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Que invejável sossego conhecia a escuridão, em suas débeis sombras debaixo das palhas abobadadas.

Acima dela resplandecia, em cintilante fúria que plagiava o Inferno, nos alcances incultos do
firmamento, o poderoso sol, e ele indubitavelmente consumia a úmida vastidão das Terras Lodosas do
Norte, colorindo com sua interminável majestade as cinco grandes lagoas. Sob seu fogo as águas
brilhavam, silenciosas, tão silenciosas, enquanto boiava a isca e passeavam os peixes, por secretos e
afogados caminhos.
A Quinta Lagoa, na mais meridional região que declamava a fronteira entre o Mediterrâneo e as
desoladas Terras Lodosas, abrigava inexistente variedade de peixes e declarava-se a campeã de menor
quantidade de pescadores, ao mencionar seu histórico de visitas de pessoas que vinham vê-la
carregando vara e isca. Isso acontecia pois suas águas eram escuras e esverdeadas, muito espessas e
enlodadas, com camadas de plantas apinhando-se na margem e nas áreas rasas; e os pescadores,
intimidados por sua natureza pouco convidativa, preferenciavam as outras lagoas, ou, ainda melhor, o
mar e os rios. Mesmo assim, no centro de sua enorme circunferência, águas menos agressivas e mais
libertas brilhavam ao sol, e normalmente desviava-se o olhar ao se deparar com o pálido reflexo do
fogo distante. Embora tal fenômeno fosse comum e mais amplo nas outras límpidas piscinas, sua
raridade no corpo enlodado da Quinta Lagoa, grandemente afugentada do sol pela selvagem mata
circundante, tornava-o estranhamente especial. Avistá-lo ali, brilhando enquanto nos arredores via-se
apenas uma vacilante massa de negror, agregava uma beleza incontestável, quando o horário era do
meio-dia até pouco antes do pôr do sol; porém, ao meio-dia, quando em tempo limpo, esse singular
atributo era especialmente evidenciado, e definitivamente marcado na mente de seus observadores.
Era, no entanto, miúda a contagem desses observadores, que se restringia aos habitantes de uma aldeia
erguida entre o protuberante matagal pantanoso. Essa aldeia situava-se mais ao leste em relação à
Quinta Lagoa, e era conhecida pelo nome de Gonmak. Sua gente era simples, sobrevivendo à base da
pesca, da caça e da colheita de plantios; por vezes, empreitavam-se no comércio, quando a cada Época
faziam três jornadas até as habitações setentrionais do Mediterrâneo para adquirir uma variedade de
alimentos acessíveis apenas em regiões de maior amenidade e estabilização. Pois o Norte era uma
região deformada, o Talho Inundado, delineado e marcado diretamente por lagoas, lagos e rios
específicos, mas, apesar disso, lá era casa para aquele povo, que há duas gerações viera do Oeste, das
Alturas Lendárias, onde até hoje viviam pessoas estranhas de pele gelatinosa.
Boiava na Quinta Lagoa uma pequena canoa, e, assentado sobre ela, um pescador, proveniente de
Gonmak, jazia em pleno silêncio; seus olhos focavam-se na calmaria da isca de minhoca, que nadava à
espreita da próxima vítima. Ele vestia uma camiseta fortemente surrada, descolorida e costurada nas
costas, que estendia-se até pouco acima dos joelhos. Na cintura, amarrou uma corda de juta, ausentando
a necessidade de vestuário nas pernas. Aos pés, descalços, tinha as solas escamadas já gastas pelos
longos anos de exploração do pântano.
Era pouco mais de meio-dia, mas o sol da tarde ainda refletia sua mágica na superfície da lagoa; e o
chapéu de palha, formando uma pontiaguda abóbada, escurecia os ombros descobertos do graedar de
cauda longa e corpo escamado. Afinal, salvo por seus ombros e pela região das panturrilhas, todo seu
corpo era coberto por firmes escamas, que se entrepunham e formavam uma resistente camada azul-
marinho sobre uma áspera pele de caráter brumoso. Seu rosto era composto por essas camadas, e sua
língua, altamente flexível, tinha a extremidade bífida, como a de uma cobra. Os estreitos olhos eram da
cor de juta dourada, e as pupilas, retraídas como as de um gato à luz do dia; tal era que, a agir de fato
como um gato caçador, a notável beldade ocular marcava a isca com fantástica solenidade, as pálpebras
entreabertas a evitarem qualquer piscar enquanto, abaixo, a respiração do nariz achatado mantinha-se
leve, praticamente ineficaz.
