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EDUCAÇÃO NUTRICIONAL: CAMINHOS POSSÍVEIS

Angélica de Moraes MANÇO*


Fátima Neves do Amaral COSTA* *

RESUMO: O trabalho tem como objetivo apresentar Um olhar retrospectivo à educação nutricional
teoricamente as principais concepções envolvidas na
Educação Nutricional e sinalizar possíveis rumos. O conhecimento da história da Educação Nutricional
Realiza para tanto, a partir de uma análise documental, é de fundamental importância para nos espelharmos nos
uma retrospectiva histórica do campo da Educação erros cometidos no passado, resgatarmos as contribuições
Nutricional e aponta caminhos a serem trilhados. dos autores e evoluirmos na busca permanente de uma
Proporciona, com base nas análises realizadas, a Educação Nutricional mais eficaz aos problemas
possibilidade da Educação Nutricional enriquecer-se do nutricionais brasileiros.
campo das ciências humanas, de princípios filosóficos Ao realizarmos uma análise de todo o material de
da Educação em geral, tendo como referenciais teóricos, Educação Nutricional apresentado por Boog, em sua tese
Freire e Morin. As considerações finais indicam a de doutorado, no ano de 1996, temos uma abordagem da
necessidade do profissional nutricionista buscar Educação Nutricional, em ordem cronológica e de forma
complementar sua formação inicial, crítica, possibilitando embasamento teórico para avaliarmos
predominantemente biologicista, aprofundando-se na as mudanças ocorridas na Educação Nutricional nos tempos
área da Educação para desenvolver qualitativamente o atuais e traçarmos ainda, possíveis novos caminhos.
processo da Educação Nutricional a ele atribuído. Assim, vamos encontrar nas publicações escritas por
Ritchie, a valorização do significado dos alimentos, dos
PALAVRAS-CHAVE: Educação nutricional; educação; aspetos religiosos e culturais, dos hábitos por grupos étnicos
educação problematizadora; nutricionista-educador. dentro de uma visão sociológica, contudo, não era
preconizada a participação ativa dos educandos nos
processos decisórios. Burges e Dean avançaram um pouco
Introdução mais ao afirmarem que a Educação Nutricional não era um
simples repassar de informações, todavia, o nutricionista
A Educação Nutricional configura-se em um campo era visto somente como multiplicador das informações.
de atuação educativa do nutricionista (Lei Federal 8.234/ Mesmo assim, as autoras ampliaram o respaldo técnico do
91).6 Nesse campo é possível, de acordo com a postura do profissional para a execução dos programas direcionados a
profissional nutricionista adotada, construir conhecimentos um planejamento de ensino fundamentado no pensamento
significativos com o paciente, uma vez que o mesmo poderá behaviorista, que valorizava a necessidade de um
ser considerado sujeito ativo do processo, sempre aberto e diagnóstico educativo bem elaborado e formulação precisa
flexível às suas necessidades. de objetivos educativos. Jelliffe, como médico, pensava a
Buscando aprofundar as principais concepções Educação Nutricional de forma a distancia-la de um ideal
teóricas envolvidas na Educação Nutricional e articular tais de ensino e sua função foi reduzida apenas a de instrução,
concepções ao campo do conhecimento da Educação, o frente aos problemas nutricionais, com base nos dados
presente trabalho encontra-se estruturado em três momentos. epidemiológicos. Bosley resgatou a valorização dos
A princípio realiza um resgate retrospectivo do tema costumes, valores, preferências, tabus dos indivíduos e pela
fundamentado em Boog.3 A seguir, para visualização de primeira vez, o profissional nutricionista foi reconhecido
possíveis caminhos, são apresentados teoricamente alguns como responsável técnico pela Educação Nutricional, mas
pressupostos culturais, sociais e da Educação em Saúde que não como seu executor. Ela ressaltou ainda, o papel
poderiam ser incorporados à Educação Nutricional, importante do educador, entretanto, como um “dom” dos
distinguindo as diferenças entre Educação Nutricional e indivíduos e não como uma habilidade a ser desenvolvida.
Orientação Nutricional. Mushkin direcionou a Educação Nutricional ao crescimento
Como rumo à Educação Nutricional, enraizada em econômico, deixando de lado as discussões envolvendo os
princípios educativos, são articuladas relações teóricas entre valores dos indivíduos. A esposa de Jelliffe direcionou a
Educação Nutricional e Educação Problematizadora de Educação Nutricional à redução dos riscos de morbidade e
Paulo Freire, acrescidas das contribuições de Edgar Morin. mortalidade, além disso, resgatou novamente o papel do

* Departamento de Alimentos e Nutrição – Faculdade de Ciências Farmacêuticas – UNESP - 14800-901 – Araraquara, SP - Brasil.
** Departamento de Didática - Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 14800-901 - Araraquara – SP – Brasil.

