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FACULDADE SOCIAL DA BAHIA

CURSO DE GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO

LEANDRO PESSOA

ANÁLISE DOS ENQUADRAMENTOS CONSTRUÍDOS PELA MÍDIA IMPRESSA


NA COBERTURA DA MARCHA DA MACONHA

SALVADOR
2010.1

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LEANDRO PESSOA

ANÁLISE DOS ENQUADRAMENTOS CONSTRUÍDOS PELA MÍDIA IMPRESSA


NA COBERTURA DA MARCHA DA MACONHA

Monografia apresentada ao curso de


graduação em Comunicação Social com
habilitação em Jornalismo, Faculdade
Social da Bahia, como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação.

Orientação: Juliana Gutmann

SALVADOR
2010.1

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..................................................................................................05

2. DISCURSOS SOBRE O USO DA CANNABIS SATIVA......................................07

2.1 PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE A CANNABIS NO BRASIL.................07

2.2 O PROIBICIONISMO NORTE-AMERICANO................................................10

2.3 O ATUAL DEBATE SOBRE O CONSUMO DA MACONHA NO BRASIL..13

2.3 A CULTURA DO DESVIO................................................................................16

2.3 MOVIMENTO MARCHA DA MACONHA.....................................................19

3. A QUESTÃO DA VISIBILIDADE MIDIÁTICA.............................................26

3.1 ESFERA PÚBLICA............................................................................................26

3.2 . INTERESSE PÚBLICO, DEBATE PÚBLICO E O PAPEL

DOS GRUPOS CÍVICOS...........................................................................................29

4. O CONCEITO DE ENQUADRAMENTO..........................................................34

4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA ANÁLISE..................................37

5. ANALISE DOS ENQUADRAMENTOS.............................................................40

5.1 UMA MARCHA CONQUISTADA......................................................................40

5.2 A MARCHA DO RECIFE ANTIGO EM 2009.....................................................44

5.3 A TERCEIRA MARCHA DE RECIFE.................................................................49

5.4 MARCHA PROIBIDA DE SÃO PAULO............................................................53

5.5 A MARCHA DA MORDAÇA..............................................................................55

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5.6 A MARCHA DO MINISTRO............................................................................57

5.7 A MARCHA DAS MÁSCARAS.......................................................................58

5.8 ANÁLISE GERAL DOS ENQUADRAMENTOS............................................60

6. CONCLUSÃO.....................................................................................................64

REFERÊNCIAS......................................................................................................67

ANEXO....................................................................................................................70

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho de cunho monográfico identificou e analisou o enquadramento


construído por jornais impressos do Nordeste e do Sudeste para a cobertura do evento
social Marcha da Maconha nos anos de 2009 e 2010. Foram escolhidos para este estudo os
dois principais veículos das cidades de Salvador (A Tarde e Correio) e Recife (Jornal do
Comércio e Folha de Pernambuco), que são as principais capitais do Nordeste onde o
evento foi realizado. Buscando traçar um comparativo da cobertura feita nas capitais
nordestinas com o enquadramento que é construído sobre o evento em dimensão nacional,
foram selecionados ainda dois jornais de circulação nacional (O Globo e Folha de São
Paulo) de capitais onde as marchas também foram realizadas, Rio de Janeiro e São Paulo. A
identificação do enquadramento se concentrou nos elementos verbais das reportagens
publicadas no dia seguinte à realização das manifestações. Ao todo foram analisadas sete
matérias jornalísticas, referentes às edições publicadas no dia seguinte à realização do
evento na capital de circulação.

A análise foi feita a partir dos pressupostos sobre enquadramento apontados pelo
pesquisador Robert Entman (1993) e dos procedimentos indicados por Soares (2006). Com
base numa observação inicial do corpus de análise e do confronto deste com as discussões
teóricas apresentadas no primeiro e segundo capítulos desta monografia, foram definidas as
seguintes categorias de análise: apresentação da proposta de descriminalização, utilização
de elementos que confrontam ou reforçam o atual contexto de criminalização da planta e a
qualificação das fontes e atores apresentados pelas reportagens. A opção de analisar os
aspectos textuais e pelo formato impresso se justificam pela natureza própria destas
plataformas como ambientes de discussão pública.

No primeiro capítulo, abordamos a relação do Brasil com o consumo da Cannabis Sativa,


traçando um breve histórico da proibição da erva no país e no mundo, bem como a
diversidade de usos já registrados da substância. A relação com a planta é tratada também a
partir de perspectivas recentes que envolvem o atual debate sobre as reformas na política de
drogas em nível mundial. Neste capítulo é apresentado um breve histórico dos movimentos
sociais antiproibicionistas brasileiros e mundiais, grupos sociais que atuam na defesa da

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adoção de políticas alternativas.

A contraposição ao discurso hegemônico promovido por este grupo social será


contemplada a partir da Teoria do Desvio aplicada pelo antropólogo Howard Becker em
seu estudo que demonstra o surgimento de uma cultura particular entre os consumidores da
planta Cannabis Sativa. Este capítulo foi escolhido para iniciar a leitura deste trabalho
como tentativa de promover uma compreensão mais aprofundada sobre o fenômeno social
em questão.

No segundo capitulo, abordamos a esfera pública, apresentando um breve histórico do


conceito a partir da concepção habermasiana do conceito. Neste capítulo, elucidamos
também as particularidades do ambiente de discussão pública inseridas no contexto de uma
esfera pública encenada, tendo como ponto de partida o conceito de visibilidade midiática
apontado pelo professor Wilson Gomes (2008; 2009). O capítulo aborda também a função
exercida pela imprensa no levantamento e condução de temas de interesse público,
entendendo a visibilidade midiática como elemento fundamental à democracia moderna.
Além disso, é abordado o papel dos movimentos sociais no levantamento destes temas,
considerando a relação que desenvolvem com a imprensa para levar a público os seus
interesses dentro do ambiente da esfera pública.

No terceiro capítulo apresentamos a teoria do enquadramento, aqui aplicada como


ferramenta metodológica. O enquadramento é uma abordagem de estudo que leva em
consideração as construções implícitas à produção jornalística, referindo-se assim à sua
natureza sócio-cultural e política (SOARES, 2006). Esperamos, através desta escolha,
averiguar a participação da imprensa como agente impulsionador dos debates públicos. O
capítulo também conta com a apresentação das categorias analíticas utilizadas neste
trabalho, as quais foram formuladas a partir do aporte teórico de Robert Entman e dos
procedimentos apontados por Soares (2006).

O capítulo seguinte é destinado à análise do corpus do trabalho, composto pelas sete


matérias encontradas referentes às edições da Marcha realizada nas cidades de circulação
dos veículos selecionados: Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Por fim,
encontram-se apresentadas as conclusões alcançadas através deste estudo de caso.

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2. DISCURSOS SOBRE O USO DA CANNABIS SATIVA

2.1 PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE A CANNABIS NO BRASIL

A maconha, cujo nome científico é Cannabis Sativa, foi introduzida no Brasil por africanos
escravizados, sendo historicamente considerada um elemento cultural importante para os
negros que viviam no Norte e Nordeste do país. Muitas das variações do nome da erva
utilizadas no Brasil atestam sua origem, como as expressões "fumo de angola", "liamba",
"diamba" e a própria "maconha" como é mais conhecida. Desde o final do século XIX, já
havia registros do seu uso tanto entre as populações indígenas, quanto nas zonas rurais e
segmentos urbanos, populares e marginalizados da sociedade brasileira. Nesse período,
entre os grupos negros do Nordeste e os indígenas, a maconha já era empregada "como erva
medicinal, estimulante no trabalho físico e nas pescarias, e como agente catalisador das
rodas de fumantes que se reuniam no fim da tarde" (HENMAN, 1982, p.7).

O Brasil foi o primeiro país a promulgar um decreto de proibição da venda e uso da


Cannabis Sativa em decisão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no ano de 1830,
período em que o consumo urbano da planta ainda não era tão relevante, tornando o decreto
pouco significativo. Durante este período, a planta se encontrava bastante difundida apenas
nas zonas rurais do Norte e Nordeste do país. A partir do êxodo rural, o consumo da
maconha passa a ser uma preocupação social expressa na forma de uma crescente rejeição
aos migrantes ex-escravos, mestiços e indígenas durante o processo de urbanização vivido
pelo país:
Os hábitos de consumo e higiene desses grupos tornaram-se objeto de
estudo e controle das instituições e autoridades médicas e sanitárias. Foram
criadas delegacias e outras instituições específicas para tratar do assunto, a
exemplo da Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações, que
também era responsável pela repressão às práticas religiosas de origem
africana, afro-brasileira e afro-indígenas, em geral consideradas feitiçaria,
curandeirismo ou magia-negra (MACRAE & SIMÔES apud VIDAL,
2010, p.29 ).

Em 1916, foi publicado um texto do doutor Rodrigues Dória descrevendo os hábitos de


consumo da maconha no Vale do São Francisco, no qual o uso aparece intencionalmente

7
relacionado aos hábitos da comunidade negra do país. O conteúdo deste texto foi tomado
então como referência sobre o tema, inclusive para a construção da idéia de que o seu
consumo representava uma vingança promovida pela raça negra contra os "seus irmão mais
adiantados em civilização" (CAVACALTI, 1998, p.85). Nesses estudos, o uso da maconha
é apontado como vício causador de "agressividade, violência, delírios, furiosos, loucura,
taras degenerativas, degradação física, idiotia, sensualidade desenfreada" (MACRAE, 2000,
p. 20 e 21).

O estudo de Dória é marcado pelo paradigma da eugenia, que predominou na ciência


durante as primeiras décadas do século XX e defende a seletividade no processo de
reprodução humana como elemento de evolução da espécie. Segundo Vidal (2010), a
utilização deste embasamento científico como instrumento de controle social e cultural
culmina na tomada de iniciativas de cunho racista pela sociedade brasileira da época. O
trabalho de Dória é um exemplo desta utilização, ao considerar o uso da Cannabis como
"vingança dos vencidos" (VIDAL, 2010, p.30). Nesse trabalho, os negros aparecem como
selvagens e responsáveis por inocular o vício da erva na sociedade. Ao fumar a Cannabis,
além de "estragar o seu robusto organismo", o negro apareceria como responsável pela
difusão de uma doença socialmente transmissível. (DÓRIA apud VIDAL, 2010, p30). Por
conta do contexto científico em que estava inserido, o trabalho de Dória obteve ampla
aceitação em escala mundial, tendo sido levado ao Segundo Congresso Científico Pan-
mericano, em Washington, no ano de 1915.

Em 1921, a partir dos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas, o Brasil se
alinha às políticas de combate às drogas aplicadas pelos EUA, com a aprovação da Lei
Federal nº 4.294, que já "estabelecia medidas penais mais rígidas para os vendedores
ilegais, fortalecia a polícia sanitária nas suas prerrogativas e reafirmava a restrição do uso
legal de substâncias psicoativas para fins terapêuticos” (RODRIGUES, 2004, p. 135 apud
VIDAL, 2010). Pela lei, os usuários eram então considerados doentes, passíveis ao
tratamento compulsório, já que se tratavam de vítimas das próprias substâncias que
utilizavam. (VIDAL, 2010).

8
No ano de 1924, a participação do médico brasileiro apresentado pela literatura como Dr.
Pernambuco, representante brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio, em Genebra,
levou a adoção de equivalência da Cannabis ao Ópio em nível internacional, que passou a
integrar a lista classificatória da convenção, repercutindo numa intensificação da repressão
do uso da maconha no país. A planta passou a vigorar dentre as substâncias proscritas e
uma campanha para erradicação do seu cultivo e consumo teve início com a implantação do
Decreto 20.930 no ano de 1932. A partir do Decreto, “vender, ministrar, dar, trocar, ceder
ou, de qualquer modo, proporcionar substâncias entorpecentes, sem a devida autorização”
passaram a ser qualificados como crimes com penas previstas de 1 a 5 anos de detenção.
Este texto estipulava também a prisão por até nove meses de “[...] quem for encontrado
tendo consigo, em sua casa, ou sob sua guarda” a planta de maconha. (RODRIGUES apud
VIDAL, 2010, p. 31).

É a partir deste decreto que, na década de 30, tem início uma escalada crescente da atuação
policial na perseguição dos usuários de drogas no país. É quando será também imposto,
pelo então Estado Novo, sob a presidência de Getúlio Vargas, o Decreto nº 891, de 25 de
novembro de 1938, que aumenta para quatro anos a pena de reclusão para a prática do
comércio não-autorizado e uso das substâncias proscritas. A partir deste documento, fica
então regulamentada e definida as funções da Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes (CNFE), criada ainda em 1936, que passa então a atuar como órgão
centralizador das ações de combate às drogas no país.

Segundo Rodrigues (2006), neste período, observa-se também a adoção de um tratamento


burocrático-legal por parte do Estado brasileiro em relação à questão, na qual se verifica
um aumento do número de delegacias, departamentos de polícia e clínicas especializadas
em entorpecentes. O autor defende ainda que neste decreto encontram-se as bases do
ordenamento repressivo moderno, fundado na idéia de uma postura de controle ampliado
sobre a sociedade e a conduta individual por parte do Estado. Para Rodrigues, essa política
aparece também como tônica das leis antidrogas que, posteriormente, foram constituídas no
país.

9
Segundo Adiala (2006), a Cannabis, por ter seu uso bastante difundido no país, acabou por
se tornar o estandarte unificador das iniciativas da Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes (ADIALA apud VIDAL, 2010). Uma ação relevante neste sentido ocorreu
no ano de 1943, quando foi realizada uma expedição científica que visitou diversas
comunidades situadas às margens do Rio São Francisco e identificou o plantio e uso da
maconha nas "classes baixas" dos estados de Sergipe e Alagoas e também nas classes altas
na Bahia. A planta era então vendida nas feiras e mercados sob a denominação de "fumo
bravo", sendo a sua proibição desconhecida dos cultivadores e usuários da região.

A partir desta expedição, foi construída a Comissão a Campanha Nacional de Repressão ao


Uso e comércio da Maconha, órgão responsável por apresentar e unificar os esforços dos
Estados em difundir os malefícios da planta no país. O documento que constituiu a
Comissão foi produzido a partir do Convênio Interestadual da Maconha realizado em
Salvador, em 1946 (VIDAL, 2010, p.33). Nele, foram estabelecidas algumas normas que
deveriam ser seguidas no combate à substância em todo o país, em que se destaca no item
7: "registro de indivíduos e grupos ligados a cultos afro-brasileiros onde se fazia uso da
planta, a partir de fontes médicas e sociológicas, e encaminhamento dos dados às
autoridades responsáveis", a adoção de práticas racistas pelo estado brasileiro; e também o
item 8: "gratificações aos membros das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes do
país, 'em vista dos extraordinários serviços prestados por eles à sociedade'", que revela uma
promoção social daqueles que atuavam no combate ao consumo da planta. (CNFE apud
VIDAL, 2010, p.34).

2.2 O PROIBICIONISMO NORTE-AMERICANO

A proibição do uso da planta nos EUA, que viria a interferir diretamente nas políticas sobre
drogas adotadas pelo Brasil, teve início na década de 30 com o surgimento de campanhas
promovidas pela Agência de Narcóticos do Departamento do Tesouro. As ações da agência
foram divulgadas na imprensa sobre a forma de reportagens e artigos que alarmavam a
sociedade para os perigos do consumo crescente da Cannabis Sativa na sociedade
americana, responsabilizando-a pela onda de crimes ocorridos em Nova Orleans no ano de

10
1926. As campanhas tiveram repercussão midiática, tendo sido registrados, por exemplo,
17 artigos sobre o tema na revista Reader's Guide, superando de longe as ocasionais
matérias sobre o tema dos anos anteriores (BECKER, 2005). Respaldados por esta
mobilização, os representantes da Agência de Narcóticos foram ao Congresso e
conseguiram aprovar por unanimidade a Lei de Tributação da Maconha. Sobre o papel
desempenhado pelos meios de comunicação na aprovação de leis, Becker considera que:

Onde quer que regras sejam criadas e aplicadas, deveríamos esperar


encontrar pessoas que tentam arregimentar o apoio de grupos assemelhados
e usam os meios de comunicação disponíveis para desenvolver um clima de
opinião favorável. Onde eles não desenvolvem este apoio, podemos esperar
o fracasso do empreendimento (BECKER, 2005, p.151).

Dentro deste contexto, a proibição da planta envolveu também a concorrência industrial de


combustíveis, em que o cânhamo, planta da mesma espécie da Cannabis também utilizada
como combustível teve a sua utilização em larga escala desbancada pelas empresas
petrolíferas do país que já se encontravam em pleno desenvolvimento. Além de
combustível renovável, o cânhamo participa da produção de até 20 mil produtos
considerados importantes para a humanidade, dentre eles fibras, óleos, materiais de
construção, medicamentos (GABEIRA, 2000).

