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CASOS E

COISAS,
DAQUI E
DAI...

1 - PREFACIO
Convidado pelo querido Irmao X para escrever
algumas palavras no portico deste trabalho
mediunico, em que sao relatados casos e coisas daqui
e daí, apresso-me, como bom pagador de meus
debitos, a quitar-me da obrigaçao moral. Em outra
oportunidade, o Irmao X, com sua reconhecida
benevolencia, resolveu prestigiar-me, prefaciando o
livro Reflexoes espirituais , por mim ditado ao
medium.

Hoje, apesar de sem qualidades, coube a mim


apresentar aos nossos irmaos as paginas bonitas e
amorosas ditadas por quem e, ainda, o grande
prosador das letras patrias.

Irmao X, autor de tantas obras mediunicas, das mais


importantes na literatura espírita, mantem, nesta
coletanea de comunicaçoes, a mesma verve que o
tornou, ainda no mundo material, um dos mais
apreciados escritores brasileiros. E aqui repontam,
como antes, a graça e a ironia, a leveza e a seriedade,
o drama e a poesia, tudo como num jardim florido em
que rosas, camelias, cravos, agapantos* e miosotis*
formam o mosaico de delicados matizes e sublimados
perfumes.
Nestas paginas estao presentes tambem, com rara
maestria, as liçoes mais profundas do Evangelho,
ditas com a sabedoria de quem e dono do ofício.
Lendo-as, nao apenas sentimos que se gravam em
nosso espírito, como ate ouvimos o som de suas
palavras a repercutirem em nossa mente, tal o poder
de penetraçao do estilo inconfundível.

Casos e coisas, daqui e daí... sao pequenos eventos


que a imaginaçao fertil do Espírito Irmao X criou para
nos transmitir as liçoes do Cristo como se fossem
singelas parabolas. Mas nem tudo e ficçao, eis que em
suas raízes germina a verdade que tece a trama dos
destinos humanos. E' a saga dos espíritos imperfeitos
no carreiro de sua evoluça o, em meio a dores e
lagrimas, espantos e contradiçoes, egoísmo e vaidade,
orgulho e rancor. Tudo isso cm palavras simples,
gostosas, suaves, doces e poeticas, como so o Irmao X
sabe transmitir.

Vale ressaltar, em face de certas realidades, por


escusa de responsabilidade, que se os casos e coisas
destas paginas de luz e amor, tiverem qualquer
semelhança com pessoas e latos reais, tera sido mera
coincidencia...
Albino Teixeira
2 - INTRODUÇAO
No Rio de Janeiro, na decada de 1970, o advogado,
jornalista, escritor e medium Heitor Luz Filho
recebia, em espírito, a visita do Irmao X.

Desde jovem, envolvido no movimento espírita,


Heitor sentiu na ocasiao a grata emoçao de servir de
instrumento a um expoente das letras brasileiras, que
se apresentava a sua frente, buscando tao-somente a
oportunidade de continuar escrevendo.

O primeiro livro do Espírito Humberto de Campos -


depois conhecido como Irmao X - Cronicas de alem-
tumulo, foi psicografado por Francisco Candido
Xavier e lançado no ano de 1939 pela Federaçao
Espírita Brasileira - FEB. O texto devolvia, a s
atividades literarias, um dos maiores escritores
brasileiros. Da primeira ate a ultima linha, a obra
apresentava as mesmas características estilísticas, a
identica e proverbial eloquencia do jornalista, crítico,
cronista, contista, poeta e biografo Humberto de
Campos.

Para os seus fieis leitores, e para os companheiros de


lides literarias, a incrível surpresa juntou-se a uma
inevitavel reflexao: Humberto de Campos esta vivo.
Continua escrevendo, ainda discorrendo sobre
muitos temas que antes o motivaram, acrescidos das
inevitaveis experiencias e do aprendizado
conquistado na espiritualidade. Reconhece os erros
do passado, refletindo melhor sobre a perspectiva
espiritual, alinhando-se ao ideal espírita da reforma
íntima, aparteando agora a inutilidade dos temas
frívolos e sensuais.
Nascido em Miritiba, Maranha o, no dia 25 de outubro
de 1886, filho de Joaquim Gomes de Farias Veras e
Ana de Campos Veras, aos seis anos, Humberto de
Campos Veras, ficou orfao de pai, e foi levado para
Sao Luís do Maranhao. Aos dezessete anos, foi para o
Para, onde lançou seu primeiro livro, Poeira, uma
coletanea de versos. Foi colaborador e redator da
Folha do Norte e da Província do Para. Em 1912,
transferiu-se para o Rio de Janeiro, ainda capital do
Brasil, ingressando no jornal O Imparcial e, mais
tarde, no Correio da Manha.

Extravasando em seus escritos a erudiçao filosofica


adquirida durante anos de exaustivas leituras, aliada
ao talento para expressar-se em síntese, nao se
envolveu na boemia, entregando-se a s letras com
empenho e determinaçao. Suas cronicas
conquistaram os leitores, graças ao seu estilo
original. Durante seu mandato pai lamentar na
Camara dos Deputados, bem como na condiçao de
"imortal" na Academia Brasileira de Letras -
Humberto manifestou a mesma intençao de colaborar
e ser util a coletividade, sendo discreto na conduta,
mas decidido na defesa das posturas assumidas.

Envolvido nas tarefas que abraçou, nao abandonou o


trabalho nem mesmo quando a molestia-que ja
tomava conta do seu corpo físico - quase o impedia de
escrever. Datilografando com dificuldade, deixou suas
derradeiras mensagens no ritmo disciplinado de
quem sempre se recusou a entregar-se a s
lamentaçoes. Cumprindo seu ofício ate o final de sua
existencia e vivendo solitariamente numa pensao,
persistiu em extrair das banalidades rotineiras a
oportunidade para exercitar sua incrível habilidade
em dissecar a alma dos homens.

Amargamente resignado diante da debilidade de sua


saude, sentindo-a irremediavelmente comprometida,
revelou, ainda no ano de 1933, em artigo publicado
no prestigioso Diario Carioca, sua aproximaçao da
Doutrina Espírita - a partir de anotaçoes em seu
diario, do dia 14 de agosto de 1932, um domingo: Por
que o senhor nao experimenta o Espiritismo? Se o
senhor quiser, escreva o seu nome, sua idade e seu
endereço em um papelzinho, que eu dou a meu
marido e ele faz a consulta". Humberto de Campos
concordou e forneceu as informaçoes. Decorridas tre s
semanas, sem receber notí cias do Espiritismo, o
escritor afirmou nem se lembrar mais do caso.
No entanto, a mesma senhora retornou a sua
presença, alegando que, na verdade, sua ausencia
devia-se ao natural embaraço em lhe transmitir a
resposta. Em duas sessoes, por meio de mediuns que
nao conheciam as respostas apontadas pelos outros,
o diagnostico foi exatamente o mesmo: "...isto e, o
senhor esta muito doente e pode morrer de um
momento para o outro". Humberto sentiu-se
estremecer diante da notícia: "Um frio irresistível me
corre pela espinha. Agradeço a informaçao,
simulando serenidade...". Sua desencarnaçao
aconteceu no dia 5 de dezembro de 1934, no Rio de
Janeiro.

A elega ncia e a sobriedade do estilo e da linguagem


de Humberto de Campos, destacadas na psicografia
de Francisco Candido Xavier -a qual o escritor
determinou-se a assinar deu origem a um processo
movido contra o medium. No ano de 1944, a família
do escritor exigiu os direitos autorais da obra
mediunica. Superada a questao nos tribunais,
isentou-se Chico Xavier de quaisquer ressarcimento
ou penalidade - ele que doou todas as psicogralias
que recebeu para instituiçoes beneficentes, sem reter
para si nenhuma importancia. A partir daí, depois de
uma longa ausencia, o escritor desencarnado passou
a identificar-se apenas como Irmao X.

Sem jamais esquecer daqueles que aqui


permaneceram, Irmao X continuou escrevendo,
ampliando ainda mais o nu mero dos seus leitores.
Nos seus contos e cronicas, encontramos
esclarecimento e animo para vencer dificuldades,
consolo para enxugar lagrimas e o vigor de uma força
inquebrantavel que, atravessando o outro lado da
vida, nos alcança hoje, graças a mediunidade daquele
que tambem foi jornalista e escritor, o medium Heitor
Luz Filho.
O Editor
..CAPITULO 1 -
A ARVORE DA
VIDA

..CAPITULO 2 -
O MENINO
QUE VENDIA
ROSAS

..CAPITULO 3 -
O FAXINEIRO

..CAPITULO 4 -
O HOMEM
QUE NAO
AMAVA

..CAPI TULO 5 -
A QUINA

..CAPITULO 6 -
A LUZ DOS
HOMENS

..CAPITULO 7 -
AS BOAS
AÇOES

..CAPITULO 8 -
O TRIBUNO

..CAPITULO 9 -
REENCONTRO

..CAPITULO 10
- CAUSA E
EFEITO

..CAPITULO 11
- PIEDADE

..CAPITULO 12
- O NATAL DAI
E DAQUI

..CAPITULO 13
- UMA
ENTREVISTA
COM AS
SOMBRAS

..CAPITULO 14
- O PONTO
ESCURO

..CAPITULO 15
- A SURPRESA
DO PASTOR

..CAPITULO 16
- A APOSTA

..CAPITULO 17
- A CONFISSAO
DO PE.
BENEDITO

..CAPITULO 18
- A LAVOURA

..CAPITULO 19
- SHALOM !

..CAPITULO 20
- 18 DE ABRIL

..CAPITULO 21
- O ENCONTRO

..CAPITULO 22
- A RENUNCIA

..CAPITULO 23
- AMOR AS
AVESSAS

..CAPITULO 24
- PALAVRAS
SIMPLES

..CAPITULO 25
- AS COISAS
DO CE U

..CAPITULO 26
- O HOMEM
QUE FICOU
LIVRE

..CAPITULO 27
- O INVERNO

..CAPITULO 28
- O CEGO DE
NOTRE DAME

..CAPITULO 29
- O
ESCANDALO

..CAPITULO 30
- O CATADOR
DE PAPEIS

..CAPITULO 31
- O FALSO
MERCADOR

..CAPITULO 32
- O
CONSELHEIRO

..CAPITULO 33
- O BANQUETE

..CAPITULO 34
- O PEDINTE

..CAPITULO 35
- O RETORNO

..CAPITULO 36
- POSFACIO
CAPITULO 1
-A ARVORE
DA VIDA

CAPITULO 1 - A ARVORE DA VIDA


Nas regioes do plano espiritual - escalonadas de
acordo com o grau evolutivo dos que a habitam -
acontecem casos e coisas, tal como aí na Terra. E, nem
por sermos espíritos desencarnados somos criaturas
estranhas, despidas de habitos e costumes, como se
procede ssemos de outros lugares, ou de terras
desconhecidas.

Ha, aqui, os que trabalham servindo os que


necessitam de assistencia, os que cultivam o odio e a
vingança, os ociosos, os displicentes, os loucos, os
frívolos e quantos mais para ca se transbordam com
todos os vícios e virtudes da vida humana.

E foi assim que, em uma de minhas andanças por


ensolarada estrada que ia dar em uma Casa
Transitoria - instituiçao que abriga os recem-
desencarnados ate sua adaptaçao a nova vida -
encontrei um anciao que, tropego, caminhava a
passos lerdos e difíceis, apoiado em rustica bengala.

De sua fronte, suarenta, grossos pingos escorriam na


face enrugada. Fatigados por tantos anos, seus olhos
sem brilho fitavam o chao.

Exausto, as vezes parava para recuperar as forças.


Aproximando-me, senti que me oprimia o coraçao e
procurei segurar-lhe o braço como um apoio.

- Aonde vai, irmao, assim ta o cansado? - indaguei.

Erguendo os olhos, o anciao fitou-me, entre surpreso


e esperançoso:

- Ah! Graças a Deus apareceu alguem para me ajudar!


- exclamou, acrescentando:

- Caminho, na o sei por quanto tempo, sem parar!


Sinto fome e sede e nao encontro viva alma que me
auxilie!

- De onde vem, meu bom velho? E, por que nenhum


companheiro o ajudou?

Antes de responder, procurou, em torno, na beira da


estrada, um lugar onde pudesse sentar-se. Logo
adiante, a poucos passos, um tronco de arvore serviu-
lhe como banco.

- Puxa, ate que enfim posso descansar a carcaça!


Fitando-me com curiosidade, indagou:

- Meu filho! Por que se interessa por um velho


desconhecido? Meus enormes pecados, quando vivia
no mundo material, trazem-me dolorosas penitencias
e terríveis sofrimentos! Na verdade, pelo que fiz, nao
mereço piedade.

- Ora, somos todos irmaos, meu amigo. Aqui no


mundo espiritual, o que temos a fazer e ajudar uns
aos outros, em nome do Cristo que nos recomendou
amarmos o proximo como a nos mesmos.

- Ah, sim... - retrucou, reticente, continuando a fitar-


me, com ar incredulo.

Vendo que o anciao tinha os labios ressequidos,


ofereci-lhe agua do meu cantil e um pedaço de pao
que trazia num embornal*. Recebeu a dadiva
agradecido e resolveu, por fim, responder:

- Nao sei, exatamente, de onde venho. Parece,


entretanto, que ainda tenho muito que andar. Viajo
em busca da Arvore da Vida que, segundo me
disseram, da bons frutos para saciar a fome e um
suco, como agua cristalina, capaz de curar todas as
doenças do corpo e do espírito!

O homem idoso, depois de uma breve pausa,


acrescentou:

- Custe o que custar hei de encontra -la! Se for preciso,


caminharei por anos ou seculos a fio.

-Tem, entao, meu bom amigo, muita fe e esperança?

- Sim, tenho! E se Deus e nosso Mestre Jesus me


derem forças, haverei, um dia, de comer o fruto dessa
arvore! - exclamou, persignando-se.

Nesse instante senti um calor e uma luz intensa a


envolver-me e ao anciao tambem.
Profunda emoçao e carinho mutuo recobriram nossos
espíritos, enquanto uma voz se fez ouvir.

- Esta na hora, irmao, de por fim a jornada de


andarilho. Por varias encarnaçoes, alem de agasalhar
sentimentos egoísticos, zombou da fe dos que
guardavam a esperança na salvaçao das obras de
caridade e de amor fraterno.

- Quem e ele? - indaguei, curioso, a voz.

- Um simples peregrino da dor, como tantos que


existem no mundo.

Dirigindo-se a mim, acrescentou:

- A voce cumpre indicar-lhe, em recompensa a fe que


lhe aquece o coraçao, o caminho da Arvore da Vida!

-Como?

Foi quando a luz se transformou na figura veneranda


de um pastor apoiado em um bordao de apascentar
ovelhas.

Estendendo a mao, ofereceu-me um livro que refulgia


em cintilaçoes de ouro. Com uma voz doce e afetuosa,
falou:

- Eis aqui a Arvore da Vida! Alimentem-se de seus


frutos e bebam de sua seiva!
Atonito, com a visao do pastor diluindo-se,
lentamente, entre sorrisos, peguei o livro e li, na capa,
em letras de ouro: Evangelho.
Irmao X
CAPITULO 2
- O MENINO
QUE VENDIA
ROSAS

CAPITULO 2 - O MENINO QUE VENDIA ROSAS


Descalço, pernas finas, o corpo raquí tico mal
abrigado sob uma camisa cheia de rasgos, o menino
percorria, todas as noites, os bares da praia
oferecendo rosas vermelhas aos casais que bebiam e
comiam, passando o tempo.

Fazia-o com os olhos tristes pingando dor e


sofrimento. Nem todos, no entanto, entretidos e
dando risadas, ouviam-no fazer a oferta. Com a voz
minguada, como quem pede esmola, dizia:

- Uma rosa, senhor, para o seu amor!

E aguardava, por instantes, que a comprassem por


qualquer importancia. Uma simples moeda serviria
para juntar-se as outras e completar o suficiente para
adquirir um pouco de comida e prover o sustento da
avo idosa, trancada dia e noite no casebre do morro, a
espera de que a morte chegasse para leva -la para um
mundo melhor.

As rosas, o menino as apanhava, de manha, no lixo e


no refugo das feiras, meio despetaladas, com hastes
quebradas e folhas amarfanhadas.

Durante o dia tratava-as com carinho selecionando as


menos feridas e as colocando, a sombra, num pote
com agua.

Noite apos noite, naquela ronda, mesmo quando o


tempo ameaçava chuva, o menino percorria as mesas
dos bares e restaurantes, com a mesma cantilena*:

- Uma rosa, senhor, para o seu amor!


Uma noite o menino sonhou. Viu, de repente, um
homem rico que morava em uma luxuosa mansao,
erguida numa colina que dava vistas para o mar.

Aliado ao luxo, ostentava sua fortuna, amealhada em


negocios, nem sempre lícitos. Coraça o insensível,
alheio aos sentimentos de fraternidade, era
conhecido como egoísta e avarento. Mas, apesar de
tudo, era figura sempre requestada nos saloes sociais
e nas reunio es políticas.

Certa noite, quando regressava de uma festa com a


companheira, em que a bebida e os prazeres mais
instintivos se distinguiam pela fascinaçao orgíaca,
encontrou a dormir, na varanda da mansa o, envolto
em trapos, um menino com cerca de doze anos.
Assustado, julgando tratar-se de algum pivete
aguardando sua chegada para avisar assaltantes que,
decerto, penetrariam no palacio, nao hesitou em
acorda-lo aos gritos e pontapes.
- Para fora, ladraozinho! Para fora!

E desancou-lhe aos socos e empurro es, provocando


sua queda, escada abaixo.

Em poucos minutos o menino, sem forças, revirou os


olhos e deu um gemido curto. A vida se esvaiu dele
como um fluido que se desprendia.

Vendo-o imovel, o homem abaixou-se e constatou o


crime. Amedrontado, tomou o corpo indefeso em suas
maos e levou-o ate a rua, abandonando-o no leito de
um pequeno canal, que cortava a avenida ladeada de
arvores.

Livre do fardo regressou a casa com a companheira e


desapareceram, porta adentro.

O sonho se desfez nessas ultimas imagens.

Acordando, tremulo, o menino que vendia rosas


observou o teto de zinco do casebre onde residia. Na
tela do pensamento, viu que o homem rico, perverso
e egoísta, era ele mesmo, em vida passada ha mais de
um seculo. E a companheira, que a tudo assistira, era
a velha avo que jazia, entre os trapos, quase
entrevada, na enxerga umida e apodrecida.

A madrugada veio, silenciosa.

O menino levantou-se, tomou uma caneca de agua e


mastigou um pedaço de pao velho. Desceu o morro
em direçao a feira para recolher, na rotina de todos os
dias, entre os restos atirados ao chao, sobras
de frutas e talos de verdura para a refeiçao, e as rosas
despetaladas.

A noite, nos bares da praia, repetiu a cantilena:

- Uma rosa, senhor, para o seu amor!


Irmao X
CAPITULO 3
- O
FAXINEIRO

CAPITULO 3 - O FAXINEIRO
Homem rico que foi na terra, industrial de largos
recursos, Geremias Assunçao aportou no plano
espiritual sem qualquer preparo que o credenciasse a
um plano melhor.

A morte chegou quase de improviso, em meio a uma


reuniao em que discutia interesses de alta monta.

Presidindo, como sempre, a mesa de discussoes,


Geremias se impunha, naquele momento, nos gestos
bruscos, na expressao de sua vaidade e na oratoria
exuberante com que discorria convincente.

Presumia-se dotado de absoluta superioridade, quer


pelos conhecimentos do mundo dos negocios que
demonstrava, quer pela pro pria estatura social, uma
vez que o reconheciam, em seu círculo de influencia,
por sua linhagem aristocratica, descendente de
nobres portugueses.
Assim como viveu, aureolado em elogios, a
personalidade exaltada por aqueles que dele
dependiam, a merce de sua fortuna, Geremias passou
para o outro lado da vida.

Nem percebeu o transpasse, apos a violenta cefaleia


que o acometeu, quando impunha, com autoridade,
sua decisao em negocio de grande vulto.

Surpreso, viu a mesa de reunioes vazia, e sentiu um


profundo silencio em torno de si.

Irritado, tilintou com violencia a campainha sobre a


mesa.

Em tensa expectativa aguardou, inutilmente, o que


lhe pareceu horas a fio. Por fim, preocupado por se
ver sozinho, levantou-se e saiu a percorrer, perplexo,
as inumeras salas e pavimentos da poderosa
empresa, atravessando paredes e portas fechadas,
sem qualquer obsta culo ou impedimento.

Seguindo em frente, viu-se a flutuar no espaço. E, logo


em seguida, a caminhar por estradas tortuosas e
vielas escuras, sem viva alma pelas cercanias*.

Suor grosso começou a porejar-lhe a face, escorrendo


da testa vincada, enquanto um frio interior, mesclado
com estranho calor, parecia queimar-lhe as
entranhas.
Em panico, procurou gritar por socorro enquanto as
pernas, tremulas, mal o amparavam. Apenas um som
rouco e surdo, gorgolejante, como se estivesse
afogado por um líquido pastoso, regurgitou-lhe na
garganta.

Estava quase desmaiado quando divisou, vindo ao


seu encontro, a figura meio luminosa de um homem,
como se a roupa fosse fosforescente.

Geremias arregalou os olhos, com esforço, ao


reconhecer Benevides, velho ex-faxineiro de seu
gabinete.

Mordido pelo espanto, indagou, ainda com


dificuldade: -Benevides?

- Sou eu, sim! - respondeu-lhe.

- O que esta fazendo aqui? Pelo que sei, voce ja


morreu!

