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Cinema

Unplugged

O Dogma 95 como proposta de


produção cinematográfica
alternativa à indústria

Universidade Federal do Rio de Janeiro

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Curso de Graduação em Comunicação Social (Ciclo Básico)
Departamento de Fundamentos da Comunicação
Teoria da Comunicação II
Professora Liv Sovik
TRABALHO FINAL

Pedro Aguiar Lopes de Abreu


10204280-5
Pedro Carvalho da Rocha
10200744-9

Rio de Janeiro, janeiro de 2003

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DOGMA95: um fantasma ronda o cinema/a Europa

Dogma95 como uma proposta de produção cinematográfica fora do contexto industrial


capitalista

Premissa: Mais do que estética, a preocupação do Dogma é econômica.

ESTRUTURA DO TRABALHO:

 Introdução (1 página): resumo geral do trabalho, apresentar a proposta e a


abordagem escolhida

 Um Breve Histórico do Dogma95 (3 páginas): onde, quando, como, por quem e


para que surgiu o movimento Dogma95; texto do “Voto de Castidade”; filmes que
receberam o certificado D95 e filmes que não são do movimento mas se
correlacionam por algum motivo; quem influenciou o D95 e quem o D95 influencia

 Um Dogma contra o Cinema Industrial (4 páginas): explicar como funciona o


cinema em modo de produção industrial e como os pontos do “Voto de Castidade”
lidam com eles, comentando

 Um Cinema para o Século XXI (2 ou 3 páginas): analisar o Movimento Dogma95


à luz da conjuntura geopolítica e econômica mundial (globalização, revolução na
mídia etc.) e na História do Cinema, particularmente europeu

 Conclusão (1 página): expor a definição geral à qual chegamos sobre o Dogma,


justificando com as informações apresentadas previamente

ASPECTOS/FEATURES DO DOGMA:

- renúncia à captação de recursos (?) OU independência financeira


- renúncia à artificialidade técnica
- renúncia à autoria/autoralidade da obra

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Is 'dogme' a way of making low budget films?
No not at all. The Dogme95 Manifesto does not concern
itself with the economic aspects of filmmaking. A ’dogme’
film could be low-budget or it could have a 100 million
dollar budget as long as the filmmaker follows the Vow of
Chastity. Far fetched maybe, but hopefully a clear example.
Also FESTEN - The Celebration is not a low-budget film in
its native country. At a production budget of about usd 1,3
million it is just slightly below the average cost for feature
films in Denmark. In Denmark a low-budget film would
hover around usd 0,5-0,75 million. (Thomas Vinterberg,
director of FESTEN - The Celebration).

Retirado do site oficial do Dogma 95 – www.dgme95.dk

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1. INTRODUÇÃO

Em 1995, dois cineastas dinamarqueses, Thomas Vinterberg e Lars von Trier,


lançaram seus nomes na História do Cinema com uma proposta cinematográfica inovadora:
o Dogma 95. Posteriormente juntaram-se a eles dois conterrâneos: Søren Kragh-Jacobsen e
Kristian Levring, também cineastas. Manifesto de cunho técnico — apresenta uma série de
restrições quanto ao uso de técnicas e tecnologias nos filmes — e ético — com regras
quanto ao conteúdo dos filmes e seus diretores —, suas idéias são controversas e seus
filmes mais ainda. Influenciando uma série de diretores e recebendo influências de
movimentos cinematográficos importantes na História do Cinema, este documento —
chamado, narcisisticamente, de Voto de Castidade —mostra-se, por trás de uma máscara
ideológica, preocupado não tanto com termos estéticos, mas talvez mais com aspectos
econômicos.
Os filmes-Dogma dinamarqueses tiveram seus custos de produção fechados em
torno de 1 milhão de dólares, orçamento extremamente baixo em relação a filmes de longa-
metragem comerciais com lançamento internacional. Isso poderia até ser um indício de que
esta ideologia de “resgate” do cinema, na verdade, seria uma maneira inteligente de
justificar baixa qualidade técnica (não por falta de competência dos diretores, mas sim por
falta de recursos financeiros). Além, é claro, de gerar uma publicidade instantânea em cima
do nome dos fundadores e seus filmes, dogmáticos ou não.
No entanto, muito mais provável — e é a hipótese sustentada por este trabalho — é
que o baixo custo de produção perseguido no Voto de Castidade é um grito de
independência em relação ao modo industrial de se fazer cinema. O contexto geopolítico e
econômico mundial da globalização e as revoluções tecnológicas da mídia tiveram impacto
violento na cultura de massa, afetando diretamente o cinema. Assim, numa época em que a
indústria norte-americana tinha condições de ser mais hegemônica do que nunca, o
surgimento de manifestos como o Dogma 95 reacende o pavio da resistência.

