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m Peter Pal Pelbart Vida Nua, Vida Besta, Uma Vida ‘Eu queria falar-Ihe da relagdo entre poder e vidal Sobretudo em duas diregGes principals, que a meu ver caracterizam © contexto contemporaneo. Por um lado, uma tendéncia que poderia ser formulada como ‘segue: 0 poder tomou de assalto a vida. Isto é, 0 poder penetrou todas as esferas da existéncla, e as moblza tana, oa spate Vabahar DSS GE Sune SCORE FAMINE CPST a8 inteligéncia, a imaginagao, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando nao diretamente expropriado pelos paderes. Mas 0 que sao os poderes? Digamos, para ir rapido, com todos 8 riscos de simplificagao: as ciéncias, 0 capital, o Estado, a midia. Os mecanismos diversos a quais: eles se exercem s20 andnimos, esparramados, lexivels, zomatcos. O proprio poder se tomou ‘pés- ‘modemo’, onduiante, acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele ince Sobre nossas maneires de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar. Se antes ainda imaginavamos ter espagos reservados da ingeréncia direta dos poderes (0 corpo, o inconsciente, a subjetividade), e tinnamos a llusdo de preservar em relacdo a eles alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente ‘subsumida a tais mecanismos de modulagéo da existincia Até mesmo o sexo, a linguagem, a comunicagSo, a vida onirica, mesmo a fé, nada disso preserva ja qualquer exterioridade em relagdo aos mecanismos de controle ¢ monitoramento. Para resumi-lo numa frase: 0 poder ja nao se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dent, pllotando nossa vitaldade social de cabo a rabo. Nao << estamos mais &s voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo, tratase de um poder imanente, produtivo. Esse biopoder nao visa barrar a vida, mas encarregar-se dela, intensifica-la, otimiza- la, Dai também nossa exttema dificuldade em resist, ja mal sabemos onde esta o poder, e onde estamos nés, 0 que ele nos dita, 0 que nds dele queremos, nds proprios nos encaregamos de Seopoder administrar nosso controle, € 0 proprio desejo esta inteiramente capturado. Nunca o poder chegou tao Jonge e tao fundo no cere da subjetividade e da propria vida como nessa modalidade contemporanea do biopoder. E onde intervém o segundo eixo que seria preciso evocar, sobretudo em autores provenientes da autonomia italiana. Eu resumo este eixo da seguinte maneira: quando parece que “estA tudo dominado’, como diz um rap brasil, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetio, controlado, dominado, isto é, “a vida", revela no processo mesmo de expropriagdo, sua poténcia \«4 indomavel. Tomemos apenas um exemplo. O capital precisa hoje, no mais de misculos e discipina, orém de inventividade, de imaginagao, de criatividade, de forga-invengao. Mas essa forga-invengao, de) ue 0 capitaismo se apropria e que ele faz render em seu beneficio proprio, nao emana dele, ¢ no limite - poderia até prescindir dele. E 0 que se vai constatando aqui e all: a verdadeira fonte de riqueza hoje 6 a inteligéncia das pessoas, sua criatvidade, sua afetvidade, e tudo isso pertence, como € dbvio, a todos & a cada um, Tal poténcia de vida disseminada por toda parte nos obriga a epensar os proprios terms d0. bo auy resisténcia. Poderiamos resumir esse movimento do seguinte modo: ao poder sobre a vida responde a poténcia da vida, ao biopoder responde a biopoténcia, mas esse “tesponde" nao significa uma reagéo, ja bropo were ‘que 0 que se vai constatando é que tal poténcia de vida ja estava la desde o inicio. A vitalidade social, quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampirizar, aparece subitamente na sua primazia Contol6gica. Aquilo que parecia interamente submetido 20 capital, ou reduzido & mera passividade, a poss solve ‘vida’, aparece agora como reservatorio inesgotével de sentido, manancial de formas de existéncia, “= wale germe de diregdes que extrapolam as estruturas de comando e os célculos dos poderes consttuidos. Seria o és de perworrer essas duas vias motores coma Twa fila de Moebius, 0 biopoder, 3 potbucies biopotencia, 0 poder sobre a vida, a8 poténcias da vida. Mas sab um crivo particular, 0 do corpo. Pois 4. uci. tanto o biopoder como a biopoténcia passam necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo. ‘Assim, proponho trabalhar aqui trés modalidades de "vida’, isto 6, tr8s conceitos de vida, acompanhados de sua dimenséo corporal correspondente, percorrendo de um lado 2 outro 2 banda de Moebius © Ceips mencionada, 3 Modatdedes de" vidot YO muncubenenc Vile Mac Vida Be she Pelouy. er er ge go eer Pee ee oe a 2) O muguimano: Eu gostaria de comegar pelo mais extremo - 0 mucuimano. Retomo brevemente a descrigéo feita por Giorgio Agamben a respeito daqueles que, no campo de concentragéo, recebiam essa designaggo terminal’. © muguimano era o cadaver ambulante, uma reunido de fungées fisicas nos seus titimos ‘sobressaltos?. Era 0 morto-vivo, o homem-mimia, 0 homem-concha. Encurvado sobre si mesmo, esse ‘ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a expressdo indiferente, a pele cinza palida, fina e dura como papel, comegando a descascar, a respiragao lenta, a fala muito baixa, feita a um grande custo... O muguimano era o detida que havia desistido, indiferente a tudo que 0 rodeava, exausto demais Para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte, Essa vida nao humana ja estava ‘excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer? Por qué mucuimano, j4 que se tratava sobretudo de judeus? Porque entregava sua vida ao destino, conforme a imagem simploria do fatalismo {stamico: o muslim é aquele que se submete sem reserva vontade divina. Em todo caso, quando a vida & reduzida ao contomo de uma mera silhueta, como diziam os nazistas ao referit-se aos prisionelros, chamando-os de Figuren, figuras, manequins, aparece a perversao de um Poder que no elimina 0 corpo, mas 0 maniém numa zona intermediéia entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano: 0 Sabrevvente. © bigpoder contemporaneo, concll Agamben, reduz 2 vida & sobrevidabilégca, produ | «— ‘sobreviventes, De Guantanamo & Africa, isso se confirma a cada dia. Ora, quando cunhou 0 temo de biopoder, Foucault tentava discrimind-lo do regime que o havia precedido, denominado de soberenia, O regime de soberania consistia em fazer monter, e deixar Wve. wopadun - CCabia ao soberano a prerrogatva de matar, de maneira espetacular, os que ameacassem seu podero, @ deixar viverem os demais. J4 no contexto biopolitica, surge uma nova preocupago. Nao cabe ao poder Foucault fazer morter, mas sobretudo fazer viver, isto &, cuidar da populag3o, da espécle, dos processos. biokigions, ofmizar a vida. Geri a vida, mais do que exigi a morte, Assim, se antes o poder consistia num mecanismo de subtra¢éo ou extorsdo, seja da riqueza, do trabalho, do corpo, do sangue, —— Cculminando com o privlégio de suprimir a propria vida, 0 biopoder passa agora a funcionar na base da (ya muon incltaga0, do reforgoe da vigiténcia, visando a otmizagéo das forgas vitals que ele submete. Ao invés de Avex vive fazer morrer ¢ debtar viver, trata-se de fazer viver, € deixar morrer. O poder investe a vida, néo mais a [oyn ve morte - dal 0 desinvestimento da morte, que passa a ser andnima, insignificante. Claro que 0 nazismO | ty, (aurvee consiste num cruzamento extremo entre a soberania @ o biopoder, ao fazer viver (a raga ariana), e fazer ‘morrer (as racas inferiores), um em nome do outro. E Pois bem, como dissemos, o blopader contempordneo ja néo se incumbe de fazer viver, nem de fazer ae (Taras us wiceauenereetreeenre produz a sobrevida, No contin biotigico, ele Atv ve ‘busca até isolar um witimo substrato de sobrevida. Como diz Agamben: "Pois nao & mais a vida, nao é ‘mais @ morte, é produgo de uma sobrevida modulavel e virtuaimente infnita que constiul a prestagao decisiva do biopoder de nosso tempo. Trata-se, no homem, de ‘separar a cada vez a vida organica da vida animal, o néo-humano do humano, o mugulmano da testemunha, a vida ‘vegetativa, prolongada pelas técnicas de reanimaco, da vida consciente, até um panto limite que, como as Wonteiras geopoliticas, ~ permanece essencialmente mével, recua segundo o progresso das tecnologias cientificas ou politicas. A ambigo suprema do biopoder é realizar no corpo humano a ‘separagdo absoluta do vivente e do falante, de 06 e bids, do nao-homem e do homem: a sobrevida"s ae Fiquemos pois, por ora, nesse postulado inusitado que Agamben encontra no biopader contemporaneo: fazer sobreviver, produzir um estado de sobrevida biolégica, reduzir o homem a essa dimenszo residual, no humana, vida aus "mucuimano por um lado, 0 néo-morto das salas de terapiaintensiva, por outa, encamam. ACSobrevda @ vida humana reduzta a seu minimo biotégico, & sua nudez ima, vida sem forma, a0 mero Talo da vida, a vida nua. Mas engané-se quem vé vida nua apenas na figura extrema do mugulmano, sem perceber o mais assustador: que de certa maneira somos todos muguimanos. At Bruno Bettelhaim, sobrevivente de Dachew. quando descreve o comandenic dc .ampo, uattica-o como uma dspecie de muculmano, "bem alimentado e bem vestido". Qu seja, 0 carrasco ¢ ele também, iguaimente, fm cadaver vivo, habitando essa zona intermediéra entre o human e o inumano, Pstesmatabe 5 wale. autitles ead wn, 1G, Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz, Paris Payot&Rivages, 1999 25. Améry, Par delé le crime et le chatiment, Arles, Actes Sud, 1995 Sobuenrthers 8. Levi, E isto um homem?, Rocco ? eae 4M. Foucault, La volonté de savoir, Pati, Gallimard, 1976, p 179. hostel? $6 Azemben, Ce qui reste Auschwitz, op, it, . 205. weleleeruyo = maquina bioligica desprovida de sensibilidade e excitablidade nervosa. A condicZo de sobrevivente, de ™muguimano, é um efeito generalizado do biopoder contemporéneo, ele ndo se restringe aos regimes totaltarios, e inclui_plenamente a democracia ocidental, a sociedade de consumo, 0 hedonismo de massa, a medicalzaqéo da existéncia, em suma, a abordagem biolégica da vide numa escala ampliada, O compo Sue Coipo ‘Tomemos a titulo de exemplo o superinvestimento do corpo que caracteriza nossa atualidade. Desde algumas décadas, ofoco do sujeito destocou-se da inimidade psiquica para o proprio corpo. Hoje, 0 eu é Corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparéncia, a sua imagem, a sua performance, a sua salde, a sua longevidade. O predominio da dimenséo corporal na constituigao identitaia permite falar ey oe numa bioidentidade. E verdade que ja ndo estamos diante de um corpo dociizado pelas instiuig6®s oo gaa disciplinares, como ha cem anos atrés, corpo.estriado pela maquina pandptica, o corpo da fabrica, 0 “P< *9 Sen ps Bro = ancene de adequar 0 corpo as normas cientificas da sai, longevidade, equiitrio, por