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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

DIREITO COMERCIAL I

RESUMOS

INTRODUÇÃO

1 Evolução histórica

1) O Direito Comercial, enquanto tal, surgiu na Idade Média, no século XXII, nas cidades italianas. Esta
era uma “época de fraco poder político central e forte ressurgimento do comércio”, e as necessidades dos
comerciantes da época fizeram surgir um direito próprio, que continha regras em matéria de juros, títulos
de créditos, etc. Estas regras surgem através de (i) estatuto das corporações, (ii) costumes e usos que os
comerciantes iam respeitando e (iii) jurisprudência (tribunais consulares, integrados pelos comerciantes).

A destacar:
• Tendência do direito comercial para a auto-normação (ex: criação dos estatutos elaborados pelas
próprias corporações) e para a auto-jurisdição (foro próprio: tribunais consulares, mais tarde
comerciais).
• O direito comercial italiano medievo era um direito de cariz subjectivo – disciplinava os
comerciantes e os actos destes relativos ao seu comércio –, um direito de casta.

Em Portugal, porém, não se registou a autonomização do direito comercial – as normas jurídicas


especialmente dedicadas ao comércio foram pouco significativas. Isto ficou principalmente a dever-se à
existência, desde cedo, de um poder régio central bastante forte, pelo que a orientação legislativa marcou-
se por preocupações de ordem pública: por ex., a regulamentação das feiras.

2) Nos inícios do século XVII, começam a surgir laivos de objectivismo, isto é, o direito comercial
começa a preocupar-se com certos actos, independentemente de quem os pratica. Surgem as
“ordonnances du commerce” francesas, e, a propósito de uma questão processual (competência do
tribunal), recorrem à natureza de certos actos. Os tribunais de comércio teriam assim competência em
função da natureza de certos actos, o que representou um passo muito importante para a evolução do
direito comercial.

Em momentos anteriores já tinha havido uma evolução neste sentido, novamente a propósito da
competência dos tribunais consulares – muitos habitantes do burgo decidiram começar a praticar actos
semelhantes às dos membros da corporações, sem nelas estarem inscritos. Razões de igualdade de justiça
levaram a um alargamento da competência dos tribunais.

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Em Portugal, “o grande desenvolvimento do comércio externo provocado pelas descobertas marítimas e


ultramarinas não foi acompanhado por significativo movimento legislativo-comercial”.

3) No século XIX, dá-se uma alteração no sistema jurídico francês: surge o Código Comercial francês
(1807), que é encarado como um código objectivo (atende à natureza do acto). Este Código marca o início
da etapa contemporânea na evolução do direito comercial. Sendo pós-revolucionário, realizava os
valores da liberdade (não restrição do acesso à actividade comercial através da inscrição numa
corporação) e igualdade (não compatível com o velho subjectivismo da Idade Média, de direito de casta).
O objectivismo é mais facilmente conciliável com o princípio da igualdade: ficam sujeitos à lei todos os
que praticarem aqueles actos. Assim, o código qualificava como comerciantes aqueles que fizessem da
prática de actos de comércio a sua profissão.

“Os nossos códigos comerciais oitocentistas filiam-se também no referido sistema objectivo” – quer o de
1833 (Ferreira Borges), quer o de 1888 (Veiga Beirão).

Os códigos objectivistas do século XIX (Espanha, Itália, Portugal) não evitaram que a questão da
autonomia do direito comercial se colocasse. É possível associar estas flutuações (objectivismo /
subjectivismo) a tendências da vida económica dos povos: objectivismo – liberdade, dinamismo;
subjectivismo – predomínio de classes.

4) No final do século XIX, na Alemanha, há uma forte tendência para o subjectivismo: o que garante a
autonomia do direito comercial será a defesa de um subjectivismo, em torno do comerciante-empresário.

As correntes que têm impacto no início do século XX são as correntes empresarialistas, que ainda hoje
têm relevância: o que caracteriza o direito comercial e permite afirmar a autonomia é a ideia de que o
direito comercial está orientado para a prática de actos em massa, sendo que é a empresa que o permite.

5) No século XX, houve legislações que consagraram um pensamento unitarista: o direito civil e direito
comercial deveriam ser o mesmo. Isto porque houve vários mecanismos do direito comercial que
acabaram por se generalizar para o direito civil, pondo em causa a autonomia do direito comercial. Na
Suíça, surge o código das obrigações, que abrange matéria mercantil; em Itália, o Codice Civile abrange o
regime das empresas. Isto não significa que, materialmente, não haja diferenças, ainda que formalmente
tenhamos um código unitário.

Esta discussão, acerca da autonomia do direito comercial, mantém-se ainda hoje – sobretudo entre nós,
onde se justifica uma reforma legislativa.

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6) No último século, o direito comercial tem sofrido vários desenvolvimentos, entre os quais se destaca a
tendência para a sua internacionalização-uniformização. Cada vez mais o direito comercial se
internacionaliza, desde logo por força de muitos textos de direito internacional – ex: convenção
internacional sobre a compra e venda internacional de mercadorias. As convenções internacionais, que
regulam o comércio internacional, são importantíssimas: aumentam a celeridade das trocas.

“Diversas convenções internacionais de âmbito potencialmente universal têm unificado os sistemas


jurídico-mercantis nacionais em sectores específicos. (...) Nos últimos decénios, o movimento de
uniformização tem-se acentuado no campo das relações comerciais internacionais, sujeitas aos diversos
direitos nacionais. Por um lado, têm sido celebradas convenções internacionais estabelecendo um regime
uniforme para aquelas relações”. Aqui assumem grande relevo a UNCINTRAL e a UNIDROIT (duas
organizações internacionais que criam regras internacionais em direito comercial). “Por outro lado, tem-
se desenvolvido um direito uniforme de origem não-(inter)estadual. Um direito feito de usos e costumes
do comércio internacional, ... por vezes reduzidos a escrito e compilados (é o caso dos “Incoterms”, da
CCI).

A tendência para a auto-normação sente-se na internacionalização: por exemplo, no transporte


internacional de mercadorias têm relevo os usos e costumes, assim como na actividade petrolífera. Há
organizações internacionais de operadores nestas áreas que procuram uniformizar as relações entre
operadores de várias áreas – surgindo costumes. Também existe uma tendência para a auto-jurisdição:
cada vez mais assistimos ao emergir do recurso à arbitragem para resolver litígios entre operadores de
mercado do comércio internacional. É muito frequente chamar para árbitros pessoas que tenham tido
experiência profissional aquele ramo (direito marítimo). Há, assim, certos fios condutores que se mantêm.

No plano das fontes internacionais, temos ainda de contar com as directrizes e regulamentos da UE
(principalmente no direito das sociedades).

2. Direito comercial português

Atendendo ao nosso sistema jurídico, podemos definir o direito comercial como “o sistema jurídico-
normativo que disciplina de modo especial os actos de comércio e os comerciantes”. Assim, o nosso
direito comercial é um direito dos acto do comércio e dos comerciantes: recolheu aspectos positivos da
orientação subjectivista e objectivista. Podemos dizer, no entanto, que há uma orientação mais forte do
objectivismo.

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O art. 1.º diz que a lei comercial rege os actos do comércio, sejam ou não praticados por comerciantes –
temos um ponto de partida objectivista. “Todavia, a lei mercantil regula fenómenos que não são actos
comerciais nem seus efeitos directos – por exemplo, obrigações especiais dos comerciantes (firmas,
escrituração mercantil) e organização interna das sociedades. Por outro lado, a mesma lei, apesar de
apresentar como ponto de partida uma concepção objectiva, visa sobretudo os comerciantes”:
• Art. 2.º: considera actos de comércio “todos os contratos e obrigações dos comerciantes”.
• Art. 13.º e ss.: discrimina os comerciantes.
• Art. 18.º e ss.: identifica várias obrigações dos comerciantes. Hoje, muitas das exigências
previstas para comerciantes acabaram por se generalizar para não comerciantes.

Embora o nosso direito tenha uma componente fortemente objectivista, este objectivismo não é assim tão
objectivo quanto isso. Há fronteiras de incerteza – claro no regime da compra e venda mercantil, um
contrato central. Há quem diga que o comércio é a interposição das trocas: o art. 463.º do CC regula esta
figura, “compra de coisas móveis para revender”. Parece muito objectivo, mas se é para revender estamos
a olhar para a finalidade do acto: isto é tudo menos objectivo.

O critério a seguir será objecto de muita discussão, mas a marca-de-água parece ser realmente a existência
uma empresa. É um direito que tem mais sentido dirigido aos contratos em torno da empresa. Isto não
significa que sejam apenas actos que se dirijam às empresas.

Coloca-se a questão de saber se, em vez de direito dos actos de comércio e dos comerciantes, não será
preferível definir o direito comercial como o direito das empresas. A concepção empresarialista do
direito comercial foi cunhada por Wieland e Mossa e continuada por Heck, Radbruch e Locher, e teve
grande repercussão nas legislações e doutrinas europeias a partir dos anos vinte.

Esta ideia acaba por ser frágil para a defesa da autonomia do direito comercial: a ideia de que o direito
comercial é um direito de empresa remete para as actividades onde existe uma empresa. Há muitas
matérias do direito comercial abertas à actuação de sujeitos sem empresas – assim, o critério da
empresarialidade, por si só, não chega e deixa de fora áreas vastíssimas necessárias para assegurar a
autonomia do direito comercial (ex: títulos de crédito, regime da insolvência).

Assim, o empresarialismo estrito foi perdendo força e entrou em crise a partir dos anos cinquenta. Porém,
na Alemanha, onde o direito comercial é marcado pelo objectivismo e a generalidade dos comerciantes
tem empresas, vários autores continuaram a defender o empresarialismo. Podemos encontrar “quer um
empresarialismo estrito, quer – tendo em conta as tendências modernas do direito comercial para a ‘re-
objectivação’ – um menos estrito: neste sentido, mais que ‘das empresas’, o direito mercantil será ‘à volta

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das empresas”, pois não exclui certos actos ocasionais de comércio (designadamente no domínio dos
títulos de crédito e das operações de bolsa)”.

“Pode dizer-se, na verdade, que o núcleo do direito mercantil está na empresa comercial, constituindo
ela o “princípio energético” a que todas as legislações (integráveis nos sistemas subjectivo, objectivo ou
misto) prestam homenagem ... É defensável que o nosso direito comercial – reformado – deve ser um
direito à volta das empresas (um direito do estatuto dos empresários singulares e colectivos, dos direitos
e negócios sobre as empresas e da tutela destas, dos negócios jurídicos de organização das empresas ...). E
não parecem ser obstáculos intransponíveis a esta defesa as imprecisões que se vêm manifestando na
determinação das empresas, nem o facto de haver empresas não comerciais, empresários não
comerciantes e até comerciantes não empresários.

Todavia, o direito comercial português actual, além de admitir comerciantes não empresários, regula
actos esporádicos ou ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis e cuja disciplina não
poderá dizer-se (globalmente) determinada por interesses ligados à empresarialidade”. É exemplo a fiança
(art. 101.º). Embora estes sejam fenómenos marginais, “uma definição rigorosa do direito comercial
vigente não pode desconsiderá-los. Por isso prefiro defini-lo como direito dos actos de comércio e dos
comerciantes – embora actos e sujeitos em regra ligados às empresas comerciais”.

COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, p. 44 e 45

2.1 O problema da autonomia do direito comercial

A questão da autonomia do direito comercial é sobretudo uma questão de autonomia material. Desde o
século XIX, vem-se manifestando um forte movimento doutrinal que defende a unificação do direito
comercial e civil, com base na generalização de institutos tradicionalmente jurídico-comerciai (ex: letras
de câmbio, sociedades, seguros, sinais distintivos do comércio, etc.). Esta generalização denota a
tendência para a “comercialização” do direito privado, caracterizada pela incorporação no direito civil de
regras e princípios tradicionais do direito comercial (ex: princípio do reforço do crédito e princípio da
maior protecção da confiança).

Porém, a unificação do direito privado ao nível das obrigações não afasta a necessidade de um disciplina
especial para os empresários comerciais. “No entanto: uma disciplina subjectiva do tipo da italiana
(relativa a registo, escrituração, execução concursal) não parece bastante para afirmar a autonomia
substancial do direito mercantil; por outro lado, já demos conta de que também ao nível dos empresários

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(comerciais e não comerciais) se vem verificando uma progressiva unificação; por outro lado ainda, a
disciplina tradicionalmente aplicável a empresários vai-se estendendo a alguns não empresários”. Assim,
um direito comercial baseado nas empresas não tem de ser tendencialmente autónomo, embora a
autonomia didáctica e científica esteja salvaguardada.

Recentemente, vários autores têm defendido que se tem vindo a assistir a uma reafirmação da autonomia
substancial do direito comercia enquanto direito privado da empresa, baseados no fenómeno do recurso
aos contratos comerciais como contratos de empresa.

Em suma: pese embora o elevado grau de unificação do direito privado patrimonial, e a consequente
redução do círculo de autonomia substancial do direito comercial...
• As nossas leis mantêm ainda um regime especial comum aplicável aos actos de comércio em
geral.
• Existem algumas regras específicas para os actos de comércio em especial.
• Os comerciantes têm um estatuto algo diverso dos não comerciantes.

3. Fontes do direito comercial português

Nas fontes de direito comercial, distinguimos entre as fontes internas e externas.

! Fontes externas:
• Convenções internacionais.
• Regulamentos e directivas.

Apesar de terem valor infra-constitucional, as normas das convenções internacionais e de direito supra-
nacional prevalecem sobre a lei ordinária interna.

! Fontes internas:
• Leis (em sentido amplo). As principais fontes do direito comercial são as leis ordinárias e os
decretos-lei.
• Regulamentos.
• CRP: contém algumas normas atinentes ao direito comercial.
• Jurisprudência e doutrina.
• Usos e costumes: apesar de serem muito menos significativos que em outras épocas, têm ainda
alguma importância.

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3.1 Aplicação da lei civil à lei mercantil (art. 3.º)

O art. 3.º prevê um critério geral de integração da lei comercial: a lei civil é aplicável a questões
comerciais, subsidiariamente, enquanto direito privado comum, quando a lei comercial não chega. Note-
se que não está aqui em causa a integração de lacunas: o direito comercial é um direito especial e
fragmentário, logo muitas das omissões são compreensíveis, remetendo para a aplicação do regime geral
do direito comum.

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CAPÍTULO I

DOS ACTOS DE COMÉRCIO EM GERAL

1. Introdução

O direito comercial começou por ser um direito de comerciantes, para depois – a partir do momento em
que se estadualizou – ser retirado da esfera privativa dos mercadores comerciantes, objectivando-se.
Certos actos, por estarem previstos na lei, deveriam ser qualificados como actos de comércio, sujeitos a
uma jurisdição especial.

Hoje, temos um direito misto, composto por regulação de actos e comerciantes. Assim, justifica-se que
estudemos os actos de comércio e os comerciantes – ainda existe um regime especial para os actos de
comércio. O regime especial comum aos actos de comércio revela-se no seguinte:
• Art. 15.º: as dívidas dos comerciantes casados, derivadas de actos comerciais, presumem-se
contraídas no exercício dos respectivos comércios. Este artigo, ao estabelecer uma presunção, vai
fazer accionar o art. 1691.º/1/d) do Código Civil.
• Art. 100.º: em regra, nas obrigações comerciais (i.e., resultantes de actos comerciais), os co-
obrigados são solidários.
• Art. 102.º, § 3º e 5º: estabelece um regime específico para os juros de que sejam titulares as
empresas comerciais.
• A qualificação como actos comerciais importa para qualificar de comerciais outros actos, pela
ligação que mantêm com os primeiros. Ou seja, para sabermos se certo acto é comercial, temos de
saber se é comercial outro acto. Ex: art. 101.º (fiança mercantil: se a obrigação garantida for
mercantil, temos um regime específico).
• A qualificação como comerciais de actos interessa ainda para qualificar sujeitos como
comerciantes (art. 13.º).

2. Noção de actos de comércio

O art. 2.º do Código Comercial é uma “norma delimitadora básica dos actos de comércio”: “Serão
considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código [1ª
parte], e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza
exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar [2ª parte]”. A primeira parte refere-se
aos actos de comércio objectivos (apesar de a comercialidade objectiva não se esgotar nos actos

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especialmente regulados no Código), enquanto que a segunda parte prevê os requisitos dos actos de
comércio subjectivos.

O art. 2.º é insuficiente, desde logo, pela impossibilidade de termos um conceito unitário, homogéneo,
de acto comercial. Do próprio enunciado resulta a impossibilidade de um conceito unitário de acto
comercial. Isto deve-se a dois factores:
1) As diversas fontes de acto de comércio objectivo vão para além do art. 2.º.
2) Há actos de comércio que são considerados pelo facto de serem praticados por comerciantes – actos
de comércio subjectivo.

Quanto à 2ª parte, em rigor, não é “além deles” – os actos comerciais objectivos também podem ser
subjectivos. Porém, a comercialidade subjectiva tem como grande importância e objectivo permitir que
actos que não são objectivos possam ainda ser actos de comércio – temos os actos de comércio
objectivos e ainda podem ser comerciais os actos subjectivos. Isto não significa que haja exclusão, ou
seja, um acto de comércio pode ser subjectivo ou objectivo: em regra, até são, uma vez que os actos de
comércio subjectivo são geralmente praticados por comerciantes.

2.1 Conceito unitário de acto de comércio objectivo?

Ao longo dos tempo, alguns autores têm defendido conceitos unitários de acto de comércio. Os principais
critérios utilizados para um conceito unitário de acto de comércio são:
1. Finalidade especulativa ou lucrativa.
2. Interposição nas trocas – nomeadamente, de mercadorias, títulos, prédios, etc.
3. Existência de uma empresa.

Hoje, recusamos a possibilidade de algum destes critérios dar origem a uma noção unitária:
1. Primeiro critério:
a. Existem actos com finalidade lucrativa que não são, para nós, deduzíveis como
comerciais. Entendemos que os actos na agricultura, por ex., são actividades não
comerciais, pois temos elementos na lei que nos permitem qualificar como civis. Não
existe uma conexão entre especulação/lucro e comercialidade.
b. Existem actos comerciais que não são lucrativos – o Estado pode praticar actos de
comércio sem tais finalidades; e existem entidades cooperativas que não aspiram ao lucro
e praticam actos de comércio.
c. O próprio Código Comercial admite explicitamente actos de comércio sem qualquer
escopo especulativo, art. 404.º.

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2. Segundo critério:
a. Há actos comerciais previstos na lei como de comércio objectivo que não são actos de
interposição nas trocas – por ex., a fiança, a compra não dirigida a venda, o penhor, etc.
b. Quanto às empresas, estas não podem ser vistas como comerciais com base em poderem
ser vistas como actos de interposição na troca do trabalho.
3. Terceiro critério:
a. Também não serve, apesar de geralmente o direito comercial ser o dos actos praticados
no âmbito da exploração no quadro de uma empresa. Há muita comercialidade que não
implica empresarialidade – por ex., os actos esporádicos e os actos/contratos não
praticados no âmbito da exploração de uma empresa.

O mais importante não é definir uma noção unitária, mas perceber quais os modos de manifestação de
comercialidade objectiva. Não existe um critério único, temos aqui uma categoria heterogénea. A
comercialidade económica (interposição nas trocas) não esgota a comercialidade jurídica.

2.2 Tipos de actos de comércio

Que actos de comércio existem?

1) Em primeiro lugar, são factos jurídicos negociais, a saber contratos e negócios jurídicos bilaterais. Os
contratos são aqueles que podem aparecer mais vezes – o Livro II do Código Comercial fala dos contratos
especiais do comércio. Nos negócios jurídicos bilaterais, temos negócios constituintes de sociedades e
negócios jurídicos cambiários.

2) Em segundo lugar, temos simples actos jurídicos. São exemplos: notificações e avisos no âmbito das
sociedades, art. 203.º, 3, 204.º, etc. e protesto no domínio cambiário, art. 44.º da Lei Uniforme das Letras
e Livranças.

3) Temos o facto jurídico ilícito, desde que esteja expressamente previsto na lei. Isto significa que, sendo
ilícito, é acto comercial porque prevê uma obrigação de indemnização prevista na lei, que vai ser uma
obrigação mercantil. Exemplos:
• Abalroação culposa de navios, art. 605.º e segs. do CC.
• Também arts. 235.º, 236.º, 238.º, 245.º, 253.º, 264.º, 665.º e segs do CC.
• Outro exemplo, fora do Código Comercial, é a responsabilidade civil societária dos
administradores e gerentes, 72.º e segs. do CSC.

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Fora dos actos de comércio ficam os factos jurídicos não voluntários ou naturais: é exemplo o regime
previsto para a prescrição, art. 174.º do CSC e 70.º da LULL. O decurso do tempo que leva à prescrição
depende da declaração de vontade, logo não pode ir para o grupo dos actos de comércio por falta de
declaração.

3. Actos de comércio objectivos

A 1ª parte do art. 2.º dispõe que “são considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem
especialmente regulados neste Código”. Esta é uma definição por enumeração ou catálogo. Porém, serão
actos de comércio objectivos apenas os especialmente regulados no Código Comercial? “Esta
formulação faria algum sentido em 1888. Não é, contudo, razoável petrificar um catálogo de actos num
código datado, há-de ser possível leis posteriores, acompanhando a evolução económica, preverem novos
actos comerciais” (COUTINHO DE ABREU, p. 77).

Assim, hoje, a doutrina entende que a 1ª parte do art. 2.º deve ser interpretada extensivamente,
abrangendo três outros modos de manifestação da comercialidade objectiva:
1) Leis que substituem ou revogam o Código Comercial.
2) Leis que qualificam, directa ou indirectamente, o acto ou contrato como acto de comércio.
3) Analogia.

Como tal, existem quatro modos de manifestação de comercialidade objectiva:


1. Actos de comércio enumerados e previstos no próprio Código Comercial.
2. Leis que substituíram ou revogaram o Código Comercial.
3. Leis que, de forma directa ou indirecta, qualifique o acto ou contrato como acto de
comércio.
4. Analogia.

Como chegamos aos quatro modos?


1. Interpretação literal – primeiro modo.
2. Interpretação extensiva – segundo e terceiros modos.
3. Interpretação analógica – quarto modo.

Se, no percurso de identificação do acto de comércio, não encontrarmos correspondência em nenhum


modo de manifestação, apenas nos resta a comercialidade subjectiva. Quando qualificamos um acto
como acto de comércio objectivo, não precisamos de ir verificar se é um acto de comércio subjectivo,

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ficamo-nos por aí. Não sendo um acto comercial, temos um acto civil – ao qual se aplica o regime geral.
Está em causa, como tal, saber se podemos ou não aplicar a especialidade do regime comercial.

3.1 Modos de manifestação

1) Actos de comércio enumerados e previstos no próprio Código Comercial: relativamente à maioria


destes actos, o Código estabelece uma disciplina específica. Em muitos casos, temos o homólogo no
direito comercial para o mesmo acto ou contrato previsto na lei civil – é exemplo a fiança, art. 101.º (em
rigor, temos uma fiança de uma obrigação comercial), o mandato comercial (art. 231.º e segs.), a conta
corrente (art. 344.º e segs.), o empréstimo comercial (art. 394.º e segs.), o penhor mercantil (art. 397.º e
segs.), o aluguer mercantil (art. 481.º e 482.º), o depósito mercantil (art. 403.º e segs.), a compra e venda
comercial (art. 463.º), etc. A regulação da compra e venda é feita pela via positiva (art. 463.º) e negativa
(art. 464.º).

2) Leis que substituíram ou revogaram o Código Comercial. O art. 4.º da Carta de Lei diz que tudo o
que é substitutivo ou revogatório faz parte do Código, ou seja, legitima este modo de manifestação. Um
exemplo muito claro é o relativo às sociedades comerciais: o art. 104.º e segs. foi revogado pelo Codigo
das Sociedades Comerciais, mas então não podemos ter actos de comércio previstos no CSC? Sim, por
este modo de manifestação. Assim, o CSC é lei substitutiva ou revogatória no qual podemos encontrar
actos de comércio por extensão do art. 2.º, 1ª parte (exemplo: constituição de uma sociedade por quotas
unipessoal, art. 270.º-A e segs.).

Outras leis que vieram substituir o Código Comercial e, como tal, são qualificadoras de actos comerciais,
são:
• Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças;
• Lei Uniforme relativa ao Cheque;
• Código Corporativo;
• Código dos Valores Mobiliários;
• Diversa legislação para o contrato de transporte por mar.

Porém, nem todas as leis substitutas de artigos do Código Comercial são comerciais e, como tais,
qualificadoras de actos de comércio. Existem alguns casos duvidoso:
• O DL 231/81, relativo ao contrato de associação em participação, veio revogar o regime da conta
em participação (art. 224.º e segs.). Entendemos que este diploma não pode atribuir a qualidade
de acto de comércio, pois veio trazer um regime que exclui a comercialidade, por dois aspectos:
já não se exige que o associante seja comerciante, nem que a actividade dele seja comercial. Por

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outro lado, “o regime estabelecido não é unitário e não parece ser de direito (privado) especial;
mais: o art. 22.º, 1, estatui que ... não se presume a solidariedade dos débitos” (COUTINHO DE
ABREU, p. 79).
• Outro exemplo discutível é o seguro mercantil. Em 2008, surgiu o regime geral do contrato de
seguro, previsto no DL 72/2001. Para COUTINHO DE ABREU, este regime é uma lei substitutiva;
porém, para RICARDO COSTA, este parece ser um regime geral que não tem especialidade
suficiente para qualificar como acto de comércio, por isso temos de ir antes pela terceira via.

3) Leis que, de forma directa ou indirecta, qualifiquem o acto ou contrato como acto de comércio.
Se uma lei visar prosseguir interesses de comércio, ou seja, se tiver objecto mercantil (lei comercial),
podemos identificar o contrato nela previsto como comercial. Assim, temos de atender ao objecto de
regulação da lei primeiro, para depois vermos se podemos qualificar o acto como acto de comércio.

Existem várias leis que a doutrina reconhece como pacífico que podem servir como expediente
qualificador de actos de comércio. São exemplos:
• O Código Civil, nos arts. 1108.º e segs. (alterados pela Lei /2006, que aprovou o Novo Regime do
Arrendamento Urbano), contém disposições especiais do arrendamento para fins não
habitacionais, nomeadamente o comércio, regulando a locação e o trespasse de estabelecimentos
comerciais. Estes devem considerar-se actos de comércio objectivos especialmente regulados em
lei comercial. RICARDO COSTA defende ainda (apesar de ser doutrinalmente discutido) que o
arrendamento para fins comerciais pode ser visto como acto de comércio objectivo através desta
regulamentação.
• DL 19/82, relativo ao transporte aéreo.
• DL 178/86, relativo ao contrato de agência.
• DL 171/95, relativo à locação financeira.
• DL 298/83, relativo à actividade portuária.
• Lei 144/2006, relativa à actividade seguradora.
• DL 108/2009, relativa à animação turística.
• Etc.

Quanto à actividade seguradora, para RICARDO COSTA, podemos ir antes pela terceira via. Assim, temos
leis que qualificam o contrato de seguro indirectamente como mercantil:
• DL 94-B/98. A actividade seguradora só pode ser exercida por sociedade anónima, logo o objecto
destas sociedades é comercial. Assim, o diploma está a qualificar indirectamente esta actividade
comercial, logo a celebração do contrato de seguro é comercial (abrange os contratos de seguro e
os contratos paralelos).

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• Mesmo nas actividades de mediação de seguros ou de reseguros, regula o DL 144/2006, e


também aí os mediadores, a serem sociedades, só podem ser sociedades por quotas ou anónimas.
A actividade conexa à actividade seguradora também é comercial.

Em relação ao contrato de agência, impõem-se mais algumas notas quanto à sua qualificação:
• Se a actividade de agenciamento for exercida através de uma empresa, então a qualificação como
acto de comércio é feita pelo art. 230.º, § 3º.
• Se o contrato de agência não for celebrado por um empresário, então temos ainda dois modos que
cumulativamente servem para qualificar o contrato como acto de comércio objectivo: a analogia
juris (ver abaixo), e o diploma 178/86.

4) Analogia: é o modo mais discutido. Quando os outros três modos não servem, podemos recorrer à
analogia com os actos previstos nos outros três modos para os qualificar como comerciais?
Tradicionalmente, a resposta era negativa, com base nos seguintes argumentos:
• A letra da lei do art. 2.º falava em “especialmente regulados” e “além deles”, logo parece excluir
a analogia.
• Por uma razão histórica, pois este artigo se inspira no “Código de Comercio” espanhol, que
admite a analogia. Se o Código Comercial português não a menciona, é porque a exclui.
• Finalmente, os defensores desta tese convocam razões de certeza e segurança jurídicas.

Entendemos que estes argumentos não são pertinentes:


• A letra da na lei não é concludente, não diz que são actos de comércio apenas aqueles.
• Hoje temos uma concepção subjectivista do argumento histórico, em função dos critérios
previstos no art. 9.º do CC.
• A segurança e certeza jurídicas são importantes, mas o valor da justiça, adequação e
razoabilidade podem ser mais.

Assim, admitimos a analogia, seja a analogia legis (art. 10.º/1 e 2 do CC), seja a analogia juris. A
primeira implica que se recorre a uma concreta norma legal, que considera como acto comercial um acto
análogo ao acto omisso; a segunda é mais complexa, pois implica identificar princípios normativos gerais
de qualificação, que traduzem uma espécie de teleologia. COUTINHO DE ABREU é o principal defensor da
analogia juris, defendendo o princípio mercantil segundo o qual os contratos e actos de prestação de
serviços são actos de comércio objectivo – logo, tudo o que é prestação de serviços é acto comercial.
Fazemos uma indução de princípio.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Note-se que estamos a falar, não de lacunas de regulação (é o problema que temos na aplicação
subsidiária da lei civil, art. 3.º), mas de lacunas de qualificação.

Exemplos de actos de comércio qualificados analogicamente:


• Art. 230.º, n.º 2 e 6.º (ver infra).
• Contrato constituinte de uma ACE (agrupamento complementar de empresas), por analogia legis
com o art. 3.º, 1, do DL 148/90.
• Locação de imóveis no contrato de locação financeira ou leasing, por analogia com o art. 481.º.
Globalmente considerado, o contrato de locação financeira é um acto de comércio objectivo, uma
vez que o DL 149/95 é uma lei comercial.
• Contrato de agência, por analogia juris. O contrato de agência é o contrato pelo qual uma das
partes se obriga a promover por conta de outrem a celebração de contratos. A sua comercialidade
é afirmada claramente nos casos em que o contrato é celebrado no âmbito de uma empresa (art.
230.º, n.º 3º). E nos outros casos? Podemos retirar de vários artigos do Código Comercial (art.
362.º e segs., 463.º, nºs 1º a 4º, 480.º e 481.º) um princípio geral segundo o qual as actividades de
interposição de trocas pertencem ao comércio jurídico. O agente exerce uma actividade de
intermediação de trocas (intermediação entre a oferta e a procura de bens), logo o contrato de
agência e os actos que por virtude dele o agente pratica são actos de comércio objectivos.
• Contrato de concessão comercial, por analogia juris do mesmo princípio. O contrato de
concessão comercial é o contrato de carácter duradouro pelo qual o concedente se obriga a vender
(sucessivamente) bens por si produzidos ou distribuídos ao concessionário, obrigando-se este a
comprá-los e a promover, nas condições adequadas e em nome e por conta própria, a respectiva
venda. Chega a compra e venda para qualificar como comercial? Não: a concessão é diferente,
enquanto contrato, das singulares compras e vendas que executam esse contrato.
o É um contrato duradouro, enquanto a compra e venda se esgota no acto;
o Não se confunde com as compras e vendas sucessivas, são duas realidades negociais
diferentes;
o É mais complexo do que um mero contrato de compra e venda.
Vamos, assim, buscar o princípio segundo o qual actos de interposição nas trocas são comerciais
(analogia juris com os arts. 362.º e segs., 463.º, 1º a 4º; 480.º; 481.º). As actividades e os actos em
que as actividades que se consubstanciam em interposição nas trocas pertencem ao comércio
jurídico, logo são actos comerciais. O contrato de concessão é assim um acto comercial, uma vez
que consubstancia um acto de interposição nas trocas ou, mais precisamente, é pressuposto
necessário de uma actividade de interposição nas trocas.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

3.2 Art. 230.º do Código Comercial: significado no quadro dos actos de comércio

O art. 230.º CC enquadra-se no primeiro modo de manifestação da comercialidade objectiva e é um


artigo muito discutido. Desde logo, refere-se a empresas comerciais: estaremos a qualificar empresas? Se
temos empresas comerciais, significa que se dedicam a actos comerciais? O artigo enumera uma série de
actos e factos, em duas partes – na primeira, inclui (primeiro a sétimo); na segunda, exclui (parágrafo
primeiro a terceiro).
• Actividade transformadora;
• Contratos de fornecimentos, em primeira linha géneros alimentícios.
• Agenciamento de negócios.
• Exploração de espectáculos públicos.
• Actividade editorial.
• Edificação ou construção.
• Contrato de transporte.

Quanto a este artigo, temos duas questões.

1) Qual é o alcance do art. 230.º na nossa tarefa de qualificação de actos de comércio? Uma corrente
doutrinária, partilhada pelos primeiros comentaristas do Código, defendia que as empresas previstas neste
artigo correspondiam a empresários, logo estaríamos a qualificar comerciantes.

Há uma visão que se estabilizou mais tarde, que defende que estas empresas não são mais que uma série
ou complexo de actos objectivos. Trata-se aqui de actos reiterados, e que traduzem a exploração da
empresa. O artigo passou a ter, assim, uma interpretação objectiva de acto e não subjectiva de
comerciante. É a visão por nós adoptada: as empresas do art. 230.º são um conjunto ou séries de actos
de comércio objectivos, ainda que enquadrados numa empresa, ou seja, integrados numa organização.
O art. 230.º integra-se no art. 2.º e serve para qualificar os actos de comércio objectivos. Apesar de o
enunciado normativo e de a interpretação literal favorecer o sentido de pessoa ou empresário para
empresa, outros elementos de interpretação (histórico, sistemático e teleológico) favorecem esta tese.

Encontramos ainda uma visão intermédia, de uma empresa em sentido objectivo. Temos um empresário,
mas o artigo qualifica-o objectivamente, em função do objecto das suas actividades.

2) Que actos são abrangidos? Só os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se traduz? Ou
permite, numa interpretação extensiva, todos os actos e contratos conexionados com a actividade de
exploração da empresa? Para COUTINHO DE ABREU, devemos fazer uma interpretação extensiva: o art.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

230.º abrange não só os actos em que tipicamente se traduzem a actividade, mas também todos os
actos, contratos e negócios praticados na exploração destas empresas (por ex., a compra de uniformes
para os trabalhadores).
• Por um lado, o art. 230.º parece basear a tipificação de algumas empresas em factos não jurídico-
negociais. Assim sendo, seria difícil delimitar os actos objectivamente comerciais dos actos
subjectivamente comerciais.
• Por outro lado, a visão orgânica dos diversos actos em que a empresa se a traduz favorece
igualmente esta tese.
• Finalmente, as empresas referidas no artigo podem ser exploradas por não comerciantes, não
havendo lugar para os actos subjectivamente comerciais.

