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9 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigées da literatura e da politica Luis Antonio Baptista* sci onde colocar a minha revolta (Morador da Fave- la Jacarezinho, Rio de Janeiro, 2000), HA vinte anos as mulheres argentinas ocupam a praga recusando a mis- sao a elas delegada. Sao maes ¢ avés usando a cidade, tentando escapar da armadilha de serem autoras exclusivas daquilo que as aflige. Perderam fi- thos € netos, assassinados pela ditadura militar, As quintas-feiras re nem-se desautorizando 0 significado particular das suas reivindicagoes. Se- manalmente negam a caréncia do desatino € do torpor paralisante do sofrimen- to, afirmando a intensidade da meméria. Circulam na Praga de Maio enun- ciando a possibilidade de sentido do que seja ser sujeito; um sentido singu- lar estranho a soberania do cu ea supremacia do nés. Buenos Aires ¢ 0 cena- rio deste gesto repetitive, dizendo ao mundo as agruras ¢ o vigor da tessitura do sujeito realizada com impertinéncia. Nesta construcio impertinente as “Loucas da Praga de Maio” entrelagam suas histérias as histérias de outros, misturam dores préprias as dores alhcias, compondo, recompondo, decompon- do, compondo infinitamente mosaicos de narragdes incompletas. Essas mulhe- res, repetindo os passos, escapam do seqilestro da tirania, traduzindo-as em de- satinadas presas a um passado morto exigindo cadaveres familiares. Em circu- lo repetem, repetem, repetem, escapando da captura sinistra, denotando seus gestos na monotonia do sempre igual. Ali nada é mérbido ou redundante. Lengos presos na cabega comunicam aos passantes 0 texto: “Aparicién con vida de los desaparecidos”; caminhando em circulo dizem: “Con vida los levaron con vida los queremos”. Exibindo os lengos ¢ proferindo as palavras de ordem, exigem vida a meméria, enfrentando fantasmas do ontem ¢ do ago- ra, Reivindicam vitalidade ¢ incompletude aos projetos que ficaram na metade do caminho, propondo uma outra histéria. O que as une ¢ as define nao se resu- * Professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense 194 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigdes da literatura. me ao luto dos seus mortos, mas a intensidade decorrente do entrelagamento com outras dores € narrativas. Na rua apresentam um coletivo tecido na forga da criagdo, atento aos perigos do esquecimento promovido pela banalizagaio do ato de existir. Buenos Aires é usada como aliada no combate contra a solid’io dos infortunados ¢ 20 isolamento de vidas movidas por ressentimento. No es- paco publico o mondlogo das almas sofridas encerradas em si é abafado pelos passos repetidos dessas mulheres, emitindo rumores heterogéneos, misturan- do-se A cidade. Ali nada é banal ou s6. Em Buenos Aires, construgdes de sujeitos tecidos por entrelagamentos sio produzidas de modo tragico, porém desprovidas de caréncia ou inéreia; um tré- gico peculiar que ultrapassa as barreiras do sujeito soberano apartado das for- cas do mundo. As mulheres argentinas, renunciando a misao do conformismo a elas delegado pelo torpor do sofrimento, fazem da praga o lugar’ atravessado por desejos e revoltas promotores de criagiio. O trégico contido nesta modali- dade de ser sujeito recusa 0 anestesiante e apaziguador reconhecimento entre iguais, ou a tristeza indutora de fronteiras compactas entre o intimo ¢ 0 mundo do lado de fora; no entanto reivindica o vigor ¢ a tensdo da meméria de um nés composto, decomposto, composto, sem exaustiio. As “Loucas da Praga de Maio” exigem a vida dos desaparecidos traduzindo suas dores em ato politico aberto a iniimeras parcerias. Todas as quintas-feiras enchem a praca de desejo, varrendo dali caréncias, mondlogos, infortiinios que as definem em vitimas de um destino inevitavel. O