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2. BREVE HISTÓRICO DO DOGMA 95

Thomas Vinterberg e Lars von Trier, co-fundadores de Dogma 95, são cineastas
dinamarqueses conhecidos por alguns filmes produzidos antes do manifesto. Ondas do
Destino (Breaking the Waves, 1996, de von Trier), inclusive, foi o filme que motivou a
elaboração da declaração — foi durante suas filmagens que o Voto de Castidade foi
redigido. Ambos têm um passado preenchido por trabalhos de direção em televisão e na
produção e direção de curtas, sendo as duas áreas laureadas de prêmios para os dois
diretores. Após a enunciação dos “mandamentos”, a ministra da cultura da Dinamarca
dispôs recursos econômicos, através do Instituto Dinamarquês de Cinema, para dar suporte
à produção dos filmes-Dogma.
As regras do Dogma 95 foram criadas no começo de 1995. Lars von Trier teve a
idéia bruta de um tipo de novo manifesto e chamou Thomas Vinterberg, perguntando se
queria começar um novo movimento com ele. Vinterberg aceitou e, pelo que relata, levaram
apenas 45 minutos para formular as regras. Elas foram apresentadas uma semana depois no
Odéon - Théatre de L’Europe, em Paris, em 20 de março de 1995, onde von Trier foi
chamado para celebrar o Centenário do nascimento do Cinema.
A historiografia que é possível tirar do Dogma 95 baseia-se fundamentalmente em
três documentos, redigidos pelos próprios diretores-fundadores. O “Voto de Castidade”, ou
o Dogma em si, contém as dez regras, ou “mandamentos”, que os realizadores devem
cumprir se desejam realizar um filme dentro do Dogma 95. O “Manifesto do Dogma 95” é
um texto em prosa, como um manifesto ideológico, que condena opções do passado e
expõe as propostas de mudança. Finalmente, há a “Confissão” de Søren Kragh-Jacobsen,
escrita após a realização de Mifune, sobre as transgressões que cometeu quanto às regras do
Voto de Castidade.
Os realizadores que cumprem todas as regras submetem seus filmes para a avaliação
aspiram ao certificado do mo
Segundo o documento, “a intenção do movimento é de conter certas tendências do
cinema atual.”
Esse “Manifesto” foi criado de forma a criticar os filmes produzidos em Hollywood
e similares, que acabam por se tornar receitas de bolo de histórias iguais, mas com efeitos

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especiais diferentes. Nesse sentido, o DOGMA 95 tenta rechaçar esta idéia com outra
receita de bolo, mas quanto a técnica, e não ao conteúdo, fazendo com que seus filmes
fiquem todos com uma técnica limitada a fim de libertar o conteúdo de seu aprisionamento
na forma.
No conteúdo dos filmes-dogma, o texto do documento demonstra certas influências
de algumas ideologias cinematográficas de grande importância na história. Este fato leva a
crer que não se trata de algo inovador, mas sim de resgate de algumas “verdades”
difundidas por grandes nomes na história do cinema mundial. A questão da não autoria dos
filmes é algo defendido na política dos autores da Nouvelle Vague, ainda nos anos 60, o
humanismo é típico do usado na escola italiana neo-realista, enquanto o legado técnico foi
herdado do cinema direto americano. Há, também, clara influência nas obras dogmáticas do
diretor americano John Cassavetes, com sua experiência de realização coletiva. Em vista, a
origem do pensamento dogmático é variada e rica, um potencial enorme que foi
aproveitado quando posto em prática.
O primeiro filme lançado com o certificado de obediência Voto de castidade foi
Dogma # 1 – Festa de família (Festen, 1998), de Vinterberg, e foi aclamado pela crítica,
recebendo prêmios e indicações em festivais cinematográficos. Dono de uma companhia no
subúrbio de Copenhague, a Zentropa Entertainment, von Trier lançou o filme Dogma # 2 –
Os idiotas (Idioterne, 1998), também agraciado com prêmios e indicações. Sendo os dois
filmes que primeiro puseram em prática a ideologia dogmática e que lançaram-na como
viável nos circuitos de filmes internacionais, tiveram seus custos de produção baixos (em
torno de 1 milhão de dólares) e uma linguagem audiovisual rude. Com cenas tão escuras
que não consegue-se distinguir o que está a ocorrer na cena, outras em que a câmera
balança tanto que acaba deixando o espectador enjoado e um áudio péssimo –
características nada atraentes para um filme –, mas com um enredo que é, no mínimo,
intrigante, os filmes são verdadeiros duelos entre a riqueza do conteúdo e a pobreza da
forma.
Este aspecto de pobreza da forma do filme acabou por gerar uma “quebra de
contrato” entre o manifesto e um de seus fundadores. Ao terminar de filmar Dogma # 3:
Mifune (Dinamarca), Søren Kragh-Jacobsen, sentindo-se culpado por ter transgredido uma