Durante a década de 60, em plena ebulição do movimento de contracultura promovido pela


juventude mundial, a lei antidrogas passa a ser utilizada como instrumento político e moral
em nível mundial (ESCOHOTADO apud RODRIGUES, 2006) com base no
proibicionismo, adotado a partir da Convenção Única da ONU sobre Drogas realizada em
1961, que passa a atuar sobre o comércio não autorizado de substâncias psicoativas.
Rodrigues afirma que:

Este tratado consolidou o modo de lidar com psicoativos ilegais – e as


pessoas envolvidas com eles – que, em linhas gerais, perdura até hoje
apenas as drogas com uso médico comprovado poderiam ser legais. Logo,
todos os outros fins relacionados às sensações derivadas de estados
alterados de consciência deveriam ser proibidos, e as pessoas relacionadas
a eles, punidas. (RODRIGUES, 2009, p.6).

Nesse contexto, o Estado se volta contra os jovens que, em confronto direto com a
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compreensão de mundo e comportamento das gerações anteriores, passaram a fazer uso das
drogas psicoativas, em particular o ácido lisérgico, a mescalina e também a maconha, como
elementos de transgressão; instrumentos capazes de alterar a então viciada compreensão da
realidade.

No ano de 1972, o então presidente norte-americano Richard Nixon irá declarar Guerra às
Drogas, elegendo-as como o inimigo número 1 da nação. Tomando para si esta
responsabilidade, o Estado norte-americano, agindo através da Drug Enforcemente Agency
(DEA), justifica também a ação para além dos seus limites territoriais, indo combater o
Narcotráfico também nos países produtores, bem como os consumidores e traficantes de
outras nacionalidades (RODRIGUES, 2009, p.6). Outras convenções publicaram resoluções
sobre o uso destas substâncias, sem, no entanto, obter a repercussão da Convenção de 1961,
como a Convenção de Substâncias Psicotrópicas de 1971; a Convenção contra o Tráfico
Ilícito de 1988 com listas de precursores; e mais recentemente a Convenção Marco sobre
Controle de Tabaco da OMS de 2003. A Guerra às Drogas se estendeu até os dias atuais
com ações nos Andes na década de 80, passando pelo Plano Colômbia lançado no ano de
1999 e pela Iniciativa Mérida, iniciada em 2008 no México (JELSMA, 2009;
RODRIGUES, 2009).

No Brasil, durante a década de 60, a declaração de Guerra às Drogas resultou em uma nova
campanha social para conter o uso da Cannabis Sativa, desta vez associando o consumo à
situação de marginalidade em que se encontrava parte da classe média brasileira durante o
regime ditatorial, a qual liderava ações em defesa do fim do regime autoritário. Pertenciam
a esta classe média "subversiva" tanto os membros das guerrilhas quanto os da resistência
cultural. Este segmento da população passa então a ser considerado perigoso à ordem
vigente, uma vez quer suas concepções ideológicas atingiam diretamente o status quo
estabelecido pela ditadura militar. Esta representação do usuário feita no país ecoava, a sua
maneira, o que vinha sendo difundida em nível mundial, associando o consumo da
maconha a um "símbolo político de liberdade e desobediência civil" (ROBINSON, 1999,
p.100).

Durante este período, a situação do consumo de maconha no país passará por relevantes
12
mudanças jurídicas. No ano de 1964, com a publicação do Decreto-Lei de n. 54.216, o
Brasil incorpora os ordenamentos estabelecidos pela Convenção Única da ONU, realizada
em 1961. No ano de 68, outro decreto estabelecerá equivalência penal para os condenados
tanto pelo tráfico quanto pelo uso das substâncias proscritas. Dentre elas, Sérgio Vidal
(2010) destaca a Lei 6368 de 1976, também conhecida como Lei de Tóxicos, responsável
por congregar todos os ordenamentos jurídicos relacionados ao tema.

É também na Lei 6.368 que se encontra tipificado o crime de apologia às drogas, que torna
passível à condenação qualquer sujeito que enalteça o uso da maconha, bem como defenda
sua legalização. Como exemplo, podemos citar o caso do grupo musical Planet Hemp, que,
por defender explicitamente a descriminalização da erva nas letras de suas músicas,
enfrentou diversos problemas com a justiça do país, chegando à prisão dos seus integrantes
durante cinco dias, em novembro de 1997, por conta de uma apresentação realizada em
Brasília. O show foi filmado e utilizado como prova para enquadrar os membros do grupo
no artigo 12 da Lei de Entorpecentes. Mundim (2004) destaca que, durante o período da
prisão dos membros do Planet Hemp, houve uma grande discussão na sociedade a respeito
da liberdade de expressão, censura e apologia às drogas.

2.3 O ATUAL DEBATE SOBRE O CONSUMO DA MACONHA NO BRASIL

O debate público atual sobre a maconha no Brasil é resultante do seu crescente consumo
verificado na década de 60 do século XX, quando a substância passou a ser entendida como
o fenômeno de massa integrado à sociedade (VIDAL, 2010). A partir deste período,
verifica-se um aumento nas operações de erradicação do cultivo no Norte e Nordeste do
país e da repressão ao seu uso nos centros urbanos, bem como o surgimento de movimentos
antiproibicionistas, que serão abordados com maior profundidade no tópico seguinte deste
trabalho, e da visibilidade de sujeitos defensores de mudanças na legislação de
entorpecentes do país.

Na década de 90, Neto e Formigoni (2002) identificam um crescimento no número de


usuários, correspondendo a 7,6% do uso entre estudantes, por conta de uma maior

13
tolerância com relação à planta e pela promoção de debates sobre o uso terapêutico e
descriminalização. O Relatório Mundial da Agência das Nações Unidas para o Combate às
Drogas e a Criminalidade, publicado em 2006, aponta o Brasil como o principal
consumidor de maconha da América do Sul (UNODOC apud VIDAL 2010), destacando
que o país produz apenas 20% da quantidade de substância que aqui consumida, tendo
como principal fornecedor o Paraguai. Dados do II Levantamento Domiciliar sobre o uso
de Drogas Psicotrópicas no Brasil comprovam que 2,6% dos brasileiros entre 12 e 65 anos
fumaram maconha no ano de 2005, sendo que 8,8% das pessoas entrevistadas afirma ter
consumido a planta pelo menos uma vez na vida. Com base nestes dados, que apontam uma
continuidade do consumo da Cannabis no país, será colocada em cheque a eficácia das
políticas públicas repressoras historicamente adotadas pelo Estado brasileiro.

Com a proibição das drogas ilícitas o mercado deste comércio foi tomado pelas mãos de
organizações criminosas, criando fundos ilegais que estimulam a corrupção e os conflitos
armados em todo o mundo (JELSMA, 2008). Segundo Rodrigues (2008) o investimento
destinado ao combate ao narcotráfico não conseguiu impedir que o mercado ilícito de
drogas se expandisse no mundo. Considerando a questão crucial para a geopolítica do
século XXI, o autor defende que quanto mais a sociedade aposta na "utopia proibicionista",
mais rentável e interminável a guerra às drogas tem se mostrado. Para Vidal (2010), a
persistência nestas estratégias tem conseguido "agravar os fatores causadoras de danos e
custos sociais associados ao mercado consumidor dos derivados da planta, obtendo pouco
ou nenhum sucesso na diminuição das práticas de produção e distribuição não-autorizadas"
(VIDAL, 2010, p.39 e 40). A jurista Maria Lúcia Karam (2008) afirma ainda que o
proibicionismo "além de ocultar os riscos e danos à saúde pública, oculta ainda o fato de
que, com a intervenção do sistema penal sobre as condutas de produtores e distribuidores
das substâncias e matérias primas proibidas, o Estado cria e fomenta a violência" (KARAM
apud VIDAL, p.42 e 43).

Nesse sentido, as políticas públicas repressoras acabaram também cedendo espaço para que
outras perspectivas pudessem ser apontadas pelos movimentos sociais antiproibicionistas,
que defendem o cultivo doméstico como alternativa à criminalização do comércio da

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planta, sugerindo revisões da legislação em níveis mundiais. Até mesmo as opiniões
daqueles que consideram o uso de drogas indesejável - como as que vêm sendo trazidas a
público pelo ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, membro da Comissão
Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia -, desacreditam no proibicionismo como
instrumento de controle do uso, defendendo a descriminalização do uso das drogas leves,
em especial da maconha, como alternativa.

Nesse contexto, novas questões são lançadas à legislação, como, por exemplo, no que se
refere ao tratamento dedicado ao usuário que aparece como a figura que além de consumir
e armazenar a maconha, em alguns momentos é também o cultivador da planta que
consome, não fazendo uso comercial da mesma. Vidal (2010) defende que as intervenções
nesta nova realidade do consumo de drogas devem levar em consideração a sua
complexidade como fenômeno de massa, envolvendo assim a criação de leis mais
adequadas a realidade, bem como o treinamento das autoridades policiais.

Em outubro de 2006, com a Lei de n 11.343, que entrou em vigor no dia 23 de agosto de
2006, foram equiparadas juridicamente as condutas de posse, porte e plantio destinadas ao
consumo pessoal de substâncias entorpecentes, além de estabelecer que a quantidade da
substância apreendida como parâmetro para qualificar a pessoa flagrada como "usuária" ou
"traficante". É quando aparece pela primeira vez na legislação brasileira a figura do usuário
que cultiva para consumo pessoal, até então sentenciado também como traficante. Vidal
(2010) afirma que, mesmo com a possibilidade dada aos magistrados de reconhecer esta
modalidade de consumo, tanto os policiais quanto os operadores do direito continuaram
aplicando interpretações proibicionistas. Este texto prevê também a emissão de
autorizações para os plantios destinados ao uso científico ou medicinal, mantendo na
condição de criminosos os cidadãos que plantem maconha apenas para uso recreativo. O
autor também aponta que, apesar desta previsão, os usuários se submetem a conflitos com a
lei para que possam ter acesso ao medicamento.

Desde 2009, a Lei 11.343 passa por um processo de construção de reformas e


regulamentações em busca de melhorias na sua aplicação, encabeçado pelo deputado Paulo

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Teixeira e que conta com um Grupo de Trabalho formado por membros do CONAD e
especialistas da área de entorpecentes e também é discutida na Comissão Brasileira Drogas
e Democracia (CBDD), formada por 50 membros de diversos setores da sociedade civil e
secretariada pela organização Viva Rio. A CBDD é uma versão brasileira da Comissão
Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, que reúne políticos latino-americanos,
dentre eles o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso para discutir a adoção de
novas políticas de drogas no continente.

A revisão das leis de drogas, neste início de século XXI, vem passando por uma retomada
significativa em todo mundo. Destaque para a regulação do uso medicinal em 15 estados
dos EUA, incluindo Washingnton, em que os médicos estão autorizados a prescrever a
planta a pacientes que sofrem de doenças crônicas, como AIDS, câncer, esclerose e
Holanda e Reino Unido. glaucoma. Segundo a legislação destes estados, ainda não é
permitido ao usuário plantar a própria maconha. O uso medicinal já é regularizado também
no Canadá, Holanda, Reino Unido. Em Portugal, a posse de maconha para consumo
doméstico é permitida na quantidade estipulada que corresponde a dez doses diárias. Para
posses acima destas quantidades a legislação portuguesa já passa a considerar o portador
um criminoso por tráfico de drogas.

2.4 A CULTURA DO DESVIO

Dentro de uma perspectiva sociológica, no ano de 1973, o pesquisador americano Howard


Becker (2005) realiza o primeiro estudo que irá contrapor o discurso hegemônico sobre o
uso da Cannabis Sativa, até então geralmente associada à perda do autocontrole e
agressividade. Ele entrevistou 50 usuários de maconha, abrangendo de músicos a operários,
mecânicos e profissionais liberais, para identificar o modo como o usuário reage "aos
vários controles sociais que se desenvolveram em torno do emprego da droga" (BECKER,
2005, p. 53). Becker conclui que as "explicações psicológicas não são em si suficientes para
indicar a razão do uso de maconha" (2005, p.51). Para ele o uso da maconha acontece
também por prazer, se pensarmos no usuário "como alguém que aprendeu que ela pode lhe
dar prazer" (2005, p. 52).

16
Para que se tornem usuários regulares da planta, Becker revela que é preciso que os
indivíduos aptos a consumi-la compartilhem, junto a usuários mais experientes, de
informações sobre pelo menos três etapas do processo: a maneira correta de usar a droga, o
reconhecimento dos seus efeitos e a apreciação dos seus efeitos. Somente ultrapassadas
estas três etapas, o individuo poderá desenvolver uma relação de prazer com a Cannabis
Sativa, tornando-se assim um usuário regular da planta. Nessa perspectiva, entende-se que
o consumo regular da substância possui uma relação de pertencimento com um
determinado grupo social.

Dessa forma, Becker sustenta que é através da interação com usuários mais experientes que
irá se desenvolver uma cultura própria entre os consumidores. "A informação sobre uma
droga usada ilicitamente acumula-se devagar, freqüentemente durante muitos anos, na
experiência associada dos consumidores, que comparam observações de suas próprias
experiências e das experiências de outras pessoas" (BECKER apud MUNDIM, 2004, p.
15). A partir destas experiências, o grupo usuário da planta, caracterizado pelo autor como
grupo desviante, constrói um saber informal sobre a substância e, conseqüentemente, um
discurso que será utilizado como justificativa para as suas práticas, ação que Becker
denomina em seu trabalho de racionália. Esta interação acontece através de redes informais
de comunicação entre os usuários e tem na ligação entre os consumidores o sistema de
relações que permite que as informações circulem (BECKER apud MACRAE & SIMÔES,
2009, p.24). Dessa forma, o conhecimento particular adquirido sobre a planta será também
utilizado pelos usuários na interpretação dos efeitos da erva, bem como na regulação do
consumo individual.

Becker identifica, assim, uma cultura particular da droga decorrente do saber produzido
pelos próprios usuários regulares, aqueles que fazem uso regular da erva baseados no prazer
que ela lhes proporciona. Esta cultura será então verbalizada por tomadas de posição do
grupo diante dos controles sociais impostos pelos não-usuários, dentre as quais o autor
destaca a racionalização em que os usuários justificam o uso da Cannabis pela afirmativa
de que "as pessoas convencionais entregam-se a práticas muito mais nocivas, e que um

17
vício comparativamente pequeno como fumar maconha não pode ser errado quando como
coisas como o uso do álcool são aceitas" (BECKER, 2005, p. 83).

A aquisição deste saber informal leva os indivíduos do grupo desviante a considerar o uso
da Cannabis benéfico, levando-os a idéia de que possuem o controle sobre o próprio
consumo. (BECKER, 2009). Nesse entendimento, afirma-se que o uso controlado de
drogas, muito mais do que pela polícia ou pela lei, é fundamentalmente regulado pela forma
como as sanções e rituais sociais são socialmente apreendidos pelos usuários, ou seja, pela
cultura da droga e a comunidade que lhe dá sentido (VIDAL, 2010, p. 101).

Ao analisar as perspectivas apontadas pelo estudo de Becker, Mundim (2009) identifica o


caráter simbólico das articulações feitas pela mente do individuo no processo de formação
de conhecimento sobre a planta, em que os seus modos de uso são relacionados e
significados. O autor qualifica também como cognitivo este processo de conhecimento, já
que conta com "fases de socialização que possibilitam a aquisição e o compartilhamento de
informações relevantes entre indivíduos, quer eles desejem se tornar usuários de maconha,
quer eles já usufruam desse hábito" (MUNDIM, 2004, p.14). Este processo também é
classificado como um ato reflexivo para os usuários, dada a aptidão humana de interagir
informações e conhecimentos com o intuito de produzir referências que sustentem com
maior propriedade os atos desviantes do grupo.

Esta reflexividade dos usuários aparece também nos estudos de Norman Zinberg (1974)
sobre o uso de substâncias ilícitas (ZINBERG apud MUNDIM, 2004). Zinberg acrescenta
a idéia de "controles informais do consumo" de substâncias ilícitas, em que os usuários
aparecem como sujeitos capazes de desenvolver as próprias prescrições relativas ao uso, de
modo que continuem utilizando a substância sem interromper suas tarefas profissionais. A
reflexão é também o meio utilizado pelos usuários para chegar à idéia positiva da maconha,
esta, como aponta Becker, condição inerente à concretização de um uso regular da
substância. (MUNDIM, 2004).

