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ISBN: 978-85-387-0784-4
CDD 869.09
A saudade
Floresce entre os Portugueses a saudade por duas causas, mais certas em nós que em
outra gente do mundo; porque de ambas estas causas têm o seu princípio. Amor e ausên-
cia são os pais da saudade; e como o nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por
amoroso, e as nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências; de aí vem que
donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi sem
falta a razão por que entre nós habitassem, como em seu natural centro.
1
Neste caso, sensualidade significa “sensibilidade, sensação”.
2
Neste caso, nojo significa “sofrimento”.
3
Dar prazer.
Menina e Moça é uma longa narrativa em prosa cuja característica mais desta-
cada é o fato de o narrador, em primeira pessoa, ser uma mulher, algo incomum
nas novelas da época. Muitos estudiosos fazem um paralelo entre Menina e Moça
e as cantigas de amigo – da época trovadoresca –, que também apresentavam
um eu poético feminino. Nessa novela de Bernardim – assim como em seus
poemas –, o amor é sempre sinônimo de insatisfação, os desejos se mantêm ir-
realizados e o sofrimento é a tônica da vida. A narradora passa os dias sozinha, à
beira de um regato, a chorar. E é nesse estado que ela conta eventos de sua vida
e as histórias que ouviu contar.
De saudade quisera eu dizer ainda alguma coisa. – Saudade, palavra, cuido que vem, por
derivação oblíqua, do latino solitudo. Oblíqua digo, porque direitamente derivaram os nossos
de solitudo, solidão, soidão e depois soledade, soidade, finalmente saudade. De modo que,
por esta síntese (ou pela análise, que é óbvia), se vem a entender claramente que o verdadeiro
sentido de saudade é – os sentimentos ou pensamentos da soledade ou solidão ou soidão; o
desejo melancólico do que se acha na solidão, ausente, isolado de objectos por que suspira,
amigos, amante, pais, filhos etc. – E tanto por saudade se deve entender este desejo do ausente
e solitário, que os Latinos, à míngua de mais próprio termo, o expressavam pelo seu desiderium.
(GARRETT, s/d, p. 189, 191)
A estrofe de abertura do canto primeiro de Camões surge para nós como uma
síntese de tudo o que até agora discutimos sobre a saudade. Seguindo a forma
épica, esse texto seria a invocação às musas, que no caso não é nenhuma das
deusas gregas, mas sim a Saudade. O narrador é o próprio Garrett que, depois
de anos de ausência de seu país e de muitas aventuras, suplica então à nova
musa Saudade que lhe inspire a dor, o prazer e a beleza causadas pela distância
de Portugal, dos amigos e amados, e pela solidão – para que então possa com
talento cantar Camões, que como ele fora poeta, guerreiro, aventureiro, solitário
etc. e padecera de saudades.
É nesse quadro de solidão, ausência e desejo que nosso autor vai enquadrar
Camões: há a saudade de Camões pela pátria (durante sua peregrinação pela
Ásia e a redação de Os Lusíadas) e a saudade dos portugueses oitocentistas pelas
glórias do século XVI, das quais o autor da grande epopeia lusitana se revelaria
o símbolo máximo.
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
A essa atmosfera crepuscular, Nobre vai adicionar uma visão infantil, vendo
o mundo de uma perspectiva aparentemente ingênua. A seleção de palavras
simples indica uma aproximação com o povo e, o pessimismo dos versos não é
propriamente individual, pois a situação de miséria que se sente nesses versos
tem na verdade um sentido nacional – é de todo o país.
Saudade
bem na sentiste,
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Galeões e andorinhas
No seu enxoval.