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educador ainda como um “dom” e não como uma habilidade às práticas de Educação Nutricional e considerar os hábitos
a ser adquirida.3 alimentares, que demonstrem risco à saúde desses
Os manuais de treinamento, de maneira geral, pouco indivíduos.9
contribuíram com aspectos positivos na história da Educação A alimentação representa a manifestação da
Nutricional. Seria ilusório acreditar que eles poderiam estar organização social, a chave simbólica dos costumes, o
oferecendo soluções às questões nutricionais, uma vez que registro do modo de pensar a corporalidade do mundo em
não valorizavam aspectos nutricionais como os hábitos qualquer sociedade. O Brasil, marcado pelas desigualdades
alimentares, descartavam as questões sociais que permeavam sociais, atribui valores diferentes ao alimento, conforme as
as situações apresentadas e tratavam de questões como classes sociais. As pessoas com nível sócio-cultural mais
aleitamento materno, com técnicas de higiene e elevado, nos dias de hoje, apresentam em sua alimentação
improvisação de um “excelente refrigerador” confeccionado uma nova característica, a de acrescentarem em suas
com uma cesta de bambu.3 refeições, alimentos mais leves, “lights”, diferente dos gostos
No Brasil, a Educação Nutricional ficou sempre bárbaros, da mesa “farta” que nos deparávamos no passado.
mais associada à introdução de alimentos vinculados ao Para as classes populares, o alimento já apresenta outro
interesse econômico. As publicações existentes se significado, temos uma mescla de valores simbólicos do
restringiam a folhetos ou livretos destinados à população. passado e do presente, manutenção das características
Nos anos setenta, a Educação Nutricional foi muito criticada regionais e padrões sócio-culturais nas diversas instâncias
por ser estratégia para ensinar os pobres a se alimentarem do conhecimento tradicional. Os alimentos, para estas
de cascas, por exemplo, e também, não fazia mais parte da classes populares, são classificados em “fortes ou fracos” –
veemência política. Investimento nas publicações na área conforme sua “sustança”; “pesados ou leves” – de acordo
da Educação Nutricional não ocorreu em nosso país e o com o estado de saúde do indivíduo; “ricos ou pobres em
único livro existente foi o escrito por Boog e Motta, em vitaminas” – referentes à sua fortificação do organismo e
1984.5 benefícios à saúde. As observações do nutricionista sobre
os diversos elementos simbólicos dos alimentos facilitam a
Novos caminhos da educação nutricional interpretação de conceitos construídos por diferentes sujeitos
sociais, justificando seus hábitos alimentares e suas
A Educação Nutricional não deveria mais ser articulações concretas do cotidiano, enquanto estratégias
concebida apenas como a mudança de hábitos alimentares de vida.8,16
inadequados à saúde, uma vez que trabalhos mais recentes Os tabus alimentares também devem ser
vêm incorporando outras características às práticas de considerados no processo de Educação Nutricional, porque
Educação Nutricional, tornando-a mais eficiente e adequada simbolizam algo proibido e intocável e, estão ainda presentes
às necessidades do ser humano, como poderá ser confirmado nos costumes brasileiros, em decorrência de nossa
no decorrer do texto que segue. Abordaremos de início os organização cultural, permeada pela influência dos negros,
aspectos nutricionais articulados intrinsecamente aos índios e portugueses.16 Os alimentos apresentam significados
culturais. diferentes a cada cultura e foram classificados por Helman
dentro de cinco categorias: alimento versus não-alimento;
Educação nutricional e aspectos culturais alimento sagrado versus alimento profano; alimento quente
versus alimento frio; alimento como remédio versus remédio
O alimento não pode mais ser visto somente como como alimento; alimentos sociais, que merecem ser
uma fonte de nutrição, pois possuindo a capacidade de destacadas para percebermos, posteriormente, as
desempenhar várias funções na sociedade humana, pode conseqüências que podem trazer à saúde dos grupos
estar relacionado aos aspectos sociais, culturais, religiosos, culturais, além de muitas vezes poderem ser também
econômicos, psicológicos, antropológicos, que influenciam classificados como tabus alimentares.9
nos hábitos alimentares dos indivíduos e grupos9 e que não Alimento versus não-alimento – cada cultura define
deveriam ser desconsiderados em um processo de Educação quais as substâncias que serão comestíveis ou não, dentro
Nutricional mais efetivo. do seu contexto, mesmo que os alimentos considerados como
A antropologia médica, ao conhecer as características não-alimentos apresentem um ótimo valor nutricional.
dos grupos culturais diferentes, explica a causa das doenças, Alimento sagrado versus alimento profano – os
os tipos de tratamento que acreditam e a quem recorrem se alimentos que serão permitidos e proibidos, com base nas
ficam doentes, contribuindo então, para a recuperação da crenças religiosas dos diferentes grupos sociais.
saúde dos indivíduos.9 Alimento quente versus alimento frio –
Neste contexto, o nutricionista compreendendo como característica de muitos grupos culturais e sociais e com o
cada cultura compõe o seu conjunto de regras voltadas à significado de remédio para as doenças também classificadas
alimentação, modo de preparação dos alimentos, ocasiões como quentes ou frias.
em que o grupo estará reunido para se alimentar, ordem Alimento como remédio versus remédio como
dos pratos servidos durante uma refeição e maneira como alimento – alguns alimentos podem ser utilizados como
os indivíduos comem, poderá incorporar essas informações uma forma de medicação para determinadas doenças ou