Mundim (2004) desenvolve também o conceito de racionália apontado por Becker,

18
afirmando que "ao entrar em contato com o estoque de conhecimento cultural da droga, ele
(o usuário) está se engajando com uma visão de mundo ou, como sugere Braga (2000),
assumindo um 'lugar de fala'.(MUNDIM, 2009, p.18). O autor constrói assim uma relação
entre o lugar de fala do grupo e o conceito de agir comunicativo, definido por Habermas,
como aquele que caracteriza uma ação que tem o seu sucesso baseado na “força
racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se
manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente”.
(HABERMAS apud MUNDIM, 2009):

No momento em que se articula em formas discursivas que fazem


referência a um estoque de conhecimento e a interpretações de uma cultura
da droga, ela (a racionália) também se torna uma maneira de posicionar-se,
de ver o mundo e de reafirmar convicções (MUNDIM, 2004, p. 20).

Dessa maneira, a racionália produzida pelos usuários de maconha é elaborada com o


intuito não só de funcionar como instrumento de defesa do grupo desviante, mas também
sendo "uma racionalidade comunicativa como qualquer outra ação lingüística, elaborada e
trazida a público com o intuito de convencer e, assim, alcançar um entendimento"
(MUNDIM, 2004, p. 20), como analisaremos no capítulo seguinte com a formação dos
movimentos antiproibicionistas.

2.4. MOVIMENTO MARCHA DA MACONHA

Os primeiros movimentos antiproibicionistas que defendem a adoção de políticas públicas


alternativas no tratamento dos usuários de psicotrópicos datam do final da década de 60 do
século XX e tem como marco histórico a publicação de um texto na capa do jornal norte-
americano New York Times, em 1967, com a assinatura de diversos artistas da época. No
ano de 1974, entra em circulação, também nos EUA, a primeira revista de cultura canábica
do mundo: a High Times. Com edições mensais, a publicação, até hoje, congrega matérias
sobre a cultura da planta, técnicas de cultivo, ativismo pró-legalização, servindo também
como exemplo do crescimento da rede antiproibicionista formada naquela década. (VIDAL,
2010, p. 36).

19
No Brasil, os movimentos antiproibicionistas remontam ao ano de 1976, quando estudantes
da Universidade de São Paulo reuniram 400 pessoas para debater a legalização como
alternativa. Nessa época são encontrados também registros da circulação no Rio de Janeiro
de publicações, como o Ato Vapor, Panflema, o Jornal da Massa e o Patuá, que em suas
páginas defendiam a legalização (VIDAL, 2010). Em 1982, a realização de um encontro na
PUC do Rio de Janeiro resultou na produção de um documento que pedia “a
descriminalização da Maconha, bem como do seu uso, posse e cultivo para consumo
próprio” (VIDAL, 2010, p. 26). Dentre as personalidades que assinaram o documento,
estavam os músicos Jorge Mautner e Hermeto Paschoal, além de parlamentares como
Fernando Gabeira, José Genoíno e Lúcia Arruda.

No ano de 1983, em encontro realizado pelo Coletivo Maria Sabina 1 filósofos, advogados,
antropólogos, juízes, escritores, deputados estiveram reunidos para discutir o tema sob sob
a perspectiva do respeito aos direitos individuais e à pluralidade cultural, já mencionando
também as consequências negativas das políticas proibicionistas. (VIDAL, 2010). Este
debate foi transcrito e publicado em livro sob o título Maconha em Debate, no ano de 1985.
Mundim (2009), em sua historiografia a respeito do debate público da proposta de
legalização nas décadas de 1970 a 1990, destaca, além dos espaços das universidades e
algumas publicações impressas, o acesso do debate aos espaços políticos que chegou a ser
utilizado por diversos candidatos em diferentes momentos a partir da década de 1980, como
Fernando Gabeira e Caterina Kolotai (MUNDIM, 2009).

Na primeira década do século XXI, o debate sobre a descriminalização da Cannabis é


retomado a partir de iniciativas promovidas por grupos acadêmicos que estudam o uso de
psicotrópicos sob a perspectiva antiproibicionista, levando em consideração aqui os estudos
do sociólogo Howard Becker mencionados acima, pioneiros ao identificar o conhecimento
particular que os usuários formam na condição de desviantes.

Desde 2009, o mês de maio foi escolhido pelo movimento antiproibicionista mundial para a

1
Grupo formado por estudantes e intelectuais do Rio de Janeiro que homenageia em seu nome a curandeira
mexicana Maria Sabina conhecida mundialmente por utilizar cogumelos psicodélicos em seus rituais de cura.

20
realização de marchas públicas, tendo sido registrada a participação de mais 90 cidades em
todo o mundo em sintonia com a Global Marijuana March, coordenada pela ONG norte-
america Cure's not War. Dentro deste primeiro passo de internacionalização da causa, foi
apresentado na cidade de Londres um programa que condensa as propostas do movimento
para um novo pacto de regulamentação do uso da maconha na sociedade, em que consta o
fim da proibição internacional do consumo e cultivo da planta, bem como a liberação das
sementes (GABEIRA, 2000). O programa defende ainda que a regulação da Cannabis na
sociedade seja feita a partir de padrões éticos e ecológicos, estipula 16 anos como a idade
mínima para o seu consumo e prevê a liberação da planta para uso religioso e medicinal.
(GABEIRA, 2000).

Sob a ótica do movimento, a proibição e criminalização do uso da maconha são ofensivas


por parte dos Estados nacionais porque condena o usuário a se relacionar com os
traficantes, além de os submeterem a repressão policial, dando margem ao surgimento de
práticas de abuso de poder bem como de corrupção por parte da corporação. Os defensores
da descriminalização argumentam ainda que a proibição "impede um controle de qualidade
das substâncias entregues ao consumo, impõe obstáculos a seu uso medicinal, dificulta a
informação e a assistência, cria a necessidade de aproveitamento de circunstâncias que
permitam um consumo que não seja descoberto, incentivando o consumo descuidado ou
anti-higiênico propagador de doenças como a AIDS e a hepatite." (KARAM apud VIDAL,
2010).

Reunidos sobre a causa da descriminalização da Maconha, os ativistas defendem a


legalização da produção, distribuição e consumo da planta Cannabis Sativa, bem como “a
regulação destas atividades na sociedade, em que pesem o compromisso com a saúde
pública, a democracia e o bem-estar dos indivíduos, sejam eles usuários ou não da planta”
(CARTA, 2009). Para os ativistas, "o potencial econômico dos produtos feitos de cânhamo
deve ser explorado, especialmente quando isto for adequado sob o ponto de vista
ambiental" (CARTA, 2009), considerando o caráter renovável da planta. Os movimentos
antiproibicionistas defendem também a adoção pelo Estado de políticas públicas que atuem

21
na redução de danos junto aos usuários de substâncias ilícitas, focada na melhoria das
condições de vida do usuários.

A atuação do movimento antiproibicionista em escala mundial se dá através da realização


de marchas públicas. No Brasil, a manifestação é organizada sob o nome de Marcha da
Maconha, em que os ativistas propõem o debate sobre as políticas de consumo e cultivo da
planta no país. São registradas a participação de diversos setores da sociedade civil, dentre
eles estudantes, pesquisadores, ativistas, políticos, agentes de saúde, que trabalham com
redução de danos, e membros da sociedade em geral. Em consonância com o a realização
das marchas, o movimento antiproibicionista organiza seminários, conferências e debates
sobre os usos da planta.

A realização de manifestações públicas do movimento antiproibicionista tiveram início no


país no ano de 2002, nas cidades de Recife e Rio de Janeiro (TABOSA, 2010). Ainda sob o
nome de Passeata Verde foram realizadas manifestações também no Rio de Janeiro e São
Paulo. Sob a denominação de Marcha da Maconha, desde 2007 já foram realizadas
manifestações em Salvador, Brasília, Rio de Janeiro, Fortaleza, Florianópolis, Recife, Porto
Alegre, Curitiba e Belo Horizonte, com destaque para o maior número de edições e
participação de ativistas em Recife e Rio de Janeiro.

No ano de 2009, estava prevista a realização da marcha em 13 cidades brasileiras durante o


mês de maio. Apenas as de Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre aconteceram neste mês.
As outras foram proibidas pela justiça, sendo que a de Salvador conseguiu ser realizada
somente em dezembro, pela atuação do grupo Ativismo, Redução de Danos, Pesquisa e
Informação Sobre Drogas (ANANDA), especializado em redução de danos, que conseguiu
junto a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça um habeas corpus garantindo a sua
realização.

Diversas edições do evento foram proibidas em suas cidades sob a alegação de fazerem
apologia ao consumo da planta, como foi o caso neste ano de 2010 da Marcha realizada em
São Paulo, em que os manifestantes foram impedidos de realizar a caminhada portando

22
adereços que fizessem referência à planta da maconha. Segundo carta de princípios
disponibilizada no site da organização da edição brasileira da Marcha, o evento “não é um
movimento de apologia ou incentivo ao uso de qualquer droga, o que inclui a Cannabis", e
que, por entender, que "a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na
esmagadora maioria dos países do mundo é um completo fracasso", defende "a discussão
de políticas alternativas que incluam os dados científicos mais atuais sobre a planta, bem
como ampliem a participação da sociedade civil” (CARTA, 2009). O grupo também alega
que busca, nas manifestações, manter-se dentro da legalidade, orientando os participantes a
não portarem ou consumirem a planta durante a realização do evento.

Uma característica importante do movimento antiproibicionista neste século é o uso da


Internet como espaço de democratização ao acesso de informações, que culmina no
surgimento de diversos blogs e páginas virtuais especializados na cultura de consumo da
planta. Alimentadas pelos próprios colaboradores, estas páginas acompanham os passos da
proposta de descriminalização da maconha no Brasil sob diversas perspectivas e se
constituem como espaços de politização do debate público, em que as edições da Marcha
da Maconha e outras ações do movimento são organizadas e divulgadas.

Em maio de 2002, entrou no ar o portal Growroom (www.growroom.net), principal portal


brasileiro sobre a cultura da maconha, que se define como um centro de convivência e
redução de danos para os usuários. Tendo o seu fórum virtual como plataforma, o portal se
constituiu num ambiente de socialização para os 31 mil usuários cadastrados e produz
conteúdo voltado prioritariamente para aqueles que praticam o cultivo da planta. Na página,
são encontradas produções em formatos de texto, áudio e vídeo, abordando a cultura da
maconha, tanto no país, quanto em outros lugares do mundo em que o movimento
antiproibicionista encontra-se articulado.

O portal possuí também uma rede social de acesso restrito, em que se encontram reunidos
os moderadores. O acesso a esse grupo se dá por meio da participação nos fóruns e
aceitação de uma norma de condutas controlada pelo próprio grupo. Dentro desta rede
social, os debates são ainda mais especializados, onde as técnicas de cultivo são abordadas

23
com profundidade e soluções para dúvidas dos cultivadores da planta são apresentadas. Lá
encontram-se disponíveis ainda pesquisas científicas recentes que tenham a Cannabis como
objeto de estudo (VIDAL, 2010). O portal se configura, assim, como um espaço de
convívio inserido no cotidiano dos usuários que cultivam a própria maconha, grupo que
correspondente a 5% dos usuários cadastrados (TABOSA, 2010).

A defesa pelo auto-cultivo é a principal bandeira do portal Growroom, como aparece nos
adesivos distribuídos pelo grupo em que aparece a seguinte inscrição: "Você sabia que o
cultivo caseiro de maconha enfraquece o tráfico de drogas?". Em seu livro sobre a planta, o
deputado Fernando Gabeira (2000) considera que a opção dos usuários pelo cultivo caseiro
de maconha se relaciona com uma busca pela pureza da maconha que consomem, bem
como opção de distanciamento do contato com o tráfico de drogas.

Além de auxiliar no desenvolvimento do cultivo caseiro da maconha, o saber informal


produzido pelos próprios usuários sobre a planta e seus usos tem relação direta com as
condições de interação apontadas pelos estudos de Becker (2000) anteriormente
apresentados. O diferencial é que aqui acontecem para além das relações diretas
interpessoais, chegando também às relações indiretas, em que o conteúdo produzido e
discutido coletivamente se encontra disponível na rede para ser consultado a qualquer
tempo. Vidal (2010) afirma que, dentro desta nova realidade, os grupos desviantes passam a
reunir uma quantidade cada vez maior de colaboradores, espalhados por todo o mundo e
inseridos no ritmo dinâmico que caracteriza a comunicação virtual.

As informações que circulam nas redes sociais canábicas tem se revelado um espaço de
confrontação aos mitos divulgados pela propaganda proibicionista, onde são encontrados
estudos científicos que apontam para outras perspectivas de uso da planta (O FINO, 2010).
Diversos trabalhos acadêmicos estão sendo produzidos no Brasil neste sentido, em que se
destaca a atuação de grupos científicos como o Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinar
sobre Psicoativos) e o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Para o
sociólogo Marco Magri, estes trabalhos tem sido responsáveis por propiciar "uma crítica
fundamentada na pesquisa científica, com reconhecimento internacional" (RODRIGUES,

24
2009 p. 7). Destacam-se dentre estas produções aquelas que tratam da Cannabis Sativa a
partir do seu uso medicinal na área de saúde, bem como trabalhos sociológicos que tomam
o consumo da substância a partir das suas dimensões culturais.

As perspectivas de uso medicinal da maconha consideram que a partir do THC, princípio


ativo da planta, é possível reduzir a náusea e os vômitos em pacientes de câncer que se
submetem a sessões de quimioterapia, este uso já é verificado nos EUA na produção pelo
governo americano do medicamento Marinol. (FORD apud GABEIRA, 2010). As defesas
desta possibilidade de uso para a substância são baseadas em estudos de diversos
pesquisadores do mundo, dentre eles os norte-americanos Grinspoon e James Bakalar
(1993), autores da obra "Marihuana, the Forbidden Medicine". Tais estudos também
sustentam que a maconha funciona ainda como estimuladora do apetite, sendo
recomendada para pacientes com AIDS, e atua na diminuição em 25% da pressão intra-
ocular, auxliando assim como prevenção à manifestação do glaucoma.

Os primeiros registros de uso medicinal da planta remontam a civilização chinesa de 2.300


a.c, quando a Cannabis Sativa era então indicada pelo imperador Chen Nong para o
tratamento de constipação, gota, beribéri, malária, reumatismo e problemas menstruais. Há
também registros da utilização da planta na medicina hindu, árabe e européia (ROBINSON,
1999). No Brasil, o cigarro de maconha já foi receitado no tratamento de asmáticos, quando
era vendido sob a denominação de “cigarro de índios”. (ROBINSON, 1999).

A partir destes pressupostos, os ativistas rebatem também as argumentações de que o


consumo de maconha conduz à dependência química, defendendo que o uso da maconha se
dá de maneira descontinuada ao longo da vida do usuário e que a ocorrência de abstinência
é muito suave, apontando como comprovação o índice de apenas 0,8 % dos norte-
americanos que fumam maconha diariamente (ZIMMER & MORGAN apud GABEIRA,
2000).

25
3. A QUESTÃO DA VISIBILIDADE MIDIÁTICA

3.1. ESFERA PÚBLICA

O nascimento do discurso de legitimação da imprensa está vinculado aos conceitos de


publicização e esfera pública, que, a partir do século XVIII, foram trazidos à sociedade pela
burguesia européia e utilizados como ferramenta de enfrentamento aos costumes
estabelecidos pela aristocracia. Neste contexto, a imprensa funcionou como "contraproposta
ao modelo institucional da produção da decisão política então empregada" (GOMES, 2009,
p.73), sendo fundamental para a própria noção de democracia, uma vez que se constitui
enquanto veículo da participação política da esfera civil. Diferentemente das decisões de
corte que caracterizaram o absolutismo europeu, até então balizadas pelo arbítrio ou pelos
direitos divino e de sangue, a nova proposta de governo que funda o estado burguês é
baseada na noção de esfera pública, na qual a decisão política legítima se constitui pela
capacidade de refletir a vontade da esfera civil, de ser levada as considerações do público
atendendo aos critérios de racionalidade e da discussão.

Nesta concepção, a esfera pública é entendida como "âmbito da vida social em que
interesses, vontades e pretensões que comportam conseqüências concernentes à
comunidade política se apresentam na forma de argumentação ou discussão" (GOMES,
2008, p.35). Tal definição, que tem como principal referência o sociólogo e filósofo alemão
Jurgen Habermas, vincula-se à idéia de interesse público, que seria a própria formação
discursiva da opinião e da vontade coletivas (HABERMAS apud GOMES, 2008, p.41).