outro, trata-se de adequar 0 corpo as normas da cultura do espetéculo, conforme o modelo das celebridades. A obsesso pola perfectibildade fisica, com as infitas possibiidades de transformagao anunciadas pelas ‘genética, quimicas, eletrGnicas ou mecénicast, essa compulsdo do eu para causar 0 desejo do ou si, mediante a idealizaeao da imagem corporal, mesmo as custas do bem-estar, com as mutiagdes que o ‘comprometem, substtuem finalmente a satisfacd0 erblica que prometem pela mortficagao auto-imposta, © fato @ que abragamos voluntariamente a tirania da corporeidade perfeita, em nome de um gozo= oe sensorial cuja imediatcidade toma ainda mais surpreendente 0 seu custo em sofrimento, A bioascese € |) °° (2) * ‘um cuidado de si, mas a diferenga dos antigos, cujo cuidado de si visava a bela vida, e que Foucault | ST tuidedado ss chamou de estética da existéncia, 0 nosso cuidado visa o proprio corpo, sua longevidade, saide, beleza, || wi boa forma, felcidade cienifica e estética, ou o que Deleuze chamaria a gorda salide dominante. N&O)” (..2, hesitamos em chamé-o, mesmo nas condigdes modulaveis da coergSo cones, de mcpe| Sa, {ascista,- diante do modelo inalcangavel, boa parcela da populagdo ¢ jogada numa condigg0 de] 3. nie “Hiss iodade sub-humana/ Que ademas, 0 corpo tenha se tomado também, um pacote de infornagbes, rio_genético, um. dividual estatstico, com 0 qual somos’ langados a0” domino da Gry bosot faco parte do grupo dos hipertensos, dos soropositivos, etc.., isto so vem fortalecer sc iy 0S Fist igenia. Estamos as voltas, em todo caso, com o registro da vida biologizada..” Reduzidos ] 220 mero Corpo, do corpo excitével ao corpo manipulavel, do corpo espetaculo 20 corpo aulomodulével, & © dominio da vida rua.. Continuamos no dominio da sobrevda, da produgdo maciga de “sobrevivontes" \ 1 sentido amplo do term. > a, ‘Sobrevivencialismo Permitam-me alargar a nogao de sobrevivente. Na sua anaiise do 11 de setembro, Slavoj Zizek contestou 0 adjetivo de covardes imputado aos terroristas que perpetraram o atentado. Afinal, eles nao tem medo da morte, contrariamente aos ocidentais, que ndo so prezam a vida, conforme se alega, mas querem preservé-ta a todo custo, prolongé-la ao maximo. Somos escravos da sobrevivéncia, até num sentido hegeliano. Essa cultura visa sobretudo isso: a sobrevivéncia, pouco importa a que custo. Sobrevivencialismo. Somos os uiltimos homens de Nietzsche, que no querem perecer, que prolongam Quix ste sua agonia,“imersos nia estupidez dos prazeres diarios’ — & o Homo Oltarius. A pergunta de Zizek é ade Atrfunte _+ Sto Paulo: "Quem esta reaimenie vivo hoje? ..€ se somente estvermas recente VWOS Se NOS Mino Laje 7 comprometermos Com uma intensidade excessive qe nos coloca além da “vid> nua"? E se, a0 nos concentrarmos. na. simples. sobrevivéncia, mesmo_ quando. é qualficada.como.“uma boa vila", 0 que Zeek realmente perdemos na vida for a propria vida... Ese o terrrista suicida palesting a ponto de expodir a i mesmo e 205 outfos estiver, num sentido enfético, "mais vivo". No vale_mais_um_histérion SS ° Jurandir Freire Costa, O vestigio e a aura: corpo e consumismo na moral do espeticulo, Rio de Janeiro, ramon, 2004 ” Paula Sibilia, O hamem pés-orgdnico, Rio de Janeiro, Relume-Dumara, 2002 "Zizek, Bem-vinele on vlorse10 do real, $8 Pout. Dvivesnyd, 2003, p. 108, om vs verdadeiramente vivo no questionamento permanente da propria existéncia que um obsessivo que evita. Obsesnvo ‘acima de tudo que algo acontega, que escolhe a morte em vida?" Nao se trata, obviamente, de nenhuma Sueno weer ‘mas de uma critica céustica 20 que 0 fildsofo