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O LIVRO DOS MONSTROS GUARDADOS

de Rafael Primo

Uma parede com várias cadeiras penduradas nela, em alturas, posições e

lugares diferentes. A medida que um personagem fala o foco de luz vai para ele,

depois ele se mantém na penumbra, com movimentos discretos, atento. Os

personagens estão o tempo todo sentados nas cadeiras, agem e falam de

maneira simples.

(off)

"Diz-me os menores detalhes a teu respeito contanto que eles sejam

obscuros e secretos e porcos."

Quando eu era criança eu achava que os monstros se escondiam nos

armários e embaixo das camas.

Mais tarde eu descobri que eles moravam dentro das pessoas.

Esta é só mais uma história real de amor.

(a cortina se abre)
MADÁ

Sábado dia 23, recebi mais uma ligação, parecia ser mais uma dentre muitas,

ela se identificava como Janete.

MAX

Osvaldo tem um microfone. Osvaldo fica em frente a uma loja

MOJO

Se eu pudesse escolher eu ia querer que minha vida terminasse com um som de

uma música antiga qualquer.

MILTON

Um micróbio se duplica em sete minutos.

MAURICIO

Perguntaria sussurando a Dona Flora qual seu segredo, o que a fazia perder seu

olhar com tanto encantamento através da vidraça.

MESTRE

Freneticamente, exaustivamente. John morreu fibrilando. Eu matei John.

MADÁ

Mas às vezes é muito difícil manter a distância e não tomar parte.


MAGALI

Às vezes eu penso como eu ia viver sem minha mãe. Ela me acorda todo dia

com um beijo estalado e faz um café pra mim.

MILTON

Nada pior que um vírus que vem dos patos chineses.

MAURICIO

Às quartas eu sempre saía mais cedo do colégio

MESTRE

ÊEm êxtases e flores azul-marinho que se abrem ao sol.

MOJO

Na manhã seguinte notei sangue no meu pára-choques, limpei com uma

mangueira antes de ir pro trabalho.

MAX

Hoje minha mãe apareceu de novo aqui no hospital.


MAGALI

É muito difícil a gente ter que escolher entre essas coisas que a gente quer

muito. Mas eu tenho que escolher, minha tia falou que tenho.

MESTRE

“No rosto do teu dono”. Ele queria a chuva prateada no rosto.

MILTON

O banho deve começar pelos cabelos.

MADÁ

Tempo inteiro vinha gente pedir água, café, pão velho, comida em casa, e nunca

vi ninguém sair sem um abraço ou um bom conselho.

MAX

O que eu mais faço o dia inteiro é ficar sentado na frente das árvores pitando um

cigarro e me mexendo de leve pra frente e pra trás.

MAURICIO

E por isso enchia com tanto prazer, a jatos de mijo, aqueles potes.
MOJO

Japoneses são engraçados. Aqueles zoinhos puxados me intrigam. Reparo

muito nos olhos das pessoas.

MAX

Eu sou Marciano. Marciano tem centenas de papéis na mão.

MAGALI

O padre Alberto é um homem muito bom e acho que se preocupa mais comigo

que com a Mônica.

MAX

Bipbipbipbipbipbipbipbip….
CENA 1 MADÁ

Há quatro anos, todo fim de semana, estico bem meu cabelo, faço um

rabo de cavalo no meio da cabeça e trabalho voluntariamente num Centro de

Ajuda à Vida, que funciona ao lado de um metrô, no centro da cidade. Para lá

ligam pessoas desamparadas e deprimidas, que em geral pensam em se matar

e precisam, na maioria das vezes, apenas de um pouco de atenção.

Eu sempre fui muito desprendida da minha própria vida, vivendo em

função do outro, isso me faz bem, eu volto pra casa com uma sensação de

realização pessoal, que não tenho no meu trabalho. Sim, porque eu sou

balconista e assessora em uma loja do shopping, eu sirvo clientes e assessoro

meu chefe com a contabilidade, mas aos sábados, ah, aos sábados, eu cedo

quatro horas do meu dia, atendendo aos telefonemas dos solitários suicidas.

A minha função, assim como de outros colegas que trabalham ao meu

lado – inclusive a da Maria Alice, que tem um mau hálito horrível, é a de atender

a esses telefonemas, conversar e “baixar a tensão”, para que as pessoas

possam pensar melhor e descobrir uma saída para seus problemas.