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estados psicológicos, de acordo com crenças e valores de “As políticas sociais são, por definição,
cada grupo social. Atualmente, já conhecemos vários compensatórias em relação ao funcionamento
alimentos com essa função, denominados como alimentos normal da sociedade. Elas surgem para compensar
funcionais. Por outro lado, existem remédios, que podem as distorções decorrentes do processo do
ser considerados uma forma de alimento ou nutriente, desenvolvimento capitalista, que discrimina e faz
quando ingeridos juntamente com as principais refeições, com que a distância entre ricos e pobres seja cada
cujo efeito simbólico é de alimento. vez maior”.1
Alimentos sociais – alimentos que consumidos por
um grupo de pessoas, dotados de valor simbólico As famílias na sociedade capitalista não partem de
representam status social, na medida em que a qualidade e igualdade de condições, em que os mais pobres tendem a
quantidade da comida possam refletir o poder aquisitivo reproduzir o ciclo da pobreza: baixo nível educacional, má
dos indivíduos.9 alimentação e saúde, instabilidade no emprego e baixa
Portanto, o alimento possui duas conotações renda. Recentemente, em 1993, o direito à alimentação foi
diferentes, em relação ao seu valor nutricional e cultural, equiparado aos demais direitos do homem e estabelecido
podendo afetar a nutrição dos indivíduos de duas maneiras: na Carta dos Direitos Humanos de 1948. Ao Estado compete
excluindo nutrientes essenciais da alimentação, ou a função de garantir a segurança alimentar de sua população,
estimulando o consumo de determinados alimentos ou como um direito ao cidadão. Nos tempos atuais, não
bebidas. Assim a partir dessas considerações, associamos a observamos mais a falta de alimentos ou de oferta disponível
má nutrição de indivíduos aos fatores culturais, podendo de alimentos, mas sim a dificuldade quanto ao acesso físico
manifestar-se através da subnutrição ou da supernutrição. e econômico, continuamente, à alimentação e aos meios
Não se pode, contudo, atribuir exclusivamente a estes fatores para sua obtenção.1
a total responsabilidade na maior parte desses casos no Valente discute ainda em seu trabalho, a ingenuidade
mundo. Os importantes papéis culturais que os alimentos de se acreditar que com ação isolada de um processo
desempenham nas sociedades fazem parte das tentativas de educacional crítico em nutrição, conseguiríamos eliminar
modificar ou aperfeiçoar os hábitos alimentares dos a fome/desnutrição ou qualquer outro distúrbio nutricional.
indivíduos.9 No entanto, o papel de considerar os processos históricos e
O comportamento alimentar também deve ser sociais de determinação desses distúrbios nutricionais e o
relevante no processo da Educação Nutricional, pois quando possível fortalecimento dos movimentos populares assim
influenciado pelo aspecto psicológico, pode trazer municiados, poderiam auxiliar em uma ação social mais
conseqüências à saúde dos indivíduos.13 eficaz sobre a realidade.18
Quando a Educação Nutricional é postulada O mesmo autor, em suas afirmações, aponta uma
meramente como uma consulta parcial do tratamento, de visão mais crítica, quanto à melhoria dos problemas
modo homogêneo, a-histórico, a-temporal, independente de nutricionais articulada aos aspectos sociais e pensando dessa
grupos sociais, desconsiderando as questões mencionadas, maneira, poderemos citar aqui uma ação social como o
ela se torna um saber técnico que não valoriza o sujeito. Programa Fome Zero, proposto pelo atual governo brasileiro,
Não se questiona as causas e efeitos deste ou daquele que faz essa mesma articulação de Valente, ao se ater
alimento. Por outro lado, pensar a Educação Nutricional primeiro as condições sociais do Brasil, para posteriormente,
como um ato capaz de trabalhar questões intrínsecas aos se preocupar com as questões alimentares. O Programa foi
antigos paladares e hábitos não parece de fato ser uma tarefa elaborado a partir de um estudo que reuniu quase uma
simples, mas levando em consideração todos os aspectos centena de técnicos, acadêmicos e operadores de políticos
abordados anteriormente, tornará o processo de intervenção em torno de três objetivos principais: a) avaliar a situação
do nutricionista mais eficiente.8 dos programas de combate à fome no Brasil diante dos
compromissos firmados pelo país na Cúpula Mundial de
Educação nutricional e aspectos sociais Alimentação de 1996; b) retomar a mobilização da sociedade
diante do tema da segurança alimentar e; c) envolver os
Valente, buscando estabelecer uma visão mais crítica governos federal, estaduais, municipais, ONGs e sociedade
da Educação Nutricional, condenou todas as iniciativas neste civil em uma proposta factível para o combate a fome.1
campo até então. A necessidade de uma Educação O Programa, ao apresentar o diagnóstico do mapa
Nutricional mais crítica faria parte de um compromisso de da fome, aponta a dificuldade de se calcular a quantidade
colocar a produção técnica e científica do profissional a de pessoas sujeitas à fome no país, não havendo um consenso
serviço do fortalecimento das classes populares em sua luta sobre o tamanho da população atingida. O último
na superação dos problemas nutricionais. O autor afirma levantamento abrangente e de qualidade sobre o acesso da
que a eliminação das diferenças entre as classes sociais não população a alimentos e outros bens de consumo foi o Estudo
se dará a partir de processos educacionais, porém estas Nacional da Despesa Familiar (Endef), de 1974/75. A partir
transformações exigem ações políticas das quais o processo de seus dados, foi possível avaliar que 42% das famílias
educacional pode contribuir como um mediador brasileiras (8 milhões de famílias), ou cerca de 50% da
importante.18 população da época, equivalente a 46,5 milhões de pessoas