Encerrado o embate com a aristocracia e consolidado o estado burguês, os interesses


privados passam a atuar na esfera pública através dos parlamentos, provocando um
distanciamento da esfera civil. A imprensa passa então a desempenhar papel fundamental
como intermediadora entre o público e o Estado, espaço em que as decisões políticas são
tomadas e legitimadas (HABERMAS apud GOMES, 2008, p.45).

26
Ainda que resista dentro do pensamento moderno, este conceito de esfera pública sofre
mudanças estruturais em sintonia com as transformações ocorridas no quadro social ao
longo do tempo. Segundo Gomes (2008), é neste período que o Estado volta a se posicionar
como instituição imprescindível à sociedade, exigência que parte da própria esfera privada
quando se vê incapaz de conter os arroubos provocados pelo liberalismo (GOMES, 2008).
"Quando a consciência social desvincula a propriedade de bens das condições de
acessibilidade, os interesses dos socialmente desfavorecidos, particularmente dos
trabalhadores, findam por ser admitidos à esfera pública" (GOMES, 2008, p. 47) Deste
reposicionamento, segundo Habermas, decorrem também mudanças estruturais na esfera
pública: "Sob todos os aspectos que a considerarmos resultará sempre a perda das suas três
características fundamentais, a saber, a acessibilidade, a discutibilidade e a racionalidade,
bem como a degeneração mais essencial, a opinião pública" (HABERMAS apud GOMES,
2008, p. 48)1.

Até então entendida como intermédio argumentativo entre a esfera privada e o poder
público, a esfera pública deixaria, conforme ao autor, de fazer uso da discussão, onde se
reconhecia o mérito da racionalidade argumentativa, passando a atuar por meio das práticas
de sedução bastante utilizadas pelos meios de comunicação de massa. Neste novo contexto,
o papel dos meios de comunicação de massa, logo da imprensa, também é modificado
diante da esfera pública. Segundo Gomes (2008), a imprensa:

finda por ser o lugar, ocasião e meio mediante o qual aquilo que se quer
que se torne opinião pública deve circular para obter assentimento dos
privados. Não é um meio de debate do qual se espera emergir uma opinião,
mas um meio de circulação de opiniões estabelecidas às quais se espera
uma adesão, o mais amplamente possível, de um público reduzido a uma
massa chamada de tempos em tempos a realizar decisões 'plebiscitárias.
(GOMES, 2008, p. 49).

2
O conceito habermasiano de esfera pública enquanto pressuposto para o funcionamento da imprensa tem
sido alvo de crítica por diversos teóricos dos estudos do jornalismo. Parte das críticas a este modelo considera
que o discurso utilizado pelo jornalismo, para legitimar as suas atividades na sociedade via noção de interesse
público, ao se apoiar na perspectiva habermasiana, acaba representando apenas algumas parcelas da realidade
e não todos os grupos sociais em sua totalidade como proclamado (ÖRNEBRING & JÖNSSON apud
ROSARIO, 2009). Neste trabalho, apesar de considerarmos a necessidade de rever as apropriações feitas para
os conceitos de esfera pública e interesse público, a partir de Habermas, ao definir o jornalismo
contemporâneo, entendemos que ainda que esta não dê mais conta das práticas da profissão, ela ainda tem
validade sendo aqui usada como forma de discutir como a instituição jornalismo é discursivamente concebida.

27
A esfera de visibilidade pública se realiza por meio do sistema expressivo formado pelo
conjunto de emissão dos meios de comunicação. É no ambiente da visibilidade midiática
que circulam as opiniões estabelecidas sujeitas à adesão da sociedade. O público é
convocado, em intervalos regulares de tempo, a realizar estas decisões por meio da
expressão do voto. É nestas condições, pela ausência de uma participação política
espontânea da esfera civil, que Habermas irá considerar a esfera pública um ambiente de
encenação. As opiniões passam a ser verbalizadas apenas para convencer e não para serem
demonstradas dialogicamente, caracterizando a esfera pública como espaço de legitimação
e não mais de produção das decisões sociais. Gomes (2008) que a esfera de visibilidade
pública seja mais do que mero espaço para a exibição da opinião e da vontade públicas, é
através desta também que os temas de interesse público são tornados disponíveis à
sociedade e nela suscitados na forma de debates públicos.

A legitimação social por meio do interesse público está também associada ao


desenvolvimento do conceito da imprensa como quarto poder político da sociedade.
Segundo os teóricos desta concepção, à imprensa cabe fiscalizar o governo em defesa dos
interesses do cidadão. Assim entendido, o jornalismo seria também instrumento de controle
dos outros três poderes constituídos na sociedade, cabendo a ele a mediação de conflitos
que venham a ocorrer, bem como o papel de "servir de guardião dos interesses dos cidadãos
contra os abusos do poder, sejam eles realizados por parte do governo ou não"
(ALBUQUERQUE, 2009, p.4). Este poder da imprensa, segundo Albuquerque, deriva da
sua habilidade de definir o que é e o que não é notícia, da capacidade de selecionar os
temas que merecerão atenção pública.

A partir do pensamento social do filósofo francês Benjamin Constant, surge a qualificação


de neutralidade atrelada ao quarto poder exercido pela imprensa, em que caberia a
instituição atuar socialmente sem fazer dos seus interesses, mas sim em benefício do
equilíbrio dos poderes na sociedade (ALBUQUERQUE, 2009). Este modelo de
pensamento acerca do quarto poder está presente nas raízes do pensamento político da
sociedade brasileira, tendo servido de referência à Constituição Brasileira de 1824 e
atravessado o pensamento do período republicano. O conceito de quarto poder, por outro
28
lado, serve ao jornalismo também na reivindicação e legitimação de valores como a
independência e liberdade de expressão.

Dentro deste contexto em que atua o interesse público, as decisões políticas passam
inevitavelmente pelos fluxos de comunicação, onde os meios desempenham papel
fundamental tanto na formulação e percepção, quanto na discussão dos problemas da
sociedade. Gomes aponta também nesta relação da imprensa com o interesse público a
função democrática de fomentar o debate público sobre o funcionamento mesmo do
governo. Como espaços para o desenvolvimento destes debates, os veículos são entendidos
também como ambientes de formação das opiniões públicas de caráter coletivo;
circunstância propícia a reflexão sobre os reais interesses e preferências que brotam da
sociedade (GOMES, 2008, p.17). Dentro deste panorama, Gomes defende que o papel da
comunicação de massa é, ao menos em tese, o de (a) integrar-se na constituição de uma
esfera pública política forte, definitivamente arraigada na esfera civil e (b) abrir brechas no
sistema político que permitam a entrada da vontade e da opinião pública (GOMES, 2008, p.
18).

3.2 INTERESSE PÚBLICO, DEBATE PÚBLICO E PAPEL DOS GRUPOS CÍVICOS

Quanto às mudanças provocadas na esfera pública por conta da utilização da visibilidade


pública pelos meios de comunicação de massa, Gomes (2008) defende que ela não seja uma
novidade se considerarmos as políticas da publicidade social ao longo da sua história:

Dessa forma, o fato de a cena política contemporânea midiática e


espetacular organizar-se segundo os princípios da sedução e preferir a
imagem ao argumento, o lúdico ou o extraordinário ao contraste de idéias, a
velocidade à profundidade, não a transforma em algo melhor ou pior que a
prática política de qualquer época. É a mesma velha arte política,
simplesmente atualizada pelas novas tecnologias da comunicação e
formatada para o consumo de um público educado pela lógica dos meios de
comunicação (GOMES, 2008, p. 125).

Para o autor, apesar de todas as críticas de Habermas feitas às práticas de sedução dos
meios de comunicação de massa, é possível a ocorrência de debate público também dentro
deles. Este entendimento se dá a partir da compreensão de que a publicidade social é uma

29
democracia moderna, bem como à esfera de discussão pública na sociedade, por garantir a
disponibilidade dos temas de interesse público. Para isso, afirma Gomes (2008), basta
considerar, por exemplo, o constrangimento democrático e pro-cívico que estes meios
exercem sobre o sistema político:

A discutibilidade depende, fundamentalmente, do sistema político e da


esfera civil, mas o campo da comunicação tem o poder de sequestrar os
temas políticos para a esfera da visibilidade ou de iniciar discussões de
temas políticos, gerando como isso: a) uma discussão em público de tais
temas por agentes políticos e pelos que têm lugar de fala na sociedade; b) a
visibilidade de discussões que, de outro modo, aconteceriam em âmbito
particular ou reservado; c) o fornecimento de inputs para muitas discussões
com pouca visibilidade (mas com grau de eficácia) na sociedade civil.
(GOMES, 2008, p. 160).

Nesse sentido, é muito freqüente que as instâncias discursivas tenham a cena midiática
como base dos temas que venham a gerar ou interferir nos debates públicos nela realizados.
Um tema que venha a ser introduzido na cena pública pode ter diversas fontes sociais, mas
decerto que o seu primeiro passo se dá a partir da presença na cena pública para que assim
se torne insumo da esfera pública. É o caso, por exemplo, do objeto de estudo deste
trabalho. Ao identificar o enquadramento construído pela mídia brasileira na cobertura do
evento social Marcha da Maconha estaremos também lidando com o acesso inaugural da
proposta de descriminalização da substância Cannabis sativa ao debate dentro da mídia
brasileira sob a perspectiva de um movimento socialmente organizado.

Para chegar a atuar como espaço de argumentação dentro da esfera pública, os meios de
comunicação de massa, em particular a imprensa, historicamente têm no interesse público a
sua legitimação social. O jornalismo é, assim, considerado uma conquista da esfera civil
por atuar como canal alternativo da comunicação política da sociedade, alheio aos
interesses deste campo. Também pela possibilidade de exibir em seus fluxos informativos
tudo aquilo que a política preferia manter reservado, a imprensa é reconhecida na esfera
civil como instituição fundamental à democracia.

Gomes (2009) chama atenção para que este interesse público não seja apenas um
imperativo de autolegitimação, considerando a necessidade de compreendê-lo como

30
fundamental por conferir à prática jornalística a possibilidade de fazer com que a esfera
civil se veja representada e se encontre satisfeita com os procedimentos políticos vigentes.
Ou seja, é por meio dos repertórios informativos que disponibiliza que a imprensa deve
fornecer aos cidadãos os conhecimentos necessários à participação na esfera civil, nas
decisões da esfera política (GOMES, 200, p. 79). Neste quesito, Gomes destaca ainda que a
adoção do interesse público não se faz suficiente para fundamentar uma ética do
jornalismo, já que, para isso, seria necessário levar em consideração não só o público-
cidadão do jornalismo, mas também o seu público-cliente.

Historicamente esta distinção entre os públicos têm início a partir da consolidação do


Estado moderno, quando a esfera civil é reduzida na sua participação política e o
jornalismo abandona o modelo de imprensa de opinião para assumir um modelo
empresarial. Para Guerra, neste período, a instituição passa a buscar atrair outros públicos
até vir a se consolidar socialmente com a crescente dos anúncios como fonte de renda.
(GUERRA, 2003). Neste redimensionamento, a satisfação dos interesses das audiências,
representado pelo cliente consumidor do mercado de informações que anseia por estar em
contato com a sua realidade, é o fio condutor das transformações nos padrões de
comportamentos e modos de produção do jornalismo (GOMES, 2009, p. 75).

Nesse entendimento, portanto, impera dois sentidos de público. O público referente à noção
de povo, que se relaciona àquilo que seria de interesse comum em uma sociedade, e o
público como sinônimo de cliente ou público-alvo de um determinado veículo. Segundo
Gomes, estes dois públicos, bem como os discursos que cabe a cada um deles, atuam até
hoje em estado de "inércia discursiva" dentro do jornalismo contemporâneo.

Ainda no âmbito desta esfera pública, é importante notar o papel desempenhado pelos
grupos cívicos, atores políticos responsáveis por garantir a pluralidade de interlocutores e
argumentações dentro da esfera pública. É a partir da conversação em fóruns da sociedade
civil que os interesses de grupos marginalizados ou silenciados serão construídos,
traduzindo-se numa linguagem comum para que sejam defendidas publicamente e
utilizadas como ferramentas de participação política.

31
As dificuldades encontradas pelos movimentos sociais no acesso ao campo jornalístico,
aqui entendida como uma condição comum aos públicos fracos na democracia deliberativa
(MAIA, 2008), costumam ser vencidas por meio da produção de fatos noticiosos, passeatas
e demonstrações públicas (TRAQUINA apud MAIA, 2008). É onde se insere, por exemplo,
o movimento social estudado neste trabalho, entendendo os seus membros como usuários
criminalizados pela sociedade que saem as ruas para propor a adoção de políticas
alternativas que atendam aos também aos seus interesses. É também através destas
iniciativas que os movimentos sociais vencem a invisibilidade e se tornam capazes de
propor entendimentos alternativos dentro do debate público, esta considerada por Maia
como “a medida mínima para a participação política e a cooperação razoável na deliberação
pública..." (MAIA, 2008, p. 185).

Maia (2008) afirma que, agindo dessa maneira, os representantes dos movimentos sociais
contribuem com novas interpretações para as temáticas abordadas na mídia, chegando a
sugerir até mesmo modos distintos de enquadrar temas de seu interesse. Esse
reposicionamento se dá por meio das próprias narrativas que a mídia produz. Elas são
resultado da interação estabelecida com os eventos e seus protagonistas, "além de conterem
uma série de expectativas com relação à audiência, cuja fidelidade é vital para os meios de
comunicação de massa e que convive com outros enquadramentos, oriundos de outras
fontes" (NEUMAN apud ALDÉ, 2000).

Como exemplo deste novo olhar conferido pela mídia a um movimento social, podemos
tomar o do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, que desde a década de 90, ao
se tornar ator conhecido do espaço público midiatizado brasileiro, passou também a
agendar a mídia. Ainda que a criminalização do movimento ainda seja a constante das
coberturas da mídia brasileira, é possível considerar a conquista de um espaço no qual o
movimento manifeste também os seus interesses, sendo também compreendido pelo
público, a partir da inserção dos seus símbolos no seio da sociedade brasileira. (FONSECA,
2006). Este exemplo elucida as maneiras como a mídia participa do processo de seleção dos
temas que serão debatidos na sociedade. Os meios de comunicação de massa agem,

32
também, para a reprodução de determinadas perspectivas ideológicas. Dessa maneira,
"interferem diretamente nessa reprodução, mesmo que sua própria intervenção seja limitada
estruturalmente – tanto cognitiva quanto ideologicamente – por suas condições de produção
e pelas variações históricas, sociais e culturais que se impõe sobre as diferentes formas de
consumo e recepção dessa mesma produção" (ALDÉ, 2000, p.3).

33
4. ENQUADRAMENTO

O conceito de enquadramento (framing), no âmbito dos estudos sobre os efeitos midiáticos,


está associado ao poder que as notícias produzidas pelos veículos de comunicação têm de
dizer como devem ser pensados os temas abordados na mídia. O processo, inicialmente
descrito por Kosicki, é identificado pelos tipos de categorias ou scripts que ajudam a
estruturar a nossa experiência diária, facilitando assim a construção de significados e nos
permitindo entender certos temas a partir de perspectivas particulares (KOSICKI apud
GUTMANN, 2006 , p. 32). Produzir um enquadramento é selecionar alguns aspectos da
realidade percebida e dar a eles um destaque maior no texto comunicativo, gerando
interpretação, avaliação moral e/ou tratamento recomendado para o item descrito
(ENTMAN, 1993; COLLING, 2000). O conceito, surgido na Sociologia, é empregado nos
estudos da comunicação para referir-se às propriedades construtivas da representação
jornalística, em que os enquadramentos são tomados como marcos interpretativos que
permitem ao público atribuir sentido as situações sociais (SOARES, 2006).

O enquadramento é utilizado nestes estudos tanto para identificar a construção feita pela
mídia ao pautar determinados temas, o chamado framing de mídia,como também na
investigação de como o público, a partir do que é apresentado pela mídia, enquadra o que é
apresentado, o, chamado por framing de audiência (GUTMANN, 2006). Sem deixar de
reconhecer o papel representado pela comunicação interpessoal dentro do universo da
representação midiática, este trabalho estará focado na identificação do enquadramento
construído pela mídia brasileira, portanto, do framing de mídia configurado para tratar da
edições da Marcha da Maconha realizada nas capitais do Brasil.