Saudades! e canta, na Torre deu a hora
Da sua novena: Olhai-a ! dá
ares de Nossa Senhora,
Quando era pequena. [...] (NOBRE, 1979, p. 69)
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Pascoaes, grande poeta desse período. Junto com outros, eles fundaram uma or-
ganização de cunho sociocultural chamada Renascença Portuguesa (1912). Entre
outras atividades, essa organização publicou uma revista mensal de literatura e
cultura, A Águia, que seria o grande veículo do saudosismo. Sua proposta era:
Dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui: isto é, colocá-las em condições
de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa
todas as almas sinceramente portuguesas: – Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a
Pátria Portuguesa. (apud DAUNT, 2006, p. 225-226)
Para se ter uma ideia da validade de tais propósitos, vamos assinalar que, não
obstante todo o esforço desse grupo e de outros empenhados em prol do novo
regime político, a instabilidade social e econômica de Portugal não se resolveu,
possibilitando que partidos e facções conservadores e reacionários ganhassem
força dentro da sociedade lusa e conseguissem dar um golpe de Estado em 1926,
instaurando uma ditadura fascista que durou longos 48 anos. Foi o período do
Estado Novo do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Talvez alguns possam achar tudo isso muito absurdo ou fantasioso, mas essa
reflexão e argumentação estão muito bem calcadas na melhor tradição filosófica
do Ocidente, não podendo ser simplesmente descartadas assim sem mais nem
menos. Só para se ter uma boa ideia disso, o pensamento saudosista seduziu
grandes poetas e pensadores, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro,
nomes maiores do modernismo português, e entre os melhores da língua por-
tuguesa. E as bases desse pensamento ainda continuam influenciando a filosofia
e as artes contemporâneas.
O que nos interessa agora é como tal parafernália filosófica vai instrumenta-
lizar a poética saudosista e como será essa poesia. Em uma de suas vertentes,
Pascoaes vai buscar no passado glorioso de Portugal a fonte para revigorar a sua
sociedade. É o próprio poeta que formula essa busca: “A Saudade procurou-se no
período quinhentista, sebastianizou-se no período da decadência, e encontrou-
se no período atual” (apud BELCHIOR, 1973, p. 14).
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Painel
Num cerro do Marão
Estranha luz meus olhos deslumbrou;
E em corpo de lembrança divaguei
Além dos horizontes,
E toda a pátria terra percorri,
E o mar e o céu azul,
Onde os anjos da velha Lusitânia
Voam como através da nossa fantasia. (PASCOAES, 1973, p. 9)
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Domínio público.
quentar a universidade e assumir profissões até
então exclusivas dos homens. Ela estudou Direi-
to em Lisboa, sendo uma das primeiras mulheres
portuguesas nesse curso. Por esse arrojo e deter-
minação, ela é vista como uma ativista feminis-
ta, o que nem sempre parece ser algo líquido e
certo: a poeta nunca demonstrou muito interes-
se político ou social, mostrando-se, ao contrário,
bem integrada à vida pequeno-burguesa em
Florbela Espanca.
suas condições socioculturais. Semelhante ati-
tude contrasta com o comportamento de uma
ativista do feminismo.
Outra faceta de sua vida que também contribuiria para a imagem de feminis-
ta é o fato de ter se casado três vezes, havendo se divorciado dos dois primeiros
maridos – algo de muito significativo no começo do século XX, e em uma socie-
dade bastante patriarcal e conservadora.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
sos eróticos, sua poesia se apresenta como um verdadeiro relato íntimo. Seria
uma forma de poesia confessional, com a angustiante experiência sentimental
de uma mulher inteligente e emancipada em busca de uma relação amorosa
que transcendesse as convenções sociais de sua época.
Por fim, vamos ver como Florbela se apropria do tema e o transforma em uma coisa
muito própria. Demonstrando sua inserção no mundo saudosista, o título do último
livro publicado em vida o denuncia de forma literal: O Livro de Sóror Saudade.
Esse é o soneto que abre o livro e ele traz de imediato uma forte carga con-
fessional, uma forma autobiográfica. Em seus versos, o eu poético se reporta a
alguém muito querido – tudo indica uma figura masculina – que, EM um mo-
mento de ternura, deu-LHE o apelido de Sóror Saudade. Na vida real, Sóror Sau-
dade foi a designação que um colega da faculdade, o poeta Américo Durão (a
quem o poema é dedicado) havia dado a Florbela em um soneto publicado por
ele um pouco antes.
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Em seus poemas, Florbela também expõe sem escrúpulos seus desejos amo-
rosos e eróticos, cuja impossibilidade de realização – em parte pelas restrições
sociais, em parte por não encontrar uma alma gêmea que a satisfizesse – leva
a poeta, em certos momentos de sua obra, a sublimar tais intensos sentimen-
tos em uma nostálgica volta à infância, aos locais de sua meninice (em especial
Évora) e a uma natureza idealizada. Isso tudo é algo muito parecido àquilo que
Teixeira de Pascoaes dizia ser a saudade do ser por uma plenitude passada que
fora perdida.