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das regras em seu filme (apesar deste ter sido aprovado como filme-dogma), escreveu uma
confissão de infração:
Como um dos membros fundadores do Dogma95 e
signatário do Voto de Castidade, me senti impelido a
confessar as seguintes transgressões do supracitado voto
durante a produção de Dogma # 3: Mifune. Note que o filme
foi aprovado como uma obra Dogma, pois só há uma genuína
quebra das regras, o resto pode ser considerado falhas
morais.
Eu confesso ter filmado uma cena com um pano preto
cobrindo uma janela. Isso não é só uma adição de
propriedades cinematográficas, mas também pode ser
considerado como uma forma de iluminação artificial.
Eu confesso ter movido móveis pela casa.
Eu confesso Ter levado comigo um número de álbuns
das minhas séries de desenho favoritas, quando criança,
Lindsey e Valentin.
Eu confesso Ter ajudado a perseguir o pássaro do
vizinho na nossa locação e incluído-o no filme.
Eu confesso Ter comprado uma foto de uma senhora
das redondezas e Ter pendurado-a numa posição destacada
em uma das cenas: não como parte de um cenário, mas mais
como uma vontade egoísta, espontânea e prazerosa.
Eu confesso Ter pego emprestado uma plataforma
hidráulica de um pintor que foi usada nas duas únicas
tomadas superiores do filme.
Eu solenemente declaro que na minha presença a
chamada do Dogma # 3: Mifune foi produzida de acordo com
o Voto de Castidade.
Eu também reafirmo que o filme foi aprovado pelo
DOGMA 95 como um filme-dogma, pois, em termos reais,
não mais de uma simples transgressão foi cometida. O resto
pode ser considerado como transgressões morais.
Copenhague, 20 de janeiro de 1999
Søren Kragh-Jacobsen

Esta confissão pode demonstrar como as regras técnicas podem ser avaliadas como
justificativas para falta de dinheiro e/ou recursos por parte dos diretores – quando teve o
dinheiro, a idéia e a oportunidade para fazê-lo, Kragh-Jacobsen não pensou duas vezes em
quebrar as regras por ele apoiadas.
Após estes três, outros 28 filmes-dogma foram lançados, até agora, seguindo as
regras do Voto de castidade: Dogma # 4: The King is Alive (Kristian Levring, Dinamarca),
Dogma # 5: Lovers (Jean-Marc Barr, França), Dogma # 6: Julien Donkey-Boy (Harmony