esloveno chama de postura _Sobrevivencialista,"pds-metafisica’ dos. Uttimos Homens, @ 0 espetaculo anémico da vida se arrastando “como uma sombr@ de si mesma, nesse context biopolico em que se almeja uma exsténcia asséptica indoior, protongada ao maximo, onde até os prazeres 0 controlados e artificializados: café sem cafeina, Cerveja sem alcool, sexo sem sexo, guerra sem baixas, politica sem politica ~ a realidade virtualizada. ~ [Para ele, morte vida designam. ndo,fatos objetivos, mas posigées existencias. subjetivas, e nesse ‘sentido, ele brinca cam a ideia provocativa de que haveria mais vida do lado daqueles que de maneira frontal, numa exploso de gozo, reintroduziram a dimenséo de absoluta negatividade em nossa vida || cia com 0 11 de setembro, do que nos Ultimos Homens, todos nds, que arrastam sua sombra de vida || como moros-ios,zunbls pds-odetmastO autor chama a alengao ara 8 alsagom de deslagSo ‘contra @ qual vem inscrever-se um tal ato, e sobretudo para o desafio de se repensar hoje 0 proprio estatuto do ato, do acontecimento, em suma, da gestualidade politica, num momento em que a vitalidade parece ter migrado para o lado daqueles que, numa volipia de morte, souberam desafiar nosso + Sobrevivencialismo exsangue. Seja como for, poderiamos dizer que na pés-politica espetacularizada, 6] ‘com 0 respectivo seqiestro da vitaidade social, estamas todos reduzkdos 20 sobrevivencialsmo] 10s de biolégico, a mercé da gestéo biopolitica, cultuando formas de vida de baixa intensidade, submetidos aj, wide Ae moma hipnose, mesmo quando a anestesia sensorial é travestida de hiperexcitagao. E a existéncia de Inaya ciberzumbis, pastando mansamente entre servigos e mercadorias, e como dizia Giles Chatolet, Vier Of esceade pensar como porcos. Vida besta ¢ esse rebaixamento global da existéncia, essa depreciagdo da vida, sua redugdo a vida nua, a sobrevida, estagio ultimo do nilismo contemporaneo. A vida sem forma do homem comum, nas condigdes do nilismo, a revista Tiqqun deu o nome de Bloom®. Inspirado no personagem de Joyce,(Sloom’seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta, @ Que designa essas existéncias brancas, presengas indiferentes, sem espessura, 0 homem ordinétio, |) ‘andnimo, talvez agitado quando tem a iluso de que com isso pode encobrir 0. 0 tédio, a. solid 0, at Separapao, a incompletude, a_contingéncia - 0 nada, Bloom designa essa tonalidade afetiva que _| Ccaracteriza nossa época de decomposig&0 nillsta 0 momento em que vem a tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafisico de nossa estranheza e inoperdncia, para além ou aquém de todos 0S_ problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego etc. Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferenga sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiaveis e substituiveis. Pouco importam os contetidos de vida que se altemam e que cada um visita em seu turismo existencial, 0 Bloom 6 i sapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das er nogdes,de que recolhe ecos_ \<~ diftatados. a spQuando a vida 6 reduzida a vida besta em escala planetaria, quando 0 nilismo se da a ver de maneira’ tao gritante em nossa propria lassidéo, nesse estado hipndtico consumista do Bloom ou do Homo Oitarus, ‘cabe perguntar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, e se a catastrofe nao estaria ai instalada cotidianamente ('o mais sinistro dos héspedes"), 20 invés de ser ela apenas a irrupgao sibita de um ato espetacular << 3 (0 corpo que ndo agiienta mais « (0 que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, lassidéio, esgotamento? Ha uma