- E o senhor tambem, doutor Geremias! E ja faz muito


tempo! Dando um pulo, em sobressalto, indagou o
antigo e poderoso industrial:

- Que besteira e essa?

Olhando em derredor, incredulo, ajuntou:

- So nao entendo e como vim parar aqui, nesta


estrada escura!
- Pois e, seu doutor. Um dia a vida, outro dia a morte!
Aproximando-se mais de Geremias Assunçao,
acrescentou:

- O senhor foi grande la na Terra! Teve muito dinheiro


e muita vaidade! Mas nem sempre tratou seus
subordinados com o devido respeito. E, muitas vezes,
foi injusto! Lembra-se? Eu mesmo fui espezinhado
diante de outros, quando trabalhava humildemente
na minha funça o de faxineiro! E quando me despediu,
injustamente, porque um cinzeiro de cristal
estrangeiro havia desaparecido de sua mesa, e eu nao
soube explicar o sumiço?

Geremias passou a mao pela testa procurando


recordar-se.

- Voce foi acusado pelo Nestor, meu secretario, como


autor do roubo!

- E', mas o doutor nao apurou nada e nem quis me


ouvir! Depois de vinte anos de trabalho fui posto na
rua como ladrao. A minha família passou
necessidade, eu fiquei doente e nunca mais me
levantei.

Conturbado, Geremias, ouviu as queixas do ex-


empregado. Finalmente, sem sopitar um soluço que
vinha do fundo da consciencia, retrucou:

- Voce tem razao, Benevides. Peço que me perdoe!


Tempos depois, por acaso, fui encontrar o cinzeiro,
alem de outras coisas de valor da empresa, no fundo
de um arma rio, na secretaria onde o Nestor
trabalhava com tanta eficiencia!

- Graças a Deus, doutor, eu ja esqueci tudo. Na o tenho


magoa do senhor e ate ja o perdoei, ha muito tempo!
Por isso, hoje estou-aqui, para ajuda -lo!

- Como? - indagou, admirado, Geremias.

- Aqui neste mundo, onde os espíritos se encontram


com sua verdadeira roupagem, continuo sendo um
simples faxineiro. A minha tarefa e procurar, no meio
das estradas, os que foram grandes no mundo dos
homens e nao souberam ser humildes, nem amar
seus semelhantes.

- Para que? - indagou Geremias, perplexo.

- Para que ? Ora, doutor, para os encaminhar na escola


da faxina, a fim de aprenderem a ser humildes!

E, fixando bem os olhos em Geremias Assunçao, que o


encarava atonito, disse quase em sussurro:

- O doutor nao se recorda do que disse Jesus? Ante o


emudecido Geremias Assunçao, finalizou:

- Os grandes do mundo serao os menores no Reino de


meu Pai, se nao souberem ser humildes e nao
amarem o seu proximo!
Irmao X
CAPITULO 4
- O HOMEM
QUE NAO
AMAVA

CAPITULO 4 - O HOMEM QUE NAO AMAVA


Havia um homem, cheio de fortuna, que se comprazia
com toda sorte de divertimentos, nao se preocupando
com os problemas dos demais.
A vida era-lhe uma sucessao de alegrias, gozando de
boa saude e do apreço de quantos, como ele, nao
possuíam outra visao do mundo senao a de que fora
criado para o bem-estar e para a fruiça o dos bens
materiais.

Os que sofriam necessidades e nao possuíam


acuidade de espírito, jamais conseguiriam melhoria
de vida.
Frustrados por natureza, de nada serviria conceder-
lhes atençoes, ou propiciar-lhes oportunidades.
Assim, cada qual tratasse de si proprio, e com o
melhor proveito!

Com essa diretriz, o homem sequer olhava em


derredor para nao se importunar com a dor e a
miseria alheias, sempre constrangedoras aos seus
prazeres.
E, por anos e anos, demandava pelo mundo
acompanhado pelos que participavam da mesma
doutrina epicurista.
Chegou, todavia, o tempo em que a idade, exaurindo-
lhe as forças, fe -lo prostrado num leito de hospital
atingido por mal irreparavel.

Por mais que lutasse, valendo-se dos recursos


materiais, viu-se as portas do decesso que, ra pidas, se
abriram ao seu espírito combalido.

No vestíbulo da nova existencia, sem compreender o


que se passava, viu-se cercado por outros homens,
trajados de branco, que o olhavam entristecidos.

Nenhum deles, porem, se propos a ajuda -lo naquela


contingencia, deixando que, ansioso, tomasse a
iniciativa da indagaçao.

- Onde estou? O que me aconteceu? - indagou,


perplexo. Um dos presentes adiantou-se, por fim, e
esclareceu:
- Esta no mundo dos espíritos, onde a verdadeira vida
começa para os que souberam valorizar, pelas boas
açoes, a vida na materia.
E' onde parece continuar a outra, a do mundo físico,
para os que nao souberam ou nao quiseram
aproveita-la, dando-lhe um sentido edificante.

- Nao estou entendendo - retrucou o recem-chegado.

- E muito simples - recomeçou o outro - acaba de


desencarnar!

- O que e isso?
- Morrer! - elucidou-lhe o interlocutor. - Acabou sua
vida na materia. O seu corpo, a que deu tanto apreço,
jaz na sepultura, de retorno as origens organicas.

E fez-lhe ver, em retrospectiva fluídica, o episodio da


desencarnaçao no hospital, as vísceras intumescidas
por tumores.

O homem, atonito, fixou na mente todo o acontecido


e, temeroso, indagou:

- E agora, o que vai acontecer comigo?

- O que vai acontecer sera, tambem, muito simples:


colhera os frutos do seu plantio. Como, porem, nada
semeou de util, quer para o proximo, quer para si
mesmo, sua colheita sera de acordo com suas obras.
Passou a vida na fruiçao das emoçoes e dos desejos,
ignorando a dor e a necessidade alheias,
preocupando-se, apenas, com os bens materiais. Nao
amou o proximo, nao vestiu o nu, nao alimentou o
desesperado, nao confortou o aflito. Nao praticou,
enfim, a caridade.

- Sim... - disse o recem-desencarnado, tomando


consciencia da nova situaçao.

- Nos vamos deixa -lo sozinho, como voce deixou, no


mundo, todos os que de voce se aproximaram para
pedir ajuda. Ira percorrer, por muitos e muitos anos,
estradas sem fim, sem o auxílio de quem quer que
seja. Sentira fome, sede e frio e ninguem ouvira seu
apelo. Depois, cumprida essa etapa, retornara ao
mundo para nova vida, onde transitara, como
mendigo, sem que ninguem o assista nas sarjetas!

Horrorizado, exclamou:

- Como assim? Por que tanto castigo? Se na o amei o


proximo, tambem nao fiz mal a ninguem!

- O Pai nao castiga, meu irmao. Voce mesmo, pelo


egoísmo e pela omissao, e que ditou, para a vida
futura, sua sentença. Esta na lei que o plantio e livre,
mas a colheita e obrigatoria!

E os tres homens de branco desapareceram num


rasto de luz...
Irmao X
CAPITULO
5 - A
QUINA

CAPITULO 5 - A QUINA
Nao era a primeira vez que alguem pretendia vender
a alma ao diabo em troca de fortuna, para gozar,
durante a existencia, dos prazeres e dos bens
terrenos.

Leocadio Silveira, lembrando-se de que ouvira,


algures*, uma historia semelhante, pensou que bem
poderia sair da pindaíba negociando a propria alma.

Ambicioso, raciocinava, movido pela voracidade dos


prazeres faceis, que de nada lhe serviria a alma
depois da morte.

Enquanto vivesse, era-lhe necessa ria. Mas, depois que


a parca a viesse buscar, apo s a travessia do Letes*,
que utilidade lhe teria, despojada, assim, do corpo?

Privado da vida, nao teria mais os sentidos da visao,


do olfato, do paladar e do tato, que o faziam se
encantar com as coisas belas, com o perfume das
flores e das lindas mulheres, com o sabor das
guloseimas e com a sedosa maciez dos tecidos!

Com esse pensamento, Leocadio Silveira adormeceu.

Logo, encontrou-se, em sonho, com o senhor das


trevas, que lhe apareceu, risonho, expressando
alegria nos olhos oblíquos.

Leocadio mexeu-se na cama, como se fora tocado por


força estranha, e começou a falar, quase em voz alta:

- Pois e isso, senhor diabo, vejo que adivinhou o meu


pensamento! Estou, mesmo, disposto a fazer o
negocio.

- Qual e a proposta? - indagou Lucifer, prevendo que


levaria mais uma presa para seus domínios.

- Estou ja com cinquenta anos e, pelo visto, com umas


dores que venho sentindo pelo corpo, nao devo ir
longe.
Fez uma pausa e acrescentou:

- Assim, proponho entregar-lhe minha alma, logo que


feche os olhos. Em troca, o senhor me dira, com toda
a certeza, as dezenas da quina da proxima loteria!

Surpreso, uma vez que ninguem lhe fizera, ainda


proposta identica, indagou:

- Por que da proxima?

- E que o pre mio esta acumulado em varios bilhoes!


Imagina so, senhor diabo, o que posso fazer com essa
dinheirama toda!

-Tem razao... -retrucou Satana s, cofiando a barbicha. -


Mas e quase mais dinheiro do que possuo, assim para
pagamento a vista!

Esfregou as maos, satisfeito. Afinal, o dinheiro nao


iria sair de seus cofres, mas do bolso de milhoes de
pessoas pobres e humildes que lutavam duramente
pelo seu sustento.

Pensou um pouco, deu um sorriso sarcastico e estava


pronto para fechar o negocio, quando ouviu sair da
garganta de Leocadio um som estertorante*, ao
mesmo tempo em que os olhos se lhe esbugalhavam,
quase saltando das orbitas. A boca, retorcendo-lhe
num esgar* de dor e desespero, mostrava os dentes
brilhando, enquanto a língua se intumescia.
Leocadio perdeu a visao sonambulica, deu um salto
na cama e ficou inerte.

A alma se lhe despregara do corpo, num arranco.


Espantado pela violencia e pelo inesperado, Lucifer
deu um pulo para tra s.

-Deus, credo! - exclamou, inconscientemente, traindo


o respeito que, de qualquer modo, sempre votava ao
Pai Todo-Poderoso.

Vendo que Leocadio havia morrido, ao procurar


auscultar-lhe a respiraçao, deu um suspiro de alívio.

E, sem perder tempo, passou o braço em torno da


pobre alma, que permanecia estatica, enquanto
exclamava, entre gargalhadas, estugando* os passos
ladeira abaixo:

- Ora, graças! A ambiçao do Leocadio era tao grande


que nao resistiu a emoçao da fortuna e entregou-me a
alma antes mesmo de saber os numeros da quina.

Irmao X
CAPITULO 6
- A LUZ DOS
HOMENS

CAPITULO 6 - A LUZ DOS HOMENS


Consta que o mestre disse, certa vez, aos seus
apostolos, apos a ressurreiçao, em tarde que
declinava a beira do Tiberíades, que os seculos se
passariam e os homens continuariam a se digladiar,
olvidando-se das liçoes que havia pregado.

Os apostolos e, entre eles, Simao Pedro, indagaram ao


Mestre por que a Humanidade nao haveria de
compreender-lhe as liçoes, que representavam a
Palavra do Pai.

Jesus, sorrindo, respondeu:

- A vaidade, o orgulho e a ambiçao, pior que o joio e a


erva daninha, sao difíceis de se erradicar.
Suas raízes penetram fundo, seus troncos sao
nodosos e suas copas se projetam para o alto
agasalhando a uma grande multidao.

E acrescentou:

- Eu vim pregar a humildade e a igualdade espiritual


entre os homens porque assim determinou o Pai, que
nao distingue ninguem entre os seus filhos.
As liçoes, todavia, nao convem aos fariseus, eis que a
soberbia e as prerrogativas lhes garantem os
privilegios de que desfrutam.
Por isso, desfilarao os seculos e os homens
continuarao, como os senhores do tempo de hoje, a
cortejar a ambiçao, por lhes satisfazer os desejos
mais impuros.

Calou-se quando Pedro ponderou:

-Entao, Mestre, foi inutil e infrutífero seu martírio! E


todos nos lamentamos que a sua sabedoria e a
onisciencia do Pai nao tenham previsto o fracasso de
sua missao.

Apontando para o Sol, cuja luz se diluía na fímbria*


do horizonte deixando cintilaçoes de sangue nas
aguas do lago, retrucou Jesus:

- Nao, Pedro. A minha missao nao foi inutil nem um


fracasso. Ve como a luz se deixa absorver pelas trevas
da noite?
- No entanto, dentro de poucas horas ressurgira com
todo o seu esplendor, para trazer vida e calor a toda a
criaçao. Assim acontecera com meus ensinamentos.
As trevas da ignorancia, da vaidade e do orgulho,
como a noite que se repete, irao obnubila -los* por
varios seculos. Tempo vira, porem, em que a luz ira se
firmar para sempre, e o homem, apos as tempestades
de lagrimas e de dores, por haver, finalmente,
compreendido as minhas liçoes, ressurgira, como eu,
em espírito, para as varias moradas da Casa do Pai.

Finalizando, afirmou sereno:

- E eu, que sou o caminho, a verdade e a vida, estarei


com todos, para todos os seculos e serei, para toda a
Humanidade, o sol das alvoradas renovadoras.
Irmao X
CAPITULO 7
- AS BOAS
AÇOES
CAPITULO 7 - AS BOAS AÇOES
Homem rico, ele construiu sua abastança nos
negocios intricados da Bolsa de Valores.
Entre muitas lutas e discussoes, das quais
participava, liderando seus corretores, Tancredo
Penteado jamais se preocupou com as oscilaçoes da
sorte.

Ganhava e perdia, comprava e vendia papeis publicos


e particulares, diariamente investindo milhoes no
mais excitante jogo de sua vida.

Nao se preocupava com as variaçoes da fortuna, nem


se dava conta de que os dias corriam celeres, no
calendario da vida material.

Da mocidade, quando herdou do pai os bens que lhe


haviam garantido uma boa parcela de sua existencia,
em plenos e disparatados gozos e aventuras, passou a
maturidade sem manifestar cogitaçoes religiosas ou
filosoficas.

Afirmava-se, arrogante, um verdadeiro ateu e


vangloriava-se, nos círculos financeiros, de acreditar
apenas no poder do dinheiro, segundo ele, a unica
possibilidade de libertaçao.

No seu entender, a libertaçao representava nao


apenas a ause ncia de necessidades materiais, mas
tambem o destaque da personalidade.

Assim Tancredo Penteado se pronunciava, sempre


que alguem o alertava de que os anos passavam e
que, um dia, acordaria arrastando os pes nos
chinelos.

Ria, as escancaras*, da galhofa e retrucava, batendo


nos ombros dos amigos, relembrando anedotas
ridículas da epoca de sua mocidade.

Enquanto isso, a cada pregao da Bolsa, mais se


avultavam os seus haveres, lembrando as a guas que
correm para o mar. Obra de filantropia, nenhuma.

Nas deduçoes do Imposto de Renda, socorriam-no os


malabarismos contabeis, a cargo de prestigiosa e
competente firma de auditores internacionais, que o
isentavam de dar a Ce sar o que e de Ce sar.

Tancredo Penteado navegava pela vida, solido e frio


como um iceberg, ao qual nem as tempestades
causam danos.
Foi no dia em que comemorava sessenta anos - cabelo
ja bem grisalho, rosto corado - que tudo aconteceu.
Um burburinho no salao do palacete. Os grupos que
se embebedavam com todos os tipos de bebidas
ouviram, de repente, o baque surdo do corpo que
caía, pesadamente, apos um cavo* grito de angustia.

Tancredo Penteado sentiu a dor anginosa, respirou


fundo, torceu a boca, levou a mao ao peito e vergou
como um velho jequitiba.

No plano espiritual, quase dez anos depois, Tancredo


Penteado continua a supor-se vivo.
Ostentando um corpo identico ao corpo físico e
vestindo, ainda, a mesma roupagem que envergava no
dia do aniversario de seus sessenta anos, sentiu-se
perdido e so no salao vazio.

Copos esquecidos sobre as inumeras mesinhas e


outros quebrados pelo chao, indicavam o fim da festa.

Em vao, Tancredo chamou insistentemente os


garçons, que nao o atenderam. As luzes apagadas.
Sentiu-se envolvido nas trevas, a escuridao o oprimia.
Paredoes avançavam, lentos, para esmaga -lo.

Esforçou-se para gritar, mas nenhum som saiu de sua


garganta. Vislumbrou, de repente, nos cantos do
salao, focos de fogo que se acenderam e corriam, de
um lado para outro, semelhantes a fogos-fatuos*.
As chamas cresciam, espalhavam-se, iluminando o
ambiente. Pilhas de papeis ardiam nas pequenas
fogueiras que se formavam.

A princí pio, inerte, Tancredo agitou-se, aterrorizado,


saindo correndo, as tontas, tentando apagar o
incendio que alcançava o mobiliario, as cortinas e os
tapetes.
Sacudindo o paleto em meio ao fogo, gestos agitados,
o suor escorreu nas temporas de Tancredo.
Alguns papeis, daqueles que alimentavam o fogo, tal
qual borboletas entontecidas diante da luz, colidiram
com seu rosto afogueado.

Tancredo Penteado, tremulo, apanhou alguns,


examinando-os, detidamente, percebendo que eram
cautelas.

Representavam bilhoes em açoes, adquiridas por ele


ao longo de toda uma vida, nos pregoes angustiantes
da Bolsa de Valores.
Irmao X
CAPITULO 8
- O TRIBUNO

CAPITULO 8 - O TRIBUNO
Castorino Silveira, dono de oratoria eloquente, era
daqueles que fazia da tribuna espírita a vitrine dos
seus incontestaveis conhecimentos doutrinarios.

Ao menos quinzenalmente, assumia - exibindo o


porte e a altivez de um sacerdote - o pulpito da
sociedade espí rita a que se filiara e, por mais de hora,
desfiava, a ouvintes pasmados, argumentos
insofismaveis.

Condenava, veementemente, proceres* de outras


religioes tachando-os, em reprimenda, de falsos
profetas, pastores enganadores e outros epítetos*.
Destarte, ia largando sua semente entre espinheiros e
terras inferteis, na malversaçao de suas riquezas
verbais. Nao contendo o seu entusiasmo, mais se
perdia em largas gesticulaçoes teatrais do que
plantava amor e humildade.

Ao final das reunioes, todos transbordavam, uns em


abraços, outros em lisonjas e elogios, outros ainda
serenos ou desconfiados. Alguns ainda ruminavam as
críticas asperas que ouviram, talvez por
incompreensao, ou mesmo porque nao sentiam, na
palavra inflamada de Castorino, a luminosa vibraçao
que se irradia dos espíritos humildes. Se a uns
Castorino Silveira convencia, a outros, todavia, sua
pregaçao soava como uma algaravia*, como o pipocar
de rojoes em festejos de roça. Eram lantejoulas
verbais que apenas cintilavam, sem o valor intrínseco
dos ensinamentos divinos, joias da espiritualidade
maior.

Um dia, Castorino Silveira, ao ser interpelado ao final


de uma de suas palestras, sentiu uma dor aguda no
peito. Despindo-se do fardo material, entre gemidos e
estertores, viu-se subitamente, do outro lado da vida.

Quase que de imediato foi carregado em uma


padiola*, no plano espiritual, rumo a um hospital, sob
os cuidados de bondosos benfeitores.

Meses depois, Castorino recebeu alta.


Desembaraçado, dirigiu-se, em companhia de um
irmao, ao departamento onde seria entrevistado,
para melhor avaliaçao de sua condiça o naquela
colonia espiritual.
A essa altura, supondo-se refeito e adaptado, cogitava
ate em pleitear oportunidade para reiniciar as
pregaçoes doutrinarias, junto aos espíritos mais
carentes.

Depois dos cumprimentos e apresentaçoes, o irmao


Benevides, um assistente social, lendo uma ficha que
estava sobre a mesa, indagou:
- Entao e o irmao Castorino Silveira?

- Claro! - confirmou Castorino, feliz por ser


reconhecido de imediato, acrescentando:

- Como o irmao deve saber, eu fui um grande orador


espírita. Desencarnei, vítima de um enfarte, ao sair de
uma sessao. O tema da minha palestra, naquele dia,
foi "A parabola do semeador".

- Sim, nos sabemos disso - interrompeu o irmao


Benevides. Olhando fixamente para Castorino,
esclareceu:

- Sua semeadura, irmao Castorino, se alguma vez


germinou e produziu frutos em outras pessoas, nao
deu, para voce mesmo, uma boa safra.

- Como assim? - indagou Castorino espantado,


prosseguindo indignado:

- Eu fui um incansavel lavrador da Seara do Mestre,


espalhando a semente de O Evangelho Segundo o
Espiritismo aos quatro ventos, com o meu verbo
inflamado!

- E verdade, meu irmao. Voce espalhou a semente aos


quatro ventos, mas nenhuma germinou em seu
coraçao.
Caído na superfície de sua alma, o calor da vaidade e
do orgulho queimou-as.
Suas palavras, irmao Castorino, eram vazias de amor
e de humildade. Visavam mais a promoçao pessoal do
que propriamente ao plantio do amor exemplificado
pelo Mestre.

Castorino Silveira abaixou a cabeça. Em sua mente,


projetavam-se cenas de suas incontaveis palestras,
nas quais, gesticulando com ardor, discursava
enfaticamente, demonstrando sua eloquente oratoria.

Apercebeu-se, no quadro fluídico, de sua


preocupaçao com a pro pria imagem, relegando a
divulgaçao da Boa Nova a segundo plano.