Antes disso eu havia trabalhado na distribuição de sopão aos mendigos e

crianças abandonadas que vivem espalhadas pela cidade, sopas de legumes

com carne – eles adoram carne. Sempre me emocionava ao vê-los tomando

aquele caldo grosso com aquelas mãos imundas. Mas algumas vezes eu me

peguei prendendo a respiração ao abraçá-los – em geral eles é que vinham

abraçar-nos – e ao me aproximar para dar a sopa, eu não tinha coragem de

sentir o cheiro azedo deles misturado ao cheiro de abobrinha e cenoura.


Chorava na kombi e preferi mudar de assistência social. O odor fermentado da

boca da Maria Alice não chega a me incomodar tanto quanto.

Dias desses, me ligou um velho de oitenta anos, ele tinha uma família

enorme, um casamento que durava sessenta e dois e muitos netos. Sua vida era

cercada de pessoas alegres e falantes. Eu sempre ouvia um ruído de pessoas

ao fundo, seu Raul não sei o quê, pergunta se seu Raul quer frango, seu Raul já

está de blusa?, e o velho, mastigando a dentadura, dizia que se sentia muito

sozinho e que carregava suas pílulas do coração sempre na mão, na esperança

de criar coragem para engolir as da manhã-tarde-noite todas de uma vez. Ele

ligava todo sábado e desligava o telefone me agradecendo a força que dera.

Mas às vezes é muito difícil manter a distância e não tomar parte. O

regulamento daqui não permite qualquer tipo de envolvimento ou que tentemos

achar a solução dos problemas dos que nos telefonam. Certo dia uma menina

ligou chorando, contando que seu pai costumava forçá-la a colocar os dedinhos

dentro da vagina, enquanto ele assistia e ficava se contorcendo. Eu anotei seu

endereço, nome completo e denunciei o caso à polícia. Fui veementemente

repreendida e me afastaram por duas semanas do auxílio por telefone. Eu não

sou Deus, mas queria poder fazer algo mais por aquelas pessoas, que

simplesmente ouvi-las e “baixar a tensão”. Então resolvi que se pudesse ajudar

eu o faria, de algum modo, e fora dali, assim ninguém saberia e não correria o

risco de ser punida novamente.


CENA 2 MAURICIO

Às quartas eu sempre saía mais cedo do colégio, vestindo meu uniforme

vermelho e com listras brancas na lateral, o resto do lanche ainda na mochila

velha e rabiscada de esferográfica azul e com o coração pulando de alegria ao

ver os demais colegas ainda lá, trancafiados nas salas. Era um

regozijo*(Asterisco) quando chegava a terça-feira à noite, eu já dormia

saboreando o prazer de sair algumas horinhas mais cedo da escola. E eu era

bom aluno, não adorava estudar e ficar horas debruçado em cima do caderno de

Educação Moral e Cívica ou da folha em branco esperando um traço do meu

compasso, mas ainda assim me orgulhava das boas notas e do boletim azul.

A minha bexiga sempre estava cheia, no intervalo invariavelmente eu

trocava meu lanche de presunto e queijo esmagado no alumínio e a garrafinha

com um suco Tang ou uma groselha pinque que minha mãe mandava, pelos

salgados encharcados da cantineira e uma fanta uva com aqueles aditivos

radioativos, depois eu ficava andando com as pernas curvadas e aquele

uniforme de elanca ralando nas minhas coxas pelo pátio do colégio, até a hora

do sinal. Exceto nas quartas, nas quartas eu não tomava aqueles deliciosos

corantes em forma de refresco e ficava só na água do bebedouro, tinha que

encher a pança de água por ordens médicas. E eu obedecia. Vez ou outra

tomava um gole de suco ou um tequinho de salsichão, assim, meio culpado,

meio sem jeito e cheio de neuras.

O tio do portão sempre ranzinza, naquele dia tirava a tranca mais cedo e

me dava um sorrisinho cúmplice e eu deixava pra trás as aulas de Gramática, de


Redação, de E.M.C., que variavam conforme o ano. Botava nas costas a

mochila e ia caminhando pelas ruas do bairro, olhando as casinhas enfileiradas,

as donas lavando a calçada, ainda com roupas de dormir, encolhidas no vento

frio da manhã, a caminho do laboratório. E por lá eu deixava toda minha urina

morna da manhã nos potinhos de plástico transparente, ainda espumando do

jato vindo da uretra. Com a bexiga defeituosa já vazia, andava passo a passo

contando os ladrilhos do caminho e procurando não pisar nas pastilhas pretas,

mirando só os intervalos de cores da calçada, até a porta de casa, atrás das

lentes grossas do meu óculos.

