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David Hume Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocinio nos assuntos morais Tradugao Déborah Danowski IMPRENSA cae OnciALe NESP Parte I Das idéias, sua origem, composigao, conexdo, abstracdo etc. Segdo Da origem de nossas idéias As percepcGes da mente humana se reduzem a dois géneros dis- tintos, que chamarei de IMPRESSOES e IDEIAS. A diferenca entre es- tas consiste nos graus de forca e vividez com que atingem a mente e Penetram em nosso pensamento ou consciéncia. As percepcdes que entram com mais forca e violéncia podem ser chamadas de impres- sdes; sob esse termo incluo todas as nossas sensagdes, paixdes e ‘emogdes, em sua primeira apari¢ao 4 alma. Denomino idéias as péli- das imagens dessas impress6es no pensamento eno raciocinio, como, por exemplo, todas as percepgies despertadas pelo presente discur- so, excetuando-se apenas as que derivam da visio e do tato, e exce- tuando-se igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar. Creio que nao serao necess4- rias muitas palavras para explicar essa distingo. Cada um, por si mes- mo, percebe imediatamente a diferenca entre sentir e pensat. Os graus 25 ‘Tratado da natureza humana mais comuns dessas duas espécies de percepcdes s4o facilmente dis- tingutveis, mas ndo é impossfvel que, em certos casos, elas possam estar muito proximas uma da outra. Assim, por exemplo, no sono, no delirio febril, na loucura, ou em qualquer emogio mais violenta da alma, nossas idéias podem se aproximar de nossas impressées. Por outro lado, acontece, as vezes, de nossas impressGes serem to apagadas e fracas que nao somos capazes de as distinguir de nossas idéias, Mas, apesar dessa grande semelhanga em alguns poucos ca- 80s, elas sao geralmente tao diferentes que ninguém pode hesitar em separé-las em duas classes distintas, atribuindo a cada uma um nome caracteristico para marcar sua diferenca.* Convém observar ainda uma segunda divisdo entre nossas per- cepgées, que se aplica tanto As impressGes como as idéias. Trata-se da divisdo em SIMPLES e COMPLEXAS. Percepgdes simples, sejam elas impressées ou idéias, sdo aquelas que no admitem nenhuma dis- tingdo ou separagao. As complexas so 0 contrario dessas, e podem ser distinguidas em partes. Embora uma cor, sabor e aroma particu- lares sejam todos qualidades unidas nesta mag4, é facil perceber que elas nao sao a mesma coisa, sendo ao menos distinguiveis umas das outras, ‘Tendo, com tais divis6es, ordenado e classificado nossos objetos, podemos agora nos dedicar a considerar de maneira mais precisa suas, qualidades e relacées. A primeira circunstancia que me chama a aten- fo 6 grande semelhanga entre nossas impress6es ¢ idéias em todos 08 pontos, exceto em seus grauis de forga e vivider. As idéias parecem ser de alguma forma os reflexos das impress6es; de modo que todas, as percepcdes da mente so duplas, aparecendo como impressdes e 1 imprego aqui os trmos ingress ida em urn sentido ciferente do usual, liberdade que espero me seja concedida.Tive2, na verdad, eu esteja restituinde a palava “dela” seu sentid origina, do qual 6 St. Locke a desviou quando a fez representar todas as nossas percepcbes. Qunto-ao term “impressio",gostaria que no Seo entenlesse aqui come ex primuindo a maneita como nossas porcepsoes vividas sSo produzidas na ‘exprimindo apenas as propria percepgBes ~ para as quais AZo existe um nore particula shea em ings, nem, que eu saa, em nenhuna outra Hngua, 26 Livro 1, Parte, Seyfo 1 como idéias. Quando fecho os olhos penso em meu quarto, as idéias que formo sao representagées exatas das impressdes que antes senti; endo h nem sequer uma circunstdncia naquelas que nfo se encon- tre também nestas tiltimas. Ao passar em revista minhas outras per- cepgGes, encontro a mesma semelhanca e representacao. Idéias e im- presses parecem sempre se corresponder mutuamente. Essa circunstancia me parece notavel, prendendo minha atengo por um momento, Ao proceder a um exame mais