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estariam em condições de insegurança alimentar. Dados por sua vez, incentiva o consumo de alimentos
mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de naturais, frutas, hortaliças e recomenda evitar as
Domicílios (PNAD), do IBGE, de 1999, atualizados guloseimas, as gorduras saturadas e os alimentos
posteriormente pela edição de 2001, se assemelham aos artificiais”.12
dados encontrados em 1974/75: a linha de pobreza média
ponderada no Brasil, que é de R$ 71,53 mensais por pessoa, As autoras fizeram também uma analogia ao conceito
indica a existência de 46 milhões de pessoas com uma renda exposto por Marcondes sobre a Educação em Saúde,
mensal disponível média de R$ 39,11, ou 9,9 milhões de entendida como: “um processo essencialmente ativo que
famílias com renda mensal de R$ 183,81, levando-se em envolve mudanças no pensar, sentir, agir dos indivíduos
conta a média de 4,7 pessoas por família - valor considerado pelo qual eles adquirem, mudam ou reforçam
insuficiente para suprir as necessidades básicas de conhecimentos, atitudes e práticas conducentes à saúde”.12
sobrevivência de um ser humano.14 Embasadas neste conceito, as autoras afirmaram que
Esses resultados, decorrentes de uma diminuição do a Educação Nutricional constitui um processo por meio do
poder aquisitivo e um aumento no preço da alimentação qual se obtém mudanças de conhecimentos de Nutrição,
saudável, exigem um crescimento econômico com atitudes com relação à alimentação e práticas alimentares
distribuição de renda no Brasil, visando a garantia de conducentes à saúde, visando a melhoria da saúde pela
segurança alimentar a todos os cidadãos. Contudo, o promoção de hábitos adequados, eliminação de práticas
problema nutricional da população brasileira não se resume dietéticas insatisfatórias, introdução de melhores práticas
na aquisição insuficiente de alimentos, mas também na de higiene e uso mais eficiente de recursos alimentares.12
escolha inadequada dos mesmos, nos níveis qualitativo e Com as mudanças mais recentes no modo de
quantitativo, com maior evidência nas famílias de baixa conceber a Educação em Saúde, esta tem sido considerada
renda. Portanto, a Educação Nutricional mais crítica como campo de práticas e conhecimentos do setor saúde,
desempenharia um papel importante também ao bom êxito ocupando-se mais diretamente da criação de vínculos entre
do Programa.14 o saber científico e o pensar cotidiano da população e no
E ainda, poderíamos incluir o fato de que políticas Brasil. Diferentes concepções e práticas têm marcado sua
de garantia de direitos universais, como direito à história. As práticas de Educação em Saúde vêm buscando
alimentação, previsto no Programa Fome Zero, se a superação do fosso cultural presente entre a instituição e
contrapõem a necessidade de estabelecer ações focadas de a população, em que um lado não compreende a lógica e o
atendimento ao público selecionado. O foco de segurança outro, as atitudes. Com isso, é assumida uma nova postura
alimentar e nutricional pode ser distinto do foco do para o enfrentamento dos problemas de saúde, marcados
combate à pobreza, pois nem todo pobre vive em situação pela integração do saber técnico ao saber popular. Dessa
de insegurança alimentar e nem todo cidadão em situação forma, a Educação em Saúde deixa de ser uma atividade a
de risco alimentar é necessariamente pobre, embora essas mais realizada nos serviços de saúde, passando a ser um
associações serem bastante prováveis.1 Tal afirmação mostra instrumento de construção da participação popular nos
novamente a relevância da presença de ações de Educação serviços de saúde e, ao mesmo tempo, de aprofundamento
Nutricional no Programa Fome Zero. da intervenção da ciência na vida cotidiana das famílias e
da sociedade.19
Educação nutricional e educação em saúde As novas considerações no campo da Educação em
Saúde deveriam ser incorporadas nas práticas de Educação
Na intenção de continuarmos a aprofundar as novas Nutricional, permitindo assim, que as mesmas não se
possíveis maneiras de realizar a Educação Nutricional, restrinjam a práticas hegemônicas prevalentes, em que
apresentamos aqui conceitos da Educação Nutricional e da imperam prescrições e determinações do profissional de
Educação em Saúde na década de oitenta, citados por Motta saúde aos sujeitos. A inserção da Educação Nutricional nas
e Boog em seu livro e, posteriormente, apontaremos as novas ações de Educação em Saúde se torna importante, uma vez
considerações da Educação em Saúde, que deveriam ser que a literatura médica vem reafirmando, frente às doenças
incorporadas à prática da Educação Nutricional mais crônicas, a urgência de se articular ao tratamento
atualizada. medicamentoso, práticas de saúde que considerem e
desenvolvam os aspectos relacionados à qualidade de vida
“A educação nutricional se insere na educação em dos indivíduos.10 Para isso, os conceitos sobre as práticas
saúde, que tem por finalidade a formação de atitudes de Educação Nutricional têm que acompanhar a evolução
e práticas conducentes à saúde: não fumar, praticar das mudanças nos conceitos da Educação em Saúde.
esportes, apreciar a vida ao ar livre, andar a pé –
são comportamentos incentivados pela educação em Educação nutricional ou orientação nutricional?
saúde. Estes exemplos de comportamentos bastam
para mostrar que não são as condições econômicas A Educação Nutricional é atribuída ao profissional
favoráveis que vão, por si sós, determinar nutricionista. No percurso de sua formação inicial esse
comportamentos saudáveis. A educação nutricional, profissional é preparado para assumir essa função. O