Mas numa quarta feira menos fria e cinzenta, numa semana em que já

brotavam as primaveras roxas nas copas das árvores e as cascas velhas dos

troncos se reagrupavam com a cola gosmenta do caule, eu vi, a caminho dos

potinhos transparentes, ordenando meus passos dentro do conga, uma mulher

na janela da casinha de tijolos à vista, sentada em sua cadeira com as pernas

aquecidas por um cobertor xadrez, olhando para fora, com um xale cor de

creme-de-nozes-dos-bolos-da-minha-mãe.
CENA 3 MAGALI

Daqui a pouco minha mãe vai entrar no meu quarto pra me acordar e falar

que tá na hora de levantar pra falar com a moça. Mas eu não quero, não quero ir

hoje. Nem quero que ela entre aqui. Não quero que ela veja que tem sangue no

meu pijama e no meu lençol. Minha mãe é enfermeira e trabalha com os

loucos.Tem só um pouquinho de sangue, talvez ela nem note. Nota sim, minha

mãe é uma águia, ela nota tudo. E anota também. Ela sempre tem uma

cadernetinha na bolsa que escreve o nome de um monte de gente, com

telefone, endereço e todo o resto. Ontem eu escondi esse sanguinho, é que eu

fui muito esperta e joguei no lixo da casa da Mônica, a minha calcinha. Eu nem

queria brincar de fazer bolinho, ontem, só fui de interesse. Ela é legal, a Mônica,

mas é meio orelhuda, o que faz que os brincos fiquem muito mais bonitos nela.

Todo mundo nota. Minha mãe sempre diz que ela é orelhuda.

Às vezes eu penso como eu ia viver sem minha mãe. Ela me acorda todo

dia com um beijo estalado e faz um café pra mim. Puxa meus cabelos e faz

trancinha com fitinha ou laço colorido. Até deixa eu escolher as cores. E pensar

que eu dei uma mordidona no braço dela um dia desses, só porque eu tava com

ciúmes da outra moça. Não sei se foi por isso ou se foi só porque eu tava com

sono e de manhã, além das ramelas duras que só saem com água morna, eu

tenho também muito mau humor. Mas foi bom tomar uma surra dela, fazia tempo

que não apanhava tanto. Há uma grande diferença entre apanhar e tomar uma

surra. Uma surra pode te deixar roxo por dias e dias. E eu tinha tomado uma

surra.
É muito difícil a gente ter que escolher entre essas coisas que a gente

quer muito. Mas eu tenho que escolher, minha tia falou que tenho. Deve ser bom

a gente poder ter dinheiro, fazer e comprar só o que quiser. Minha mãe falou que

não me dá mais nada até o Natal, nem ela, nem o Papai Noel. Ano passado até

ele tava com problemas e me mandou recado pela minha mãe que eu tinha que

escolher, não podia ter as duas coisas. Minha mãe foi gentil em me dizer antes

da noite do Natal, porque senão podia ficar muito decepcionada com ele, caso

não tivesse mandado o recado.

Eu não gosto ter que decidir, mas eu tenho. Eu gosto tanto das balas

moles que a tia me dá. Tudo de ruim acontece comigo ao mesmo tempo. Minha

xoxinha tem sangue,Se sangrar é a Menarca, cuidado com a Menarca! Eu nem

sei o que é, mas eu tenho medo dessa Menarca* (Asterisco) minha mãe não

pode saber, senão vai querer enfiar aquele treco comprido que ela e a tia

escondem no armário, embaixo das sacolas de viagem e que não gostam que

eu mexa. A Mônica diz que é absorvente, o da mãe dela é pequenininho e tem

outro que é comprido, fino e parece papel, mas a mãe dela deixa na gaveta do

banheiro e não esconde. Mas o da minha mãe e da tia é mais bacana, é

enorme, cabe pilha e fica pulando quando a gente aperta o botãozinho. Mas elas

não deixam eu mostrar pras visitas aqui em casa.

E ainda eu tenho que decidir.


CENA 4 MOJO

Eu achava que quando a gente estava pra morrer toda a vida da gente

passava em um segundo pela cabeça, ou então que eu ia entrando por um

túnel escuro, seguindo a luz lá no final pra abraçar toda a velharada já morta,

que estaria esperando pela gente e todos aqueles clichês que os filmes me

fizeram acreditar pra que eu não tivesse esse pânico da morte. Até agora pelo

menos eu não estou vendo nada. Tudo na minha vida parece estar de cabeça

pra baixo, só isso. Se eu pudesse escolher eu ia querer que minha vida

começasse com aquelas barras coloridas e aquele apitinho do começo dos

filmes e terminasse com a minha vista vendo uma TV fora do ar de fim de noite

com um som de uma música antiga qualquer, tipo aquelas que meu pai ouvia

fumando cigarro, estalando os dedos do pé e tentando continuar com a vida .

Ontem eu saí dirigindo sozinho pela rua e resolvi atropelar cachorros.