rigoroso, vejo que me deixei levar longe demais pelas primeiras aparéncias, e que terei de fazer uso da distingao das percepgGes em simples e complexas para limitar a conclu- so geral de que todas as nossas idéias e impressdes sao semelhantes. Ob- servo que muitas de nossas idéias complexas jamais tiveram impres- ses que Ihes correspondessem, e que muitas de nossas impresses complexas nunca sfo copiadas de maneira exata como idéias. Posso imaginar uma cidade como a Nova Jerusalém, pavimentada de ouro ¢ com seus muros cobertos de rubis, mesmo que nunca tenha visto nenhuma cidade assim. Eu vi Paris; mas afirmarei por isso que sou capaz de formar daquela cidade uma idéia que represente perfeitamente todas as suas ruas € casas, em suas proporgbes reais e corretas? Percebo, portanto, que, embora haja em geral uma grande seme- Thanga entre nossas impresses e idéias complexas, ndo é uma regra universalmente verdadeira que elas sejam cépias exatas umas das outras. Consideremos agora o que ocorre com nossas percep¢Ses sim- ples. Apds 0 exame mais rigoroso de que sou capaz, arrisco-me a afir- mar que, aqui, a regra néo comporta exce¢do, e que toda idéia simples tem uma impressao simples que a ela se assemelha; e toda impressao simples, uma idéia correspondente. A idéia de vermelho que forma- mos no escuro € a impresso que atinge nossos olhos & luz do sol diferem somente em grau, ndo em natureza. E impossivel provar, por uma enumeragao exaustiva de todos os casos, que o mesmo se dé com todas as nossas impressdes ¢ idéias simples. Qualquer pessoa pode se convencer disso, examinando tantas quantas queira. Mas se a7 Tratado da naturean humana alguém negar essa semelhanga universal, 0 tinico meio que vejo de o convencer é pedir-Ihe que mostre uma impresso simples que nao tenha uma idéia correspondente, ou uma idéia simples que nao te- nha uma impressdo correspondente. Se ele nao responder a esse desafio—e com certeza nfo conseguiré fazé-1o - poderemos, com base em seu silencio e em nossa propria observacao, ter por estabelecida nossa conclusao. ‘Vemos, assim, que todas as idéias e impressGes ples se asse- melham umas as outras. E, como as complexas se formam a partir delas, podemos afirmar de um modo geral que essas duas espécies de percepgbes so exatamente correspondentes. Tendo descoberto essa relacdo, que nao requer nenhum exame adicional, estou curioso por descobrir algumas outras de suas qualidades. Consideremos como elas se situam no que diz respeito a sua existéncia, e quais delas, im- press6es ou idéias, so causas, quais so efeitos. ‘O exame completo clessa questao ¢ 0 tema do presente tratado; por isso, contentar-nos-emos aqui em estabelecer nossa proposi¢ao geral: que todas as nossas idéias simples, em sua primeira aparigao, derivam de impres- ses simples, que thes correspondem e que elas representam com exatiddo ‘Ao buscar fendmenos que provem essa proposi¢ao, encontro- 08 de apenas dois tipos; mas para cada um desses tipos, os fendme- nos so ébvios, numerosos e conclusivos. Em primeiro lugar, median- te um novo exame, certifico-me daquilo que jé afirmei, a saber, que toda impressao simples ¢ acompanhada de uma idéia correspondente, ¢ toda idéia simples, de uma impress4o correspondente. Dessa con- jungao* constante entre percepgdes semelhantes, concluo imedia- tamente que hd uma forte conexao entre nossas impressGes ¢ idéias correspondentes, ¢ que a existéncia de umas tem uma influéncia con- sideravel sobre a das outras. Uma tal conjungio constante, em um niimero infinito de casos, jamais poderia surgir do acaso. Bla prova, a0 contrario, que ha uma dependéncia das impresses em relagao as 7 Ver Nota 1, p.788. 