espago puiblico ocupado por desejo torna-se o lugar dos gestos e agdes cotidianas, particulares, mitidos, porém ausentes de limites ¢ fronteiras que 0 caracterizem como territério exclusive. Que outra cidade a literatura nos apresenta o sujeito tecido na transgres- so? Sera universal a feitura do sujeito colado a si mesmo, sem lugar ou cidade, exigindo consciéneia solitdria o significado da sua existéncia? Tragicamente Antigona, filha de Edipo e Jocasta, faz ecoar em Tebas sua revolta. A proibigdo do sepultamento do corpo de Polinices, seu irmio, incita-a enfrentar 0 soberano Creonte. A dor da heroina grega, personagem da pega es- crita por S6focles, representada pela primeira vez em 441 aC’, dialoga com a cidade, narrando a colisdo das forgas entre cidadao ¢ Estado, leis dos deuses vi- 1.Sobfe o termo “lugar” nos fundamentamos na seguinte anilise do gedgrafo Milton Santos: "O territério tanto quanto o lugar sto esquizofeénicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalizagio, que ncles ‘se instalam para impor sua nova ordem, ¢, de outro lado, neles se produz uma contra-ordem, porque hi uma produgao aeclerada de pobres, excluidos, marginalizados...] Assim, junto a busca de sobreviveneia, vemos produzir-se, na base da sociedadc, um pragmatismo mesclde com emogio, a partir dos lugares c das pessoas juntos, Esse é também um modo de insurreigao em relagio a globalizasio, com a descoberta de que, 8 despeito de sermos 0 que somos, podemos desejar outra coisa” (Santos, Milton. Por wma owira globall- aco ~ Do pensamento tinico i conseléncia universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 114). 2.Séfecles. A wrilogia tebana ~ Edipo Rei, Edipo em Colono, Antigona. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. — ‘Tradugdo do grego c aprescntagio: Mario da Gama Kury. 195 Luis Antonio Baptista siveis a todos ¢ leis arbitririas dos tiranos. Tragicamente reivindica lugar para sepultar o cadiver do irmao, impedindo que cdes e aves carniceiras 0 de- vorem, destruindo 0 corpo ¢ a sua meméria de guerreiro. O grito de protesto da heroina grega contra a violagao das leis dos deuses, inseparavel da vida da ci- dade, ultrapassa a saga do territério familiar. A filha de Edipo e Jocasta enfren- tando o Rei Creonte faz do seu drama um pocma combativo; combate que res salta o poder da tirania, interferindo destrutivamente no ato de desejar e nos lu- gares da meméria, abrigando os sentidos da vida ¢ da morte. Respondendo ao soberano sobre a desobediéncia as leis arbitririas feitas pelos homens, afirma: Mas Zeus nio foi o arauto delas para mim, nem essas leis sio as di tadas entre os homens pela justica, companheira de morada dos deuses infemnais; € ndo me pareceu que tuas determinagées tivessem forga para impor aos mortais até a obrigagio de transgredir normas divinas, nio escritas, inevitiveis; nao é de hoje, nio é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram, E ndo seria por temer homem algum, nem o mais ar rogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violi-las*. A obra de S6focles dramatizando a colisao entre poderes apresenta-nos a intensidade e afirmagao da insurgéncia como ato criativo ¢ politico. Recusan- do a inevitavel passividade delegada a sina de mulher, transgredindo os limites hierarquicos do seu corpo em Tebas, a heroina grega faz do desejo uma arma de combate. Na égora, denunciando a arbitrariedade da lei dos homens, Anti gona desloca do coraco 0 pouso intimo da dor particular entrelagando-a a do- res ¢ injustigas alheias. Sua luta trigica politiza o ato de existir, tornando-o in- separavel da polis Colher com os olhos a complexidade da vida, encontrar nos templos, nas estatuas dos deuses, nos desenhos das ruas direcionamentos das emogées ¢ das virtudes, fizeram dos olhos gregos na