Eu sempre fui um aficcionado por filmes e séries da TV, desenhos

japoneses e acho que por isso vim trabalhar aqui. Mas não devia misturar

trabalho e diversão, senão a diversão passa a dar trabalho e o trabalho acaba

nunca sendo divertido.

Desde que comecei a trabalhar, tenho andado muito tenso. Meu ombro

direito está dolorido, parecendo uma pedra, cheio de nódulos duros no músculo.

Nove horas por dia, dá uma tensão dos diabos.

Há duas semanas não faço nada no trabalho. No início eu gostava.

Ficava lendo as caixinhas dos filmes ou olhando as fotos dos pornôs. Tem cada

pornô esquisito que chego a ficar com nojo das pessoas. Os jovens de hoje em
dia não tem mais nojo de nada. Credo! Tenho andado muito entediado no

trabalho, e isso me força a ficar pensando em coisas que eu podia estar fazendo

ao invés de estar desenvolvendo tendinite e respirando ar condicionado central.

Isso não é bom. Fico pensando em viajar. Pra viajar eu preciso de dinheiro, pra

conseguir dinheiro trabalho, mas se eu trabalho eu não posso viajar. Às vezes

eu entro na internet, num site pornô ou fico de bate-papo com algum aloprado,

sempre com um nick de mulher, que é pra estimular o cara a se abrir e se

mostrar freak. Você nem imagina o que descobre das pessoas com um par de

tetas virtuais.

É fácil encontrar os cachorros. Muitos dormem no meio das ruas mais

calmas, estão acostumados com os carros, sabem que todos desviam.

Consegui atropelar cinco cachorros. Senti o solavanco da roda passando

em cima de seus corpos, o encontro de uma cabeça com o pára-choque. Não

tenho nada contra eles, mas eu estava meio bêbado e queria fazer alguma coisa

malvada. Dois morreram na hora, e outros três saíram correndo em círculos,

latindo muito, até caírem mancando no chão, ganindo um pouco, ou não, e

então morreram. Dirigi muito atrás dos cães. No meio da madrugada eu parei

num posto Esso pra comprar uma cerveja. Tinha Brahma por 85 centavos,

comprei duas. Há muitos cães vadios nas vizinhanças residenciais do Jardim

Ferrari, e na Avenida Juca Batista.

Mas a única coisa divertida mesmo do trabalho é a Wanessa. Uma

dessas minas peitudas e gostosas que ficam empilhando os vídeos da

locadora.Ela sempre vem me perguntar coisas imbecis tipo. Você gosta de


signos? Posso ler o teu? E fico imaginando o dia que ela vai chegar e falar com

a maior naturalidade do mundo,Você gosta dos meus peitos? Quer chupar?

Fui procurar mais cachorros. Pior é que eu adoro cachorros, eu tenho três

vira latas lindos, vivem presos no quintal há mais de dez anos.

Se fossem soltos na rua, morriam rapidinho, de fome ou atropelados, ou

atacados por outros cães. Por isso eles estão lá no quintal, e vão ficar lá pra

sempre, até morrerem de velhice, ou de alguma doença doméstica para qual eu

tenha esquecido de dar vacina.

Já pensei em atropelar gatos, mas eles são mais rápidos e menos

inocentes que os cães. Consegui atropelar um gato na noite passada, preto. Foi

muito mais regojizante do que acertar um cachorro, porque gosto de cachorros,

mas odeio gatos. São criaturas extremamente irritantes. Odeio gatos tanto

quanto aqueles cachorros pequenos, que parecem ratos, e os poodles,

principalmente os pequenininhos ou aqueles com os pelos esculpidos.

Parece o cabelo de uma cliente aqui. Ô guria esquisita, cheia de tatoos,

até que são tatoos bacanas, mas não pra uma guria. E tem o cabelo todo

cavocado, sabe?

Eu li que em junho um japonês espancou seu cachorro até a morte

porque pegou ele tentando montar no outro cachorro da casa. O japa matou o

cachorro porque o cachorro era gay. Depois a mulher, uma americana gorda,

cheia de celulites, que eu vi nos braços dela pela TV, denunciou o japa que foi

preso. Eram dois poodles. Dois poodles boiolas. O japa burro não sabia que eles
faziam isso só pra demonstrar superioridade, como berrar no futebol ou lutar jiu-

jitsu. Nada como um pouco de homoerotismo pra mostrar que se tem culhão.

Mas aposto que esse japa vai aprender muita coisa com seus colegas de prisão

sobre a homofobia.

Japoneses são engraçados. Aqueles zoinhos puxados me intrigam.

Reparo muito nos olhos das pessoas.