Um frio cortou-lhe o coraçao ao ouvir as ultimas


palavras do irmao Benevides:

- Prepare-se, irmao Castorino, para em breve


regressar a Terra. E, uma vez que nessa ultima
encarnaça o voce se engrandeceu e gratificou-se,
esquecido de que o orador espírita deve dar provas
cabais de humildade, retornara agora a vida física, na
condiçao de surdo-mudo, para efetiva tarefa espírita
em organizaça o de deficientes. Aprendera a Doutrina
Espírita por meio da leitura silenciosa. Sera um
professor, e ensinara a outros irmaos, igualmente
surdos-mudos, valendo-se apenas da gesticulaçao das
maos e dos dedos.

Irmao X
CAPITULO 9 -
REENCONTRO

CAPITULO 9 - REENCONTRO
Uma caravana de espíritos recem-chegados da Terra
caminhava, vagarosamente, por sombria estrada de
regiao intermediaria do umbral5.5 Umbral: ambiente
espiritual trevoso e infeliz criado pela força do
pensamento de milhares de criaturas em desajuste
(NE)

Tropegos uns, arrastando-se em andrajos*; fatigados


outros pela longa jornada, famintos e sequiosos,
lembravam um exercito em retirada. Eram soldados
derrotados, estampando, nas fisionomias doridas, o
desa nimo, a descrença e a humilhaçao. Mal se
falavam, gemendo e vociferando pragas. Tristeza e
melancolia estampavam-se nos rostos vincados de
dor. Ninguem os comandava, caminhavam a passos
incertos e sem rumo, presos uns aos outros por
invisíveis correntes fluídicas.

Vez por outra, os que vinham a frente paravam,


indecisos, como a procura do itinerario.

Numa bifurcaçao da estrada, enorme arvore deitava


sombra amena, convidando ao descanso.

Exaustos, parecendo obedecer a uma ordem


inaudível, desfizeram a fila, esparramando-se a beira
da estrada. O silencio reinava, ouvindo-se, apenas
aqui e ali, queixas, lamentos e gemidos.
Um dos andarilhos, animando-se, dirigiu-se ao
companheiro de estrada e perguntou:

- Amigo, nao estou entendendo mais nada. O que


estamos fazendo nesta estrada, caminhando como
bois para o matadouro?

O interpelado, olhando para o interlocutor,


respondeu:

- A quem perguntas? Tambe m eu nao compreendo


coisa alguma. E, identificando-se, prosseguiu:

- Meu nome e Batista. So me recordo que estava num


comício, ouvindo um discurso político, quando
começou um tiroteio. Armou-se uma correria e ouvi
os gritos do povo em desespero. Logo fui arrastado,
de roldao*, pisoteado e perdi os sentidos. Quando
acordei, zonzo, sentindo dores no corpo inteiro, vi-me
no meio de toda essa gente, caminhando,
caminhando... Perdi ate a capacidade de pensar.

Alongando a vista pela estrada, concluiu:

- Acho que o comício acabou. Tudo aqui me parece


muito estranho.

- Pois e isso - interrompeu o que dera início a


conversa -, eu tambem estava numa festa. A
proposito, meu nome e Joao Pedro. Era uma recepçao
no palacete de um grande industrial, meu amigo, em
que a bebida corria a vontade. Comemorava-se o
fechamento de um grande negocio que renderia
milhoes de dolares. De repente, nao sei como, quando
levava um copo de bebida a boca, senti um
formigamento e uma dor insuportavel no lado
esquerdo, na altura do coraçao. Aconteceu num
segundo. Rodou-me a cabeça, escureceu-me a vista, e
eu ainda ouvi vozes aflitas, em meio a sonoras risadas
daqueles que se divertiam com as anedotas. Depois
disso, apenas o silencio.

Apos uma pausa, acrescentou:

- E agora, meu amigo, encontro-me aqui, nesse desfile


de fantasmas, todo maltrapilho, faminto, sedento,
com as pernas doloridas e fatigadas.

Firmou os olhos indagadores no companheiro e


indagou:

- O que aconteceu, afinal?

No mesmo instante, parecendo atender a um


chamado, surgiu a frente dos dois uma figura quase
gigantesca, de longa barba e riso alvar*.
Segurando-os pelo braço, gritou, com voz ríspida:

- Ate que enfim eu os encontrei, seus patifes. Ha mais


de duzentos anos que os procuro, sem um dia de
descanso, ora aqui no mundo das almas perdidas, ora
na vida carnal!

Rindo maldosamente, ameaçou:


- Finalmente encontrei a oportunidade da minha
desforra! A justiça tarda, mas na o falha!

Sacudindo-os violentamente, afirmou:

- Voces agora nao me escapam!

Espantados e cada vez mais incredulos, Batista e Joao


Pedro perguntaram a uma so voz:

- Quem e voce? E que historia e essa?

- Nao se lembram? Vou refrescar a memoria dos dois.


Passando a ma o na testa de cada um, num gesto de
prestidigitaçao*, falou:

-Vejam!

Desenrolaram-se na tela mental de Batista e Joao


Pedro episodios de uma existencia transcorrida ha
mais de dois se culos em que os tres tramavam varios
negocios escusos.

Ludibriavam-se entre si, embora fossem cumplices,


enganando-se reciprocamente. Enriqueceram
locupletando-se de fortunas alheias, mediante toda
sorte de fraudes. Desavieram-se, por fim, como
sempre acontece, na partilha dos ganhos ilícitos. Um
deles, o que agora se apresentava com a nimo de
vingança, terminou seus dias na prisao, delatado
pelos companheiros como unico responsavel por um
vultoso
desfalque ao erario publico.

A visao mental se apagou.

- Deus, voce e o Clodoaldo! - disse o que se chamava


Batista.

- Clodoaldo! - ajuntou, perplexo, Joao Pedro.

- Eu mesmo, seus traidores. Agora me pagarao os


anos que passei na prisao, enquanto voces gozavam, a
tripa forra, os milhoes roubados.

- Mas isso ja faz muito tempo - apelou Batista,


apavorado.

- Ja vivemos outras existencias, pelo que eu sei, e voce


tambem. Sofremos muito, passamos fome, tambem
fomos roubados.

- Nao, seus larapios, para mim esse tempo nao conta.


Vou leva -los para onde estou vivendo, la no meio das
trevas, e vou trancafia -los no xadrez durante o
mesmo tempo em que fiquei preso.

E o espírito, identificado como Clodoaldo, algemou os


antigos comparsas, empurrando-os pela estrada, ate
que desaparecerem na escuridao dos caminhos.

Este e um relato singelo, muito comum nos planos


inferiores da espiritualidade, onde os espíritos
sofredores e vingativos escravizam-se e se obsidiam,
uns aos outros, completamente alheios ao remorso e
ao arrependimento.

Irmao X
CAPITULO
10 - CAUSA E
EFEITO

CAPITULO 10 - CAUSA E EFEITO


Eleuterio, sempre que podia, procurava esquecer
como conseguira acumular tanta fortuna.

O que o preocupava era como conserva -la, ou ainda


multiplica -la, empregando-a em investimentos
rentaveis, com o mínimo de risco.

Nao se considerava mais em idade de entregar-se aos


negocios, que roubariam suas preciosas horas.

Sentia-se recompensado em sua esperteza e


inteligencia. Nunca desperdiçou uma oportunidade
de ganhar mais, mesmo que isso representasse
prejuízo para os outros.

Abusou, nao raras vezes, da boa-fe e da confiança dos


amigos. Aos poucos, recorrendo a processos
inconfessaveis, aliviara-os do peso de encargos e
preocupaçoes, transferindo, para si, boa parte do
patrimonio alheio.

Em poucos anos, Eleuterio, passou de modesto


auxiliar de escritorio a socio majoritario de uma
corretora de valores mobiliarios.
Mexendo e remexendo com papeis na Bolsa de
Valores, induzia os outros a investimentos que, sabia
de antemao, eram fadados ao fracasso, mas que
rendiam gordos lucros aos seus bolsos.

- O mundo e dos espertos - dizia. - Aos tolos so resta


uma corda para o pescoço.

Ja em idade avançada, Eleuterio nao resistiu aos


afagos e carinhos interesseiros de alguem que
sonhava com os seus milhoes.

Inadvertidamente, deixou-se envolver por vivida


cortesa da alta sociedade que, alias, ja amealhara
algumas fortunas com seus favores, perdidas no jogo,
em saloes clandestinos.
Quando deu por si, emergindo de um estado de
inconsciencia, ou de imbecilidade, como se acusava,
encontrou-se casado, com comunhao de bens.

A mulher, passados os primeiros meses de seduçao ao


marido, retornou a vida ativa dos jogos, contraindo
dívidas que Eleuterio pagava, religiosamente, embora
a contragosto, para nao cair no descredito diante dos
seus amigos e clientes.

A insanidade de Filomena, no entanto, nao


encontrava limites, enquanto a prodigalidade de
Eleuterio, ao saldar seus compromissos, pouco a
pouco o levou a ruína. Viu-se obrigado a assinar
títulos, hipotecar imoveis e a alienar açoes. Tudo o
que possuía consumia-se na voragem de juros
extorsivos. Ate que um dia, quase sem recursos,
empregou as u ltimas economias em negocios ilícitos,
mas que acenavam a ele com grandes lucros, livres de
controles fiscais.

De repente, da noite para o dia, viu-se descoberto


pela polícia que, atendendo a denuncias, interceptara
grande partida de contrabando de entorpecentes, que
Eleuterio intermediava, na ganancia de reaver tudo o
que perdera, de uma so vez.

Detido para averiguaçoes, nada pode alegar diante


das evidencias. Em poucos meses, viu-se condenado a
longos anos de prisao, perdendo os bens que ainda
detinha, confiscados juridicamente pelas autoridades.

A esposa, Filomena, o abandonou esquecida das


despedidas e demandou a outras plagas*.

Nao demorou muito e Eleuterio, que sempre se


vangloriou de sua inteligencia, afirmando que o
mundo era dos mais espertos, amanheceu pendurado
na grade da cela, o cinto das calças amarrado ao
pescoço.

Vinte anos depois de ingentes sofrimentos na


erraticidade, enfrentando, nos vales mefíticos e
sombrios, dramaticas experiencias e dores
infindaveis infligidas pelas legioes dos espí ritos das
trevas, lasos e coisas, daqui e daí...

Eleuterio se propos a reencarnar, na misericordia do


Pai. Decidido a poupar-se de maiores padecimentos,
suplicava arrependido, o benefício da vida na carne,
onde se furtaria, no esquecimento, aos desesperos
que tanto o angustiavam. E renasceu, por fim.

Retornou ao mundo, como filho de mae solteira, em


extrema pobreza.

Com os olhos esbugalhados quase a saltarem das


orbitas, a língua pendente, sempre ensalivada, mas
com o espírito plenamente consciente, mostrava o
estigma do mongoloide, por grotesca figuraça o do
afortunado Eleuterio de outra vida...
Irmao X
CAPITULO
11 -
PIEDADE

CAPITULO 11 - PIEDADE
Cordulino encontrava-se, como sempre de mao
estendida a caridade pu blica, junto aos degraus da
velha igreja.

O sol era inclemente e o calor intenso, embora ainda


nao passasse das dez horas da manha.

Na cantilena costumeira, Cordolino, olhos revirados


em estrabismo congenito, vez por outra erguia o
velho chapeu de feltro, castigado pelo tempo,
esperando que alguma alma piedosa ali depositasse a
moeda do amor cristao:
- Piedade, senhora, tenha piedade de um pobre
mendigo. Piedade, pelo amor de Deus.

Os passantes iam e vinham, subindo a escadaria da


igreja, comparecendo ao ofí cio religioso das dez
horas. Raros os que se comoviam com a suplica
monotona de Cordolino.

Assim, a feria do mendigo, naquela sexta-feira, nao foi


de entusiasmar nenhum bom negociante da caridade
publica.

Na igreja, onde se celebrava a missa na intençao da


alma de algue m afortunado pelos bens materiais, o
sacerdote pregava o valor da piedade, virtude que
deveria ornar a alma de quantos ardiam em fe no Pai
Celestial.

Afirmava o sacerdote, em palavras categoricas, que a


piedade, uma manifestaçao do amor, era o laço que
unia as criaturas, na expressao verdadeira da
fraternidade.

- Piedade com os pecadores porque transviados das


liçoes do Evangelho, o que os aguarda, na vida eterna,
sao as lagrimas e o ranger de dentes. Piedade com os
egoístas, porque, pensando apenas em si mesmos,
nao se recordam de que, um dia, nos reveses da
fortuna, irao implorar ajuda aqueles a quem
recusaram o auxílio! Piedade, enfim, por todos os que
vivem no egoísmo, esquecidos dos necessitados,
porque podera o cair enfermos, sem quem os assista
nas horas de amargura.
Concluído o sermao, o sacerdote partiu para a
sacristia, retirando os paramentos liturgicos.

A igreja esvaziou-se. Cordolino permaneceu na


expectativa das doaçoes, as maos su plices e a voz
lamurienta.

Os fieis retiraram-se em grupos e ninguem volveu,


sequer, um olhar em direçao ao pedinte:

- Piedade, por amor de Deus! Piedade...

Homens e mulheres, ainda ouvindo o eco da piedosa


pregaçao, eram surdos aos petitorios de Cordolino.
Coraçao e alma cristalizados em seus proprios
interesses eram impermeaveis ao apelo da
fraternidade.

Finalmente, afastaram-se todos sob a inclemencia do


sol. Os u ltimos a se retirar foram aqueles que
encomendaram a missa, depois de rogarem a Deus,
durante o ofício religioso, piedade para suas dores e
sofrimentos.

Piedade que, no entendimento daqueles fieis, era a


virtude que deveria se manifestar apenas por parte
do Pai Celestial em favor dos Seus filhos, padecentes
neste vale de la grimas.
Irmao X
CAPITULO
12 - O NATAL
DAI E DAQUI

CAPITULO 12 - O NATAL DAI E DAQUI


Vozes altissonantes anunciavam, nas esquinas, que o
Natal havia chegado. Mercadores clandestinos
ofereciam, em pregoes, bugigangas a preços de
liquidaçao.

Mais adiante, um vendedor de bilhetes de loteria,


maltrapilho, gritava que a sorte grande estava ali, nas
suas maos, estampando na fisionomia uma esperança
enganosa.
Ele, que vivia na miseria, apregoava milhoes no
simples girar de uma esfera.

Perto dali, o jovem jornaleiro anunciava o crime do


dia. Mais ale m, em torno de um tripe, no qual se
dependurava uma panela, meninos uniformizados, ao
som de uma sineta e ao toque de um pistao,
executavam Noite feliz implorando ajuda para os
pobres. O povo passava, alheio, apatico, apressado,
imerso em seus problemas.

Era ve spera de Natal, dia festivo para muitos e de


tristeza para outros. Raros eram aqueles que
lembravam na proximidade dessa data, a celebraçao
do nascimento do Cristo entre os homens.

O enviado de Deus viera a Terra para ensinar o


caminho da libertaçao, o roteiro da paz, a estrada da
perfeiçao. Mas, naquela esquina, como em toda a
parte, ninguem via no Natal a data maxima da
cristandade, o marco de sua renovaçao moral e
espiritual.

No coraçao dos homens, aquele era um dia comum.


Nao havia paz nos espíritos.

A exceçao da sineta que tilintava em frenesi, o que se


ouvia era o mercadejar, as buzinas desordenadas, os
gritos dos jornaleiros, a respiraça o ofegante dos que
corriam na busca incessante de dinheiro.

Os espíritos conturbados, as mentes preocupadas, os


coraçoes vazios.

Em muitos, sentia-se o rancor, o odio, a luxuria, a


vingança, a inveja, o desejo, a vingança. Era vespera
de Natal na Terra.

No mundo espiritual se comemorava, tambem, a


vinda do Cristo ao mundo dos homens.

Aqui, a semelhança da Terra, existem mas, casas,


praças, jardins, largas avenidas, por onde os espíritos,
de maos dadas, transitam irmanados, em longos
passeios ao por-do-sol.

A cidade em que me encontro e igual a tantas outras,


distante da atmosfera terrestre, onde, em novos
estagios depois da desencarnaçao, os espíritos
prosseguem no aprendizado necessario a sua
evoluçao.

As mas e os jardins estao sempre floridos, em eterna


primavera, deles exalando um doce e suave perfume
que inebria as almas. Incontaveis matizes de luz
colorem o ceu.

O silencio das ruas e entrecortado apenas pelo riso


cristalino dos espíritos felizes que se encontram e se
cumprimentam.

Nao se ouve o burburinho de comerciantes, dos


vendedores de loterias, o azucrinar incessante de
pregoeiros. Nao se ve em mendigos, nem maes
aconchegando ao seio desnudo crianças famintas.

Homens, mulheres e crianças, olhos resplendendo de


luz, em largos sorrisos, passam de um lado para o
outro, cada qual com uma tarefa de amor fraterno a
cumprir.

Na praça, um grupo de espíritos, envergando alva


tunica, entoa cançoes de Natal. Via-se, de longe, que
de suas cabeças, nimbadas de luz, ascendiam reflexos
dourados.
De suas roupagens, cintilavam estrelas cravejadas,
lembrando diamantes multicoloridos. A melodia,
suave, quase em surdina, subia ao infinito, luminosa,
em meios-tons, em espirais de luz.

Findo o cantico, juntaram-se a eles outros espíritos,


seguindo todos para um templo, cuja porta luminosa,
ostentava um letreiro: Bem-aventurados os puros de
coraçao.

Entraram, sentando-se em longos bancos, nos quais


ja se encontravam centenas de almas reunidas, em
prece.
Do alto da cu pula, penetrando por um zimborio de
cristal, parecendo escoar-se entre nuvens
luminescentes, a luz opalina banhava-os, envolvendo-
os num manto de luar.

Em alguns instantes, surgiu a figura de um venerando


Mestre; ele tinha a barba prateada e os olhos
resplandecentes, que irradiavam amor e bondade.

Com sua voz suave e melodiosa, ergueu os braços e


pronunciou sentida prece. Ao final, dirigindo-se a
assembleia, exortou:

- Gloria a Deus nas alturas e paz a toda a


Humanidade!

Comemora-se aqui, meus irmaos, como na Terra, o


surgimento do Cristo como o enviado do Pai. Cumpre,
entretanto, a nos, que ja deixamos o mundo da
materia, render a ele nossa homenagem em espírito e
verdade.

Elevemos, pois, o nosso pensamento ao Mais Alto,


para que se inundem nossos coraço es da luz divina
que o Mestre prodigalizou aos que fazem do amor e
da caridade o roteiro de suas açoes.
Cultivemos, meus irmaos, o espírito do Natal
acendendo em nosso coraçao a luz do Evangelho para
que, um dia, possa reinar, entre os homens, a paz que
aperfeiçoa e que nos liberta.
Irmao X
CAPITULO
13 - UMA
ENTREVISTA
COM AS
SOMBRAS

CAPITULO 13 - UMA ENTREVISTA COM AS SOMBRAS


Logo apos os primeiros tempos de meu regresso ao
plano espiritual, quando ja refeito do impacto da
estranha travessia, despertou-se em meu espírito o
desejo, incontido, de voltar a s lides da reportagem.

Eu nao havia perdido ainda a mania de intrometer-


me na vida ilheia, habito que me acompanhava desde
os primeiros alvores da adolescencia. Era como se eu
ainda estivesse na materia, com os mesmos tiques e
comichoes, preocupando-me com coisas, fatos e
gentes, com o mesmo jeito indisciplinado de viver
intensamente, por mata curiosidade, os instantes
mais banais do dia-a-dia.

Encontrei-me, nesse dia, com um jornalista, um


gigante das letras de antigamente, daqueles que,
como eu, tambem morria por escarafunchar as
novidades. So que o homem, paladino da imprensa de
outras e pocas, olhou-me como a um "foca" e,
antegozando a minha inexperiencia, perguntou:

-Entao tambe m se considera um jornalista? - Sou um


reporter - retruquei, com certa satisfaçao. E, mesmo
depois de morto, nao perdi as minhas qualidades. Ao
menos poderei preocupar-me com alguma coisa aqui,
nesse mundo novo, onde devem acontecer novidades
em penca! Com certa ironia, arrisquei:

- Quem sabe vou entrevistar o velho Pilatos, para


saber direito aquela historia das maos lavadas e a
entrega de Jesus a turba sanguinolenta?

Ria-me a s ocultas, sem desejar transparecer o meu


espírito folgaza o, mas fui surpreendido por perspicaz
sorriso.

- Por que nao entrevista as sombras? Os espíritos do


mal devem andar loucos para deitar falaça o e tentar
reabilitar-se diante do publico que, ultimamente, nao
os tem levado muito a se rio.

- Por que na o? - indaguei, aceitando o desafio.

- Pois pode faze -lo e ja sabe como: basta que pense


nas sombras. Dito efeito.

Foi pensar e falar no umbral, que me senti, em


pensamento, conduzido a uma regiao estranha,
sombria e desolada. Era sonho ou realidade?

- Que quer de nos? - indagou um vulto, pondo-se logo


a vontade.

Dizia-se um dos dirigentes das sombras e me


observava certo de conquistar mais uma alma para
sua falange do mal.
- Sou um reporter - disse, sem demonstrar medo. -
Gostaria de entrevista -lo.

Dos olhos do espírito maligno dispararam fagulhas de


alegria.

- Otimo! - exclamou. - Ha muito tempo que nos nao


somos procurados por jornalistas, embora, em nosso
poder, muitos deles trabalhem em nosso
Departamento de Assessoria de Imprensa.

- Assessoria de imprensa? - indaguei rindo, surpreso


com a revelaçao de que as sombras ja adotavam
metodos modernos em sua industria de calunias,
difamaçoes e corrupçao.