antigiiidade a parte do corpo indissocia- vel da polis. A visibilidade da cidade legava ao destino pessoal a ferramenta necessaria para desvendi-lo. Escravos ¢ cidadaos, liberdade e tirania, existiam ou inexistiam nos limites da dgora. Desconhecendo a cisdio entre experiéncia subjetiva mundana, a introspecgiio, o mergulho interior para 0 alcance do su- jcito inexistia. O confronto frente 4 diversidade no campo de batalha ou nas tuas gerando conflito ignorava, como solugio, a busca das verdades do cu des- colada da visibilidade do mundo. Para os cidadaos da época de Antigona, as operagdes sobre s daquilo que a cidade Ihes ofertava; talvez dissessem na dgora: “Existo porque tenho maos, pés, sentimentos, porque ca- minho, corro, vejo ¢ sinto. Fago tudo isso € sei que o fago. Mas nunca penso a minha existéncia através da consciéncia que tenho dela. A minha consciéne 3. Sofoctes. Op. eft, p. 214 196 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigdes da literatura, est sempre agarrada ao exterior; tenho a consciéncia de ver determinado obje- to, de ouvir determinado som, de sofrer determinada do O sersujeito para o grego na antigiiidade, agarrado ao exterior, projeta-se © objetiva-se naquilo que cle realiza. Sem “energeia”, ato, ndio conseguiria cap- tar-se a si proprio, O drama de Antigona exigindo 0 lugar para o corpo e para a meméria de Poliniees é insepardvel daquilo que os olhos refletem ¢ projetam. Tebas ¢ a existéncia da heroina de Séfocles, feita como uma obra a ser realiza- da, compartilhavam do mesmo mundo. O heroismo dela nao residia nas virtu- des da personalidade, mas na forca da “energeia” transgredindo os limites da predestinagio. Desejo e ato faziam-na tragica, sujeito, um modo de operar suas dores e fazer politica Que outras forgas a literatura nos fornece para a construgio do sujcito? Absurdo, espanto, horror, 0 sem-sentido seriam incompativeis ao processo que incita o homem a sair de si, fazendo da sua existéncia uma obra em realizagao inseparavel de dores ¢ vigores alheios? “Quando Gregor Samsa despertou, certa manha, de um sonho agitado, vit que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inscto”. O personagem da novela de Franz Kafka gradativamente itd transtomar a familia Sama, alterando a rotina do cotidiano. A metamorfose do jovem tcheco inter- feria no cspago doméstico hermeticamente protegido dos infortinios do lado de fora. Gregor percebia as mudangas no corpo reconhecendo que nao cram fruto de um sonho, mas a evidéncia de um fato real naquela casa onde nada po- deria surpreender a rotina do dia-a-dia. O lar situado na cidade de Praga no ini cio do século abrigava 0 quarto do jovem caixciro-viajante transformado em inseto, o lugar propicio para a tinica metamorfose possivel nos espagos desco- lados de mundo. Despertava deparando-se com as transformagoes no corpo ¢ nos movimentos, perdendo a habilidade para circular ¢ compartilhar com os outros 0 seu transtorno. Metamorfoseado em inscto encerrado no quarto, vi via a situagdo-limite de ser protagonista de uma dor que 56 Ihe dizia respeito, O ar monétono da familia Samsa era desafiado a enfrentar 0 acontecimento absurdo, segundo ela, de constatar algo humano converter-se em coisa abje- ta. O absurdo para eles consistia apenas em um transtorno doméstico passivel de uma eficiente solugao. Pai, mae ¢ a irma Grete dia apés dia familiariza- vam-se-com o infortinio do caixeiro-viajante; traduziam a coisa abjeta em ba- nal, diluindo a forga do drama do jovem tcheco que nao era s6 dele. Praga batia na porta pedindo para entrar, desejando talvez intensificar 0 sofrimento do ho- mem-inseto, desdobrando-0 em outros fatos, dores, falas sufocadas, desatan- ro} ndivihuo na cidade”, Jn: Veyne, Paul etal Individuo e poder. Lisboa: BdigBes 5. Katka, Franz. 