Em seus estudos, Robert Entman (1993) observa que por meio do framing é possível atuar
politicamente, definir problemas, diagnosticar causas, fazer um julgamento moral e sugerir
remediações (ENTMAN, 1993, p.1-8). É a partir do enquadramento dedicado às notícias
que os meios de comunicação lançam mão de uma construção própria sobre a realidade,

34
revelando escolhas sociais. Goffman (1974) entende o procedimento de enquadrar as
notícias como construção de esquemas que conduzem a atenção para uma informação, em
um processo que irá interferir tanto na interpretação quanto na avaliação. (GOFFMAN,
Erving apud SOARES, 2006).

Carragee e Roefs defendem que os enquadramentos são patrocinados por múltiplos atores
sociais, incluindo políticos, organizações e movimentos sociais, sendo que as reportagens
se configuram como fóruns de disputas dos enquadramentos correntes onde estes atores
políticos disputam espectros de construção social da realidade. (CARRAGEE; ROEFS
apud SOARES, 2006). É por meio do enquadramento, inclusive, que a mídia pode vir a
rotular os movimentos sociais (COLLING, 2002). Em seus estudos sobre o enquadramento
Mc Leod e Detember identificam uma tendência do jornalismo em favorecer o status quo
na sociedade, o que faz com que as reportagens sobre manifestações públicas costumem,
por exemplo, focalizar na aparência dos manifestantes e enfatizar a ocorrência de ações
violentas, ao invés de apresentar as suas posições. Os autores chamam esta tendência de
paradigma de protesto, identificando as estruturas narrativas, a confiança das fontes e as
definições oficiais como técnicas utilizadas para deslegitimar e marginalizar os movimentos
sociais. (MC LEOD; DETEMBER apud SOARES, 2004).

Como exemplo de rotulação praticada a partir da construção de enquadramento, o trabalho


de Sampedro analisou a construção feita pela imprensa espanhola ao tratar do movimento
civil Objeção de Consciência (OC), que atuou para acabar com o serviço militar obrigatório
na Espanha. O pesquisador verificou que, durante o ano de 1988, o movimento foi tratado
como terrorista em quase metade dos parágrafos da cobertura feita pelo jornal ABC e em
um quinto da cobertura do jornal El País. Este emparelhamento ideológico, segundo o
autor, não foi comprovado na realidade, tendo servido como modo tendencioso de fazer os
leitores apoiarem o discurso das elites que identificavam os insubmissos como terroristas.
Em seu trabalho, o autor considerou ainda que a linha editorial costuma se revelar como
filtro para apagar os movimentos sociais da esfera política (SAMPEDRO apud COLLING,
2002).

35
É importante ressaltar que dentro do conceito de framing a audiência não é vista como
elemento passivo diante das construções adotadas pela mídia. Para Entman, cada membro
da audiência é teoricamente livre para tirar os seus próprios significados dessas mensagens
(ENTMAN, 1991, p. 19 e 20). Por outro lado, ele aponta que, diante de uma escassez de
informações que desafiem o enquadramento dominante, “uma posição dita autorizada tende
a penetrar no texto informativo, tal como frames dominantes tendem a obscurecer
totalmente alguma informação que seja oposta” (Entman, 1991, p. 19 e 20). Podemos citar
como exemplo, a própria temática que será aqui estudada, em que o enquadramento
comumente adotado criminalizava o uso da maconha. Ainda assim, atualmente, já é
possível observar enquadramentos que contextualizam as propostas de legalização, tanto no
ramo comunicativo do jornalismo especializado - como é o caso da revista americana High
Times, que atua focada no mercado do auto-cultivo da planta -, quanto nos veículos
voltados para um público diversificado, como é o caso das revista brasileira
Superinteressante e da Folha de São Paulo que dispõem, inclusive, de publicações
exclusivas sobre o tema.

Os enquadramentos se inscrevem inclusive no tempo social, sustentando em larga escala a


compreensão que a sociedade tem de sim mesma, o que Stephen Reese define como
“princípios de organização que são socialmente divididos e que persistem ao longo do
tempo, funcionando simbolicamente para estruturar os significados do mundo social”.
(REESE apud MESQUITA, 2008, p. 18). Para o pesquisador, o enquadramento midiático
nada mais é do que um exercício de poder, no qual o jornalista define as orientações às
quais o leitor irá seguir. Estaa perspectiva, o autor exemplifica nas seguintes condições: "Se
uma passeata de protesto, por exemplo, é enquadrada como um confronto entre policiais e
manifestantes, as críticas dos protestos sociais podem não ser parte da história – não porque
não houvesse lugar para elas, mas porque não foram definidas como relevantes. (REESE
apud MESQUITA, 2008). Ainda nesse sentido, Tankard destaca que a análise por meio do
enquadramento permite ao pesquisador refletir essa tentativa de observar as ideologias e
preferências presentes no discurso jornalístico (TANKARD, 2001, p. 96 apud MESQUITA,
2008, p. 19). Soares destaca também a importância do estudo para o estabelecimento de
contrastes entre coberturas de diferentes veículos sobre um determinado tema. (SOARES,

36
2006).

A aplicação do framing por parte dos jornalistas - sujeitos executores da notícia - não é
necessariamente um processo consciente. Para Hackett, o enquadramento que venha a ser
adotado “pode muito bem ser o resultado da absorção inconsciente de pressuposições
acerca do mundo social no qual a notícia tem de ser embutida de modo a ser inteligível para
o seu público pretendido” (HACKETT apud COLLING, 2001, p.97). Em seus estudos
Gaye Tuchman estabelece relações entre a construção dos enquadramentos e a rotina
produtiva dos jornalistas, que resulta na adoção inconsciente de automatizações por parte
dos jornalistas, levando os "a identificar e classificar rapidamente a informação e empacotá-
la para uma eficiente leitura da audiência" (TUCHMAN apud GUTMMAN, 2003, p.34).

4.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA ANÁLISE

Serão analisadas as coberturas da Marcha da Maconha feitas pelo dois principais jornais
baianos, A Tarde e Correio, os dois principais impressos de Pernambuco, Folha de
Pernambuco e Jornal do Comércio, além de dois jornais de circulação nacional, O Globo e
Folha de São Paulo. Foram analisadas as edições da Marcha da Maconha ocorridas nas
respectivas cidades de circulação dos veículos nos anos de 2009 e 2010. Em Salvador, não
foi analisada a edição da Marcha no ano de 2010, já que ela ainda não havia sido realizada
quando do período de produção deste trabalho.

O objetivo central deste trabalho é discutir o modo como o fenômeno midiático Marcha da
Maconha foi apresentado pelos jornais nordestinos, o que explica a escolha das duas
principais capitais da região, Salvador e Recife. De modo a tornar a identificação deste
enquadramento ainda mais rico, optou-se por analisar as coberturas feitas por dois jornais
de circulação nacional observando também o modo que a imprensa nacional construiu o
enquadramento do evento, quando realizado no Rio de Janeiro, o que justifica a escolha de
O Globo, e a tentativa de realização da Marcha em São Paulo, que explica a inclusão da
análise da cobertura da Folha. O corpus de análise restringe-se aos textos publicados pelos
jornais um dia após a realização da marcha na cidade, levando em consideração inclusive a

37
possibilidade de silenciamento do evento ocorrido. Ao todo, foram identificadas sete
matéria repercutindo a realização das marchas nas capitais selecionadas.

O processo de análise deste trabalho levou em consideração as fases de investigação


apontadas por Soares (2006) para uma pesquisa de enquadramento. A primeira etapa
indicada pelo autor, que é a apresentação de uma discussão teórica acerca do fato tratado
pelas coberturas que serão analisadas, pode-se considerar resolvida com as discussões
acerca da proposta de descriminalização e sobre os movimentos antiproibicionistas
apresentados no primeiro capítulo deste trabalho. Em seguida, passamos a observação do
material selecionado, em que foi realizada uma leitura flutuante para definir as categorias
de análise, as quais, neste trabalho, basearam-se na proposta de Robert Entman para a
interpretação dos enquadramentos noticiosos (ENTMAN apud COLLING, 1993).

Para identificar o enquadramento de uma reportagem, os estudos realizados por Entman


indicam para os seguintes procedimentos: 1.identificação da definição do problema
apresentado, verificando se ele é político, social ou econômico, por exemplo, se há ou não
personalização do problema; 2. identificação das causas do problema apresentado; 3.
identificação dos atores e fontes envolvidos na questão; e 4. quais são as suas soluções; e
5. a avaliação moral do problema (ENTMAN apud COLLING, 1993, p.25).

Nessa perspectiva, o primeiro procedimento analítico, ao considerar a proposta de


descriminalização feita pelo movimento antiproibicionista, procura detectar qual o
problema discutido pelo jornal a partir da cobertura da Marcha da Maconha. A importância
de detectar as causas apresentadas pelo enquadramento para o problema em questão pode
se traduzir na investigação das causas apresentadas pelos jornais para a existência desse
movimento. Ao mesmo tempo, a análise irá identificar também de que maneira o texto das
reportagens faz uso dos elementos de confronto ao contexto atual de criminalização do
consumo de maconha enunciada pelo movimento antiproibicionista. A análise dos atores
sociais presentes nas matérias considerou, a princípio, os tipos de fontes oficiais,
especialistas e usuários. Aqui, é importante notar que os diferentes atores sociais possuem
capacidades também diferenciadas de influenciar os processos de enquadramento da mídia.
Através dos sujeitos envolvidos será possível identificar as soluções e conseqüências
apresentadas pelo veículo. Por fim, pretende-se interpretar a avaliação moral feita pelo

38
jornal sobre o problema.

Com base nesses pressupostos metodológicos de Entman e a partir de uma primeira


observação das notícias selecionadas, também denominada de “leitura flutuante”, foram
definidas as seguintes categorias de análise: 1.Apresentação da proposta de
descriminalização, na qual pretende-se identificar se ela aparece no relato do repórter, nas
declarações dos organizadores, no fala-povo das matérias; 2. Elementos de desmistificação,
quando serão identificados, no texto, considerações que repercutam as estratégias de quebra
dos preconceitos gerados pela criminalização da Cannabis Sativa, levando em consideração
a diversidade de usos apontadas pelo movimento antiproibicionista; 3. Elementos de
reforço do status quo, ou seja, dados que sustentem o contexto de criminalização da planta;
4. Qualificação dos atores e das fontes envolvidas, quando será observado como se
encontram posicionados e qualificados os atores do evento, bem como as fontes, que
podem incluir estes mesmos atores ou sujeitos externos ao evento.

A partir dessa escolha foi realizada uma descrição geral das matérias selecionadas,
conteúdo que consta no anexo deste trabalho. As notícias foram descritas a partir dos
aspectos considerados relevantes à análise. Por fim é que partimos para uma interpretação,
onde a operação metodológica aplicada na fase anterior foi confrontada com os conceitos
teóricos apresentados sobre o evento social Marcha da Maconha. Por meio da adoção desta
perspectiva de encontro entre o material selecionado e os conceitos teóricos apresentados,
como ressalta Lopes (2006), é que consideramos que “ a interpretação poderá identificar,
comparar e/ou contrastar as coberturas jornalísticas analisadas revelando expressões
particulares de um processo comum de produção textual". (SOARES, 2006, p.463).

A análise apresentada irá se concentrar no texto verbal das matérias, que também inclui
títulos e linhas de apoio. Contudo, quando necessário, será observada também a disposição
feita pelo veículo dos textos da cobertura, considerando a importância da diagramação
como produtora de sentido, bem como o uso de fotografias e ilustrações. É importante
destacar que o objetivo do trabalho não é analisar a produção de sentido dos elementos
visuais da matéria, mas observá-los na medida em que este contribui para a interpretação do
conteúdo, reforçando ou contradizendo o que esta sendo dito no conteúdo verbal.

39
5. ANALISE DO ENQUADRAMENTO

5.1 UMA MARCHA CONQUISTADA

A primeira Marcha da Maconha ocorrida em Salvador foi realizada no dia 5 de dezembro


de 2009. Os manifestantes caminharam exibindo cartazes e distribuindo material
informativo do Farol até o Porto em defesa da descriminalização do uso da Cannabis
Sativa. De acordo com dados da polícia militar, o evento reuniu cerca de 400 pessoas, tendo
ocorrido sem incidentes. No fim do ato, os manifestantes acenderam velas e fizeram um
minuto de silêncio em memória das vítimas da violência urbana no país.

Antes de ser autorizada pela justiça, por meio de habeas corpus emitido pelo Tribunal de
Justiça do Estado, o evento havia sido proibido outras duas vezes sob a alegação de
constituir-se em ato de apologia ao uso da planta. Isso fez com que a Marcha realizada em
Salvador só viesse a acontecer no mês de dezembro, e não no mês de maio, quando ocorre
uma temporada de Marchas em todo país, período conhecido como Maio Verde.

A cobertura do jornal A Tarde para a primeira edição da Marcha em Salvador, veiculada


um dia após o evento, em 6 de dezembro de 2009, contou com notícia publicada na editoria
Últimas, página B14, com o título que destaca a quantidade de manifestantes presentes no
evento: “Marcha da Maconha reúne 400 pessoas na Barra” . A matéria é acompanhada de
foto em que os manifestantes aparecem exibindo cartazes em defesa da descriminalização
da planta.

No texto da notícia publicada por A Tarde, a proposta de descriminalização da Cannabis


aparece na reprodução de um dos gritos de guerra - na reportagem identificados como
“frases de feito” - entoados pelo grupo durante o evento: “Um, dois, três, quatro, cinco mil,
queremos a maconha liberada no Brasil”, que abre a matéria. Dessa maneira, a cobertura
confere ao movimento um enquadramento comum aos movimentos sociais que realizam
atos públicos, ao considerá-lo também a partir do seu grito de guerra remetido à sociedade.

40
A proposta é retomada ainda na fala do antropólogo e pesquisador da UFBA, Edward
MacRae, que afirma, no segundo parágrafo da matéria, que “agora podemos discutir o
assunto com maturidade”. Esta fala confere um caráter positivo à Marcha, em que o jornal
parece dar credibilidade à proposta de descriminalização como um debate necessário à
sociedade, mas a partir de uma fonte ligada ao movimento. Ao mesmo tempo, esse
posicionamento construído pelo jornal se revela ambíguo quando, tanto no título (“Marcha
da Maconha reúne 400 pessoas na Barra”), quanto no lead 1, evidencia o número reduzido
de participantes no ato.

Os elementos de confronto ao atual contexto de criminalização da maconha, que coincidem


com o próprio discurso do movimento antiproibicionista, são identificadas nesta
reportagem no trecho, apresentado no último parágrafo da notícia, em que o repórter
enfatiza a diversidade de participantes do evento: “Entre os manifestantes estavam
sociólogos, antropólogos, médicos, historiadores, filósofos e estudantes universitários”.

Dentre os elementos que caracterizam a qualificação dos atores do evento, são identificadas
na análise desta cobertura o momento em que o texto menciona a realização de um minuto
de silêncio em memória das vítimas do tráfico no país. Este registro qualifica o discurso do
movimento social antiproibicionista distanciando-o de uma postura de confronto com à
sociedade. Quanto às fontes utilizadas na notícia, a cobertura feita pelo jornal A Tarde
ouviu apenas o antropólogo Edward MacRae, de modo que não tenha sido registrado no
texto qualquer tipo de opinião em oposição à proposta de descriminalização da planta,
descaracterizando a possibilidade de debate sobre as políticas de drogas nas páginas do
veículo. Ao optar por este enquadramento, o veículo se limita a ouvir fontes diretamente
ligada a proposta de descriminalização defendidas pelo movimento antiproibicionista, sem
no entanto promover um debate público através de outras falas que a contestem.
Apesar de sutis, há elementos na cobertura que favoreçam o status quo de criminalização
da planta, como no trecho em que o repórter destaca a orientação difundida no grupo de
“não fumar para não queimar o movimento”. Ainda que demonstre a existência de uma

3
O lead é a abertura da matéria. Nos textos noticiosos, deve incluir, em duas ou três frases, as informações
essenciais que transmitam aoleitor um resumo completo do fato (MARTINS, 1997).

41
prática organizada no grupo, a ênfase neste dado ressalta o hábito de fumar a planta sob a
perspectiva da ilegalidade. Outro trecho que de maneira sutil trata o movimento sob o
contexto atual de criminalização foi identificada no trecho em que a notícia menciona o
histórico da proibição do evento: “A Marcha aconteceu depois de duas proibições em 2008
e 2009”.

A reportagem do Correio para o mesmo evento foi publicada na página 5, na editoria


Salvador da edição do dia 6 de dezembro de 2009, com o título “Marcha da Maconha pede
para legalizar a planta”. A matéria conta com foto, em que aparece em destaque uma faixa
da Ananda (Ativismo, Redução de Danos, Pesquisa e Informação sobre Drogas),
organização responsável pela edição da marcha em Salvador.