- Os tempos mudaram, meu rapaz! Ha uma grande


diversificaça o, atualmente, em materia de pecadores,
cujo numero e quase incontrolavel. Como sabe,
apesar da campanha que promovem contra nos,
estamos vencendo a batalha contra Jesus. O pescador
nao conseguiu amealhar, em suas redes, mais almas
do que nos.
Os meus 51 caldeiroes estao extravasando, enquanto
o reino dos Ce us deve andar Vazio, quase as moscas,
com meia duzia de querubins.

O vulto sombrio desatou em gargalhada sarcastica e


desavergonhada, dando-me um escaldante tapa nos
ombros, desejando, talvez, arrancar-me uma
inusitada solidariedade.
- Por isso e necessario que uma equipe de jornalistas,
publicitarios, políticos, estatísticos, advogados e
economistas direcione os nossos esforços, planejando
nossas açoes de acordo com as tendencias e
oportunidades que surgem a cada dia. Nossa
influencia e direcionada, criando novas motivaçoes
para atrair, a s fileiras do mal, um numero cada vez
maior de almas.

Fiquei estupefato. E ja nem me lembrava das


perguntas que pretendia formular, porque a entidade,
empolgada, encarregava-se de despejar em meus
ouvidos um discurso que bem serviria para compor
um verdadeiro tratado sobre as tecnicas de
persuasao umbralinas.

Assim e que eu soube que a Humanidade andava cada


vez mais perdida, homens e mulheres pervertendo-se
em licenciosidade sem limites. Menores envolvidos
em todas as especies de toxicos. O orgulho e a
vaidade empolgando os espíritos na vida ociosa de
uma sociedade sem religiao. A corrupçao carcomendo
a moral. Guerras e revoluçoes destruindo naçoes e
povos em nome de falsas ideologias.
A infamia, a injuria e a calunia enlameando
reputaçoes. Os desregramentos demolindo o alicerce
da família. Enfim, o caos envolvendo os homens, a
miseria aumentando a revolta, enquanto a inveja, o
ciume e a luxuria invadiam igualmente os palacios e
os lares modestos... sem falar da dissoluçao entre os
políticos e os administradores publicos.

O espírito malefico desfiava a relaçao de crimes e


arregalava os Olhos, atento ante o meu espanto.

- Sabe, meu rapaz - disse-me, muito gabola* pelo exito


de suas atividades no plano da destruiçao das
consciencias - a minha maior vitoria sera quando,
dentro de pouco tempo, e nao havera de demorar
muito, conseguir destruir completamente as
organizaçoes religiosas.

- Como assim? - indaguei perplexo diante de tanta


arrogancia e atrevimento.

- Pois conte pelos dedos! Lembra-se daquela profecia


do final dos tempos? O tempo esta se aproximando. E
daquela afirmaçao do seu Mestre, dirigindo-se ao
apostolo Pedro, que o negou por tres vezes:
Pedro, sobre ti erguerei a minha Igreja e contra ela
nao prevalecerao as forças do mal!

Vangloriando-se, afirmou o espírito dirigente das


sombras:

- Pois veremos, meu rapaz! A destruiçao ja começou e


anda a passos largos, graças ao movimento dissidente
que instituímos nos meios eclesia sticos. Nossos
especialistas em insuflar o fanatismo entre os
religiosos estao agindo com energia e muita
perseverança.

Parecia que o representante das sombras na o pararia


mais de falar.

Sentia-me constrangido. Pretextando que deveria


retirar-me para outra tarefa, agradeci ao
representante das trevas a entrevista e tratei de
escapulir. Bastou, para tanto, que meu pensamento
me conduzisse, novamente, para junto do velho
jornalista, que me aguardava ansioso.

- Entao, como se saiu? - indagou-me, ao ver-me com a


fisionomia esbaforida.

- Esta tudo aqui! - retruquei, mostrando-lhe o meu


bloco de notas. E deixei-me cair, fatigado.

- Que tristeza! - murmurei, desolado.

Foi quando o velho jornalista, reanimando-me, falou:

- Tudo o que o espírito do mal disse a voce e verdade.


O panorama descrito e aquele mesmo. Mas, daí a
dizer que esta vencendo a batalha contra o bem, nao
passa de bazofia*. Jamais o mal vencera o bem.

O que agora parece o fim sera, apenas, o início de


uma nova era. A transformaçao da civilizaçao, o
desmoronar dos velhos costumes e o
desaparecimento das antigas religioes sera o marco
inicial da implantaçao definitiva do Reino de Deus na
Terra.

E concluiu, sorrindo, esperançoso em melhores dias:

- O que as sombras estao fazendo e preparando e,


justamente, a vitoria do bem, separando o joio do
trigo, no instante em que aTerra prepara-se para
ganhar o galardao* de Mundo da Regeneraçao.

Diante daquela inesperada vibraça o de esperança que


partia de um respeitado companheiro de profissao,
ergui o meu pensamento ao Mais Alto, em oraçao,
agradecendo as liçoes do dia.
Sem dar-me conta, falei em voz alta:

- Meu Deus! Quanto eu ainda tenho a aprender. - E,


constrangido, retirei-me em silencio, sentindo-me o
"foca" de outrora, jornalista ainda iniciante no
aprendizado da realidade que nos cerca no mundo
maior.
Irmao X
CAPITULO
14 - O
PONTO
ESCURO

CAPITULO 14 - O PONTO ESCURO


Um homem se encontrava perdido em uma estrada
deserta. Envergava ricos trajes, engalanado com fios
de ouro e prata. Luziam-lhe as botas confeccionadas
em couro finíssimo. Nos dedos, as pedrarias
cintilavam tal qual pequeninas estrelas. Apesar de
toda a riqueza, da abunda ncia de seus recursos,
arrastava o corpo balofo. Era em vao que gritava
pelos criados. Ninguem o ouvia, e sua voz perdia-se
no silencio daquela imensa solidao.

Sentindo-se cansado, a sede o atormentava.


O que o preocupava mais, no entanto, eram o
precioso fardo da indumentaria, o brilho das
pedrarias dos aneis e o luzidio das botas, que
pareciam refletir a luz das estrelas.

Finalmente, entregou-se a fadiga.

A fome e a sede corroíam-lhe as vísceras e ja nao


conseguia mais caminhar. Tremiam-lhe as pernas
enfraquecidas. Ainda assim, persistia em carregar o
peso de sua riqueza inutil.

De repente, aproximou-se de um dos seus antigos


vassalos. Ele trajava roupa humilde, tinha os pes
descalços, as maos rudes e cheias de calos e o olhar
pleno de luz a refletir-lhe a consciencia tranquila e
feliz.

- Senhor... - disse o vassalo. E melhor que deixe de


lado toda essa pompa.

O homem rico, ouvindo aquela voz, reconheceu-a. Era


um dos velhos criados, um dos seus cavalariços*.

Espantado com a apariçao, perguntou, prepotente:

- O que faz aqui que nao me ajuda a vencer essa longa


caminhada? Onde estao as minhas parelhas de puro-
sangue?
Quero monta -las e regressar logo aos meus
aposentos, no palacio. Vamos, homem, apresse-se !

- Senhor - repetiu o vassalo - como trazer as


parelhas? As montarias nao se encontram aqui, neste
mundo novo onde estamos agora, depois que a morte
nos despojou, a todos, dos nossos bens materiais e de
nossas miserias, igualando-nos como filhos de Deus.

- A morte? - perguntou, ansioso, o homem. Que


morte? Continua maluco como sempre?

O idoso cavalariço sorriu, aproximou-se mais e


acrescentou:

- Olhe, e preciso que compreenda que ja nao esta


mais entre os vivos. Tanto o senhor como eu ja
morremos para o mundo. Agora, somos espíritos
livres e ja nao ha mais senhores nem vassalos.
Somos irmaos em novas experiencias para o nosso
adiantamento moral.

Apontando para a rica indumentaria daquele que


durante tantos anos o oprimiu, perguntou:

- De que valem essas riquezas todas, essas roupas


bordadas com ouro, esses aneis e pedras preciosas?
De que valem essas coisas neste mundo onde
estamos?

O nobre, cada vez mais espantado com tudo o que


dizia o velho cavalariço, irritou-se com o que
entendia ser uma afronta e ameaçou, violento:

- Nao sei onde estou que nao fustigo seu lombo com o
meu chicote.
E, quase espumando de raiva:

- De outra feita poderia perdoar o seu atrevimento e


sua estupidez, mas nao desta vez, em que a sua
empa fia ultrapassou todos os limites. Ponha-se daqui
para fora.

O cavalariço, humilde, continuou a sorrir. Estendeu a


mao ao ex-patrao e disse:

- Eu vou embora. Mas gostaria que viesse comigo. La


onde eu moro e um lugar bom e tranquilo.
E' perto de uma estrebaria igual aquela na qual, um
dia, nasceu um homem humilde, pobre, porem muito
sabio, que deu a vida por amor a Humanidade.

Enquanto falava, uma luz esplendia de seu interior,


envolvendo-o sutilmente. O cavalariço fundiu-se, por
fim, em sua propria luz, desaparecendo no espaço.

Ao chao, ajoelhado, curvado ante o peso da


indumentaria, das joias, da vaidade e do orgulho,
perdido naquela solidao do deserto, o antigo nobre
era, apenas, um ponto escuro naquela paisagem arida
e triste.

Irmao X

CAPITULO
15 - A
SURPRESA
DO PASTOR

CAPITULO 15 - A SURPRESA DO PASTOR


Era um domingo de sol. Na praça, reunia-se uma
pequena multidao, ouvindo o pregador. O homem
agitava os braços e folheava, de vez em quando, uma
Bíblia, recitando os versículos. Sua voz era trovejante.

Erguia os olhos para os que o rodeavam e parecia


ameaça -los com as penas eternas. O caldeirao do mal
fervia dentro de suas pupilas.
A boca tremia, e sua voz, estrondosa, ameaçava com a
ira de Deus aqueles que nao ouvissem sua palavra.

As vezes, interrompia a torrente de ameaças, e logo


uma charanga* desafinada atacava um hino religioso.

Os fieis distribuíam entre os que se aglomeravam,


folhetos em que anunciavam a furia divina, marcando
para a eternidade, os pobres mortais que nao se
batizassem, segundo o rito daquela seita.

O pregador falava por horas seguidas, enquanto a


banda e o bumbo ressoavam na praça atraindo o povo
para as promessas divinas.

Estava o pastor na maior exaltaçao, quando o Senhor


resolveu chama -lo. Um ataque de apoplexia* cortou-
lhe a palavra, enquanto a alma lhe era arrebatada, a s
carreiras, para o Alem.
Anjos do Senhor aguardavam, ansiosos, por aquela
ovelha tao lanzuda* e tao boa. Nem lhe deram tempo
para assistir ao tumulto que se seguiu ao desenlace.

A Bíblia foi parar no meio da rua. O bumbo, os pratos


e a clarineta, largados entre o povo que se
aglomerava, curioso.
Irmaos da seita, ao se aperceberem do sucedido,
tomaram-se de panico, enquanto outros, sem atinar
com a realidade, andavam as zonzas, rodeando o
corpo sem vida.

Sobreveio, em seguida, subito silencio, ate que


alguem lembrou-se de providenciar a vinda de uma
ambulancia.

Expressao consternada, os companheiros do pastor


assemelhavam-se a um bando de almas abandonadas.

Finalmente, um deles, excitado pelo fanatismo,


exclamou:

- Nosso Senhor Jesus Cristo seja louvado. O pastor


Ananias foi para o Ceu, na gloria do Senhor.

Em coro, os companheiros responderam: -Para


sempre seja louvado!

Entoavam um hino quando a sirene da ambulancia


rompeu a solenidade.

A multidao dispersou-se, retirando-se um por um,


lembrando um final de festa. No espaço, porem, o
panorama era outro.
Ananias foi levado, nao por anjos do Senhor, mas por
irmaos daqui do plano espiritual, encarregados de
transportar os que deixam o mundo e retornam para
nossa patria.

Apesar de tudo, Ananias, olhava, surpreso, para os


que o amparavam. Procurando tomar consciencia,
indagou:

- Quem sao voces? Onde esta minha Bíblia? O irmao


Faustino, o diacono Barnabe, a irma Violeta, onde
estao eles?

Por fim, sem compreender coisa alguma, insistiu, com


o tom de voz azedo:

- Afinal de contas, que brincadeira e essa? Eu estava


pregando na praça Quintino e, de repente, tudo
escureceu. Um abismo se abriu aos meus pe s. Agora,
vejo-me aqui, entre desconhecidos que so sabem
sorrir e nao me explicam nada. Por Deus, o que me
aconteceu?

Ananias olhou a sua volta e viu que os amigos


procuravam sentar-se ao chao, a sombra de uma
arvore frondosa.

- Aqui nao e o lugar onde eu estava! - protestou.

- Tome um pouco de agua, Ananias - disse um dos


companheiros. - Depois de tanto sermao, deve estar
ardendo de sede.
Ananias apanhou uma especie de cuia, oferecida a ele
e bebeu, avidamente, derramando a agua, boca
abaixo, molhando sua vestimenta.

- Agora, por Deus, digam o que aconteceu! Sera que


estou louco? Como e que voces me conhecem?

- Nos o conhecemos ha muito tempo, Ananias.


Acompanhamos sua vida desde que entrou para a
igreja e se tomou diacono.

- Mas, afinal, quem sao voces?

- Este aqui e o Gabriel - disse um deles, apontando


para o companheiro. E eu sou o seu anjo da guarda.

Um breve silencio seguiu-se. Ananias arregalou os


olhos e indagou:

- Gabriel? Anjo da guarda? Que historia e essa? Voces


sao e dois farsantes! Sera que estou sonhando?

Sacudindo a cabeça, concluiu:

- Ah! E isso. O cansaço me venceu no meio do sermao


e, com aquele calor todo, eu dormi!

- Nao, Ananias, voce nao dormiu, nem esta sonhando.


Na realidade, encontra-se voce no mundo espiritual -
disse o que se apresentou como seu anjo da guarda.

- Mundo espiritual?
E, como se acordasse, em sobressalto, exclamou: -
Entao eu morri?

Olhou para os lados, aflito. Curiosos e sorridentes, os


amigos o observavam.

- E' isso mesmo, Ananias, voce morreu para o mundo


dos homens! - falou o que se chamava Gabriel.

- Se eu morri, o que faço aqui com voces no meio


dessa estrada? Nao, nao acredito! Se eu tivesse
morrido, estaria a caminho da Mansao do Senhor, eu
que fui servo fiel do Pai!

E acrescentou, apontando o dedo em riste:

- Olhem, seus enganadores, vamos deixar de


brincadeiras. Se voces me sequestraram, levem-me
logo para casa, que eu tenho mulher e filhos, alem de
um templo para administrar.

- Nao acredita? - disseram, a uma voz, os


companheiros. -Olhe para baixo.

E apontaram para uma ribanceira, a beira da estrada,


onde a vista se perdia.

Aos poucos, Ananias vislumbrou a ultima cena de sua


vida. Na praça, pregava as palavras do Senhor,
erguendo a Bíblia e ameaçando os pobres mortais
com as penas do inferno. Viu, entao, quando o
colapso o acometeu, o corpo caindo ao cha o, a alma o
abandonando, carregada por seus novos amigos. Os
irmaos Faustino e Violeta e o diacono Barnabe
rodeavam seu corpo, as tontas, debulhados em
lagrimas. Ouviu em seguida as primeiras notas do
hino, entoado por vozes fanhosas, e as palavras do
diacono, informando ao povo que ele, o pastor
Ananias, fora para o ce u, na gloria do Senhor.

A visao, de repente, se desfez. Ananias, cabisbaixo,


voltou-se aos companheiros e retrucou:

- E' verdade, entao eu morri - falou, tristemente.

- Nao, Ananias, voce nao morreu! - disse Gabriel.

- Ah, isso e demais! Chega de chacota! Eu mesmo


acabei de ver tudo.

E, convicto, confabulou:

- So me resta agora saber como encontrar a Mansao


do Senhor.

- Na realidade, voce nao morreu. Ao contrario, agora


esta mais vivo do que nunca. Voce acabou de
regressar a vida espiritual. O que aconteceu foi que
voce desencarnou.

- Desencarnei? Isso e coisa do espiritismo.

- Isso mesmo, Ananias, e afirmaçao do espiritismo.


Nao enxerga a realidade? Vamos, o que voce precisa e
aprender muitas coisas que, alias, encontram-se na
Bíblia.
Levantaram-se, segurando Ananias pelos braços e
seguiram com ele estrada afora, falando da vida
espiritual, do desenlace, da reencarnaça o, das esferas
espirituais. Referiam-se aquele mundo que, Ananias,
aos poucos, parecia reconhecer de outras vidas.

- Quer dizer que eu nao vou para o Ceu, apesar de


todo o meu trabalho na igreja? - perguntou o ex-
pastor, aflito, quando alcançavam as portas de uma
cidade desconhecida.

- Por enquanto voce ficara aqui, internado nesta Casa


Transitoria, preparando-se para adaptar-se a uma
nova vida espiritual. Mais tarde, em poucos anos,
recomeçara uma nova encarnaçao.

Os tres mantiveram-se em silencio por alguns


instantes. Logo Gabriel continuou:

- Quando voce estiver preparado, voltara a Terra.


Voce vai trabalhar num centro espírita. Sera um
medium de cura.

- Num centro espírita? - perguntou Ananias,


apavorado.

- Sim, irmao Ananias, num centro espírita. La se


entregara, de corpo e alma, a pratica da caridade,
curando os enfermos do corpo e da alma. Vai
recuperar o tempo perdido, quando gastava horas,
inutilmente, ao acompanhamento de bumbos, pratos
e clarinetas, atormentando a si proprio e aos outros
com ameaças de fogo eterno. A nao ser que voce, por
livre-arbítrio, queira mudar o rumo das coisas.

E, despedindo-se, Gabriel arrematou:

- Agora, vamos deixa -lo. Logo outro irmao vira busca -


lo.
- Mas, nao se esqueça, irmao Ananias, ha uma
exigencia para entrarmos no reino dos Ceus: amar ao
proximo como Jesus nos amou, divulgando o
aprendizado de amor e paz que o Mestre nos legou.

Irmao X
CAPITULO
16 - A
APOSTA

CAPITULO 16 - A APOSTA
Uma antiga lenda dizia que os homens nao se
entendiam e que a palavra do Mestre nao era, ainda,
compreendida.
Os anjos, mensageiros do Senhor, reuniram-se e
resolveram levar uma nova advertencia aos pobres e
presunçosos mortais.

Gabriel, o mais categorizado, disposto de pronto a


descer ao planeta, despediu-se dos demais trazendo a
mensagem que, no seu entender, faria reviver o
Senhor no espírito dos homens.

Descrendo no sucesso da missao, os habitantes do


Mais Alto apostaram que o anjo Gabriel nao seria
ouvido e retornaria ao Ceu, tal qual uma ave
depenada.

O arcanjo, que ainda na o perdera a fe na


Humanidade, sorriu da pilheria* e, mergulhando na
atmosfera azul que envolvia o orbe, iniciou a descida.

Viu-se, logo, em espessa barreira de trevas, como se


nuvens tempestuosas ameaçassem destruir tudo em
volta.

Finalmente o mensageiro celeste pousou na Terra.


Mal tocou o chao, viu-se transformado em homem
comum, sentindo o peso do corpo e a densidade da
atmosfera.

Estranhando a nova condiçao, dispos-se a iniciar sua


missao, admitindo com dificuldade que, passados
tantos seculos, a maioria dos homens, ainda nao
praticava as liçoes do Evangelho.

Caminhando ao acaso, perdido na estrada, parou a


porta de uma choupana, em que vislumbrou, pela
janela, a luz de um lampiao, que derramava ao redor
sua fraca claridade.

Tomado de coragem, bateu de leve na porta, na


intençao de pedir agasalho e pousada.

Ouvindo as batidas, levantou-se um homem, que se


alimentava em companhia de sua mulher. Sem abrir a
porta, indagou, receoso:

- Quem esta aí a essa hora?


- Um pobre viajante, morto de fome! - respondeu o
anjo.

- Nao sera, por acaso, algum assaltante? - indagou o


homem.

- Nao! Na verdade, nada possuo para fazer mal, nem


sequer uma faca - retrucou, de novo, Gabriel. - Se
abrir a porta e me der comida e pousada para esta
noite, provarei o que digo. Deus, na certa, vai
recompensa -lo por este ato de caridade.

- Nao acredito em voce e muito menos em seu Deus.


Pode ser um ladrao astucioso, que ira matar-me e a
minha mulher, roubando as minhas poucas moedas,
ganhas com o suor do meu rosto. Nao abrirei a porta!
Pode ir andando antes que eu o mate com o meu
machado -respondeu o homem, com a voz
ameaçadora.

Compreendendo inutil a insistencia, Gabriel afastou-


se. Uma nuvem de tristeza toldou o seu semblante, ha
pouco tao esperançoso.

Novamente a caminho, encontrou, mais adiante,


outro casebre.

Rememorando a afirmativa de Jesus, de que a porta


se abre a quem nela bater, e a quem pedir sera dado,
Gabriel tomou coragem e bateu, dessa vez com mais
animo.
A exemplo da primeira vez, alguem indagou, atras da
porta:

- Quem esta aí?

E Gabriel respondeu nos mesmos termos:

- Sou um pobre viajante, morto de fome, que pede


comida e pousada para esta noite.

- Um viajante? - inquiriu a voz rude. - Por acaso tem


dinheiro para pagar a comida e a pousada?

- Sou um pobre viajante - respondeu Gabriel,


sentindo uma nova onda de tristeza cobrir seu
coraçao.

- Se nao tem dinheiro, poe-se a caminho, vagabundo,


antes que eu lhe desanque com umas bordoadas.
Decerto vai querer nos matar e nos roubar quando
adormecermos.