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Korine, EUA), Dogma # 7: Interview (Daniel H. Byun, Coréia do Sul), Dogma # 8:
Fuckland (José Luís Marques, Argentina), Dogma # 9: Babylon (Vladan Zdravkovic,
Suécia), Dogma # 10: Chetzemoka´s Curse (Rich Shmidt, Maya Berthoud, Morgan Shmidt-
Feng, Dave nold, Lawrence E. Pado, Marlon Shmmidt e Chris Tow, EUA), Dogma # 11:
Diapason (Antonio Domenici, Itália), Dogma # 12: Italiensk For Begyndere (Lone
Scherfig, Dinamarca), Dogma # 13: Amerikana (James Merendino, EUA), Dogma # 14:
Joy Ride (Martin Rengel, Suíça), Dogma # 15: Camera (Rich Martini, EUA), Dogma # 16:
Bad Actors (Shaun Monson, EUA), Dogma # 17: Reunion (Leif Tilden, EUA), Dogma #
18: Et Rigtigt Menneske (Åke Sandgren, Dinamarca), Dogma # 19: Når Nettene Blir Lange
(Mona J. Hoel, Noruega), Dogma # 20: Strass (Vincent Lanoo, Bélgica), Dogma # 21: En
Kærlighedshistorie (Ole Christian Madsen, Dinamarca), Dogma # 22: Era Outra Vez (Juan
Pinzás, Espanha), Dogma # 23: Resin (Vladimir Gyorski, EUA), Dogma # 24: Security,
Colorado (Andrew Gillis, EUA), Dogma # 25: Converging With Angels (Michael
Sorensen), Dogma # 26: The Sparkle Room (Alex McAulay, EUA), Dogma # 27: Come
Now (EUA), Dogma # 28: Elsker Dig for Evigt (Susanne Bier, Dinamarca), Dogma # 29:
The Bread Basket (Matthew Biancniello, EUA), Dogma # 30: Dias de Boda (Juan Pinzás,
Espanha) e Dogma # 31: El Desenlace (Juan Pinzás, Espanha).

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3. UM DOGMA CONTRA O CINEMA INDUSTRIAL

O modelo que se sustenta como predominante na produção mundial de cinema


ainda é o industrial norte-americano. Nele, fundamentalmente, o filme é um produto com
fins comerciais, realizado em escala e ritmo industriais, e visando ao lucro. O processo de
realização é submetido à figura do produtor (não raro, o “dono” do filme), que contrata um
diretor — uma espécie de chefe técnico que coordenará a equipe técnica. O produtor detém
o controle de todos os passos do processo, e neles interfere (aceitando ou negando
exigências do diretor, por exemplo) de acordo com o orçamento. Este é o limite de custo de
produção, calculado previamente em função da estimativa de retorno financeiro que o
produto final trará após lançado. Neste regime de produção, o filme é uma mercadoria.
Nascido e aperfeiçoado ainda nas primeiras décadas do século XX, graças a artistas
e técnicos pioneiros e investidores disponíveis, o modelo industrial de produção espalhou-
se de Hollywood para o resto do mundo, adequando as realidades locais a ele — e não o
contrário, como poderia ser natural. Em alguns raros casos, a adoção do modelo
hollywoodiano permitiu o nascimento de grandes indústrias de produção, como na Índia.
Mas, na grande maioria dos países, o cinema local não conseguiu desenvolver-se como
indústria bem-sucedida, nem com produção acelerada, e permaneceu ofuscado pela alta
penetração dos títulos norte-americanos.
Na Europa, este quadro seria menos grave, porém não totalmente diferente. É
verdade que as leis protecionistas ajudariam a incentivar produções locais e a limitar a
invasão de Hollywood, mas não inteiramente. Em determinados países, como a Alemanha,
a produção cinematográfica organizou-se em grandes estúdios, porém muito aquém — em
quantidade e proporções — de seus colegas na Califórnia. No Reino Unido, quando não
copiavam fielmente a cartilha dos estúdios dos EUA, eram estes próprios que se instalavam
lá para produzir, aproveitando a facilidade da língua.
A França, terra dos Lumière, também teve seus estúdios, mas suas maiores
contribuições à História do Cinema ficaram, certamente, por conta das vanguardas estéticas
e técnicas que de tempos em tempos lançava. E a Itália, que durante o regime fascista
chegou a ter produções em alta escala e um pólo produtor sem igual no continente — a
Cinecittà — seguiu o mesmo caminho. Foram as vanguardas do Neo-Realismo e da

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Nouvelle Vague que buscaram, na Europa em reconstrução após a Segunda Guerra, renovar
a linguagem cinematográfica e abrir franca contestação ao modelo industrial.
O próprio Manifesto do Dogma 95 reconhece os esforços que essas vanguardas
promoveram, mas classifica seus métodos como equivocados. Critica, por exemplo, a
política do “cinema de autor” que a Nouvelle Vague lançou, e que acabou sendo
incorporada pelo cinema de indústria ao transformar os diretores em marcas de grife (“um
filme do mestre Steven Spielberg”, como se anuncia na TV).
“O próprio cinema anti-burguês se tornou burguês, porque as
fundações, nas quais as teorias foram baseadas, eram uma
percepção burguesa de arte. A concepção do autor era burguês
romântica desde o início e, assim sendo... falsa!” (Manifesto do
Dogma 95, ver anexo II)