belissima ; definigdo beckettiana sobre o corpo, dada por David Lapoujade. “Somos como personagens de Beckett) para os quais ja é dificil andar de bicicleta, depois, dificil de andar, depois, dificil de simplesmente se, ° O-PS arrastar, e depois ainda, de permancer sentado... Mesmo nas situagdes ceda .2z mais elementares, suc exigem cada vez menos esforgo, 0 corpo nao agitenta mais. Tudo se passa como se ele néo pudess ‘mais agit, no pudesse mais responder...o corpo & aquele que no aguenta mais", até por definiggo. Mas, pergunta 0 autor, o que é que 0 Cone Ae UE TH Tah opera ‘tudo aquilo que o ‘coage, por fora € por dentro. Por exempio, 0 adestramento civilzatorio que por milénios abateu-se sobre > Tiqqun, Théorie a Bloom, Pai, La Fabrique, 000 e a revista Tigqun, 2001 '® David Lapoujade, “O corpo que no aguenta mais”, in Nietzsche e Deleuze, Que pode o corpo, org. D. Lins, Rele.sie Dunna:a, Rio de Janeiro, 2002, p 22 e seguintes, Opes ie GS ves 2) ele, como Nietzsche.o mostrou exemplarmente emi’Para a Genealogia da Moral, ou mais recentemente Norbert Elias, 20 descrever de que modo.o,que.chamamos de.civilizag80 é resultado de um progressive, <— CMU3ec sienciamento do corpo, de seus ruidos, impulsos, movimentos...‘Mas também, a docizag20 que the fl imposto pelas disciplines, nas fabricas, nas esoolas, no exército, nas prisées, nos hospiais, pela maquina pandptica... Tendo em vista 0 que dissemos ha pouca, deveriamos acrescentar: 0 que 0. corpo. agienta mais & 2_mutiaggo biopoitica, a inlervengéo_biotecnoligica, a_moduiagéo_estética, a Giaitlizacéo bioinformatica do corpo, o entorpecimento... Em suma, e num sentido muito amiplo, o que 0 corpo do agiienta mais ¢ a moricagao sobrevivencialista, seja no estado de excecdo, seja na banalidade cotidiana, © “mugulmano’, o “ciberzumbi', o “corpo-espetécul" e "a gorda sade", “bloom”, or extremas que parecam suas diferengas, ressoam no efelto anestésico e narcético, configurando a impermeabilidade de um *corpo biindado"'* em condides de nifismo terminal Diante disso, seria preciso retomar o corpo naqullo que the é mais prépro, sua dor no encanta com a exterioridade, sua condiga0 de corpo afetado.pelas forgas do de ser afetado por elas: sua je. Como o observa Barbara Stiegier, para Nietzsche todo sujet vivo é primeiramente um sujeto atetado, um corpo que sotre de suas afeccoes, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da muitiddo de estimulos e excitagSes que Ihe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher... Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo nao cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, 0 oxigénio, 0S /? alimentos, 0s, sons.e as palavras cortantes — um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado, Mas nao pot tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu astémago fenomenal, na pura indiferenga de quem nada abala... Como entdo preservar a capacidade de ser afetado, sengo através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma faruazz Ne como er 2a ena & ere da sa aca a0 Ki Ce peenece na Tauaza {de cultivar apenas a forga? Gombrowicz referia-se a um inacabamento proprio & vida, ali onde ela se fencontra em estado mais embrionério, onde a forma ainda no ‘pegou’ interamente", e a alragao iresistivel que exerce esse estado de Imaturidade, onde esta preservada a liberdade de “seres ainda por niascer’.. Porm sera possivel dar espaco @ las “seres ainda por nascer" num corpo excessivamente ‘musculoso, em meio @ uma atlética autosuficéncia, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfective? Talvez por isso tantos