- Juro por Deus que sou um bom homem - implorou,


uma vez mais, o arcanjo.

- E o que vale isso? Deus e uma mentira. E uma


invençao dos sabidos para explorar a nossa
ignorancia.

- Entao nao aprendeu os ensinamentos de Jesus? O


homem deu uma gargalhada:

- Jesus foi um impostor. O que conseguiu foi bater


com os costados na cruz. Nao vou nessa conversa. E,
olha, va embora que preciso dormir!

Gabriel embrenhou-se, desanimado no meio da noite,


estrada adiante, e so encontrou abrigo debaixo de
uma arvore.

Um profundo silencio envolvia a natureza.

Aos poucos, cansado e desiludido, adormeceu.

Algumas horas depois, a luz do Sol bateu, de repente,


em seu rosto. Acordando, estremunhado*, procurou
dessedentar-se* no riacho que corria perto, no qual
as aguas cristalinas deslizavam entre os seixos
arredondados.

Refeito, prosseguiu a caminhada, na esperança de


encontrar alguem que desse a ele o testemunho de fe
no Messias.

Ia o Sol bem alto, sem que viva alma aparecesse,


quando dois homens dele se aproximaram.

- Para onde vai? - indagaram.

- Ando por aí - respondeu Gabriel. - Procuro alguem


de confiança que possa guardar o meu tesouro. Nao
posso continuar com ele sem ter onde deixa -lo.

- Guardar o seu tesouro? - indagaram os homens,


surpresos e cheios de cobiça. - Entao tem um
tesouro? E onde esta ?
E, de imediato o atacaram rasgando suas vestes, a
procura do tal tesouro.

- Nao passa de um mentiroso, de um farsante! -


gritavam, enquanto o espancavam com pedaços de
pau. - Nao tem coisa alguma!

Certificando-se de que nao era dono de nenhum


haver, abandonaram-no agonizante a margem da
estrada. Acercando-se mais dele, que mal se mexia, os
malfeitores ajuntaram ainda novas ameaças:

- Se na verdade tem algum tesouro escondido, fale


onde esta. Certamente o escondeu em algum lugar,
em alguma gruta secreta.

Padecendo de dores, mal podendo articular as


palavras, Gabriel retrucou:

-Tenho-o sim.

E, apontando para o coraçao, enunciou:

- Esta aqui. Este e o meu tesouro. Nele guardo o amor


que Jesus pregou aos homens. Queria da -lo a alguem
que o distribuísse a outros irmaos.

E Ja em agonia:

- O amor e o maior tesouro que se pode ter na face da


Terra. O arcanjo retornou ao Ceu.
- Voce tem razao -, disse a Ezequiel. - Os homens nao
aprenderam ainda as liçoes do Mestre.

Diz a lenda que, depois de sentida prece, aqueles


habitantes do Mais Alto, banhados pela luz divina,
animaram-se a traçar novos planos para sensibilizar
o coraçao dos homens.

Irmao X
CAPITULO
17 - A
CONFISSAO
DO
PADRE
BENEDITO

CAPITULO 17 - A CONFISSAO DO PADRE BENEDITO


Atacado de pertinaz molestia, Eleuterio sentia
aproximar-se a hora fatal. Em sua memoria,
milagrosamente rejuvenescida, corriam cenas de sua
vida, nem sempre ornada de virtudes. Afligia-se com
a reminiscencia dos tempos idos, quase certo de que
as visoes denunciavam seus ultimos momentos na
Terra.

Rodeavam seu leito, enleados de tristeza e


amortalhados em lagrimas, a esposa e os filhos, ja
maduros, que pouca falta sentiriam dele, que dera
tudo a eles em vida, reservando para si apenas o
suficiente para um final de vida comodo e digno.

Respirava em haustos, sentindo apagar-se a luz dos


olhos; as palpebras pesavam como chumbo, tremulas
pelo esforço de mante -las abertas.

Dona Antonia, sua esposa, desfiava entre os dedos as


contas do rosa rio, invocando nos misterios a piedade
do Pai Santíssimo pela alma daquele que, sempre o
soubera, nao foi fiel no matrimonio, nem muito
correto como comerciante. Mesmo assim, com os
labios tremulos, ela rogava que o reino dos Ceus nao
fosse negado a ele.

Eleuterio, apesar de tudo, manifestou algumas


virtudes. Acreditava em Deus, frequentava
assiduamente a santa missa e confessava-se,
regularmente, dos pecados veniais* e mortais que,
certamente, pesavam, constantemente, na sua alma.
No mais, se nao fora um santo varao, tambem um
perdido nao houvera sido.

Era, assim, semelhante a um mortal comum.

Enquanto orava, a vida do marido ia por um fio, a


espera de que, a qualquer momento, viessem a corta -
la os espí ritos designados pelo Senhor.

Nesse ínterim, antes do desenlace fatal, surgiu a


frente de Eleuterio, enchendo-lhe a visao agonica*, o
padre Benedito Cruz, velho conhecido dos dias
passados, a quem muito se confessara.

Certo de que ja estava na hora de ir, em face da


apariçao da alma do velho sacerdote, Eleute rio sorriu
com satisfaçao, cogitando, feliz, que o Senhor levara
em conta os seus sentimentos religiosos. Prova disso
e que enviara, para recebe -lo, o vigario da Igreja de
Sao Vicente em que ele, Eleuterio, pelo menos uma
vez por me s, redimia-se diante de Deus, expurgando
o mal que insistia em acumular na alma.

Em inaudível dialogo com o padre, em espírito, disse:

"Pelo que eu vejo, vai levar-me em sua companhia


para o Ceu!"

O sacerdote sorriu, olhar piedoso e um tanto


desconsolado, mas nao replicou. Limitou-se a olhar
para a alma de seu antigo paroquiano, que se
esforçava em se libertar do corpo.

"Entao?", prosseguiu Eleuterio, observando a mudez


e o ar estranho do sacerdote. "Nao me diz nada? Nem
ao menos me estende as maos para ajudar-me a
abandonar a carcaça? Olhe, eu ja nao me interesso
pelas coisas do mundo e estou ansioso para conhecer
as belezas do Ceu e confirmar se sao, realmente,
como o padre pregava em seus sermoes."

O sacerdote, porem, continuava quedo, a olhar o


pobre homem. De sua fisionomia emanava profunda
tristeza.

"Padre Benedito!", recomeçou Eleuterio, aflito com a


atitude do vigario, que parecia nao muito satisfeito.
"Afinal, o que esta acontecendo? Vejo em seu rosto
algo que me deixa apreensivo. Sera que o senhor nao
tem boas notícias? Sera que, apesar das missas, das
confissoes, das comunhoes e do dinheiro que, tantas
vezes, depositei na caixa das almas, nao sou digno de
ser recebido pelo Senhor?"

Eleuterio perguntou, temeroso de que o padre


respondesse com a verdade e que, em vez de ir ao
paraíso, tivesse, ainda, de fazer um estagio nas altas
temperaturas do purgatorio.

Finalmente, emergindo do estado contemplativo, o


padre Benedito abriu a boca, temeroso de desiludir o
amigo. Diante do momento final que se aproximava,
nao havia mais tempo para adiar a revelaçao:

"Meu bom amigo, receio que nao tenha, realmente,


boas notícias."

Depois de uma pausa, acrescentou:

"Em primeiro lugar, quero dizer que na o vim busca -


lo, pois ainda nao me foi dada a sublime missao de
amparar e encaminhar os irmaos na hora do
regresso. Estou aqui com a permissao dos meus
superiores, na condiçao de seu amigo, apenas para
assistir o seu regresso e lhe dar boas-vindas."

"Entao nao e um enviado do Senhor? Nao esta, ainda,


no Ceu, apesar das pregaço es que fez durante a vida
inteira?"

Fisicamente agonizante, Eleuterio mantinha o


espírito lucido diante do inusitado. Imaginava que se
o padre Benedito Cruz nao havia conseguido, ainda,
entrar no reino do Senhor, o que aconteceria a ele,
Eleuterio Rezende da Silva, um simples pecador?

Nao acreditava no que ouvia.

"E isso mesmo, irmao Eleuterio. Nao sou nenhum


enviado do Pai, nao estou no Ceu, nem mesmo em
suas cercanias. Na verdade, de nada me valeram os
anos todos pregando o Evangelho se, poucas vezes,
ou quase nenhuma, segui os caminhos que ensinava
aos meus ouvintes. Quantas vezes passei as noites
insone, lavado em luxuria, pensando nas confissoes
que me faziam certas moçoilas e senhoras. E os
sonhos impudicos? Pensava nas coisas profanas e me
esquecia das coisas santas, embora sempre me
apresentasse como um severo e sisudo pastor para as
almas combalidas e ingenuas."

Apos um pequeno silencio, aduziu:


"Ah, meu amigo, e o dinheiro das almas? A maior
parte eu juntava para mim, depois de satisfazer as
necessidades humanas mais prementes. Guardei o
dinheiro e o deixei trancado num cofre enterrado
debaixo da sacristia, com medo de que alguem
pudesse pilhar-me e deixar-me em dificuldades."

Eleuterio ouvia aquela confissa o, embasbacado.

"Muitas outras coisas eu fiz, amigo Eleuterio, muitas


outras coisas que nem vale a pena recordar. Na
verdade, nao fui aquele sacerdote que todos
admiravam. E, quanto a doutrina que pregava, quanto
engano, quanta ilusao! So aqui, depois de algum
tempo, e que vim aprender a verdade."

Eleuterio, aflito por ver escapar de si a possibilidade


de salvaçao, indagou:

"Muito bem, padre, se nao esta no Ceu, nem no


purgatorio, nem no inferno, onde e que se encontra
sua alma?"

"Em lugar nenhum!", respondeu o padre, angustiado


com a pergunta.

"Em lugar nenhum?", insistiu Eleuterio, estupefato.


"Em algum lugar ha de estar, ora essa! Afinal de
contas, estou morto, mas nao estou doido."

"Quero dizer...", emendou o padre Benedito. "Estou na


erraticidade ."

"E que lugar e esse?"

"Nao e lugar nenhum. E e em todo lugar", retrucou o


vigario, agora se divertindo com a atrapalhaçao de
Eleuterio.

Retomando a seriedade, o padre esclareceu:

"A erraticidade e o espaço espiritual em que ficam


todos os espí ritos que devem reencarnar. Os que
ainda possuem dívidas a saldar ali permanecem, em
preparo, aguardando o momento de retornar a carne
por meio de novo nascimento."
"Meu Deus!", exclamou Eleuterio. "Depois de tanto
sofrer ainda temos de nascer outra vez para pagar
dívidas?"

"Sem duvida!", confirmou o padre Benedito. "E o que


acontecera com todos os que abandonam a Terra sem
cumprir os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus
Cristo."

Eleuterio, cujo espírito ainda continuava, com


dificuldade, preso ao corpo fí sico, permaneceu alguns
segundos sem saber o que pensar.
Nao compreendendo nada do que revelou o antigo
sacerdote, mas concluindo que sua aspiraçao de
alcançar o Ce u se evaporava como num sopro,
desconsolado, resignou-se:

"Se e assim..."

Lançando um olhar amortecido para a mulher e os


filhos, que se debulhavam em lagrimas, exclamou:

"Se eu tenho de voltar para este mundo, permita Deus


que eu encontre, na nova vida, uma mulher igual a
Antonia."

Olhando na direçao da apariçao do padre, invisível


aos demais, ameaçou ressentido:

"Mas que nao apareça nenhum padre Benedito para


levar o meu rico dinheiro e guarda -lo num cofre
debaixo da sacristia."
Irmao X
CAPITULO
18 - A
LAVOURA

CAPITULO 18 - A LAVOURA
Acerquei-me, certa feita, de um grupo de espíritos
que parecia descansar a beira da estrada.

O Sol estava em declínio, ruborizado, mas ainda


espalhando calor. No tempo da Terra, era pouco
menos de cinco horas da tarde.

Retornava de um trabalho que me ocupara,


juntamente com outros irmaos, durante cerca de duas
horas, aprendendo, na pratica, a desligar os fios
fluídicos que atam o espírito ao corpo fí sico dos
encarnados.

Tratava-se de desencarnaça o iminente, e o pobre


enfermo, exaurido em suas forças, mas apegado, em
demasia, ao mundo da materia, relutava em
abandonar o corpo carnal, amedrontado com o futuro
que o aguardava.

Depois do desenlace, em meio a choros e lamentaçoes


dos parentes, o desencarnado ainda em profunda
perturbaçao foi levado, por abnegados companheiros,
para local específico de recuperaçao, em que seriam
eliminados, por processos eletromagne ticos, os
resíduos materiais aderidos ao seu perispírito.
Concluída a tarefa, senti vontade de perambular,
recordando os tempos da minha vida na Terra,
contemplando a natureza, o por-do-sol e sentindo as
primeiras aragens da tarde.

Caminhando, meus pensamentos iam muito distantes.


Foi quando encontrei aquele grupo de irmaos.
Pareciam fatigados, as fisionomias estampando
angustia, ansiedade e desespero.

Aproximei-me. Parecia, entretanto, que nao haviam


notado a minha presença.

Resolvi sentar-me e puxar conversa.

- Boa tarde, amigos! - disse, sorrindo. Volveram os


rostos para o meu lado.

Um deles, em meio ao silencio dos demais,


respondeu-me, sem entusiasmo:

- Boa tarde.
- Os amigos va o para onde? - bisbilhotei. - Quem sabe,
vamos para o mesmo lugar?

- Nao sabemos. Na verdade, parece que estamos


perdidos -retrucou, aflito, o que me respondera ao
cumprimento.

- Perdidos? Mas, entao, nao tem nenhum destino?

- Nao sabemos - disse outro. - Nos trabalhavamos na


lavoura desde o amanhecer. De repente, um barulho
de tiros e a escuridao. Acordamos, longe do campo,
no meio da estrada, sem ninguem por perto.

Apontou para um lado, no chao, mostrando-me


enxadas, pa s, carrinhos-de-mao e regadores.

- Olha moço, sao nossas ferramentas. Estao todas aí.


Outro, mais ansioso, indagou:

- O senhor sabe o que aconteceu com a gente?

Senti cravar-se em mim os olhares angustiados. Nao


era difícil adivinhar. E bastante comum no mundo
espiritual, o encontro com espíritos recem-
desencarnados, que andam ao leu, desinformados de
tudo,
desconhecendo a propria situaçao.

- Bem... - disse eu, ao fim de pouco tempo. - Voces


pensam que ainda estao vivos.

A curiosidade fulgurou-lhes nos olhos cansados.

- O que e que esta dizendo, seu moço?

- Que voces, como eu, ja morreram. Na o sao mais de


came e osso, sa o apenas espíritos.
Espantados, nao despregavam os olhos de mim.

- Espíritos? - perguntaram, em coro.

- E. Voces sao, agora, almas do outro mundo. Uma


afliçao assumiu, em forma de profunda angustia,
medo e estupefaçao, a fisionomia de cada um deles.
Tentando acalma -los, expliquei:

- Quando morre o nosso corpo físico, continuamos


vivos em espírito.

Fiz uma pausa e acrescentei:

- E melhor seguirem comigo. Conheço tudo por aqui e


voces precisam aprender muita coisa para depois
recomeçarem na lavoura.

- Na lavoura? - indagaram, a uma voz. O senhor nao


disse que agora nao somos mais gente?

- Gente de carne e osso - retruquei. - Mas espíritos


nao deixam de ser gente!

- E espírito trabalha? Todos dizem que quando a


gente morre, a alma descansa!

- Pelo contrario, meus amigos. Agora e que tudo vai


começar. Mas nao tenham medo. A lavoura daqui e
diferente.

Relutantes e algo desconfiados, acabaram seguindo-


me. Depois de uma breve caminhada, ja um pouco
adiante, divisamos as cercas de um imenso trigal.

- Vejam la, amigos, a lavoura esta perto. E' um campo


em que muita gente trabalha.
No horizonte, entre douradas espigas, que ondulavam
ao toque leve da brisa e esplendiam em focos de luz,
viam-se centenas de vultos, plantando e ceifando.
Ouvia-se, quase em surdina, modulaçoes de
harmoniosa melodia.

O Sol despedia-se, renteando o cimo de colinas


distantes. Logo as primeiras estrelas surgiram.

- Hoje voces vao descansar da caminhada - disse a


eles. - Mas amanha, logo que o dia surgir, iniciarao um
novo trabalho.
E' preciso, porem, que entendam que sera por pouco
tempo, para que se adaptem a s novas condiçoes. Mais
tarde irao para uma escola aprender muitas coisas
que serao muito uteis para o futuro de todos.

Contemplando a plantaça o, mantinham-se em


profundo silencio.

Para desperta -los a nova realidade, arrematei:

- Voces, que eram simples e humildes lavradores,


continuarao aqui a semear nos campos do Senhor.
Serao os novos seareiros.

Agora descansem, meus amigos. Amanha, juntem os


seus instrumentos, que o Cristo, o capataz do amor,
aguarda-os.

Irmao X
CAPITULO
19 - SHALOM
!

CAPITULO 19 - SHALOM !
Certa ocasiao, quando passava a porta de uma
sinagoga, aqui no mundo espiritual, onde
frequentemente se reunem os adeptos de Moise s,
percebi um dia logo, assaz curioso, entre dois recem-
chegados do plano físico.

Vencido por um ímpeto de curiosidade, remanescente


de minhas lides jornalí sticas, fiquei a escuta.

Dizia um deles, que se apelidava de Efraim, judeu de


meio sangue palestino:

- Olha, Jaco Cohen, sei que te orgulhas de ser um


descendente direto de Abrahao, nosso pai comum,
enquanto eu, segundo pensas, possuo nas veias
sangue espurio.
Entretanto, apesar de tudo, nao te odeio e sei que es,
como eu, vítima dos que, hoje, dominam nossa patria.
Nos dois ja nao somos do mundo dos vivos, e as a guas
do Jordao ja nao banham o nosso corpo, deixado a
secar nas terras a ridas.

Acredito que devemos nos aliar para superar nossas


divergencias.

Jaco Cohen, que ouvira tudo sem dar uma palavra,


olhos caídos no chao, ergueu o rosto e, encarando o
companheiro, retrucou:
- Parece que tens razao, amigo Efraim. A tua
ascendencia arabe fez de ti, praticamente, um judeu
impuro. -
Mas vejo que, apesar disso, tens bom coraçao e es
capaz de esquecer a milenar inimizade de nossos
povos.
- Nao digo que te invejo por isso. Eu tambem lutei nas
colinas da Síria, nos montes do Líbano e nas terras
quentes do Sinai.

Fui mandado para a guerra quando o povo judeu foi


atacado no Yom Kippur.
Morri com o odio fervendo em meu coraçao.
-Agora, porem, estou aqui e ja entendo que a luta
entre os homens, oriunda da ambiçao, da vaidade e
do orgulho, so acarretara, em consequencia, maiores
dores.
- Proponho, pois, estabelecermos, entre nos, a paz
que nao encontramos na Terra.

Olhou firme no rosto de Efraim e disse:

- Na verdade, somos todos irmaos. Perseguimos, em


nossas encarnaçoes, o mesmo ideal evolutivo.
- Que importa que arabes e israelitas, movidos pela
ignorancia e pelo fanatismo, digladiem-se no deserto
para o domínio de um pedaço de terra esteril, quando
maior e mais a rido e o deserto de seus coraçoes?
O nosso sangue tem uma origem comum, assim como
o nosso espírito, que vem de Deus, ou de Jeova.
- Caminhamos, por milenios, pelas mesmas estradas,
sedentos, famintos e em desespero. As nossas chagas
representam as mesmas dores e os mesmos
padecimentos.
- Enfim, somos como duas partes de uma so unidade.
Porque, pois, essa inimizade, esse morticínio, esse
odio que ameaça envolver toda a Humanidade?

Jaco Cohen calou-se, estendeu a mao a Efraim


convidando-o a entrar na sinagoga e disse com os
olhos brilhando:

- Esta e a casa do Senhor. Entremos juntos, Efraim,


para orarmos. Um dia, todos os povos se reunirao no
mesmo templo para louvar a Deus.

E, sorrindo, exclamou: -Shalom!

- Shalom! - respondeu Efraim.

Como duas sombras amigas, ambos desapareceram


portas adentro da sinagoga.

Irmao X
CAPITULO
20 - 18 DE
ABRIL

CAPITULO 20 - 18 DE ABRIL
Hoje, no mundo espiritual, em plano mais elevado,
reunem-se, em festiva comemoraçao, os arautos da
Boa Nova, cuja missao e conduzir a Humanidade aos
caminhos da luz e da verdade.
Nao e, todavia, como na Terra, quando o autor de uma
obra a ser lançada nas livrarias convida amigos e
escritores para a tarde de autografos, na qual se
exaltam meritos literarios e vaidades humanas.

O evento de hoje, no Mundo Maior, tem outro colorido


e significado.
Nao e um encontro para o autografo de um livro
comum, mas uma reuniao de líderes espirituais.
Inspirados no Mestre, considerando o balanço das
atividades espirituais, no alvorecer de um novo
seculo, sob a influencia de O Livro dos Espíritos.