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exercício da Educação Nutricional é realizado pelos aceita transgressões e as mesmas, se tornam motivos de
nutricionistas com maior freqüência na área clínica do que censura; e ainda, dá ênfase somente à prescrição dietética.5
na rede básica de saúde, o que interpretamos como um dado Em relação à área de atuação do nutricionista dentro
desfavorável. Como apenas 3 a 7% dos profissionais da saúde coletiva, podemos considerar dois campos
formados atuam na área de saúde pública, implica aos importantes: as escolas públicas e a área de merenda escolar.
médicos e enfermeiros a atribuição dessa atividade. Porém, Nesses campos, além da escassez desses profissionais,
segundo pesquisa realizada por Boog, as enfermeiras, podemos acrescentar, como assegura Vasconcelos, que a
embora tenham cursado uma disciplina específica de prática do profissional em saúde pública carece ser
Nutrição na graduação, consideram o ensino insatisfatório redefinida e normatizada a partir de diretrizes que nos
e, quanto aos médicos, quase nada comentaram sobre o possibilitem uma relativa uniformidade de atuação. Uma
ensino em Nutrição, pois de fato, este não ocorreu, refletindo prática conservadora, que apenas reproduz as condições que
a falta de interesse desses profissionais na área da Educação determinam o processo saúde-doença não é o suficiente.20
Nutricional.4 Muitos profissionais de saúde, no desenvolvimento
Os cursos de graduação se preocupam mais com o de suas práticas, realizam a prescrição de “receitas”, que
ensino voltado às ciências biológicas, desvalorizando a não favorece o diálogo entre profissional e o paciente. O
importância das ciências humanas em sua formação, paciente passa a reproduzir o discurso do médico e de outros
comprometendo o preparo dos alunos para realizar profissionais ligados à saúde, sem por vezes compreender o
atividades como a Educação Nutricional.5 A incorporação seu real significado. Nessa relação, há uma tendência do
de conceitos educacionais na disciplina de Educação paciente em buscar uma “proteção mágica”, justificando
Nutricional tornaria a formação do profissional mais sua submissão absoluta ao tratamento invasivo e agressivo,
completa e diferenciada desde o período da graduação, tendo como conseqüência, regressão, infantilização,
contrariando séculos de educação tradicional e padrões submissão e dependência na tentativa desse paciente de
estabelecidos.17 dominar a doença. Em contraponto, a ausência ou
Os nutricionistas, neste contexto, deveriam evitar insegurança quanto a conhecimentos e cuidados de saúde
recorrer aos mesmos erros citados anteriormente, pois contribuem para sentimentos de incapacidade, abandono e
poderiam comprometer o verdadeiro papel da Educação ansiedade, influência negativa para a autonomia do paciente
Nutricional na saúde dos indivíduos ou população. Não em relação ao processo saúde-doença.2
podemos falar de Educação Nutricional, quando estamos Entendemos que os novos rumos da Educação
realizando apenas, Orientação Nutricional. Nutricional exigem mudanças estruturais e aparatos
Boog colabora conosco, quando nos chama atenção conceituais para organizarem o saber, tais como a
para compreendermos a distinção entre a Educação incorporação de idéias e conceitos à Educação Nutricional
Nutricional e Orientação Nutricional, ao expor com clareza advindos de autores que contribuam com essa ampliação.
as diferenças existentes entre as duas atividades. Dessa Nesse sentido, o texto a seguir apresentará caminhos
maneira, nos faz refletir e valorizar ainda mais importância possíveis.
do papel da Educação Nutricional no trabalho do
nutricionista, uma vez que o diferencia dos demais Educação nutricional, educação problematizadora e os
profissionais da saúde, que se preocupam apenas em realizar saberes e valores necessários à educação do futuro
atividades de Orientação Nutricional.5
A Educação Nutricional dá ênfase ao processo de Retrocedendo a história da Educação Nutricional
modificar e melhorar o hábito alimentar a médio e longo podemos observar que a função de educador foi citada em
prazo; preocupa-se com as representações sobre o comer e algumas publicações, porém como um “dom” ou “atributo
a comida, com os conhecimentos, as atitudes e valores da pessoal” e não como habilidade adquirida através da
alimentação para a saúde, buscando sempre a autonomia formação profissional específica. Atualmente, com a
do sujeito. O profissional nutricionista é, nesse conjunto, preocupação de reorientar a trajetória do pensar e fazer em
parceiro na resolução dos problemas alimentares; visa uma Educação Nutricional, o papel do nutricionista como
integração e harmonização nos diversos níveis: físico, educador será muito valorizado e dessa forma, precisaremos
emocional e intelectual, quando se trata de mudanças dos princípios filosóficos da Educação, para que o
necessárias ao controle de doenças relativas à alimentação; profissional possa melhor delinear suas ações educativas.3
considera a descontinuidade e a transgressão no decorrer Paulo Freire com a proposta de Educação
das mudanças nos hábitos alimentares, como etapas Problematizadora será o nosso referencial teórico nesta
previsíveis e pertinentes engajadas num processo difícil e próxima discussão. As contribuições do autor serão
lento; além de enfatizar o diálogo.5 adaptadas ao nutricionista, enquanto educador nutricional.
A Orientação Nutricional, por outro lado, enfatiza o
processo de mudança das práticas alimentares em curto Educação nutricional e educação problematizadora
prazo; preocupa-se apenas com a mudança de práticas e o proposta por Paulo Freire
seguimento da dieta; a doença ou sintoma é sempre um fato
negativo a ser eliminado ou controlado; o profissional é Paulo Freire indiretamente revela a importância de
sempre autoritário; as mudanças relativas à alimentação tornar os nutricionistas como educadores, pois dessa
devem ser obtidas através do seguimento da dieta; não se maneira, este profissional estará inserido em uma realidade