A alternativa seria reconduzir estes últimos actos à comercialidade subjectiva – assim, para nós, integram-
se ainda na comercialidade objectiva. Exemplo: a aquisição de uma máquina para alisar o terreno é um
acto de comércio objectivo segundo o art. 230.º, 6.º.

O art. 230.º pode ser aplicado analogicamente? Quanto à analogia legis, sim; quanto à analogia juris, já é
mais duvidoso (COUTINHO DE ABREU defende que sim). Todos os actos que permitem a exploração de
uma empresa prevista no art. 230.º são qualificados como actos comerciais.

! Interpretação analógica

O art. 230.º pode ser interpretado extensiva ou analogicamente.

1) O n.º 6 refere-se às empresas de construção, somente, de casas. COUTINHO DE ABREU defende a


extensão do 6.º a outras obras e outros objectos de construção por analogia legis (para RICARDO COSTA,
teremos antes aqui uma interpretação extensiva).

2) Quanto ao n.º 2, a lei não fala de géneros agrícolas e alimentares, mas esta foi a interpretação
tradicional. Na visão do legislador histórico, isto era encarado de uma perspectiva alimentar. Como o
Código começou a ser escasso, este número começou a ser uma fonte para, através de interpretação
extensiva ou analógica, ir buscar outros actos – por ex., actos de fornecimento de água, gás, electricidade
e outros bens ditos primários de consumo permanente (por interpretação extensiva).

Por analogia legis, entra no n.º 2 serviços como empresas hoteleiras, publicidade, gestão de bens,
tratamento de beleza, etc. Estamos no âmbito muito lato de fornecimento de serviços, uma vez que se
entende que o que levou o legislador a qualificar de comerciais as empresas mencionadas no n.º 2 foi a de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

haver aqui um certo risco, originado pelo facto de interceder um período de tempo entre o momento da
fixação do preço e o dos múltiplos actos sucessivos de fornecimento. Os contratos de serviço
caracterizados por esta nota temporal e contratual são os contratos de fornecimento de serviços, e
distinguem-se dos contratos de prestação de serviços. Os contratos de fornecimento de serviços são
qualificados como actos de comércio objectivos por analogia legis do art. 230.º/2..

Ao contrário, as empresas de prestação de serviços são qualificadas por analogia juris – há um


conjunto de normas, quer do CCom. (arts. 230.º, n.ºs 1º, 3º, 4º, 5º, 7º, e 463.º e segs.), quer normas em leis
especiais, que consideram comerciais várias empresas de prestação de serviços e das quais retiramos que
prestação de serviços ser comercial é um princípio geral do direito mercantil. Todos os actos de prestação
serviços que não consigamos identificar como comercial pelo Código ou outras leis são qualificadas pela
via da analogia juris.

4. Actos de comércio subjectivos

Estão delimitados no art. 2.º, 2ª parte. São três os requisitos que têm de estar preenchidos para termos um
acto de comércio subjectivo:
• Acto dos comerciantes.
• Que não seja de natureza exclusivamente civil.
• Se o contrário do próprio acto não resultar.

1) Actos dos comerciantes. O primeiro requisito refere-se à atinência ao comerciante, logo é necessário
saber quem é comerciante (remissão para o capítulo seguinte). A lei fala de “todos os contratos e
obrigações dos comerciante”, que não é a melhor formulação uma vez que nem todos os actos dos
comerciantes são contratos; e as obrigações não são actos, mas sim consequências dos actos. Devemos
interpretar a formulação como “todos os actos dos comerciantes”.

Porém, a referência às obrigações pode ter algum efeito útil, pois nem todas as obrigações dos
comerciantes derivam de actos comerciais e a afirmação da comercialidade de tais obrigações pode
conduzir à aplicação, por exemplo, do art. 15.º.

2) Não podem ser de natureza exclusivamente civil. Este segundo requisito é o mais discutido pela
doutrina, e, segundo o entendimento tradicional, seriam de natureza exclusivamente civil os actos apenas
regulados pelo Código Civil (já não os acto regulados pela lei comercial ou por ambas). COUTINHO DE
ABREU rejeita esta tese, com base nos seguintes argumentos (p. 100):

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• O preceito refere-se a actos que não sejam de natureza civil, não a actos que não estejam
regulados na lei civil; e pode haver actos regulados na lei civil mas de natureza não civil.
• O art. 2.º já contempla na sua 1ª parte os actos expressamente previstos no Código Comercial,
logo se a 2ª parte se referisse aos actos regulados na lei comercial teria pouca utilidade.
• Há actos omissos, não regulados nem na lei comercial nem na lei civil, aos quais não pode ser
negada a comercialidade.
• É razoável que o preceito pretenda sujeitar ao regime do direito comercial actos e obrigações
conexionáveis com o comércio profissional, ainda que não previstos na lei comercial.

Assim, em consonância com a doutrina italiana, COUTINHO DE ABREU defende “serem actos (e
obrigações) de natureza exclusivamente civis os que, por sua natureza ou essência não são
conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo (juridicamente) nem dirigidos a
auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem”. É um requisito
averiguado em abstracto: o acto tem uma conexão, em abstracto, com o comércio?

São, como tal, actos exclusivamente civis os actos de natureza extrapatrimonial como o casamento, a
perfilhação e a designação de tutor pelos pais.

Há determinados actos que, por lhes faltar natureza exclusivamente civil, podem ser actos
subjectivamente comerciais desde que praticados por comerciantes e em conexão com o comércio:
doações; rendas perpétuas e vitalícias; factos ilícitos gerados de responsabilidade extracontratual.

3) Se o contrário do próprio acto não resultar. Este requisito assenta numa averiguação, em concreto,
da conexão do acto com o comércio do autor desse acto. Este requisito pode desdobrar-se em três
hipóteses:
• Se do próprio acto resulta a ligação com o comércio, o requisito está preenchido.
• Se do próprio acto não resulta a não ligação, o requisito também está preenchido. Nem resulta a
ligação, nem resulta a não ligação.
• Se do próprio acto resulta a não ligação, o requisito não está preenchido. Há uma evidência de
que não vai para o comércio do autor.

Exemplos das hipóteses:


• O proprietário de uma drogaria compra um automóvel, declarando destinar-se esse mesmo
automóvel para o transporte de mercadorias. Resulta do acto, através da declaração, a ligação
daquele contrato com o comércio.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• O mesmo proprietário compra o automóvel e nada declara. Não se sabe se é para uso pessoal ou
comercial, logo o acto é subjectivamente comercial.
• O mesmo proprietário declara que o automóvel vai ser utilizado pela mulher, no âmbito das
actividades familiares. O acto não é subjectivamente comercial: a ligação com o comércio do
autor foi contrariada.

Em relação a este requisito, colocam-se algumas questões.

! Como é que se afere a ligação?


1. Isto é apenas resultante das conclusões que retirarmos do acto, ou seja, das cláusulas negociais.
2. Porém, temos também de atender às circunstâncias envolventes que auxiliem a compreensão do
próprio acto – por ex., as declarações feitas no momento do negócio mas que não ficaram
escritas. Esta é uma forma de alargar o âmbito dos actos comerciais.
3. Não podemos atender às circunstâncias supervenientes.

Exemplo: o proprietário da drogaria compra um automóvel para a mulher, declara-o no momento da


celebração do negócio mas tal não fica escrito no contrato. Se atendêssemos apenas ao contrato, não
poderíamos concluir pela não ligação: assim, temos de ir olhar para as circunstâncias envolventes – no
caso, para o verdadeiro projecto de utilidade dado a conhecer pelo comerciante.

! Como é que estas circunstâncias vão ser atendidas? Através dos critérios gerais de interpretação do
negócio jurídico, art. 236.º/1 (teoria da impressão do destinatário). A ponderação destes elementos deve
ser feita pelo critério geral da impressão do destinatário. Significa isto que as circunstâncias que vão ser
analisadas são as conhecidas ou cognoscíveis por um declaratário normal e diligente, colocado na posição
do declaratário real. Também aqui se aplica o art. 236.º/2 (se ambos conheciam a vontade real, é essa que
vale).

É muito discutido saber se o art. 2.º estabelece a presunção de que os actos dos comerciantes se presumem
comerciantes, ou se é antes uma norma imperativa. Entre nós, entendemos que esta é uma norma
imperativa e não uma presunção: estabelece a comercialidade de actos e obrigações que preencham três
requisitos; se esses requisitos estiverem preenchidos, temos actos subjectivamente comerciais.

5. Algumas classificações de actos de comércio

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

1) Actos acessórios: enquanto que, nos actos de comércio autónomos, estes são qualificados como tal por
si mesmos, os actos de comércio acessórios devem a sua comercialidade ao facto de se ligarem ou
conexionarem a actos comerciais. O CCom. prevê alguns actos acessórios: fiança (art. 101.º), mandato
(art. 231º), empréstimo (art. 394.º), penhor (art. 397.º) e depósito (art. 403.º).

COUTINHO DE ABREU rejeita a teoria do acessório, segundo a qual todo um acto de um não comerciante
efectivamente conexionado com um acto objectivamente comercial é acto de comércio. “Dada a diversificada índole
destes actos, não parece legítimo afirmar um princípio geral segundo o qual todo e qualquer acto de não
comerciantes seria mercantil quando conexionado com actos objectivos de comércio (não há aqui lugar para a
analogia juris). Não obstante, já nos parece legítimo qualificar de comerciais certos actos de não comerciantes por
serem análogos a actos acessórios de comércio previstos na lei (analogia legis)” (COUTINHO DE ABREU, p. 106).

2) Actos formalmente comerciais: são esquemas negociais que são utilizáveis por comerciantes e não
comerciantes, para a realização de actos de comércio ou não, estando contudo especialmente regulados na
lei comercial. Na sua substância não são comerciais. O exemplo típico é o de negócios cambiários.

3) Actos bilateralmente comerciais e actos unilateralmente comerciais: é a distinção mais importante.


• Os actos bilateralmente comerciais são actos em que a comercialidade se refere a ambos os
lados da relação: o acto é objectivamente comercial para ambas as partes. Ex: A produz
automóveis e vende 20 automóveis ao seu concessionário. A venda é acto de comércio e a
compra é acto de comércio.
• Os actos unilateralmente comerciais são actos em que a comercialidade se refere apenas a um
dos lados da relação. Ex: A compra um automóvel a um stand de automóveis, para fins pessoais.
A compra não é acto de comércio, mas a venda é comercial. Embora a compra seja civil, o acto,
no seu conjunto, é unilateralmente comercial.

Qual o regime jurídico aplicável aos actos unilateralmente comerciais? A lei, no art. 99.º, estabelece que
nos actos de comércio unilaterais o regime aplicável a ambos os contratantes é o regime comercial, com
excepção das normas que só se apliquem aquele em relação ao qual o acto é comercial. O único preceito
nestas condições é o art. 100.º: a solidariedade dos co-obrigados só respeita às partes em relação às
quais o acto seja mercantil. Se dois comerciantes comprarem a dois artesãos peças de artesanato, este
acto é unilateralmente comercial e os artesãos não são devedores solidários quanto à entrega das peças.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

CAPÍTULO II

DOS COMERCIANTES

1. Introdução

Apesar de o estatuto dos comerciantes não ser muito significativo, tem algumas notas importantes.
• Os actos dos comerciantes são subjectivamente comerciais (art. 2.º, 2ª parte).
• As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício dos
respectivos comércios, art. 15.º, e serão em princípio responsáveis os comerciantes e seus cônjuges,
1691.º/1/b) CCiv.
• A prova de certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada (art. 396.º).
• Prescrevem no prazo mais curto de 2 anos determinados créditos dos comerciantes (art. 317.º/b) do
CCiv).
• Nos termos do art. 18.º, os comerciantes estão sujeitos a certas obrigações.

Havendo um estatuto, é necessário saber como qualificar um sujeito como comerciante. O preceito
básico para esta qualificação é o art. 13.º: o preceito compreende pessoas singulares, mas também pessoas
colectivas, como iremos ver.

2. Sujeitos qualificáveis como comerciantes

2.1 Pessoas singulares

Quando é que pessoas singulares são consideradas comerciantes? Nos termos do art. 13.º, nº 1º, têm de
estar preenchidos quatro requisitos:
1. Capacidade.
2. Para a prática de actos de comércio.
3. Fazer da prática de actos de comércio a sua profissão.
4. Exercício da actividade em nome próprio.

1) Capacidade: entendemos aqui que é capacidade de exercício (aptidão para actuar juridicamente, por
acto próprio ou mediante procurador), e não a capacidade jurídica ou de gozo (aptidão para se ser sujeito de
relações jurídicas). O art. 13.º deve ser conjugado com o art. 7.º, que fala expressamente da capacidade de
exercício.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Sendo assim, aqueles que não têm capacidade de exercício (menores não emancipados, interditos e
inabilitados) nunca podem ser comerciantes? Podem –se analisarmos o regime dos incapazes, em certas
circunstâncias podem ser qualificados como comerciantes:
• Os pais, enquanto representantes do menor e autorizados pelo Ministério Público, podem adquirir
estabelecimento comercial ou continuar a exploração do que o filho haja recebido por sucessão ou
doação (art. 1889.º/1/c) do CCiv., conjugado com o art. 2.º/1/b) do DL 272/2002). O mesmo é
permitido, havendo autorização do M.P., ao tutor representante de menor (art. 1938.º, 1, a) e f) do
CCiv.) ou de interdito (art. 139.º do CCiv.).
• O inabilitado, assistido pelo curador, pode não só continuar a explorar o estabelecimento
comercial, como também adquirir empresa e explorá-la (art. 153.º do CCiv.).
• O curador, quando é administrador de bens (representante), com autorização do M.P., pode
continuar a explorar empresas do inabilitado, bem como adquirir empresa (art. 156.º do CCiv.).

Os incapazes que exerçam o comércio através de representantes legais devidamente autorizados pelo M.P.
são considerados comerciantes. Não são os representantes comerciais dos incapazes que são comerciantes,
são os próprios incapazes.

2) Prática de actos de comércio: os sujeitos têm de praticar actos de comércio objectivos. Notas:
• Não dão qualificação como comerciantes os actos formalmente comerciais.
• O mesmo sucede com os actos acessórios. Porém, há casos em que a prática de actos acessórios
pode dar a qualificação como comerciantes (ex: uma pessoa explora um armazém onde são
depositadas mercadorias destinadas a serem revendidas pelos depositantes, art. 403.º).
• Por outro lado, nem todos os actos de comércio objectivos, substanciais e autónomos, possibilitam
a qualificação de pessoas como comerciantes – é o que sucede com a conta corrente (art. 344.º e
segs) e as compras de participações sociais não destinadas à revenda ou as vendas de participações
sociais não adquiridas com intuito de revenda (art. 463.º/5).

3) Fazer da prática de actos de comércio a sua profissão: a actividade comercial tem de ser praticada de
modo habitual, reiterada ou sistemática. Não podemos ter comerciantes quando a actividade é ocasional ou
esporádica, mas pode ser descontínua, ou seja, com interrupções (ex: actividades sazonais). Para além
disto, não se exige que a profissão comercial seja a única exercida pelo sujeito, ou seja, não tem de ser a
actividade principal, pode ser meramente secundária.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

4) Exercício da actividade em nome próprio, pessoalmente ou através de representante: não está


previsto na lei. Por ex., os trabalhadores de uma empresa exercem a sua actividade em nome e no interesse
da entidade patronal, que é o comerciante. Este é um requisito não expresso, mas implícito.

! Outras notas

A qualidade de comerciante implica a de empresário? Apesar de isto ser tendencialmente correcto, não é
inteiramente: há comerciantes que o são sem explorar uma empresa – é o caso típico do vendedor
ambulante. Por outro lado, uma pessoa pode ser considerada comerciante mesmo antes de criar a sua
empresa.

A partir de que momento é que se retira a qualidade de comerciante? Entende-se que esse início se
determina quando se pratica o acto ou conjunto de actos que revela o propósito e a intenção de a pessoa se
dedicar ao exercício reiterado de uma actividade comercial. Por ex., um sujeito que quer ser concessionário
contrata trabalhadores e arrenda um espaço.

A questão apresenta maior relevo a propósito dos comerciantes-empresários: tem-se entendido entre nós
que, a partir do momento em que temos actos preparatórios e preliminares da constituição de uma empresa
futura, basta isto para termos comerciantes. Ou seja, quando se cria a empresa ou denota a intenção de vir a
explorar uma.

Isto é importante pois a partir deste momento os actos podem ser qualificados como subjectivamente
comerciais, e para a aplicação do estatuto.

2.1 Pessoas colectivas

Já vimos que também pode incluir-se no art. 13.º outras entidades diferentes de pessoas singulares: desde
logo, pessoas colectivas que sejam sociedades comerciais – as sociedades comerciais, nos termos do art.
13.º/2, são sempre comerciantes. As sociedades civis, que exploram uma actividade económica civil, e as
sociedades civis sob forma comercial, que adoptam o tipo de sociedades comerciais mas não se dedicam à
prática de actos de comércio, não são qualificadas como comerciantes. Assim, para que uma sociedade seja
qualificada como sociedade comercial (art. 1.º, nº 2º do CSC):
• Tem de praticar actos de comércio.
• E adoptar um dos tipos ou formas das sociedades comerciais (sociedade em nome colectivo,
sociedade por quotas, sociedade anónima e sociedade em comandita simples ou por acções).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

As sociedades comerciais adquirem a qualidade de comerciantes pelo menos a partir do momento em que
adquirem personalidade jurídica (art. 5.º do CSC).

Tirando as sociedades comerciais, entendemos que o art. 13.º/1 admite outras entidades como
comerciantes. Esta tese é sustentada nos seguintes argumentos:
• Quando a lei fala em pessoas, não exclui as positivas nem restringe às singulares. A própria
legislação comercial emprega o substantivo “pessoas” para abranger também pessoas colectivas –
arts. 68.º/1, 75.º, 344.º e 368.º do CCom.; e art 7.º/2, in fine, conjugado com o art. 488.º/1 do CSC.
• Há aqui uma referência à profissão, que remete para pessoas singulares – mas profissão aqui deve
significar exercício de actividade de pessoas jurídicas, “profissão” enquanto exercício de comércio.
Está em causa a profissionalidade, sistematicidade, no exercício do comércio.
• Diz-se ainda que profissão implica o lucro. Mas entendemos que o lucro não é pressuposto
essencial da profissão do exercício comercial, numa interpretação objectivo-actualista que tenha
em consideração a teleologia e as novas realidades económico-empresariais.

Exemplos de outras pessoas colectivas qualificadas como comerciantes:


• EPE (entidades públicas empresariais): as entidades empresariais do Estado devem e podem ser
qualificadas como comerciantes, desde que a sua actividade seja considerada como comercial (têm
capacidade para praticar actos de comércio, arts. 25.º e 27.º do RSEE). As EPE estão reguladas no
DL 133/20133, sendo que a sigla “EPE” faz obrigatoriamente parte da denominação das entidades
públicas empresariais (art. 57.º/2 do DL 133/2013). Nas empresas locais, reguladas pela Lei
50/2012, o problema não se coloca porque as empresas locais são obrigatoriamente sociedades
comerciais.
• ACE (agrupamentos complementares de empresas) e AEIE (agrupamentos europeus de interesse
económico): não são sociedades por não terem escopo lucrativo, art. 3.º/1 da L 4/73, e são
comerciantes quando tenham objecto comercial. Esta asserção, apoiada na interpretação do art. 13.º
acima enunciada, é hoje apoiada pelo art. 3.º/2 do DL 148/90.
• Cooperativas: embora não qualificáveis hoje como sociedades (não têm escopo lucrativo, art. 2.º
do CCoop.), nada impede que as cooperativas com objecto comercial sejam consideradas
comerciantes.

Todas estas entidades podem ser qualificadas como comerciantes desde que a sua actividade possa ser
qualificada como comercial.

3. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Não são comerciais os que exercem actividades não comerciais. Como tal, com COUTINHO DE ABREU,
entendemos que empresarialidade não equivale a comercialidade. Esta tese é sustentada em argumentos
legais, que assentam na exclusão de certas actividades, empresariais, do âmbito da comercialidade:
• Actividade agrícola: a agricultura (conceito amplo) não é uma actividade comercial para nós.
Argumentos:
o Art. 230.º, § 1º e 2º. No parágrafo 1º, inclui-se o explorador agrícola que reserva parte dos
seus produtos, por ex., para fazer compotas. É uma actividade acessória – a indústria
transformadora é secundária da indústria agrícola, entendendo-se que isto não chega para
qualificar a actividade no seu todo como comercial.
o Art. 464.º, n.º 2º e 4º: se a venda de produtos agrícolas não é comercial, a actividade de
base também não é.
o Conjunto de legislação sobre as sociedades de agricultura de grupo, agrupamentos de
exploração agrícola, etc: DL 336/89; 339/90. São reguladoras de formas de exploração de
actividade agrícola sob a forma societária, sendo que ambos os diplomas dizem que só
podem ser sociedades civis sob a forma de sociedade por quotas.
Há um conjunto vasto de autores que dizem que a actividade agrícola é comercial quando for
exercida através de uma empresa. Entendemos que não é a empresarialidade que qualifica a
comercialidade, mas sim a lei. De jure condendo, é defensável que as empresas agrícolas são
comerciais, mas não é esse o nosso estado.
• Artesãos:
o Também não são comerciantes os artesãos, ou seja, os produtores que utilizam
predominantemente o trabalho manual. O art. 230.º, § 1º, 2ª parte, e 464.º, nº 3º, exclui
do comércio a actividade artesanal industrial-transformadora, exercida directamente
pelos artesãos (oleiros, sapateiros, costureiras, etc.).
o Por sua vez, há também os chamados serviços artesanais que, para este efeito, entram no
conceito de artesão apesar de serem prestações de serviços, e quando exercidas
directamente pelos artesãos – ex: cabeleireiro, costureira, sapateiro, etc. Estas actividades
não são comerciais, uma vez que não se encontram especialmente reguladas na lei
comercial e são análogas às actividades do art. 230.º, § 1º. 2ª parte

o O DL 41/2001 (art. 12.º) veio dizer que esta actividade podia ser exercida através de uma
sociedade comercial. Entendemos que a lei se quis referir à sociedade civil sob forma
comercial, em nome da unidade do sistema jurídico – fazemos uma interpretação restritiva.
• Profissionais liberais: são também excluídos da comercialidade, quer as pessoas singulares, quer
as pessoas colectivas cujo objecto consista numa actividade profissional-liberal. Além de os actos
típicos das actividades respectivas nunca serem qualificados legislativamente de comerciais, os

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

regimes jurídicos destas actividades nunca admitem sociedades comerciais. Ex: art. 1.º, 2 do DL
229/2994, que diz que “as sociedades de advogados são sociedades civis”; art. 94.º/1 do DL
487/99, segundo o qual “as sociedades de revisores revestem a natureza de sociedades civis”, etc.
• Próximo destes encontram-se uma série de trabalhadores autónomos, e que devem ser qualificados
como não comerciantes, pois as suas actividades em nenhum lugar são qualificados como
comerciais – escritores, músicos, etc. Podemos também convocar um argumento de analogia com o
art. 230.º, § 3º.

Para além disto, nem todos os exercitantes de actividades comerciais são comerciantes. O art. 17.º diz que
as pessoas colectivas territoriais (Estado, regiões autónomas, autarquias locais) não podem ser
comerciantes, ainda que pratiquem actos de comércio de forma reiterada e sistemática. Este artigo deve ser
interpretado extensivamente, para incluir nesta impossibilidade de serem comerciantes as pessoas
colectivas públicas de tipo institucional e associativo, com excepção das EPE.

O § único do art. 17.º acrescenta que as associações e fundações de direito privado com fim desinteressado
ou altruísta podem, no limite das suas atribuições, praticar actos de comércio, mas não podem adquirir a
qualidade de comerciantes.

4. Sujeitos legalmente inibidos da profissão de comércio

4.1 Entidades colectivas

O art. 14.º diz que não podem ser comerciantes as associações sem interesses materiais. O intuito deste
preceito não é o de impedir que estas associações pratiquem actos de comércio, mas sim o de lhes vedar o
estatuto de comerciantes. Devemos fazer um juízo individual em relação a cada um dos tipos de
associações:
• Associações de escopo desinteressado: não podem ser comerciantes, uma vez que não têm por
objecto interesses materiais. Entram no art. 14.º, 1.º e aplica-se-lhes também o § único do art. 17.º.
• Associações de fim interessado, mas ideal: são aquelas associações em que a obtenção de receitas é
um meio instrumental. Prosseguem fins não materiais, logo entram também no art. 14.º, 1.º e não
podem ser qualificadas como comerciantes.
• Associações de fim interessado, com escopo económico mas não lucrativo: não entram no art. 14.º,
uma vez que já não se pode dizer que tenham por objecto interesses materiais. Porém, continuam a
ser não comerciantes, uma vez que não fazem do comércio sua profissão (art. 13.º).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Imaginemos que uma associação extravasa o seu objecto e começa a ter um escopo comercial – pode ser
qualificada como comerciante? Não: a actividade fica fora da capacidade de gozo (art. 160.º/1 do CCiv.) e
os actos praticados são nulos, sendo que não podemos basear a qualificação como comerciante em actos
nulos. A associação deve ser extinta.

4.2 Pessoas singulares

O art 14.º, nº 2º, estabelece que é proibida a profissão do comércio “aos que por lei ou disposições especiais
não possam comerciar”. Este artigo refere-se às incompatibilidades para ser comerciante –
incompatibilidade é uma impossibilidade legal de exercício de comércio por determinado sujeito exercer
certas funções ou ter determinado estatuto ou posição jurídica.

Estas incompatibilidades agregam-se em dois núcleos:


• Incompatibilidades de direito privado: por ex., os sócios de uma sociedade não podem exercer
actividade concorrente, art. 180.º CSC. Outras incompatibilidades são as que constam do art. 253.º
do CCom. (gerente), 254.º/1 do CSC (gerente de sociedade por quotas), art. 398.º, 3, 428.º do CSC
(administradores de sociedades anónimas) e art. 477.º do CSC (sócios comanditados de sociedades
comanditadas simples). Estas são posições jurídicas que impossibilitam o exercício de actividade
concorrente com a sociedade ou entidade patronal. São incompatibilidades relativas, que podem ser
supridas mediante autorização; e parciais, pois são proibições legais de concorrência.
• Incompatibilidades de direito público: são absolutas e gerais. Incluem-se aqui diversas profissões
com estatutos próprios: magistrados judiciais, magistrados do M.P., militares, membros de órgãos
de soberania, membros de cargos públicos e equiparados, etc.

Imaginemos que uma pessoa proibida por lei viola a proibição. De acordo com a lei, não pode exercer esta
actividade; porém, exercendo-a, pode ser qualificado como comerciante? A doutrina aqui divide-se.
Estamos na corrente que diz que sim, que pode ser comerciante quem violar a incompatibilidade: tem
capacidade; faz disso profissão; e, acima de tudo, estes actos não são inválidos nem eficazes. A
incompatibilidade não fere a validade nem a eficácia dos actos praticados: o que surge aqui são sanções,
penalidades pela violação das proibições legais. A lei prevê sanções para a violação das proibições:
destituição, responsabilidade civil, penas disciplinares, etc.

4.2.1 Insolvência e inibição para o exercício do comércio

Em que medida a declaração de insolvência de um devedor terá consequências na possibilidade ou


impossibilidade de aquisição da qualidade de comerciante?

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

! Artigo 1.º do CIRE

O processo de insolvência “é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação
dos credores” (art. 1.º do CIRE, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas). Os credores dispõem
de duas vias para a satisfação dos seus interesses:
• A via da liquidação dos bens integrantes da massa insolvente;
• E a via da recuperação, que passa pela elaboração de um plano de insolvência onde os credores
regulam o modo por que serão satisfeitos os seus interesses.

O art. 1.º do CIRE sofreu uma reforma em 2012, e a nova redacção coloca alguns problemas.

1) A 1ª parte do art. 1.º dá-nos a ideia de que um processo de insolvência terá sempre um plano de
insolvência (quer de recuperação, quer de liquidação), no entanto, esta afirmação geral do art. 1.º vai
ser desmentida pelo resto do Código, designadamente pelas normas aplicáveis ao plano de insolvência.
• Não existe plano de insolvência para as pessoas singulares não empresárias ou titulares de
pequenas empresas, art. 250.º do CIRE. Quanto ao âmbito deste artigo, é necessário ter em conta
que, por um lado, o conceito de pequena empresa é o conceito com o conteúdo identificado no art.
249.º; por outro, embora a epígrafe do capítulo II faça referência aos titulares de pequenas
empresas, o art. 249.º mostra que não é necessário ser titular no sentido de proprietário (fala em
titular da exploração).
• Os sujeitos legitimados para apresentar o plano de insolvência não têm o dever de o fazer (art.
193.º).
• O plano de insolvência começa por ser proposto e é aprovado em assembleia dos credores, logo
podemos não ter plano de insolvência por não ser aprovado (art. 209.º e segs.).
• Quanto à liquidação, esta processa-se nos termos da lei (art. 156.º e segs.), salvo se existir plano de
insolvência (art. 192.º/1).

2) Em relação à 2ª parte do artigo, enquanto que na anterior redacção a via da recuperação e da liquidação
apareciam como vias alternativas, com a reforma de 2012 o plano de recuperação aparece numa posição
privilegiada em relação ao plano de liquidação. A versão anterior era mais liberal e os credores é que
decidiam se havia recuperação ou liquidação.

O teor deste artigo resulta da ideia de que, em ambiente de crise, recuperar tem outras vantagens,
nomeadamente a manutenção de postos de trabalho e diminuição das despesas do Estado com
desempregados. Porém, nada na lei obriga os credores a aprovarem planos de recuperação, ou seja,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

continuam livres de optar pela liquidação, e a mesma coisa se passa em relação ao papel do juiz quando
vai controlar o plano.

Relativamente ao conteúdo do plano de insolvência, pode ser muito variado – a lei não prevê um elenco
taxativo de medidas. Pode ser um plano de recuperação, de liquidação, e ainda um plano misto. É possível,
em relação ao mesmo devedor, ter um plano de liquidação e de recuperação. Note-se que a liquidação
prevista no plano de insolvência pode conter desvios às regras legais do CIRE em matéria de liquidação.

! Âmbito subjectivo do processo de insolvência (art. 2.º do CIRE)

O art. 2.º define o âmbito subjectivo do plano de insolvência, ou seja, quem pode ser sujeito a uma
declaração de insolvência. Podemos agrupar os sujeitos em três grupos:
1. Quaisquer pessoas singulares ou colectivas.
2. Sujeitos de natureza colectiva mas não personalizados, al. c), d), e) e f).
3. Herança jacente, al. b), estabelecimento individual de responsabilidade limitada, al. b) e quaisquer
outros patrimónios autónomos, al. h).

Notas:
• Pese embora a epígrafe use o termo “sujeitos”, as várias alíneas prevêem realidades que não são
sujeitos. O próprio corpo do artigo fala, não em “sujeitos”, mas sim em “objecto” – há aqui alguma
incoerência.
• Os sujeitos passivos da declaração de insolvência não têm de ser comerciantes nem empresários.
Porém, há aspectos do regime da insolvência dependentes da existência ou inexistência de empresa
(ex: art. 18.º/2, 171.º, 233.º e segs., 251.º e segs. e 249.º).

O art. 2.º/2 exclui do âmbito do processo de insolvência várias entidades. Note-se a al. b), que diz que estas
entidades estão excluídas “na medida em que seja incompatível com os regimes especiais previstos para
tais entidades” (é o que sucede, por ex., com as instituições de crédito).

Quando aos sujeitos activos da declaração de insolvência, a insolvência de um determinado devedor pode
ser requerida:
• Desde logo, pelo próprio devedor (em certos casos, tem mesmo o dever de apresentação à
insolvência, art. 18.º, com a excepção do n.º 2).
• O art. 20.º prevê outros legitimados a requerer a apresentação à insolvência: quem for legalmente
responsável pelas dívidas do devedor (ex: sócios, numa ideia de “não deixar crescer a bola de

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neve”); qualquer credor, ainda que condicional (é muito discutido saber se um credor titular de um
crédito litigioso pode ou não requerer); e o Ministério Público.

Há aqui um conjunto de circunstâncias que têm de estar verificadas para estes sujeitos terem legitimidade –
a jurisprudência entende que as várias alíneas do art. 20.º/1 constituem factos indiciários que permitem
presumir uma situação de insolvência. A al. h), por ex., revela a importância do depósito das contas.

! Art. 3.º do CIRE: formas de insolvência

Para que um devedor seja declarado insolvente, tem de estar numa situação de insolvência ou equiparada.
Segundo o art. 3.º/1, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado
de cumprir as suas obrigações vencidas” – (1) insolvência actual. Notas:
• Para se saber se o devedor está numa situação de insolvência ou não, só relevam as obrigações
vencidas; no entanto, a doutrina entende que as obrigações ainda não vencidas podem ser tidas em
conta como elementos de prova acerca da impossibilidade ou possibilidade de cumprir as já
vencidas.
• O n.º 1 também não exige textualmente a totalidade das obrigações vencidas, mas entende-se que
deve ser pelo menos a parte essencial das obrigações.

Assim, é possível um devedor ter passivo superior ao activo mas nem por isso estar em situação de
insolvência, bastando para tal ir obtendo os meios necessários ao cumprimento das suas obrigações.

O art. 3.º, n.º 2, prevê uma segunda forma de insolvência, identificando um conjunto de obrigações em que
(ao contrário da insolvência actual) se faz a comparação entre o passivo e o activo dos devedores. Assim, as
pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda
pessoa e ilimitadamente são consideradas insolventes quando (2) o passivo seja manifestamente superior
ao activo, segundo as normas contabilísticas aplicáveis. Notas:
• Esta forma de insolvência só se aplica, como tal, a certo tipo de devedores – apenas para certas
pessoas colectivas e certos patrimónios autónomos, quando nenhuma pessoa singular responda
pessoal e ilimitadamente pelas suas dívidas. Por ex., na sociedade por quotas a responsabilidade
dos sócios não é uma responsabilidade pela dívida da sociedade, uma vez que é limitada pelo valor
de entrada – é apenas uma responsabilidade perante a sociedade e não perante os seus credores; já
numa sociedade em nome colectivo, podemos ter como sócios pessoas singulares, e estes vão
responder pelas dívidas da sociedade.
• Note-se que o n.º 2 do art. 3.º não diz que se tem de chegar à conclusão segundo o último balanço
aprovado, pode ser um balanço ad hoc – é importante para relacionar o art. 3.º com o art. 20.º. A

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

legitimidade pode-se basear no último balanço aprovado (al. h), logo pode-se fazer um pedido de
declaração de insolvência com base neste plano e, entretanto, a situação alterar-se e o devedor
provar que o activo é manifestamente superior ao passivo.
• Chega-se a este resultando aplicando as normas contabilísticas comuns.