Confraternizam-se, envoltos em halos de luz, os


apostolos da Terceira Revelaça o - Allan Kardec, Denis,
Delanne, Flamarion, Bezerra, Barsanulfo, Andre Luiz,
Emmanuel, Joanna de Angelis, De Rochas, Guillon e
tantos outros que acenderam nos coraço es e nos
espíritos a luz da verdade e da libertaçao.
- Mensagem recebida em 18 de abril de 1979, data
comemorativa ao 122º aniversario da publicaçao de
O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec (N.A.).
Unem-se, em esplendores de paz, em amplexos de
fraternidade e de amor porque, construtores do novo
mundo que ja se anuncia, transbordam de felicidade
em contribuir para que o Consolador Prometido, o
Paracleto, consolide-se na Terra Bendita de Santa
Cruz que, um dia, sera a pa tria do Evangelho e o
coraçao do Mundo.
O evento e sublime e dele participa o Mestre,
irradiando sua luz, sobre a terra abençoada da
caridade e do amor.
Irmao X
CAPITULO
21 - O
ENCONTRO

CAPITULO 21 - O ENCONTRO
A tarde, Cristo foro Moscoso, apresentava-se sempre
pontual, a porta da Confeitaria Colombo.

Janota, envergava o costumeiro terno listado, luzindo;


no bolso do colete, a corrente de ouro. Alisando os
bigodes de pontas reviradas, apreciava o desfile das
senhoras e senhoritas, cuja visao despertava a gula,
nao somente dos seus olhos, mas tambem do coraçao
e de sua alma.

A bengala em que se apoiava, encastoada por uma


cabeça de lea o prateada, de vez em quando resvalava
sob o seu peso, ameaçando-o com um ridículo
tropeçao.

Para o velho matreiro - abusada raposa dos lares


alheios, cujas virtudes conjugais por vezes cediam
lugar a s sortidas clandestinas -as horas custavam a
passar.

Impaciente, sem que ninguem aparecesse para um


dedo de prosa ou uma anedota picante, eis que lhe
surge, pela frente, um velho conhecido dos tempos de
boemia.
Era o Antunes, com quem, por inumeras vezes,
arquitetara planos, mais para satisfazer momentos de
inconciliavel melancolia do que, propriamente,
causar malefícios aos maridos mais desavisados.

Assustou-se Cristoforo com a apariçao, visto que, de


muito, Antunes passara para a melhor, num belo dia
de sol, quando menos esperava, deixando viuva a
irrequieta Dulcelinda e orfaos dois rapazes, quase
adolescentes.

"Como?", perguntou-se Cristoforo. Se o Antunes havia


falecido, como poderia estar ali, na sua frente, na
porta da Colombo, em plena rua Gonçalves Dias,
frajola como sempre, com o cravo vermelho na lapela,
marca de sua paixao pelos amores desordenados?

Aproximou-se do velho amigo, que tambe m o vira,


dizendo-lhe com voz inequívoca:

- Cristoforo, voce tambem por aqui? Desde quando


transpuseste as a guas do Letes?

Aquinhoado pela surpresa, respondeu-lhe, com ar


incredulo e meio gago:

- Antunes! E o Antunes, pois nao? Tu nao morreste,


ha tanto tempo, e me apareces aqui pela Colombo,
como um fantasma, para assustar as moçoilas e fazer-
me arrepiar os cabelos?
- Sou eu mesmo! - retrucou-lhe. - Mas nada de ficares
apavorado, pois que tu, tambem, ja na o es do mundo
dos vivos! Como eu, ca estas do lado dos mortos.

Surpresa maior tomou conta de Cristoforo quando o


amigo deu a costumeira sacudidela nos ombros e o
leve tapinha no ventre com que sempre o
cumprimentou nos encontros a beira da calçada.

- Que estas a dizer, o, Antunes? Que eu tambem


morri?

- Claro que sim! - respondeu-lhe o amigo. - Agora


estamos, os dois, como almas perdidas, a pagar os
nossos pecados que, diga-se de passagem, nao foram
poucos.

Cristoforo nao podia crer no que via. E, enquanto


cogitava compreender a situaçao, que ja o
preocupava, acrescentou o Antunes, usando do
mesmo jarga o e da mesma pronuncia que
caracterizava os dois amigos, nascidos em terras de
Alentejo:

- A verdade e essa, meu rapaz: somos dois espíritos,


ou duas almas, como quiseres. Nossos corpos ja se
consumiram debaixo das lajes.

E, com ar de gaiato:

- As nossas viuvas nao perderam tempo e ja se


amarraram a outros gajos e la vivem com outros
amores, talvez mais fie is que os nossos. Quanto a nos,
dentro em pouco estaremos de volta em novos
corpos, para outras vidas. Teremos de recomeçar a
tarefa que deixamos pelo meio, quando perdemos o
nosso rico tempo com namoricos infelizes e com
negocios nem sempre honestos.

- Que esta s a dizer?

- Estou a te dizer que depois da morte, como estas a


ver, ha outra vida. A primeira e a vida do corpo, e
esta, agora, e a vida do espí rito. Depois de algum
tempo ca, na erraticidade, teremos de reencarnar
para continuar o trabalho de aperfeiçoamento do
nosso espírito.

- Reencarnar! Começar outra vez como criança.

- Essa e a lei, Cristoforo. Quem faz as coisas erradas


precisa refaze -las. Em uma nova vida, vamos
melhorar praticando a caridade e amando o nosso
semelhante, em existencia laboriosa, honesta e util.

Prosseguindo, enquanto segurava o amigo pela mao,


conduzindo seus passos, disse:

- Mas o que na o sabes, e que o que me foi proposto


pelos preceptores espirituais: uma vez que fizemos as
mesmas estripulias, sempre juntos, tu e eu seremos
irmaos gemeos.
Cristoforo estancou, arregalou os olhos e exclamou:

- Ora essa! Irmaos gemeos?

- Sim senhor. E e por isso que estava a tua procura,


para dar-te a notícia.

Cristoforo, que ja nao cabia em si de espanto,


continuou parado, sem pestanejar.

- Nao me digas...

- Melhor ainda, sabes quem sera a nossa mae?

- O! Antunes, deixa de brincadeiras.

Desandando em sonora gargalhada e arrastando o


amigo ate se perderem nas sombras, enquanto se
diluíam aos poucos, revelou com o mesmo ar de
pandego:

- Pois vai ser a Dulcelinda, a minha ex-mulher!

Irmao X
CAPITULO
22 - A
RENUNCIA

CAPITULO 22 - A RENUNCIA
Comentava-se, certa vez, nos domínios da
espiritualidade, que um homem muito rico, cuja
fortuna suscitava a cobiça e a inveja dos amigos e de
seu círculo social, renunciou a tudo, ate aos prazeres
da vida, para iniciar nova etapa da existencia.

O fato causou mais escandalo do que se houvesse ele


se apossado, indevidamente, de bens alheios, pois
isso nao seria inedito no meio em que vivia.

Ninguem compreendia o seu gesto de


desprendimento, ou talvez de loucura, como diziam.
Estefanio Moura nao era homem de atitudes largas ou
de sentimentos altruístas.

Conhecido milionario, sagaz e ambicioso, era uma


verdadeira aguia nos negocios. A decisao de Estefanio
explodira como um ato de autentica insanidade.
Incompreensível para aqueles que o conheciam tao
bem e para quem ja havia padecido em suas garras
avidas de lucros.

Nos dias em que os interesses prevalecem sobre


todas as coisas, em que o dinheiro custa os olhos da
cara, renunciar aos bens e aos ganhos, como se
estivesse apenas a jogar na sarjeta algumas moedas,
era uma atitude inacreditavel, que merecia ser
apreciada por uma junta de psiquiatras. Na cidade,
ouviam-se muitas conversas a esse respeito.

"Pois o Estefanio agiu assim", propalavam, incredulos.


Vendeu propriedades e títulos da Bolsa, alienou os
bens adquiridos e os herdados e lavrou um longo
testamento doando tudo a igreja.

Ao que se sabe, conseguiu, a troco das doaçoes,


envergar um habito e ingressar num convento, como
irmao leigo, para aguardar, na humildade, entre rezas
e penitencias, o juízo final.

Tudo o que se dizia era verdade. Da autenticidade dos


fatos nos davam referencia alguns contadores de caso
da espiritualidade, que os coligiam, alias, nas mais
diversas colonias espirituais.

- Estefanio Moura, quando aqui chegou, de volta do


plano material, colheu os frutos de tanta
magnificencia? - indagou um dos que ouviam,
interessado, a conversa.

E outro, curioso, demonstrando ainda pouco


conhecimento:

- Ao despertar, apos a desencarnaçao, certamente foi


levado para um local de paz e de luz? Tanto desapego
pelos bens terrenos deve ter resultado num premio
para o seu espírito.

Ante o silencio do contador de casos, perguntou:

- Pois nao foi Jesus quem disse que aquele que


quisesse se salvar deveria deixar para tra s os bens da
Terra?

- Sim, foi o Mestre - explicou. - Mas assim pretendia


incentivar os homens a se apegarem mais aos bens
espirituais, olvidando os do mundo e enriquecendo o
coraçao com as virtudes da caridade, do amor, da
Humanidade, da abnegaçao e da renuncia.
Um ouvinte, tambem interessado na questao,
interpelou:

- O Estefanio, sendo muito rico e conseguindo


libertar-se das coisas do mundo, nao teve o seu
merito reconhecido? Nao foi para um plano elevado?

- O nosso Estefanio ate hoje anda por aí, na


erraticidade, pensando, sem compreender o que
aconteceu. E o pior e que, revoltado, grita aos altos
brados, nas esquinas do umbral, que pregaram uma
peça nele, um autentico "conto do vigario".
Induziram-no a renuncia de tudo para usufruírem
dos seus bens, amealhados com tanta garra,
esquecendo-se, todavia, dos juros elevados que
cobrava, dos seus negocios inescrupulosos, que
lesaram ate o erario publico. Prosseguindo ante a
assistencia atenta, esclareceu: O pobre Estefanio foi
mesmo iludido, mas por si mesmo, imaginando que,
ao doar sua fortuna a igreja, iria assegurar uma
cadeira cativa na Mansao do Pai. No entanto, sua
fortuna acumulou-se ilicitamente. Ele nao se apiedava
dos pobres devedores que nao conseguiam pagar
sequer os juros dos emprestimos. Em seu tesouro
acumulavam-se moedas adquiridas com as lagrimas
dos semelhantes, por intermedio da corrupçao de
maus servidores pu blicos e tambem com a
exploraçao de negocios escusos. Ao renunciar aos
bens adquiridos, ja no fim da vida, em vez de seguir a
Jesus, despojando-se dos haveres superfluos em favor
dos necessitados, doou-os, por interesse proprio, a
uma riquíssima instituiçao, a fim de garantir-se,
reservando um lugar no reino dos Ceus.

Ainda dessa vez, Estefanio realizou, apenas, mais um


dos seus negocios.
Irmao X
CAPITULO
23 - AMOR
AS AVESSAS

CAPITULO 23 - AMOR AS AVESSAS


Romualdo Silveira, em espírito, encontrava-se a beira
de um rio, gozando as delícias da sombra de um
ingazeiro, quando dele se aproximou, esbaforido, com
os olhos esgazeados pelo medo, outro espírito que
parecia fugir de alguem que o perseguia.

- Que vem fazer aqui, irmao, correndo dessa maneira


e sem o menor cuidado por espantar os peixes? -
indagou.

- Ajude-me, por favor! Estou sendo perseguido por


um inimigo que quer me matar!

- Calma, sente-se - convidou o pescador, retirando o


caniço da agua e deixando-o a margem. - Quem quer
mata-lo e por que?

Atemorizado, o espírito olhava, de esguelha, para os


lados. Tremiam-lhe as maos como varas verdes e um
suor grosso escorria do seu rosto afogueado.

- E' ele. E' o Joca Batista. Jurou-me de morte e nao me


deixa em paz. Onde estou, ele aparece, feito um
fantasma, de faca em punho, ameaçando arrancar-me
o coraçao.

- Entao foi muito grave o que o irmao fez, para que


esse tal de Joca lhe guarde tanto odio - disse
Romualdo, interessado no caso.

- Eu? Nao fiz nada... - retrucou, reticente, o fugitivo,


procurando ocultar-se mais a visao de quem viesse
pela estrada.

- Nao pode ser, amigo. Ninguem alimenta tanto


rancor por outrem sem que nao haja uma causa, um
motivo qualquer. Mas, a proposito, como e o seu
nome, uma vez que procura a minha ajuda?

- Desculpe-me. Meu nome e Fulgencio. Doutor


Fulgencio. Sou advogado e estou envolvido em uma
situaçao muito embaraçosa.

- Explique-se melhor, meu amigo.

- O fato e que eu providenciava a separaçao judicial


do Joaquim Batista, meu amigo de infancia, a quem
tratava por Joca, quando, por infelicidade, apaixonei-
me por sua esposa.

- Compreendo - disse Romualdo. - O amigo nao


resistiu aos encantos da cliente e acabou traindo, nao
so o velho amigo, como tambem a codigo de etica.

- Acontece que nao fui o culpado - escusou-se o


doutor Fulgencio. - Foi ela quem tramou tudo. Numa
tarde, estavamos em meu escritorio, quando o Joca,
enfurecido, entrou violentamente, forçando a porta,
foi tudo muito rapido. Avançou contra mim,
arrancando-me a esposa dos braços, desferindo-me
varios golpes de faca. Felizmente, consegui derruba -
lo e saí correndo, escada abaixo. O Joca, entretanto,
nao desistiu e ate agora nao parou de me perseguir.
Eu o vi, faz pouco tempo, com a faca na mao
esquadrinhando tudo, a minha procura.

- Muito bem, caro doutor Fulgencio, nada ha a temer.


Seu inimigo nao o encontrara por aqui.

- Ora, graças a Deus! - suspirou aliviado.


- Sim, graças a Deus. Mas e preciso que compreenda
uma coisa: o Joca nao o encontrara, simplesmente,
porque ainda esta vivo e voce esta morto.

- Morto, eu? - indagou, surpreso, doutor Fulgencio. -


Sinto-me perfeitamente vivo.

E apalpou-se todo, a demonstrar sua convicçao.

- Sim, meu amigo. As facadas que voce levou foram


fatais e voce acabou morrendo no hospital. Voce esta
aqui em espírito e, ignorando a natureza do seu
estado, julga que ainda se encontra la, no mundo dos
homens.

Sem acreditar muito no que dizia Romualdo Silveira,


indagou:
- E voce, tambem e um espírito?

- Igualzinho a voce, meu caro.

- Entao, o que fazia pescando?

- Estava a sua espera. Por missao que me foi dada, ja


sabendo de tudo, aguardava sua chegada para
encaminha -lo a um lugar em que todos os fatos, e
suas razoes, serao esclarecidos.

- Quem o enviou? - indagou, novamente, desconfiado.

- Uma pessoa que o ama profundamente e que, por se


encontrar em plano espiritual muito elevado, nao
pode incumbir-se pessoalmente da tarefa.

Doutor Fulgencio pensou um poucoe retrucou:

- Nao tenho a menor ideia de quem seja.

- Nao pode ter mesmo. Voce a esqueceu


completamente. Ela retornou ao mundo dos espíritos
quando voce contava apenas cinco anos.

Talvez tocado por uma intuiçao, ele exclamou: -Santo


Deus! E' minha mae!

- Acertou, caro Fulgencio. Foi mesmo sua mae. Aflita


com o seu sofrimento, conseguiu permissao para
solicitar o meu concurso.

Romualdo Silveira, enquanto apreciava a cara de


espanto do advogado, acrescentou, sorrindo:

- E aqui estou. Mas, enquanto esperava, improvisei


um caniço e pescava neste rio, a sombra amiga deste
velho ingazeiro!

- Entao estou livre da vingança do Joca?

- Por enquanto, parece que sim. Depende de voce.


Nao se deixe arrastar por outros inimigos que vivem
nas trevas do mundo espiritual. Para isso, e
necessario reformular os seus conceitos morais, a luz
do Evangelho, a fim de que, ao voltar a Terra, nao
incida nos mesmos erros.

- Voltar a Terra?

Parecendo desesperado, perguntou:

- Mas e o Joca?
- Nada receie. Quando isso acontecer, o Joca ja estara
aqui, tambem em espírito. E voce, do lado de la,
reencarnado!

- Mais uma vez, graças a Deus!

- Na proxima encarnaçao, se quiser ficar livre de


novas complicaçoes, respeite a mulher do proximo.

Finalizando, levantou-se, pegando o doutor Fulgencio


pelo braço e recomendou:
- Lembre-se sempre, meu caro amigo, nao esqueça de
amar o proximo como a si mesmo.
IRMAO X
CAPITULO
24 -
PALAVRAS
SIMPLES

CAPITULO 24 - PALAVRAS SIMPLES


Nao estranhe quando a morte surgir, sorrateira, em
sua porta.

Ela vem para dizer que voce e um espírito imortal e


que o mundo da materia no qual se encontra e,
apenas, um estagio de aprendizado.

E, ao preparar a mala para a grande viagem, entrega,


com o passaporte, sua folha corrida.

Na fronteira do novo mundo, os agentes da aduana


examinarao sua ficha para certificarem-se se voce
nao e mais um clandestino que precisa retornar a
Terra.
Conte bem seus dias em vida para que a morte nao o
surpreenda sem que voce tenha feito algo de util.

No espaço, para onde todos vao, cada minuto da


existencia terrena e registrado com o mesmo rigor
dos velhos relogios de parede.
O pendulo jamais pa ra na sua monotona viagem de ir
e vir, porque na eterna caminhada, o tempo esta
sempre começando.
Conte, portanto, muito bem os seus dias na esfera
material, para que, quando a morte chegar, sorrateira,
em sua porta, voce esteja pronto para a longa viagem,
cuja volta dependera, apenas, de voce mesmo.
Plante no seu jardim nao apenas rosas para as ofertar
as mulheres que transitam em sua vida.
Ao lado delas, cultive, tambem, um pomar, em que
possa colher frutos que ofertara ao faminto.

Se as rosas enchem de perfume os sentidos, os frutos


doados aos que tem fome alimentam seu espí rito com
as bençaos do Senhor.

Quem sabe, quando regressar ao mundo espiritual,


voce necessite muito mais do alimento para a alma do
que do perfume das rosas.
Rosas que, ao serem colhidas, sempre ferem nossas
maos.
Caminhe para a luz em busca de Jesus enquanto as
trevas da morte nao o envolvem completamente.

Ao descer a cortina, sem as ilusoes que iluminavam o


palco de sua vida, voce vai tropeçar nos desvaos do
camarim, sem que ninguem possa evitar sua queda.

Nao se iluda, portanto, com os aplausos da plateia,


nem com as lamurias ouvidas nos corredores.
Depois do espetaculo, o teatro vazio, so com sua
sombra, o eco dos aplausos sera apenas uma
lembrança fugidia.
O que vai apoia -lo nos passos incertos e cansados
sera a luz da candeia que levara em suas ma os.
Sombra e luz. Dor e sorriso.

Somente voce e o dono do seu destino. Deus sanciona


apenas o que voce decidir.
Mas, lembre-se de que se escolher mal, precisara
repetir a experiencia, entre sombras e dores, quantas
vezes forem necessarias ate encontrar a luz e voltar a
sorrir.
Irmao X

CAPITULO
25 - AS
COISAS DO
CEU

CAPITULO 25 - AS COISAS DO CEU


Quando Jesus pregava em Cafarnaum, dele se
aproximou um homem e disse:

- Mestre, tu que nos falas sempre das coisas do Ceu,


por que nao nos dizes, tambe m das coisas da Terra?
- Por acaso a vida no Ceu sera melhor que a que
levamos neste mundo?

Olhando-o com piedade, pois sabia o Mestre ser


aquele o enviado dos fariseus para o confundir
perante o povo, respondeu:

- Que sabes das coisas deste mundo?


- Tambem, por acaso, possuis tudo o que desejas, sem
dores nem sofrimento, sem humilhaçoes e
ingratidoes?

Os que circundavam o Mestre ajuntaram-se mais,


movidos pela curiosidade e pela coragem daquele
que se atrevera a interpelar o rabino.

Aguardaram, ansiosos, as explicaçoes do pobre


homem.

Sem condiçoes de continuar o dialogo, ele afastou-se


amedrontado, imaginando a reaçao dos fariseus
diante do seu fracasso.
Foi quando Jesus, olhando-o mansamente, esclareceu:

- Falo mais das coisas do Ceu porque, assim o


fazendo, falo tambem das coisas da Terra.
- Os que me entendem sabera o que so ingressarao na
Casa de Meu Pai depois de passar por todas as
experiencias deste mundo.
- E, se as conhecendo e sabendo-as, houverem
purificado sua alma, alcançara o a Deus.
- Porque e necessa rio que se nasça mais de uma vez e
se aprenda a amar o proximo como a si mesmo.
- E, batendo-se a porta da Casa do Pai, ela se abrira de
par em par.
- Assim as coisas da Terra estao implícitas nas do
Ceu.
- Melhor sera que eu vos fale destas ultimas, que
refletem a bem-aventurança, pois das primeiras
recordam somente as dores e os padecimentos.
- Mas se eu vim pregar a paz e o amor, e disso que eu
devo falar, eu sou a luz do mundo, o caminho, a
verdade e a vida e, por mim, todos alcançara o o reino
dos Ceus.
Irmao X
CAPITULO 26
O HOMEM
QUE FICOU
LIVRE

CAPITULO 26 - O HOMEM QUE FICOU LIVRE


Apos cumprir longa pena na prisao, Zacarias Bento
da Silva, o Bentao, como era conhecido em virtude de
seu porte atletico, sentiu que era chegada a hora de
prestar contas ao Pai por tudo o que fizera durante a
caminhada terrena.

Desde os primeiros anos de detença o, quando a


revolta e a ansia de liberdade empolgavam seu
espírito, Bentao se introduzira, na comunidade dos
reclusos, como elemento dos mais perigosos, a
remoer, na consciencia turva, sentimentos de odio e
vingança.

Entretanto, apos trinta anos de prisao, na o foi dos


mais felizes o dia em que recebeu o alvara de soltura.

Sentia-se profundamente enfermo.