Para não incorrer no mesmo erro, o Dogma 95 se pretende neutralizador de uma


possível assimilação pelo sistema, na medida em que modifica o próprio processo de
realização, privilegiando o instantâneo e o casual, em detrimento do planejamento prévio.
“Não sou mais um artista. Eu prometo abrir mão de criar uma
“obra”, pois eu creio que o instante é mais importante que o
todo.” (Voto de Castidade, ver anexo I)

Começa, fundamentalmente, retirando do processo os principais elementos que


encarecem a produção e obrigam a captação de recursos. O primeiro ítem do Voto de
Castidade, “filmar em locações”, já descarta de vez um dos principais métodos do cinema
industrial, que é a utilização de estúdios. Descontando o aspecto do “realismo” que se
consegue quando se registra a imagem in loco, e não reconstruída em cenário, essa rejeição
ao estúdio é também uma busca por autonomia. Como todos os grandes estúdios com infra-
estrutura, galpões e cidades cenográficas estão nas mãos de pouquíssimas empresas — pois
são caros de se construir e manter, e requerem capital para investimento — abandonar o
estúdio é uma forma de se libertar da ditadura das companhias.
O terceiro ítem — “a câmera deve estar na mão” — despoja o fotógrafo e o
operador do uso do steady cam, equipamento caro e sofisticado para dar estabilidade ao
manejo da filmadora. O quarto e o quinto ítem fazem a mesmíssima imposição, ao retirar a
iluminação artificial, os filtros e as lentes do processo de realização. Refletores e lâmpadas
estão entre os maiores gastos técnicos na produção de um filme. Assim, estes dois ítens

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eliminam do orçamento vários acessórios custosos e forçam a busca por equipamentos
menores, mais ágeis e mais leves.
Ao proibir a transposição de local e época, no sétimo ítem, o Voto de Castidade
acaba com a reprodução cenográfica de outras realidades espaço-temporais que não sejam a
do realizador. É impossível, no Dogma, a reconstituição de época. Não por acaso, também,
é muito caro produzir figurinos e cenários historicamente fiéis (e pesquisados), motivo pelo
qual só grandes estúdios, geralmente, podem se dar ao luxo de produzir épicos.
O nono ítem, que obriga à utilização de película 35mm, refere-se ao formato final
para distribuição. Eles devem ser impressos em película 35, independentemente do formato
de captação das imagens. Os filmes de Lars von Trier, geralmente, são realizados com
vídeo digital — e só depois convertidos em película. O vídeo digital é um processo novo
que barateia imensamente os custos de produção e confere maior liberdade ao diretor e ao
elenco para errar, experimentar e refazer, pois, enquanto a película só pode ser “queimada”
uma vez, o vídeo digital pode ser “apagado” e reutilizado infinitas vezes.
Outros ítens do Voto de Castidade dizem mais respeito aos aspectos estéticos e
lingüísticos do filme. A proibição de trilha sonora incidental (toda música que aparecer
deve fazer parte do campo diagético, ou seja, estar sendo tocada em cena), ausência de
recursos dramáticos considerados “superficiais” (armas e assassinatos) e rejeição a filmes
de gênero (policial, faroeste, romance, musical etc.) limitam o conteúdo, mas associando-os
intrinsecamente à forma.
O décimo e último ítem, finalmente, proíbe o crédito ao diretor, rejeitando
definitivamente a política de autor. A obra cinematográfica, no Dogma, deve ser produto de
uma equipe, que inclui elenco e técnicos, e que por sua vez são produtos de seu tempo e seu
contexto geográfico e cultural.
Quando proíbe reconstituição de época, uso de trilha sonora incidental, efeitos de
iluminação e de óptica, o Dogma 95 deixa claro que não interessa a ele criar uma outra
realidade dentro da tela. “Para o Dogma 95, o filme não é uma ilusão!”
O cinema industrial habituou-nos a crer que tudo que vemos na tela é uma realidade
além, quase metafísica. A construção de uma imagem fictícia, usando figurinos, cenários e
efeitos de luz, é feita de modo a separá-la da imagem real. A imagem que o Dogma 95

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apresenta, pelo contrário, pretende pensar a ficção não como uma dimensão paralela, mas
como uma extensão da nossa própria realidade.