Precursores do Modernismo
O saudosismo de Teixeira de Pascoes foi o viveiro literário em que grandes
nomes do Modernismo germinaram e se desenvolveram. Fernando Pessoa pu-
blicou vários de seus poemas na revista A Águia, o órgão oficial do movimento.
Mas, não foi só de publicações que se deu a ligação de Pessoa com o saudosismo:
ele foi fortemente tocado por essa doutrina, da qual deriva uma parte inicial de
sua poesia, em especial o conjunto de poemas de Mensagem (1934) o único livro
que o poeta publicou em vida.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade. [...] (PESSOA, 1983, p. 17)
Depois das grandes façanhas, a decadência (“a noite veio”), e o que sobrou
foram as marcas deixadas pelas navegações (“o mar universal”) e a saudade dos
grandes tempos. Mas, embaixo das cinzas da decadência ainda há a chama do
heroísmo e da competência, que é a alma lusitana, e pode haver um vento que
espalhe as cinzas e reavi essa brasa:
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa! (PESSOA, 1983, p. 17)
um grupo publicará Orfeu, uma revista da qual Fernando Pessoa fez parte,
e que resultará no movimento Orfismo;
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Texto complementar
Eduardo Lourenço é um dos intelectuais portugueses mais respeitados na
atualidade. Filósofo e ensaísta, boa parte de sua obra é dedicada a uma “psicaná-
lise” da alma portuguesa.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
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Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa
Talvez não seja por acaso que devamos a Teixeira de Pascoaes, o poeta
que, melhor do que ninguém, mitificou o sentimento da saudade, a recolha
intitulada Regresso ao Paraíso. Esse “regresso” é obra da saudade, que sub-
trai a nostalgia ao sentimento da pura perda ou ausência, confiando-lhe a
missão de transmudar a perda em vitória de sonho. Muitos duvidam de que
tanto baste para distinguir verdadeiramente a saudade da nostalgia, mas po-
demos compreender onde se situa a linha divisória. No seu sentido primordial,
a nostalgia inscreve-se no horizonte da espacialidade humanizada e nele toma
forma. Nessa medida, pode mesmo findar se reintegrarmos o espaço humano
cujo afastamento a provocou. Só em princípio, porém, porque pode acontecer
(como sempre acontece) que o “tempo” – que é mais, nesse caso, que ação
humana ou medida exterior – tenha desfigurado o lugar de origem de que sen-
timos nostalgia. Se assim for, experimentamos perante o lugar revisitado uma
nostalgia saudosa, o que mostra bem que a saudade se enraíza numa outra
experiência, mais radical ainda que a do espaço afetivo. Experiência que é ao
mesmo tempo a mais universal e a mais pessoal das experiências, porquanto
não tem outro conteúdo que não seja o vivido temporal, nós próprios, nou-
tras palavras, como filhos nascidos no coração do tempo e expulsos do seu
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Dicas de estudo
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote,
1988.
Para sermos ainda mais exatos, o galego-português foi a língua franca da li-
teratura em toda a Península Ibérica, sendo utilizada por poetas dos reinos de
Castela, Leão e outros que compõem a Espanha atual.
Foi, portanto, no final da Idade Média, utilizando como língua literária o gale-
go-português, que surgiu o Trovadorismo (1198-1418) na Península Ibérica. Esse
movimento cultural restringiu-se apenas à poesia, que por sinal não era somente
declamada ou lida, mas também cantada. Sua temática favorita – o amor cortês –
desenvolveu-se em duas vertentes líricas:
cantiga de amor e
cantiga de amigo.
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Original Paráfrase
Quand’eu passei per Dormã Quando passei por Dormã (ou Dormea)1
preguntei por mia coirmã, perguntei por minha prima,
a salva e paçãã. a pura e nobre (educada no paço).
Disserom: - Nom é aqui essa, Disseram-me: não está aqui,
alhur buscade vós essa; deveis buscá-la em outro lugar,
mais é aqui a abadessa. mas aqui está a abadessa.
1
Segundo a estudiosa Carolina Michaëlis, o poema se refere ao convento de S. Cristóvão de Dormea, na região de Santiago de Compostela, Galícia
(cf. LOPES, 2002, p. 30).
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Original Paráfrase
Se me graça fezesse este Papa de Roma! O Papa de Roma poderia me fazer um favor!