personagens lterérios, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobitidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outas forgas que um. outras_forgas_atravessem 0 compo? José Gil_observou 0 processo através. do qual, na danca contemporanea, 0 corpo. se_assume como um feixe de forcas e desinveste 0s seus. éraéos, ‘desembaragando-se dos “modelos sensorio-motores interiorizados’, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma’, para ento poder “ser atravessado pelos <— fluxos mais exuberantes da vida’. E ai, diz Gil, que esse corpo, que ja & um corpo-sem-brgaos, constitu ao seu redor um dominio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade proprias, como se 0 corpo exalasse e liberasse forgas inconscientes que circulam a flor da pele, projetando em tomo de si uma especie de “sombra branca"'’, Nao posso me furtar 8 tentagao, nem que seja de apenas mencionar, a expenéncia da Cia Teatral Ueinzz que coordeno em ‘Sao Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicdticos, posturas “extraviadas’, inumanas, aisormes, rodeados de sua ‘sombra brenca’, ou imersos numa "zona de opacidade ofensiva’ corpo aparece ai como sinénimo de uma certa impoténcia, mas é dessa impoténcia que ele extrai uma poténcia superior, nem que seja as custas do proprio corpo ois ¢ as custas do corpo empirico que um corpo virtual pode vir a tona. Desde o jejuador até o homem- inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo ‘afetivo, intensivo, anarquista, que s6 comporta polos, zonas, limiares @ gradientes.” Como diz Deleuze-Gusttar, num fal corpo se desfazcm 2 s# embaratham 28 hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compdem zonas incertas @ as percorem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si "Juliano Pessanha, Certeza do Agora, Sto Paulo, Atelié Ed. 2002. ” Barbara Stiegler, Nietzsche et la biologie, Paris, PUF, 2001, p. 38. ® Witold Gombrowicz, Contre les poetes, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129, "Futian Pesan, Certeza do Agora op. cit 1 Toot Cit, Movimento Totad, Liehoa, Pukiaio d’Agua, 2001, p. +2 = feck ti, Be Cage Dedeuge corpo excessivamente ‘blindado’ nao permitira'’. Mas sera preciso produzir um corpo morto para que — Jo ce, edbudea Speier Corpo sem érgéos & @ maneira de escapar ao juizo", do pal, do patrdo, de Deus, é uma maneita de fugir a = todo um sistema do uizo, da punigao, da. culpa, da divda. Ao invés da divida iniita em relagio al CeY™ bm instancia transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Ha al, insistem os | “qd autores, nesse corpo desteito e intensivo tal como aparece em Kafka, uma vitalidade néo-orgénica, — inumana, e um combate: "Todos 0s gestos sto defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, | antecipagdes de_um golpe que nem sempre se vé chegar, ov"de unr limigo-que-nem sempre se consegue identficar: donde_a importéncia das posturas do corpo."” Mas 0 objetivo do combate, dlerentemente da guerra, néo consiste em destrur 0 Outro, mas em escapar-Ine ou apossar-se de sua ‘orga. Em suma, 0 combate como uma “poderosa vitalidade ndo-organica, que completa a forga com a ‘orga, ¢ enriquece aquilo de que se apossa” Mas 0 que € essa vitalidade no-organica? Em Imanéncia: uma vida, comparece um exemplo - 0 de Dickens. © canalha Riderhood esta prestes a morer num quase afogamento, ¢libera nesse ponto uma “centelna de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele 6, centalha com a qual ‘odos & sua volta se compadecem, por mais que 0 odetem — es ai um vida, puro acontecimento, em js ‘suspensdo, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma ‘espécie de beatitude", diz | Deleuze. 