O pescador dispunha de pleno aspecto ofídico, refletido pela totalidade dos habitantes das Terras
Lodosas. O que significava que, naturalmente, esse povo possuía superior vantagem em exercícios de
caça.
A isca estremeceu. Uma pequena ondulação emergiu ao redor e se alastrou pela superfície brilhante,
desaparecendo gradativamente.
Blop.
O anzol foi fisgado, imergindo na profundeza, e rajadas transparentes saltaram para cima a tempo de
ver somente novas águas ondearem em expansão. Antes que o círculo se entornasse de volta na lagoa e
propusesse o retorno da paz, o graedar ergueu a vara, alvoroçando o ambiente com um barulhento
espichar de água. Agarrou a linha, aproximando-a da canoa. A tilápia debatia-se inquieta, isenta de seu
habitat e impedida de respirar, espirrando gotas d’água sobre o impostor que a enganou com falsa
menção de alimento. Esse impostor removeu o anzol da boca do peixe apenas para largá-lo dentro de
um balde aos seus pés, sobre o assoalho encharcado, onde uma segunda tilápia meditava em quietude
na água terrivelmente rasa.
A manhã havia sido proveitosa, e não era necessário continuar pescando. A Quinta Lagoa era apenas
uma das três que resguardavam peixes em suas águas, fato recorrente de sua considerável amplitude
que permitiu a adição de certa espécie. Evitava-se, embora, pescar-se nela por um elevado período de
tempo, a fim de manter distante a ameaça de extinção das pequenas tilápias. Mas, mesmo a devanear
bem longe desses pensamentos, aqueles dois peixes, fartos, eram mais que o suficiente para o pescador.
Nada eles representavam além de simplória adição na mesa do jantar, um pequeno símbolo de luxo
gerado pelo esforço extra.
O pescador buscou algo debaixo do banco. Um saco de serapilheira, aberto, guardava a maioria de seus
utensílios, inclusive um pote com minhocas e uma faca de caça, que, às cegas, descobriu ao tocar o
cabo de madeira polida, que empunhou e retirou do saco. Removeu a bainha de couro e a lâmina
brilhou ao sol que começava a descer para o oeste. Com golpes rápidos, enquanto mantinha uma das
mãos sobre o corpo pegajoso, encerrou a vida dos nadadores desafortunados que ocupavam o balde.
Firmou-os no leito de morte e vazou a água de volta à lagoa.
Navegou a remo solitário até a margem leste, onde desceu pouco antes de terra firme, devido à
encrespada espessura de plantas e lodo que descobria-se impossível oponente para a canoa. Arrastou-a,
então, até a região barrosa, atravessando as nojeiras a seu próprio passo. Lançou a alça cordada do
balde sobre os ombros e embrenhou-se pela várzea empastada, os pés escolhendo rotas familiares
marcadas por fantasmas de velhas pegadas. Gonmak e suas rústicas moradias esculpiam-se à frente, seu
querido lar, a guardar sua tão amada família.
As palavras têm poder!
Falaram versos recentes, minguados em descontento
A declarar horrores brumosos.
O pai mudo, e a vida irracional, sobreviviam no poder do calar.
Clamava-se pelo título máximo, Imperador, e desfalecia eternamente.
Foi o Dia do Caos, quando o mais assustador ditado reverberou por vozes temerárias:
As palavras têm poder.

- O Peregrino de Mensés, Damaeh.

Reza a lenda que Rynkirk se acocorou na noite, como se ela fosse sua mãe. A concordar com todos os
relatos eu não duvido que seja um bebê que caiu do espaço entre as estrelas, mas será que é mesmo um
homem? Um sata em? Ninguém que eu conheço saberia dizer. Mas existem virtudes fatídicas no que
convém aos palpites e a suas criatividades imaginativas que não faltaram em nossas conjecturas. Uma
noite, pode não parecer, mas é passível de durar tanto quanto um dia. A Noite do Leão foi tempo de
caos, mas não impediu que inteligências acima do normal efetivassem feitiços nefastos, deixando que
legados de sombra se deitassem sobre o mundo.
Esse é um palpite que veio de um boato. Eu sei contar muito bem, e a quantidade de boatos que tem
pura veracidade em suas veias é algo bem próximo de zero. Próximo de zero. Preste atenção, amigo.

Uma mão de garras gigantescas se arrastou pelo braço do trono, enquanto a cidade ardia em cega
loucura. Garras negras de obsidiana afundaram-se na pedra reluzente. Fragmentos do passado se
derramaram no salão. A quietude ecoou em desalento, e o Império de Tulu’k conheceu seu fim.

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