CENA 5 MAX

Eu sou Genésio. Genésio tem um saco cheio de vales-transportes.

Genésio fica parado em frente aos prédios da Voluntários da Pátria anunciando

que tem vales e aproveita para vender também carteiras de cigarro a sessenta

centavos cada. Genésio anda satisfeito porque ultimamente muitos Genésios

compram as carteiras de cigarro, e alguns deles também compram e vendem

vales transporte. Genésio fica de pé a maior parte do dia, repetindo Vale vale

vale vale vale sem parar. Genésio almoça um cachorro-quente de cinqüenta

centavos, um real com refri. Genésio aperta os olhos e espreme os beiços

quando alguma menina gostosinha passa na calçada. Quando chega em casa,

Genésio vira caldo de cana.

Já faz uns doze anos que estou aqui nesse hospital pra gente louca, e o

que eu mais faço o dia inteiro é ficar sentado na frente das árvores pitando um

cigarro e me mexendo de leve pra frente e pra trás. Eu não sou louco, mas
consigo enganar todo mundo, até os médicos. Vim pra cá depois de quebrar

tudo em casa e dar umas porradas no meu pai. Ele merecia, era um filho da puta

que só sacaneava minha mãe. Bati nele até ficar com a cara cheia de sangue.

Eu sou um cara grande, dou porrada em quem quiser como quem amacia carne

de gado. Quando a polícia chegou comecei a me fazer de louco, a não falar

coisa com coisa e de vez em quando rir sem parar. Aí me trouxeram pra cá e

aqui fiquei até hoje. Já estou até barrigudo, porque não faço muita coisa e aqui

os sujeitos te enchem de comida mesmo quando você não está a fim. Antes eu

não comia muito, mas quando me dei conta que comer e fumar eram as únicas

coisas que se tinha pra fazer neste lugar comecei a encher o bucho sempre que

surge a oportunidade.

Eu sou Rita. Rita tem uma caixa cheia de despertadores à sua frente.

CENA 6 MILTON

A gente acordava todos os dias às 6 horas e 56 minutos, não às sete.

Depois a gente levantava, arrumava a cama, tirava o plástico que cobria a

fronha do travesseiro, trocava o lençol.

Um micróbio se duplica em sete minutos.

Sete e dezesseis era hora de passar o aspirador por todo o quarto e em

cima das camas. Os dois, juntos.


CENA 7 MESTRE EME

“Só estendendo suas fantasias e sacrificando tudo à volúpia, o homem

conseguirá atingir a felicidade. Não existe dúvidas.” Este foi seu último rabisco,

num rodapé de um de seus relatórios, direcionado a mim, antes que morresse e

me deixasse assim…arrebentado.

Eu sou seu assassino.

Que tipo de cristão sou eu? Que qualidade de pai para meus dois filhos?

Você me pergunta isso só porque eu quero a minha felicidade?

O que me faz um doente?

Faria diferença se eu batesse minha punheta trancafiado no banheiro e

depois deitasse feliz ao lado da minha mulher? E agora, se eu batesse minha

punheta no escritório?embaixo da mesa? lambendo os pés da cadeira e ouvindo

o viva voz da secretária? encharcando de café o meu peito e prensando meu

escroto na gaveta, para que eu me retorça de dor e mele o carpete com o

creme viscoso em jatos…Faria diferença? É também uma punheta, não seria

isso uma punheta equivalente?

O que a difere é que essa é a MINHA punhetação. Só. Você não conta

para sua mulher. Eu também não.

Você quer a felicidade e direito de voto. Eu também quero.


(pega um papel)Essa é uma carta para Nora, lá pelas tantas…"Naquela

noite, bem, tua bunda estava cheia de peidos, e com a foda eu os fiz sair,

grandes e gordos, prolongados e cheios de vento, estalinhos rápidos e alegres e

uma porção de peidinhos pequeninos e travessos que terminavam num jorro

demorado por teu buraco. É maravilhoso foder uma mulher peidorreira quando

cada metida faz sair um. Penso que eu reconheceria um peido de Nora em

qualquer lugar. Penso que poderia distinguir o dela numa sala cheia de mulheres

peidando. É um barulhinho bem de menina, não como o peido molhado e cheio

de vento que imagino ser o das esposas gordas. É inesperado e seco e

indecente como o que uma menina atrevida soltaria de pândega num dormitório

de colégio à noite. Espero que Nora nunca pare de soltar peidos na minha cara

para que eu fique conhecendo também o cheiro deles."

Quando eu tava no aeroporto e o gringo me perguntou para onde eu ia,

não imaginava que acabaria engolindo o esperma dele e me lambuzando.