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que não é a realidade do educando, mas uma única realidade processo educativo. Desse modo, o educador
entre ambos. A Educação Problematizadora é vista como problematizador refaz seu ato cognoscente, na
um caminho para a formação da consciência crítica dos cognoscitividade dos educandos, que são agora
educandos, em oposição à educação tradicional, bancária, investigadores críticos em diálogo com o educador e não
aprendida nas escolas, em que os educadores estabelecem mais recipientes dóceis de depósitos de informações. Porém,
com os educandos uma relação de narração de conteúdos, devemos levar em conta a dificuldade da adoção desta
em que o educador é o que educa, os educandos, os que são prática, já que desde da infância, todos fomos educados por
educados; o educador é o que sabe, os educandos, os que meio da educação bancária.7
não sabem; o educador é o sujeito do processo e os educados, A Educação Problematizadora é a futuridade
meros objetos, pacientes-ouvintes.7 revolucionária e cheia de esperança, que objetiva
Na educação tradicional, as palavras não vão corresponder à condição dos homens como seres históricos
representar uma força transformadora, mas uma e à sua historicidade e que estes possam conhecer cada vez
memorização mecânica do conteúdo narrado, considerando mais a sua realidade, o mundo ao qual pertencem,
a educação como um ato de depositar: o educador é o construindo um futuro melhor.7
depositário e os educandos, os depositantes, o que deu A caminho dessa futuridade revolucionária
origem a essa denominação de “educação bancária”, cujo encontramos autores que contribuem para aprofundar
significado é a doação do saber, a alienação da ignorância. filosoficamente essa discussão, uma vez que seus
Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta pressupostos convergem diretamente à Educação
distorcida visão da educação, não há criatividade, não há Problematizadora. Trata-se de Edgar Morin.
transformação e não há saber. E é por isso mesmo que as
pessoas reagem instintivamente a qualquer tentativa de Educação nutricional e os sete saberes necessários à
educação estimulante do pensar autêntico, não se deixando educação do futuro
emaranhar pelas visões parciais da realidade, buscando
sempre os nexos que prendem um problema ao outro.7 Morin11, preocupado com os novos caminhos da
Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo, educação, contribui com todos os que pensam e fazem
em que os homens estão simplesmente no mundo e não educação ao enunciar os sete saberes fundamentais
com o mundo e com os outros. Tornado-os expectadores e necessários à educação do futuro em toda sociedade e toda
não recriadores do mundo onde vivem, cujas consciências cultura, sem exclusividade ou rejeição, segundo modelos e
estão condicionadas somente a receber depósitos que o regras de cada sociedade e cultura. Partindo do trabalho do
mundo lhe faz, que vão transformando-se em seus autor, vamos apresentar como estes saberes: As cegueiras
conteúdos .7 do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do
Ao contrário da educação bancária, a Educação conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana;
Problematizadora não pode ser um ato de depositar, mas Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas;
um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que Ensinar a compreensão; e a Ética do gênero humano. Todos
o objeto cognoscível, no lugar de ser o término do ato esses saberes poderiam ser incorporados à Educação
cognoscente de um sujeito, é o medializador de sujeitos Nutricional e à Educação Problematizadora proposta por
cognoscentes, superando a contradição educador-educandos, Paulo Freire.
que se faz através de um processo dialógico e que resulta na No primeiro saber, “As cegueiras do conhecimento:
prática da liberdade dos educandos envolvidos.7 o erro e a ilusão”, o autor afirma que todo conhecimento
A Educação Problematizadora pode ser vista também comporta o risco do erro e da ilusão, uma vez que o
como libertadora, quando o indivíduo encontra condições conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo
para descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria externo. Todas as percepções são traduções e reconstruções
destinação histórica e capaz de sozinho, controlar seus cerebrais, baseadas em estímulos captados e codificados
problemas relacionados à alimentação, após a ajuda dos pelos sentidos, e resultando em inúmeros erros de percepção,
profissionais de saúde. A ação libertadora deve transformar o que já podemos acrescentar o erro intelectual. O
a dependência dos sujeitos sobre esses profissionais em conhecimento, sob forma de palavra, idéia, teoria é fruto de
independência, com reflexão e ação, através da uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do
conscientização dos mesmos. É preciso que os sujeitos pensamento sujeito ao erro (o grifo é nosso), fator importante
tomem consciência de sua realidade para depois transforma- à Educação Nutricional, ou seja, a necessidade de uma
la. A Educação Problematizadora, de caráter autenticamente linguagem adequada ao sujeito. Este conhecimento ainda
reflexivo, implica em um constante desvelamento da comporta a interpretação (o grifo é nosso), o que leva ao
realidade, resultando na inserção crítica na realidade dos aumento do risco de erros na subjetividade do conhecedor,
sujeitos e na negação do homem abstrato, isolado, desligado de sua visão de mundo e de princípios de conhecimento.
do mundo.7 Desta última afirmação, entendemos a relevância de
A Educação Nutricional voltada à educação dialógica constantes esclarecimentos aos participantes do processo
possibilita a superação da contradição educador-educandos, educativo na Educação Nutricional para se evitar os
que juntos, educam e são educados, se tornando sujeitos do possíveis erros na subjetividade. Somente a afetividade é