Pois que or’os panos da mia reposte toma, Já que está levando os panos da minha casa,
que levass’el os cabos e dess’a mi a soma; que levasse os tecidos e trouxesse as roupas;
mais doutra guisa me foi el vendê’la galdrapa. no entanto leva tudo para vender às escondidas.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
Se m’el graça fezesse com os seus cardeaes, Ele e seus cardeais poderiam me fazer um favor,
que me lh’eu dess’e que mos talhasse iguaaes! que me trouxessem as roupas cortadas direito!
Mais vedes em que vi em el[e] maos sinaes: Mas vejam, como eu, os seus maus sinais:
que do que me furtou, foi cobri-l[o] a sa capa. aquilo que me roubou cobriu com a sua capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
Se cõn’os cardeaes com que fará seus conselhos Se, com os cardeais que formam seus concílios,
posesse que guardasse nós de maos trebelhos, ele nos livrasse de más encrencas,
fezera gram mercêê, ca nom furtar com elhos faria um grande favor se juntos não furtassem
e [os] panos dos cristãos meter só sa capa. e os panos dos cristãos pusessem sob a capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa Queria portanto que esse nosso Papa
que me talhasse melhor aquesta capa. cortasse melhor esta capa.
(apud LOPES, p. 2002, p. 53)
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Antes de falar sobre o aspecto anticlerical da obra de Gil Vicente, seria inte-
ressante retornar às histórias de terremoto em Lisboa. O sismo de 1755 não foi
o único a castigar aquela região. Na verdade, o fenômeno se repete com uma
periodicidade de 200 anos. Os terremotos de que há registro
ocorreram em 1344 (provavelmente ao redor de 7 ou 8 graus na escala Richter), em 1531
(provavelmente de 7 a 9 graus, que também produziu um tsunami), em 1755 (aproximadamente
9 graus, com três abalos posteriores e um tsunami) e, mais recentemente, em 1969 (6 graus).
(MAXWELL, 2003)
Já no final de sua vida e muito prestigiado junto à corte, Gil Vicente fez uma
censura pública aos frades de Santarém (alguns estudiosos julgam que se trata
de um auto teatral). Em uma carta ao rei, Gil Vicente manifestou seu desacordo
diante da perseguição aos judeus, e ao que tudo indica o gesto encontrou aco-
lhida no rei D. João III. Essa corajosa manifestação pública do grande poeta em
um momento de grave crise e na defesa de uma minoria odiada pelo povo, em
geral revela o seu espírito humanista.
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco
debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:
Quando o clérigo percebe para onde a barca vai, ele se mostra muito
espantado:
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Por fim, há ainda uma personagem controversa, o Judeu, que não é aceito
nem na barca do Anjo nem na do Inferno, sendo assim condenado a permane-
cer errante. Claro que seu destino parece melhor que o daqueles que vão para o
inferno, mas também representa a falta de lugar dos judeus na sociedade cristã
da época.
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
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Em O Crime do Padre Amaro, nosso autor ataca a Igreja Católica de uma forma
bastante crua e chocante – como mandava o figurino realista. Na verdade,
Amaro, o padre do título, não é o único criminoso da história. Quando o cônego
Dias, um sacerdote mais velho e hierarquicamente superior ao jovem padre, des-
cobre que Amaro seduzira Amélia e a mantinha como amante, desmascara e
acusa Amaro, que se defende:
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Mas, no caso de Eça, diferentemente dos autores antes analisados, não está
em jogo apenas a conduta do clero e dos fiéis católicos: de forma sutil, mas me-
tódica, por todo o romance o autor vai revelando os mecanismos de doutrinação
e dominação da Igreja romana. De maneira inteligente, o narrador eciano vai
expondo os principais dogmas católicos – a inquisição, o auto-de-fé, a excomu-
nhão etc. – e demonstrando como tais elementos são usados pelo clero como
instrumentos de poder e opressão. De fato, essa estrutura eclesiástica de domi-
nação se ligava fundamentalmente ao Concílio de Trento (1545-1563), respon-
sável pela instauração da Contrarreforma e principal incentivador das atividades
jesuíticas. O concílio e sua legislação são citados repetidamente em O Crime do
Padre Amaro (cf. BUENO, 2005, p. 18-21) como base canônica para os desman-
dos dos padres. Com isso, o autor demonstrava que a própria estrutura da Igreja
trazia em si mesma os fatores corrosivos que desaguavam no comportamen-
to impróprio de sua clerezia. Segundo a estudiosa Fátima Bueno, o romancista
punha em funcionamento literário as ideias expressas por Antero de Quental em
seu seminal ensaio “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos” (1871), uma das Conferências do Casino (série de palestras apresen-
tadas pelos escritores realistas). Nesse ensaio, Antero relaciona a Contrarreforma
como uma das causas da decadência portuguesa (cf. BUENO, 2002 e 2005).