Nos termos do n.º 3 do art. 3.º, pode-se afastar a declaração de insolvência se, na realidade, se conseguir
demonstrar que o activo é superior ao passivo aplicando outros critérios de avaliação que não tenham sido
respeitados de acordo com as normas contabilísticas aplicadas. Nomeadamente, são consideráveis outros
elementos para além dos constantes no balanço, pelo seu justo valor (al. a)). Notas:
• É preciso notar que as normas do n.º 2 vão-se alterando, logo podem fazer aplicar já o n.º 3.
• JOÃO LABAREDA entende que este regime favorece o infractor, pois o sujeito que não incluiu no
balanço um determinado elemento estaria a violar as normas contabilísticas aplicadas. SOVERAL
MARTINS entende que, se o elemento não estava incluído, é porque não devia estar – se as normas
do n.º 2 foram aplicadas, já constavam todos os elementos que tinham de constar. Por outro lado,
só conduzirá a resultados diferentes se, ao abrigo das normas aplicáveis, não se recorra ao justo
valor.

O art. 3.º/4 estabelece que se equipara à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente – (3)
insolvência iminente. Apesar de o preceito não definir a situação de insolvência iminente, entende-se que
existe esta situação quando se antevê como provável que o devedor não terá meios para cumprir a
generalidade das suas obrigações no momento em que se vençam. Note-se que apenas o devedor tem
legitimidade para apresentar o pedido de insolvência com base na insolvência iminente, o que pretende
evitar que os credores coloquem sob pressão um devedor ainda não insolvente. Porém, em certos casos,
credores e outras entidades têm legitimidade para requererem a declaração de insolvência quando há apenas
um risco de insolvência iminente (ex: art. 20.º/1/d) e h)).

Este artigo coloca uma dificuldade, a de saber se a insolvência actual é a do n.º 1 ou também a do n.º 2.

A insolvência iminente não é aquela em que o devedor tenha apenas um receio; mas sim aquela em que um
juízo de prognose permita dizer que o devedor muito provavelmente não estará em condições de cumprir as
suas obrigações vencidas. Há aqui vários aspectos duvidosos:
• Quanto é que podemos dizer que é provável que no futuro o devedor não possa cumprir as suas
obrigações? SOVERAL MARTINS propõe que se recorra a um critério, usado pela doutrina alemã,
que tem em conta o grau de probabilidade de conseguir cumprir as suas obrigações e o grau de
probabilidade que não o consiga fazê-lo. Temos de comparar estes dois graus – a doutrina aqui

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

divide-se, havendo quem exija mais de 50% ou 75%, sendo que SOVERAL MARTINS entende que
apenas tem de ser superior.
• Falámos em obrigações que se vencerão no futuro, mas qual é o lapso temporal que o juízo de
prognose terá em conta? Saber qual é o período de tempo que devemos ter em conta depende de
cada devedor, logo será o julgador a encontrar o período de tempo que ache mais adequado.
• Não há dúvidas que vamos ter em conta as obrigações que já existem. E as que não existem?
SOVERAL MARTINS entende que devemos ter em consideração as obrigações não existentes mas
que se prevê que seja necessário contraí-las no período de tempo considerado.

Numa situação de insolvência iminente, pode-se afirmar um dever de apresentação da declaração de


insolvência (art. 18.º/1)? Este artigo parece dizer que é nos casos do n.º 1 do art. 3.º; apesar isso, no CIRE
comentado (CARVALHO FERNANEDS, JOÃO LABAREDA) defende-se que esta valoração vale também para o
os casos de insolvência iminente. Há uma equiparação para efeitos de afirmação deste dever, sendo que
SOVERAL MARTINS defende o contrário – o n.º 1 afirma ser relevante a situação de insolvência tal como
descrita; e a insegurança em torno do que é a insolvência iminente já justificaria também que a remissão se
considere apenas feita para o n.º 1 do art. 3.º.

! Processo de insolvência

1) Vimos que o processo de insolvência se pode iniciar por um pedido apresentado pelo devedor ou por
um dos sujeitos do art. 20.º, o que terá consequências no andamento processual – o art. 25.º só se aplica
aos outros legitimados; no art. 28.º, é dito que a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o
reconhecimento, por este, da sua situação de insolvência, e essa insolvência é decidida no terceiro dia
seguinte. Note-se que este Código contém várias afirmações contraditórias: nem sempre acontece o
disposto no art. 28.º: o art. 201.º prevê justamente a possibilidade de o devedor apresentar-se à insolvência
com um plano (o art. 255.º diz que, se o devedor pretende que seja aprovado o plano, pode haver uma
suspensão do processo de insolvência). A aprovação do plano está prevista no art. 209.º e segs., e pode
demorar muito mais do que os 3 dias úteis do art. 28.º.

2) Supondo que não há indeferimento liminar do requerimento (feito por outro sujeito que não o devedor),
o natural é o devedor ser citado para se pronunciar (art. 29.º). O art. 12.º, no entanto, vai permitir que,
verificadas certas circunstâncias, a audiência do devedor possa ser dispensada, e mesmo a própria citação.
O n.º 3, porém, diz que o disposto no n.º anterior se aplica ao administrador do devedor, alargando o âmbito
de aplicação às pessoas colectivas.

3) Segue-se a possibilidade de o devedor deduzir oposição, art. 30.º. O n.º 2 diz que o devedor tem de
juntar com a oposição a lista dos seus cinco maiores credores, sob pena de não recebimento da oposição,

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sendo que há jurisprudência que entende que este preceito é inconstitucional. Entende-se que o juiz deve
dar um tempo para aperfeiçoamento da oposição para que seja junta a lista.

E se o devedor não apresentar oposição? O n.º 5 diz que se consideram confessados os factos alegados na
petição inicial.

4) O art. 35.º prevê uma audiência para discussão e julgamento. Se, no decurso do processo, o juiz
concluir que existe uma situação de insolvência, decreta a insolvência – mais uma vez, apenas na hipótese
de o requerimento ter sido apresentado por outra entidade que não o devedor!

5) O art. 36.º refere-se à sentença de declaração de insolvência e sua impugnação, prevendo a


possibilidade de deduzir recurso e embargos. Em matéria de legitimidade para recurso e embargos, e de
notificação da sentença, existem diferenças de regime:
• O art. 44.º, quanto à sentença de indeferimento do pedido de declaração, diz que esta é notificada
apenas ao requerente e devedor (não foi o devedor a apresentar o pedido). Esta solução prende-se
com a salvaguarda da imagem do devedor. Nestes casos, apenas o requerente pode interpor
recurso.
• O art. 40.º/1 diz que apenas o devedor em situação de revelia absoluta pode deduzir embargos, o
que se prende com os fundamentos para que sejam deduzidos embargos – o embargante tem de
alegar factos ou deduzir meios de prova que não tenham sido tidos em conta para o devedor.
• O recurso vem previsto no art. 42.º.

! Efeitos da declaração de insolvência

A declaração de insolvência tem vários efeitos, substantivos e processuais. Destacam-se os seguintes


efeitos:
• O art. 91.º diz que a declaração de insolvência origina o vencimento imediato das obrigações do
devedor, o que permite o chamamento de todos os credores, e facilita ao credor a possibilidade de
vir ao processo reclamar o seu crédito – permitindo uma certa estabilização do passivo.
• O art. 81.º/1 é um artigo importante, que prevê que a declaração de insolvência priva o devedor
dos poderes de administração e disposição dos bens em massa, sendo os poderes transferidos para
o administrador da insolvência. O que sucede se esta transferência não for respeitada e o
insolvente dispor de um objecto da massa? O n.º 6 diz que são ineficazes os actos do insolvente, a
não ser que se verifique a excepção, para a qual se prevê requisitos cumulativos das alíneas a) e b).
Esta ineficácia não é apenas em relação à massa insolvente, logo são ineficazes de forma absoluta,
também entre as partes.

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! Incidente de qualificação de insolvência

“Na sentença de declaração de insolvência ou em momento posterior pode o juiz declarar aberto o
incidente de qualificação da insolvência (arts. 36.º/1/i) e 188.º/1, 36.º/4), a fim de apurar se ela é culposa
ou fortuita”. Para além disto, num momento posterior à sentença, SOVERAL MARTINS entende que o art.
188.º não impede o juiz de, oficiosamente, declarar aberto o incidente se entretanto o processo tiver
elementos para o fazer. Se, num momento ainda prematuro (a sentença), o juiz já pode abrir o incidente,
por maioria de razão, se todos os elementos do processo formarem uma opinião ainda mais forte, o juiz
também o pode fazer.

Neste incidente, o juiz decide se a insolvência é culposa ou não, sendo que segundo o art. 186.º/1 a
insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada, com dolo ou culpa grave, pelo
devedor ou seus administradores nos três anos anteriores.

Se o juiz não abre o incidente, é necessário ter em atenção o regime do encerramento do processo de
insolvência, art. 230.º e segs. Quais os efeitos do encerramento? O art. 233.º/6 diz que a insolvência vai ser
qualificada como fortuita.

Se a insolvência é qualificada como culposa, isso vai ter efeitos muito significativos, art. 189.º. O juiz
deve, desde logo, identificar as pessoas afectadas pela qualificação, al. a). Interessa-nos a al. c) do n.º 2
do art. 189.º: o juiz deve declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um
período de 2 a 10 anos.

Assim, se um sujeito foi declarado insolvente, e se foi aberto o incidente e nesse incidente a insolvência foi
considerada culposa, segue daí a inibição para o exercício do comércio. A al. a) diz que o juiz deve
identificar as pessoas afectadas pela qualificação, sendo que não é necessariamente apenas o devedor,
pode ser também os seus administrados, ROC, TOC, etc. Todos estes sujeitos podem ser abrangidos pela
qualificação da insolvência como culposa e afectados por essa qualificação, ficando assim inibidas para o
exercício do comércio.

Se estas pessoas praticarem actos de comércio no período de inibição, terão a qualidade de comerciante?
A leitura que parece preferível é a de que, se a inibição existe para defender os credores (as pessoas
afectadas pela qualificação representam um risco para o comércio e para o crédito associado ao
comércio), faz sentido não adquirir a qualidade de comerciante.

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O art. 186.º diz que, para qualificar a insolvência como culposa, se deve atender ao devedor e aos seus
administradores. Porém, o art. 189.º permite abranger outras pessoas por esta qualificação. A questão que
se coloca é: devemos ler o art. 186.º à luz do art. 189.º? COUTINHO DE ABREU entende que sim; SOVERAL
MARTINS discorda. Compreendem-se as hipóteses do art. 186.º: se for o devedor a actuar com culpa grave
ou com dolo, a sua insolvência deve ser qualificada como culposa; o mesmo se dizendo para a actuação dos
administradores. Porém, no caso do TOC, ROC, ou outros sujeitos, não se compreende que a sua actuação
acarrete a qualificação da insolvência do devedor como culposa. Mas se o TOC ou ROC excederem o
âmbito normal da sua actuação e passarem a ser administradores de facto, já se aplica o art. 186.º e não há
necessidade de o ler à luz do art. 189.º.

5. Algumas figuras de qualificação duvidosa

5.1 Mandatários com poderes de representação

O mandato comercial está previsto no art. 231.º e segs., traduzindo-se num contrato no qual o mandatário
pratica um ou mais actos de comerciais em nome do mandante. Tendo poderes de representação, os efeitos
desse acto vão produzir-se na esfera jurídica do representado (art. 258.º do CCiv.). A doutrina, quase
unanimemente, entende não serem comerciantes os mandatários:
• Do ponto de vista dos efeitos jurídicos, é o mandante quem pratica os actos, sendo comerciante se
o faz de forma profissional.
• O mandato comercial não é um comércio para efeitos do art. 13.º, sendo “comercial” uma vez que
o mandatário é encarregado de praticar actos de comércio.

5.2 Gerentes de comércio, auxiliares e caixeiros de comerciantes

O art. 248.º e segs. refere-se aos gerentes, auxiliares e caixeiros de comerciantes. Apesar de estes serem
qualificados pelo CCom. como mandatários comerciais com representação, esta qualificação é hoje
insubsistente, assentando na velha ideia de que os poderes de representação voluntária tinham de assentar
num contrato de mandato. Hoje em dia, os gerentes, auxiliares e caixeiros são em regra trabalhadores
dependentes, advindo os poderes de representação do contrato de trabalho. Exercem actividade mercantil
em nome da empresa (art. 248.º e 250.º, 1ª parte), logo não são comerciantes por faltar o requisito de
actuação em nome próprio.

Sendo trabalhadores subordinados, não são os gerentes, auxiliares e caixeiros comerciantes.

5.3 Comissários comerciais

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É necessário distinguir o mandato com poderes de representação da comissão (art. 266.º e segs.) – segundo
o art. 266.º, dá-se contrato de comissão quando o mandatário executa o mandato mercantil sem menção ao
mandante. Assim, o contrato de comissão mercantil é um contrato de mandato mercantil sem
representação: é o comissário quem, em seu próprio nome, pratica os actos e se responsabiliza directamente
perante os terceiros com quem contrata. O comissário terá depois de praticar os actos necessários para
transferir os efeitos jurídicos para a esfera do comitente. O comissário mercantil também não adquire a
qualidade de comerciante, uma vez que apenas é comerciante quem exerce o comércio em nome e por
conta própria.

5.4 Corretores de bolsa

Esta questão está hoje ultrapassada, uma vez que os corretores de bolsa individuais já não existem. Hoje,
são sociedades que desenvolvem esta actividade, que são sociedades comerciais – têm objecto comercial,
estando previsto no CVM, que é uma lei substitutiva das normas do CCom. relativas às operações de bolsa
(segunda forma de manifestação da comercialidade objectiva).

5.5 Agentes comerciais e mediadores

Tanto os mediadores como os agentes comerciais são comerciantes na medida em que desenvolvem
actividades de interposição nas trocas. Os mediadores são sujeitos que estabelecem a ligação entre vários
outros sujeitos, promovendo a celebração de negócios entre eles; já os agentes comerciais promovem por
conta de outrem a celebração de contratos de modo autónomo e estável, mediante retribuição. Uma
corrente doutrinal defende que estes sujeitos só são comerciantes quando exploram uma empresa comercial
do tipo das previstas no art. 230.º, n.º 3º; porém, para COUTINHO DE ABREU, estes sujeitos são sempre
comerciantes uma vez que desenvolvem uma actividade de interposição de trocas.

5.6 Farmacêuticos

No século XIX, os farmacêuticos desempenhavam prevalecentemente a função de preparação dos


medicamentos que vendia ao público, sendo assim um profissional liberal não comerciante. Hoje, os
farmacêuticos desenvolvem uma actividade de revenda de coisas móveis que compraram para esse fim
(compras e vendas comerciais, art. 463.º/1º e 3º), logo são comerciantes. Se explorarem laboratórios
industriais de produtos farmacêuticos, é determinante a actividade industrial-transformadora e empresarial
(art. 230.º, n.º 1º).

5.7 Sócios de responsabilidade ilimitada

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

É consensual o entendimento de que os sócios das sociedades anónimas por quotas e anónimas não são
comerciantes – comerciantes são as próprias sociedades, que, através dos órgãos respectivos, exercem o
comércio (art. 13.º, n.º 2º).

Já quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada, não se verifica o mesmo consenso – segundo certos
autores, estes seriam comerciantes. COUTINHO DE ABREU critica esta posição, que assentaria em
pressupostos erróneos:
• Em primeiro lugar, numa confusão entre o património social e o de cada um dos sócios. Não se
confunde o património das sociedades em nome colectivo e em comandita com o dos sócios de
responsabilidade ilimitada: a responsabilidade dos sócios é subsidiária e as sociedades constituem
sujeitos distintos.
• Tradicional regra segundo a qual a declaração de falência das sociedades em nome colectivo e em
comandita envolve a dos sócios de responsabilidade ilimitada. No actual regime, a falência
estende-se indistintamente aos comerciantes e não comerciantes.

Para além disto, o art. 5.º do CSC reconhece personalidade jurídica a todas as sociedades comerciais. Isto
não era totalmente claro na vigência do CCom., pelo que surgia a dúvida de saber que um sócio de uma
sociedade com responsabilidade ilimitada era ou não comerciante. Hoje, a dúvida já não tem razão de ser
uma vez que, pelo art. 5.º do CSC, as sociedades são entidades autónomas que praticam os actos comerciais
através dos seus órgãos de representação.

Em suma, comerciantes são as sociedades, e não os sócios.

5.8 Sociedades comerciais sem personalidade jurídica

As sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica a partir da data do registo definitivo: antes desse
registo, as sociedades não têm personalidade jurídica (sociedades irregulares). A questão que se coloca é se
as sociedades comerciais sem personalidade jurídica podem ou não ser consideradas comerciantes.

A doutrina maioritária considera que as sociedades irregulares não são comerciantes. Este problema diz
desde logo respeito à interpretação do art. 5.º do CSC, que estabelece que as sociedades “existem como
tais” depois da data do registo definitivo. Isto não significa que existam com personalidade jurídica, mas
sim como sociedades comerciais. Como tal, na opinião de SOVERAL MARTINS, o legislador quis usar o art.
5.º como estímulo para que as sociedades comerciais terminassem o seu processo, e não se aplica antes da
constituição o art. 13.º/2.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

COUTINHO DE ABREU discorda, afirmando que as sociedades comerciais sem personalidade jurídica podem
ser comerciantes, adquirindo esta qualidade com a prática do ou dos actos reveladores do propósito de se
dedicarem ao exercício habitual de uma actividade mercantil.

6. Estatuto dos comerciantes

O art. 18.º enumera uma série de obrigações dos comerciantes.

6.1 Firmas e denominações

6.1.1 Noção

Todos os comerciantes devem adoptar firma ou denominação, art. 18.º/1. Hoje em dia, nesta parte o art.
18.º tem de ser lido com alguma cautela, na medida em que hoje o regime das firmas consta essencialmente
do RRNPC. Tradicionalmente, definia-se firma como “o nome comercial dos comerciantes, o sinal que os
individualiza ou identifica”. Porém, esta noção é insuficiente, uma vez que o RRNPC estabelece que:
• Há não comerciantes que têm firma – ver art. 37.º, para as sociedades civis sob forma comercial; e
art. 39.º, para os empresários em nome individual que desenvolvem uma actividade económica não
comercial.
• Há comerciantes que têm, não uma firma, mas uma denominação (ex: cooperativas, art. 12.º/1/c),
13.º/a) e 14.º do CCoop.).

A regra que importa destacar é a de que cada comerciante em nome individual só pode adoptar uma firma
– princípio da unidade de firma. Em relação às pessoas singulares, este princípio vai sofrer uma excepção
relativa ao art. 40.º: um comerciante em nome individual pode simultaneamente desenvolver uma
actividade comercial através do e.i.r.l., adoptando para tal uma firma; e outra actividade fora da actividade
do e.i.r.l., adoptando para tal outra firma.

6.1.2 Composição

1) Firma dos comerciantes individuais:


• Tem de ser composta pelo seu nome (art 38.º/1 e 3 do RRNPC).
• O nome pode ser antecedido de expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos,
profissionais a que o comerciante tenha direito (art. 38.º/3).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• O comerciante pode ainda aditar ao nome alcunha ou expressão alusiva à actividade exercida (art.
38.º/1).
• O n.º 3 deste artigo, parte final, diz que o comerciante não pode abreviar o seu nome de forma a
que fique uma só palavra, a não ser que haja outros elementos que o tornem individualizador.
• Tratando-se de titular de um e.i.r.l., ver art. 40.º/1 e 2.

2) Firma das sociedades comerciais: relativamente às firmas de sociedades comerciais, temos de recorrer
ao CSC, que tem de ser lido em articulação com o RRNPC.

O art. 10.º do CSC estabelece os requisitos das firmas. Há aqui alguns aspectos que importa referir, e que
afectam a composição da firma e o princípio da novidade ou exclusividade. O n.º 2 parece estabelecer
requisitos adicionais no caso das firmas das sociedades que sejam nomes. Este requisito deve ser
interpretado em conformidade com o regime do RRNPC.

! Quanto à firma das sociedades em nome colectivo:


• Deve identificar pelo menos um dos sócios, mesmo que não identifique todos, com o aditamento
de algum elemento que permita identificar a existência de outros (art. 177.º/1 do CSC). Isto
porque, nestas sociedades, os sócios vão responder pelas dívidas, e para os credores é útil que os
devedores sejam facilmente identificáveis.
• Outro problema que se coloca em relação às sociedades colectivas é o de saber se se poderá fazer
constar uma referência à actividade que constitui o seu objecto social. COUTINHO DE ABREU
defende que sim, por analogia com o art. 38.º/1; já SOVERAL MARTINS entende que não é
necessário recorrer à analogia, defendendo o caminho da interpretação a contrario do art. 10.º/4. A
firma das sociedades não pode ser composta exclusivamente por vocábulos que permitam
identificar a actividade, logo, a contrario, é possível compor a firma da sociedade também com
esses elementos (o objecto social é a actividade). Uma outra posição defendida é a analogia do art.
42.º/1, parte final; porém, agora diz respeito às sociedades civis.

! Quanto à firma das sociedades por quotas e sociedades anónimas:


• Devem ser formadas pelo nome, por uma denominação particular ou pela reunião de ambos esses
elementos (art. 200.º/1 e 275.º/1 do CSC).
• No caso da firma das sociedades por quotas, esta tem de ter o aditamento “Limitada” ou “L.da”
(art. 200.º/1); no caso das sociedades anónimas, “Sociedade Anónima” ou “S.A.” (art. 275.º/1).
• Durante muito tempo, a denominação particular integrante de firma de sociedades por quotas ou
anónimas tinha de aludir ao objecto social, o que estava previsto no art. 10.º/3, parte final. Esta

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parte final foi eliminada pelo art. 17.º do DL 111/2005, que permite que se opte por firma
constituída por expressão de fantasia previamente criada e reservada a favor do Estado.

! Quanto à firma das sociedades em comandita, também vamos encontrar normas específicas, art. 467.º e
segs.
• Mais uma vez, vamos encontrar a necessidade de a firma conter o nome ou firma de um dos
sócios comanditados, que respondem pelas dívidas da sociedade. Para os credores e terceiros em
geral, interessa saber o nome de pelo menos um dos sócios.
• O n.º 3 do art. 467.º estende a responsabilidade aos sujeitos que deixem que o seu nome ou firma
constem da firma, salvo nos casos em que não se justifique um regime tão pesado. Normalmente,
estes sujeitos deixam que o nome conste para reforçar o crédito que a sociedade consiga obter.
• A firma das sociedades em comandita pode ainda integrar expressões alusivas ao objecto social.

Um aspecto importante do regime das firmas das sociedades comerciais é o que resulta do art. 32.º/5:
quando deixe de ser associado o sócio cujo nome conste na firma, deve tal firma ou denominação ser
alterada no prazo de 1 ano. Durante aquele ano, continua a ser lícito utilizar a firma com o nome ou firma
do sócio que saiu; a não ser que o sócio ou herdeiros consintam na utilização – direito ao nome. Se não der
o consentimento, a sociedade tem de alterar o acto constitutivo, onde consta a firma. O que se pretende é
garantir que os terceiros não sejam de alguma forma enganados por constar da firma o nome ou firma de
um sócio que já não faz parte. Se não houver alteração, O RNPC deve declarar a perda do direito ao uso da
firma nos termos do art. 60.º/1; e ainda declaração de nulidade por violação da norma imperativa do art.
32.º/5.

6.1.3 Princípios relativos à composição das firmas

1) Princípio da unidade

Segundo este princípio, cada comerciante em nome individual só pode adoptar uma firma, com a
excepção prevista para o e.i.r.l. (art. 40.º do RRNPC).

Há quem defenda, por ex., que o comerciante deve ter uma firma para cada estabelecimento que explora. O
art. 44.º/4 do RRNPC mostra qual poderia ser a utilidade deste regime: a firma é transmissível; porém, é
proibida a transmissão de uma firma sem o estabelecimento a que se acha ligada. Como vale entre nós o
princípio da unidade da firma, quem queira transmitir o estabelecimento tem de adoptar uma nova firma, o
que implica todo um novo esforço a nível do marketing. O princípio da unidade acarreta, como tal, várias

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dificuldades. O art. 44.º/2 possibilita a transmissão de firma de sociedade comercial, porém é necessária a
autorização do sócio.

2) Princípio da verdade

Está previsto no art. 32.º/1 do RRNPC, e diz-nos que os elementos componentes das firmas e
denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a identificação, natureza ou actividade
do seu titular. Uma firma ou denominação não precisa de utilizar apenas vocábulos que correspondam à
verdade, pode utilizar expressões de fantasia, mas não pode é induzir em erro sobre a sua natureza (por
ex. uma sociedade comercial não pode conter na sua firma a expressão “associação” ou “fundação”) ou
actividade (uma sociedade de comércio de automóveis não pode dizer que se dedica ao comércio de
electrodomésticos).

COUTINHO DE ABREU enuncia as seguintes manifestações deste princípio:


• A firma dos comerciantes individuais deve conter o nome deles e não de outrem, e a firma das
sociedades deve conter o nome dos sócios e não o de estranhos.
• As firmas não podem conter expressões que induzam em erro quanto à caracterização jurídica dos
respectivos titulares.
• Não podem incluir elementos que sugiram actividades diversas das que os respectivos titulares
exercem.
• Quando deixe de ser associado sócio cujo nome figure na firma, deve tal firma ser alterada. A
alteração da firma nestes casos é também requerida pela tutela do direito ao nome das pessoas.

O art. 32.º/4, als. b), c) e d) não estão propriamente ligadas ao princípio da verdade.

3) Princípio da novidade ou exclusividade

Este princípio está previsto no art. 33.º/1 do RRNPC, e diz-nos que as firmas não podem ser iguais ou
susceptíveis de erro ou confusão, no mesmo âmbito territorial de exclusividade. Existem três
possibilidades de erros:
• Tomar-se uma firma por outra;
• Tomar-se um comerciante por outro;
• Ou pensar-se erradamente que aquelas duas entidades têm especial relações.

O exemplo de escola é a existência de relações de grupos: pode alguém aceitar comprar obrigações
pensando que aquela sociedade está integrada num determinado grupo de sociedades.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Assim, se alguém obtém o registo da sua firma, tem o direito ao uso exclusivo da firma. Notas:
• Este princípio não se aplica ao comerciante em nome individual que só adoptou como firma o
seu nome (art. 38.º/4 e art. 33.º). Só têm direito aqueles que adoptem um sinal que contenha mais
do que o nome.
• Os comerciantes individuais têm direito ao uso exclusivo das suas firmas apenas no concelho onde
se encontre o estabelecimento principal (art. 38.º/4); enquanto que as sociedades comerciais têm
direito em todo o território (art. 37.º/2).

! O art. 10.º/2 do CSC diz que, quando a firma das sociedades for constituída exclusivamente por nomes
ou firmas de todos ou alguns sócios, deve ser completamente distinta das que já se acharem registadas.
Este regime não exige que as firmas não tenham um único elemento comum; o que exige é que, ainda que
tenham elementos em comum, estas firmas não sejam susceptíveis de induzir em erro ou confusão. Este
artigo deve ser lido do ponto de vista de um legislador razoável (se levássemos este artigo à letra, as firmas
não poderiam ter sequer letras em comum); e deve ser lido à luz do art. 33.º, na medida em que o que
interessa é a susceptibilidade de induzir em erro ou confusão o público médio.

! Mas qual é o critério para saber se as firmas são confundíveis ou induzem em erro? “Dizemos que uma
firma não é nova em relação a outra quando, atendendo à grafia das palavras, ao efeito fonético das
expressões, ao núcleo caracterizante ou à forma oficiosa dos signos, o público médio as não consegue
distinguir ... ou crê erroneamente referirem-se a comerciantes distintos mas especialmente relacionados”.

! Este princípio vale apenas no âmbito de actividades concorrentes, ou vale também fora desse âmbito
(perante comerciantes que adoptem actividades não concorrentes)? No âmbito de actividades concorrentes,
não há dúvida: aplica-se. E no âmbito de actividades não concorrentes? Parece razoável dizer que sim,
existindo fortes argumentos a favor desta tese:
• Ainda que sejam actividades completamente distintas, continua a ser possível o risco de confusão
ou erro, nomeadamente naquela terceira vertente (relações especiais entre os comerciantes em
causa).
• Existe ainda um risco associável ao seu bom nome, se o comerciante que regista em segundo lugar
a firma for declarado insolvente.
• Também o n.º 2 do art. 33.º diz que a proximidade é um dos critérios, não o único, para ponderar
da susceptibilidade de confusão.

Isto sobretudo quando se trate de firmas oficiosas muito conhecidas (SIC, SONAE, etc.).

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4) Princípio da capacidade distintiva

As firmas e as denominações devem ter uma capacidade diferenciadora, permitindo identificar o seu titular.
O art. 33.º/3 diz respeito, já não ao princípio da novidade mas sim ao princípio da capacidade distintiva.
Isto está relacionado com a função diferenciadora, mas também está relacionado com outro aspecto
importante, não mencionado nas Lições – trata-se de impedir um monopólio injustificado sobre estes sinais,
garantindo que não se procure obter um monopólio sobre sinais sem qualquer justificação objectiva. Para a
economia em geral, isto seria prejudicial.

5) Princípio da licitude

Este princípio é um princípio residual, na medida em que o que não for proibido pelos outros princípios
poderá ser proibido por este – ver art. art. 32.º/4, als. c), d) e e).

6.1.4 Alteração de firmas e denominações

Respeitados os princípios acima enunciados, os comerciantes podem alterar livremente as firmas ou


denominações (art. 56.º/1, a) a f) do RRNPC). Há casos em que os comerciantes têm de alterar,
nomeadamente:
• Quando o comerciante individual muda de nome (art. 38.º/1 do RRNPC).
• Quando deixa de ser associado ou sócio pessoa cujo nome figure na firma e não há o exigido
consentimento (art. 32.º/5 do RRNPC).
• A aquisição de firma implica alteração da firma originária (art. 44.º/1 e 4 do RRNPC).
• Alterando-se o objecto estatutário, pode ter de alterar-se a firma ou denominação (art. 54.º/2 do
RRNPC e 200.º/3 e 275.º/3 do CSC).

6.15 Transmissão

A firma pode ter considerável valor económico; porém, a livre transmissibilidade das firmas sem a
transmissão das empresas daria azo a enganos no público. Assim, a transmissão da firma entre vivos
obedece aos seguintes requisitos:
• Em primeiro lugar, tem de fazer-se com o estabelecimento comercial a que esteja ligada (art.
44.º/4 do RRNPC). A transmissão pode ser feita por qualquer título – por ex., negócio de
transmissão definitiva ou temporária.

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• É necessário o acordo das partes, por escrito. Quando o transmitente seja uma sociedade, cuja firma
contenha nome de sócio, é ainda indispensável a autorização do titular do nome (art. 44.º/2 do
RRNPC).
• Finalmente, o adquirente deve aditar à sua própria firma a menção da sucessão e a firma adquirida
(art. 38.º/2 do RRNPC).

Para SOVERAL MARTINS, podem autonomizar-se duas questões: uma é a aquisição da firma; outra é a
possibilidade de o adquirente utilizar a firma. O art. 44.º/1 diz que o adquirente pode adquirir a firma mas
não a poder utilizar – para tal, é necessária autorização. É necessária a transmissão e a autorização para
utilizar a firma. O regime do n.º 2 do art. 44.º refere-se igualmente à autorização.

No caso de aquisição mortis causa (n.º 3), o adquirente pode aditar a menção de haver sucedido noutra
firma.

Apesar de o art. 44.º se referir apenas à transmissão de firma, aplica-se também à transmissão de
denominação.

6.1.6 Tutela do direito à firma ou denominação

A tutela do direito à firma ou denominação é feita através de meios preventivos e repressivos. Quanto à
tutela preventiva, destacam-se os certificados de admissibilidade de firmas e denominações, emitidos pelo
Registo Nacional das Pessoas Colectivas (art. 1.º, 45.º e segs. e 78.º/1 do RRNPC). Estes certificados são
emitidos com base no “ficheiro central de pessoas colectivas”, art. 2.º do RRNPC, que nos dá informações
sobre as firmas que podem ser adoptadas ou não. Também encontramos informações sobre comerciantes
individuais, art. 4.º/1/g). Os certificados de admissibilidade são necessários para a constituição da
sociedade (é nulo o acto sem certificado, art. 55.º/1/b) do RRNPC); sendo também exigido para o registo.

Os processo de constituição de sociedades por quotas e anónimas têm regimes jurídicos específicos, que
prevê a existência de base de dados de firmas. Esta é, na verdade, uma base de dados de expressões de
fantasias que estão reservadas para o Estado. Isto evita esperar pela emissão de certificados e a constituição
de uma sociedade torna-se mais célere.

Em relação à tutela repressiva, quando haja violação do direito à firma, o titular da firma pode reagir.
• É possível intentar acções judiciais que levem eventualmente à revogação do registo.

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• O art. 60.º do RRNPC também prevê a competência do RNPC para declarar a perda do direito ao
uso de firmas e denominações quando os princípios do art. 32.º e 33.º sejam violados. Não é
necessário esperar por uma sentença transitada em julgado.
• O art. 62.º do RRNPC confere aos interessados o direito de exigir a proibição da utilização da
firma, bem como uma indemnização.

Em certas circunstâncias, é admissível a protecção de firmas ainda não registadas – um sujeito que usa uma
firma não registada e vê outro sujeito a usar a mesma firma, não registada, pode reagir (art. 317.º do CPI,
concorrência desleal).

Outra via é a fornecida pela Convenção da União de Paris. O art 8.º diz que o nome comercial será
protegido em todos os países da União de Paris, sem obrigação de registo. Isto gera confusão: há
pressupostos para esta protecção ser possível. Colocam-se várias questões: é necessário que a firma tenha
sido constituída validamente noutro país da União? Parece que sim. Para merecer a tutela em Portugal, tem
de ser utilizada em Portugal ou ser notoriamente conhecida? Há jurisprudência e doutrina significativas
nesta matéria. Um caso muito conhecido foi o do El Corte Inglés, quando ainda não tinha actividade em
Portugal – este merecia a tutela do art. 8.º em Portugal, não estando cá registado? Deve entender-se que
sim.