4 metamorfose. Rio de. de Benno Sil ito: id, Biblioteca Universal Popular (PUB), 1965.~Tradugio 197 Luis Antonio Baptista do-o de si, mas os moradores do lar hermeticamente fechado, ocupados em re~ solver o ins6lito problema, nao ouviam. Uma barata abjeta crescia atras da por- ta do quarto, perdendo gradativamente a histéria ¢ a meméria da cidade entre- lagada a de todos daquele lar. Grete Samsa, banalizando a metamorfose do irmao, anestesiava o horror e © espanto entrando casa adentro e afirmando: “Embora aqui ninguém parega compreender, eu vejo tudo claramente. Nao me referirei ao nome de meu ir- mio, ao falar deste monstro aqui; o que quero é simplesmente dizer que pre- cisamos descobrir um meio de livrar-se dele. Fizemos tudo que é humana- mente possivel para cuidar dele, para enfrentar a situagio”®. O mal-estar de Grete nao ultrapassava os limites territoriais da propriedade da familia. Estrategicamente climinava com pragmatismo a fora disruptora do gesto do estranho, acreditando dissipar o espanto frente aos minisculos horrores do dia-a-dia. No quarto Gregor metamorfoseado em barata denunciava a fragili- dade da solidez das portas e janelas vedando o espaco privado das impurezas. do exterior. Para a familia Samsa os homens transformados em coisas abjetas do lado de fora do universo burgués nao Ihe diziam absolutamente nada. Pare- des c portas protegiam aquele pequeno universo, impedindo a entrada da tensa impertinéncia da meméria: ~ Precisamos livrar-nos dessa coisa! ~ exclamou Grete. ~ E a ini- ca saida, O senhor precisa tirar da cabega a idéia de que isso que ai esta & Gregor. JA acreditamos nisso demais — e af esta a causa da nossa in- felicidade. Como € que isso poderia ser Gregor? Se fosse realmente ele, jd teria hé muito percebido que nao pode viver no meio de criaturas humanas, e teria ido embora voluntariamente. J4 nio tenho mais irmao algum, mas podemos continuar a viver e honrar a sua meméria™”. Grete Sansa exigia do pai a pragmitica e analgésica meméria doméstica, Iembrando que a felicidade de todos dependia do esquecimento e da reificagio daquilo que espanta, impregnando 0 cotidiano de tensao. Gregor transformado em isso promovia a harmonia do universo burgués, aproximando scus familia- res a um passo da felicidade. Ser sujeito naquela casa era uma operagao realiza- da na privacidade dos cOmodos apartados das metamorfoses mundanas, enun- ciando os paradoxos € contradigdes da condi¢do humana. O trégico no lar dos personagens de Kafka definia-se em tormentos individuais protagonizados pela onipoténcia da consciéncia alimentada por esquecimentos. Esqueciam-se do passado, das interpelagdes do presente, agarrados a felicidade que s6 dizia respeito a cles. A cidade batia na porta pedindo para entrar, desejando talvez intensificar a meméria implodindo os espagos exclusivos geradores de meta- 6. Katka, Franz. Op. cit. p. U1 7. Katka, Franz. Op. cit, p. 113-114, Sugerimos o ensaio de Catone, Modesto. O parasica da familia (sobre A metamorfose de Kafka), Revista Psicologia USP, v.3,. 1/2, 1992, p. 136. 198 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigdes da literatura... morfoses exclusivas, mas ninguém ouvia. Gestos estranhos, horrores, espan- tos, aturdindo o universo burgués, abrindo possibilidades de se fazer da exis- téncia uma obra inacabada entrelagada a outras obras inacabadas, ficavam do lado de fora traduzindo metamorfoses em baratas. Desejo ¢ politica eram varri- dos do espago familiar como o destino de Gregor no final da novela de Kafk: — Morto? ~ Perguntou Frau Samsa, lancando a empregada um olhar inquiridor, embora tivesse podido, desde logo, verificar tal coisa por si mesma. — Parece que sim ~ respondeu a empregada, a empurrar Gregor para 0 Jado com a vassoura, como para confirmar 0 que dissera, Frau