que poderiam escapar das maos daqueles que detém o poder e, conseqiientemente, 0 ca0s social poderia instalar-se. Entao, por meio dessas narrativas, os sentidos permitidos e vyalorizados circulavam pela sociedade e o bem sempre era exaltado pela moral da hist6ria, como tentativa de moldar ‘0 comportamento das pessoas para no serem mas como Jobo; astutas como a raposa; poderosas como 0 leds pregui- ‘cosas como a cigarra; enfim, ensinar os leitores a agir de uma forma leal e pacifica como 0 cordeiros amiga como 0 cio; trabathadora com a formiga, solidéria como um rato, que, apesar de pequeno, pode salvar a vida de um ledo... ‘A leitura das fabulas possibilita interpretar a dentincia do mau comportamento ea valorizagao do bom comporta- mento, deixando implicito que o sujeito que se comportar ‘mal sera castigado. A fibula lida e interpretada dessa manei~ +a, com a ilusio de sentido nico, despreza uma leitura po- lissémica, ¢ nao questiona sentidos, como, por exemplo, da preguica atribufda a cigarra, uma vez que aquele que canta € considerado preguigoso; por outro lado, aquele que faz 0 trabalho bragal, como a formiga, ¢ valorizado. Sera que uma sociedade precisa somente de trabalhado- res bragais, cortadores de cana, operdtios das fabricas para colocar o pafs em andamento ou, serd, ainda, que se 0s le tores nao se sentissem valorizados por meio do trabalho bragal poderiam duvidar dessa relagao desigual de forgas que sustenta, principalmente, as sociedades capitalistas ¢, assim, eles poderiam passar ater vontade de cantar, estudar, pesquisa, trabalhar com arte, danga e outras atividades que colocariam em risco a forga de trabalho que sustenta uma nagao? Isso porque, como sabemos, enquanto uns poucos podem passear, viajar, dancar, cantar; ir a teatros e cinemas; muitos outros precisam trabalhar duro para manter essa “ordem” da produgao. Leituras como essa sto escamoteadas das atividades es- colares, embora tenhamos conhecimento de outras versoes, que estdo circulando sobre as fibulas ¢ que jé apontam a cantoria da cigarra como uma forma de alegrar o trabalho da formiga; no entanto, julgamos que a interpretagao deva ir além, deva questionar a ideologia que faz parecer natu- rais determinados sentidos e duvidar deles, ealizando, dessa forma, uma leitura sécio-hist rica, Conforme o que estamos defendendo, faremos uma in- terpretagao sécio-histérica da fabula de Millor Fernandes. De acordo com os pressupostos da Anélise do Discurso, sa- bemos que quando um texto diz “x’ ele deixou de dizer“y"5 porém os sentidos de “y” continuam a existir, mesmo que silenciados ¢ € esse silenciamento que pretendemos discutir na fabula “O Leto, 0 burro ¢ o rato”, Como ja foi dito, o contexto sécio-histérico subjacente & produgdo desse texto foia ditadura militar; logo, sentidos de dentincia, de reivindicagao, de posicionamento contrario & ideologia dominante, naquele momento, eram proibidos ¢, igre elites de sentida | fabri. fm rn outa bisbia portanto, deviam permanecer silenciados, No entanto,aque- les que sabem usar a linguagem para criar efeitos de senti- do desejados conseguem fazer circular sentidos implicitos, {que nao seriam permitidos se ditos literalmente, como, por cexemplo, se o texto denunciasse o regime militar, a opressio do povo, as torturas pelas quais passavam os sujeit ousavam falar o que era proibido ser dito. Assim, por meio do leio, detentor da forga e da trucu- lencia, o texto vai tecendo sua dentincia social, instigando alguns leitores a interpretar como abusiva a relacio desigual de poder que se instala entre o ledo, o burro co rato. O burro representa o povo simples ¢ ingénuo, que nao se da conta da submissio e da exploragio a que é submetido; por isso, acaba exterminado, quando, a0 nao perceber os sentidos que estavam em jogo, deixa de ser um bom jogador, na medi- da em que acredita poder ter o direito de uma participacio igualitaria, numa sociedade tao desigual, em que o povo deve saber que sua forga fisica deve estar a servigo da manutengio da “ordem e do progresso” daqueles que estio no poder. Por sua ver, 0 rato representa a parte da populagio que ja entendeu as regras do jogo e prefere submeter-se a exploragio edominagio a lutar e morrer por um mundo mais justo, Assu- ‘me, dessa forma, sua condigio de inferioridade no momento «em que reconhece a forga do ledo e, com isso, justifica 0 dineito leonino a maior parte da caga. Nao denuncia esse abuso de poder, embora, a0 contério do ingénuo burro, o rato o tenha reconhecidlo; todavia, prefere viver com os restos que sobrama correr 0 isco de também ser exterminado, alimentando, com essa atitude, esse sistema social tao desigual. Ou sobrevivendo hoje, para poder transformé-lo (o sistema) amanha. Partindo do sentido construido na fabula de Esopo sobre © papel do rato, que, apesar de pequeno, consegue salvar 0 Jeao, podemos pensar como uma possibilidade de interpre- tagdo para a fabula de Millor que o rato, como jé entendeu 0 jogo do leao, pudesse rebelar-se e lutar, com outros ratos, por uma sociedade mais justa. Contudo, 0 que observamos €a inversio e a subversio de sentidos construidos nessa f- bula, em quea moral nao tem o mesmo objetivo das fabulas tradicionais, como jé discutimos, pois 0 que ocorre aqui é a confirmagao de que aquele que detém a forgae o poder é re- compensado, usando a terminologia greimasiana, é sancio- nado positivamente, como aconteceu com 0 ledo e, naquele contexto histérico brasileiro, os sujeitos que ndo quisessem set perseguidos tinham de ocupar a posigao do rato, ou seja, ossilenciamento. ‘Temos, aqui, nao uma fibula que visa ao ensinamento, ‘mas, sim, um texto que, usando a disfargada neutralidade de personagens animais, denuncia com ironia uma situagdo que estava (esté) fora da ordem, Acreditamos que os leitores que realizam uma leitura s6cio-histérica e consideram os temas as figuras presentes no texto constroem uma interpretacio, ‘menos ingénua da narrativa e dos atos de linguagem. aoa, tema, figura e fei de sentido

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