6.1.7 Extinção do direito à firma ou denominação

Se a actividade comercial cessa porque o comerciante falece, extingue-se a firma no caso de ele não ter
deixado estabelecimento comercial. Se tiver deixado empresa mercantil, colocam-se três hipóteses:
• O estabelecimento comercial é transmitido, mas sem a firma – esta extingue-se.
• O estabelecimento comercial é transmitido com a firma – extingue-se na medida em que se integra
na firma do adquirente (art. 44.º/3 do RRNPC).
• Não é transmitido o estabelecimento comercial, que é liquidado – a firma extingue-se.

Se a actividade do comerciante cessa porque este assim o quis, temos novamente várias hipóteses:
• O comerciante transmite o estabelecimento comercial com a firma – esta extingue-se porque é
incorporada numa nova.
• O comerciante transmite o estabelecimento comercial sem a firma – esta perdura, a não ser que o
RNPC declare a sua perda nos termos do art. 61.º, n.º 1/b) e a), 2 do RRNPC.

Quanto a sociedades comerciais ou outras entidades colectivas:

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• Cessando a sua actividade sem que as sociedades se extingam, as respectivas firmas extinguem-se
quando se transmitam os estabelecimentos.
• Caso a transmissão não se dê, os sinais podem perdurar.
• Se os sujeitos se extinguem, extinguem-se também as firmas e denominações.

6.1.8 Natureza jurídica do direito à firma

Há uma teoria que considera que é um direito de personalidade, o que não faz sentido, desde logo por ser
transmissível. A leitura que parece ser aceitável, numa concepção moderna dos direitos reais, é a de
considerar a firma um bem incorpóreo e admitir o direito de propriedade sobre este bem.

6.2 Obrigação de escrituração mercantil

A escrituração mercantil consiste no “registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos


relativos à actividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação dele e de outros sujeitos”. É
preciso ter em conta que a escrituração não se confunde com os livros de contabilidade: basta referir o livro
de actas, que são livros de escrituração mas não livros de contabilidades.

Antes de 2006, o CCom. prescrevia a obrigatoriedade de quatro livros de escrituração; com o DL 76-
A/2006, nos termos do art. 30.º o comerciante pode escolher o modo de organização da escrituração
mercantil, bem como o seu suporte físico. Assim, o art. 30.º do CCom. consagra, como regra geral, o
princípio da liberdade de organização da escrituração mercantil. Contudo, embora o art. 30.º diga que se
pode escolher o modo de escrituração, é necessário ter em conta as exigências que resultam da legislação
fiscal, directa ou indirectamente. Ou seja, esta liberdade é limitada.

O Dl 76-A/2006 também veio alterar o art. 41.º, que estabelecia o carácter secreto dos livros de
escrituração. A afirmação crescente das necessidades de informação tem vindo a acentuar o carácter não
secreto da escrituração mercantil, e o art. 41.º hoje prevê a possibilidade de autoridades analisarem se o
comerciante organiza ou não devidamente a sua escrituração mercantil.

O art. 44.º estabelece um regime especial quanto à força probatória dos livros de escrituração mercantil.

6.3 Obrigação de dar balanço e prestar contas

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A obrigação de prestar contas e dar balanço está prevista para os comerciantes em geral no art. 18.º/4. O
balanço é o documento onde se compara o activo com o passivo para relevar o valor do capital próprio ou
situação líquida, e é um dos principais documentos de prestação de contas. Apesar de o art. 18.º e 62.º
preverem esta obrigação, nem todos os comerciantes têm o dever de prestar anualmente contas – é o caso
dos comerciantes individuais (art. 10.º do DL 158/2009).

A obrigação de prestar contas encontra-se regulada com grande desenvolvimento para as sociedades
comerciais.

6.4 Obrigação de inscrição no registo comercial

A obrigação de inscrição no registo comercial está prevista no art. 18.º, nº 3º, e é regulada essencialmente
pelo Código do Registo Comercial.

O art. 168.º é um artigo muito importante, assim como as normas referentes ao registo de actos que
incidam sobre quotas de sociedades por quotas.

O art. 1.º do CRCom. diz que o registo comercial se destina a dar publicidade a certos factos respeitantes a
determinado sujeitos, tendo em vista a segurança do comércio jurídico. Os factos e entidades sujeitos a
registo são os previstos na lei (art. 1.º a 10.º do CRCom.). Depois da reforma de 2006 (DL 76-A/2006), há
duas formas de registo: o registo por transição e o registo por depósito. O art. 47.º do CRCom. diz que a
validade do pedido do registo a efectuar por transição deve ser apreciada – assim, o princípio da legalidade
só diz respeito a este registo, e não ao por depósito, o que levanta problemas sérios na prática.

O CRCom. prevê ainda casos em que o registo é obrigatório e não obrigatório, art. 15.º. Não encontramos
menção aos factos que estão identificados no art. 2.º, que é o que trata dos comerciantes individuais (o art.
18.º diz que os comerciantes individuais estão obrigados a inscrever no registo, porém o art. 2.º remete para
o art. 15.º que não fala dos comerciantes individuais).

6.4.1 Princípios

O registo comercial está sujeito aos seguintes princípios:


• Princípio da legalidade: como vimos, está previsto no art. 47.º do CRCom e vale apenas para o
registo por transcrição.
• Princípio da instância: o registo efectua-se, em regra, a pedido dos interessados.

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• Princípio da tipicidade: o que é registável é aquilo que a lei prevê como tal.
• Princípio da publicidade: qualquer pessoa pode pedir certidões dos actos de registo e dos
documentos arquivados, bem como pedir informações sobre o seu conteúdo (art. 73.º/1 do
CRCom.).

6.4.2 Efeitos

Efeitos do registo:
• Presunção segundo a qual o que está registado corresponde à realidade: o art. 11.º do CRCom.
diz que o registo por transcrição consiste presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos
termos em que é definida. Não vale para todos os registos, apenas para o por transcrição, na medida
em que apenas este faz funcionar o princípio da legalidade.
• Efeito central de condição de eficácia em relação a terceiros: está previsto no art. 14.º, que em
relação às sociedades comerciais tem de ser lido com o art. 68.º do CSC. Existem diferenças
relativamente a actos sujeitos a registos e publicação, sendo que a sociedade pode invocar a seu
favor um acto ainda não publicado mas registado. O registo só é verdadeiramente eficaz se basta o
registo, se se exige ainda a publicação o registo não tem este efeito só por si.
• Efeito sanante (não mencionado nas lições), art. 42.º CSC: relaciona-se com o acto constitutivo,
que pode sofrer de causas de invalidade. O art. 42.º vem dizer que, para as sociedades por quotas,
anónimas e em comandita por acções, depois de efectuado o registo definitivo, o contrato só pode
se declarado nulo por algum dos vícios previstos. Ou seja, com o registo, o acto só pode ser
declarado nulo por algum dos referidos nulos. Entende-se que também estão afectadas as causas de
anulabilidade. Assim, o registo sana:
o Causas de nulidade não previstas.
o Causas de anulabilidade.

Responsabilidade pelas dívidas dos cônjuges comerciantes

O CCiv. (art. 1691.º/1/d)) diz que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, quando casados sob o
regime da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens, as dívidas contraídas por cada um deles no
exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas as dívidas no proveito comum. Por
estas dívidas respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou suficiência destes, solidariamente os bens
próprios dos cônjuges.

Este é um regime que tutela os interesses do comércio, porque os credores daqueles que exercem o
comércio não têm de provar que as dívidas foram contraídas no proveito comum do casal (não têm de ir

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para a alínea c)). Por outro lado, a garantia patrimonial dos credores aumenta, uma vez que mais bens
respondem pelas dívidas. Isto promove a actividade mercantil, uma vez que os comerciantes negoceiam
com mais confiança.

O cônjuges podem sempre demonstrar que esta dívida, esta responsabilidade, não foi contraída para
benefício do casal (proveito comum); porém, esta é um prova difícil. Só em circunstâncias residuais é que
esta prova pode ser feita: o mais provável é que o exercício do comércio e a contracção de dívidas visem o
proveito da família em que está integrado o cônjuge comerciante autor da dívida. O proveito do casal é um
proveito não só económico, mas de qualquer outra ordem (por ex., intelectual); e afere-se tendo em conta o
resultado (satisfação das necessidades familiares).

Decorre do art. 1691.º/d) que os credores, para irem buscar a garantia patrimonial conjunta, teriam de
provar que as dívidas foram contraídas no exercício do comércio. Porém, isto não tem de ser assim – este
artigo tem de ser articulado com o art. 15.º do CCom., que diz que as dívidas comerciais do cônjuge
comerciante presumem-se contraídas no exercício do comércio, ou seja, temos uma presunção de uma
dívida ser contraída no exercício do comércio. Esta presunção permite preencher o art. 1691.º/1/d) do CCiv.
O credor não tem de provar que a dívida resultou do exercício do comércio concreto daquele cônjuge,
desde que prove que:
1. A dívida resulte de um acto de comércio.
2. O cônjuge é comerciante.

Com isto está a reforçar-se ainda mais a tutela dos credores, uma vez que esta é uma prova mais fácil – é
mais fácil provar que um acto é comercial do que provar que esse acto foi praticado no exercício do
comércio do seu autor. Por ex., esta presunção do art. 15.º é aplicável a dívidas cambiárias (resultantes da
subscrição de letras e livranças), que são actos de comércio objectivos e formais – não há conexão
necessária destes actos com o exercício do comércio. Podemos ter uma dívida comercial que não está
relacionada com o exercício do comércio, mas ainda assim preencher a presunção e fazer aplicar o art.
1691.º.

Significa isto que o cônjuge não pode depois obstar à presunção? Pode: esta é uma presunção ilidível,
provando que a dívida, apesar de comercial, não foi contraída no exercício do comércio do comerciante
devedor (exploração empresarial daquele cônjuge comerciante). Ao afastar a presunção, fica afastada a
aplicação do art. 1691º/1/d) e transforma a dívida numa dívida própria.

Juros moratórios comerciais

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Para que se aplique o regime dos juros comerciais, o art. 102.º, corpo, estabelece o requisito de se (1) tratar
de uma dívida comercial (proveniente de acto de comércio). Tratando-se de dívida comercial, o primeiro
cenário é dado pelo parágrafo 3º e 4º; o segundo pelo parágrafo 3º e 5º. Em ambos os casos, (2) o credor é
uma empresa comercial: onde se distinguem é no devedor. Começamos pelo cenário do parágrafo 3º e 5º.

1) Cenário do parágrafo 3º e 5º: o art. 5º remete para o DL 62/2013, que alarga o âmbito de aplicação do
regime dos juros comerciais. Isto porque o diploma apenas fala em actividades económicas, logo as
empresas podem ser comerciais ou não (art. 3.º, b) do DL). Este diploma não obedece à comercialidade da
empresa, mas sim à economicidade; traz para o regime dos juros comerciais situações de empresas não
comerciais. Assim: o credor é empresa comercial e o devedor é empresa comercial ou não comercial ou
entidade pública.

Porém, o DL 63/2013 não diz que o credor tem de ser uma empresa comercial, logo o regime dos juros
moratórios previstos no parágrafo 3º e 5º aplica-se também quando os credores são titulares de empresas
não comerciais (ex: agricultores, profissionais liberais, artesão), quando esteja em causa o fornecimento
de bens e prestação de serviços (art 3.º/b) do DL 63/2013).

Esta taxa é mais elevada (8,15% para 7,15%).

2) Cenário do parágrafo 3º e 4º: este cenário aplica-se a todos as outras situações, ou seja, aos casos em
que o credor é uma empresa comercial e o devedor é tudo o resto, nomeadamente consumidores não
empresários.

3) Cenário supletivo: não se aplicando nenhuma destas situações, aplica-se o regime supletivo civil (art.
559.º do CC). A taxa está estabelecida na portaria 291/2003, que diz que a taxa anual é de 4%.

Existe uma dúvida doutrinal, se saber de que empresa estamos a falar: empresa em sentido objectivo
(estrutura económico-produtiva utilizada para a actividade de que resultou o crédito) ou subjectivo
(exercício de uma actividade mercantil, não estruturada numa empresa). COUTINHO DE ABREU e MENEZES
CORDEIRO são minoritariamente apoiantes da visão mais ampla; a doutrina maioritária, na qual
RICARDO COSTA se integra, defende que se deve tratar de uma empresa em sentido objectivo. O acto de
comércio do qual resulta a dívida tem de estar conexionado com uma actividade empresarial do credor.
Assim, o sujeito que exerce uma actividade mercantil sem empresa entra no juro civil, uma vez que não
obedece ao segundo requisito (comum aos dois cenários) de o credor ser uma empresa comercial.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

CAPÍTULO III

DAS EMPRESAS

1. Concepção jurídica da empresa

“Para resolver o problema da determinação da empresa em sentido jurídico (saber em que consiste ela, o
que a caracteriza e distingue de outros fenómenos jurídicos), começam muitos autores por definições da
empresa em sentido meta ou pré-jurídico”. COUTINHO DE ABREU rejeita este método: a empresa, enquanto
categoria jurídica, deve ser definida partindo de dados jurídicos.

Assim, a definição pré-jurídica de empresa não nos interessa, uma vez que o direito não a pode receber. Há
uma evidente autonomia entre o direito e as outras realidades extrajurídicas: o direito não reflecte essas
realidades. Assim, temos de atender aos dados normativos, que nos permite distinguir vários domínios:
• Quanto ao seu objecto: empresas comerciais e não comerciais.
• Quanto aos sujeitos: empresas públicas, privadas, etc.

A empresa é uma soma de vários elementos (imóvel, máquinas, equipamentos, contratos de


trabalho/trabalhadores, know-how, logótipo, etc.), que conjuntamente formam um bem jurídico
novo. Quando falamos em empresa, não estamos a olhar atomisticamente para cada um daqueles
elementos, mas sim para um todo unitário novo que vive por si próprio juridicamente como aquela
unidade.

Os negócios sobre empresas incidem sobre todos estes elementos. Há elementos essenciais que fazem com
que o todo não circule (ex: a marca do produto). Por ex., se quisermos negociar um restaurante mas
tirarmos o contrato de trabalho com o seu chef, se calhar não vamos estar a negociar a empresa do
restaurante, por ser o chef que o distingue. Há um conjunto de elementos que estão no âmbito de domínio
que não podem ser afastados, sob pena de não estarmos a negociar o estabelecimento como o todo.

Esta é a lógica essencial da teoria da empresa: ver a empresa como um todo incindível, diferente dos
elementos que o compõem.

2.1 Terminologia

Para este efeito, começamos pela terminologia. Pergunta-se se é possível e legítima a utilização, como
sinónimos, dos vocábulos empresa e estabelecimento. Com efeito, em várias leis (CCiv., CCom., CSC,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

legislação extravagante, etc.), utilizam-se estes vocábulos como sinónimos. Em tese geral, usamos de forma
sinonímica os dois vocábulos – para COUTINHO DE ABREU, é legítima a utilização sinonímica dos dois
vocábulos, embora use preferencialmente empresa, por ter uma significação mais ampla.

Isto a não ser quando se quer utilizar estabelecimento com um sentido mais restritivo: só aqui é que faz
sentido fazer a distinção. Neste sentido, o estabelecimento é visto como parte da empresa: por ex., o CT
fala em “trabalho prestado noutro estabelecimento da mesma empresa”, ou seja, numa sucursal da empresa.

1.2 Principais acepções de empresa

Podemos falar de duas acepções de empresa – empresa em sentido subjectivo e empresa em sentido
objectivo.
• Em sentido subjectivo: fala-se aqui da empresa enquanto sujeito jurídico que exerce a actividade
económica.
• Em sentido objectivo: a empresa é vista como instrumento ou estrutura económico-produtiva,
objecto de direitos e negócios.

A empresa sujeito implica a empresa objecto na maioria dos casos. Porém, estas duas acepções não se
confundem – por ex., o vendedor ambulante é uma empresa em sentido subjectivo mas não tem uma
estrutura. Estas situações são no entanto residuais, uma vez que quase sempre há uma relação de
coincidência.

Daqui concluímos que não é possível um conceito unitário de empresa, desde logo porque a unidade é
frustrada por haver estas duas acepções.

Estas duas acepções podem ter importâncias diferentes. No direito de defesa de concorrência, a acepção
que é tida em conta é a de empresa em sentido subjectivo. A noção de empresa vigente no direito europeu
da concorrência influenciou a correspondente noção portuguesa de empresa, tendo o legislador português
previsto na L 18/2003 e 19/2012 uma “noção de empresa” (art. 2.º e 3.º, respectivamente). Segundo o art.
3.º/1 da L 19/2012, “considera-se empresa, nos termos da presente lei, qualquer entidade que exerça uma
actividade económica que consista na oferta de bens ou serviços num determinado mercado,
independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento”. Esta definição é amplamente
criticada por COUTINHO DE ABREU.

Porém, predominante na lei é o conceito de empresa em sentido objectivo, logo é com este que nos vamos
preocupar.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Podemos ainda identificar outro conceito de empresa, restrito a um único normativo – o art. 230.º do
CCom. Ainda é empresa em sentido objectivo, com uma nota: uma série de actos enquadrados
organizatoriamente.

1.3 As empresas em sentido objectivo

1.3.1 Espécies de empresa quanto ao objecto

Quanto ao objecto, as empresas podem ser comerciais ou não comerciais:


• Empresas comerciais: são aquelas cujo objecto de exploração se traduz na realização de actos
objectivamente mercantis. Se os actos forem objectivamente comerciais e como tal qualificados,
são comerciais.
• Empresas não comerciais: são aquelas cujo objecto de exploração se traduz na realização de
actividades económicas, que não comerciais.

1.3.2 Empresas comerciais

1.3.2.1 Caracterização

1) Empresa-bem: a empresa ou estabelecimento é, desde logo, um bem complexo, feito por vários bens ou
elementos, que variam em função do tipo ou forma de empresa.
Variam ainda de empresa para empresa dentro do mesmo tipo; e ao longo da vida da empresa. No entanto,
podemos em termos gerais estabelecer as principais categorias de alguns destes elementos:
• Coisas corpóreas: imóveis, máquinas, ferramentas, mobiliário, matérias-primas, mercadorias, etc.
• Coisas incorpóreas: invenções patenteadas, modelos de unidade, modelos e desenhos industriais,
marcas, logótipos, etc.
• Bens não coisificáveis: prestações de trabalho, prestações de serviços e as chamadas situações de
facto com valor económico ou patrimonial. Nestas incluímos como elementos das empresas o
know-how (saber fazer ou experiências do negócio). Há outras situações de facto que entendemos
não serem elementos da empresa.

Depois de ser bem complexo, podemos dizer que a empresa é:


• Um valor ou bem económico patrimonial negociável.
• Um bem transpessoal, porque é isolável da pessoa que o criou ou da pessoa a quem pertence.
• Um bem duradouro, sendo objecto de negociações temporárias.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Um bem reconhecível e irredutível, desde logo porque é objecto de negócio para além dos seus
próprios bens.

2) Empresa-organização: para além disto, é uma organização de elementos e meios empresariais, numa
relação de complementaridade com vista à prossecução de um fim económico. É uma organização
estabelecida num sistema, que é um complexo de elementos em interacção entre eles que dá origem a uma
unidade. É aqui que se costuma dizer que o estabelecimento como um todo é mais do que a mera soma das
suas partes (i.e., dos seus elementos).

3) Sistema aberto: é ainda um sistema aberto, um centro de interacções com o exterior.

4) Bem jurídico autónomo: o estabelecimento e a empresa, comercial ou não, é um bem jurídico


autónomo, diverso, susceptível de apropriação enquanto tal. Tem um disciplina do todo para além da
disciplina que visaria cada um dos elementos.

Em função disto, quer-se saber qual a natureza jurídica da empresa. Aqui, há várias teorias – uns dizem que
é uma universalidade jurídica (facto ou de direito); nós entendemos que não. Não é universalidade de facto
uma vez que não compreende, em regra, apenas coisas móveis; e não é universalidade de direito, uma vez
que esta é definida como um “conjunto de bens que não desempenham qualquer função económica
própria”.

Para nós, a empresa é uma coisa enquanto tal, e uma coisa imaterial e impura. É coisa à luz do art 202.º do
CCiv., e é uma coisa imaterial ou incorpórea, de natureza complexa – isto porque, apesar de não dispensar
coisas corpóreas, o estabelecimento é mais do que a mera soma dos seus elementos. Como coisa imaterial
que é, é susceptível de ser objecto do direito de propriedade, do qual decorre três corolários:
• Admissibilidade de ser objecto de acção de reivindicação, art. 1311.º e segs.
• Admissibilidade de ser susceptível de posse.
• Susceptibilidade de ser objecto de responsabilidade civil por factos ilíticos.

Destas ideias vamos retirar vários corolários. Por ex., há um incêndio numa fábrica. Pode-se continuar a
entender a fábrica como um todo negociável ou, tendo em conta que alguns elementos foram destruídos,
tem de negociar cada elemento por si? A identidade da fábrica acabou, logo só pode negociar elemento a
elemento e não como um todo. Isto é importante – existem regimes jurídicos somente aplicáveis se os
negócios forem feitos sobre o todo.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Em suma, “a empresa ou estabelecimento comercial (em sentido objectivo) é uma unidade jurídica
fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e
autónomo de uma actividade comercial”.

1.3.2.2 Elementos ou bens empresariais

Ainda dentro da empresa em sentido objectivo, os elementos ou bens empresariais são instrumentos
estrutural ou funcionalmente inseridos na organização produtiva da empresa.

Podemos identificar duas categorias:


• Factores produtivos.
o Objectos e instrumentos de trabalho.
o Força de trabalho.
• Bens que predominantemente ou complementarmente identificam ou individualizam a empresa.
Nestes integram-se os logótipos, recompensas, marcas, e que não se identificam com os factores
produtivos mas vão potenciá-los.

Ou seja: com COUTINHO DE ABREU, “limitamos os elementos ou meios das empresas aos ‘factores
produtivos’ – os objectos e instrumentos de trabalho ou capital, e o trabalho –, e a outros bens que
primordialmente (ou também) individualizam ou identificam as empresas – v.g., logótipos,
recompensas, marcas”.

Porém, esta não é a posição adoptada por todos os autores: há que defenda que as empresas são compostas
pelas situações e relações de facto com valor económico, por coisas (corpóreas e incorpóreas), direitos (de
crédito, reais e outros de carácter absoluto) e obrigações (ligadas à exploração das empresas).

! Posições de facto com valor económico

As situações de facto com valor económico patrimonial são, nomeadamente, três:


• Saber fazer ou experiência do negócio (know how), aqui se incluindo, nomeadamente, a
tecnologia e conhecimentos não patenteados e/ou não patenteáveis de carácter científico, técnico
ou empírico aplicáveis na exploração da empresa. Estão aqui incluídos também os segredos de
fabrico.
• Incluem-se aqui também as posições resultantes da organização interna da empresa.
• E ainda as relações de facto com financiadores, fornecedores e clientes.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Quanto à inclusão ou não das situações de facto com valor patrimonial na empresa, adoptamos uma posição
restritiva – entendemos, com COUTINHO DE Abreu, que só são elementos empresariais a primeira
categoria. Entendemos que as outras duas não estão relacionadas com a organização produtiva da empresa,
são externas à mesma, e como tal não são bens empresariais, elementos componentes da empresa.

A este propósito, tem-se discutido muito para saber se a clientela é elemento empresarial: pode ser definida
como o círculo de pessoas consumidores que contactam e se relacionam com determinada empresa. Esses
consumidores podem ser habituais ou fixos (clientela fiel ou orgânica) ou ocasionais (clientela de
passagem).

Esta clientela é algo constituinte da empresa? Só se for assim é que pode ser bem empresarial. Entendemos
que não: a clientela não é algo que seja instrumento inserido na organização como tal, é algo
consequente à exploração da empresa. Os clientes são a consequência, os destinatários, da organização
produtiva. A clientela é imprescindível à manutenção da empresa como instrumento de produção ou
prestação de serviços e é manifestação do aviamento da empresa – aptidão produtiva para realizar o fim
que foi criado. Quanto maior o aviamento, maior o valor de negociação da empresa.

! Contratos, créditos e débitos

É praticamente indiferente dizer falar, quanto aos elementos empresariais, numa máquina ou direito de
propriedade sobre ela, no trabalho ou direito de crédito às prestações laborais. Porém, já não é indiferente
dizer que a generalidade dos contratos são elementos empresariais: só o são se os seus objectos forem
meios do estabelecimento. O que interessa é o meio objecto desses contratos.

Também não qualificamos os débitos resultantes da exploração do estabelecimento como meios


empresariais – existem autores que argumentam em contrário com a inclusão das dívidas em negócios
sobre estabelecimentos, que COUTINHO DE ABREU considera insuficiente (a cláusula é inequívoca; nem
tudo o que se transfere com o estabelecimento tem de ser considerado elemento empresarial; e o património
dos empresários não se confunde com as empresas dos mesmos).

! Dinheiro

Entendemos ainda que o crédito (dinheiro) não é um bem empresarial, uma vez que é exterior à
organização produtiva. Porém, se estiver em causa uma empresa bancária, os créditos já são elementos
empresariais porque são factores de produção. Ou seja, o dinheiro não é elemento empresarial excepto em
algumas específicas actividades, a saber a bancária e seguradora.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Note-se que a posição maioritária considera, porém, todos estes elementos empresariais; porém, a nossa
visão é uma visão restritiva. Isto é importante para nós por causa do âmbito de domínio: aqui só entram
elementos empresariais, não entram créditos e débitos.

1.3.2.2 Zonas de fronteira

Os elementos empresariais vão ser organizados e relacionados entre si para dar origem a uma organização
nova; para isso, quem constitui a empresa selecciona os elementos, dá-lhes uma racionalidade, etc. Esta
composição dos elementos empresariais para que possa dar origem à empresa chama-se valores de
organização. Quando estes se projectam para o exterior, surge o aviamento. Quando se relaciona com o
exterior, e se explora a empresa em relacionamento com os clientes, fornecedores e financiadores, surgem
os chamados valores de exploração. Costuma-se dizer que o valor de exploração mais relevante é a
clientela.

Estes conceitos são relevantes para analisarmos as situações de fronteira entre o que é empresa e o que
não é. Vamos ver quatro casos.

1) Estabelecimento com valores de organização mas sem valores de exploração: por ex., temos um
restaurante que está pronto a funcionar, mas ainda não aberto ao público – apenas abre para a semana.
Hoje, temos empresa? A nossa resposta passa por três pontos.

- Temos uma organização produtiva apta a funcionar, mais ainda não entrou em funcionamento: já temos
valores de organização mas não valores de exploração, nomeadamente a clientela. A questão que se coloca
é: os valores de organização chegam? Se identificarmos a clientela como um elemento empresarial, não
teríamos empresa; o mesmo sucedendo se considerássemos que a razão determinante da tutela jurídica do
estabelecimento está no seu aviamento – porém, a nossa posição não é essa. Desde que tenhamos valores
de organização, minimamente aptos a realizar um fim económico produtivo que lhe garanta clientela
pelo facto de se já conseguir a actividade produtiva, temos empresa.

- Porquê? Porque, sendo assim, temos de afirmar que já temos um bem jurídico novo, não redutível à
mera soma dos elementos agregados. O direito não pode deixar de ver aqui uma empresa, um bem jurídico
novo, e por isso negociável como tal. Logo, é susceptível de integração nos regimes que exigem este todo.

- Já há aviamento? Há quem entenda que só há aviamento quando há projecção para o exterior. O curso
entende que não, que já existe aviamento, porque o estabelecimento aviado é aquele já está preparado
para se relacionar com o exterior – a força ou qualidade do aviamento existe no momento em que existe

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

organização dos elementos empresariais. A clientela passa a ser um índice do aviamento do


estabelecimento.

2) Estabelecimento ainda não integralmente formado nos seus elementos de organização. Esta é a
questão mais delicada: estamos perante um estabelecimento ainda em formação, cujos valores de
organização estão incompletos.

Entendemos que, ainda que incompleto, estamos já perante um conjunto de bens heterogéneos e
complementares, devidamente organizados com vista à prossecução de um determinado fim e que já
conseguem projectar uma imagem de um elemento novo. Podemos assim qualificar como uma empresa.

Mas qual é o mínimo de valores necessário para termos uma empresa? Temos de seguir o critério do
âmbito de domínio: temos de conseguir identificar nessa empresa um conjunto de bens que projectem a
imagem de uma nova organização com potencial para funcionar autonomamente.

3) Empresa em funcionamento, que adquiriu valores de exploração, com clientela, e foi negociada
com exclusão pelas partes de alguns elementos: não é possível dar uma resposta a priori, só é possível
dar uma resposta em concreto. Mesmo que esteja em causa bens que ponham em crise a possibilidade de
funcionamento imediato, o conjunto de bens pode ser ainda assim suficiente para projectar no público a
existência da organização produtiva identificada como aquela empresa. Mais – quanto mais a empresa
funcionou em tempo, menos dependência ela tem dos seus elementos ou bens empresariais, dos seus
valores ostensivos. Em suma, nunca podem ser excluídos os bens necessários para exprimir a permanência
da empresa como um todo, diferente da mera junção das partes.

4) Empresa que vê os seus meios corpóreos totalmente destruídos: aquilo que sobra (patentes, marcas,
logótipos, contratos de trabalho, etc.) chega? Sim – isto chega para identificar a empresa. Além disto,
quanto tal sucede há algo que se mantém que é essencial para a aptidão produtiva: os valores de
exploração.

1.3.2.3 Secções e sucursais

A secção da empresa é uma divisão ou repartição necessária ou útil para a organização empresarial. Uma
parte mais ampla é geralmente denominada como sucursal (entre a secção e a empresa): caracteriza-se pela
dependência em relação à empresa, mas por outro lado por uma certa independência – goza de separação
espacial, tem personalidade judiciária, tem liberdade de gestão, competência para celebrar negócios, etc.
Isto permite que estas sucursais deixam de se identificar como um todo, assumam autonomia e possam ser

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

alienadas em separado, transformando-se em autónomos estabelecimentos comerciais; o que nunca pode


suceder com a secção.

1.3.3 O e.i.r.l (estabelecimento individual de responsabilidade limitada)

“Os bens de um ‘normal’ estabelecimento comercial pertencente a (e explorado por) uma pessoa singular
respondem quer pelas dívidas contraídas na exploração desse estabelecimento quer por quaisquer outras do
respectivo titular; por sua vez, pelas dívidas resultantes da exploração dessa empresa tanto respondem os
bens a ela afectados como outros bens do empresário”.

O e.i.r.l. foi assim criado, através do DL 248/86, com a intenção de fornecer às pessoas singulares um
instrumento de organização de actividades económicas com o benefício da responsabilidade limitada. O
e.i.r.l. é um património autónomo e separado do restante património do comerciante individual:
• Os bens afectados ao estabelecimento respondem apenas pelas dívidas contraídas no
desenvolvimento das actividades contraídas no desenvolvimento das actividades de que ele é
instrumento (art. 10.º/1).
• Por estas dívidas respondem somente aqueles bens (art. 11.º/1).

O e.i.r.l. foi criado porque, na altura, entendia-se que não se devia distorcer o expediente societário,
permitindo sociedades fossem exploradas por um só sócio. Até à criação deste instituto, tentou encontrar-se
um mecanismo que permitisse tornar imune o património imune às responsabilidades das dívidas da
empresa – havia para tal duas vias, a da sociedade ou a do património autónomo. Quanto a este último, a
questão era se se dava ou não personalidade ao património autónomo, ou seja, se se construía uma nova
pessoa jurídica ou um património sem personalidade jurídica, porque esta pertencia à pessoa singular.

Mais tarde, a UE veio dizer para criar a sociedade por quotas individual, que veio retirar a importância ao
e.i.r.l. Hoje, o e.i.r.l. é um instrumento residual, uma vez que é pouco vantajoso, por várias razões:
• A autonomia patrimonial do e.i.r.l. não é perfeita. Acontece que a autonomia acabou por não ser
perfeita, uma vez que a lei estabelece excepções.
o Primeiro segmente da autonomia: o art. 22.º diz que na execução contra o titular por
dívidas fora do estabelecimento, se os bens forem insuficientes, o credor pode ir buscar os
bens ao e.i.r.l.. Há uma responsabilidade subsidiária.
o Segundo segmento o da autonomia: o art. 11.º/2 estabelece uma excepção à segunda parte
da autonomia, pois no caso de haver insolvência do estabelecimento e tiver havido

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

comportamentos abusivos de mistura de património, e não chegar os bens do e.i.r.l. para


pagar, também respondem os restantes bens.
Os agentes começaram assim a recorrer a sociedades de pluralidade fictícia e, com a criação da
sociedades por quotas individual, passou a ser este o mecanismo usado.
• Em termos fiscais, o e.i.r.l.nunca foi muito atractivo, pois os rendimentos vão ser englobados para
efeitos de IRS, uma vez que o EIRL não é um sujeito fiscal autónomo. A sociedade já é um sujeito
fiscal autónomo, o que traz variadas vantagens, entre elas a taxa mais reduzida.

O e.i.r.l., sendo um património autónomo, ainda é considerado uma empresa? Sim: no início da
exploração do e.i.r.l., podemos ainda não ter todos os elementos empresariais, podemos ter algo
incompleto. Porém, é necessariamente constituído para ao exercício de uma actividade comercial (art.
1.º/1), com a especificidade de estar construído como um património autónomo do autor. A lei, no art. 21.º,
entende claramente o e.i.r.l.como um bem jurídico unitário, uma coisa complexa que é objecto de direitos
reais, obrigacionais, e actos jurídicos unitários.

Assim, o e.i.r.l. uma empresa, ainda que com a especificidade de estar construído como um património
autónomo do autor.

1.3.4 Empresas não comerciais

A empresa não denota necessariamente comercialidade; esta é compatível com empresa e não empresa; e
também a não comercialidade é compatível com a empresa e não empresa.

! Empresas indústria extractiva

Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se são comerciais as empresas da indústria extractiva,
designadamente as que exploram recursos geológicos. Em regra, estas empresas são não comerciais, ou
seja, empresas civis: o art. 230.º não se refere a elas; e nenhuma norma no CCom. as regula. Isto com a
excepção das piscatórias, que são comerciais, art. 1º do D 20 677 (salvo as actividades piscatórias
artesanais, que são não comerciais).

Poderia qualificar-se estas empresas como comerciais por analogia? Quanto à analogia legis, poderia
pensar-se em estabelecer com as empresas piscatórias, mas esta é uma norma excepcional, não admitindo
por isso integração analógica. Também está afastada a analogia juris, porque não há aqui uma verdadeira
lacuna de qualificação: “não se vêem as disposições legais admitindo no domínio comercial manifestações
diversas de actividades industrial-extractivas, de modo a possibilitar um princípio geral que tornasse claro

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

estar a comercialidade das nossas empresas de exploração de recursos geológicos de acordo com o plano
legal”.

Porém, de jure condendo, estas deveriam ser empresas comerciais.