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que pode eliminar o risco do erro, levando em conta que a econômico, político, sociológico, psicológico, afetivo,
paixão e a curiosidade são a mola da pesquisa filosófica ou mitológico (o grifo é nosso). 11 Elementos fundamentais a
científica e que o mundo da inteligência e da afetividade serem considerados no processo educativo e que nos
são inseparáveis (o grifo é nosso).11 Nesse sentido, a nossa confrontam cada vez mais com os desafios da complexidade
relação com os sujeitos deveria superar as que se da Educação Nutricional.
caracterizam como professor-aluno ou nutricionista- Apoiada nas afirmações acima, a educação deve
paciente. Deveríamos ainda, transmitir através de todos os promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao
nossos atos, nossa paixão pelo processo educativo suscitando complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro
questionamentos e curiosidades. da concepção global. A inteligência geral pede o livre
A educação deve-se dedicar à identificação da origem exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e mais
dos erros e ilusões, que podem ser: mentais - considerando viva durante a infância e adolescência, que com freqüência
que o mundo psíquico é 98% conectado com o que a instrução a extingue, ao invés de estimula-la, a idéia
funcionamento interno, o que significa ser relativamente do autor assemelha-se às idéias de Paulo Freire, quando se
independente, em que fermentam necessidades, sonhos, refere à educação “bancária”. A educação deve favorecer a
desejos, idéias, imagens, fantasias; intelectuais – está na aptidão natural da mente em formular e resolver os
lógica organizadora de qualquer sistema de idéias resistir à problemas essenciais (o grifo é nosso), um dos objetivos da
informação (o grifo é nosso) que não lhe convém; racionais Educação Nutricional, ou seja, favorecer a autonomia dos
– a racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a sujeitos. Ao separar as dimensões, biológica, psíquica,
ilusão, pois dialoga com o real que lhe resiste, é fruto do econômica, religiosa faz com que as mentes percam suas
debate argumentado das idéias, deve reconhecer a parte do aptidões para contextualizar os saberes, conduzindo ao
afeto, do amor e do arrependimento e principalmente, ser enfraquecimento da responsabilidade – cada qual tende a
autocrítica. 11 Dessa forma, torna-se claro a necessidade que ser responsável apenas por sua tarefa especializada, bem
os temas abordados no processo educativo devem advir dos como ao enfraquecimento da solidariedade – cada qual não
sujeitos e por eles considerados relevantes. mais sente os vínculos com seus concidadãos. 11
E ainda, a educação deve considerar que: os O terceiro saber, “Ensinar a condição humana”, é
indivíduos são marcados desde o nascimento, primeiro com de fundamental importância à reflexão do profissional
o selo da cultura familiar, escolar, seguido da universitária nutricionista interessado em realizar uma Educação
e profissional, denominado de imprinting cultural, termo Nutricional mais crítica. Nos encontramos na era planetária
proposto por Konrad Lorenz e relativo à marca indelével e os seres humanos devem reconhecer-se em sua humanidade
imposta pelas primeiras experiências do animal recém- comum, situar-se no universo e ao mesmo tempo reconhecer
nascido. Existem condições bioantropológicas (as aptidões sua diversidade cultural inerente a tudo que é humano.
do cérebro e mente humana), condições socioculturais (a Sabemos que o ser humano é visto de forma dividida, em
cultura aberta voltada a diálogos e troca de idéias) e pedaços de um quebra-cabeça, ao qual sempre falta uma
condições noológicas (as teorias abertas) que permitem peça. Morin acrescenta que é necessário à educação do
interrogações fundamentais sobre o mundo, sobre o homem futuro, promover grande remembramento dos
e sobre o próprio conhecimento. O desafio da educação do conhecimentos naturais, para situar a condição humana no
século XXI é armar cada um para o combate vital à lucidez, mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas
11
novamente a ênfase em se considerar na abordagem da para colocar em evidência a multidimensionalidade e a
Educação Nutricional, as questões culturais e sociais. complexidade humanas. 11
“Os princípios do conhecimento pertinente”, segundo O ser humano é complexo e não só vive de
saber enunciado por Morin, volta-se a necessidade de racionalidade e técnica, ele também se desgasta, se dedica
superarmos a inadequação existente entre os saberes, que a danças, mitos, magias; é infantil, neurótico, delirante e
se encontram desunidos, divididos, compartimentados e os racional. Sorri, ri, chora, mas sabe conhecer com
problemas, cada vez mais multidisciplinares, transversais, objetividade; é sério e calculista e ansioso, angustiado,
multidimensionais, globais. Pensando assim, aumenta a gozador; violento e amoroso; nutre-se de conhecimentos
responsabilidade da Educação Nutricional ser articuladora comprovados, mas de ilusões. 11 E assim, conhecer nossos
e promover saberes contextualizados. Com esta finalidade, sujeitos na sua complexidade humana faz parte de um dos
o autor apresenta algumas considerações que merecem ser sete saberes necessários à educação do futuro e também aos
elucidadas: as informações ou dados somente terão sentido novos caminhos da Educação Nutricional.
quando situados em contextos; a sociedade é mais que um No quarto saber, “Ensinar a identidade terrena”, o
contexto, é global, é o todo organizador que fazemos parte; autor preocupa-se com a dificuldade dos indivíduos em
o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, conhecer o mundo, em desenvolver a aptidão de
afetivo e a sociedade comporta as dimensões, histórica, contextualizar e de globalizar. 11
econômica, sociológica e religiosa, portanto Para MORIN, é necessário termos uma noção mais
multidimensionais. O conhecimento pertinente deve rica e complexa do desenvolvimento, que não seja apenas
enfrentar a complexidade, que existe, quando elementos material, mas intelectual, afetiva e moral. Precisamos
diferentes são inseparáveis constitutivos do todo – como o aprender a “estar aqui” no planeta, vivendo, dividindo,