0 outro exemplo esta no extremo oposto da existéncia: os recémnascidas, que, “em meio a todos os sofrimentos ¢fraquezas, séo atravessados por uma vida imanente que é pura poténcia, e até ‘mesmo beatitude’. E que também 0 bebé, como 0 morimbundo, é atravessado por uma vida. Assim 0 define Deleuze": “querer-viver obstinado, cabegudo, indomavel, diferente de qualquer vida organica: com tma criancinha ja se tem uma relagao pessoal orgénica, mas no com 0 Bebé, que conoentra em sua equenez @ energia suficiente para arrebentar os paralelepipedos (0 bebé-tartaruga de Lawrence)" Com 0 bebe 6 Se tem relagdo afetiva, attica, impessoal, vital, pois 0 pequeno ¢ a sede lrredutivel das] ‘orcas, a prova mais reveladora das forgas, E como se Deleuze perscrutasse um aquém do corpo ‘empirico ¢ da vida individuada, como se ele buscasse, no 6 em Kafka, Lawrence, Artaud, Nietzsche, mas ao longo de toda sua propria obra, aquele limiar vital e virtual a partir do qual todos os lotes repartidas, pelos deuses ou homens, giram em falso e derrapam, perdem a pregnancia f4 ndo “pegam "corpo, permitindo-the redistrbuigdes de afecto as mais inustadas. Este limiar, entre a vida e a morte) entre.o.homem eo. animal, entre. a, loucura.e. a. sanidade, onde’ nascer_¢ perecer se repercutem|) “@E—‘] vide. mutuamente, pe em xeque as divisdes legadas por nossa tradigdo,¢ Indica o que Deleuze pode chamar de uma vida . 41 podemos perceber a que ponto parecem vias a tematizazao do limite entre o humano € o inumano felta por Deleuze para abordar o que ele chamou defima vida) e aquela feta por Agamben para abordar\ © que ele chamou de\vida nua,\seja no caso do muguimano, seja no caso do neomarto. Talvez calba wh wank 2 formuler aqui a questéo crucial. Como diferenciar a decomposigao e a destiguragdo do corpo necessérias ara que as forgas que o atravessam inventem novas conexdes e liberem novas poténcias, tendéncia que “Og. se Caracterizou parte de nossa cultura das dimes décadas, nas suas experimentagdes diversas, das exc feyea. dangas as drogas © 2 prépria erature, da decomposigée € desfiguragéo que a produgdo dO Camo corpo Sobrevivente, ou a manipulagao biotecnotigica suscita e estimula? Como diferenciar a perplexidade de*) >= Espinosa, com 0 falo de que no sabemos ainda 0 que pode 0 corpo, do desafio dos poderes e da '*O qua tecnociénea, que precsamente vao,pesquisando o que se pode com 0 corpo? Como descolarse d@ pods © obsessao de pesquisar “o_que se pode fazer com o corpo" (questo biopolitica: que intervengées, ) manipulagdes, aperteigodmentos, eugenias..),e afinar [0 que pode (questo vitalista, | Cetpe / + espinosista)? Poténcias da vida que precisam de um corpo-sem-6rgaos para Se experimentarem, por um lado, poder sobre a vida que precisa de um corpo pés-organico para anexé-lo & axiomatica capitalistica. mesmo"®, ainda que ele seja o de um coleéptero. "Criar para si um corpo sem érgos, encontrar ey Gcxtiisa Mas taez para que um aperega @ preciso que 0 cn sela comalido, ou ao menos deslocado, Por_) exemplo, para que aquilo que Delewze charou de uma vida possa parecer na sua iinanéncia € atmativdade, € preciso que elé Se tenta despojado de tudo aquio que pretendeu reprecentéla ou onté-1a, Toda a tematizago do corpo-sem-oruaos é uma variagao em tomo desse tema biopolitico por '§G Deleuze, Critica ¢ Clinica, So Paulo, Ed. 34, p. 149. "'G, Deleuze, Critica ¢ Clinica, op. cit, p. 149-150. ¥G, Deleuze, Critica e Clinica, op. cit, 16 Deleuze, Critica e Com op, cit, p. 151

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