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4. UM CINEMA PARA O SÉCULO XXI

O fim da bipolaridade na geopolítica mundial, na década de 1990, criou um cenário


que parecia consolidar a hegemonia de uma única potência. Como berço da maior indústria
cultural do mundo, os Estados Unidos passaram a principais produtores de cultura de
massa, e ganharam à sua disposição o resto do planeta como mercado consumidor. No
entanto, não é verdadeiro afirmar que a cultura de massa norte-americana é hegemônica e
absoluta hoje em dia. As facilidades de comunicação e de acesso às mídias possibilitaram
uma maior distribuição da produção do audiovisual no mundo todo.
Hoje, é mais fácil assistirmos a um filme tailandês ou moçambicano, pois um dos
aspectos da globalização foi abrir canais de comunicação com todos os pontos do mundo
desvinculados da mediação do Estado (para fins mercadológicos, é certo, mas que também
podem ser usados para intercâmbio cultural). Desta forma, realizadores de lugares tão
distantes e distintos podem se integrar e trabalhar em conjunto.
Assim, não é surpresa que o Dogma 95 tenha despertado interesse e ânimo em
realizadores da Argentina, Itália, Coréia do Sul, Espanha e Suíça. Ou é particularmente
notável que um número muito significativo de filmes que receberam o certificado Dogma
95 venha justamente dos Estados Unidos, já que lá o acesso às condições de produção
(dogmáticas) é facilitado (equipamentos mais baratos, preexistência de cinema
independente etc.). Pode ser um sintoma de que até mesmo lá o cinema de indústria não se
mantém hegemônico.
Mais que isso, são todos quadros de saturação de linguagem e do modo de
produção, que com o ápice da indústria cultural, na última década, passaram a clamar por
uma renovação urgente.
Os mandamentos do Voto de Castidade, como vimos, tornam a produção dos filmes
mais barata, reduzindo vários elementos que interferem pesadamente na criação audiovisual
e no orçamento. Essa ambigüidade das intenções estéticas e econômicas das regras está
relacionada à tensão entre forma e conteúdo, presente em qualquer obra artística. A questão
é que o aspecto econômico é de importância fundamental quando se deseja fazer um
contraponto à massividade da indústria cinematográfica, principalmente em tempos de
globalização.

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“O surgimento deste manifesto é bastante simbólico do momento
em que a indústria cinematográfica se encontra. Os primeiros
filmes do Dogma95 foram lançados no ano passado e neste ano,
período no qual Hollywood pariu projetos multimilionários como
"Titanic", "Armageddon", "Godzilla" e "Velocidade Máxima 2".
Estas são produções cujos custos estouram a casa dos 100 milhões
de dólares e, nos últimos dois casos, fizeram fiasco na bilheteria.
Cartadas arriscadas como estas podem levar toda uma companhia
à bancarrota, e este números estão se tornando padròes para
produções que almejem o sucesso. Enquanto isso, os filmes do
Dogma 95 -- "Os Idiotas" e "Festa de Família" --, custaram cerca
de um milhão cada um...” (Bruno Furnari, ver link na Bibliografia)

Ao mesmo tempo que “concorre” com os blockbusters hollywoodianos, o Dogma


95 também tem-se demonstrado capaz de influenciar outros jovens realizadores do cinema
europeu, particularmente o escandinavo, mesmo que não estejam aderindo formalmente ao
Voto de Castidade. O sueco Lukas Modysson, por exemplo, é nitidamente influenciado pelo
Dogma 95 em seu “Amigas de Colégio”, seguindo sete dos dez ítens obrigatórios (menos o
2o, o 5o e o 10o).
Provavelmente, um dos aspectos que mais chamam a atenção do espectador de um
filme-Dogma é reconhecer-se como personagem, ou pelo menos sentir que a realidade
projetada na tela é a mesma que a sua. Em lugar de fantasia ou situações dramáticas
inverossímeis, o Dogma 95 tem a missão de captar a realidade, sem interferências ou
criações artificiais. Como afirma no Manifesto, o movimento “combate o filme ilusão ao
apresentar uma série de regras inquestionáveis conhecidas como o Voto de Castidade”.
Essa característica de promover situações verídicas para filmar, em lugar da
interpretação, pode relacionar o Dogma 95 à onda de reality shows, que nasce na cultura de
massa no fim do século XX. É interessante notar que esse tipo de programa foi criado
justamente na Escandinávia.
Qual seria, afinal, o papel do Dogma 95, suas propostas estéticas e econômicas, para
o modo de se fazer cinema? Para conhecer quais serão suas influências no século que está
começando, é necessário analisar o Movimento Dogma95 à luz da conjuntura geopolítica e
econômica mundial (globalização, revolução na mídia etc.) e na História do Cinema,
particularmente europeu, para compreender seu papel. O Dogma 95 tem importância tanto
como proposta de reforma estética, quanto como foco de resistência cultural.