! Empresas agrícolas

Temos aqui as empresas agrícolas em sentido estrito (exploração do solo) e em sentido amplo (abrangendo
a actividade pecuária e silvícola). Estas empresas não são comerciais, com apoio em vários dados
legislativos:
• Art. 230.º, § 1º: a actividade agrícola continua a ser não comercial ainda que tenha acessoriamente
associada uma actividade comercial (transformativa).
• Art. 230.º, § 2º: o explorador agrícola que vende os seus produtos não se inclui no fornecimento de
géneros e não é comercial.
• Art. 464.º/2: não são consideradas comerciais as vendas que o proprietário ou explorador rural faça
dos produtos de propriedade sua ou por ele explorada.
• Legislação relativa às sociedades de agricultura de grupo, agrupamentos de produção agrícola e
empresas familiares agrícolas reconhecidas (DL 336/89 e 339/90): só podem ser sociedades civis
sob forma de sociedade por quotas, logo têm necessariamente actividade não comercial.

! Artesãos

Quando desenvolverem a sua actividade recorrendo empresas, estas não são comerciais, como resulta do
art. 230.º, § 1º. A noção de artesão apresenta fronteiras imprecisas, sendo que podemos definir artesão
como o “produtor qualificado que, podendo embora servir-se de máquinas, utiliza prevalecentemente o seu
trabalho manual e, como instrumentos, ferramentas”. Se utilizar a maquinaria de forma predominante,
temos uma actividade transformadora comercial e uma empresa comercial. O mais difícil é estabelecer a
fronteira: tem de haver predomínio do trabalho manual e não da maquinaria.

Temos ainda um conjunto de serviços analogicamente equiparados a artesanato por serem explorados
directamente pelos prestadores de serviços (ex: cabeleireiro). A haver empresas, também são não
comerciais.

! Profissionais liberais

! 63
Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Como vimos acima, existe um conjunto de indícios legislativos que apontam para a não comercialidade das
profissões liberais (têm estatutos jurídicos, e quando estes regulam a exploração societária destas
profissões, o legislador entende que estas são actividades não comerciais).

Mas podemos ter empresas quando se exercem profissões liberais? Em regra, os consultórios, gabinetes,
etc. não são empresas – uma vez que avulta aí uma nota de personalização; não está em causa um complexo
produtivo; os instrumentos de trabalho a que recorrem não têm autonomia funcional suficiente para levar à
congregação de uma empresa; e a actividade do sujeito exaure o processo produtivo.

Em regra, por isso, não há aqui empresas. Mas pode have: por ex., as grandes sociedades de advogados,
que até podem ter sucursais; ou ainda as grandes clínicas médicas. Estas são empresas, e podem até ser
consideradas comerciais por desenvolverem actividades de prestação de serviços que não médicos.

1.4 Empresas em sentido subjectivo

Temos três espécies comerciais quanto aos sujeitos jurídicos:


• Empresas do sector público.
• Empresas do sector privado.
• Empresas do sector cooperativo e social.

1.4.1 Empresas do sector público

1.4.1.1 Empresas públicas do Estado

! Introdução

Temos 3 fases de evolução da regulação legislativa das empresas públicas:


• DL 260/76: o conceito de empresa pública estadual no direito português abrangia apenas entidades
de natureza institucional, e não entes de natureza societária.
• DL 558/99: aquele conceito passou a compreender duas espécies empresariais – certas sociedades
(dominadas pelo Estado e/ou outras entidades públicas estaduais) e as “entidades públicas
empresariais” (EPE, sucessoras das velhas EP).
• DL 133/2013 (Regime do Sector Público Empresarial, RSPE): é terceiro e atual marco legislativo
na matéria. Mantém a dicotomia e acrescenta controlo público sobre as EP.

O sector público empresarial abrange:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• O sector empresarial do Estado e o sector empresarial local” (dos municípios, associações de


municípios e áreas metropolitanas), art. 2.º/1.
• Não abrange por isso o sector empresarial regional, relativamente ao qual o RSPE tem aplicação
subsidiária (art. 4.º). Este sector está regulado em lei especial.

Por sua vez, o art. 2.º/2 diz que “o sector empresarial do estado integra as empresas públicas e as empresas
participadas”. Assim, para além das empresas públicas, art. 5.º (empresas públicas societárias e EPEs),
temos ainda as empresas participadas, art. 7.º. Estas empresas não e integram verdadeiramente no sector
empresarial do Estado, as participações daquelas entidades nas empresas (privadas, normalmente) é que se
integram (art.. 8.º/2).

Entretanto, o RSPE é ainda aplicável às “organizações empresariais” que, não sendo EP propriamente ditas,
sejam “criadas, constituídas, ou detidas por qualquer entidade administrativa ou empresarial pública” que
sobre elas exerça “uma influência dominante” (art. 3.º).

! Noção

O RSPE não oferece uma noção unitária de empresa pública. Apresentas antes duas noções, uma de EP
societárias, outra de EPE (arts. 5º e 56.º).

1) Empresa pública societária (EP): segundo art. 5.º/1, “são empresas públicas as organizações
empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada, nos termos da lei
comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente,
de forma direta ou indireta, influência dominante”. A influência dominante das entidades públicas nas
sociedades existe nas quatro hipóteses do art. 9.º/1, sendo as mais importantes as duas primeiras: a) tenham
uma participação social correspondente a mais de metade do capital; e b) “disponham da maioria dos
direitos de votos”.
efeitos de imputação (indireta) de direitos de voto, v. o no 2 (com cinco alíneas) do art. 9o (está deslocada a
referencia, na al. a), aos direitos de voto detidos ou exercidos por terceiro em nome(...) do titular da
supervisão (quando lhe compita designar e destituir os administradores) e à comissão de auditoria (quando
os seus membros sejam maioritários no conselho de administração) – mas v. (2).

O art. 5.º/1 diz ainda que as EP são organizações “constituídas sob a forma de sociedade de
responsabilidade limitada nos termos da lei comercial”. As sociedades de “responsabilidade limitada” são
as sociedades por quotas e as sociedades anónimas. As sociedades em comandita não entram no campo de
aplicação do art. 5.º.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Finalmente, as EP não têm de ser “constituídas nos termos da lei comercial”, também podem ser
constituídas sociedades de capitais públicos por decreto-lei. O próprio RSPE o reconhece no art. 35.º/1,
logo é necessário fazer uma interpretação extensiva do art. 5.º/1 nesta parte.

2) Entidades públicas empresariais (EPE): as EPE são pessoas coletivas de direito público com
denominação parcialmente taxativo-exclusiva criadas pelo Estado que formam e/ou exploram organizações
de meios produtivos de bens para a troca, de modo a satisfazerem interesses público-estaduais (art. 56.º).
As EPE são, pois, pessoas jurídicas com:
• as correspondentes “capacidade jurídica” (limitada pelo objeto: art. 58o, 2) e
• “autonomia administrativa [entendível em sentido amplo, como capacidade para gerir e praticar
atos jurídicos],
• financeira [com receitas próprias e direito de delas dispor segundo orçamento próprio]
• e patrimonial” [com património privativo, mobilizável só (e em princípio só ele) para o
cumprimento das respetivas obrigações]: art. 58o, 1. E pessoas jurídicas “de direito público” (o
que durante muito tempo foi controvertido fica agora claro pelos dizeres do art. 56o)

Outras notas:
• A criação de EPE é feita por decreto-lei, art. 57.º/1. O capital inicial é atribuído pelo Estado para
responder às necessidades permanentes da empresa e pode ser aumentado ou reduzido nos termos
previstos nos estatutos (art. 59º/1 e 2).
• A denominação destas pessoas coletivas deve integrar a expressão “entidade pública empresarial”
ou as iniciais “E.P.E.” (art. 57.º/2).

! Dialética empresa-sujeito/empresa-objeto

Estamos aqui a falar de empresas em sentido subjectivo – “mas estes fenómenos empresariais não se
reduzem à dimensão subjetiva. Por norma, eles são simultaneamente instrumentos objetivos de sujeitos, são
organizações de meios produtivos, empresas em sentido objetivo”.

Porém, nem sempre coexiste empresa em sentido subjectivo e objectivo:


• Podemos constituir uma sociedade ou uma EPE sem que exista substrato material, sem objecto
empresarial.
• “Por outro lado, o património das empresas públicas-sujeitos não tem de esgotar-se no património
ligado às respetivas empresas-objetos: pode haver bens fazendo parte do acervo patrimonial dos
sujeitos mas não afetados às empresas-objeto (destas não sendo elementos, portanto)”.
• Por outro lado ainda, “pode a empresa-objeto ser separada da empresa-sujeito, porque, v. g., aquela

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

é vendida, locada ou a sua exploração é concedida a terceiro”.

! Superintendência, tutela e (outras) constrições estaduais (governamentais)

A grande pedra de toque destas empresas públicas, sejam as societárias, sejam as institucionais, é a
circunstância de, não obstante serem regidas em geral pelo direito privado, art. 14.º/1 (direito privado em
geral e direito público aplicado em especial às entidades privadas, nomeadamente regras de tributação),
estão submetidas à superintendência e tutela de origem governamental que comprime a autonomia
deliberativa e de gestão destas empresas. Ou seja, porque são públicas, dominadas pelo Estado ou
entidades públicas, e visam finalidades públicas, e legislação sempre incorporou um conjunto de regras
para que as entidades dominantes controlem a gestão e a vida destas empresas públicas.

Como? Através, nomeadamente, do instrumento de emissão de orientações, que vão ter tradução nas
deliberações das assembleias gerais das empresas e sociedades, nos actos de gestão dos administradores e
gerentes, e ainda nos contratos de gestão a celebrar com os administradores.

Que orientações temos? Podemos fazer aqui uma orientação piramidal:


• Estratégicas: estão reguladas no art. 24.º. São emitidas pelo conselho de ministros e relevantes para
todo o sector empresarial do Estado.
• Sectoriais: são emitidas com base nas orientações estratégicas, pelo ministro das finanças e pelos
ministros dos sectores específicos onde se integram estas empresas. Ver arts. 24.º/2 e 37.º a 39.º,
em especial 39.º/1, 2 e 3.
• Específicas: relativamente a cada uma das empresas em especial, vão ser emitidas pelo ministro do
sector as orientações específicas (art. 39.º, n.º 4 a 9).

Isto significa uma restrição da autonomia da gestão destas empresas, o que é claro no art. 25.º/1. O art.
25.º/1 deve ser articulado com o art. 30.º/2, que diz que, acabando todo o domínio das orientações, tem de
haver abstenção de interferência no órgão de gestão. Como afirma COUTINHO DE ABREU, “parece razoável
defender que, estando aqui em causa a gestão de recursos públicos e a satisfação de interesses coletivos, a
autonomia própria (ou tradicional) do privado há de ser limitada por imperativos do público”. Esta restrição
não lhes retira, contudo, a sua empresarialidade.

Conclusão: temos um conjunto de orientações e deveres que limitam fortemente o poder dos gestores e
administradores das empresas públicas. Isto porque se entende que, estando em causa a gestão de
interesses e recursos públicos, a autonomia tem de ser limitada.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Para além desta autonomia mitigada pelas orientações governamentais, outras duas notas caracterizam as
EP e EPE:
• Controlo financeiro exercido pelo Tribunal de Contas e Inspecção Geral das Finanças, art. 26.º.
• Vinculação a diversos deveres de informação ao público e ao governo. Ver arts. 25.º/2 e 3, 44.º a
46.º, 47.º/1 e 53.º e 54.º. Muitos destes deveres dizem respeito à transparência sobre o grau de
cumprimento dos objectivos e de prestação dos serviços a que estão vinculados.

! Empresas públicas e fim lucrativo

Será que as empresas públicas têm de ter fins lucrativos? É o intuito lucrativo essencial? A questão deve ser
resolvida em função dos dados legais.

O RSPE não impõe o escopo lucrativo.


• A lei exige a “viabilidade económica e financeira” (art. 10.º/2 e 34.º/2). Esta viabilidade basta-se
com uma “gestão dirigida a alcançar o equilíbrio entre custos e receitas da produção”, não
impedindo, porém, o lucro.
• “A actividade das EP encarregadas da prestação de serviço público ou serviço de interesse geral
(económico ou não) é remunerada também por dotações do orçamento do Estado, indemnizações
compensatórias ou outros subsídios (arts. 48º/ 2, 3, 55o, d)) – o que exclui o fim lucrativo e mesmo
o fim de equilíbrio entre custos e receitas ‘próprias’”.
• “As ‘orientações estratégicas’ do governo para as EP visam ‘o equilíbrio económico e financeiro
do sector empresarial do Estado’ (art. 24.º/1) – desejavelmente, este equilíbrio resultará da
compensação dos défices de exploração (necessários ou esperados, ou não) de algumas EP pelos
lucros das outras”.

Assim, o RSPE dá-nos indícios contraditórias: por um lado, devem ser criadas em função de uma certa
actividade económico-financeira, o que é um indício a favor do lucro; por outro, as empresas públicas são
vocacionadas, de acordo com a lei, para, por um lado, prestações de serviço público ou de interesse geral
(art. 48.º e art. 50.º e segs.), sendo que aqui o interesse lucrativo está excluído.

Como tal, temos de analisar o regime específico


• EP: as sociedades são necessariamente entidades vocacionadas para obterem lucro. Porém, as
entidades podem postergar o lucro, o que ocorre em sociedades de economia mista, em que
também há privados. Quando constituídas nos termos do CSC, têm por definição fim lucrativo;
“contudo, quando sejam encarregadas da gestão de serviços públicos ou de interesse geral, os
interesses públicos podem determinar uma sistemática atuação sem finalidades lucrativas”. Quando

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

são constituídas por lei ou decreto-lei, pode o acto constituinte afastar o intuito lucrativo.
• EPE: não são criadas pela lei para ter lucro.

Destes vários indícios, podemos dizer que o escopo lucrativo não é uma nota essencial das empresas
públicas, mesmo as societárias.

1.4.1.2 Empresas locais

Têm um regime próprio, previsto na L 50/2012, de 30 de Agosto (Regime da Actividade Empresarial


Local, RAEL). A actividade empresarial local é desenvolvida por municípios, associações de municípios e
áreas metropolitanas, através dos serviços municipalizados ou intermunicipalizados e das empresas locais
(art. 2.º).

As empresas locai, ao contrário das empresas públicas do Estado, são apenas e só configuradas através de
sociedades, o que foi uma novidade do RAEL, que aboliu as entidades públicas locais (art. 19.º/1 e 2). Nos
termos do art. 19.º/1, “são empresas locais as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei
comercial, nas quais as entidades públicas participantes possam exercer, de forma directa ou indirecta, uma
influência dominante”. Notas:
• As entidades públicas participantes são os municípios, associações de municípios e áreas
metropolitanas (art. 2.º e 5.º). As empresas locais, de acordo com o art. 19.º/4, têm natureza
municipal, intermunicipal ou metropolitana, consoante a entidade que exerça a influência
dominante. Note-se que as firmas variam – EM, IM ou EMT (respectivamente), art. 19.º/5
• Estas sociedades devem ser de responsabilidade limitada (art. 19.º/6), mais precisamente
sociedades por quotas ou anónimas.
• Podemos ter sociedades de empresas locais unipessoais ou plurais, ao contrário do que é admitido
em regra. Ou seja, pode haver sociedades anónimas unipessoais (art. 19.º/2), o que constitui uma
excepção à regra.

Outra nota importante é a de que as empresas locais societárias têm objectivo exclusivo, art 20.º. A partir
de 2012, só podem ter como objecto exclusivo:
• As actividades de interesse geral, previstas no art. 45.º;
• E as actividades de promoção de desenvolvimento regional ou local, art. 48.º.

Notas sobre a constituição das empresas locais:


• Seja por acto, seja por contrato, têm de ser autorizada pelos órgãos deliberativos das entidades
participantes, art. 22.º/1.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Está sujeita à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.


• Os sócios privados estão sujeitos a procedimentos de selecção, art. 33.º.
• A deliberação de constituição está sujeito a estudos de viabilidade económica e financeira.

Também aqui encontramos novamente a autonomia limitada pelo instrumento das orientações, art. 37.º (n.º
1, 2 e 4). As orientações estratégicas dão origem a orientações anuais, que vão vincular os administradores
e gestores. Existe igualmente neste domínio controlo financeiro, art. 39.º.

No domínio das relações negociais externas, actuam sob o jugo do direito privado, art. 41.º. Aplicam-se as
regras de defesa da concorrência, art. 44.º.

Finalmente, o escopo lucrativo também não deve ser considerado elemento essencial da noção de empresa
local. É mais delicado dizer isto porque uma vez que as empresas locais são sempre sociedades; no entanto,
o que a lei exige é uma gestão dirigida a assegurar a viabilidade económica, o equilíbrio financeiro (art.
31.º). Ora, o princípio do equilíbrio económico-financeiro não exige o lucro, bastando uma gestão dirigida
a alcançar o equilíbrio entre custos e receitas da produção. Isto não significa que não possa haver lucro,
uma vez que aquele princípio não o exclui; no entanto, parece que a própria lei proíbe empresas com intuito
exclusivamente lucrativo, art. 20.º/1. Porém, note-se que algumas empresas locais têm de actuar sem poder
ter lucro, art. 50.º/2 e 3 – o que sucede quando tenham de desenvolver actividades, não a preços de
mercado, mas sim a preços subsidiados na óptica do interesse geral.

1.4.1.3 Serviços municipalizados

Além das empresas locais, existem ainda os serviços municipalizados, reguladas nos arts. 8.º a 18.º. Notas:
• São empresas municipais, agora em sentido objectivo.
• Não têm personalidade jurídica, antes integram a estrutura organizacional do município (art. 8.º/2).
• Têm por objecto possível as actividades taxativamente previstas na lei (art. 10.º).
• Podem ser empresas que concorrem com as empresas públicas societárias – as câmaras devem
optar entre sociedades ou serviços municipalizados.

1.4.2 Empresas do sector privado

O primeiro grupo de empresas privadas é aquele cuja propriedade ou gestão pertence a uma pessoa
singular, ou a mais do que uma pessoa singular:
• Pessoa singular (empresa em nome individual);

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Empresa bem comum dos cônjuges;


• Empresa herança indivisa;
• Empresa da sociedade pluripessoal não personalizada;
• Empresa de uma associação sem personalidade jurídica.

Nos casos para além da empresa individual, temos co-titulares das empresas.

Também podem ser titulares pessoas colectivas:


• Sociedades;
• ACE;
• Associações e fundações de direito privado, que podem explorar empresas como forma de
obtenção de meios patrimoniais necessários.

1.4.3 Empresas do sector cooperativo e social

Dentro deste sector, encontramos: empresas cooperativas; e, em menor número, empresas e autogestão,
empresas comunitárias, e empresas de entidades colectivas sem carácter lucrativo e com fins de
solidariedade social. Vamos apenas ver as primeiras.

As cooperativas encontram-se reguladas no Código Cooperativo. O art. 2.º/1 do CCoop. dá-nos a noção de
cooperativa: “pessoa colectiva autónoma, de livre constituição, de capital e composições variáveis, que,
através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam,
sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”.
Desta noção decorre a possibilidade de algumas cooperativas acturarem sem empresas, o que não é a regra.
Em função do objecto de várias cooperativas, encontramos no CCoop. legislação sectorial (agrícola,
artesanato, etc.).

A lei diz que as cooperativas não têm intuito lucrativo, mas em várias circunstâncias (cooperativas de
consumo, produção e venda) podem gerar-se excedentes. Nestes casos, devemos entender que estes
excedentes não devem ser qualificados, económica ou juridicamente, como lucro.

1.5 Conceito geral de empresa em sentido objectivo

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

“Se não é possível um conceito genérico de empresa, já um conceito geral de empresa em sentido objectivo
– compreendendo empresas comerciais e não comerciais, de pessoas ou grupos de pessoas singulares e de
pessoas colectivas públicas, privadas, etc. – é possível”. Assim, podemos dizer que empresa em sentido
objectivo é “a unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de
exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade de produção para a troca”.

Note-se que nenhuma destas notas distintivas está o lucro. Claro que é impensável que as empresas não
sejam normalmente constituídas e exploradas como instrumento para a aquisição de lucros, aliás, é natural
que as empresas privadas estejam pensadas para a obtenção de lucro. Porém, como vimos, o escopo
lucrativo não é essencial à definição de diversas espécies públicas empresariais.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

2. Negócios sobre as empresas

2.1 Trespasse

2.1.1 Noção e forma

A nossa lei não nos dá uma definição de trespasse, nem define um regime global do mesmo. Porém, das
várias leis em que o trespasse é mencionado, COUTINHO DE ABREU retira as seguintes conclusões:
• Objecto de trespasse é um estabelecimento, comercial ou não.
• O trespasse traduz uma transmissão com carácter definitivo, é a transmissão da propriedade de
estabelecimento. Esta transmissão pode ser efectuada através de vários negócios, que podem ser
onerosos ou gratuitos.
• O trespasse é ainda uma transmissão inter vivos.

Em suma, podemos definir trespasse como a transmissão da propriedade de um estabelecimento por


negócio entre vivos. Não representa uma específica figura negocial, antes abrange um conjunto de figuras
negociais diversas.

Qual a forma exigida para o trespasse? Durante muito tempo, a forma exigida foi a escritura pública;
depois de 2000, passou a exigir-se o simples escrito. Hoje, com o NRAU, deve entender-se que continua a
ser exigido o simples escrito – com base no art. 1112.º/3 do CCiv., apesar de este se referir à transmissão
da posição de arrendatário. Com efeito, para COUTINHO DE ABREU, devemos fazer uma interpretação
extensiva do art. 1112.º/3, no sentido da exigência escrita também para o trespasse, com base nos
seguintes argumentos:
• A transmissão de firma, que não pode ser feita sem a transmissão de estabelecimento, exige
escrito (art. 44.º/1 e 4 do RRNPC), assim como a transmissão de marca ou logótipo (art. 31.º/5 e
6, 304.º-P/3 do CPI). Seria estranho que a transmissão destes elementos exigisse escrito e não a
transmissão do conjunto.
• E sobretudo porque a comunicação da transmissão da posição do arrendatário deve ser feita ao
senhorio para que este saiba o que está na base da transmissão, e para se realizar esta
comunicação é necessária a forma escrita para o próprio trespasse.

CASSIANO DOS SANTOS entende que o NRAU deixou de exigir a forma escrita para o trespasse: em
abstracto, a transmissão do estabelecimento comercial pode fazer-se sem o imóvel, sem a transmissão da
posição do arrendatário (também se pode conceber casos de estabelecimentos absolutamente vinculados
ao imóvel). Se não for exigida forma escrita para um dos elementos transmitidos com o estabelecimento,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

CASSIANO DOS SANTOS defende assim que não é exigida forma escrita para a transmissão do
estabelecimento.

2.1.2 Âmbitos de entrega

Quando um estabelecimento é transmitido por um dos negócios que o trespasse abrange, uma questão que
se coloca é a de saber o que está a ser transmitido. A este propósito, a doutrina costuma falar dos âmbitos
de entrega (também vale para a locação, com algumas diferenças). Isto poderia ser estendido a outros
negócios, por ex., é concebível um usufruto de um estabelecimento comercial, ou a constituição de um
penhor sobre um estabelecimento comercial.

Há aqui uma questão prévia que deve ser referida, que passa por uma posição do curso que é distinta da
de CASSIANO DOS SANTOS: quando falamos em âmbitos de entrega, estamos a pensar naquilo que só se
pode transmitir por força do negócio, sem intervenção da vontade de outrem? Por ex., as posições
contratuais em geral: em regra, a transmissão da posição carece do consentimento da contraparte (art.
424.º). Para COUTINHO DE ABREU, se é necessário este consentimento, não podemos falar aqui em
elementos que fazem parte do âmbito de entrega porque não podem ser transmitidos só por força do
negócio. A outra leitura, de CASSIANO DOS SANTOS, é diferente: o que interessa é saber o que é
efectivamente abrangido na negociação, ainda que não se transmita só por força do contrato das partes.
Mas uma questão é saber se as partes quiseram abranger os elementos naquele negócio (âmbitos de
entrega); outra é a de saber se, tendo as partes incluindo os elementos no negócio, estes se transmitem
efectivamente.

Devemos fazer a distinção entre quatro âmbitos de entrega diferentes:


1. Âmbito mínimo;
2. Âmbito natural;
3. Âmbito convencional;
4. Âmbito legal ou imperativo.

O âmbito mínimo só consegue ser apurado em concreto; os restantes, podem ser determinados em
abstracto.

1) Âmbito mínimo: qualquer negociação de estabelecimento tem de envolver um certo conjunto de


elementos que sejam necessários mas suficientes para identificar aquele concreto estabelecimento que
existia na titularidade do transmitente – o âmbito mínimo de entrega. Apesar de as partes gozarem de
grande liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos do estabelecimento, tal exclusão
não pode abranger os elementos necessários ou essenciais para identificar a empresa. Isto pressupõe a

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

noção de estabelecimento ou empresa, uma unidade jurídica que assenta numa organização de meios – e
para podermos falar numa organização de meios têm de ser transmitidos os meios necessários ao suporte
dessa organização. Desrespeitando-se o âmbito mínimo, fica impossibilitado o trespasse, e o objecto do
negócio serão assim os elementos do estabelecimento e não o próprio estabelecimento.

A averiguação dos elementos que integram o âmbito mínimo só pode, obviamente, ser feita em
concreto. O prédio, ou o direito ao prédio, não integra necessariamente o âmbito mínimo: há casos em
que pode integrar, nos estabelecimentos absolutamente vinculados (ORLANDO DE CARVALHO). O
exemplo de escola é estar um estabelecimento num dado local por só esse ter acesso à fonte de uma água
termal.

Assim, temos de ir verificar se, naquele trespasse em concreto, os elementos que vamos considerar
abrangidos naquela negociação permitem ou não dizer que foi respeitado o âmbito mínimo. Isto vai ser
determinado a partir dos outros âmbitos.

2) Âmbito natural: o âmbito natural compreende os elementos que se transmitem sem ser necessário a
convenção das partes. O que está a ser pressuposto nesta noção é uma certa concepção de
estabelecimento: se o trespassante e o negociante dizem que estão a negociar aquele estabelecimento,
então serão abrangidos todos aqueles elementos que não necessitem de uma convenção ad hoc no sentido
da sua transmissão. Mas claro que as partes podem excluir certos elementos, desde que não ponham em
causa o âmbito mínimo de entrega.

O âmbito natural pode ser definido em abstracto. Quais são os elementos que integram este âmbito de
entrega?
• Logótipos e marcas. No caso da marca, por interpretação a contrario do art. 31.º/5, tem-se
entendido que integram o âmbito mínimo.
• Meios ou elementos que contribuem para a organização e fazem parte do estabelecimento –
máquinas, mobiliário, matérias-primas, inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou
modelos.
• Quanto aos prédios, a questão suscita controvérsia. Tradicionalmente, entendia a jurisprudência
que o trespasse não implica a transmissão do prédio; a doutrina divide-se. Para COUTINHO DE
ABREU, não existem razões “que validem um tratamento diferenciado do prédio em face de bens
que, tal como ele, fazem parte do estabelecimento, são seus elementos. ... Para já não falar dos
estabelecimentos absolutamente vinculados, o peso dos imóveis na estrutura organizatório-
exploracional das empresas é em muitos casos determinantes – pense-se nos hotéis”. “Por
conseguinte, quanto num contrato de trespasse se não faça menção à transmissão do prédio e

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

não se conclua, por interpretação do negócio, que ele foi excluído, deve concluir-se que a
propriedade do mesmo foi (naturalmente) transmitida”.
• Como vimos, a posição de arrendatário fazem parte do âmbito natural; mas já não as posições
contratuais em geral (carecem de consentimento).
• Fazem ainda parte do âmbito natural as prestações laborais, por força do art. 285.º/1 do CT.

Em relação às dívidas, no caso de transmissão do estabelecimento através do trespasse, e ao contrário do


que sucede se adquirirmos participações sociais de uma sociedade, não se transmitem: na ausência de
uma disposição legal específica para o caso do trespasse, se nada for dito pelas partes, nem sequer existe
uma co-assunção das dívidas, e muito menos a transmissão. Isto porque no caso da transmissão singular
de dívidas é necessário o consentimento do credor, ou seja, para a transmissão seria sempre necessário o
consentimento do credor (art. 595.º).

Em relação ao imóvel, o principal problema é o da forma: a verdade, porém, é que o Código de Registo
Predial dá a entender que, respeitada a forma exigida para o trespasse, o estabelecimento poderá envolver
o prédio e este pode ser registado em nome do adquirente do estabelecimento com o documento escrito
do trespasse. Se o trespasse identificar o estabelecimento como situado naquele imóvel, que pertencia ao
trespassantes, isto é suficiente para registar a aquisição em nome do adquirente. Claro que, na prática,
devemos seguir a via mais cuidadosa e fazer referência à transmissão da propriedade do prédio.

Em suma, podemos dizer que “o trespasse coenvolve naturalmente a transmissão da propriedade de


todos os elementos que a esse título pertenciam ao trespassante – podendo todavia nalguns casos um ou
mais desses elementos não se transmitir, ou seja, nos casos em que a exclusão resulta de uma disposição
legal, ou é consequência mediata de uma cláusula negocial, ou corresponde à vontade real concordante
das partes”. Para além disto, integra ainda certos elementos empresariais na disponibilidade do
trespassante a título obrigacional, como as prestações laborais e a posição de arrendatário, mas já não
aqueles que careçam de consentimento para transmissão (como as máquinas, veículos e móveis
emprestados, art. 1059.º/2, que remete para o art. 424.º).

3) Âmbito convencional: integra os elementos empresariais que só com uma convenção ad hoc serão
abrangidos pelo negócio. Que elementos integram o âmbito convencional?
• Firma, art. 44.º do RRNPC;
• Logótipo e marca, quando neles figure nome individual, firma ou denominação do titular do
estabelecimento (art. 31.º/5 do CPI).
• Os créditos, apesar de não serem considerados elementos do estabelecimento mas sim elementos
do activo do titular do estabelecimento (art. 577.º e segs. do CCiv.).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

4) Âmbito imperativo-legal: quanto ao âmbito imperativo-legal, vamos encontrar a sua regulação em


regimes específicos:
• Art. 285.º do Código do Trabalho (dívidas resultantes do contrato de trabalho e relativas a
coimas): segundo o n.º 2, o transmitente responde solidariamente pelas obrigações vencidas até à
data da transmissão; mas, mais importante, transmite-se para o adquirente a responsabilidade pelo
pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral; e a transmissão da
posição do empregador no contrato de trabalho vai envolver as obrigações relacionadas com essa
posição. Isto é extremamente importante, e significa também que a negociação de um
estabelecimento deve ser precedida da obtenção de informações acerca da empresa em relação a
este aspecto (due diligence). A responsabilidade do trespassante cessa após 1 ano.
• Art. 209.º do Código dos Regimes Contributivos para a Solidariedade Social (abrange também a
cessão de exploração ou locação): o n.º 2 diz que o cessionário responde solidariamente com o
cedente pelas dívidas à Segurança Social existentes à data da celebração do negócio. Isto também
é importantíssimo, uma vez que podem estar em causa dívidas muito avultadas. Aqui, ao
contrário do que sucede no caso anterior, a responsabilidade do cedente não cessa passado um
período de tempo: na realidade, não se pode falar aqui em algo que pertence ao âmbito de entrega
porque não há transmissão, são os dois sempre responsáveis.
• Casos de trespasse de EIRL: o EIRL não tem de ser um estabelecimento em sentido objectivo,
mas se o é a sua transmissão faz-se com as dívidas que integram a exploração, uma vez que tal
decorre da sua natureza enquanto património autónomo.

2.1.3 Obrigação implícita de não concorrência

Ø Noção

No caso de locação, a obrigação de não concorrência tem apoio na lei; no caso do trespasse, esta não
resulta directamente da lei, falando-se assim de uma obrigação implícita, que vai onerar o trespassante.
Segundo esta obrigação, “o trespassante de estabelecimento (e, eventualmente, uma ou outra pessoa
mais) fica em princípio obrigado a, num certo espaço e durante certo tempo, não concorrer com o
trespassário (e sucessivos adquirentes) – nomeadamente, fica vinculado a não iniciar actividade
similar à exercida através do estabelecimento trespassado”.

Ao dizer que é uma obrigação implícita, estamos a sustentar-nos na natureza do objecto e do negócio. O
principal fundamento avançado para esta obrigação reside no dever de o alienante entregar a coisa
alienada e assegurar o seu gozo pacífico. Se se trata de uma compra e venda, cujas disposições são

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

aplicáveis aos restantes negócios de contrato oneroso, uma das obrigações do vendedor é a entrega da
coisa.

Nesta obrigação de entrega do estabelecimento, deve considerar-se implícita a obrigação de não


concorrência sempre que o trespassante esteja em condições de pôr em causa aquilo que transmitiu,
desenvolvendo aquilo que a doutrina tem designado por concorrência diferencial, que é
particularmente perigosa – o transmitente pode pegar naquilo que sabia e reproduzir aquela organização,
recuperando os valores de exploração. Os valores de exploração fazem parte do estabelecimento e são
com eles transmitidos. O trespassante pode estar em condições de repetir a mesma organização e recriar
os valores de exploração (mesmos clientes, fornecedores, financiadores, etc.), ou seja, de recriar esta
concorrência diferencial, pondo assim em causa o cumprimento da obrigação de entrega.

Mas há casos em que não há risco de isto suceder: por ex., um herdeiro único do estabelecimento que
nunca teve contacto com ele. Numa situação destas, não se pode dizer que a obrigação de concorrência se
justifique, uma vez que não tinha contacto com os clientes, fornecedores, financiadores.

Notas:
• A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios incluíveis
no conceito de trespasse (venda, troca, realização de entrada social, dação em cumprimento,
doação, etc.). A alienação de participações sociais não se identifica com a alienação da empresa
social; porém, para certos efeitos, a alienação da totalidade ou da maioria das quotas é
equiparável ao trespasse da empresa social – para COUTINHO DE ABREU, também para efeitos da
OINC, uma vez que a alienação opera uma transmissão indirecta da empresa. Se, para efeitos
daquela transmissão, teve especial significado o estabelecimento em causa, então a própria
transmissão do controlo ou da totalidade das participações poderá equivaler eventualmente ao
próprio trespasse. Nestes casos, devemos adoptar uma visão não formalista e reconhecer que o
que está em causa na realidade é a transmissão do estabelecimento.
• Além do trespassante, outras sujeitos podem ficar vinculadas pela OINC: é o caso do cônjuge
do trespassante, dos seus filhos ou, nos casos em que o trespassante é uma sociedade, os sócios,
desde que estas pessoas tenham os conhecimentos do trespassante relativos à organização,
clientes, fornecedores, etc.
• Quanto falamos em não concorrência, estamos a pensar em iniciar uma actividade concorrente.
Coisa diferente é o trespassante ser explorador de vários estabelecimentos concorrentes entre si e
trespassa um deles: neste caso, não está obviamente obrigado a encerrar os outros. Isto mostra
que o estabelecimento subsistia com a existência dos restantes.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• A hipótese mais óbvia de violação é a da abertura de um estabelecimento igual. Mas não parece
haver dúvidas que a afirmação da obrigação pode dizer respeito a outros comportamentos que
não a abertura de um estabelecimento igual: por ex., montar uma sociedade por quotas
unipessoal que vai explorar um estabelecimento dedicado a uma actividade concorrente
(formalmente, quem está a concorrer não é o trespassante, mas sim a sociedade, mas devemos
afirmar uma concepção não formalista e reconhecer aqui um caso de violação da obrigação);
passar a desempenhar funções de direcção/administração em empresa alheia e concorrente, etc.
Pode-se também defender que a invocação da autonomia jurídica das pessoas constitui, nestes
casos, um abuso do direito.