Samsa fez uum movimento, como se quisesse afastar a vassoura, mas nai chegou a completar o gesto. — Bem — comentou Herr Samsa — podemos agradecer a Deus por Para 0 filésofo tcheco Korel Kosik, a personagem emblematica do século XX seria Grete Samsa. A heroina moderna de Kafka retrataria a banalizagao da morte e 0 apogcu do individualismo pragmatico da contemporancidade, apre~ sentando a face da barbaric expressa na descrenga da possibilidade de redi- mensionarmos nossas indignagdes particulares, localizadas, em ato de re- volta que diz respeito a todos. A barbaric dos sofrimentos ¢ felicidades pri- vatizadas que denota ao outro, ao de fora das solitirias ilhas existenciais, 0 sentido de intruso ou estranho habitando um mesmo mundo comum. Segun- do Kosik, “a nossa época moderna € hostil ao trégico, trata de exclui-lo, © em seu lugar institui o grotesco™’. A tragédia possivel definiria-se em dor desvitalizada que faz murchar, alimentada por softimentos sem saida produ: zindo relagdes humanas grotescamente coisificadas ¢ solitarias; um tragico movido pela caréncia, desprovido de desejo ¢ da tensa impertinéncia da mem6- ria. No mundo pés-ideolégico, pos-ut6pico, ¢ do fim da historia do capitalismo contemporineo, sé restaria a indiferenga aos espagos ¢ lugares nos quais estes decretos seriam radicalmente interpelados. Zygmunt Bauman", aproximando-se das questdes suscitadas pelo filo- sofo tcheco, afirma que “as velhas 4goras foram ocupadas por empreiteiras € recicladas como parques tematicos enquanto poderosas forgas conspiram 8. Kafka, Franz. Op. cit, p. 119. 9. Kosik, Korel. Sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trigico no nosso tempo. Rio de Janeiro, 1998 Gnimeo.), — Tradugao de Leandro Konder, Sugerimos ensaio de Baptista, Luis Antnio. 'Sujcitos © subjeividade na corttemporaneidade: reflex0cs sobre o anestesiante espeticulo da diferenga. fi Candau, Vera Maria (ong). Ensinar e aprender: sujeitos, saheres e pesquisa. Rio de Janciro: DP&A, 2000. 10, Bauman, Z. Em busca da Politica. Rio de Janeiro: Jorge Zabar, 2000, p. 11 € 15. 199 Luis Antonio Baptista com apatia politica para recusar alvards de construgao para novos espagos. [...] A arte de reinventar os problemas pessoais sob a forma de questdes de or- dem publica tende a se definir de modo que torna excessivamente dificil agrupi-los ¢ condensé-los numa forga politica”. Kosik ¢ Bauman apre: tam-nos os efeitos mérbidos da apatia decorrentes dos decretos do capitalismo contemporinco, despotencializando os passos repetidos das “Loucas da Praga de Maio” ¢ a insurgéncia de Antigona atrelada ao desejo ¢ a cidade. Onde po- deriamos encontrar outros lugares nos quais os decretos mérbidos do capitalis- mo contempordineo fracassariam sendo radicalmente interpelados? Buenos Ai- res ¢ Tebas estariam isoladas no combate as forgas que fazem murchar a imper- tinéncia da memoria ¢ do desejo? n- Espanto. Essa foi a primeira reagio da maioria dos lojistas, vende- dores e freqiientadores do Shopping Rio Sul ao ver os sem-teto andando nos corredores, entrando nas lojas e comendo pio com mortadela na Praca da Alimentagao. Em seguida, alguns passavam a olhar de forma “atravessada’’, reprovando a atitude dos manifestantes. “E brineadeira, nem no shopping temos mais paz”, dizia um jovem entre amigos. Ou- tros se comoviam e apoiavam 0 movimento. [...] Nos principais shop- pings do Rio, o dia ontem foi de expectativa e preocupagao. A espera da visita dos manifestantes, a maioria dobrou o nimero de segurangas que trabalham diariamente nas lojas. A Policia Militar também mobili- zou um efetivo de cerca de 200 policiais para garantir a ordem. [...] A dona-de-casa Elizabeth da Silva Moreira, 36 anos, foi uma das traba- Ihadoras sem-teto a chegar ao Shopping Rio Sul. Ao ver os policiais