28 10 Livro 1, Parte 1, Segto 1 idéias, ou das idéias em relagao as impress6es. Para saber de que lado esté essa dependéncia, examino a ordem de sua primeira aparipdo; e descubro, pela experiéncia constante, que as impressdes simples sem- pre antecedem suas idéias cotrespondentes, nunca aparecendo na or- dem inversa. Para dar a uma crianga uma idéia do escarlate ou do la- ranja, do doce ou do amargo, apresento-Ihe os objetos, ou, em outras palavras, transmito-Ihe essas impress6es; mas nunca faria 0 absurdo de tentar produzir as impress6es excitando as idéias, Nossas idéias, a0 aparecerem, ndo produzem impresses correspondentes; tam- pouco percebemos uma cor ou temos uma sensacio qualquer sim- plesmente por pensar nessa cor ou nessa sensacio. Em contrapartida, vemos que qualquer impressao, da mente ou do corpo, é constante- mente seguida por uma idéia que a ela se assemelha, e da qual difere apenas nos graus de forga e vividez. A conjuncdo constante de nos- sas percepgées semelhantes ¢ uma prova convincente de que umas sio as causas das outras; e essa anterioridade das impresses é uma prova equivalente de que nossas impressbes sao as causas de nossas idéias, e no nossas idéias as causas de nossas impressées. Para confirmar isso, considero um outro fendmeno bastante claro econvincente: toda vez que algum acidente obstrui a operacio das fa- culdades que geram determinadas impressdes, como no caso de um cego ou surdo de nascenga, perdem-se ndo apenas as impressdes, mas também suas idéias correspondentes, dle modo que jamais apa- rece na mente nenhum trago de umas ou de outras. Isso é verdade, nao apenas quando hé uma total destruicao dos érgios da sensa¢ao, mas igualmente quando estes nunca chegaram a ser acionados para pro- duzir uma impressio particular. Nao somos capazes de formar uma idéia correta do sabor de um abacaxi sem té-lo realmente provado. Existe, entretanto, um fendmeno que parece contradizer isso, ¢ que poderia provar que nao é absolutamente impossivel que as idéias antecedam suas impresses correspondentes. Acredito que se admiti- 4 sem dificuldade que as diversas idéias distintas das cores, que pene- tram pelos olhos, ou as idéias dos sons, transmitidas pela audicao, 29 Tratado da nacureza humana sao na realidade diferentes umas das outras, embora ao mesmo tem- po semelhantes. Ora, se isso é verdade em relagao as diferentes co- res, ndo deve ser menos verdade em relagio as diferentes tonalida- des da mesma cor, ou seja, que cada uma delas produz uma idéia distinta e independente do resto. Pois, se nfo fosse assim, deveria ser possivel, pela gradacdo continua das tonalidades, fazer uma cor se transformar insensivelmente na mais afastada dela. Se nao se quiser admitir que nenhum dos matizes intermediatios é diferente, sera ab- surdo negar que os extremos so iguais. Suponhamos, assim, uma pessoa que tenha gozado de sua visio durante trinta anos, e que te- nha se familiarizado perfeitamente com todos os tipos de cores, exceto com uma tinica tonalidade de azul, por exemplo, a qual ela nunca teve a ocasiao de encontrar. Imaginemos que todas as diferentes tonalida- des dessa cor, excetuando-se apenas aquela, sejam dispostas a sua frente, em uma ordem gradualmente descendente, da mais escura & mais clara. E evidente que essa pessoa ira perceber um vazio no lu- gar onde falta a tonalidade, e sera sensivel 4* existéncia de uma maior distdncia entre as cores contiguas aquele espaco que entre quaisquer outras, Pergunto, entdo, se Ihe é possivel suprir tal deficiéncia por meio de sua prépria imaginacdo, produzindo para si mesma a idéia daquela tonalidade particular, muito embora esta jamais lhe tenha sido transmitida por seus sentidos. Acredito que poucos discordarao de que isso seja possivel. Esse exemplo pode servir como prova de que as idéias simples nem sempre derivam das impressGes corresponden- tes - embora o caso seja tao particular e singular que quase ndo é digno de nossa atengao, ndo merecendo que, apenas por sua causa, alteremos nossa maxima geral. + “Will be sensible that". Embora Hume geralmente utilize essa expresso com um sent do equivaleate 20 de “perceber” (© que pata ele, ais, significa ter impressées ou ius), rmantive age em outras poucas ocorréncias a trad literal, mesmo que soe um pou

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