Ø Limites

Esta obrigação de não concorrência não pode ser afirmada de forma absoluta – daí a doutrina afirmar a
existência de limites, sob pena de violação do princípio da liberdade de iniciativa económica (art. 61.º da
CRP) e das regras de defesa da concorrência. Em primeiro lugar, para além dos limites de carácter
temporal, podemos falar em limites/âmbitos de carácter espacial.
• Limite temporal: é compreensível que esta obrigação não vá valer para todo o tempo, até porque
isto seria dar um prémio ao adquirente que beneficia do trabalho do trespassante, existindo por
isso legislações no estrangeiro que estabelecem uma duração. Entre nós, a duração da obrigação
vai depender do caso: o critério é o do tempo necessário para que a organização se consolide
nas mãos do trespassário com diligência do homem normal, e não do homem concreto.
• Limite espacial: tradicionalmente, dizia-se que coincidia com o raio de acção do
estabelecimento, o que se provava através da facturação. Hoje, com as vendas que são feitas
online, isto é muito mais complicado, pois muitas empresas têm como mercado o mundo, e com
isto torna-se difícil saber qual o limite espacial. Note-se que é necessário que a parte essencial do
estabelecimento seja feita com uma determinada área.

Para além destes, encontramos limites objectivos – os sujeitos não ficam proibidos de exercer qualquer
actividade económica, apenas de iniciar actividade concorrente ou de praticar outros comportamentos
(como vimos acima).

Ø Consequências da violação

Imaginemos que o trespassante viola a obrigação de concorrência: o que sucede? Se dizemos que a
obrigação existe por causa da obrigação de entrega, o trespassante que viola a obrigação de não

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concorrência incorre em incumprimento do contrato, com todos os meios de tutela que lhes estão
associados. Assim, o trespassário pode:
• Exigir uma indemnização por perdas e danos (art. 798.º do CCiv.).
• Resolver o contrato de trespasse (art. 801.º/2).
• Intentar uma acção de cumprimento (art. 817.º).
• Requerer uma sanção pecuniária compulsória (art. 829.º-A).
• Coloca-se também a questão de saber se se pode intentar uma acção a pedir que se encerre o
estabelecimento (note-se que isto é diferente de uma mera acção de cumprimento): para este
efeito, podemos invocar o disposto no art. 829.º do CCiv.? A doutrina oferece várias leituras para
este preceito, nomeadamente a leitura restritiva segundo a qual só abrange as hipóteses de “obra”;
porém, podemos contra-argumentar que o legislador apenas falou em obra por ser esta a hipótese
mais significativa – SOVERAL MARTINS defende assim a possibilidade de invocação deste artigo,
quanto mais não seja por analogia.

Ø Possibilidade de afastamento por estipulação contratual

A OINC pode ser afastada por estipulação contratual, uma vez que, estando em causa interesses
patrimoniais do trespassário, este pode dispor deles livremente. Apesar de esta cláusula ser válida, o
afastamento da OINC pode ser um indício de que não se verificou um trespasse, pois o que as partes
quiseram verdadeiramente transmitir foi meros elementos empresariais. Isto salvo certas situações: por
ex., nos casos de estabelecimentos altamente desvalorizados, em que o trespassário vai ter de começar do
zero; ou em que o trespassante esteve pouco tempo à frente do negócio e não adquiriu os conhecimentos
suficientes para a concorrência diferencial.

2.1.4 Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado

2.1.4.1 Dispensa de autorização do senhorio (art. 1112.º/1/a))

Segundo o art. 1059.º/2 do CCiv., “a cessação da posição de locatário está sujeita ao regime geral dos
arts. 424.º e segs., sem prejuízo das disposições deste capítulo”. Uma destas disposições especiais é o art.
1112.º/1/a), estabelece que, no caso de estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio
arrendado, o trespassante-arrendatário pode ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem
necessidade de autorização do senhorio. Apesar disto, a lei consagra o direito de preferência do
senhorio (art. 1112.º/4), sendo necessária a comunicação dos elementos essenciais desse negócio.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

O art. 1112.º/1/a) é uma norma que tutela a circulação negocial dos estabelecimentos, uma vez que, dada
a importância dos prédios, a necessidade de autorização do senhorio conduziria muitas vezes à quebra
daquela defesa. Ou seja, tutelam-se os interesses (COUTINHO DE ABREU):
• Do trespassante em transmitir, sem entraves do senhorio, estabelecimento integrado em prédio
arrendado.
• Do trespassário em adquirir empresas o mais possível valiosas e funcionais.
• Interesse económico-geral na continuidade e desenvolvimento das empresas.

Nas palavras de RICARDO COSTA, “a lei toma posição no conflito de interesses em matéria de cessão da
posição contratual do arrendatário quando trespassante: por um lado, o interesse comercial de efectuar a
transmissão global da empresa, em princípio mais valorizada com a manutenção do direito imobiliário ... ;
por outro lado, o interesse civilístico de ‘controlar’ (no limite, vedar) a mudança do arrendatário
propiciada pela ‘viragem’ do contrato de arrendamento com o trajecto da empresa”. A lei vem dar
prevalência ao primeiro.

2.1.4.2 Casos de inexistência de trespasse (art. 1112.º/2 e 5)

O n.º 2 do art. 1112.º prevê um controlo da existência de um verdadeiro trespasse, que funciona como
“condição legal da cessão lícita da posição do arrendatário-trespassante e do regime especial da
dispensa de autorização do senhorio” (R. COSTA). Se o senhorio provar a simulação, tem o direito de
resolução do contrato de arrendamento, nos termos do art, 1083.º/2/e) (cessão da posição ilícita).

Ø Art. 1112.º/2/a)

O art. 1112.º/2/a), vem dizer que não há trespasse quando a transmissão não seja acompanhada de
transferência em conjunto das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integrem o
estabelecimento. Isto parece dar a ideia que o estabelecimento tem de ser transmitido na sua totalidade,
bastando a falta de um dos seus elementos para que não se possa falar de trespasse – logo, não havendo
autorização prévia do senhorio, a transmissão da posição do arrendatário é ilícita e podemos estar perante
uma causa de resolução do contrato de arrendamento (art. 1183.º/2/e) do CCiv.).

Não é esta a leitura que fazemos: temos de interpretar a lei de forma a que se alcancem soluções
razoáveis, pois caso contrário poderíamos ter situações absurdas. Assim, devemos apenas exigir apenas a
negociação do âmbito mínimo de entrega: se este foi respeitado em concreto, temos trespasse, ou seja,
para que o art. 1112.º/1 não tenha aplicação o senhorio tem de provar que sem os elementos excluídos não
subsiste aquele concreto estabelecimento. Entendemos, como tal, que a al. a) está a desenvolver uma

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função de alerta para a necessidade de se transmitir verdadeiramente o estabelecimento, prevenindo os


casos de simulação da transmissão do estabelecimento apenas para transmitir a posição do arrendatário.
CASSIANO DOS SANTOS tem uma posição diferente, entendendo que é necessário que o estabelecimento
seja transmitido com a extensão do negócio à essencialidade dos elementos.

Ø Art. 1112.º/2/b)

Por outro lado, a al. b) diz que não há trespasse quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de
outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a afectação a outro destino. Isto é muito
difícil de provar, uma vez que se prende com intenções. O mais provável é a intenção de mudança de
destino ser revelada por factos posteriores – por ex., logo no dia a seguir ao trespasse, o estabelecimento
fecha para obras, sem sequer abrir um único dia.

Aqui, a mudança objectiva do estabelecimento (em especial, dentro de um fim comercial; ou em geral,
para um fim não comercial ou habitacional) interessa enquanto reflexo da vontade das partes no
momento da celebração, de como não quiseram realizar efectivamente um contrato de trespasse – mas
sim a cessão do gozo do próprio imóvel, furtando-se à regra da autorização do senhorio. O objectivo da
lei é a prevenção e detecção de acordos simulatórios. Assim, a mudança de destino pode ser feita em
condições tais, nomeadamente após o decurso de algum tempo após o trespasse, que indica que o
trespassante e trespassário quiseram mesmo realizar o contrato de trespasse.

Em suma, não haverá trespasse se o objecto do negócio foi o imóvel e não o estabelecimento, sendo que,
para surpreender esta simulação, é necessário (RICARDO COSTA):
• Denunciar a vontade real dos intervenientes ao tempo da transmissão do estabelecimento, que
pode ser expressa nas declarações, ou de outras cláusulas indiciadoras da fraude à lei (por ex., o
preço do trespasse em relação ao valor do estabelecimento).
• E/ou afirmar a expressão da vontade real dos intervenientes numa situação ocorrida após a
transmissão do estabelecimento – não só a mudança do destino, mas também outros actos que
exprimam o decaimento dos valores de exploração e organização da empresa (por ex., a venda
dos bens significativos e o encerramento do estabelecimento).

Declarada a simulação, a autorização do senhorio era necessária (art. 1038.º/f), 1059.º/2 e 424.º/1) e, por
falta dela, pode o senhorio resolver o contrato (art. 1083.º/1 e 2/e)) e, se for caso disso, pedir
indemnização por perdas e danos decorrentes do incumprimento contratual (art. 1038.º/f) e 798.º).

Note-se que SOVERAL MARTINS e RICARDO COSTA não têm a mesma posição que as lições: defendem
que tanto o trespassante como o adquirente têm de ter a mesma intenção, enquanto que COUTINHO DE

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ABREU defende que basta que o adquirente tenha esta intenção. Isto porque senão estaríamos estar a pôr
nas mãos do adquirente o destino do trespassante, que poderia, por ex., ser alvo de uma acção de
resolução por cessação ilícita pelo senhorio.

Ø Art. 1112.º/5

O n.º 5 diz que o senhorio pode resolver o contrato quando seja dado outro destino ao prédio:
considerou-se que este regime mais favorável aos interesses do comércio só se justificaria se se
mantivesse aquele ramo do comércio. A mudança objectiva do destino do prédio parece ser assim uma
causa de cessão ilícita, sancionando-se automaticamente este comportamento, independentemente da
vontade genética das partes.

Esta norma é bastante criticada, havendo divergência na doutrina quanto à questão de saber se a norma
cria ou não um fundamento autónomo de resolução. Com efeito, parte da doutrina entende que esta não
é uma causa autónoma:
• Certos autores defendem que e uma confirmação do art. 1112.º/1/b) – a transformação posterior é
um indício de uma vontade genética. Apenas vem trazer alguma certeza a esta manifestação.
• Outros defendem que o que está em causa é a violação da finalidade do contrato de arrendamento
(art. 1083.º/2/c)), logo este n.º 5 é desnecessário. A fórmula “dar outro destino” é absorvida na
alteração do fim convencionado.

Entre nós, entendemos que é fundamento autónomo de resolução: mas como interpretar?

1) RICARDO COSTA faz uma interpretação restritiva, segundo o qual o n.º 5 apenas vale para mudança
de mercantil para não mercantil ou mercantil para habitacional, não valendo quando haja mudança de
ramo comercial, protegendo desta forma a conversão dentro das actividades mercantis. Esta até poderia
ser uma interpretação declarativa, uma vez que apenas fala de mudança de destino e a al. d) usa esta
expressão para mudança de mercantil para não mercantil ou de mercantil para habitacional.

O autor critica a solução deste artigo, avançando três argumentos que suportam a interpretação restritiva:
• É uma solução “prejudicial ao interesse da tutela da conservação do estabelecimento”.
• É um poder desmedido do senhorio, comparado com o direito de resolução a que lhe assiste com
base em incumprimento do fim convencionado. Mesmo quando se reserva o imóvel para um fim
específico, aceita-se que são permitidas pela cláusula contratual as actividades que lhes estejam
próximas, com o objectivo de limitar a intromissão do senhorio.

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• Finalmente, é uma opção atrofiante os interesses empresariais. Visa-se a protecção da livre


circulação dos estabelecimentos comerciais, sem entraves colocados pelos senhorios – ora, se a
empresa não estiver a funcionar bem e não puder ser alterada, podemos nunca ter um
estabelecimento susceptível de ser negociado.

CASSIANO defende também a interpretação restritiva, mas deve ser feita em função do tempo que demora
a conversão: a mudança após a transmissão tem de ser imediato, porque isto é que é censurável
(transpondo o juízo da al. b), segundo o qual uma mudança imediata é indício de simulação).

2) COUTINHO DE ABREU distingue o n.º 5 do n.º 2/b): uma coisa é aferir a vontade genética, outra a
mudança objectiva. Assim, o n.º 5 esvazia o n.º 2/b), pois o senhorio não precisa de ir averiguar a fraude.

De qualquer forma, entendemos sempre que o n.º 5 é independente da vontade genética, ao contrário da
al. b), que concentra a averiguação no momento genético. Objectivamente, houve uma mudança
objectiva de destino, que pode, independentemente da vontade genética das partes, constituir fundamento
de resolução. Para RICARDO COSTA, apenas vale quando a mudança do prédio for para fora do círculo
empresarial.

No art. 1112.º/2/b), havendo trespasse simulado e cessão não autorizada, temos uma ilicitude e pode
haver responsabilidade civil por factos ilícitos; enquanto que, no n.º 5, se não houver cumulação com a al.
b), não há lugar à responsabilidade civil. Não temos aqui qualquer cessão ilícita.

Assim, n.º 5 distingue-se da al. b) e ainda do art. 1083.º/2/c) (é independente da questão do fim
contratual), mas estas causas de resolução podem-se cruzar: podemos ter várias causas de resolução ao
mesmo tempo. Por ex., muda o destino e ao mesmo tempo viola o fim do contrato de arrendamento.
Podemos até ter as 3 causas de resolução ao mesmo tempo.

Outra questão é a de saber se o art. 1112.º/5 depende do funcionamento da cláusula do art. 1083.º/2.
Com efeito, o art. 1083.º depende do funcionamento da cláusula de gravidade do n.º 2: o senhorio só pode
resolver o contrato com base naqueles fundamentos se se tornar inexigível a manutenção do contrato de
arrendamento. A primeira tese após 2006 era a de que todas as justas causas de resolução têm de interagir
com esta cláusula; outros autores dizem que as causas previstas no art. 1083.º presumem a gravidade, que
tem de ser ilidida pelo arrendatário; outros, que são tão graves que não é preciso ir à cláusula geral; outros
ainda que depende (tem de ser ponderado fundamento a fundamento).

O art. 1112.º/5, sendo uma justa causa de resolução, tem de ser ponderado à luz da cláusula geral?
Depende da tese que adoptarmos quando à cláusula: para RICARDO COSTA, o funcionamento de todas as

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justas causas depende da ponderação à luz da cláusula geral, apesar de o juízo a fazer para cada
fundamento ser diferente (há causas que são mais graves, por ex., a violação dos bons costumes). A
gravidade de partida é diferenciada.

Assim, ainda temos de passar pelo crivo do art. 1083.º/2, o que será improvável uma vez que, quando
temos um prédio desvalorizado e mudamos de destino para o estabelecimento ser viável, não é inexigível
a manutenção do contrato.

Isto também é aplicável à locação, por força do art. 1109.º/1. Mas aqui temos uma particularidade, que é a
de que o locatário deve restituir a coisa locada tal como a recebeu, e como tal se alterar o destino está a
violar esta obrigação.

2.1.4.3 Obrigação de comunicação

O art. 1112.º/3 estabelece que a transmissão da posição do arrendatário, sem dependência de


autorização do senhorio, deve ser-lhe comunicada. Esta norma repete o disposto no art. 1038.º/g) do
CCiv., que estabelece a obrigação de comunicação do locatário ao locador da cedência do gozo da coisa,
sendo a cessão da posição do locatário ineficaz perante o locado no caso de violação desta obrigação (art.
424.º/2, para o qual remete o 1059.º/2).

Esta comunicação ao senhorio tem quatro funções (RICARDO COSTA):


• Dar a conhecer ao senhorio a identidade da nova contraparte.
• Permitir o controlo da existência no caso concreto de um verdadeiro trespasse.
• Ficar prevenido para uma eventual afectação do prédio a outro destino.
• Permitir o exercício do direito de preferência, se não se tiver feito a comunicação do projecto do
trespasse e das cláusulas do negócio (art. 416.º).

Esta norma vem “fechar o círculo normativo de tutela da circulação da empresa do trespassante-
arrendatário”. RICARDO COSTA defende que esta comunicação deve incluir igualmente a cópia do próprio
contrato de trespasse.

O art. 1112.º/3 não menciona o prazo da comunicação. Existem aqui duas hipóteses: ou o prazo é o prazo
geral do art. 1038.º, al. g), de 15 dias; ou é, por analogia, o prazo do regime previsto na lei para o locação
do estabelecimento, art. 1109.º, de 1 mês. Aplica-se o regime geral ou, por analogia, o regime específico?
Existem argumentos nos 2 sentidos. No sentido da aplicação do regime geral, temos dois argumentos:
• Regras de interpretação das leis – aplicação do regime geral a uma lacuna do regime especial.

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• Por outro lado, estamos no regime geral a ser mais exigentes quanto à obrigação de comunicação,
o que faz sentido no caso do trespasse pois o senhorio é confrontado com uma substituição de
arrendatário. Ou seja, para o senhorio, é uma situação mais grave. Na locação de estabelecimento,
o locador do estabelecimento continua arrendatário do prédio perante o senhorio.

Assim, parece ser de aplicar o regime geral (prazo de 15 dias), sendo esta a posição de COUTINHO DE
ABREU.

O adquirente do estabelecimento também pode fazer a comunicação, para evitar o risco da resolução do
contrato. Note-se que o n.º 3 apenas fala na comunicação da transmissão, mas claro que o que se pretende
é que a transmissão seja comunicada e que se diga que esta foi feita no quadro do trespasse.

Coloca-se ainda a questão de saber quais são as consequências do incumprimento da obrigação. Para
COUTINHO DE ABREU, aplicamos o regime da cessão da posição, segundo o qual a cessão da posição do
locatário é ineficaz perante o locado no caso de violação desta obrigação (art. 424.º/2, para o qual remete
o 1059.º/2). Sendo ineficaz, isto pode constituir fundamento para resolução do contrato (art. 1083.º/e)).
Porém, normalmente a resolução não é decretada pelo simples facto de se ter ultrapassado: é necessário,
como estabelece o art. 1083.º/2, que o incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne
inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

CASSIANO DOS SANTOS tem uma outra leitura do art. 424.º/2, uma vez que este artigo parte da hipótese
em que é necessária prévia autorização da outra parte (no nosso caso, se fosse exigido o consentimento do
senhorio para a transmissão da posição do arrendatário).

O art. 1048.º diz que o locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na violação da
obrigação da al. g) quando a comunicação tenha sido feita por quem adquire o estabelecimento. Isto
mostra que não é particularmente pesada a obrigação que recai sobre o trespassante e trespassário, este
não é um regime lesivo para os interesses de comércio.

2.1.4.3 Contratos de duração indeterminada e trespasse

Para os contratos mais antigos, o art. 28.º/2 diz que não se aplica o art. 1101.º do CCiv., que trata dos
contratos com duração indeterminada e prevê para esses a possibilidade de o senhorio denunciar o
contrato. Este artigo dá assim uma protecção a estes contratos (que não eram em rigor contratos de
duração indeterminada, mas sim de renovação obrigatória), que escapam ao regime da denúncia do art.
1101.º.

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O art. 28.º/3 é mais importante: em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais (comercial), a
antecedência da denúncia a que se refere a al. c) do art. 1001.º é elevada para 5 anos. Assim, nestes
arrendamentos, vale o regime da denúncia, mesmo que se tratem dos contratos que à luz do anterior
regime estavam sujeitos a renovação obrigatória. Ou seja, se tivermos um daqueles contratos mais
antigos, e se houver trespasse ou locação, aquilo que era um contrato de renovação obrigatória agora cai
por terra e o adquirente do estabelecimento vê surgir como risco a possibilidade de o senhorio pôr termo
aquele contrato de arrendamento. Com isto, o interesse de realizar trespasse pode ter diminuído um
pouco, e o problema surge também para a locação do estabelecimento.

2.3 Locação de estabelecimento

2.3.1 Noção

Já se chegou a chamar cessão de exploração de estabelecimento ou concessão de exploração; porém, o


termo locação será mais adequado. A locação de estabelecimento é definível como o contrato pelo qual
uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, mediante
retribuição. Esta noção enquadra-se com a noção geral de locação prevista no art. 1022.º do CCiv. –
assim, “os estabelecimentos podem ser locados; a locação de estabelecimento é contrato nominado – tanto
na doutrina, como na lei; tal contrato também é típico, isto é, está regulado na lei”.

O art. 1109.º trata da locação de estabelecimento, mas não aborda muitos aspectos: até porque remete
para as próprias regras da subsecção em que se insere, que não são dedicadas à locação mas sim ao
arrendamento para fins não habitacionais. Ora, parece estar em causa a negociação do estabelecimento
como um todo, ou seja, o prédio em conjunto com o estabelecimento, e isto é importante porque vamos
aplicar as regras da subsecção ao contrato de cessão de estabelecimento e não apenas ao direito sobre
o imóvel. Para além disto, o art. 1109.º não resolve uma coisa que estava antes prevista na lei: não temos
aqui um subarrendamento. O direito que o locatário terá é apenas o direito de utilização do prédio no
âmbito da exploração do estabelecimento cujo gozo lhe foi cedido.

O n.º 2 dispõe que, havendo locação de estabelecimento, o senhorio não tem de dar consentimento para
o trespassário utilizar o imóvel onde está instalado o estabelecimento. Apenas existe uma obrigação de
comunicar, embora agora seja no prazo de 1 mês. O próprio locatário pode ele mesmo fazer a
comunicação, apesar de quem tem a obrigação de comunicar é o locador. Faltando a comunicação, a
cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio e este pode resolver o contrato (art.
1083.º/2/e)).

2.3.2 Regime

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O art. 1110.º/1 estabelece que “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos
contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes,
aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação”.

1) Duração: as partes na locação de estabelecimento estipulam livremente a duração do contrato. Porém,


se nada tiverem estipulado, não se aplica o disposto quanto ao arrendamento para habitação, uma vez que
o n.º 2 acrescenta que se nada se estipular o contrato considera-se celebrado com prazo certo, com o prazo
de 5 anos.

2) Denúncia:
• Tendo o contrato sido celebrado com prazo certo, na falta de regime convencional para a
denúncia, vale o previsto no art. 1098.º/3 e 4 (denúncia apenas pelo locatário), excepto se o prazo
certo de duração for o supletivo (5 anos), caso em que não poderá o locatário denunciar o
contrato com antecedência inferior a 1 ano (art. 1110.º/2).
• Se o contrato tiver sido celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da denúncia
(pelo locatário e também pelo locador) é o dos arts. 1100.º e 1101.º.

3) Oposição à renovação: um aspecto importante é o de saber se, sendo o contrato de locação celebrado
justamente com o prazo estabelecido ou valendo o prazo supletivo, se, atingindo o prazo limite o
locatário é vai ser confrontado com a caducidade ou a renovação. Isto é completamente diferente, do
ponto de vista da estabilidade, expectativas, etc.
• COUTINHO DE ABREU argumenta que, no art. 1110.º/1, se remete para o regime do arrendamento
para fins habitacionais quanto a duração, denúncia e oposição à renovação: não se remete para o
regime da própria renovação, nomeadamente para o regime do art. 1196.º, que diz que o contrato
celebrado por prazo certo renova-se automaticamente. Qual é a consequência disto? Vale o
regime geral da locação, que é o da caducidade.
• SOVERAL MARTINS, por outro lado, entende que, se se remete para o regime da oposição à
renovação, então também se remete para o regime da renovação, isto estará pressuposto. Porém, a
questão é duvidosa. Também se pode argumentar que o legislador remeteu apenas para as regras
relativas à oposição da renovação porque as partes podem prever a renovação (e aí aplica-se o
regime da oposição) e não porque pressupõe a renovação.

Outros aspectos do regime:


• O art. 1111.º refere-se a obras de conservação. Na opinião de COUTINHO DE ABREU, este artigo é
inaplicável à locação de estabelecimento.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Em relação à forma, o art. 1112.º aplica-se: segundo a primeira parte do n.º 3, o contrato de
locação de estabelecimento deve ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade.

2.3.3 Âmbitos de entrega

Tal como no caso do trespasse, a locação de estabelecimento o âmbito mínimo de entrega tem de ser
respeitado. Vale aqui o que dissemos em relação ao trespasse.

Porém, é necessário ter em conta que o locatário não adquire a propriedade dos bens empresariais que
estão abrangidos no estabelecimento. Os elementos que são da propriedade do locador são abrangidos e
o locatário pode utilizá-los: uma vez que o negócio da locação incide sobre o estabelecimento enquanto
unidade jurídica, “o direito locatício sobre o todo com que fica o locatário não pode logicamente implicar
direitos de propriedade sobre as partes”. Quanto ao prédio, o art. 1109.º/1 fala expressamente em
transferência temporária do gozo do mesmo.

Assim sendo, com que direito é que o locatário transforma e/ou aliena bens constituintes do capital
circulante e aliena bens do capital fixo que é necessário substituir? Por ex., o locatário pode vender a
mercadoria que era da propriedade do locador, sem se tornar proprietário delas. “Este poder ou direito de
disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de propriedade, mas sim no poder-
dever de exploração do estabelecimento”. O locatário tem a obrigação de restituir o estabelecimento
como o recebeu, com valores de exploração e uma certa posição no mercado, e um estabelecimento não
explorado pode perder valor e até desaparecer.

Notas sobre os âmbitos de entrega:


• A generalidade dos meios empresariais pertencentes ao locador (máquinas, ferramentas,
mercadoria, inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou modelos, recompensas, etc.)
pertencem ao âmbito natural. O mesmo sucede com o logótipo e as marcas (art. 31.º/5 e 304.º-P
do CPI), sendo a locação uma transmissão (temporária) do estabelecimento para efeitos deste
artigo.
• Quanto aos elementos empresariais que se encontram na esfera do locador a título obrigacional,
integram o âmbito natural a posição de empregador (o art. 285.º/3 do CT faz referência à
aquisição da posição de empregador no âmbito da locação), a posição de arrendatário, os bens
detidos pelo locador a título de locação financeira ou simples aluguer, e as patentes, modelos de
utilidade, desenhos ou modelos e marcas objecto de licença de exploração (art. 32.º/8 do CPI).
• Quanto à firma, também na locação esta deverá integrar o âmbito convencional (CASSIANO DOS
SANTOS entende que integra o âmbito natural).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

2.3.4 Obrigação de não concorrência

Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador está obrigado a não concorrer num
determinado espaço com o locatário, nomeadamente a não iniciar actividade igual ou semelhante à
exercida através do estabelecimento locado. Esta não é uma obrigação implícita, uma vez que decorre
expressamente de certas disposições legais (arts. 1031.º/b) e 1037.º/1 do CCiv.). O art. 1037.º estabelece
que o locador não pode praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário. Temos
de ter aqui presente que esta coisa é muito específica, com valores de exploração e organização, que
devem ser utilizados em paz pelo locatário.

Outra nota importante, e que gera controvérsia doutrinal, é o que diz respeito à possibilidade de o próprio
locatário, durante o período de locação, abrir um estabelecimento concorrente com aquele que tem em
locação. Também isto não deve ser permitido, uma vez que “tal comportamento provocaria, pelo menos,
uma diminuição do valor do estabelecimento locado, e significaria portanto a violação do ‘dever de
manutenção e restituição da coisa’ a cargo do locatário (art. 1043.º do CCiv)”. O locatário é obrigado a
manter a coisa, e se abre um estabelecimento concorrente pode estar a pôr em causa este dever de
manutenção. Para CASSIANO DOS SANTOS, só se admite a protecção do locador através do regime da
concorrência desleal.

Terminado o contrato, e na ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-locatário


obrigado a não concorrer com o ex-locador? Para COUTINHO DE ABREU, a resposta é negativa, ou seja, o
ex-locatário pode concorrer. O autor avança os seguintes argumentos:
• “O princípio é o da liberdade de iniciativa económica e de concorrência”.
• “O ex-locatário pode aproveitar conhecimentos sobre a clientela e a organização empresarial
adquiridos durante a locação ... mas compete ao locador tomar em devida conta este risco”.
• Estes conhecimentos, “além de terem sido adquiridos pelo locatário no decurso de uma
exploração pela qual ele pagou ao locador”, podem continuar a ser usados na exploração do
estabelecimento restituído pelo locador.

2.3 Utilização de espaços em centros comerciais

A questão da qualificação de cedências do gozo temporário e oneroso se espaços ou lojas em centros


comerciais (shopping centers) não é resolvida de forma unânime pela doutrina. Têm sido avançadas três
teses:
• Locação de estabelecimento;

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• Contrato atípico;
• Arrendamento.

Ora, as duas primeira teses “colocam os referidos contratos fora do campo de aplicação do regime
vinculístico do arrendamento (com destaque para o princípio da renovação obrigatória). Com efeito, o
regime do arrendamento urbano protegia muito mais o arrendatário, consagrando a renovação obrigatória,
sem possibilidade de oposição do locador. Assim, na prática tentava-se arranjar esquemas que permitisse
escapar a este regime nos contratos com os lojistas, dando-se a designação de “contratos atípicos”. Sendo
um contrato atípico, poderia ter aspectos regulados de forma diferente da do arrendamento, e tudo isto era
muito mais relevante quando não havia tanta liberdade contratual no contrato de arrendamento.

A tese da locação do estabelecimento é desde logo rejeitada, uma vez que, como aponta COUTINHO DE
ABREU, “embora inserida numa estrutura complexa de reconhecido cunho comercial, ainda que com
destino pré-determinado, não é capaz de espelhar a imagem de um bem novo”, a que se possa chamar
estabelecimento. Falta-nos, assim, analisar as outras duas.

Ø Tese do contrato atípico

A doutrina maioritária defende, na linha de uma anotação a um acórdão do STJ feita por ANTUNES
VARELA, que este é um contrato atípico, pois o que ganha prevalência é todo o conjunto de outras
prestações que vêm associadas à utilização do espaço, garantidas pelo gestor do centro comercial – por
ex., o aquecimento e limpeza dos espaços comuns, a tenant mix (escolha das várias lojas, que
obedecem a um plano de conjunto), etc. Para além disto, há uma série de outros aspectos que são
regulados – por ex., o cumprimento de um regulamento, a possibilidade de utilização da marca do centro
comercial, os pagamentos, etc.

No Acórdão do STJ anotado por ANTUNES VARELA, este discorda com a opinião expressa pelo STJ,
que qualificou o contrato de exploração de uma loja integrada num centro comercial (no caso, num hotel)
como um arrendamento para fins comerciais:
• A loja cedida ao utente estava instalada no interior de um edifício onde funcionava o hotel,
aproveitando por conseguinte a clientela seleccionada e apetecida da unidade hoteleira – não é,
por conseguinte, a fruição de qualquer imóvel que a recorrida facultou aos recorrentes, mas o
gozo de um imóvel com uma localização privilegiada.
• No interior do edifício hoteleiro havia, não apenas uma, a tal loja G, mas várias lojas, e essas
lojas obedeciam a um plano de conjunto, unitário. A junção de vários estabelecimentos atrai mais
facilmente a clientela.

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• O dono do imóvel predeterminou o fim do estabelecimento e colocou previamente nas lojas


certos móveis e equipamentos para assegurara a afectação da loja ao exercício da actividade
comercial previamente definida.
• O dono do imóvel assegurava a prestação de vários serviços – segurança exterior, limpeza das
zonas de acesso, decoração e iluminação do ambiente circundante e estacionamento automóvel.

ANTUNES VARELA critica a decisão tomada pelo STJ por ter ignorado toda esta especificidade factual. O
centro comercial, enquanto novo tipo ou modelo de organização mercantil, “é também uma nova
figura jurídica, cujo perfil não cabe nos contratos nominados do direito anterior”. Não é reconduzível
nem ao contrato de arrendamento para fins comerciais, nem à locação do estabelecimento.
• Contrato de arrendamento para fins comerciais: “o locador do prédio limita-se a fornecer a
outro contraente o gozo do local isolado da sua actividade. A concepção do estabelecimento, a
determinação do seu objecto, a montagem da loja e a escolha dos fornecedores, a angariação da
clientela, a instalação dos serviços complementares necessários ao funcionamento da unidade
comercial, o bom nome da firma, etc., etc., tudo isto é de plena iniciativa e responsabilidade do
locatário. No caso do shopping center, o fundador do centro não se limita a proporcionar ao
lojista o imóvel que ele vai gozar. Cede-lhe um local privilegiado para o comércio, dá-lhe a
vizinhança de estabelecimentos seleccionados”, etc.
• Locação de estabelecimento comercial: podemos identificar duas diferenças fundamentais:
o O locador do estabelecimento limita-se a ceder temporariamente o gozo de uma unidade
comercial isolada, “ao passo que o fundador do centro proporciona ao lojista toda a série
de vantagens resultantes da integração da loja num conjunto harmónico ..., muitas vezes
dominado pela situação estratégica das chamadas lojas âncora”.
o “Além disso, realizado o contrato, o locador do estabelecimento fica apenas obrigado,
como qualquer outro locador, a assegurar o gozo do estabelecimento isolado ao locatário,
ao passo que o fundador do centro comercial fica por via de regra obrigado a uma série
(mais ou menos numerosa, consoante os casos) de prestações de serviços”.

Ø Tese do arrendamento urbano

COUTINHO DE ABREU discorda desta tese: “os contratos em questão também não são atípicos, pela
simples razão de estarem tipificados na lei”. O contrato pelo qual uma das partes cede à outra o gozo
temporário de parte de um prédio, mediante retribuição, é um contrato de arrendamento urbano, nos
termos do art. 1.º do RAU e 1022.º e 1023.º do CC. O conjunto de prestações acessórias não pode pôr em
causa a referida qualificação do contrato, uma vez que não prevalecem sobre a cedência do gozo das
partes do prédio. Assim, “consoante a retribuição dos serviços complementares esteja ou não

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

incorporada na renda, teremos contratos mistos ou contratos coligados – assegurada estando em ambos
os casos a aplicabilidade das regras do arrendamento urbano”.