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No entanto, Eça de Queirós não para por aí. Em outro de seus mais importan-
tes textos ficcionais, ele é ainda mais impiedoso e ataca o próprio cerne do cris-
tianismo, a vida de Jesus e os dogmas de sua divindade e ressurreição. Estamos
falando de A Relíquia (1887). Nessa novela, narrada em primeira pessoa por Teo-
dorico Raposo, um burguês abjeto cujo propósito de vida era se passar por um
sincero fiel católico apenas para obter a herança de uma tia riquíssima, o autor
cria um blasfemo paralelo entre a falsificação de relíquias religiosas (objetos que
pertenceram ou tocaram santos cristãos) e a vida de Jesus, conforme transmitida
pela tradição cristã e assumida como dogma pela Igreja.
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O anticlericalismo contemporâneo
de Saramago
Com o final do século XIX, assistimos a uma grande mudança na relação entre
os Estados e as igrejas no Ocidente. O término da maioria das antigas monar-
quias na Europa, a consolidação dos regimes democrático-liberais e do princí-
pio de separação entre Estado e religião exigiram das lideranças religiosas maior
flexibilidade em sua relação com a sociedade civil e uma sensível diminuição na
interferência eclesiástica em assuntos políticos, econômicos e sociais. Diminuin-
do a tensão entres esses dois polos, a atitude e a literatura anticlericais perderam
proporcionalmente sua intensidade e sua aspereza.
O que não quer dizer que nos países ocidentais as diversas igrejas tenham dei-
xado totalmente de tentar interferir na vida secular. Numerosas questões que não
faziam parte da pauta do século XIX e início do XX surgiram com intensa urgência
e gravidade depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Assuntos polêmicos
como o aborto, a eutanásia, os anticoncepcionais, os direitos das mulheres (em
especial nas igrejas), o casamento entre homossexuais, as políticas públicas em
relação às doenças sexualmente transmissíveis, o ensino religioso nas escolas, o
ensino das doutrinas evolucionistas, o uso científico de embriões humanos etc.
colocaram mais uma vez as igrejas no primeiro plano do debate público.
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Eis que de forma até surpreendente, a questão religiosa volta a ser o centro das
atenções no final do século XX e início do novo milênio. Tanto é assim que José Sa-
ramago (nascido em 1922), prêmio Nobel de literatura de 1998, escreveu um polê-
mico artigo em seu blog com o instigante título de “Deus como problema” (2008),
que transcrevemos na íntegra na seção Texto complementar, desse capítulo.
2
O Evangelho de Mateus relata que o rei Herodes, avisado pelos magos do Oriente de que em Belém havia nascido o rei dos judeus, manda
matar todos os meninos com menos de dois anos que fossem encontrados naquela cidade, a fim de que seu reino não viesse a ser usurpado (cf.
Mt 2:13-18).
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo,
avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que
os pais delas as levassem e fugissem. [...] Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que
não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais
depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. (SARAMAGO, 1999, p. 115-116)
Uma vaidade muito humana e cruel é o que leva Deus a sacrificar aquele a
quem diz ser seu próprio filho. Mas, o pior ainda estava por vir: a fim de expandir
essa religião, milhares de outros homens seguidores do Cristo martirizado serão
torturados e mortos por seus opositores, ou serão martirizados por suas próprias
mãos, acreditando estar fazendo a vontade divina, ou ainda irão torturar e matar
outros milhares pelo mesmo motivo (cf. SARAMAGO, 1999, p. 377-389). Assim,
o jovem judeu, torturado pela culpa de dezenas de crianças mortas por ele não
haver dado sua vida em troca das vidas dessas crianças, iria morrer de forma
cruel e infame a fim de que muitos outros milhares de homens, por gerações e
gerações, viessem a se matar e morrer em seu nome, em nome de Jesus. Eis a
síntese da cruel ironia que Saramago põe em movimento em seu romance.