A proposta de descriminalização aparece no texto desta cobertura a partir de uma


construção estereotipada sobre a figura do ativista, definidos no segundo parágrafo da
matéria como sujeitos “de olhos bem-fechadinhos e garrafas de água mineral em mãos” que
saíram em caminhada “pedindo a legalização da venda da erva”. A partir desta construção,
a cobertura do Correio cria um distanciamento entre o grupo social e o público leitor do
veículo, tratando-os sob uma perspectiva exótica. Esta construção acerca do ativista
adotada pelo veículo reforça também a idéia de que o manifestante seja necessariamente
um usuário de maconha, como corroborado pela frase de efeito entoada pelo movimento
que encerra a notícia: “Eu sou maconheiro, com muito orgulho, com muito amor”. Dessa
maneira o texto da cobertura do Correio ressalta o orgulho dos manifestantes, adotando um
enquadramento que destaca as peculiaridades da manifestação, apresentando-o não só a
como um ato público político, mas também a partir de sua face lúdico-cultural.

Diferentemente da cobertura do A Tarde, que destacou o reduzido número de participante


como dado mais importante do fato, o título da notícia do Correio destaca a causa do
movimento antiproibicionista: “Marcha da Maconha pede para legalizar a planta”, numa
construção que dá maior visibilidade à proposta do movimento. No subtítulo1, a palavra

1
Este termo será aqui utilizado em referência à linha fina, definida como frase ou período sem ponto final que
aparece abaixo do título e serve para completar seu sentido ou dar outras informações (FOLHA, 2001).

42
“massa” é utilizada com duplo sentido, fazendo tanto referência a uma maneira popular dos
baianos de aprovar alguma situação quanto a uma das denominações pela qual a planta é
também conhecida. O lead da matéria destaca ainda outras denominações que a planta
adquiriu no país: “O pôr-do-sol foi dedicado à marijuana, à ganja, à cannabis, ao barro, ao
dedo de hulk, ou simplesmente, à maconha, para quem só a conhece por este nome”. A
partir desta construção, em que destaca a variedade de nomes da maconha, é possível
afirmar que o enquadramento adotado pelo Correio salienta a existência de uma cultura de
consumo da erva.

No enquadramento construído pelo Correio, é identificado como elemento discursivo que


confronta o atual contexto de criminalização da planta a transcrição de uma das faixas
exibidas pelo movimento: “Cura, alimenta e diverte”. A transcrição aparece como
introdução para a fala do antropólogo Sérgio Vidal, que aborda a diversidade de usos da
erva na história da humanidade: “As drogas fazem parte da história da humanidade, elas
sempre estiveram ligadas ao prazer, sagrado e a cura”. Outro elemento de confronto é
identificado já no parágrafo seguinte, na fala de Edward MacRae - desta vez apresentado
como coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas da
UFBA - que aborda o preconceito histórico advindo do uso da planta pelos negros
brasileiros: “A maconha foi trazida ao Brasil pelos escravos, por isso a marginalização
irracional, mas a maconha não mata, quem mata é o tráfico de drogas”. Tal perspectiva
também é reforçada pela fala do professor da UFBA Cláudio Lorenzo, identificado na
matéria como “estudioso dos problemas causados à saúde pelas drogas”, que afirma que “o
álcool provoca muito mais problemas à saúde do que a maconha”.

A frequência com que estes confrontos à política atual de drogas aparecem no texto do
Correio vai caracterizar este enquadramento pela acessibilidade à fala do movimento social
em questão. Dessa maneira, o enquadramento adotado revela uma postura ambígua do
veículo, quando, ao mesmo tempo em que apresenta a proposta de descriminalização à
sociedade contemplando as estratégias do grupo para confrontar a criminalização da
maconha, irá apresentar estes mesmos ativistas a partir de uma construção estereotipada e

43
reducionista, atribuindo-lhes aspectos folclóricos, o que coloca o movimento como algo
exterior à sociedade ou, pelo menos, aos interlocutores do jornal.

As fontes utilizadas nesta cobertura são todas qualificadas como especialistas no assunto
(antropólogos e professor), sendo um deles ligado a organização do evento. Portanto, nesta
reportagem, também não aparecem fontes que manifestem opinião contrária à proposta de
descriminalização do movimento antiproibicionista, constituindo-se em mais um caso em
que o debate público não é alcançado no plano das declarações das fontes.

5.2 A MARCHA DO RECIFE ANTIGO EM 2009

A edição de 2009 da Marcha da Maconha em Recife aconteceu no dia 3 de maio, tendo sido
a segunda marcha realizada na cidade 1.O evento contou com a participação de cerca de mil
manifestantes, segundo dados da polícia militar. A realização da Marcha foi autorizada pelo
juiz da 2ª Vara Criminal dos feitos relativos a Entorpecentes, tendo como condição o
acompanhamento policial da caminhada.

A cobertura feita pelo Jornal do Comércio desta edição do evento foi publicada na edição
do dia 4 de maio, na contracapa do jornal, na editoria capa dois, com o título “Jovens
marcham no Recife pela liberação da Maconha”. A reportagem conta também com
chamada na capa acompanhada de foto. Na foto que acompanha a reportagem um jovem
simula estar fumando um baseado 2 gigante. Na foto, também fica destacada a frase
“Legalize Já” estampada em uma faixa carregada pelos manifestantes.

A abordagem adotada pelo Jornal do Comércio apresenta a proposta de descriminalização


já no título, em que a causa do movimento é destacada: “Jovens marcham no Recife pela
liberação da Maconha”. A proposta aparece também no lead da matéria a partir da
descrição dos manifestantes como “usuários e gente favorável à legalização da Cannabis

1
A primeira edição da Marcha da Maconha em Recife foi realizada no ano de 2008, tendo sido a única que
chegou a acontecer das dez capitais previstas para este ano. Segundo dados da polícia militar, o evento contou
com a presença de 1.500 manifestantes.
2
Denominação para o cigarro de maconha.

44
Sativa” que participam da “2ª edição da Marcha da Maconha”. Na construção feita pelo
veículo a proposta é evidenciada também a partir de suas positivações sociais, o que pode
ser identificado no penúltimo parágrafo, quando o educador Gilberto Borges destaca: “Se a
droga fosse legalizada, acabaria a guerra de tráfico nas cidades, a Cannabis poderia ser
explorada comercialmente e haveria aumento na arrecadação de impostos”.

O texto da cobertura reforça o contexto de criminalização do consumo da planta no trecho


em que critica a complacência dos policiais militares presentes, por terem descumprindo a
orientação de prender os manifestantes que fossem pegos “fumando ou vendendo o
entorpecente”: “Quinze policiais militares, sendo sete do serviço reservado, acompanharam
a passeata, mas não impediram que a erva fosse consumida, embora o Capitão Kennedy
Guerra do 16º batalhão tenha assegurado que a orientação era prender quem fosse pegando
fumando ou vendendo o entorpecente”.

Ao se referir a Cannabis Sativa dessa maneira, o enquadramento adota o discurso


estabelecido que criminaliza o uso da maconha na sociedade. Este aspecto aparece
novamente no último parágrafo da reportagem, quando se qualifica como “provocadora” a
atitude de um dos manifestantes que acendeu um cigarro de maconha na frente de um dos
policiais: “Para provocar a polícia, um jovem, com máscara no rosto, acendeu um cigarro
em frente a um PM. Mesmo assim não foi detido.” Com essa construção, a cobertura opta
por caracterizar o movimento não pelo debate que propõe à sociedade, mas pela presença
de transgressores da lei.

A cobertura publicada pelo Jornal do Comércio teve apenas duas fontes ouvidas: o capitão
da polícia militar Kennedy Guerra, que representa a participação policial no evento e é
fonte da orientação difundida entre a corporação de prender os ativistas que fizessem uso da
planta durante a marcha; e o educador Gilberto Borges, qualificado também como
organizador do evento, que fala sobre os benefícios sociais que a legalização traria. Apesar
da presença de fala oficial e especializada, a cobertura não confere diálogo sobre a política
de drogas do país por não contemplar manifestações contrárias à proposta de
descriminalização.

45
Um ator citado no texto que não aparece como fonte é o jovem que cobria o rosto com uma
máscara e acendeu um baseado na frente do policial militar. A presença de uma
personagem, não identificada, bem como o ato transgressor que praticou, acaba dando ao
movimento um aspecto clandestino, que acarreta numa desqualificação do evento, bem
como sobre a sua organização. O título da reportagem afina-se com esta construção ao
destacar os jovens dentre os manifestantes presentes na manifestação: “Jovens marcha no
Recife pela liberação da maconha”.

No texto da cobertura do Jornal do Comércio não foram encontrados elementos discursivos


que contemplem a confrontação do contexto atual de criminalização da planta proposta pelo
movimento antiproibicionistas, tendo sido registrada apenas uma ligeira menção ao uso
comercial da planta na fala do educador Gilberto Borges.

A cobertura do jornal Folha de Pernambuco para esta mesma edição da Marcha de 2009 foi
publicada na página 6 da edição do dia 4 de maio, na editoria Grande Recife, com o título
“Coro para legalizar maconha”. A reportagem contou também com chamada de capa que é
acompanhada de foto e legenda.

Seguindo a ordem de leitura, a proposta de descriminalização feita pelos ativistas aparece já


no título da notícia, o qual também constrói um sentido de ampla participação popular a
partir do termo “coro”. A causa também aparece na foto da chamada de capa, em que se vê
um grupo de manifestantes carregando uma faixa com a logomarca do evento Marcha da
Maconha e a frase “Legalize Já”. No texto da reportagem é destacado ainda o pioneirismo
da cidade pernambucana no debate. A partir dessa construção, a cobertura da Folha de
Pernambuco caracteriza o grupo como um movimento social a partir de um repertório já
conhecido que é o da realização de atos públicos nas ruas.

A proposta de descriminalização da maconha aparece também no primeiro parágrafo do


texto na fala do educador Gilberto Borges, que destaca a diversidade de usos da planta e a
arrecadação de impostos, como benefícios advindos da regulação do consumo de maconha

46
na sociedade: “A autorização do consumo pode explorar centena de coisas, como a
elaboração de remédios e a arrecadação de impostos para investimento em saúde e
segurança”. A partir deste enquadramento, o jornal Folha de Pernambuco evidencia
também os benefícios sociais apontados pelo movimento como resultantes da regularização
do consumo de maconha no país.

Já no penúltimo parágrafo da cobertura, o texto faz considerações sobre o movimento


antiproibicionista pernambucano, reproduzindo três frases de efeito entoadas pelos
manifestantes durante a caminhada. No texto, estas frases são assim classificadas: a partir
de algum teor político (“um, dois, três, quatro, cinco, mil, eu quero que a maconha legalize
no Brasil”) ou de uma “certa desvinculação com o objetivo da manifestação” (“Ei polícia,
maconha é uma delícia” e “Um beque gigante na boca do estudante”). Ao atribuir estas
classificações, o jornal Folha de Pernambuco julga o movimento pela sua falta de unidade
quanto às estratégias a serem utilizadas para alcançar os seus objetivos, separando-os entre
uma linha de ação política desejável e outra linha juvenil inconsequente.

Dentre os elementos que reforçam o contexto de criminalização da maconha, a cobertura da


Folha de Pernambuco registra, tanto no subtítulo quanto no terceiro parágrafo, a proibição
da realização do evento em outras capitais do país: “Manifestações foram proibidas em
Salvador, João Pessoa e São Paulo”. Com esta construção, a notícia associa ao movimento
aspectos de ilegalidade. Ainda no primeiro parágrafo a Marcha será definida como uma
manifestação polêmica.

Assim como na cobertura feita pelo Jornal do Comércio para esta mesma edição da
Marcha, a notícia publicada na Folha de Pernambuco registra, no segundo parágrafo, a
presença de manifestantes que consumiram maconha durante a caminhada, apesar de
orientação contrária por parte da organização do movimento: “Ele (Gilberto Borges)
chegou a solicitar (...) para que os manifestantes não consumissem a droga, de forma a não
serem vítimas de sanções legais. Não foi atendido. Diferentemente do que aconteceu na
edição do ano passado, muitas pessoas foram vistas fumando”.

47
Esta construção foi identificada também nos trechos em que a reportagem trata do
acompanhamento policial ocorrido no ato (“Policiais do 16º batalhão acompanharam o ato,
sem incidentes”.), bem como na menção à decisão judicial que permitiu a sua realização
(“A marcha só pode ser realizada no Recife graças à decisão do juiz da 2ª Vara Criminal
dos feitos Relativos à Entorpecentes, Alípio Carvalho Filho, que indeferiu a solicitação do
promotor José Correia de Araújo para suspensão do evento”). Com este tipo de construção,
observa-se que tanto a participação policial, quanto os procedimentos judiciais envolvidos
na realização do evento, deixam para segundo plano a discussão das propostas defendidas
pelo movimento.

Foi considerado como elemento que confronta o atual contexto de criminalização da planta
apenas a fala do educador Gilberto Borges, presente no primeiro parágrafo, que menciona o
uso medicinal da planta (“A autorização do consumo pode explorar centena de coisas,
como a elaboração de remédios”);

Quanto às fontes utilizadas no texto, a construção do jornal Folha de Pernambuco


contempla declarações que positivam o movimento. No terceiro parágrafo aparece a fala do
vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Thales de Castro, que também
ligado ao movimento, defende a importância do debate sobre políticas de drogas na
sociedade: “Sou a favor porque não é só um debate de um grupo. Tratamos de saúde e de
tráfico de drogas. A sociedade é preconceituosa e hipócrita. A marcha vem quebrar alguns
paradigmas e é assim no mundo todo”. Esta fala, que aparece qualificada pela
representação de uma tradicional instituição do movimento estudantil, confere credibilidade
à causa do movimento, citando inclusive a sua abrangência enquanto temática social.

Foram identificados também nesta cobertura casos em que as fontes ligadas ao movimento
são desqualificadas. No primeiro parágrafo, o educador e organizador da Marcha, Gilberto
Borges, aborda os benefícios da legalização, para logo em seguida, aparecer desacreditado
no exercício de liderança do grupo: “Ele (Gilberto Borges) chegou a solicitar (...) para que
os manifestantes não consumissem a droga, de forma a não serem vítimas de sanções
legais. Não foi atendido.”.

48
Ao mesmo tempo, a construção feita pelo Jornal Folha de Pernambuco enquadra o
movimento também a partir da apresentação de um sujeito que não é identificado e que em
sua fala aborda de maneira profética, logo sem credibilidade, a barreira moral que permeia
a questão das drogas no país: “Só vou tirar a máscara no último capítulo desta novela.
Pernambuco está dando um exemplo de liberdade de expressão, mas a maior barreira, que é
a moral, é difícil de ser quebrada”. A partir dessa construção, a reportagem constrói uma
imagem reducionista dos ativistas, destacando-os a partir de uma prática política pouco
pragmática.

Dessa maneira, o enquadramento adotado pelo veículo pode ser considerado ambíguo, já
que, ao mesmo tempo em que oferece acesso às propostas feitas pelo movimento
antiproibicionista, irá construí-lo no texto como uma organização sem unidade e a partir de
elementos que reforçam o contexto de criminalização presente na legislação brasileira.

5.3 A TERCEIRA MARCHA DE RECIFE

A marcha da Maconha realizada em Recife no dia 2 de maio de 2010 reuniu cerca de 800
pessoas que se manifestaram em defesa de reformas na política de drogas adotada pelo
Brasil, segundo dados da polícia militar. Durante o evento, um dos manifestantes foi detido
pela polícia por consumir um cigarro de maconha.

A cobertura feita pelo jornal Folha de Pernambuco para esta edição do evento foi capa da
editoria Grande Recife publicada no dia 3 de maio de 2010, com o título “Manifestante é
detido na Marcha da Maconha”. A matéria vem acompanhada de foto em que os
manifestantes aparecem sob uma névoa de fumaça, onde não se vê o rosto dos
manifestantes.

O título da matéria, ao preterir a ocorrência policial, revela que o veículo constrói um


enquadramento diverso do adotado para a cobertura da edição anterior da Marcha na
cidade. A partir dessa opção o jornal deixa de considerar o movimento social a partir da

49
proposta que justifica a realização do ato, para apresentá-los sob uma construção comum às
páginas policiais. Esta perspectiva é corroborada pelo subtítulo: “Ele, que fumava um
cigarro da erva foi levado para a delegacia, onde foi registrado um TCO”.