SOVERAL MARTINS discorda igualmente da tese do contrato atípico. Por ex., podemos falar do
arrendamento de um prédio num imóvel que tem espaços comuns, com estes espaços limpos e aquecidos.
Tudo isto pode ser conseguido fora de um centro comercial – pode haver uma loja âncora do outro lado
da rua; pode haver selecção de tenant mix por parte do senhorio, procurando valorizar o espaço, etc. Não
há aqui uma nova realidade.

A questão da qualificação coloca-se principalmente nos pagamentos: temos uma remuneração mensal
fixa pela utilização da loja, e simultaneamente uma remuneração variável em função da facturação bruta
do estabelecimento. Acrescem a isto as retribuições pela utilização do espaço comum e a promoção do
centro comercial, pelo que estes custos são muito elevados. Ora, o regime do arrendamento urbano não
parece permitir a possibilidade de fixação de uma renda variável: aqueles que defendem que é um
contrato atípico, dizem que o é precisamente porque as partes estabeleceram esta remuneração. Mas, para
SOVERAL MARTINS, a questão tem de ser resolvida a montante disto: se for um contrato atípico, então
pode-se fixar; se não, não se pode e a cláusula é ilegal.

2.4 Realização de trespasse ou locação em sede do regime da concentração de empresas

Temos um regime interno e um regime europeu relativo à concentração de empresas, e a realização de um


trespasse/locação pode ter relevo para este regime.

O art. 36.º da Lei da Concorrência (Lei 19/2012) prevê o regime da concentração de empresa – existe
concentração de empresas quando ocorre uma “mudança duradoura do controlo sobre a totalidade ou
parte de uma ou mais empresas”, que pode ser em resultado “da aquisição directa ou indirecta de
elementos do activo de uma ou várias outras empresas” (al. b)). Empresa é aqui para efeitos de direito da
concorrência, e um elemento do activo pode precisamente ser um estabelecimento – logo, uma operação
de concentração pode resultar de um trespasse ou locação.

Para se realizar uma operação de concentração, é necessário fazer uma comunicação à autoridade da
concorrência para esta se opor ou não. Esta notificação prévia, art. 40.º/1, é uma condição que a própria
lei estabelece para a realização desta operação. O n.º 6 do art. 40.º diz expressamente que os negócios
jurídicos que violarem o n.º 1 são ineficazes. Note-se que não são todas as operações que carecem de
notificação – ver artigo 37.º.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

A nível do direito comunitário, isto vem tratado no Regulamento n.º 139/2004, de 20 de Janeiro. No
âmbito do regulamento, pode também ser relevante um trespasse e mesmo uma locação. O art. 3.º define
concentração de empresas e o art. 1.º/d) fala da aquisição de elementos do activo, que pode ser um
trespasse ou locação, uma vez que não se fala em aquisição da propriedade, mas sim do controlo. Tudo
isto é importante porque o art. 7.º prevê a suspensão das operações de concentração até à decisão da
Comissão; e n.º 4 diz que a validade da transacção está dependente da decisão (se a decisão for negativa a
transacção é inválida).

3. Medidas de recuperação da empresa

Para a recuperação de empresas, as leis prevêem actualmente dois processos judiciais (processo
insolvencial com plano de recuperação e PER), e um procedimento extrajudicial (SIREVE).
• Processo insolvencial com plano de recuperação: está regulado no art. 192.º e segs. do CIRE, e
é aplicável a devedores (entidades colectivas e patrimónios autónomos com ou sem empresas, e
pessoas singulares com empresas não pequenas, arts. 2.º, 249.º e 250.º) em situação de
insolvência ou equiparada (insolvência iminente, art. 3.º).
• PER: está regulado no art. 17.º-A e segs. do CIRE, e é aplicável a qualquer devedor, titular ou
não de empresa, que esteja em situação económica difícil ou em situação de insolvência
meramente iminente.
• SIREVE: está regulado no DL 178/2012, e visa apenas a recuperação de empresas que se
encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente ou
actual.

3.1 Plano de insolvência

O art. 1.º/1 do CIRE dá-nos a ideia de que um processo de insolvência terá sempre um plano de
insolvência, no entanto, como vimos, esta afirmação geral vai ser desmentida pelo resto do Código (pág.
29). Para além disto, a 2ª parte do artigo parece dar primazia à recuperação em detrimento da liquidação,
no entanto nada na lei obriga os credores a aprovarem planos de recuperação, ou seja, continuam livres de
optar pela liquidação, e a mesma coisa se passa em relação ao papel do juiz quando vai controlar o plano.
Ou seja: não sendo adoptado, após a declaração de insolvência, um plano de insolvência, segue-se a
via geral da liquidação; sendo adoptado um plano, mesmo assim este pode visar a liquidação da
empresa do devedor.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Assim, o plano de insolvência, mesmo quando aplicado, pode não visar a recuperação da empresa, mas
sim a sua liquidação.

Outras notas gerais sobre o plano de recuperação:


• A recuperação deve ser entendida em sentido amplo, podendo visar a reorganização da empresa
ou apenas a sua continuidade ou manutenção;
• Na via geral da liquidação é possível a recuperação-manutenção da empresa, mas já não na esfera
jurídica do seu titular.
• À via da liquidação nos termos do CIRE e à via do plano de insolvência não correspondem duas
formas especiais de processo, há um processo de insolvência unitário.

O plano de insolvência é “um instrumento de natureza jurídico-negocial utilizável pelos credores que
contém (em documento particular) primordialmente medidas de recuperação de empresa do devedor
insolvente”. Notas processuais:
• Podem apresentar proposta de plano o devedor (quando se apresenta à insolvência ou
posteriormente, art. 24.º/3), o administrador da insolvência, um credor ou grupo de credores com
créditos correspondentes pelo menos a um quinto do total dos créditos não subordinados e
qualquer responsável legal pelas dívidas da insolvência (art. 193.º). O art. 194.º estabelece o
princípio da igualdade no tratamento dos credores.
• Se o juiz admitir a proposta, notificará as entidades mencionadas no art. 208.º para, querendo,
emitirem parecer sobre ela, e convocará a assembleia de redores para discutir e votar a proposta
(art. 209.º/1). Como pode decorrer muito tempo entre o início do processo de insolvência e a
verificação das condições do art. 209.º/2, pode o juiz ordenar medidas cautelares para assegurar o
risco de diminuição do activo da empresa, nomeadamente a nomeação de um administrador
provisório (art. 31.º e 33.º).
• Na assembleia dos credores, para que se possa deliberar sobre o plano da insolvência é necessário
que estejam presentes credores cujos créditos correspondam a, pelo menos, um terço do total dos
créditos com direito de voto (art. 211.º/1). A proposta considerar-se-á aprovada se obtiver “mais
de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos
correspondentes a créditos não subordinados” (art. 212.º/1).
• O plano de insolvência necessita, para ser plenamente eficaz, de ser homologado por sentença
judicial (art. 217.º/1). O juiz pode recusar a homologação oficiosamente (art. 215.º) ou a pedido
de interessado (art. 216.º).

As medidas de recuperação de empresa que é possível estabelecer são muito variadas, sendo que o
legislador enumerou certas medidas de forma não taxativa no CIRE.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Providências com incidência no passivo do devedor, art. 196.º.


• Saneamento por transmissão, art. 199.º (constituição de uma ou mais sociedades para a
exploração de um ou mais estabelecimentos adquiridos à massa insolvente).
• Providências específicas para sociedades comerciais, art. 198.º. Há um conjunto de providências
específicas para sociedades comerciais, que podem ser tomadas pelos credores sem participação
dos sócios, o que pode ter consequências muito graves, nomeadamente tendo em conta que uma
das medidas pode ser a redução do capital a zero. Em face da chamada directiva do capital,
estabelece-se a necessidade de as medidas de redução ou aumento do capital serem decididas
pelos accionistas da sociedade – estas normas não podem ser afastadas pelo plano de insolvência,
pelo que, se tal acontecer, o juiz deverá recusar homologar o plano.

3.2 Processo Especial de Revitalização

A partir de 2012, os devedores em insolvência iminente passaram a dispor de um outro processo judicial
de recuperação, o Processo Especial de Revitalização (PER), destinado à “revitalização” dos devedores
em “situação económica difícil” ou em situação de insolvência iminente, nos casos em que haja
susceptibilidade de recuperação. É, como tal, um processo pré-insolvencial, tendo sido introduzido pela
Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, e resulta do “Memorando de Entendimento celebrado com a Troika”.

O PER divide-se em duas modalidades, estando a primeira prevista nos arts. 17.º-A a 17.º-H, e a segunda
no art. 17.º-I.

Na primeira modalidade, o PER destina-se a permitir ao devedor estabelecer negociações com os


credores, com a finalidade de adoptar um plano de recuperação que será homologado pelo juiz.
• O procedimento inicia-se com um requerimento do devedor, na sequência do qual o tribunal deve
nomear, por despacho, administrador judicial provisório (art. 17.º-C, 3, al. a)), destacando-se o
efeito processual de este despacho obstar à instauração de quaisquer acções para cobrança de
dívidas do devedor, suspendendo as que já se encontrarem em curso (art. 17.º-E, 1), bem como o
de suspender os processos de insolvência (n.º 6 do mesmo artigo).
• Terminado o prazo para reclamação de créditos e impugnações, o art. 17.º-D, 5, estabelece um
prazo de 2 meses para as negociações, que em princípio conduzirá à elaboração de um plano de
recuperação, sujeito mais tarde à homologação do juiz. A lei é omissa em relação ao conteúdo do
plano de recuperação, valendo aqui o princípio da liberdade de conteúdo, à semelhança do que
sucede no plano de insolvência.
• A decisão judicial do juiz vincula os credores, mesmo os que não tenham participado nas
negociações (art. 17.º-E).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Destaca-se igualmente a protecção dos credores que financiem a actividade do devedor no


decurso do processo, que são tutelados através de um “duplo escudo protector” (art. 17.º-H): as
garantias convencionadas entre o devedor e os credores mantêm-se mesmo que o devedor seja
declarado insolvente; e os credores financiadores da actividade do devedor que, no decurso do
processo, disponibilizem capital para a revitalização gozam de privilégio creditório mobiliário
geral.
• Este regime é muito perigoso, pois está sujeito a homologação do juiz, art. 17.º-F/5. Se o PER se
conclui sem aprovação de um plano, tudo depende da apreciação que o administrador provisório
fizer. Nos casos em que o devedor não se encontre em situação de insolvência, o administrador
apresenta o devedor à insolvência. Não existe uma fase em que o devedor se pronuncie sobre o
requerimento. Para SOVERAL MARTINS, esta norma é inconstitucional por violar o direito de
defesa.

Já na segunda modalidade – que SOVERAL MARTINS afirma ser, na verdade, um segundo processo
especial de revitalização – o devedor apresenta um plano extrajudicial de recuperação ao juiz, assinado
por ele e pelos credores (art. 17.º-I).
 
3.2 O SIREVE

O SIREVE é um procedimento que visa promover a recuperação extrajudicial de empresários em crise


(em situação económica difícil ou em situação de insolvência actual ou iminente), através da celebração
de um acordo entre ele e todos ou alguns dos seus credores, titulares de pelo menos 50% do total dos
créditos (DL 178/2012, arts. 1.º e 2.º). Assim, o SIREVE, ao contrário do PER, não é só para devedores
em situação de insolvência iminente, mas também actual.

Notas quanto ao procedimento:


• O procedimento inicia-se através de um requerimento do devedor ao IAPMEI: passa assim pela
intervenção de uma autoridade pública, art. 3.º/1.
• Provocado o IAPMEI, pode responder ao requerimento através de 3 formas: despacho de recusa
do requerimento; convite de aperfeiçoamento; despacho de aceitação. Ver art. 6.º/1/a) (recusa); b)
(convite ao aperfeiçoamento); n.º 5 e 6 do art. 6.º e art. 8.º (aceitação).
• O IAPMEI vai promover e dirigir as negociações entre o devedor e os credores. O prazo para a
conclusão do procedimento é de 3 meses, com prorrogação de 1 mês – prazo máximo de 4 meses.

Entre o despacho do IAPMEI e a aceitação, há impedimentos e suspensões.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Fica impedida a instauração contra o devedor de acções executivas e as que já estão em curso
suspendem-se, art. 11.º/2.
• O devedor fica limitado em geral nos seus poderes de disposição do património, garantido os
interesses dos credores (art. 11.º/5).
• Os credores que possam disponibilizar financiamento ao devedor beneficiam de garantias, e esses
negócios são insusceptíveis de resolução em benefício da massa insolvente (art. 11.º/6 e 7).

O acordo de recuperação do SIREVE pode conter quaisquer providências – por ex., perdão parcial das
dívidas, diminuição da taxa de juros, moratórias, aumento de capital, constituição de garantias a favor dos
novos credores, etc. O procedimento acaba quando o se chega a acordo, assinado pelo devedor, credores e
IPAMEI:
• É preciso 50% ou mais dos credores (art. 12.º);
• A forma do acordo é a forma escrita;
• O acordo vai fundamentar e permitir a execução eficaz de todos os actos neles previstos (quando
a forma dos actos for mais solene, deve ser essa a forma do acordo). O art. 13.º/1 diz que se
extinguem automaticamente as acções executivas (vale para os credores subscritores do acordo).

Norma muito importante é o art. 19.º/2, que estabelece a possibilidade que de alargar o âmbito de eficácia
do acordo para além dos credores subscritores do acordo através de homologação pelo juiz (art. 252.º do
CIRE).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

CAPÍTULO IV

DOS SINAIS DISTINTIVOS DAS EMPRESAS E DOS PRODUTOS

1. Introdução

Os sinais que vamos tratar são os logótipos, as marcas, as denominações de origem, as indicações
geográficas e as recompensas. São sinais distintivos de empresas, independentemente da sua
titularidade; e de produtos enquanto bens e serviços que decorrem dessa actividade.

Tradicionalmente, estes signos eram denominados por sinais distintivos do comércio – todavia, esta
designação é pouco rigorosa:
• Não individualizam apenas empresas mercantis e produtos de actividade mercantil.
• Não são actos de comércio objectivo.
• Não são utilizáveis apenas por comerciantes.

Daí a sua inclusão, não no direito comercial propriamente dito, mas num outro ramo autónomo, o direito
industrial ou direito da propriedade industrial. Porém, também não abrange apenas a indústria.

A natureza jurídica dos direitos sobre estes bens imateriais é controvertida. Para COUTINHO DE Abreu, são
enquanto bens imateriais objecto de direito de propriedade, embora com regime especial relativamente
às coisas corpóreas ou materiais.
• Nomeadamente quanto aos modos de aquisição, são diferentes; mas, tal como qualquer outro
objecto de domínio, aplica-se o art. 1305.º do CCiv. (uso pleno e exclusivo dos direitos de uso,
fruição e disposição), arts. 1.º, 4.º e 6.º do CPI.
• A tutela dos direitos faz-se, em primeira linha, pela concessão de um juízo em face do INPI. O
CPI regula a tramitação que deve ser seguida junto do INPI, art. 9.º a 30.º. Nos arts. 31.º a 32.º
regula-se os direitos emergentes das transmissões e licenças: para gozar do sinal, não é necessário
ser transferido, basta ser licenciado.
• Os art. 33.º e segs. trata das formas de extinção dos direitos da propriedade industrial, a saber, a
nulidade, anulabilidade, caducidade e renúncia.

2. Logótipos

2.1 Noção

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

O logótipo, enquanto sinal distintivo registável, foi introduzido em 1995, e continuou até 2008 juntamente
com os nomes e insígnias de estabelecimento. O DL 143/2008 veio operar uma fusão daqueles três sinais
num só, o logótipo.

O logótipo é um signo susceptível de representação gráfica para distinguir entidades, estando regulado
no arts. 304.º-A até ao art. 304.º-S.
• O logótipo serve primordialmente para distinguir sujeitos (individuais ou colectivos, públicos ou
privados, art. 304.º-B) que prestam serviços ou produzem bens no mercado, 304-ºA/2. Neste
contexto, o logótipo tem um sujeito titular; e esse sujeito titular não tem de ser empresário.
• Quando explore empresa, é natural que se utilize o logótipo para individualizar esse
estabelecimento – por isso é que a lei diz que o logótipo pode ser utilizado, nomeadamente, em
estabelecimentos (art. 304.º-A/2, 2ª parte). Daí que digamos que é um sinal bifuncional.
• O mesmo sujeito pode ter vários logótipos, art. 304.º-C/2: mas não é necessário ter várias
empresas para ter vários logótipos, pode haver uma mesma entidade que, tenha ou não vários
estabelecimentos, tenha vários logótipos.

2.2 Composição e princípios informadores

Ø Elementos componentes

A lei condiciona em grande medida a liberdade a composição dos logótipos. A norma base é o art. 304.º-
A/1: o logótipo tem de ser susceptível de representação gráfica. A representação gráfica é o instrumento
que permite a corporização do sinal e a sua tutela jurídica. Assim, são possíveis:
• Logótipos nominativos, compostos por nomes ou palavras, incluindo os nomes, firmas ou
denominações dos respectivos titulares.
• Logótipos figurativos, formados por figuras ou desenhos.
• Logótipos mistos, constituído por elementos nominativos e figurativos. É a circunstância mais
usual.

Note-se que podemos ter apenas logótipos de facto, que não foram registados, e que ainda são objecto de
alguma tutela.

Os logótipos podem ainda ser constituídos por outros sinais, desde que representáveis graficamente.
Exemplos: sons, formas (mas não formas de produtos, pois os logótipos identificam sujeitos), números,
combinações de cores etc.

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Ø Princípios

A composição do logótipo tem de obedecer a um conjunto de princípios, que resultam da lei e são
fundamentais.

1) Princípio da capacidade distintiva: enquanto sinais distintivos de entidades, os logótipos têm de


desempenhar uma função de diferenciação e identificação dos sujeitos que se referem (art. 304.º-A/2).
Por falta de capacidade distintiva, não podem ser registados os logótipos constituídos exclusivamente por:
• Sinais específicos, genéricos ou descritivos, ou que se tenham tornado de uso comum;
• Sinais que sejam forma
• Cores simples e não combinações.

Há uma excepção a este princípio, o do segundo sentido ou secondary meaning: sempre que sinais de uso
específico, genérico ou comum adquirirem, em face do seu uso e publicidade, carácter distintivo podem
ser registados – art. 304.º-H/2.

2) Princípio da verdade: o logótipo não tem de conter indicações acerca da natureza, composições,
actividade, etc. do seu titular; porém, se contiver, têm de ser verdadeiros. Este princípio evita que existam
logótipos enganadores ou ilusórios. Por ex., nunca podemos ter um logótipo susceptível de induzir em
erro o público acerca da actividade exercida.

Assim, deve ser recusado o registo de logótipo que contenha, nomeadamente:


• Sinais susceptíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a actividade exercida, art.
304.º-H, n.º 3, al. d).
• A Bandeira Nacional, entre outros elementos, quando isso possa induzir o público em erro sobre a
proveniência geográfica dos produtos, ou possa levar a supor erradamente que os produtos têm
origem em entidade oficial, art. 304.º-H, n.º 5, al. a) e b).
• Nomes ou retratos de pessoas sem a devida autorização, art. 304.º-I, al. b).
• Referência a determinado prédio rústico ou urbano que não pertença ao requerente do registo, art.
304.º-I, n.º 3, al. c).

3) Princípio da novidade: o logótipo de um sujeito deve ser distinto, inconfundível e novo em relação
aos logótipos de outros sujeitos. A principal tradução normativa deste princípio encontra-se no art. 304.º-
I/1/a): é fundamento de recuso do registo “a reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de logótipo
anteriormente registado por outrem para distinguir uma entidade suja actividade seja idêntica ou afim à

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

exercida pela entidade que se pretende distinguir, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou
confusão”.

Quais os elementos que devemos ponderar para saber se o logótipo é novo e inconfundível?
• A grafia e a sua sonoridade.
• A figuração.
• A ideografia.
• A percepção do consumidor médio.

Se chegarmos à conclusão que, de acordo com a grafia, sonoridade, figuração ou ideografia, o


consumidor médio o confundir com outro, ou crê erroneamente referirem sujeitos especialmente
relacionados, o princípio da novidade é violado e não é registável.

Ao contrário das firmas, o princípio da novidade é aqui só exigido para actividades concorrentes – vale
o princípio da especialidade. Há excepções a isto:
• Tutela dos logótipos de grande prestígio: se for confundível um logótipo com um outro que
goza de grande prestígio em Portugal, aquele não é registável (art. 304.º-I/2, que remete para o
art. 240.º e 242.º). T
• Também é possível excepcionar este princípio quando haja consentimento do sujeito que é
prejudicado, art. 304.º-J.

4) Princípio da licitude residual: constituem expressões normativas deste princípio, nomeadamente:


• Art. 304.º-I/1/b).
• Art. 304.º-I/1/c) e 3/b).
• Art. 304.º-H/3/als. a), b).
• Art. 304.º-H/3/c).
• Art. 304.º-H/4.
• Art. 304.º-H 5/c).

2.3 Conteúdo e extensão do direito sobre logótipo

Em princípio, o direito de propriedade sobre o logótipo constitui-se pelo registo do mesmo no INPI. O
registo dura por 10 anos, mas é indefinidamente renovável por iguais períodos (art. 304.º-L).

Assim, o registo no INPI confere ao sujeito o direito de propriedade do logótipo, art. 304.º-L. O titular
do logótipo goza de uma série de faculdades jurídicas:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Pode usar para se dar a conhecer, utilizando-o nomeadamente na empresa (mais usual), art. 304.º-
A/2.
• Nos termos do art. 304.º-N, confere o direito de impedir terceiros de usar sinal idêntico se houver
susceptibilidade de erro ou confusão.

A protecção do logótipo registado traduz-se no seguinte:


• O respectivo titular tem legitimidade para reclamar contra pedidos de registo de logótipo outro
sinal não novos, art. 17.º do CPI.
• Tem a faculdade de requerer a anulação desses sinais não novos, art. 304.º-R.
• Pode ainda exigir a título cautelar que terceiros usem sinais semelhantes (art. 304.º-N e 338.º-I).
• Sendo caso disso, pode ainda exigir uma indemnização (art. 338.º-L).
• A propriedade do logótipo é tutelada contra-ordenacionalmente (violação do exclusivo logótipo,
art. 334.º).

O logótipo não registado ou de facto tem alguma protecção, art. 304.º-I/1/e) e 304.º-R/1.

2.4 Transmissão dos logótipos

Podia-se pensar que o logótipo só se transmite quando se transmite o estabelecimento, mas esta não é a
regra – a transmissão do logótipo é autónoma da do estabelecimento, art. 304.º-P, salvo quando houver
possibilidade de induzir os consumidores em erro quanto à individualização do transmissário, caso em
que o logótipo tem de ser alterado primeiro.

A excepção à transmissão autónoma ocorre quando o logótipo foi utilizado no estabelecimento: aí, só
podem transmitir-se com o estabelecimento (n.º 2).

Outras notas:
• O logótipo faz parte geralmente do âmbito natural, salvo nos casos do art. 31.º/5 – se o logótipo
contiver nome, firma ou denominação do titular, é necessária convenção.
• A transmissão do logótipo por acto entre vivos deve ser provada por documento escrito (art.
31.º/6).
• A transmissão do logótipo, por acto inter vivos ou não, está sujeita a averbamento no INPI (art.
30.º/1/a)).

2.5 Extinção do direito sobre o logótipo

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

As causas de extinção estão previstas em geral e especial:


• Nulidade (art. 304.º-Q): o registo do logótipo é nulo nas hipóteses prevista no art. 33.º/1, ou nos
casos em que o registo tenha sido concedido com violação do disposto no n.º 1, 3, 4 e 5 do art.
304.º-H. A nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, e a respectiva
declaração tem de ser feita por tribunal (art. 33.º/2 e 35.º/1). Temos aqui proibições absolutas.
• Anulabilidade (art. 304.º-I): o registo é anulável quando na sua concessão tenha sido
desrespeitado o disposto no art. 304.º-I (proibições relativas de registo). A ação de anulação pode
ser proposta pelo MP ou qualquer interessado (art. 35.º/2), no prazo de 10 anos a contar da data
do despacho da concessão do registo; mas o direito de acção não prescreve se o registo tiver sido
feito de má fé (com conhecimento da existência de proibições relativas ao registo conhecido, art.
304.º-R/2 e 3).
• Caducidade: o registo do logótipo caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por
falta de pagamento de taxas, art. 37.º/1. Para além disto, caduca em especial nos termos do art.
304.º-S, pelas causas previstas – encerramento ou liquidação do estabelecimento ou de extinção
da entidade; e falta de uso durante 5 anos consecutivos. COUTINHO DE ABREU defende, quando a
caducidade provém de encerramento, uma interpretação revogatória desta causa, porque o
logótipo distingue sujeito ou entidade e, mesmo quando distingue estabelecimento, tem a
faculdade e não a obrigação de nele usar o logótipo.
• Renúncia: aplica-se em geral o art. 38.º.

3. Marcas

3.1 Noção

As marcas são sinais susceptíveis de representação gráfica, destinados sobretudo a distinguir certos
produtos de outros produtos idênticos ou afins. Estão reguladas no art. 222.º e segs. do CPI.

O art. 222.º/1 diz que “ a marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de
representação gráfica (...), que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos
de outras empresas”. É necessário fazer algumas precisões quanto a este artigo:
• A expressão “produtos ou serviços” é redundante. Os produtos são bens que resultam da
produção, e podem ser bens materiais ou corpóreos e bens imateriais ou serviços.
• Os bens assinalados por uma determinada marca não têm de ser necessariamente de uma
empresa, podem ser produtos de uma não-empresa ou de várias empresas.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Finalmente, a marca não visa em regra individualizar certos de bens de determinado sujeitos
relativamente a outros bens de outros sujeito, mas bens enquanto tal: princípio da especialidade.
Não há uma relação com o titular.

3.2 Espécies de marcas

Segundo diferentes critérios, podemos ter várias espécies de marcas:


• Natureza das actividades: marcas de indústrias, comércio, agricultura, serviços, etc. (art. 225.º/a),
b), c), e e)).
• Elementos componentes ou integrantes das marcas: nominativas (constituídas por nomes ou
palavras), figurativas (figuras ou desenhos), mistas, auditivas (sons representáveis graficamente),
tridimensionais ou de forma. Podemos ter ainda marcas simples, constituídas por só elemento, e
complexas, constituídas por vários. Ver arts. 222.º e 223.º/1/b).
• Titulares das marcas:
o Podemos ter marcas de empresários ou não empresários (art. 225.º).
o Marcas individuais, associada a um sujeito individual; e colectivas, de uma entidade
colectiva. De acordo com a lei, estas últimas podem ser marcas de associação e
certificação garantida, arts. 228.º, 229.º e 230.º.
• Regime da protecção: temos as marcas registadas, art. 224.º/1, e não registadas (marcas de facto
ou livres). Temos ainda as marcas notórias, que mesmo quando não registadas gozam de
protecção especial (arts. 241.º e 242.º).

3.3 Função da tutela jurídica das marcas

Para que é que registamos uma marca? Desde logo, pela tutela jurídica, porque assim consegue ser
proprietário desse sinal. Mas quais a função ou funções desta tutela?

Segundo a concepção tradicional ou dominante, a função distintiva das marcas equivale a uma (1)
função de indicação de origem ou proveniência. Distinguir significa apenas e só indicar a origem e
proveniência dos produtos. Porém, desde cedo surgiram vozes discordantes, negando o carácter
essencial desta função de indicação de origem. A favor desta posição avançam-se os seguintes
argumentos:
• A marca é muitas vezes um sinal anónimo, sem referência ao titular, e muitas vezes os titulares
querem que assim seja. Quando assim seja, dizer que a função distintiva é indicar a proveniência
não é verdade.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• O produto pode ser feito por várias empresas; para além disto, há casos em que é legítimo dois ou
mais sujeitos não ligados por quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca
para produtos idênticos e semelhantes (art. 243.º e 267.º).
• Por outro lado, num sistema como o nosso, em que, por força do art. 262.º/1 e 3, se transmitem
marcas independentemente da transmissão de empresas, não faz sentido aquela posição. O nosso
sistema é de cessão livre. O titular da empresa pode ceder a marca e haver referência a essa
empresa, que não vai corresponder à proveniência.
• As marcas podem certificar a qualidade – marcas colectivas de certificação, arts. 230.º.

Assim, podemos afirmar que a função distinta das marcas não se esgota na indicação da proveniência
empresarial. Claro que em muitas marcas prevalece esta função, mas apenas como parte da função
distintiva.

Além da função distintiva, as marcas, uma vez tuteladas, têm outras funções: uma delas é a (2) função
atractiva ou publicitária de excelência, associada às marcas de prestígio. Isto decorre do art. 242.º/1.
Rompe com o princípio da especialidade, porque não se destina apenas a distinguir a marca, prevenindo
ou impedindo riscos de confusão: já não está em causa a tutela da função distintiva da marca, pois “a
distância económico-sectorial entre os produtos do titular da marca de prestígio e os produtos de terceiro
que adopte sinal idêntico ou semelhante pode ser de tal modo grande que se torna impossível justificar a
ilicitude deste segundo sinal por ele violar a função distintiva daquela marca”. Mesmo quando há
produtos muito longe da marca de prestígio, estes vão captar a função atractiva associada a esta.

Segundo o art. 242.º/1, a protecção especial é conferida “sempre que o uso da marca posterior procure
tirar partido indevido do carácter distintivo ou prestígio da marca, ou possa prejudicá-los”. Notas
(COUTINHO DE ABREU):
• Não haverá aproveitamento ilícito quando, designadamente, o titular da marca de prestígio nisso
consinta.
• O uso da marca posterior tirará partido do carácter distintivo da marca de prestígio quando,
nomeadamente, faça supor que os produtos assinalados provêm da mesma entidade ou de
entidades relacionas, e tirará partido do seu prestígio quando se verifique uma transferência da
imagem de qualidade e de acreditamento no mercado desta marca para aquela.
• Por sua vez, o uso do sinal posterior prejudicará o carácter distintivo da marca de prestígio
quando provoque o aguamento ou banalização desta; e prejudicará o seu prestígio quando
desencadeie indesejáveis associações.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

A terceira função das marcas é a (3) função de garantia de qualidade. Tradicionalmente, há quem
entenda que esta função não deve ser reconhecida, ou pelo menos não deve ser reconhecida de forma
autónoma – é apenas uma consequência da função distintiva, sobretudo na parte em que indica a
proveniência. Temos aqui uma posição diferente: entendemos que a função de garantia de qualidade
deve ser reconhecida, seja quanto às marcas colectivas de certificação, seja quanto às marcas
individuais. Quando a estas, o art. 269.º/2/b) refere-se à caducidade do registo das marcas e autonomiza a
qualidade: o registo da marca caduca se esta se esta tornar susceptível de induzir o público em erro,
designadamente quanto à qualidade do produto.

Daqui não se pode concluir que a tutela dos interesses dos consumidores é objectivo central da legislação
sobre marcas, uma vez que esta serve essencialmente os interesses dos seus titulares; porém, os interesses
dos consumidores são também aqui tidos em conta e protegidos.

3.4 Princípios informadores da constituição das marcas

1) Princípio da capacidade distintiva: está previsto nos arts. 222.º e 223.º/1/a). Este último diz que não
podem ser marcas as que não têm qualquer capacidade distintiva, sendo este o princípio básico e
informador da composição de marcas. Assim, não podem ser marcas os sinais (exclusivamente)
específicos, genéricos ou descritivos, nem os sinais de uso comum:
• Os sinais específicos são aqueles que denotam a espécie dos produtos, ou seja, os nomes comuns
dos produtos ou figuras que os exprimem (ex: a palavra “ovo”).
• Os sinais descritivos referem-se directamente a características ou propriedades dos produtos (ex:
“lã pura”).
• Os sinais genéricos designam um género ou categoria de produtos onde se incluem os produtos
assinalados (ex: “refresco” para laranjadas).
• Também não podem ser marcas, por falta de capacidade distintiva, os sinais que se tornaram de
uso comum para qualificar certos bens (ex: “delux”, “gourmet”).

E os estrangeirismos, podem ser marcas?


• Se forem conhecidas pelo público português, a resposta é negativa.
• Se não forem conhecidas, temos de distinguir entre dois cenários:
o Se pertencer a uma língua da UE, não podem ser marcas. Isto porque não é lícito os
titulares de marcas registadas no nosso país ficarem beneficiados em face de produtores
nacionais e estrangeiros sem possibilidade de noutros países registarem e usarem tais
marcas.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

o Se pertencer a línguas pouco usadas ou mortas (ex: latim), já podem ser marcas,
defendendo-se que aí são denominações de fantasia e não genéricas. No latim podemos
ter dúvidas quando a denominação for muito próxima da portuguesa, uma vez que se
associa logo à palavra portuguesa.

Todos os sinais que não tenham capacidade distintiva não vão poder ser registáveis, art. 223.º, mas desde
que sejam apenas esses elementos que sejam referidos em exclusivos (n.º 2). A excepção está, mais uma
vez, no princípio do secondary meaning: um signo sem capacidade distintiva pode adquirir pelo uso um
sentido secundário, passando a distinguir determinados produtos como marca. Se assim for, são
registáveis, art. 238.º/3.

As marcas tridimensionais têm capacidade distintiva? São possíveis as marcas tridimensionais, que
podem ser constituídas designadamente pela “forma do produto ou da respectiva embalagem” (art.
222.º/1). Mas nem todas as formas dos produtos ou embalagens são susceptíveis de constituir marcas: não
são marcas as formas que são natural, funcional ou esteticamente necessárias, art. 223.º/1/b). O que se
pode registar são as formas arbitrárias ou não necessárias (ex: formas de frascos de perfumes – é uma
forma arbitrária porque não é standardizada).

Por fim, também por falta de capacidade distintiva, uma única cor não pode ser registada – art. 223.º/1/e),
a contrario. Só podem ser marcas as combinações de cores.

2) Princípio da verdade: aspira a que as marcas sejam verdadeiras, e não sejam enganosas, deceptivas. A
sua principal concretização encontra-se no art. 238.º/4/d) (fundamentos de recusa do registo), que nos
diz que é recusado o registo de uma marca que contenha sinais susceptíveis de induzir o público em
erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica. Pretende uma
correspondência entre os elementos da marca e aquilo que esses elementos traduzem ao público
conhecedor.

A proveniência geográfica é uma das ponderações a fazer sobre a veracidade da marca. O sinal pode ser
geográfico, com referência a uma zona, área ou região, e isto é importante porque uma determinada área
pode ter uma certa capacidade atractiva. Pode acontecer que os produtos sejam originários da área
indicada, estando respeitando o princípio da verdade; ou não ser originário, e aí temos algumas hipóteses
a distinguir. Temos três subcenários:
• O sinal é uma denominação ou indicação geográfica, art. 325.º e segs. Nesse caso, não é possível
registar.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Não é denominação de origem ou indicação geográfica, e a proveniência é muito conhecida. Por


ex., inclui-se na marca o nome “cuba” para charutos fabricados em Lisboa – a marca não pode
conter o nome porque se está a enganar o público.
• O nome geográfico pouco conhecido surge aos olhos do público como uma expressão de fantasia
ou arbitrária. A indicação geográfica abstrai-se e torna-se fantasiosa, pelo que é registável.