Um ano após a publicação desse romance, Saramago foi indicado para con-
correr a um prêmio europeu de literatura, mas sua indicação foi revogada pelo
governo português, pois, segundo a avaliação oficial, o livro ofendia a religião
católica e, portanto, não deveria representar a nação lusitana. Em resposta a essa
proibição governamental, o escritor se retirou de Portugal, mudando sua resi-
dência para as Ilhas Canárias (Espanha). Foi sua forma de protesto pela volta da
censura a Portugal. Como se vê, a literatura anticlerical mostra sua necessidade
e agudeza quando é capaz de despertar reações como essas por parte de uma
sociedade que se diz livre e tolerante.
Texto complementar
Deus como problema
(SARAMAGO, 2009)
Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá
obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis
irmãos inimigos que se chamam islamismo e cristianismo, particularmente
na vertente universal (isto é, católica) a que o primeiro aspira e em que o
segundo, ilusoriamente, ainda continua a imaginar-se. Na mais benévola das
hipóteses de reacção possíveis, clamarão os bem-pensantes que se trata de
uma provocação inadmissível, de uma indesculpável ofensa ao sentimento
religioso dos crentes de ambos os partidos, e, na pior delas (supondo que
pior não haja), acusar-me-ão de impiedade, de sacrilégio, de blasfémia, de
profanação, de desacato, de quantos outros delitos mais, de calibre idênti-
co, sejam capazes de descobrir, e portanto, quem sabe, merecedor de um
castigo que me sirva de escarmento para o resto da vida. Se eu próprio per-
tencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os
espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se
ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação discipli-
nária, veria caírem-se-lhe os braços. Já lhe escasseiam as forças para proezas
mais atrevidas, uma vez que os rios de lágrimas choradas pelas suas vítimas
empaparam, esperemos que para sempre, a lenha dos arsenais tecnológicos
da primeira inquisição. Quanto ao islamismo, na sua moderna versão funda-
mentalista e violenta (tão violenta e fundamentalista como foi o catolicismo
na sua versão imperial), a palavra de ordem por excelência, todos os dias
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Cultura e Memória na Literatura Portuguesa
Portanto, quer se queira, quer não, Deus como problema, Deus como
pedra no meio do caminho, Deus como pretexto para o ódio, Deus como
agente de desunião. Mas, desta evidência palmar não se ousa falar em ne-
nhuma das múltiplas análises da questão, sejam elas de tipo político, econó-
mico, sociológico, psicológico ou utilitariamente estratégico. É como se uma
espécie de temor reverencial ou a resignação ao “politicamente correcto e
estabelecido” impedissem o analista de perceber algo que está presente nas
malhas da rede e as converte num entramado labiríntico de que não tem
havido maneira de sairmos, isto é, Deus. Se eu dissesse a um cristão ou a um
muçulmano que no universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que
cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas, e que Deus, seja
ele Alá ou o outro, não poderia ter feito isto, melhor ainda, não teria nenhum
motivo para fazê-lo, responder-me-iam indignados que a Deus, seja ele Alá
ou o outro, nada é impossível. Excepto, pelos vistos, diria eu, fazer a paz entre
o islão e o cristianismo, e, de caminho, conciliar a mais desgraçada das espé-
cies animais que se diz terem nascido da sua vontade (e à sua semelhança),
a espécie humana, precisamente.
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O anticlericalismo na Literatura Portuguesa
de estrelas existentes em cada uma. Ninguém faz nascer o Sol cada dia e a
Lua cada noite, mesmo que não seja visível no céu. Postos aqui sem sabermos
porquê nem para quê, tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus,
mas esse não saiu das nossas cabeças, ficou lá dentro como factor de vida
algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. Podemos dizer
“Aqui está o arado que inventámos”, não podemos dizer “Aqui está o Deus
que inventou o homem que inventou o arado”. A esse Deus não podemos
arrancá-lo de dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo
os próprios ateus, entre os quais me incluo. Mas, ao menos discutamo-lo. Já
nada adianta dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino.
Para os que matam em nome de Deus, Deus não é só o juiz que os absolverá,
é o Pai poderoso que dentro das suas cabeças juntou antes a lenha para o
auto-de-fé e agora prepara e ordena colocar a bomba. Discutamos essa in-
venção, resolvamos esse problema, reconheçamos ao menos que ele existe.
Antes que nos tornemos todos loucos. E daí, quem sabe? Talvez fosse a ma-
neira de não continuarmos a matar-nos uns aos outros.
Dicas de estudo
MAXWELL, Kenneth. Lisboa reinventada. Folha de S. Paulo, 12 jan. 2003.
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