Ainda no primeiro parágrafo do texto, este enquadramento será reforçado pelo


aprofundamento da detenção ocorrida durante o evento: “Durante o percurso, um homem,
de 25 anos, que participava da caminhada foi detido pela polícia quando consumida um
cigarro de maconha. Ele foi encaminhado para o Departamento de Repressão ao
Narcotráfico, onde foi registrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Após
prestar depoimento, o homem foi liberado.” Este tipo de construção noticiosa adotada pela
Folha de Pernambuco corrobora os estudos teóricos de Mc Leod e Detember que apontam
para uma tendência do jornalismo de favorecer o discurso estabelecido na construção do
enquadramento.

Por outro lado, no terceiro parágrafo, a proposta de descriminalização feita pelo movimento
aparece no texto da cobertura também na forma de crítica aos danos sociais provocados
pelo proibicionismo, a partir da declaração do psicólogo Francisco do Nascimento Couto:
“O modelo de segurança pública aplicado no Brasil não consegue acabar com o tráfico. O
movimento defende justamente a legalização para que o comércio ilegal de drogas, que
gera a violência, acabe”.

No último parágrafo do texto, a proposta de descriminalização também é apresentada na


fala do ativista Renato Cinco, que fala sobre a importância do debate sobre a política de
drogas na sociedade, destacando a cidade de Recife como um espaço de debate da proposta:
“A Marcha da Maconha é uma manifestação mundial, mas vejo que no Recife temos um
maior espaço para o debate. O que realmente queremos é a oportunidade de discutir com as
autoridades os nossos pensamentos”. Ao adotar dar visibilidade para esta outra perspectiva,
o veículo da voz à proposta defendida pelo movimento.

Quanto à utilização das fontes, a cobertura da Folha de Pernambuco para esta edição da
marcha se limitou a ouvir dois dos organizadores do evento, ambos qualificados como

50
especialistas sobre o tema. Desse modo, sem ter sido contestada, a defesa pela
descriminalização da planta não chega a configurar o debate público a que se propõe.
Dentre os atores envolvidos, a cobertura destacou também a detenção do manifestante
durante o evento, que confere ao movimento aspectos de marginalidade.

Dessa maneira, o enquadramento construído pelo veículo revela uma postura ambígua do
veículo quanto a cobertura do evento aqui analisada, ora evidenciando os aspectos que
criminalizam o movimento, como no título e no subtítulo, ora revelando-se acessível ao
enquadramento de debate da legislação de drogas do país proposto pelo movimento social
antiproibicionista, que nesta análise estão sendo considerados como elementos que
confrontam o atual contexto de criminalização da planta.

A cobertura do Jornal do Comércio para esta edição da marcha foi publicada na edição do
dia 3 de maio na editoria Cidades, sob o título “Usuário é preso na marcha” e seguinte
subtítulo “Apesar da orientação dos organizadores e da proibição do secretário de Defesa
Social, Wilson Damázio, artesão foi flagrado com cinco gramas da erva”. Ao evidenciar a
prisão de um dos participantes, ambas construções apresentam o movimento a partir de uma
perspectiva criminalizada, reforçando o contexto atual da legislação brasileira que assim
considera os usuários de drogas.

Esta perspectiva será característica no enquadramento adotado pelo Jornal do Comércio


para esta edição da Marcha na cidade, mudança evidenciada pelo o lead comum às matérias
policiais: “Ao contrário de anos anteriores, na Marcha da Maconha do Recife, realizada
ontem à tarde, o consumo da erva não foi tolerado pela polícia. Apesar da orientação dos
organizadores e da proibição anunciada pelo novo secretário de Defesa Social, Wilson
Damázio, manifestantes não se limitaram a defender a descriminalização do uso da
Cannabis Sativa. Resultado: o artesão Edielson Gomes Mendes, 24 anos, acabou detido,
segundo a polícia, por portar um dólar de maconha (cerca de 5 gramas) e revelar que já
tinha consumido outros dois”.A notícia irá ainda desenvolver, ora desenvolvendo a ação
policial realizada no evento (A prisão de Edielson ocorreu ainda na concentração, na Rua
do Apolo. Uma das nove viaturas que acompanharam a manifestação conduziu o rapaz ao

51
Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc), no bairro da Boa Vista, onde ele
assinou um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e foi liberado) e também
relatando as conseqüências do ato infrator praticado pelo artesão (“Edielson responderá a
processo em liberdade. A polícia o enquadrou no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, que
prevê penas alternativas para portador de drogas”).

A apresentação da proposta de descriminalização feita pelo veículo aparece a partir de uma


construção negativa, em que a causa aparece associada à prisão do artesão: “Apesar da
orientação dos organizadores e da proibição anunciada pelo novo secretário de Defesa
Social, Wilson Damázio, manifestantes não se limitaram a defender a descriminalização do
uso da Cannabis sativa.” Somente no último parágrafo do texto é que a proposta será
retomada como “importante” na fala do historiador Gilberto Borges: “Para o historiador
Gilberto Borges, também integrante da comissão organizadora da marcha, é preciso se
discutir a descriminalização da maconha à luz da ciência”. A partir desta construção, o
enquadramento adotado pelo Jornal do Comércio privilegia o incidente ocorrido na
manifestação, deixando de contemplar o discurso que justifica a realização do evento que é
a defesa da legalização.

Os manifestantes que aparecem como atores da notícia são assim definidos: “Na maioria
jovens, os participantes gritaram palavras de ordem como „Um, dois, quatro cinco mil,
queremos que a maconha legalize no Brasil‟. Na multidão, havia pelo menos cinco
crianças”. Com essa construção, o enquadramento adotado desqualifica o discurso do
movimento antiproibicionista tratando-os como jovens inconseqüentes. No segundo
parágrafo, ao destacar a pequena quantidade de participantes na marcha, o enquadramento
do Jornal do Comércio. Esta desqualificação aparece ainda como posição política do
veículo ao associar um vereador à uma perspectiva criminalizada do evento.

Foram identificadas duas falas associadas a organização do movimento no texto. Uma


delas, presente no terceiro parágrafo, registra uma tímida defesa dentro de uma construção
que criminaliza o movimento: “Edielson responderá a processo em liberdade. A polícia o
enquadrou no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, que prevê penas alternativas para portador
de drogas. „Nossa marcha é em favor do direito de uso da maconha, não uma apologia ao
crime‟, explicou Marcílio Cavalcanti, um dos organizadores”. A outra, que aparece

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somente no último parágrafo, qualifica o discurso do movimento, além de mencionar
perspectivas que confrontam o contexto atual de criminalização da planta: “Para o
historiador Gilberto Borges, também integrante da comissão organizadora da marcha, é
preciso se discutir a descriminalização da maconha à luz da ciência. „A erva tem fins
terapêuticos e em vários países seu uso é permitido‟”.

5.4 MARCHA PROIBIDA DE SÃO PAULO

A Marcha da Maconha que estava prevista para acontecer na cidade de São Paulo, no
Parque Ibirapuera, no dia 3 de Maio de 2009, foi proibida pela justiça do Estado sob
alegação de se constituir num ato de apologia ao crime. Ao invés da Marcha os
manifestantes realizaram um protesto por conta da proibição.

A cobertura da Folha de São Paulo para esta edição do evento foi publicada na editoria
Cotidiano do dia 4 de maio, com o título “Silêncio marca proibição da Marcha da
Maconha”. A reportagem vem acompanhada de duas fotos, uma referente ao protesto dos
ativistas paulistas, em que um jovem aparece com uma camisa amarrada na boca e um
cartaz que exibe “Marcha da Censurado”; a outra referente à realização da Marcha da
Maconha em Recife, em que aparece a logomarca da organização Marcha da Maconha.

O enquadramento construído pelo jornal evidencia o reduzido número de participantes


presentes no protesto realizado em respostas à proibição da Marcha na cidade, deixando
assim de debater a o manifesto apresentado pelo movimento. Como aparece na abertura do
segundo parágrafo: “Meia dúzia de ativistas, que defendem a legalização da droga, tiveram
que se contentar com um protesto silencioso, depois que a justiça proibiu em São Paulo, a
Marcha da Maconha”. A mesma perspectiva aparece nas entrelinhas do primeiro parágrafo
quando o texto destaca: “Em frente à marquise do Parque Ibirapuera (...) poucas faixas
anunciavam „Democracia Já‟. Outra fixada no gramado, dizia „Marcha da Censurado‟”.

Esta construção é reforçada ainda no título da notícia: “Silêncio marca proibição da Marcha
da Maconha”, em que a palavra silêncio é utilizada com duplo sentido, podendo tanto se

53
referir ao silenciamento do evento, quanto a pouca relevância obtida pelo protesto. Dessa
maneira o enquadramento construído pela Folha de São Paulo se limita a discutir questões
referentes à proibição do evento, evidenciando os manifestantes como sujeitos que
protestam em defesa da liberdade de expressão, sem discutir suas alegações ante a
proibição.

Dentre os elementos textuais que reforçam o contexto de criminalização da maconha foi


identificada a descrição da participação policial no evento, feita no terceiro parágrafo: “A
Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar monitoraram os manifestantes. Não houve
incidentes”. Este enquadramento situa o movimento antiproibicionista sob a ótica da
legislação brasileira que considera como criminosos os usuários de maconha, conferindo
assim a organização um aspecto de marginalidade. O texto menciona ainda que esta é a
segunda vez que a Marcha é proibida na cidade.

Quanto aos atores envolvidos, nesta cobertura, a reportagem ouviu apenas o cientista social
Marco Magri que aparece como fonte oficial, em meio ao relato das decisões judiciais que
impediram à realização do evento, para anunciar o adiamento da tentativa de realizar a
Marcha na cidade: “O cientista social Marco Magri, 23, membro do Coletivo Marcha da
Maconha, disse que a manifestação foi transferida para o dia 31.”. O sociólogo não é
ouvido quanto ao protesto que está sendo realizado ante a proibição do evento, de modo
que a sua fala aparece desvinculada das motivações do movimento antiproibicionista
realizar este ato, o que reforça a construção do veículo em representar o movimento a partir
da proibição da marcha, sem, no entanto, discutir as suas causas. Não foram identificadas
nesta cobertura estratégias utilizadas pelo movimento para confrontar o contexto atual de
criminalização da maconha.

5.5 A MARCHA DA MORDAÇA

A Marcha da Maconha prevista para acontecer em São Paulo no dia 23 de maio foi mais
uma vez proibida pela justiça, apesar de ter conquistado habeas corpus para a sua
realização, sob pena de prisão e processo por apologia ao crime para aqueles que

54
participassem. Ainda assim, cerca de 300 ativistas, segundo dados da polícia militar,
realizaram um protesto no Parque Ibirapuera em defesa da liberdade de expressão que
denominaram Marcha da Mordaça.

A cobertura do jornal Folha de São Paulo para esta tentativa de realização da Marcha
contou com uma reportagem acompanhada de foto na editoria Cotidiano, com o título
“Vetada pela justiça, Marcha da Maconha vira Marcha da Mordaça”, e uma
fotorreportagem na editoria foco, ambas publicadas na edição do dia 24 de Maio de 2010.

Diferentemente da cobertura feita na tentativa anterior de realizar a Marcha na capital, o


enquadramento construído pela Folha de São Paulo na cobertura do ato de protesto
realizado em 2010 contemplou as causas da proibição, bem como a proposta de
descriminalização feita pelo movimento antiproibicionista. Já no título da notícia “Vetada
pela justiça, Marcha da Maconha vira Marcha da Mordaça”, ao fazer referência à
reapropriação do nome da Marcha feita pelo movimento, a cobertura contempla os
questionamentos feitos pelos ativistas.

A proposta de descriminalização é relacionada como causa da proibição no sétimo


parágrafo da notícia, a partir da fala da ex-subprefeita da Lapa Soninha Francine, que acusa
a justiça tentar caluniar as intenções do movimento: “A Justiça está imputando ao
movimento uma intenção equivocada. O que as pessoas estão dizendo aqui é que querem
comprar uma substância de comerciantes legalizados e não mais terem de se relacionar com
o crime. Estão nos caluniando”.

O enquadramento construído pela Folha para esta edição da Marcha descreve a decisão
judicial que proibiu a realização da Marcha: “Segundo a decisão, os manifestantes não
poderiam se pronunciar em favor da legalização da erva, sob pena de serem presos e
processados por apologia ao crime”. Em seguida, o texto descreve também a ação policial
destacando que ela foi focada na apreensão dos materiais informativos apresentados pelos
ativistas: “A polícia militar exigiu ainda que todos os cartazes que continham desenhos da
folha da Cannabis e palavras de ordem como “Legalize Já” fossem escondidos”.

55
Dessa maneira a construção feita pelo veículo evidencia a guerra de opinião presenciada
pela reportagem durante o protesto. Outras faixas recolhidas serão mencionadas neste
sentido, como “Não fumo, não compro, não vendo e não condeno”. A partir dessa
construção destacamos a presença, ainda que implícita, de questionamentos do veículo
quanto a proibição da manifestação. Esta postura do veículo, foi identificada de maneira
ainda mais direta no terceiro parágrafo, dessa vez enfatizando uma ação que contraria à
bandeira de liberdade de expressão levantada pelos manifestantes, inclusive citando o artigo
constitucional que garante esse direito: “Camisetas do Coletivo Marcha da Maconha, que
têm um trecho do artigo 5º („ Todos põem reuni-se pacificamente, sem armas, em locais
abertos ao público, independente de autorização), também tiveram de ser retiradas”.

Este questionamento implícito quanto à proibição da realização da Marcha foi ainda


identificado no quinto parágrafo da notícia na fala do tenente Marinho da Polícia Militar:
“Tudo que seja entendido como apologia, será entendido como crime”. O texto da
reportagem considera que o tenente “não soube definir que critérios utilizaria para tal
definição”. Com essa construção, a Folha de São Paulo sugere, sem confrontar diretamente,
que a proibição do evento seja uma tentativa de conter o debate sobre a política de drogas
no país.

No subtítulo “confronto” aparecem descritas duas ocorrências policiais registradas durante


o evento, também relacionadas à guerra de opinião: “um estudante que se recusou a jogar
fora um adesivo com um pequeno desenho de uma folha de Cannabis sativa (nome
científico da maconha) foi ameaçado: „É melhor você correr por que eu vou te pegar lá
fora‟, disse um soldado que não respondeu à reportagem qual o crime que o rapaz teria
cometido”. Com este enquadramento, a notícia da Folha evidencia práticas de abuso
policial, construção que coloca os ativistas como vítimas silenciadas. A notícia reporta,
inclusive, a utilização de um spray contra a reportagem do veículo no momento em que
acompanhava a prisão de um rapaz que carregava um cartaz inscrito: “não compre, plante”.

56
A proposta aparece também na reprodução das faixas que foram recolhidas pelos policiais
durante o ato de protesto: “Legalize já”, “Não fumo, não compro não vendo, não condeno”.
A partir desta abordagem, a Folha de São Paulo, sem se manifestar quanto à realização do
evento, contempla o movimento antiproibicionista como um representante de um segmento
da sociedade.

Por outro lado, ao enquadrar o movimento a partir das ocorrências policiais do evento e
concentrar-se no questionamento da proibição, a notícia da Folha deixa de contemplar as
estratégias utilizadas pelo grupo para confrontar o atual contexto de criminalização da
planta. Ao relegar o discurso dos ativistas à reprodução das mensagens exibidas nos
cartazes, bem como a ausência de fontes que venha a contrapor a proposta de
descriminalização, descaracterizam a existência de debate sobre a proposta de revisão da
política de drogas do país.

5.6 A MARCHA DO MINISTRO

A primeira edição da Marcha da Maconha na cidade do Rio de Janeiro foi realizada no dia
9 de maio de 2009. A manifestação contou com cerca de mil ativistas que foram às ruas
pedir a descriminalização da Cannabis Sativa. O grande destaque do evento foi a presença
do então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. A polícia local acompanhou a
caminhada.

Não foi encontrada nenhuma cobertura referente à realização da Marcha da Maconha no


Rio de Janeiro na edição de 10 de maio de 2009 do jornal O Globo. Apesar de ter
anunciado à realização do evento na edição anterior, o veículo se omitiu quanto ao
acontecimento da marcha, repercutindo-a apenas nas edições seguintes dos dias 12, 13 e 14
de maio a partir dos comentários feitos pelos leitores sobre a participação do ministro
Carlos Minc no evento. Com este silenciamento é possível inferir que o enquadramento
construído pelo jornal não atribui relevância à proposta de descriminalização feita pelo
movimento antiproibicionista.

57
5.7 A MARCHA DAS MÁSCARAS

A segunda edição da Marcha da Maconha ocorrida no Rio de Janeiro, em maio de 2010,


reuniu cerca de duas mil pessoas. Esta edição, mais uma vez, contou com a participação do
então ministro do Meio Ambiente Carlos Minc. Um dos manifestantes foi preso, ao ser
flagrado pichando um poste com palavras de ordem sobre a legalização da maconha.