Sem a companheira dos primeiros anos, que ja havia


retornado para o lado de ca , ninguem se apresentou
para acolhe -lo no regresso a liberdade.
Sem trabalho, carregando o estigma de ex-detento,
sem amor nem carinho, perambulou, a esmolar aqui e
ali por um prato de comida.
Por ultimo, sem mais esperança, procurou uma
instituiçao espírita, daquelas que, frequentemente
levam o Evangelho as penitenciarias, e que sabia
instalada em uma rua do suburbio.

Em suas lembranças, os seareiros esclareciam aos


internos, amorosamente, a razao das provas e
expiaçoes que os haviam levado a perda da liberdade,
fatos que se prendiam a uma Lei de Causa e Efeito.

Em seu esforço mental, recordou-se de dona Idalina.


Senhora de sorriso bondoso e coraçao puro, aberto as
magoas, e que, semanalmente, ia construindo, no
coraçao de cada um, um edifício de fe , perdao e
humildade.

E foi em virtude dessa continuada açao


evangelizadora que, pouco a pouco, o perigoso
Bentao se converteu em manso cordeiro.

Chovia e ventava, o ceu coriscava, quando Bentao


encontrou, finalmente, a instituiçao que tanto
procurava.

Reconhecendo-o, surpresa por ve -lo em liberdade,


dona Idalina abriu as portas do dispensario de amor.
E vendo, logo, que Bentao, transido de febre, tremia
tambem de frio, deu-lhe remedios e o agasalho de
que dispunha, na incerteza, porem, de que Bentao
sobrevivesse.

Efetivamente, como receava, dois dias depois, o velho


criminoso, quitado o seu tributo a sociedade e a si
mesmo, libertou-se, definitivamente, do ca rcere da
materia sob o olhar compassivo de dona Idalina e de
outras seareiras do Mestre.

A vibraçao das preces, a sua cabeceira, envolveu o


espírito que se descartava do corpo físico.

Do lado de ca nao era mais o velho Bentao quem


ressurgia, mas o Zacarias Bento da Silva, como foi um
dia registrado.
Retornava em espírito, para uma nova existencia,
livre dos problemas materiais.

Amigos que desconhecia receberam-no com efusiva


alegria.

Aureolado de luz, reformado interiormente pelos


ensinos do Evangelho a luz do Espiritismo, Zacarias
iniciou longa viagem em busca de novas paragens*.

Antes de partir, dona Idalina percebeu, pela videncia,


sua figura remoçada e um olhar pleno de gratidao
que acenava, entre sorrisos, um adeus em que
cintilaçoes de estrelas refulgiam de seus dedos num
gesto de paz e amor.

Irmao X
CAPITULO
27 - O
INVERNO

CAPITULO 27 - O INVERNO
E inverno, o ceu se apresenta nebuloso, o sol mal
consegue romper a cortina de nevoa que acoberta as
cidades e os campos, enquanto a folhagem queda,
amortecida pelo frio.

Irmaos que vagueiam ao desabrigo encolhem-se,


rentes as paredes, sob a copa das arvores, deitando-
se as portas das casas e das lojas, envoltos em
retalhos de sacos, ou em folhas de jornais.

O estomago, vazio, contorce-se em dores.


O corpo inteiro, abrigado apenas por farrapos, sente a
corrente de frio amortecendo as carnes flacidas e
magras.

Alguns nao resistem, permitindo que a vida se escoe.

Alguns espíritos, agarrados ao corpo físico, suportam,


ainda, na ilusa o da vida, as tremuras do ar gelado
que, agora, envolve apenas um corpo inerte.

Sao irmaos que, no resgate dos seus debitos,


atravessaram a jornada terrestre em padecimento e
miseria.
Em vidas passadas, ricos e poderosos, o espírito
amortalhado no egoísmo, na vaidade e no orgulho,
desperdiçaram valiosas oportunidades de elevaçao
espiritual assumindo pesados encargos que agora
cumpriam resgatar.

Embora no resguardo da fortuna, no calor da fartura,


interiormente eram apenas espíritos forrados pela
frigidez dos sentimentos.
E esse e o pior dos invernos: o que cobre os coraçoes
com o gelo da ganancia e da ambiçao; o que envolve,
com a neve do egoísmo, os espíritos egoístas,
fazendo-os esquecerem-se do amor que devem ao
proximo, por mandamento maior de Jesus; o que os
torna cegos a luz da caridade; aqueles que
compensam, apenas a si mesmos, com o fruto do seu
ganho.

E na chegada ao mundo dos espíritos, em crises de


agonia, que ira o sentir - em vez do calor da lareira do
Mundo Maior - o frio rigoroso do inverno que
envolvera todos aqueles que ignoraram as Leis de
Amor.

Irmao X

CAPITULO
28 - O CEGO
DE NOTRE
DAME

CAPITULO 28 - O CEGO DE NOTRE DAME


Embora nao seja comum a mendicancia ostensiva nas
ruas de Paris, havia um pedinte que se alojara, na
exploraçao da piedade alheia, nos degraus da Igreja
de Notre Dame.

Por ali transitavam, todos os dias, turistas de varias


partes do mundo, com os bolsos sempre recheados de
francos.

O pedinte, que atendia pelo nome de Pierre, passava


os dias batendo com a bengala branca nos degraus da
escadaria, implorando, com voz monotona e
envolvida em profunda tristeza:

- Uma esmola para um pobre cego.

Vez por outra, maos caridosas abandonavam, no


chapeu estendido, as moedas que, no final do dia,
engordavam a sacola que o pedinte ocultava em uma
pasta sebosa.

A cada esmola recebida - depois de atentar para o seu


valor, pelas lentes escuras dos oculos - Pierre sorria e
estalava a língua em íntima satisfaçao.

Passaram-se os anos. Possuidor de alentada fortuna,


Pierre entregou, um dia, a alma ao Criador, depois de
um subito colapso, bem a porta da celebre igreja
onde exerceu, com astucia e cinismo, a proveitosa
profissao de falso cego. Tempo sem conta passou o
espírito de Pierre perdido nas vielas escuras da
espiritualidade menor e ate mesmo nas seculares
escadas do templo, quando, certa vez, viu-se fazendo
parte de um grupo que, em fileira, era atendido as
portas de um ambulatorio. Cada um que passava era
registrado.

Sem saber como fora parar ali, ouvia que faziam


perguntas e confrontavam as respostas com dados
existentes numa ficha. Finalmente, chegou sua vez.
Um jovem, fisionomia sorridente, reconheceu-o:

- Ora vejam so, e Pierre, o cego!

E estendendo a mao, saudando-o, disse:

- Voce por aqui? Seja bem-vindo Pierre, ao


Departamento de Encarnaçoes.

E, sem mais esperar, começou a preencher um


enorme boletim com os dados do mendigo, que a
tudo assistia sem compreender o que se passava.
Finalmente, vencendo a estranheza, Pierre
tartamudeou*:

- O amigo me conhece?

E acrescentou, desconfiado:

- Eu nunca o vi em minha vida.

- Conheço-o muito bem, Pierre. Voce e o cego, alias, o


falso cego, que mendigava na Notre Dame. Sei ate
que, nessa pratica, acumulou uma boa fortuna.

Sem disfarçar a ironia, prosseguiu para o espanto de


Pierre:

- Voce nao me via, pois era cego, nao era? Durante


muitos anos eu assisti a s suas atividades, enganando
os credulos que iam a igreja, enquanto, atras das
lentes escuras, seus olhos gulosos pareciam rir dos
ingenuos que acreditavam em sua cantilena.

- Quem era voce? - indagou Pierre, cada vez mais


surpreso. Um espírito amigo, seu mentor. Eu era o seu
anjo da guarda, como chamam na Terra os espíritos
encarregados de zelar pelas criaturas. Mas nada
podia fazer para impedir sua esperteza, a nao ser
entristecer-me por voce nao atender a s intuiçoes que
eu lhe transmitia, principalmente durante os sonhos.

- Meu anjo da guarda? Entao muito prazer - retrucou


Pierre, na o ocultando a alegria:

- Uma vez que o amigo era o meu anjo da guarda, sera


que nao pode solucionar a minha situaçao?

- Que situaçao?

- Bem, a minha sacola, aquela que voce bem conhecia.


-Sim?
- Eu a trazia sempre escondida sob a minha blusa.
Depois que eu morri, fiquei sozinho na escuridao,
tropeçando aqui e ali, tateando como um verdadeiro
cego, por lugares escuros, sem o apoio de minha
bengala. Entao, de repente, senti que a minha sacola,
que estava cheia de francos e de muitos dolares, havia
desaparecido!
- Claro que posso ajuda -lo, irmao Pierre.

- Como? - indagou Pierre, esperançoso.

- Quando regressar ao mundo. Voce vai reencarnar,


mas nao sera mais na condiçao de mendigo. Pelo
contrario, conforme consta aqui no boletim, voce
nascera em uma família muito rica.

- Ora graças! - exclamou Pierre, exultante. - Afinal o


Todo-Poderoso lembrou-se do pobre Pierre que
passou a vida inteira sofrendo humilhaçoes e
necessidades.

- O Pai nao se esqueceu de voce, Pierre, como de


resto, nao se esquece de nenhum de seus filhos. So
que, dessa vez, apesar de rico, nao podera gozar de
sua fortuna.

- Como assim? - indagou, com espanto.

- E que voce nascera cego de verdade. E, ainda por


cima, paralítico, impossibilitado de qualquer
movimento.

Enquanto o espírito do ex-mendigo ouvia tudo,


boquiaberto, arrematou o anjo da guarda:

- Recorda-se daquele irmao que tambem rondava os


passantes nas escadas da Notre Dame?

Depois de um esforço de memoria, Pierre confirmou:


- Sim, era o velho Jean, um astuto. Um beberrao.
Prejudicava os meus negocios.

- Recorda-se, tambem, da surra que deu nele,


correndo atra s dele, aos gritos, esquecido de sua
cegueira? Voce o derrubou e desancou-lhe a bengala
nas costas quebrando-lhe a coluna dorsal.
- Sim, eu me lembro - respondeu Pierre, enquanto, em
sua mente, desfilava a visa o do acontecimento. -
Depois disso, o velho Jean desapareceu e deixou-me
livre para pedir minhas esmolas.

- Pois saiba, irmao Pierre, que o velho Jean nao durou


muito. Ficou paralítico em conseque ncia das
bengaladas, morreu logo depois com dores horríveis.

Ante o silencio do anjo da guarda, que o observava


com tristeza, Pierre tambem emudeceu.
E seu espírito, ainda envolto em vibraçoes sombrias,
sentiu-se levado para o interior da sala, onde iniciaria
seu preparo perispiritual para que retornasse a vida
material.

So muito mais tarde e que veio a compreender,


finalmente, as vesperas da reencarnaça o, que o pior
cego e aquele que nao quer ver.

Irmao X
CAPITULO
29 - O
ESCANDALO

CAPITULO 29 - O ESCANDALO
Era um homem chamado Al Khallah, que vivia, na
cidade de Meca, a mercadejar nas cercanias da
grande mesquita, lugar sagrado dos muçulmanos.

Trajando rotipas rotas e sujas, entoava sua cantilena


de sempre, atribuindo a sua mercadoria a melhor
qualidade do mercado, que dizia vender pelo menor
preço.
Mesmo entre os peregrinos que iam a s oraçoes,
atravessando, em caravanas, as areias ardentes do
deserto, eram raros aqueles que se deixavam
enganai- pelo pregao de Al Khallah.
Muitos ate o cobriam de zombarias e o ofendiam com
palavras a speras, nao sendo raros os que o
ameaçavam com socos e pontape s.

O sagaz mercador, portador de um olhar frio,


ganancioso e de falsa suplica, nao possuía as duas
maos, decepadas em praça publica por ordem do
Emir, que o condenou pelo delito de furto.

Aprisionado em flagrante, quando tentava surrupiar a


bolsa de um velho que aparentava riqueza, sua vida
foi poupada por intercessao da propria vítima que,
benevolente, solicitou ao Emir a pena de mutilaçao.

O Alcorao, livro sagrado da religiao muçulmana,


manda que se aplique a pena de amputaçao das ma os
ao que for pilhado na pratica do roubo. E assim foi
feito com Al Khallah.

Impossibilitado de continuar pondo as maos nas


algibeiras alheias, optou pela venda de frutos e
objetos, com o que provia a existencia.

Continuou, contudo, Al Khallah a cobrar preços


extorsivos e a enganar a freguesia no valor dos
trocos, escamoteando, ainda, ao menor descuido,
varias peças vendidas, alem de moedas.

Nessa historia, que se passou ha varios seculos,


deduz-se que a letra da lei nada vale para a reforma
interior da criatura, se o espírito nao a aprende.

Assim, de nada serviu a Al Khallah o castigo que o


aleijou, pois continuou como antes, vítima das
imperfeiço es, a ludibriar o proximo.

O escandalo, como símbolo do mal, e necessario,


disse o Mestre. Mas acrescentou:

Ai daquele, contudo, por quem ele vier. Porque os que


lhe derem causa havera o de sofrer as consequencias,
devido as suas imperfeiço es e a Lei de Causa e Efeito,
que resultara, um dia, na vinda do bem pela
compreensa o e pelo cansaço da dor.

Sem duvida, ha muitos Al Khallah, ainda, por esse


mundo afora, persistindo no mal apesar da liçao
dolorosa que a vida impos a eles.

Irmao X
CAPITULO
30 - O
CATADOR DE
PAPEIS

CAPITULO 30 - O CATADOR DE PAPEIS


Encontrei, certa vez, aqui na espiritualidade, muitos
anos depois da minha passagem para estas paragens,
um companheiro da romagem terrena.

Nao o reconheci quando de minha estada por esses


campos de urtiga, que e o mundo da mate ria, nem
jamais o vira pelas bandas de ca.
Em sua caminhada, vergava o corpo sob o peso de
enorme saco.

Seus passos eram lerdos e de seu peito encovado


suspiros doridos exprimiam-se pela boca murcha e
desdentada.
A barba comprida emprestava a sua fisionomia o
aspecto de um duende a morrer de fome.

De repente, como se nao suportasse mais o peso da


carga, deixou-a arriar ao solo e largou-se, ao lado, a
respirar com dificuldade e afliçao.

Aproximei-me e perguntei:
- Meu irmao, por que carrega uma carga tao pesada?

- Profissao - retrucou. -Profissao?


- Sim, meu amigo. Durante toda a minha vida
carreguei pesados fardos de papel e livros velhos, que
catava no lixo para vender.

- Era, entao, um catador de papeis? Provia o seu


sustento com a venda desse entulho?

- Era o unico recurso, meu amigo. Meu pai, tambem


foi um apanhador de papeis. E, pelo que sei, tambem
o meu avo.

- Entao era uma profissao de família? - indaguei de


novo, mas com uma ponta de ironia.

Abrindo o saco, o homem remexeu nos pedaços de


papelao, e respondeu:

-Pois olha, amigo, o que muita gente joga fora, serviu


para a sobrevivencia da minha mulher e dos meus
filhos.

- E voce sabe ler? - retornei a indagar.

- Mal e mal. Nem terminei o ensino fundamental na


escola publica. Com a morte de meu pai, tive de
procurar trabalho. Com pouca instruçao e sem
qualquer habilitaçao, fui obrigado a retomar a tarefa
do velho. Passei a mao nas sacolas que ele deixou
como unica herança e desandei pelas ruas e
depositos de lixo.
A essa altura da conversa eu ja me sentara a seu lado,
a margem da estrada.

Sentia, entretanto, a humildade e a bondade de


coraçao a cintilarem no espí rito resignado daquele
homem, embora, ainda ignorante.

Por intuiçao, percebi que um espírito benfeitor se


aproximava de nos. Logo o vislumbrei, sorridente, a
dizer-me, em pensamento, que havia chegado o
instante do despertar daquele espírito, que, ao
termino de um período de expiaçao, arrastava-se,
qual mendigo, nas vias da espiritualidade menor.

Sugeriu-me, entao, o benfeitor que eu metesse a mao


no saco de papeis e de la retirasse um livro.

Obedeci, sem compreender a intençao do mentor.

- Que esta fazendo? - indagou o homem, com


estranheza, ja agora menos fatigado.

- Eu estou procurando um livro - respondi-lhe, um


tanto confuso.

- Um livro? Para que?

- Bem. E para oferecer a voce.

- Para mim? Ora essa. Mas tudo o que esta neste saco
me pertence.
- Eu sei, meu amigo. Mas esse livro voce nao conhece.
Eu o retirei, justamente, para que voce nao o venda
com o resto do entulho.
Mostrando o livro a ele, continuei:

- Procure ler, pagina por pa gina, este livro. Quando


terminar a leitura, vera que sua vida estara mudada.

Tudo aconteceu sem que eu esperasse. O livro, que eu


empunhava, começou a resplender. Em vez do odor
fetido que exalava antes, no saco, um suave perfume
de rosas o envolveu.

O mendigo olhou-me como se eu fosse um mago.

- Que livro e esse? - perguntou, incredulo. - Leia-o-


insisti.

Começou a soletrar o título e, a proporçao que


pronunciava as sílabas, vagarosamente, transformava
sua fisionomia, remoçando-se por inteiro.

- O Evangelho Segundo o Espiritismo - disse para si


mesmo, abrindo, em seguida, uma pagina ao acaso.

- Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles e


o reino dos Ce us - lendo para si mesmo, o homem
pronunciava devagar cada uma das palavras.

- Por pobres de espírito Jesus nao se refere aos


homens desprovidos de inteligencia, mas sim aos
humildes.
Ele disse que e deles o reino dos Ceus e nao dos
orgulhosos. - Bebendo na fonte cristalina a a gua pura
do entendimento, transfigurou-se o homem diante de
mim, remoçando e vencendo o peso invisível que
arquejava o seu costado.

Ergueu-se, aos poucos, com o livro nas maos, a face


lívida e renovada e abraçou-me fraternalmente.
Um sorriso sereno tomou conta do seu semblante.
Senti que se preparava, interiormente, para retornar,
fortalecido, a crosta terrestre.
Irmao X
CAPITULO
31 - O FALSO
MERCADOR

CAPITULO 31 - O FALSO MERCADOR


Havia um homem que mercadejava proximo de uma
pequena praça, a margem da rua, suas bugigangas,
anunciando-as como mercadorias de boa
procedencia.

Nesse comercio ao qual se dedicava havia muito


tempo, ja conseguira amealhar apreciavel fortuna, a
medida em que iludia os passantes ao apregoar a
excelencia de seus produtos.

Certo, porem, e que muitos, fascinados pela labia do


habil negociante, nao se apercebiam de que os
objetos adquiridos logo se deterioravam, a ponto de
te-los de jogar no lixo, ou abandona -los nos cantos ou
nas ruas.
Bem-sucedido, o homem aos poucos se envaideceu,
desafiando, grosseiramente, os comerciantes
vizinhos.
Atrevia-se a discursarem suas portas clamando que
nao comprassem coisa alguma daqueles
estabelecimentos, pois seriam enganados na
qualidade e roubados nos preços.

E gritava, exaltado:

- Nao entrem nessas lojas, que serao extorquidos e


ludibriados! Venham a mim, que negocio com
honestidade e tenho bons preços para todos!
Venham!

Atraída pelo vozerio, a multidao se aproximava da


barraca abandonando as lojas.
Muitos se atiravam como fanaticos sobre os
tabuleiros, ao passo que o esperto comerciante nao
tinha maos a medir, aumentando cada vez mais o
pregao.

Um dia, quando era maior o movimento, chegaram as


autoridades e, vendo que o comercio que ali se fazia
era clandestino e que o homem nao pagava os
tributos da lei, derrubaram seus tabuleiros,
apreenderam as mercadorias, avaliadas como da pior
especie, e muitas identificadas como fruto de roubo e
contrabando.

Assim acontecera no final dos tempos, quando a Era


do Espírito se abrir para os novos passantes do orbe
terraqueo.

Havera de prevalecer, entre os povos, a verdade que


os libertara dos barraqueiros de beira de estrada e
dos falsos mercadores das coisas de Deus.

As portas do Mundo de Regeneraçao se abrirao,


confirmando a profecia de Jesus:

Bem-aventurados os mansos e pacíficos, porque


possuirao a Terra.
Irmao X

CAPITULO 32
- O
CONSELHEIRO

CAPITULO 32 - O CONSELHEIRO
Numa fazenda de cafe, em terras ribeirinhas do
Paraíba do Sul, o coronel Anto nio Mendes era dono
de escravos e de uma prospera fazenda de cafe, que
rendia ao seu proprietario vultosa renda.

Vaidoso, de suí ças* ja embranquecidas a adornar-lhe


a face isenta de rugas, o que mais almejava na vida,
alem de ver frutificarem os seus cafezais sob o labor
dos negros, era receber, das maos do imperador, uma
comenda*.
Para obte-la, utilizava as armas da falsidade e da
intriga, da calunia e da lisonja, a insinuar-se nas
antecamaras palacianas imiscuindo-se* nas intrigas
da corte. As artes da intrujice*, todavia, nem sempre
o abonavam.

Certo dia, viu-se impedido de frequentar os saraus,


em que fazia questao de exibir as prendas de sua
sinhazinha, a cata de um bom partido, e os gestos
afetados e ridículos de sinha Hermínia.
Talvez por peraltice das sombras, envolveu-se o
coronel em trama inusitada, de que resultou bom
proveito em solida pecu nia e na falencia de
afortunado comerciante, acossado por falsos
credores, entre os quais se alinhava ele mesmo,
Antonio Mendes.

Mestre em artimanhas, na o conseguiu, porem,


desenlear-se antes que os outros, mais bem avisados,
safassem-se fazendo desabar, em seus largos
costados, toda a prancha das iniquidades praticadas
pela associaçao dos velhacos.