Por que você me censura assim? Eu podia ser seu marido. Ou eu podia ter nas

amídalas, os filhos do teu marido, agora meus e não teus.

O nome dele eu li só no dia seguinte, no crachá dependurado na cadeira, nas

idas e vindas que o movimento da língua dele escavando meu buraco

provocava. Eu ia e lia John e vinha. Eu ia e lia Stuart e vinha. Eu ia e lia Nova

York e vinha. Eu ia e não li mais nada, deixei o gozo escorrer pelos dedos dele.
A sua mulher preparava o peru para o Dia de Ação de Graças enquanto John

fazia mais um relatório sobre o estado das usinas hidrelétricas do meu país e

pela primeira vez recebia, sentado em frente ao computador, jatos de mijo

vindos de um pau duro que havia sido chupado por mais de quatro horas, com

pequenos intervalos e cortes abruptos para evitar a precoce ejaculada. “No rosto

do teu dono”. Ele queria no rosto. Freneticamente, exaustivamente. A chuva

prateada no rosto. Enquanto mijava nele, a imagem do meu filho de bexiga

problemática me passou pela cabeça, numa rápida cena, que me excitou ainda

mais.

CENA 4.2 MOJO

Japoneses são engraçados. Aqueles zoinhos puxados me intrigam.

Reparo muito nos olhos das pessoas. Os da Wanessa são puxadinhos, uma

beleza.

Aqui na locadora vem sempre um japa metido a mano, alguém devia

avisar pra ele que ele não é negão. Vem com uma panca cheio de brou, mano,

falou véio. Acho isso engraçado, se fosse qualquer outro cliente não seria tão

incoerente,Brou, e aí, belê véio? nem se fosse a vozinha que pede uns filmes de

ação com o Charles Bronson, Qual que é o que passa véio, tá ligado nas fita?,eu

nem ia estranhar.
Quando bate o tédio eu vou pra net tapear alguém ou fico zapeando a Tv

que nem louco, sem som, de um canal pra outro. As vezes eu ponho um CD

com uma música qqer e fico virando as imagens tentando organizar um

videoclipe em segundos. De vez em quando páro olho, depois recomeço.

Porque neguinho só passa filme ruim na tevê? Antigamente rolava uns preto e

branco, com a Audrey, ou um musical com Gene Kelly. Agora só passa filmes

com a bandidagem, com aquela gente com cara de pobre do nordeste que eu

pulo todo dia na rua antes de ir pro trabalho ou aqueles filmes cheios de tiros e

explosões que só gente muito retardada das idéias pode gostar. Depois os

americanos não querem que só tenha psicótico por lá, ficam enfiando essas

mensagens subliminares no inconsciente das pessoas e criando anormais. Eu

mudo de canal rapidinho que não sou besta. Eu adoro filmes PB. Tenho uma

cópia em VHS de um filme japonês de época que nunca descobri o nome, com

uma japa lindíssima. Se eu tivesse dinheiro eu ia morar no Japão com certeza,

lá eu podia casar com qqer mulher que ela provavelmente teria os olhos

puxadinhos. E mulher japonesa é linda e recatada, pelo menos nos filmes elas

quase sempre cobrem a boca pra rir. Eu ia querer japonesa japonesa e não

japonesa metida a ocidental, de plataforma não, até porque eu não sou muito

alto pra pegar um guria que usa plataforma. Por isso eu odeio os travestis. Se

bem que na rua do centro tem uns travecos bem apanhados que até enganam a

gente. Quando to de saco cheio eu fico andando de carro e olhando eles, mas

principalmente as putas e as vadias de tetas de fora de lá, que me intrigam

muito. Como uma mulher pode ser tão cadela?


Um dia o cara do estoque me chamou no canto e falou,Tu tá afim da

Wanessa que eu to vendo!, e eu,To caído na dela, E já catou?, e eu, Não,Como

não?Ela já deu pra todo mundo, já deu até pra mim.

E apesar de eu estar na dela eu me aproximei e chamei no canto,Você é

uma cadela, e ela, O quê?,Cadela!, ela chorou e confirmou, depois disse de

forma lasciva, de forma lasciva (!!!) de cadela no cio, Você gosta dos meus

peitos? Quer chupar?eu disse, Se encostar em mim te quebro os dentes. Não

suporto essa facilidade e fui dirigindo chorando pela rua.

Fui procurar mais cachorros.

Na minha rua tem um cachorro caolho. Ele é caolho porque uma vez um

amigo meu tacou tijolo na cara do cachorro que milagrosamente sobreviveu,

depois de ficar com a cabeça semi putrefata por uns dois meses. Mas ele se

recuperou e agora anda por aí caolho. Os outros cachorros não mexem com ele,

provavelmente pelo fato de ser caolho, o que suscita compaixão, que é um

sentimento cultivado pelos cães em geral. Resolvi atropelar esse cachorro.