Diferentemente da omissão ocorrida no ano de 2009, a cobertura do jornal O Globo desta


edição da Marcha contou com uma reportagem sob o título “Marcha da Maconha reúne 2
mil em Ipanema”. Com este título o enquadramento construído pelo veículo destaca o
número de participantes. A quantidade de manifestantes foi um dado presente também no
lead da matéria: “A manifestação começou por volta das 15hs, no Jardim de Alah, reunindo
300 pessoas, mas logo o número de participantes aumentou. Pouco antes das 16hs, quando
a caminhada em direção ao Arpoador, pela Avenida Vieira Souto, foi iniciada já havia mais
de mil manifestantes”. No penúltimo parágrafo, a cobertura, reforçando esta construção, irá
destacar ainda a adesão de mais participantes no evento: “A passeata ganhou ainda mais
participantes enquanto passava pelo posto 9. Os organizadores convocaram as pessoas que
estavam na praia e muitas resolveram aderir”. Com a apresentação recorrente desses dados,
o enquadramento adotado por O Globo dá ênfase a adesão obtida pela Marcha da Maconha,
apresentando o movimento também pela perspectiva do apoio popular.

Ainda no lead, a proposta de descriminalização defendida pelo grupo aparece pela primeira
vez no texto associada à figura do pichador que foi preso durante o ato: “Um dos
participantes da passeata foi preso pela polícia ao ser flagrado pichando um poste com
palavras de ordem sobre a legalização da droga.” Dessa maneira, a apresentação da
descriminalização nos remete diretamente ao terceiro elemento de análise deste trabalho,
que trata dos elementos que reforçam o contexto de criminalização da planta. Ao enfocar a
contravenção de um ativista, a cobertura deixa de apresentar no lead o motivo (o porquê) de
reunião deste grupo social.

Ao mesmo tempo, a construção feita pelo O Globo revela uma postura ambígua do veículo

58
ao apresentar a proposta de descriminalização a partir de suas positivações. Como na fala
do então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que questiona justamente a
estigmatização dos defensores da legalização: “A sociedade é muito conservadora(...) Mas
a consciência está mudando. Oito ministros apóiam o movimento de legalização.Só que
muita gente tem medo de receber um carimbo, de ficar estigmatizado”. O então ministro
ainda retoma a proposta, em mais uma declaração no fim do parágrafo: “Não estou aqui
estimulando o tráfico, mas sou a favor de uma outra política para tratar do assunto”, que
caracteriza o enquadramento de O Globo pelo reconhecimento do movimento social, ao dar
espaço a sua busca de diálogo com a sociedade.

Outra estratégia de confronto ao atual contexto de criminalização dos usuários foi


identificada na descrição da utilização de máscaras pelos manifestantes, em que a
representação de personalidades que também defendem a descriminalização reforça a
credibilidade do grupo: “Durante o caminho foram distribuídas cerca de 600 máscaras
estampadas com os rostos de pessoas famosas que apóiam o movimento pela liberação da
maconha, como os cantores Marcelo D2 e Tico Santa Cruz”. O veículo chega a fazer uma
menção a presença da máscara do jogador de futebol Adriano, relação que foge do tom
adotado no início da matéria.

A mesma perspectiva de confronto ao discurso estabelecido sobre a planta foi encontrada


no último parágrafo do texto, quando a notícia destaca como um dos “pontos altos” do
evento a realização de um minuto de silêncio em memória das vítimas da violência urbana:
“Um dos pontos altos da marcha foi a chegada ao Arpoador, quando centenas de pessoas
acenderam velas em homenagem às vítimas da violência urbana, às pessoas que morreram
em conseqüência da proibição da maconha”. Neste trecho a cobertura de O Globo enquadra
também a partir da ótica do movimento, ao considerar os danos sociais provocados pelo
proibicionismo.

A proposta de descriminalização foi identificada também na fala do estudante Pedro


Alvarez, a qual confere à cobertura elementos que confrontam o atual contexto de
criminalização da planta: “Estou aqui porque acredito que a legalização é o melhor

59
caminho para lidar com esse tema. Fuma quem quer. O Álcool é uma droga ainda mais
destrutiva e é vendido em tudo quanto é lugar”.

Dentre as fontes presentes no texto, todas elas se manifestam à favor da proposta defendida
pelo movimento antiproibicionista. A fala do ministro Carlos Minc, que aparece já no
segundo parágrafo da matéria, confere credibilidade a proposta do movimento, além de
representar uma fala oficial. A fala do estudante Pedro Alvarez, apesar de não ser
especializada, revela a acessibilidade da notícia quanto as propostas defendidas pelo
movimento. Somente a fala de um dos organizadores da passeata, o sociólogo Renato
Cinco, que aborda a orientação do movimento para que os manifestantes não fumem,
encontra-se situada dentro do contexto de criminalização da planta, ainda que ressalte a
postura de diálogo do movimento: “Acho importante ninguém fumar. A gente está aqui
para pedir uma mudança da lei e não para afrontar à sociedade”.

Dessa maneira, o enquadramento adotado pelo jornal O Globo revela uma postura ambígua
do veículo: ao mesmo tempo que apresenta a proposta de descriminalização associada a
uma ocorrência policial, também constrói a imagem do movimento a partir da fala de
especialistas que apresentam elementos de confronto a criminalização da planta, ressalta a
adesão popular obtida pelo movimento, bem como caracteriza o grupo social a partir da sua
postura de diálogo com a sociedade.

5.8 ANÁLISE GERAL DOS ENQUADRAMENTOS

Apesar de não se tratar de uma análise comparativa, as sete matérias selecionadas por este
estudo de caso constataram a presença de particularidades entre as construções dos veículos
de acordo com a cidade onde o evento foi realizado. Nos casos dos jornais nordestinos, o
enquadramento adotado pelo Jornal do Comércio e Folha de Pernambuco evidencia um
aspecto de consolidação da edição da Marcha realizada em Recife, de modo que os veículos
possuem um repertório similar para lidar com o evento social. Já em Salvador os
enquadramentos produzidos pelos veículos são bastante distintos, se considerarmos, por
exemplo, o título da notícia publicada por cada um deles. O A Tarde evidencia a pequena

60
participação popular e o Correio a proposta de descriminalização feita pelo movimento.
Ambas as produções, apesar de distintas, revelam uma abordagem em comum ao tratar o
movimento social antiproibicionista com certo distanciamento no âmbito da representação
social, em que o evento social Marcha da Maconha é apresentado pela sua baixa
popularidade, como identificado na cobertura de A Tarde, ou a partir de apropriações
estereotipadas dos ativistas, como identificado na cobertura do Correio.

As particularidades dos enquadramentos adotados pela Folha de São Paulo e O Globo


levam em consideração também o ano em que foram produzidos. No caso de São Paulo,
onde o evento social ocorreu na forma de protesto à proibição do evento, consideramos que
houve mudanças significativas na abordagem entre a cobertura de acordo no ano de 2009 e
2010. Diferentemente da construção feita em 2009, em que a proibição do evento aparece
desvinculada das propostas do movimento, a cobertura do protesto produzida na cobertura
de 2010 contempla os questionamentos levantados pelo protesto dos ativistas,
relacionando-os a proibição do evento. Este questionamento aparecerá ainda de maneira
implícita no relato da guerra de opinião presenciada pelo repórter durante o evento. Já na
cobertura publicada por O Globo, o silenciamento adotado para a Marcha realizada em
2009 se reverteu numa construção que considera o movimento a partir de uma ampla
participação popular na edição do evento realizada em 2010. De modo que a popularidade
aparece como um critério relevante na construção deste veículo, sendo, inclusive, detalhada
no texto da notícia.

A freqüência de casos em que a construção feita pelos veículos reforça o discurso


estabelecido de criminalização do consumo da planta nos permite afirmar que os veículos
de mídia impressa aqui analisados, de uma maneira geral, apresentam os usuários como
contraventores. Exemplos dessa construção foram identificados, inclusive, nos títulos das
coberturas, como no caso da notícia publicada pela Folha de Pernambuco (“Manifestante é
detido na Marcha da Maconha” ) e no Jornal de Pernambuco ( “Usuário é preso na
marcha”) para a edição da Marcha da Maconha realizada em Recife no ano de 2010. A
partir dessa construção os veículos privilegiam, na construção da notícia, o registro de
ocorrências policiais às propostas apresentadas pelo movimento.

61
As abordagens que enquadram o movimento a partir do contexto atual de criminalização
aparecem de também de maneira explícita em algumas das coberturas analisadas, casos em
que a notícia registra, por exemplo, os procedimentos policiais realizados durante a edição
do evento, de modo a considerar os manifestantes como potenciais criminosos. Ainda a
partir da criminalização foi identificada na cobertura de O Globo uma abordagem que a
proposta de descriminalização aparece no lead associada à figura do usuário como
contraventor. Estas perspectivas aparecem de maneira evidenciada nas coberturas
produzidas pelo Jornal do Comércio, Folha de Pernambuco e Jornal A Tarde.

Estes elementos que reforçam a criminalização dos usuários foram também identificados
nas coberturas em construções textuais sutis, como na notícia publicada por A Tarde para a
Marcha realizada em Salvador no ano de 2009, no trecho em que destaca a orientação
difundida pelo movimento para “não fumar para não queimar o movimento”. Ainda que
apareça como orientação que confere organização ao movimento, a construção ainda trata o
consumo da planta de forma negativa. Outra construção que caracteriza a presença desta
perspectiva nas coberturas foi identificada na cobertura do Jornal do Comércio para a
edição da Marcha no ano de 2009 em Recife, em que o veículo critica a complacência dos
policiais com os manifestantes que estavam fumando durante o evento: “Quinze policiais
militares, sendo sete do serviço reservado, acompanharam a passeata, mas não impediram
que a erva fosse consumida, embora o Capitão Kennedy Guerra do 16º batalhão tenha
assegurado que a orientação era prender quem fosse pegando fumando ou vendendo o
entorpecente”.

Em sua construção, os enquadramentos produzidos pela mídia impressa analisados neste


estudo contemplam a proposta de descriminalização feita pelo movimento, muitas vezes
conferindo fala às suas lideranças. Mas, ao não registrar, em nenhuma das coberturas, uma
fala que conteste esta proposta, consideramos que o discurso do movimento nas coberturas
não chega a se realizar no âmbito da discussão de idéias. A partir desta construção os
veículos deixam de promover um debate público sobre a política de drogas no país,
desconsiderando o desenvolvimento das argumentações expostas pelos ativistas e

62
impedindo o fluxo que permitiria que elas fossem confrontadas e revertidas em soluções
práticas para a sociedade.

Apesar da ausência de debates, as coberturas revelaram a presença de perspectivas que


afirmam a importância da discussão social sobre a regulação do uso da maconha. Esta
abordagem aparece na forma de expectativas quanto aos benefícios sociais advindos da
regulamentação do uso da maconha no país, como no caso da fala do educador Gilberto
Borges que aparece na cobertura da Folha de Pernambuco para a Marcha realizada no ano
de 2009. Contudo, ao mesmo tempo em que a fala conferida aos organizadores do evento
legitima a importância do debate sobre a lei de drogas na sociedade brasileira, ela também
cria um distanciamento com relação aos aspectos sociais que envolvem a proposta de
descriminalização.

Quanto a presença do enquadramento preterido pela Marcha, consideramos como


característica comum aos enquadramentos aqui analisados a presença tímida dos elementos
discursivos que vem sendo utilizados pelo movimento antiproibicionista para confrontar o
atual contexto de criminalização da Cannabis Sativa, de modo que as coberturas não
chegam a contemplar a existência de uma cultura canábica, como aponta a Teoria do
Desvio desenvolvida por Becker (1999). Apesar de apontar alguns desses elementos de
confronto, seja através de fontes que criticam o proibicionismo, apresentação da
diversidade de usos e do uso cultural da planta, as coberturas não fazem deles o ponto de
partida para a representação do movimento.

63
6. CONCLUSÃO

A partir da aplicação da Teoria do Enquadramento como instrumento de investigação dos


aspectos sócio-culturais presentes nas coberturas midiáticas, este estudo buscou promover
uma reflexão sobre o papel que o jornalismo desempenha no levantamento de questões
sociais. Ao levar em consideração as representações da realidade presentes nas notícias
produzidas pelos meios de comunicação, este estudo de caso se preocupou em identificar e
qualificar elementos que caracterizem a existência de debate público sobre a reforma da
legislação de drogas na mídia impressa brasileira.

Para ampliar a compreensão sobre o panorama atual deste debate, esta pesquisa incluiu na
sua composição um breve e histórico e apresentação das propostas levantadas pelos
movimentos sociais antiproibicionistas, diretamente ligados a defesa de políticas
alternativas sobre o uso de drogas. O evento social realizado anualmente por este grupo em
diversas capitais do mundo e reunido no Brasil sob a denominação Marcha da Maconha foi
então escolhido como fenômeno midiático a ser estudado a partir das construções feitas
pelos veículos que circulam em quatro capitais do país.

A partir dessa análise concluímos que a cobertura da mídia impressa brasileira enquadra
sob uma perspectiva reducionista os movimentos sociais antiproibicionistas organizados no
país. O enquadramento predominante, dentre os analisados por este trabalho, apresenta os
manifestantes a partir de uma perspectiva marginal, em que o consumo da planta,
majoritariamente, aparece criminalizado, associado a práticas de contravenção. A
abordagem feita pela mídia impressa brasileira não enquadra a organização Marcha da
Maconha a partir das perspectivas comumente adotadas para tratar de outros movimentos
sociais, em que fica evidenciado um notável distanciamento com relação às propostas
sociais apresentadas pelo grupo.

O estudo de caso aqui descrito concluiu também que a cobertura midiática analisada se
limita ouvir as falas de especialistas ligados a organização do movimento que apontam para
perspectivas positivas advindas da regularização do consumo de maconha no país. A partir

64
dessa abordagem, os veículos não contemplam a manifestação de opiniões contrárias a
proposta, deixando de promover o debate público, no plano das fontes, sobre propostas
alternativas de tratar o consumo de drogas.

Por não promover o debate público sobre o tema, as coberturas se omitem quanto às
questões de interesse público sobre a reforma das políticas de drogas, que já vem sendo
desenvolvidas nos fóruns especializados sobre o assunto, como os trabalhos conduzidos
para a reformulação e regulamentação da Lei 11.343, que rege a política de drogas do país.
Esta, mesmo tendo relação direta com a proposta dos movimentos antiproibicionistas, não
foi mencionada em nenhuma das coberturas analisadas. A cobertura midiática desconsidera,
assim, os posicionamentos políticos do grupo como organização civil, em especial no que
se refere à participação no debate sobre as reformas na legislação de drogas do país. Esta
desqualificação do discurso se torna ainda mais notável se considerarmos a perspectiva de
criminalização adotada nas coberturas quando enquadra o movimento a partir da sua
marginalização, quando define os manifestantes como contraventores ou viciados e quando
destaca a baixa popularidade obtida pela proposta.

A cobertura midiática aqui analisada não reconhece a existência de uma cultura do usuário
de maconha, como apontam os estudos de Howard Becker (1999) na aplicação da teoria do
desvio. O evento social marcha da maconha é interpretado pela mídia impressa brasileira de
modo distanciado de uma ótica particular do usuário de maconha, limitando-se assim ao
repertório comum estabelecido, em que o consumo da maconha aparece associado à prática
do crime ou a dependência química. Ainda que tenham sido identificadas menções a
diversidade de usos da planta, bem como ao preconceito social que gerou a proibição,
nenhum dos veículos teve o discurso dos ativistas como referência para enquadrar a
realização da Marcha.

Esperamos, com este trabalho, ter fornecido também uma contribuição acadêmica aos
estudos comunicativos no que tange a aplicação da teoria do enquadramento como
ferramenta de compreensão do processo de produção das coberturas midiáticas. A partir das
conclusões obtidas por este estudo de caso, revela-se a produtividade desta teoria como

65
ferramenta de análise. Centrada na identificação e análise das abordagens construídas pelos
veículos, a análise do enquadramento se revelou uma ferramenta indispensável na
ampliação da compreensão das produções midiáticas no que tange o levantamento de
questões referentes ao interesse público. Ao confrontar a construção feita pelas diversas
coberturas com discussões teóricas atuais sobre as reformas das políticas de drogas,
esperamos ter estabelecido um elo que permita ao jornalismo dialogar diretamente com as
mudanças sociais de seu próprio tempo.

66
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ANEXO

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