Alim. Nutr., Araraquara, v. 15, n. 2, p. 145-153, 2004 151


comunicando, pertencendo a uma cultura e dispostos a desenvolvimento da compreensão necessita de reforma
sermos terrenos. O pensamento deve mudar: todas as planetária, tarefa da educação do futuro. 11
culturas têm suas virtudes, experiências, sabedorias, mas O parágrafo acima nos faz comparar novamente o
também ignorâncias e carências e é olhando ao passado modo de pensar do autor com o de Paulo Freire,
que vamos conseguir superar esses obstáculos, encontrando considerando que ambos os autores são importantes
energia para enfrentar o presente e preparar o futuro. referenciais aos novos fundamentos à reestruturação da
Civilizar e solidarizar a Terra (o grifo é nosso), transformar Educação Nutricional, em que através da compreensão e da
os humanos em uma verdadeira humanidade torna-se o solidariedade intelectual e moral da humanidade nos
objetivo fundamental e global de toda educação que almeja revelam que vamos conquistando o espaço necessário a este
a sobrevida da humanidade11 e podemos acrescentar ainda fim.
aqui, a importância da Educação Nutricional mais “A ética do gênero humano” é o sétimo e último
preocupada com a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos saber necessário à educação do futuro, proposto por Morin.
envolvidos no processo educativo. Neste saber, o autor afirma que os indivíduos são mais do
No quinto saber, “Enfrentar as incertezas”, é que produtos do processo reprodutor da espécie humana e
discutido que foi no século XX a descoberta de que o futuro também que as interações entre os indivíduos resultam na
é marcado pela imprevisibilidade. Com certeza, existem sociedade dotada de cultura e de valores. Ao sucesso do
determinantes econômicos e sociológicos ao longo da processo da Educação Nutricional é preciso reconhecer o
história, mas que são também instáveis e incertos, propensos sujeito como gênero humano, porque este significa
a acidentes e imprevistos. Pensando dessa forma, a grande desenvolvimento do conjunto das autonomias individuais,
conquista inteligência seria poder enfim se libertar da ilusão das participações comunitárias e do sentimento de pertencer
de prever o destino humano e definir da história da à espécie humana. 11
humanidade como uma aventura desconhecida. 11 Trabalhar o desenvolvimento humano e a
O surgimento da nova consciência se inicia, o homem participação dos sujeitos, visando o nascimento da
precisa aprender a conviver com as incertezas e mudança verdadeira humanidade, deve ser a preocupação inserida
dos valores (o grifo é nosso), a serem considerados em todo nos desafios do processo de Educação Nutricional mais
percurso da Educação Nutricional. Dessa maneira, importa crítico, sem omitir os valores nele impressos.
não sermos realistas (adaptar-se ao imediato) e nem
irrealistas (substituir-se às limitações da realidade) no
sentido trivial e sim, realistas na compreensão das incertezas Conclusão
da realidade, não esquecendo que há algo invisível no real.
O conhecimento é uma aventura incerta, que comporta em Diante do quadro apresentado, cujo foco voltou-se à
si mesmo o risco do erro e da ilusão e considerando as Educação Nutricional, algumas considerações podem ser
incertezas do ato cognitivo, podemos mais nos aproximar aqui apresentadas.
do conhecimento pertinente. 11 Tornou-se visível à importância da área enquanto
Incorporando o pensamento do autor aos novos atribuição explícita do nutricionista. Seu trabalho deve ser
rumos da Educação Nutricional, ele contribui, ao nos realmente voltado à Educação Nutricional, permitindo que
mostrar que o nutricionista ao realizar uma ação educativa, o profissional possa fazer o exercício de distinção da prática
deve levar em conta a complexidade que ela supõe, ou seja, da Educação Nutricional e da Orientação Nutricional.
o aleatório, acaso, iniciativa, imprevisto, decisão, É possível afirmar também que para além do domínio
inesperado. 11 de conteúdos advindos do campo das ciências biológicas o
“Ensinar a compreensão” corresponde o sexto saber, nutricionista, para o exercício da Educação Nutricional,
que enfatiza o problema de como a falta de compreensão necessita complementar conhecimentos para realizar o
humana tornou-se tão importante aos humanos e sua processo com diferencial qualitativo de atuação.
necessidade de superação como condição e garantia da Consideramos que o nutricionista, como educador,
solidariedade intelectual e moral da humanidade. A deve se convencer de que ensinar não é transferir
compreensão humana vai além da explicação, o ato de conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção
explicar é essencial à compreensão intelectual ou objetiva ou a sua construção. A Educação, na sua vertente
das coisas anônimas ou materiais, mas insuficiente para a problematizadora, apresentou-se como caminho possível
compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de para o enriquecimento profissional, uma vez que
sujeito a sujeito e um processo de empatia, identificação e devidamente trabalhado, o processo da Educação
projeção e ainda, de abertura, simpatia e generosidade11. Nutricional ampliará também ao paciente a construção de
Todos elementos considerados essenciais ao processo de conhecimentos, inserindo-o em bases mais significativas.
Educação Nutricional.
O autor termina este saber afirmando que a única e MANÇO, A.M.; COSTA, F.N.A. Nutritional education:
verdadeira mundialização a serviço do gênero humano é a possible directions. Alim. Nutr., Araraquara, v. 15, n. 2,
da compreensão da solidariedade intelectual e moral da p. 145-153, 2004.
humanidade (o grifo é nosso). Compreender é também
aprender e reaprender incessantemente. O planeta necessita ABSTRACT: The work aims to present theoretically
de compreensões mútuas, em todos os níveis educativos e o the main conceptions involved in Nutritional Education

152 Alim. Nutr., Araraquara, v. 15, n. 2, p. 145-153, 2004


and signal to possible directions. Having a documental 8. FREITAS, M.C.S. Educação nutricional: aspectos sócio-
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Alim. Nutr., Araraquara, v. 15, n. 2, p. 145-153, 2004 153


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