cla saltou do énibus chorando por se sentir discriminada. Morando no assentamento Araguaia, em Campo Grande, com 0 filho Adilson, 4 ‘anos, ela nunca tinha ido a um shopping center (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2000). Dona Elizabeth entrou pela primeira vez no espago onde a cidade desapa- rece. Ali, dia ¢ noite, ventos, energia solar, cheiros discrepantes do exterior, geografias indicando o interno, lateralidades, o de fora, so substituidos pela estética do mercado, tragando uma espacialidade peculiar. Dona Elizabeth entrou pela primeira vez.no espago onde o Rio de Janeiro sumiu. O shopping center descoberto assemelhava-se a uma nave espacial caida do céu''; pode- ria estarem Londres, Recife, Los Angeles, Salvador, ignorando as singulari- dades do entorno. A moradora do assentamento Araguaia em Campo Gran- de visitava o estabelecimento comercial no qual o consumidor nao se perde, sente-se seguro, porém o Rio de Janeiro com suas narrativas TA metifors do shopping center como cépsula espacial & usada por Sarlo, Beatriz. Cenas da vider posomederna Intelectuais, arte e videocultura na Argentina, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 15. 200 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigbes da literatura. conseguia entrar. Na construgao caida do céu nada morre, ninguém sofre, nada parece sujo ou podre, ninguém se depara com 0 absurdo; 0 tempo pas- sa sem qualidades, fixando ao presente prometendo eternidade. Do lado de fora parece nao existir absolutamente coisa alguma. Nos caminhos deste paraiso urbano do tempo sem surpresas a felicidade é prometida na assepsia dos cheiros, nas pratelciras das lojas, ressaltando a estreita determinagao en- tre escolha ¢ liberdade. Dona Elizabeth entrou pela primeira vez no espaco onde se ¢ feliz esquecendo; livre, escolhendo; eterno, consumindo. Dentro da nave caida do céu promessas de felicidades privatizadas circulavam no coleti- vo dos consumidores dos mesmos cheiros, mesmos tempos, mesmos rastros. No shopping center disparidades urbanas sio neutralizadas, produzindo um mundo de iguais protegido por um forte esquema de seguranga. Dona Eli- zabeth € seus companhciros entraram pela primeira vez no espaco da liberdade movida por esquecimento, vigiada por um forte esquema policial. Apés ingres- so, a arquitetura onde nada é sujo ou morre conviveu com essa gente estranha trazendo um tempo sem pressa aturdindo a sacralizagao do mercado. Dona Elizabeth ¢ scus companheiros com suas roupas, cheiros, memérias, rugas, pareciam realizar um programa turistico naquele espago eaido do céu. O espanto dos freqiientadores os traduziram em consumidores fracassados inva- dindo 0 territério proibido. A seguranga dos turistas consumidores do mundo globalizado, fincada no lar desterritorializado do capital, era ameagada por aqucla gente anunciando o fracasso das promessas de felicidade asséptica fun- dada no mundo pacifico habitado por iguais. A cidade proibida de entrar com suas narrativas dispares atravessava porta adentro, ganhando visibilidade, apre- sentando a impertinéncia da memoria € a violéncia da exclusio. Os homens e mulheres do tempo lento’, apés ingressarem, foram convertidos nao em turis- tas, mas em vagabundos; metiforas da vida contempordnea indicando a face singular da exclusao social na globalizacao, onde “os turistas se movem por- que acham © mundo irresistivelmente atrativo, ¢ os vagabundos porque acham ‘© mundo insuportavelmente indspito"™*. © que se aclama hoje como globalizagio gira em fungao dos sonhos ¢ desejos dos turistas. Seu efeito secundario — colateral mas inevitavel €altransformagao de muitos outros em vagabundos. Vagabundos sio vi- 12. Sobre os homens do tempo lento ressaltamos a andlise do gedgrafo Milton Santos: “Na cidade, hoje, « naluratidade