O escandalo cerrou as portas da corte a sua


impiedosa e aguda ambiça o. E de la para ca,
resguardou-se nos limites do feudo e desandou, por
crueldade, a lacerar o lombo dos escravos no martírio
do tronco, deixando-os a fome e sede, sob o sol
causticante.

Os castigos exacerbavam-lhe a vaidade e o orgulho, a


ponto de proibir que os pobres servos amainassem
suas dores entoando canticos aos seus orixa s. Muitos
eram abandonados impiedosamente, esvaindo-se em
sangue, depois de receber crueis chibatadas no dorso
nu e tremulo.

Nao conseguindo receber em vida o título


ambicionado, apesar de sua fortuna, um dia,
amargurado, entrou em lenta agonia, prenunciando o
termino de sua jornada terrena.

Veio a noite da morte. Entre estertores e asfixia,


desvestia o espírito do corpo carnal, perispírito
recamado de tons trevosos, sem tempo habil para que
o sacerdote, chamado as pressas, pudesse
encomendar sua alma a misericordia do Senhor.

Assim partiu Antonio Mendes, entre o silencio da


negrada e lagrimas e soluços da família,
inconformada por nao levar o defunto, sobre o peito,
a comenda de conselheiro.

Do outro lado da vida, depois de longo tempo na


inconsciencia, prisioneiro da turba* que o arrebatara
aos primeiros instantes da desencarnaçao, Antonio
Mendes, em espírito, encontrou, nas esferas
inferiores, inumeros de seus escravos.

Humildes, em grupos missionarios e aureolados de


luz, viram-no na faina de cultivar, sob chibatadas de
obsessores, longo e arido trato de terra, ja esquecido
da comenda que tanto ambicionara e que, agora,
diante da liberdade perdida, assemelhava-se a vulgar
ornato, sem nenhum valor.
Irmao X
CAPITULO
33 - O
BANQUETE

CAPITULO 33 - O BANQUETE
Forças inferiores, contendo nefasto magnetismo,
entrechocam-se, em ondas de vibraçoes densas, com
aquele que emana do alto, esbatendo-se como o
maremoto de encontro as penedias*.

Denso nevoeiro, qual a cortina cinza que paira no alto


das montanhas, procura envolver as planícies da
atmosfera terraquea, para que nelas se percam as
almas perturbadas.

E o panorama que ja se delineia nesse princípio da


decada final, em que a Humanidade, que transitou
milenios por ínvios caminhos, ressurgira para a
jornada da redençao espiritual, apos a tragedia dos
destinos.

E a Lei de Causa e Efeito agindo, em suas


consequencias irresistíveis, que se faz necessaria
para o novo plantio, quando os seareiros da volta
lançarao as novas sementes para a saga do porvir.

Agora - e por enquanto - serao lagrimas e ranger de


dentes, necessa rios ao adubo da terra, a fim de que os
rebentos da saí ra do amanha despontem como a hera
tenra orvalhada pelo rocio das madrugadas.
Assim sera o princípio da reforma moral que
transformara o plano geofísico em Terra de
Regeneraçao.

Importante, portanto, que se implante nas mentes


ainda obscurecidas pelo egoísmo, as raízes da
Doutrina Espí rita, para que o Evangelho de Jesus
ressurja, em Espírito e Verdade, em todos os
espíritos, como o balsamo doado pelo Medico de
Almas.
Dezoito de abril de 1990.

Primeiro aniversario da codificaça o no portal do


terceiro milenio.

Disse o Mestre que mandaria um consolador e que ele


estaria conosco para a eternidade, alavanca que ira
erguer a Humanidade, ele a levara por novos
caminhos de redençao, para integra -la, liberta, na
corrente cosmica do reino de Deus.

Mais de um se culo transcorreu, e a voz de Jesus, por


intermedio da Doutrina Espírita, ha de avançar pelo
novo milenio, em divina sinfonia de paz e de amor.

E festa no Mundo Maior, onde os espíritos puros


aguardam os convivas envoltos na tunica nupcial.

O Senhor preside a mesa.

Tudo e paz, luz, musica e harmonia neste 18 de abril


de 1990.
Irmao X
CAPITULO
34 - O
PEDINTE

CAPITULO 34 - O PEDINTE
Um mendingo fazia ponto na escadaria de uma certa
igreja. Esmolava, exibindo aos transeuntes, que se
dirigiam aos ofícios religiosos, as chagas das pernas,
as quais explorava com muita competencia.

Nao acudia ao pedinte nenhum interesse em curar-se


das feridas que, ao final do dia, proporcionavam, as
ocultas, la no barraco onde residia, uma imensa
alegria e volupia na aferiça o das notas e moedas.

Aos poucos, reservando o produto dos petitorios, viu-


se dono de apreciavel peculio.

Seu nome era Bernardino. O mendigo era tolerado


pelo vigario porque, sensibilizado pelas necessidades
da paroquia, contribuía, voluntariamente, com o
dízimo dos seus rendimentos.

Nao raras vezes, ao iniciar-se o ofício sagrado,


Bernardino abandonava o seu posto e, de pe,
contrito*, junto ao atrio*, ouvia as pregaçoes do
padre Anselmo.

Um dos sermoes impressionou-o em especial. Foi


quando o sacerdote, comentando o Novo Testamento,
recordou a passagem em que o Mestre recomendava,
como exemplo de indulgencia e humildade que nao
soubesse a mao esquerda o que fazia a direita.

Bernardino, calculista, premeditou aproveitar-se da


maxima crista para demonstrar que nada possuía, e
que a feria dia ria pouco ou quase nada o beneficiava,
garantindo apenas sua sobrevivencia.
Assim e que, ao estender uma das maos a caridade
publica, em nome do Senhor, ocultava a outra, sob os
trapos que cobriam o seu corpo.

Sem compreender o sentido da para bola do Mestre,


escondia da ma o esquerda o que a direita recebia dos
coraçoes bondosos.

Passaram-se os anos. Bernardino envelheceu na


profissao da mendicancia, contribuindo sempre para
a caixa das almas, na certeza de que, um dia, quando
o Senhor o chamasse, haveria de ser bem aquinhoado
no Ceu.

Chegou, finalmente, para o Bernardino, a hora de


retornar a patria espiritual. Era o fim do seu carreiro
de dor, necessidade e humilhaçao. Sempre a pedir
com as maos estendidas, o olhar mortiço, a boca
franzida e as pernas chagadas esticadas ao longo da
escadaria.

De repente, viu-se no outro mundo, espantado por


nao vislumbrar o que tantas vezes ouviu o padre
pregar no pulpito.
Encontrou-se sentado nos degraus da mesma igreja,
implorando donativos a caridade pu blica, a mesma
voz fanhosa e falsa, na esperança de que almas
caridosas se apiedassem de sua desdita.

Decorria o tempo sem que nenhuma esmola viesse a s


suas maos, enquanto os transeuntes iam e vinham,
alheios, como se ele ali nao estivesse.

Na realidade, ninguem o enxergava, e a angustia da


solidao martirizava-lhe o espírito.

Sucediam-se os dias e Bernardino, cada vez mais


perplexo, torturava-se diante do abandono e do
silencio, unica resposta que recebiam seus apelos de
esmoler pertinaz.

Um dia, saindo da igreja, aproximou-se dele um


sacerdote, que outro nao era senao o mesmo que
oficiava no templo, em cujos degraus mendigara por
tantos anos.

- Voce por aqui, Bernardino? - indagou o paroco.

- Padre Anselmo! - exclamou o mendigo. - Entao


estamos juntos, aqui no outro mundo?

- Pois e... - disse o padre. - E continua esmolando?

- Que fazer, padre? Esse e o meu ofício. Nao possuo


outras habilitaçoes, nada sei fazer senao pedir, pedir
sempre.
Pensativo, acrescentou reticente:

- A coisa do lado de ca e diferente. Nao e nada daquilo


que o senhor pregava la na Terra. Diga-me, padre
Anselmo, cade o Ceu, o inferno ou o purgatorio?
Afinal, o que nos espera depois de tantos sofrimentos
e a mesma coisa que a gente vivia la embaixo? O
senhor continua um padre e eu um reles mendigo.
Sera que Deus nao vai julgar aqueles que morrem?

- Por certo - retrucou o padre. - Deus julga todos os


Seus filhos por suas obras e da a eles conforme o seu
merecimento.

- Ai de mim! - lamentou-se Bernardino. - Qual sera a


minha pena, se nada fiz de bom ou de util na vida?
Passei a existe ncia a pedir e, ultimamente, a ocultar a
mao esquerda, para que ela nao soubesse o que a
direita recebia.

- Nao tema, Bernardino. Deus sabe muito bem quais


sao suas obras.

- Mas, padre... - gaguejou Bernardino. As minhas


obras? O que eu fiz de melhor, e nao me arrependo,
embora a s vezes me fizesse falta, foi partilhar um
pouco das minhas migalhas auxiliando as obras
sociais da paroquia. Isso eu fiz de bom coraçao, mas,
tambem com a intençao de me assegurar o direito de
continuar esmolando nas escadarias de sua igreja.
Minhas economias, que, na verdade, ja nao eram
poucas, ficaram num bau, debaixo da cama.
-Sei disso-respondeu o vigario sorrindo. -E, por esse
motivo, nao obrou piamente.

- Nao o que ? - indagou Bernardino, sem entender.

Nao fez nada de bom, com boa intençao, com desejo


sincero de ajudar os necessitados. Agora, como
resultado, tera de voltar ao mundo dos homens para
nova peregrinaçao. Nao soube aproveitar a
oportunidade de receber com humildade e se tornou
um avaro. Bernardino, nao foi um bom homem!

- Preciso entao nascer outra vez?

- Sim. E tera de trabalhar muito, de sol-a-sol, o que


nao fez na ultima encarnaçao, e repartir com os
pobres boa parcela de seus ganhos, contribuindo, por
amor, para os asilos de velhos e de crianças orfas.

Sera a unica forma de redimir o seu passado.

E, finalizando, completou o padre Anselmo, enquanto


se afastava:

- Mas nao deixe nunca que sua mao esquerda saiba o


que faz a direita.
Irmao X
CAPITULO
35 - O
RETORNO

CAPITULO 35 - O RETORNO
Recem-chegados do umbral, encontraram-se no
Departamento de Reencarnaçao, cada qual seguido
por seus instrutores, dois espíritos que se
aprestavam* para retornar a vida física.
Embora nao se estimassem mutuamente, nao eram
estranhos um ao outro, uma vez que haviam
compartilhado a mesma estrada no ultimo estagio
terreno.

Um deles era Astulfo Barreiro, que foi rico


proprietario de bens, nem sempre conquistados com
a devida honestidade.

O outro, Maca rio Xavier, mais modesto, de poucas


poupanças, servidor habil e competente, de índole
pacata e coraça o ate certo ponto altruísta.

Viandantes* da mesma jornada, cada qual com seus


afazeres, chegaram, em certa oportunidade, a
estreitar relaçoes de interesses comuns, passando o
que foi rico a confiar ao outro o registro contabil de
seus negocios.

E foi assim que Macario Xavier, de ofício contabilista,


conheceu em detalhes, os metodos empregados por
Astulfo Barreiro para amealhar fortuna, em negocios
suspeitos de cambio e exportaçoes.

Em pouco tempo, assombrou-se com a fortuna de


Astulfo, que se reproduzia celeremente com
aplicaçoes no mercado de capitais e outras
transaçoes pouco transparentes.
Seu assombro era maior quando registrava as
doaçoes creditadas a entidades filantropicas, somas
avultadas, mediante documentos fraudulentos.
Esse era o recurso a que Astulfo recorria,
desonestamente, para beneficiar-se, de substanciais
reduçoes no pagamento dos devidos tributos fiscais.

Justificava-se o astuto negociante, na presença do


contador, afirmando que as doaçoes eram
verdadeiras, embora as importancias nem sempre
correspondessem ao apontado.

Maca rio, porem, limitava-se as suas obrigaçoes,


recebia honorarios modestos pelos serviços
prestados, e sua vida corria em mansuetude*,
reforçada pela frequencia, mais ou menos regular, a s
reunioes doutrinarias de uma casa espírita,
recomendada por amigos, quando sentiu a sau de
abalada.

Entretanto, como tudo tem sua hora certa, ambos


sofreram desencarne simultaneo, em inesperado e
tragico desastre de automovel, durante uma viagem
de nego cios.

Transcorreram alguns anos. Os dois despertaram no


mundo espiritual, abandonando o círculo das
sombras, ingressando em colonia socorrista,
reajustando-se para retomar ao mundo material.

Nessa oportunidade, depois de continuadas liçoes e


esclarecimentos de abnegados instmtores,
comprometeram-sc, Macario Xavier e Astulfo
Barreiro, a novas experiencias no mundo da materia,
agora em situaçoes inversas.

Outros cinquenta anos se passaram, quando, ao


termino do estagio, regressaram novamente ao
mundo dos espíritos, trazendo cada um, em seu
cabedal, o resultado das provas a que se submeteram.

Astulfo Barreiro, que reencarnara optando pela


profissao de simples contador, nao resistira, todavia,
as tentaçoes que, ainda remanesciam em seu espírito
e desfechou ardiloso golpe nos negocios do velho
companheiro, agora prospero comerciante,
apoderando-se de grande parte de sua fortuna,
adquirida licitamente, comprovando-se, realmente,
doaçoes de grandes valores a instituiçoes de
caridade.

Assim e que puderam, ambos, colher da propria


semeadura e saber, por experiencia, que o Pai
misericordioso sempre proporciona a Seus filhos,
pela multiplicidade das existencias, oportunidades
para a construçao do mundo moral.

Desnecessario sera lembrar que Astulfo Barreiro


retornou, mais uma vez, ao círculo das sombras.
Irmao X
CAPITULO
36 -
POSFACIO

CAPITULO 36 - POSFACIO
Quero encerrar esta coletanea de casos e coisas daqui
e daí, lembrando os primeiros tempos de meu
regresso ao mundo dos espíritos.

Qual todos os que para aqui se transbordam e nao


exemplificaram na romagem terrena, vivencia
condizente com os padroes do Evangelho, passei por
longo período de perturbaçao.

Por muito tempo, perambulei, como sonambulo, por


veredas e esquinas, perdido em nevoas.
Lembrava um fantasma de Yorkshire vagando nas
mas londrinas.

Aos poucos, recuperando a consciencia, por atos e


graças de amigos literatos que me haviam antecedido
na grande viagem, ingressei em longo aprendizado
nas escolas de evangelizaçao.

Surgiu-me, assim, a luz em lentas alvoradas.

Passei a divisar, no horizonte matutino, os limites de


terras distantes, com esperançosas promessas de um
perfumado mundo melhor.

Sentia-me reconfortado e ja consciente de novas


responsabilidades, a que me havia vinculado, como
integrante de equipe de espíritos dedicados a trazer,
para os irma os da Terra, mensagens edificantes
demonstrando que o Mestre de Nazare continuava,
por intermedio dos seus mensageiros, a derramar o
amor sobre os homens.
Entretanto, para isso, haveria de percorrer, amparado
por dedicados instrutores, inumeros locais em que
irmaos nossos remanesciam na purgaçao de erros e
culpas.

Fui, vi e aprendi.

E, dessas incursoes, obtive experiencia e


conhecimento que serviram, ao lado de outras visoes
da epoca do Mestre, de roteiro para redigir as
mensagens ja transmitidas.

Cumpre-me, agora, ao termino de mais um trabalho,


informar que uma infinidade de outras historias,
todas verídicas, poderia ser relembrada.
Essas narraçoes reforçam a necessidade de
modelarmos o espírito conforme os ditames do
Mestre, se realmente almejamos, no retomo a patria
espiritual, receber a aureola de luz, de paz e amor,
justa recompensa pelos nossos desejos de nos
reformarmos intimamente.

Recordo-me, apenas, depois de presenciar cenas de


imensa trage dia, de espíritos de mulheres que,
acreditando-se ainda na carne, esvaíam-se em
sangue, em consequencia de consecutivos abortos,
flageladas sob o suplício fluídico dos espíritos
vingativos que viram frustradas suas encarnaçoes; de
espíritos de suicidas, em tremenda agonia, envoltos
nas emanaçoes da carne em decomposiçao; de
espíritos de ambiciosos e usurarios a cavarem,
alucinados, utilizando-se de pesados instrumentos, a
terra esteril, a procura de tesouros inexistentes; de
espíritos de toxicomanos perseguidos por
alucinaçoes interminaveis.

A observaçao dessas cenas dramaticas, de cada uma


delas retirando valioso aprendizado, serviu para
enriquecer-me o espírito ate que, fatigado por tantas
emoçoes, foi-me permitido, antes de iniciar a minha
produçao literaria, neste novo mundo, repousar por
uns tempos na minha saudosa terra, a sombra amiga
do meu velho e doce cajueiro.
Irmao X
GLOSSARIO
Agapanto: genero de plantas herbaceas da família das
liliaceas, dotadas de raízes tuberosas c flores em
glomerulos, azuis, roxas ou brancas. Agonica: relativo
a, ou proprio da agonia. Algaravia: linguagem confusa
e ininteligível. Algures: em alguma parte, em algum
lugar. Altissonantes: que soa muito alto. Alvar,
estupido, inge nuo. Andrajos: vestes esfarrapadas.
Apascentar: levar ao pasto ou pastagem.
Apoplexia: afecçao cerebral que se manifesta
imprevistamente, acompa¬nhada de privaçao dos
sentidos e do movimento, determinada por lesao
vascular cerebral aguda (hemorragia, embolia,
trombose).
Aprestar: aprontar-se, preparar-se
Aragem: vento brando; brisa, viraçao.
Atrio: espaço defeso, situado na frente de edifício.
Bazofia: presunçao infundada; jactancia, vaidade.
Cantilena: conversaçao fastidiosa; arenga, ladainha.
Cavalariço: empregado de coudelaria; palafreneiro.
Cavo: rouco e profundo; cavernoso.
Cercanias: regiao situada em torno de uma povoaçao,
cidade etc.; arredores, proximidades, vizinhança,
imediaçoes.
Charanga: pequena banda de musica, formada
sobretudo por instru¬mentos de sopro.
Cofiar: alisar, afagar.
Comenda: condecoraçao ou distinçao de ordem
honorífica. Contrito: que tem contriçao; pesaroso,
arrependido. Decesso: morte, obito, passamento.
Dessedentar: saciar, matar a propria sede.
Embornal: saco ou bolsa, geralmente usada a tiracolo,
para transportar
alimentos, ferramentas etc.; bornal. Encastoada:
encravada.
Engalanado: ornado, enfeitado, garrido, agalanado.
Enxerga: cama pobre; catre.
Epicurista: diz-se de pessoa dada aos deleites da
mesa e do amor.
Epíteto: cognome, apelido.
Esca ncaras: a descoberto; a vista de todos.
Esgar: gesto de esca rnio.
Estertorante: agonizante.
Estremunhado: despertar de repente, ainda
estonteado de sono. Estugando: apressando. Fímbria:
franja, orla.
Fogo-fatuo: inflamaçao espontanea de gases
emanados de sepulturas ede pantanos.
Gabola: que ou quem se gaba a si mesmo; jactancioso,
vaidoso. Galardao: recompensa de serviços valiosos;
premio. Imiscuir-se: intrometer-se.
Intrujice: ato de intrujar-se, ou seja, imiscuir-se com
outras pessoas para explora -las; lograr.
Lanzudo: diz-se de, ou indivíduo grosseiro, rude,
tosco; labrosta, labroste, labrego, laponio, lapao.
Letes: no imaginario da mitologia grega, o Rio Lete
atravessa a regiao que e o reino dos mortos, o Hades.
Depois de permanecerem algum tempo no Hades ou
nos Campos Elí seos, os mortos eram merecedores da
reencarnaçao, mas, antes disso, precisavam beber a
agua do Rio Lete, perdendo a memoria e a lembrança
de vidas passadas. Outros rios banhavam o Hades:
Aqueronte, Estige, Cocito e o Flegetonte.
Mansuetude: mansidao.
Mefítico: que tem cheiro nocivo; podre, fetido,
pestilencial, pestilento Miosotis: grande genero de
plantas herba ceas da família das boragina ceas, de
flores pequeninas, de corola assalvada, dispostas
em cachos. Nimbada: aureolada, enaltecida,
sublimada.
Obnubilar: por-se em trevas; obscurecer-se.
Padiola: espe cie de cama de lona, portatil e
desmontavel, na qual os padioleiros transportam
doentes ou feridos.
Paragem: local onde se pa ra; estancia.
Parca: morte.
Pecado venial: na Doutrina Crista, o que enfraquece a
graça sem a destruir.
Penedia: rocha, rochedo.
Persignar: fazer com o polegar da mao direita tres
cruzes, uma na testa, outra na boca e outra no peito,
pronunciando a formula liturgica: "Pelo sinal da
Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos
inimigos".
Pilheria: dito engraçado e espirituoso; chiste.
Plaga: regiao, país.
Prestidigitaçao: arte e tecnica de prestidigitador;
ilusionismo, passe-passe, arte magica.
Procer: homem importante em uma naçao, classe,
partido etc.
Roldao: atropeladamente
Sopitar. conter, dominar, vencer.
Suíças: barba que se deixa crescer nos lados da face.
Tartamudear: dizer ou proferir gaguejando.
Transido: esmorecido ou inteiriçado.
Turba: muitas pessoas reunidas; povo, multidao.
Verve: calor de imaginaça o que anima o artista, o
orador, o conver¬sador, etc.
Viandantes: que ou quem vianda ou viaja;
caminheiro, viajante.
Zimborio: a parte superior, em geral convexa, que
exteriormente remata a cupula de um grande edifício,
sobretudo de igrejas; domo.

FIM

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