Subi a rua e vi o cachorro caolho no meio da rua, parado, parecia um boi.

Acelerei e ele nem se deu ao trabalo de sair. As duas latas de cerveja fizeram

alguma diferença no meu estômago vazio, e errei o cachorro, peguei ele de lado,

ele saiu correndo desesperado, meio que arrastando, mas sem emitir um único

som, parecia até mesmo estar sorrindo. Deu umas voltas e diminui a velocidade,

até quase parar, e então começou a ganir. Mexia apenas as patas da frente.

Fiquei com pena e me arrependi profundamente de ter tentado atrolpelar o

cachorro caolho. Parei o carro e desci. Tirei minha blusa e recolhi o cão que
tinha as pernas de trás esmagadas. Resolvi levar num veterinário 24 horas que

eu conhecia. Ele ficava ganindo com intervalos regulares, mas sem muito

estardalhaço, ensanguentando todo o banco do meu carro. O cachorro caolho

morreu nos braços do veterinário. Na manhã seguinte notei sangue no meu

pára-choques, limpei com uma mangueira antes de ir pro trabalho.

Depois dei umas voltas e resolvi chamar uma puta no centro. Ela fez

gracinhas, me roubou um isqueiro e eu lambi a pálpebra que cobria uns olhos

azuis irresistíveis e a grudei no carro que fedia a sangue. Ela saiu e resolveu me

fazer um estripetise (strip tease) iluminada ,pelos faróis do meu carro, Não faz

isso, não faz isso comigo.

Ridícula, não tinha o corpo perfeito e se achava o máximo. Disse algumas

obscenidades, mas nem ouvi. Ainda riu quando liguei o carro e ameacei

acelerar.

CENA 1.2 MADÀ

Certo dia uma menina ligou chorando, contando que seu pai costumava

forçá-la a colocar os dedinhos dentro da vagina, enquanto ele assistia e ficava

se contorcendo. Eu anotei seu endereço, nome completo e denunciei o caso à

polícia. Fui veementemente repreendida e me afastaram por duas semanas do

auxílio por telefone. Eu não sou Deus, mas queria poder fazer algo mais por

aquelas pessoas, que simplesmente ouvi-las e “baixar a tensão”. Então resolvi


que se pudesse ajudar eu o faria, de algum modo, e fora dali, assim ninguém

saberia e não correria o risco de ser punida novamente.

Outro dia ligou para o Centro uma garotinha querendo saber como ligar o

videocassete para assistir a um filme. Na realidade a mãe e a tia tinham ido

viajar e ela estava morrendo de medo de ficar sozinha. Fiquei horas com ela no

telefone, conversando sobre sua vida e seus problemas de pré-adolescente. No

meio da conversa, perguntei onde ela morava, Em Pinheiros, tia, respondeu.

Que rua? Que edifício? Ela era minha vizinha. Ao final da ligação ela chorou e

confessou o real motivo da ligação. O pai tinha se separado e a mãe a deixou

em casa de castigo e foram viajar. Saí do trabalho quinze minutos mais cedo –

aleguei um ataque de úlcera sistêmica, associada a estomatites latejantes em

todas as mucosas (sei lá se isso existe, mas achei bastante convincente) -

peguei minha bolsa, ajustei meu rabo-de-cavalo, dei um tchauzinho de longe

para Maria Alice e fui pra casa.

Em frente ao edifício da menina titubeei. Toquei a campainha: Meu nome

Maria das Dores. Pequena era chamada de Madá. Mas tem dias que ouço

alguém dizer Olha lá A Benfazeja*(Asterisco).Ela deschaveou e entrei. Fiquei lá

com ela durante toda a noite. Assistimos juntos “O Fabuloso Destino de Amelie

Poulin” – por sinal, chorei muito – e ela adormeceu no sofá. Fui embora, mas

deixei um bilhete alertando para que ela nunca mais abrisse a porta a uma

pessoa estranha que dissese apenas seu nome e não contasse o fato aos pais.

Num sábado de manhã me ligou uma senhora, disse obscenidades,

coisas como lambidelas, e outros termos que não me recordo, ou melhor, me


recordo sim, mas não acho fino reproduzi-los, mas que me deixaram de certo

modo excitada. Eu a reprimi, disse que o serviço que fazia era muito importante

para a vida de muita gente e que esse tipo de ligação só ocupava o meu tempo

e o de meus colegas, o que poderia levar à morte outras pessoas que

estivessem realmente precisando de ajuda, de um ombro amigo. As vezes sou

tão apaixonadamente consistente que me emociono com minhas próprias

palavras. Desligou pedindo desculpas e jurando se masturbar, a partir daquele

dia, apenas com a voz das atendentes de telemarketing.