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5. CONCLUSÃO

O Dogma 95, criado como um movimento para renovar o modo se fazer cinema,
apresenta regras que regulamentam a forma e o conteúdo dos filmes. Seu objetivo não é
reprimir os realizadores, nem desafiá-los a produzir sob condições adversas. Pelo contrário:
sua proposta é exatamente libertá-los da dificuldade que a produção industrial impõe
(problemas com orçamento, fidelidade ao planejamento e ao roteiro, conflitos de hierarquia
na equipe, produtor x diretor x elenco).
O surgimento do Dogma 95 está diretamente relacionado ao contexto pós-Guerra
Fria, quando o mundo passou a sofrer o processo de globalização e a indústria da cultura de
massa atingiu seu máximo de expansão e projetou toda a população mundial como mercado
consumidor de seus produtos culturais.
É também conseqüência da revolução nas comunicações e nos processos de
produção audiovisual que tornou os equipamentos mais acessíveis e integrou diferentes
núcleos de realizadores no mundo todo.
As regras do Dogma 95 interferem na forma, quando retiram do processo certos
aspectos próprios modo industrial de se fazer filmes, e no conteúdo, quando dizem o que
pode e o que não pode estar presente na trama. Ou, às vezes, as regras interferem na forma
e no conteúdo simultaneamente.
Fugindo das imposições estéticas, técnicas e mercadológicas do cinema industrial
— notavelmente, o de Hollywood —, o Dogma 95 firma-se como movimento inovador,
contestador e ideologicamente embasado, contrário à lógica capitalista de produção
audiovisual. Os mais de 30 títulos certificados que já foram produzidos, em diferentes
partes do mundo, em menos de uma década de existência, confirmam que o Dogma 95 é
um movimento em ascensão e com todas as condições favoráveis para influenciar o cinema
do século XXI.

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6. BIBLIOGRAFIA

Livros:
BERNARDET, Jean-Claude – “O Que É Cinema”, São Paulo, Brasiliense, 1980

CARRIÈRE, Jean-Claude – “A Linguagem Secreta do Cinema”, Rio de Janeiro, Nova


Fronteira, 1995

COSTA, Mariana Amado – “Dogma 95, Um Voto de Castidade no Cinema


Contemporâneo”, projeto experimental de conclusão de curso, ECO-UFRJ, 1999

RODRIGUES, Chris – “O Cinema e a Produção”, Rio de Janeiro, DP&A, 2002

Websites:
Site Oficial do Dogma 95 - http://www.tvropa.com/tvropa1.2/film/dogme95/index.htm

Internet Movie Database – http://imdb.com

http://www.furnari.net/dogma95 – ("website produzido por Bruno Furnari, com fins


educativos para a matéria 'Análise dos Sistemas Áudio-Visuais', PUC-SP, 1998")

Site Oficial do filme “Mifune” – http://www.sonypictures.com/classics/mifune/dogma95-


2.html

artigo da Revista Ocio Total – http://www.ociototal.com/recopila2/r_cine/dogma95.html

Film Clichées (Martin Weiss) – http://www.martweiss.com/film/dogma95.shtml

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ANEXO I: “O VOTO DE CASTIDADE”

“Eu prometo me submeter às seguintes regras criadas e reafirmadas pelo Dogma


95:

1. As gravações devem ser feitas em locações. Objetos de cena e


cenários não devem ser utilizados (se algum objeto for necessário
para a trama, deve ser escolhida uma locação onde este objeto
possa ser achado).
2. O som não deve nunca ser produzido em separado das imagens,
ou vice-versa (não deve ser usada música, a não ser que ela
ocorra no local onde a cena está sendo gravada).
3. A câmera deve ser carregada na mão. Qualquer movimento ou
imobilidade conseguida pelas mãos é permitido (o filme não deve
ocorrer onde a câmera se posiciona; é a câmera que deve se
posicionar onde o filme ocorre).
4. O filme deve ser colorido. Iluminação artificial não é aceitável
(em caso de haver muito pouca luz para aparecer imagens, a cena
deve ser cortada ou uma única lâmpada presa à câmera).
5. Efeitos especiais e filtros são proibidos.
6. O filme não deve conter ações superficiais (assassinatos, armas,
etc. não devem ocorrer).
7. É proibida a alienação temporal ou geográfica (isso é para
dizer que o filme acontece aqui e agora).
8. Não são aceitos filmes de gênero.
9. O formato do filme deve ser de Academia 35mm.
10. O diretor não deve ser creditado no filme.

Além disso, eu prometo como diretor abrir mão do meu gosto pessoal! Não sou
mais um artista. Eu prometo abrir mão de criar uma “obra”, pois eu creio que o instante é
mais importante que o todo. Meu objetivo supremo é forçar a verdade dos personagens a
das locações. Eu prometo cumprir tudo por todos os meios que houver e a despeito de
qualquer bom-gosto ou considerações estéticas.

Assim, eu faço meu VOTO DE CASTIDADE.

Copenhague, segunda-feira, 13 de Março de 1995.


Em nome do Dogma 95, Lars von Trier, Thomas Vinterberg”

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ANEXO II: O MANIFESTO DO DOGMA 95

DOGMA 95 é uma ação de recuperação!


Em 1960, já era o bastante! O cinema estava morto e requisitado para ser
ressuscitado. O objetivo era correto, mas os meios não! O nova onda se provou uma
marola que morreu na praia.
Slogans de individualismo e liberdade criaram obras por algum tempo, mas
nenhuma mudança. A onda estava sujeita a fraquezas, como os próprios diretores. A onda
nunca foi tão forte quanto os homens por trás dela. O próprio cinema anti-burguês se
tornou burguês, porque as fundações, nas quais as teorias foram baseadas, eram uma
percepção burguesa de arte. A concepção do autor era burguês romântica desde o início e,
assim sendo... falsa!
Para o DOGMA 95, o cinema não é individual!
Hoje está se aproximando uma tempestade tecnológica, cujo resultado será a
democratização definitiva do cinema. Pela primeira vez, qualquer um pode fazer filmes.
Mas, quanto mais acessível uma mídia se torna, mais importante é a vanguarda. Não é por
acaso que a frase “avant-garde” tem conotações militares. Disciplina é a resposta... nós
devemos vestir nossos filmes de uniformes porque o filme individual será a decadência por
definição!
DOGMA 95 impede o filme individual ao apresentar uma série de regras
conhecidas como VOTO DE CASTIDADE.
Em 1960, já era o bastante! O cinema havia sido maquiado ao máximo, eles
diziam; mesmo assim, desde então o uso de maquiagem explodiu. A missão “suprema” dos
cineastas decadentes é enganar a audiência. Será disso que estamos tão orgulhosos? Será
isso que os “100 anos” nos trouxe? Ilusões através das quais as emoções podem ser
veiculadas? Pela livre escolha individual do artista de uso de enganação?
Previsibilidade (dramaturgia) se tornou o santo graal que todos almejamos. Fazer
com que a vida pessoal dos personagens justifique o cenário é muito complicado, e não
muito artístico. Como nunca antes, a ação superficial e o filme superficial estão recebendo
todos os créditos. O resultado é castrador. Uma ilusão de melodrama e uma ilusão de
amor.

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Para o DOGMA 95 o filme não é uma ilusão! Hoje está se aproximando uma
tempestade tecnológica, cujo resultado será a elevação da cosmética a Deus. Usando
novas tecnologias qualquer um a qualquer hora pode retirar os últimos resquícios de
verdade no mortal abraço da sensação. As ilusões são tudo atrás do que o filme pode se
esconder.
DOGMA 95 combate o filme ilusão ao apresentar uma série de regras
inquestionáveis conhecidas como O VOTO DE CASTIDADE.”

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