O art. 238.º/6 diz que é recusado o registo de uma marca que seja constituída por bandeira nacional em
certos casos, sendo que as als. a) e b) também são manifestações do princípio da verdade.

3) Princípio da licitude residual: há vários fundamentos de recusa, previstos no art. 238.º/4, als. a), b) e
c), n.º 5 e n.º 6, al. c); art. 239.º/1/b), c), d), n.º 2, als. a) e b). Por ex., quando usamos numa marca
expressões contrária aos bons costumes; quando uma marca viola direitos de autor, etc. Chamamos a este
princípio “licitude residual” uma vez que também o princípio da capacidade distintiva e verdade
implicam a licitude da marca.

4) Princípio da novidade e especialidade: as marcas têm de ser novas, distintas ou inconfundíveis,


desde que pelo menos no âmbito de produtos idênticos ou afins. Está tutelado no art. 239.º/1/a) e resulta
de uma directiva europeia (art. 4.º/1 da Directiva 89/104).

Tendo em conta os artigos indicados, é possível identificar os seguintes casos em que o registo da marca
deve ser recusado:
• A marca cujo registo se requer é idêntica e reproduz marca anteriormente registada, e os produtos
são idênticos – dupla identidade (marca idêntica, produtos idênticos).
• As marcas são idênticas mas os produtos são afins, existindo risco de erro ou confusão para os
consumidores. Para que haja recusa, é necessário que haja risco de erro ou confusão.
• As marcas são semelhantes e os produtos idênticos. Para que haja recusa, é necessário que haja
risco de erro ou confusão.
• A marca e os produtos são semelhantes ou afins. Para que haja recusa, é necessário que haja
risco de erro ou confusão.

Ø Quando é que existe semelhança ou afinidade entre produtos?


• Quando a natureza e as características são próximas e as finalidades são idênticas ou semelhantes
(ex: triciclo e bicicleta); ou quando a natureza é diversa e as finalidades são idênticas ou
semelhantes (ex: fio de lã e fio de seda). Ou seja, temos bens intermutáveis, que satisfazem
necessidades idênticas.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Também devem ser considerados afins os bens não intermutáveis ou substituíveis, quando o
público destinatário tenha a convicção de que os produtos têm a mesma origem, por serem
economicamente complementares (ex: fios de lã e vestuário de lã).

Ø Já no que diz respeito à semelhança entre marcas, este critério tem apoio legal, sobretudo no art.
245.º/1/c). Os elementos essenciais para avaliar são a natureza gráfica, figurativa e fonética. A grafia e a
fonética interessam particularmente para as marcas constituídas por letras ou números, bem como para as
marcas mistas em que elementos daquele género prevaleçam. Para as marcas figurativas e
tridimensionais, interessa sobretudo atender à figura e configuração. Para além destes, temos ainda:
• A semelhança sonora é essencial para as marcas auditivas.
• Também temos de ter em conta a semelhança ideográfica (ex: uma marca com o nome joaninha e
outra marca quer registar a marca como desenho de joaninha).

No juízo sobre esta semelhança, recorremos aos seguintes critérios de apreciação da similitude:
• O juízo deve ser global.
• É mais fácil registar uma marca com elementos de fantasia e arbitrários, pois o risco é menor.
Quando se utilizam elementos genéricos, de uso comum, o risco é maior.

Ø Dentro daqueles três cenários que vimos, para que a marca não possa ser registada, tem ainda de haver
risco de confusão. Este deve ser entendido em sentido amplo, para dar a maior tutela possível às marcas
registadas: assim, temos o risco de confusão em sentido estrito e o risco de associação:
• Risco de confusão em sentido estrito: ocorre quando os consumidores podem ser induzidos a
tomar uma marca por outra e, por isso, um produto por outro.
• Risco de associação: os consumidores, embora distingam os sinais, ligam um ao outro e,
consequentemente, um produto ao outro. Os consumidores crêem que se tratam de produtos e
marcas imputáveis a sujeitos relacionados entre si (ex: coligados num grupo de sociedades).

Para a apreciação desta capacidade, recorremos aos seguintes factores:


• Tipos de consumidores;
• Grau de semelhança;
• Força e notoriedade da marca registada anteriormente.

Quanto ao tipo de consumidores:


• Estes são, em primeira linha, os consumidores a quem os produtos assinalados com as marcas em
causa se destinam.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Entre estes consumidores-destinatários, há que considerar o consumidor médio, medianamente


atento e razoavelmente diligente na percepção de uma marca comunicada no mercado. Por outro
lado, o consumidor médio é aquele que é sensibilizado por certo sinal-marca e tem a capacidade
de recordar uma marca anteriormente registada e cuja imitação se questiona.

Releva ainda o grau de semelhança: o risco de confusão é tanto maior quanto maior for a semelhança e os
produtos.

Finalmente, o risco de confusão é maior quando a marca registada é uma marca forte, ou muito
conhecida. Quanto mais forte a marca, mais radicada está na memória cognitiva do consumidor médio.
Ou seja, as marcas fortes, muito conhecidas, são aquelas que mais peso têm no registo de marcas com ela
conflituantes; as marcas novas têm de ter, perante marcas fortes, muito mais diferenças. As marcas fortes
são mais condicionantes do que as marcas frágeis ou débeis, porque as marcas pouco conhecidas são
marcas que, por sua natureza, têm pouca capacidade distintiva.

É claro que isto tem riscos: a tentação para ir buscar elementos das marcas fortes é maior, pelo que podem
levar a usurpações mais frequentes.

3.5 Conteúdo e extensão do direito sobre as marcas

Para que se constitua um direito de propriedade sobre a marca, é necessário que seja registada: o registo é
constitutivo, art. 224.º/1. O processo de registo está regulado no art. 233.º e segs. Para este processo, há
hoje um regime especial para constituição de sociedades, e que permite a simultânea aquisição de marca
associada à firma da sociedade.

Os direitos são eficazes em todo o território nacional, art. 4.º/1. Notas:


• Para a tutela noutros países, terá de requisitar o registo nesses países, salvo os Estados parte do
Acordo de Madrid – pode-se requerer o registo no INPI.
• As marcas comunitárias produzem os seus efeitos em toda a UE, tendo o seu registo ter de ser
efectuado num organismo europeu (Regulamento 40/94, com regulação interna no art. 247.º do
CPI).

Que direitos confere ao proprietário da marca o registo dessa mesma marca? Sendo proprietário, e sendo-
o a título exclusivo (art. 224.º), temos de identificar as “faculdades jurídicas secundárias” inseridas
nesse direito de propriedade.
• Faculdade de uso, transmissão e cessão (arts. 31.º, 32.º, 262.º e 264.º).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Faculdade de reclamação contra marca idêntica ou semelhante (violação do princípio da novidade


e especialidade, art. 239.º/1/a)).
• Faculdade de proposição de acções de anulação de registo concedido (art. 266.º).
• Faculdade de requerimento judicial de medidas inibitórias contra violações do seu direito (arts.
338.º-I e 338.º-N).
• Faculdades de exercício de direitos indemnizatórios (art. 338.º-L).
• Faculdade de ser protegido por responsabilidade criminal e contra-ordenacional (arts. 323.º,
324,º, 336.º e 339.º).

Porém, há limitações ao exercício e direitos do direito de propriedade.


• O titular de marca registada não pode impedir que terceiros usem na sua actividade económica o
seu próprio nome e endereço ou indicações relativas à espécie, qualidade, quantidade, art. 260.º,
als. a) e b). No entanto, isto só é assim quando o uso pelos terceiros seja feito em conformidade
com normas e usos honestos em matéria profissional, o que significa que os sinais aludidos terão
de aparecer em função descritiva, não como marcas.
• Também não pode impedir que terceiros usem na sua actividade económica a sua marca, quando
tal uso não viole práticas honestas em matéria profissional e seja necessário para indicar o destino
dos produtos, nomeadamente no caso de acessórios ou peças sobressalentes (art. 260.º/c)).
• Outra limitação decorre do princípio do esgotamento.
o Os direitos conferidos pela marca esgotam- esgotam-se no momento em que coloca os
produtos no mercado, art. 259.º. Por ex., um produtor exporta para França, em França um
comerciante compra esses produtos mais baratos e vende novamente para Portugal – o
titular da marca não pode impedir a comercialização destes produtos com base na tutela
da sua marca. Caso contrário, isto levaria ao fechamento dos mercados nacionais, a que
cedo se opôs o TJCE, corrente jurisprudencial que foi adoptada pela Directiva 84/104 no
seu art. 7.º.
o No entanto, o esgotamento não é invocável se se verificar o n.º 2 : sempre que existam
motivos legítimos, nomeadamente quando haja alteração do estado das mercadorias. Um
produto alterado, com a mesma marca, iria pôr em causa as funções de indicação de
origem, indicação de qualidade e atração publicitária da marca. A mesma coisa em
princípio quando o sujeito apenas reembala os produtos. Só não é assim em determinadas
situações: por ex., a reembalagem não altera o estado originário do produto (ex: alteração
da embalagem de cartão para plástico). Ou seja: a marca é protegida quando se põem
em causa as suas funções.

As marcas de facto gozam de alguma tutela:

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• Direito de prioridade para o registo, art. 227.º.


• São também protegidas nos termos do 239.º/1/e): deve ser recusado o registo de marca idêntica
ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o requerente pretende fazer
concorrência desleal.

De tutela especial gozam também as marcas de facto notórias, art. 241.º/1 e 2, bem como as marcas de
prestígio não registadas, arts. 242.º, 266.º/1 e 2, 323.º/e) e 324.º.

3.6 Transmissões e licenças

O nosso sistema é um sistema de cessão livre, independentemente da transmissão das empresas onde os
produtos são produzidos. Isto decorre do art. 262.º/1, que diz que a propriedade de marca registada é
transmissível a título oneroso ou gratuito independentemente do estabelecimento, se tal não for
susceptível de induzir o público em erro. Por ex., a transmissão é ilícita quando a marca tiver o nome ou
firma e quando os produtos que estão a ser produzidos pelo adquirente sejam de natureza diversa ou
tenham uma qualidade muito inferior.

Notas:
• Quando se transmite o estabelecimento, as marcas estão em regra no âmbito natural, com
excepção do art. 31.º/5 (âmbito convencional).
• A transmissão inter vivos das marcas tem de fazer-se por escrito (art. 30.º/6) e só produz efeitos
do respectivo averbamento no INPI, art. 30.º/1/a) e n.º 2 (condição de eficácia perante terceiros).
Ou seja: o registo é constitutivo e o averbamento é atributivo de eficácia.

Pode-se ceder o gozo da marca sem que o titular perca o direito de propriedade sobre ela: temos, neste
caso, uma cessão da marca, através de contratos de licença de exploração das marcas (art. 32.º em geral
e 264.º em especial). Notas sobre este contrato:
• Pode ser total ou parcial em matéria de produtos área geográfica; vigente por todo o tempo do
registo ou não; exclusivo ou não exclusivo.
• Está sujeito a forma escrita (art. 32.º/3).
• Só produz efeitos em relação a terceiros depois de averbado no INPI (art. 30.º/1/b) e 2).

A licença de exploração dá ao titular as faculdades conferidas ao proprietário, no entanto, salvo


acordo das partes, o licenciado não pode ceder a sua posição contratual nem conceder sublicenças sem
consentimento do licenciante escrito (art. 32.º/8 e 9). A lei, no entanto, não esgota os poderes do
licenciante; porém, defende-se que podemos chegar a uma tutela destas matérias de qualidade pelo regime

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da caducidade. Ou seja, pode-se invocar a caducidade da licença nos mesmos termos que para a
caducidade do registo, art. 269.º/b) – isto decorre do art 264.º e do art. 8.º/2 da Directiva.

3.7 Formas de extinção

Estão previstas em geral e especial:


• Nulidade: o registo da marca é nulo nas hipóteses prevista no art. 33.º/1, ou nos casos em que o
registo tenha sido concedido com violação do disposto no n.º 1, 4, 5 e 6 do art. 238.º (art.
265.º/1). A nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, e a respectiva
declaração tem de ser feita por tribunal (art. 33.º/2 e 35.º/1). Temos aqui proibições absolutas.
Segundo o art. 36.º, a declaração de nulidade não prejudica certos efeitos.
• Anulabilidade: o registo é anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto
no art. 239.º a 242.º, como determinar o art. 266.º/1(proibições relativas de registo). A ação de
anulação pode ser proposta pelo MP ou qualquer interessado (art. 35.º/2 e 266.º/4), no prazo de
10 anos a contar da data do despacho da concessão do registo; mas o direito de acção não
prescreve se o registo tiver sido feito de má fé (com conhecimento da existência de proibições
relativas ao registo conhecido, art. 266.º/4). O titular da marca perde o direito de requerer a
anulação se, tendo conhecimento do facto, tiver tolerado durante um período de 5 anos
consecutivos o uso de uma marca registada posterior (art. 267.º/1).
• Caducidade: o registo da marca caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta
de pagamento de taxas, art. 37.º/1. Para além disto, caduca em especial nos termos dos arts. 269.º,
pelas causas previstas – falta de uso sério durante 5 anos consecutivos sem justo motivo (n.º 1); se
a marca se tiver transformado na designação usual no comércio do produto (n.º 2, al. a)); e se a
marca se tiver tornado deceptiva (n.º 3).
• Renúncia: o titular da marca pode abdicar da propriedade que o registo lhe conferiu, art. 38.º/1 e
2. A regra é a declaração unilateral e receptícia, dirigida ao INPI. O art. 38.º/5 diz que não
prejudica os direitos averbados (os contratos de licença de exploração estão salvaguardados).

É necessário tecer algumas considerações quanto às causas de caducidade do art. 269.º/1 e 2/a).
• Art. 269.º/1:
o O uso de marca é sério quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo
estável ou não esporádico e em quantidades significativas, mas pode também bastar-se
com a sua utilização em campanhas preparatórias.
o Questão importante é saber quando é que há justo motivo para não uso de uma marca.
Entende-se que existe justo motivo quando existam circunstâncias independentes da

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vontade do titular que tal imponham, por ex., catástrofes naturais ou medidas de
autoridade públicas proibindo a produção dos respectivos produtos.
• Art. 269.º/2/a): refere-se ao fenómeno da vulgarização e reproduz o art. 12.º/2 da Directiva. Não
basta o uso generalizado de uma marca como denominação específica de produto para que o
registo possa ser declarado caduco, ou seja, a lei não perfilhou a tese da vulgarização objectiva,
mas sim da subjectiva. Isto significa que a caducidade da marca quando a sua vulgarização seja
consequência da actividade do seu titular (porque este inicia ou promove a utilização da marca
como nome comum do produto), ou da sua inactividade (porque não reage contra aqueles que
iniciam ou promovem essa utilização).

4. Denominações de origem e indicações geográficas

4.1 Noção

Denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos excepcionais,
de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja qualidade ou características
se devem essencial ou exclusivamente ao meio geográfico (por ex., clima) e que é produzido,
transformado ou elaborado na área geográfica delimitada (art. 305.º/1).

Indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou, em casos excepcionais, de
um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cuja reputação, determinada
qualidade ou outra característica podem ser atribuídas a essa origem geográfica e que é produzido,
transformado ou elaborado na área geográfica delimitada (art. 305.º/1).

A principal diferença entre as denominações de origem e indicações geográficas coloca-se nestes termos:
as denominações identificam produtos cujas qualidade global ou características se devem
essencialmente ao meio geográfico; as indicações produtos que, embora possam ser produzidos com
igual qualidade noutro local, devem a sua fama a esse local.

As denominações de origem e indicações geográficas visam sinalizar e distinguir produtos, tal como as
marcas, mas não se confundindo com elas. Não podem dar origem a marcas.
• As possibilidades de constituição das marcas são muito mais vastas.
• As marcas pertencem a sujeitos determinados, enquanto que as denominações/indicações são
propriedade conjunta dos habitantes ou das pessoas instaladas nessa região, art. 305.º/4. Assim,
podem ser utilizados indistintamente por quem nessa região explora uma actividade.

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• Ao invés da generalidade das marcas, estes sinais distinguem sempre produtos originários de
certas áreas geográficas.

Porém, as denominações de origem e indicações geográficas têm grandes semelhanças com uma
específica categoria de marcas, as marcas colectivas constituídas por nomes indicando a proveniência
geográfica dos produtos (art. 228.º/2).

4.2 Protecção

A tutela das denominações de origem e indicações geográficas exige que estas sejam registadas, que deve
ser concedido de acordo com certos requisitos (art. 305.º/1, 2 e 3). Os fundamentos de recusa de origem
estão previstos no art. 308.º.

Notas:
• O registo destes sinais confere o direito de impedir o uso da palavra característica dele
componente, ou de signos confundíveis, para apresentar ou referir produtos idênticos ou afins
mas não provenientes das regiões demarcadas (art. 312.º/1/a) 2 e 3). Aquele uso é ainda proibido
em relação a produtos não idênticos quando a denominação ou indicação goze de prestígio em
Portugal ou na UE e o seu uso vise, sem justo motivo, tirar partido do seu carácter distintivo ou
prestígio (art. 312.º/4).
• Além da protecção consagrada no art. 312.º, pode-se ainda recorrer à responsabilidade civil nos
termos do art. 483.º e segs. do CCiv. (arts. 305.º/4, 310.º, 316.º e 338.º-L) e à responsabilidade
criminal (art. 325.º).
• As denominações de origem e indicações geográficas de facto gozam ainda de protecção, art.
310.º.
• De protecção territorialmente alargada gozam as denominações de origem e indicações
geográficas objecto de registo internacional, art. 309.º.

4.3 Extinção

Formas de extinção:
• Nulidade: o registo é nulo quando na sua concessão tiver sido violado o disposto no art. 308.º/b),
d) e f) (art. 313.º).
• Anulabilidade: o registo é anulável quando na sua concessão tiver sido violado o disposto no art.
308.º/a), c), e) e g) (art. 314.º).

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• Caducidade: o registo caduca quando a denominação de origem ou indicação geográfica se


transformar numa simples designação genérica (art. 315.º). Parece ter sido consagrada aqui a tese
da vulgarização objectiva; porém, há certos produtos que escapam a esta norma (art. 315.º/2),

5. Recompensas

As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos


(condecorações, medalhas, diplomas, atestados, etc.) concedidos a empresários pela bondade dos
respectivos estabelecimentos e/ou produtos. Este sinal está previsto no art. 271.º e segs.

As recompensas conferidas aos empresários atribuem-lhes a propriedade das mesmas, desde que
registadas pelo art. 273.º; porém, a propriedade é conferida independente do registo, ou seja, este não é
constitutivo. O registo tem assim uma função publicitária e certificadora, servindo para publicitar a
titularidade das recompensas, da veracidade da concessão das mesmas; e, nos termos do art. 278º, serve
para que as pessoas que beneficiam desse registo possam indicar as referências aí indicadas.

Formas de extinção:
• Anulabilidade, art. 280.º.
• Caducidade, art. 281.º.
• Renúncia, art. 38.º.

   

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TÍTULOS DE CRÉDITO

1. Dos títulos de crédito em geral

1.1 Noção

“A tarefa de elaborar uma noção de título de crédito depara-se com uma dificuldade evidente: a que
resulta da grande variedade de documentos aceites como títulos de crédito”. A lei portuguesa não nos dá
uma noção de título de crédito, nem sequer consagra um regime geral. Para SOVERAL MARTINS, podemos
recorrer à noção do autor italiano VIVANTE, segundo o qual o título de crédito será “o documento
necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado”.

Assim, o título de crédito surge como necessário para o exercício nele mencionado, pelo que, enquanto o
título existe, o exercício do direito está subordinado à detenção e exibição do título. Esta relação especial
entre título e direito caracteriza-se pela incorporação do direito no título.

O direito incorporado no título é um direito literal e autónomo.


• Literalidade: o direito incorporado no título é um direito literal, no sentido de que a letra do
título é decisiva para a determinação do seu conteúdo, limites e modalidades. A literalidade
decorre da conexão especial entre documento e direito, de tal forma que o direito aparece tal
como está expresso. Para além disto, é a literalidade que explica a circulação do direito, uma vez
que um terceiro que pode ser transmissário confia que o direito que pode exercer é o direito que
está no documento. Os terceiros depositam confiança sobre a força vinculativa do documento. No
entanto, há títulos de crédito em que isto não é bem assim – a acção não é literal, porque a
socialidade é confirmada pela lei, estatuto, deliberações, etc. Encontramos assim literalidade
perfeita (o exemplo típico é a letra de câmbio) e imperfeita (acções sociais).
• Autonomia: o possuidor do título adquire o direito nele referido de um modo originário,
independentemente da titularidade do seu antecessor e de possíveis vícios. O direito é um direito
novo, não contaminado por vícios anteriores. Isto é importante para percebermos a diferença
entre relações mediatas e imediatas.

1.2 Funções dos títulos de crédito

1.2.1 Transmissão do direito nele mencionado ou incorporado

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Os títulos de crédito surgiram devido à necessidade de tornar mais fácil e segura a circulação dos créditos,
face ao regime da cessão de créditos. Isto foi conseguido através do recurso a regras a que se submetiam
as coisas móveis:
• O eventual comprador de uma coisa móvel tem maior facilidade em verificar as características
daquilo que vai adquirir.
• A tutela que se confere à aparência resultante da posse do título beneficia o próprio devedor e os
terceiros adquirentes.

Assim, os títulos de crédito desempenham desde logo uma função de transmissão do direito neles
mencionado, ou seja, a transmissão do título de crédito de acordo com as respectivas regras de circulação
acarreta também a transmissão do direito referido. Isto é fundamental nos títulos de crédito ao portador,
cuja forma normal de transmissão é a da simples entrega do título.

Esta função prende-se com a nota da circulabilidade dos títulos, isto é, a aptidão para circularem e serem
transmitidos de possuidor para possuidor de acordo com certas regras, previstas em especial para as letras
de câmbio, livranças e cheques.

1.2.2 Legitimação

Aos títulos de crédito é também reconhecida uma função de legitimação, que tem duas vertentes:
legitimação activa e passiva.
• Activa: o portador do título, que o tenha recebido de acordo com as regras de circulação do
mesmo, pode exercer o direito mencionado no título. A esta legitimação está subjacente a
presunção de que o portador é o titular do documento.
• Passiva: se o portador se encontra nessa posição, então o sujeito obrigado a realizar a prestação
cumpre bem se a realizar a favor do sujeito portador.

1.3 Classificações dos títulos de crédito

Vamos fazer uma classificação dos títulos de crédito de acordo com vários critérios.

1) Conteúdo do direito incorporado ou representado:


• Títulos de crédito em sentido estrito: conferem direitos de natureza pecuniária. Exs: letras,
livranças e cheques.
• Títulos representativos de mercadorias: conferem ao titular um direito de natureza real sobre
coisas. Exs: fornecimentos de carga, depósito, etc. Investe-se o portador num direito real.

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• Títulos representativos de participação ou títulos de participação: atribuem ao titular um status


referido à qualidade de membro de uma pessoa colectiva, em regra, uma sociedade de certo tipo.

2) Modo normal de transmissão ou circulação:


• Títulos de crédito ao portador: transmitem-se por simples entrega do título, por tradição, logo não
se revela no seu texto quem é o respectivo titular. Temos aqui a literalidade e autonomia no seu
estado puro. Circulam mediante entrega real, isto é, entrega com mudança de disponibilidade.
• Títulos de crédito à ordem: transmitem-se por endosso, ficando a constar do título um
comprovativo da sua transmissão – caso típico da letra. O endosso implica uma declaração da
transmissão, normalmente nas costas, sobre uma forma de ordem ao devedor.
• Títulos de crédito nominativos: exigem a intervenção do emitente, realizado por ex. através de
um registo a favor do adquiresente. No caso das acções, quando são nominativas, resulta a
faculdade de o emitente conhecer ou não a identidade do seu titular (art. 52.º do CVM).

3) Consequências da emissão do título no direito incorporado:


• Títulos constitutivos: os títulos de crédito são geralmente apresentados como documentos
constitutivos, uma vez que o direito incorporado é distinto do direito da relação jurídica
subjacente. Mas nem sempre isto sucede, nem todos os títulos são vistos como constitutivos.
• Títulos declarativos: é exemplo o título de acção, pois a socialidade subsiste mesmo sem e para
além da incorporação no título. Não há uma acção formal ao lado da acção subjacente, o que
temos é a participação social. No entanto, a própria acção tem algumas componentes
constitutivas:
o Vem tornar aplicável um conjunto de regras quanto à legitimação para o exercício dos
direitos, transmissão da participação representada e tutela dos adquirentes.
o Sem a forma de representação, não há ainda valor mobiliário.

4) Relevo da relação fundamental:


• Títulos abstractos: são títulos que se desprendem e autonomizam na sua existência, validade e
eficácia dos negócios na sua origem. Não podemos dizer que esta característica esteja presente
em todos os títulos de crédito.
• Títulos causais: é exemplo a acção social, que não se abstrai da causa da emissão, está sempre
ligada a ela no que diz respeito ao conteúdo da relação entre o accionista e a sociedade.

Quando se fala numa abstracção, o que se está a dizer é que aquilo que pode influenciar a validade do
negócio originário não afecta o título. Isto não é assim nas relações imediatas; porém, a partir do
momento em que a relação não se baseia na relação causal, abstrai-se.

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1.4 Tipicidade / atipicidade dos títulos de crédito

Não havendo um regime legal unitário para os direitos de crédito, perguntamos se são admissíveis apenas
os títulos de crédito admitidos na lei, ou, pelo contrário, títulos de crédito criados pela autonomia privada.
• Negócios unilaterais: no que diz respeito à criação de títulos de crédito através de negócios
unilaterais, temos de atender ao art. 457.º do CC. De acordo com este preceito, tiramos um
princípio de tipicidade, ou seja, a criação de títulos de crédito através de negócios unilaterais está
sujeita a este limite.
• Contratos: entende-se que a tipicidade deve ser respeitada, pois caso contrário teríamos uma
grande insegurança, aumentando a imprevisão sobre quem se estava a vincular em cada
momento. É perigoso criar livremente títulos de crédito que incorporam em si mesmos direitos
literais e autónomos, sem nada subjacente. Assim, o princípio aqui deve ser também o da
tipicidade taxativa, salvo quando a lei preveja regime diferente – por ex., nos valores mobiliários,
ainda que esta livre criação esteja sujeita a uma fiscalização da CMVM (art. 1.º/g)).

2. Regime jurídico das letras de câmbio

2.1 Breve apontamento histórico

As letras de câmbio têm uma origem medieval: os mercadores, para evitarem transportar dinheiro,
entregavam o dinheiro ao seu banqueiro, e este emitia um documento que lhe permitia noutro banco
levantar esse dinheiro. Temos aqui uma troca de moeda, daí a terminologia “letra de câmbio”. Isto servia
também para fugir à proibição da usura – a partir do momento em que o banqueiro emitia o documento
sem receber o dinheiro antes, estava a dar crédito.

Inicialmente, este documento não era transmissível, mas isto foi evoluindo com as necessidades do
comércio – transmite-se por endosso, é um título à ordem. Também já não é necessária a entrega do
dinheiro no momento da emissão, ou seja, a letra já não tem a função de troca de moeda de diferentes
praças. Para além disto, o portador mediato do título, se legitimado por uma cadeia ininterrupta de
endossos, encontra-se particularmente protegido.

2.2 Noção

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A letra é um documento em papel que contém uma ordem de pagamento de uma quantia determinada
dada pelo sacador ao sacado e à ordem do tomador (art. 1.º da LULL). O saque é a própria ordem de
pagamento que dá origem à letra. Encontramos assim uma relação entre três sujeitos: sacador, sacado e
tomador. O sacador dá uma ordem de pagamento ao sacado, para que este pague ao tomador. Mas isto
pode complicar-se: no art. 3.º da LULL, vemos que há a possibilidade de um saque ser feito à ordem do
próprio sacador.

O art. 1.º/2 da LULL refere-se ao saque como o mandato puro e simples de pagar uma quantia
determinada. Não está aqui em causa o mandato no sentido de contrato de mandato, mas sim ordem de
pagamento – deve ser pura e simples porque este documento, que tem um regime oneroso nas relações
mediatas, diz qual é o valor da ordem de pagamento, não é necessário andar a fazer outras averiguações.

Distingue-se da livrança e do cheque:


• A livrança contém, não uma ordem de pagamento, mas sim uma promessa de pagamento.
• Por sua vez, o contém também uma ordem de pagamento, mas dada pelo sacador sobre um
banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador, tenham ou não sido depositados
previamente por este. Para alguém dar uma ordem de pagamento ao banco através de cheque,
houve previamente uma convenção que permitiu essa mobilização de fundos, mas não é
necessário que o cliente tenha previamente colocado dinheiro naquele banco.

Funções da letra de câmbio:


• Permite diferir no tempo a realização de um pagamento. “Em vez de pagar agora, o aceitante
pagará uma quantia na data do vencimento da letra: por isso, a letra funciona como um
instrumento de crédito”.
• “Como pode circular através do endosso, a letra também permite a circulação do crédito”.
• “Por último, a letra, constituindo título executivo, permite o recurso ao processo executivo para
obter o pagamento”.

A letra de câmbio, para além do saque, pode conter outros negócios cambiários:
• Aceite: pelo aceite, o sacado aceita a ordem de pagamento contida no saque.
• Endosso: através do endosso, transmite-se a letra, que é por isso um título à ordem.
• Aval: o avalista garante o pagamento da letra, no todo ou em parte.

2.3 Requisitos externos da letra

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A letra de câmbio é um documento que tem de cumprir determinados requisitos de carácter formal – é um
documento de natureza rigorosamente formal. Os requisitos externos da letra estão previstos no art. 1.º da
LULL.

Entre nós, como há exigências fiscais a cumprir, as letras têm de obedecer a certos modelos-tipo,
aprovados pela Portaria 28/2000, que identifica o conteúdo das letras. A exigência que resulta da portaria
visa exigir o cumprimento do disposto no CIS. Mas o que sucede se alguém emitir uma letra sem cumprir
estes modelos? Para SOVERAL MARTINS, se contiver os requisitos externos do art. 1.º, ainda é uma letra,
ainda que se esteja a cometer uma fraude fiscal.

Quais são os requisitos?


• A palavra letra, inserida no texto do título e na língua da redacção: como tem associado um
regime gravoso quando entra nas relações mediatas, tem de haver um alerta – é esta a razão de ser
desta exigência.
• Mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada: é a ordem de pagamento que o
sacador dá ao sacado.
• Nome daquele que deve pagar (sacado): é a esta pessoa que a letra será apresentada ao aceite.
• Época do pagamento: a letra não pode ser paga em qualquer altura, a LULL prevê as modalidades
de pagamento admissíveis, art. 33.º.
o Letra à vista: pagável à apresentação.
o Letra com termo de vista: prazo que tem de decorrer a partir do momento em que se põe
a vista em cima, art. 35.º. Determina-se pelo aceite ou protesto de aceite. Para o sacado
pôr o aceite no cheque, tem de ter posto a vista em cima.
o Letra com termo de data: data em que a letra é sacada, logo prazo a contar desta data.
o Pagável em dia fixado.
• À ordem de quem deve ser pago (tomador): o sacador, ao dar a ordem de pagamento, indicará a
quem esse pagamento deve ser efectuado.
• Data onde a letra é passada: é importante por várias razões, desde logo porque nos permite ver se
o sacador tinha ou não capacidade no momento do saque. Também deve indicar o lugar,
importante para questões relacionadas com a lei aplicável.
• Assinatura do sacador: permite afirmar que foi emitida a declaração cambiária que deu origem à
letra.

2.3.1 Falta dos requisitos externos

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Em regra, a falta de um destes elementos leva a que se considere que o documento não produzirá efeitos
como letra. Porém, o art. 2.º vem permitir que certas faltas sejam supridas, consagrando regras supletivas:
• Época do pagamento: se não constar da letra, esta considera-se pagável à vista.
• Lugar onde a letra deverá ser paga: se não for referido, considera-se como lugar o referido ao
lado do nome do sacado (o seu domicílio), ou seja, este lugar é considerado como domicílio e
lugar de pagamento, o que é lógico. A falta destes elementos que vêm referidos só é suprida, em
particular quanto ao lugar do pagamento, se houver um lugar indicado ao lado do nome do
sacado.
• Lugar onde a letra foi passada: a sua falta também é suprível, considerando-se o lugar referido ao
lado do sacador, se for o caso.

2.3.2 Letra em branco e letra incompleta

“Como vimos, embora a lei enumere uma série de requisitos externos da letra, alguns desses requisitos
não têm necessariamente de constar do título, porque a própria lei se encarrega de suprir a falta daqueles.
Podemos, assim, falar de requisitos essenciais e de requisitos não essenciais”.

Na falta de requisitos essenciais, estamos assim perante uma letra incompleta, que não vale como letra.
Porém, a lei admite a possibilidade de celebração de acordos de preenchimento, art. 10.º da LULL. Se
assim for, ou seja, se for celebrado um acordo de preenchimento, não podemos falar de uma letra
incompleta, mas sim de uma letra em branco.

Porém, há dois aspectos que se consideram ter de constar da letra para se poder sequer falar da letra em
branco:
• Referência à palavra letra.
• Alguma assinatura: aqui a doutrina diverge. SOVERAL MARTINS considera que tem de constar
pelo menos a assinatura do sacador, para se poder falar em letra “passada”, i.e., sacada. Sem
saque não há letra. COUTINHO DE ABREU entende que basta a assinatura de qualquer obrigado
cambiário, por ex. do sacado aceitante, avalista, etc.

Note-se que, mesmo que exista acordo de preenchimento, a letra em branco só produzirá efeitos como
letra depois do preenchimento com os requisitos essenciais em falta.

E nos casos em que a letra acaba por ser preenchida sem respeitar o acordo de preenchimento? O art. 10.º
diz que não pode a inobservância do acordo ser motivo de oposição ao portador (mediato), salvo se este

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tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido falta grave. Este regime visa facilitar a
circulação dos títulos de crédito – a celeridade das trocas vive da confiança.

Para além disto, nos casos em que a letra chega às mãos do portador sem estar ainda completa, o art. 10.º
pode ser invocado quando for o portador a preencher contra o acordo? A doutrina diverge: SOVERAL
MARTINS entende que o art. 10.º só deve ser aplicado quando o portador não é o sujeito que preencheu a
letra contra o acordo. Este não merece a tutela se viola o acordo; se não tiver conhecimento do acordo,
deverá informar-se.
 

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