do objeto tecnico — uma mecinica repetitiva, um sistema de gestos surpresa —. essa historiei2aglo da metafisica, cava no onganismo sibano, arcas *luminosas’, constituldas ao sabor da rmodemidad, © que se justapde, superpoe e eontrapde ao resto da eidade onde vivem os pobres, nas 7onas lurbanas “opacas", Estes so os espagos do aproximativo © nia (como nas zonas luminosas) espagos de exatido, capagos inorginices, abertos talizadlos © racionalizador cespagos dat lentidio e nio da vertigem” (Santos, Milton. Téentca, espuco, tempo: globalisacao e meio técnico-cientifico informacional. 80 Paulo: Hucitec, 1994). 13, Bauman, Zignn O mat-estar da pés-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 117. 201 Luis Antonio Baptista ajantes aos quais se recusa 0 direito de serem turistas. Nao se permite hem que se fiquem parados, “nao ha lugar que Ihes garanta permanén- cia, um fim para a indesejével mobilidade”, nem que procurem um I gar melhor para ficar. [...] Tanto o turista como o vagabundo é um con- sumidor frustrado [...] so uns estraga-prazeres meramente por esta~ rem por perto pois nao lubrificam as engrenagens da sociedade de con- sumo, nio acrescentam nada a prosperidade da economia transformada em indistria de turismo. So intteis, num tnico sentido de “utilidade” em que se pode pensar numa sociedade de consumo ou de turistas. E por serem iniiteis sdo também indesejiveis. [...] O vagabundo é 0 pesadelo do turista, o “deménio interior” do turista que precisa ser exoreizado diariamente. A simples visio do vagabundo faz 0 turista tremer — nao pelo que 0 vagabundo é, mas pelo que o turista pode vir a ser", Dona Elizabeth e seus companhciros, recusando a opacidade e 0 protago- nismo dos seus atos, fizeram circular por algumas horas, no estabelecimento comercial em Botafogo, Tebas ¢ a praga de Buenos Aires. Tornaram visiveis pequenos gestos, miniisculas ages, causando espanto. Nos lugares mitidos, in- significantes das cidades, nos becos ¢ pragas, na literatura do ontem e do agora, uma “dimensao social do sujeito que, renunciando a clausura tranqiiilizante, mas também a sufocagao da particularidade individual, é atravessado pelas on- das de desejos, de revoltas, de desesperos coletivos’”'’, podera ser tecida com impertinéncia. Talvez seja uma modalidade de combate ao sélido império de Grete Samsa, defensor das felicidades construidas na solidao ¢ no esquecimen- to, e dos sinistros decretos do fim da historia ¢ das utopias dissipando a forga politica das subjetividades. Seguindo os passos do gedgrafo atento aos homens dos “tempos da lentidao”, encontramos nos opacos ¢ insignificantes “lugares” mitidos, sopros de ar para o arriscado enfrentamento daquilo que aniquila da condigao humana o seu sentido hist6rico de transgressio, revolta e criagio. Referéncias bibliograficas BAPTISTA, L.A. A cidade dos sdbios. Sio Paulo: Summus, 1999, BENJAMIN, W. Magia e técnica — Arte e politica. Sio Paulo: Brasiliense, 1987, —. Charles Baudelaire: um lirico no auge do capitalismo. Sio Paulo: Brasili- ense, 1989. BOLLE, W. Fisignomia da metrépole moderna, Sao Paulo: EDUSP, 1994. 14. Baumam, Zigmunt, Globalizucdo: as conseyiiénctas humanas. Rio de Jancieo: Zahar, p. 101-104. 15. Gagnebin, Jeanne Maric, Histiria © narracdo em W. Benjamin. Campinas: Perspectiva/FAPESP, 1994, p85. 202 Cidades, lugares, sujeitos: contribuigdes da literatura. FOUCAULT, M. O que é wm autor? Lisboa: Passagens, 1992. MARX, K. Manuscritos econdmico-filoséficos e outros textos escolhidos. Sto Paulo: Abril Cultural, 1978. SANTOS, M. A natureza do espaco: espago ¢ tempo/razdo e emogao. Sio Pau- lo: Hucitec, 1999. SENNETT, R. La coscienza dell'occhio — Projetto e vita sociale nelle citta. Milo: Feltrinelli, 1992. 203

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