Aqui no Centro de Ajuda a gente tem que se livrar de nossos preconceitos

e não julgar ninguém que peça auxílio.

E assim foi que minha vida se tornou mais interessante e prazerosa, eu

não podia, mas sabia que deveria levar trabalho pra casa. Acabei por ter noites

tranqüilas e sonhos agradabilíssimos, inundando meu travesseiro com minha

baba.

Dona Flora também telefonava com freqüência, tinha artrose e sentia

formigamento nas pernas. Vivia sozinha, a filha não a via com frequência e não

conseguia mais fazer seu escaldapés, às nove horas. Então, às segundas,

quartas e sextas, aparecia nas redondezas da casa dela, até descobrir seu

endereço. Apresentei-me. Sou uma missionária-escoteira de uma congregação

neo-cristã-maomética, tenho que fazer ações de total desapego, por favor me

ajude a ajudá-la, Dona Flora, disse com meu rabinho bem esticado. Então três

vezes por semana, atravesso a Jacu Pêssego e tomo duas lotações para

preparar um escaldapés cada vez mais quente para a velha de dedos tortos.
Sou altruísta, tenho orgulho disso, minha mãe também era assim, tempo

inteiro vinha gente pedir água, café, pão velho, comida em casa, e nunca vi

ninguém sair sem um abraço ou um bom conselho. Acho que estou me saindo a

ela ou até superando a sua benevolência.

Consegui me livrar de velhos conceitos em nome da vida e em favor do

próximo. Acho que salvei vidas, muitas vidas, centenas delas. Não há morte

comparada ao suicídio, é a pior das agressões, é a violência contra seu próprio

corpo, abominável, geralmente por um fator externo ou por mera carência afetiva

mesmo - já estou quase pronta pra dar as palestras.

Quando o telefone tocou naquela tarde, ouvi um soluço e um choro

compulsivo através da linha. Não conseguia sequer identificar o sexo do

interlocutor, quanto mais suas palavras. Tentei acalmá-lo, baixar a ansiedade,

mas meus apelos pareciam não ter retorno. Ouvia ruídos de máquinas e

palavras soltas, morrer, acidente que bateu e matou, morrer, culpa, solidão,

fusca azul e finalmente o estampido de um disparo e o telefone mudo, batendo

contra uma parede em meio ao ruído das máquinas. Fui até o banheiro, chorei,

assoei o nariz e esperei a próxima ligação.

Um jovem, de uns 26 anos, se dizia desesperado. Não tinha dinheiro para

comprar o gás para se matar, não tinha nada. Passava a noite vendo filmes na

tevê e imitando os vendedores de produtos da madrugada. Ele imitava direitinho,

era engraçado, chegamos a rir juntos. Já com a ansiedadde baixa confessou

que nunca tivera uma mulher, nem um homem, na vida. Já tinha beijado na

boca, tocado nos peitinhos de uma adolescente, mas nunca tinha efetivado um
ato. Seu pau nunca havia sido tocado por pessoa alguma e em nenhuma

circunstância. Ele pensava seriamente em se matar. Àquela altura da vida tinha

vergonha de sair com qualquer mulher e imaginar que ela notaria sua

inexperiência. O choro era descontrolado, infantil e durou cerca de meia hora até

minha resolução. Marquei com ele num banheiro público, na Praça das Pombas,

eu estaria de rabo-de-cavalo com um elástico vermelho e ele com um blusão

preto com uma pantera nas costas e calça jeans desfiada na barra. Encontramo-

nos em frente de um banheiro que cheirava a urina, de tijolinhos à vista. Ele

passou por mim e o segui até o box. O rapaz estava trêmulo, entrou em uma

cabine e eu em outra, bem ao lado. Enfia seu pau por baixo, querido. Era um

membro sem pele, pequeno e murcho, comecei a massageá-lo até que ficasse

intumescido e latejante. Quando estava prestes a ejacular, segurei-o com

firmeza e atrasei seu gozo. Esperei seu pau diminuir de tamanho, para então

depois recomeçar, acariciando a glande com a língua e finalmente

abocanhando-o até a base, aguardando seu jato que veio em cascata. Através

daquele vão entre as cabines do banheiro público, proporcionei um momento

inédito de prazer àquele pobre homem e cheguei a umedecer minha calcinha.

Limpei o rosto com um papel higiênico rosado, áspero e saí, deixando-o lá, em

êxtase. “Deus lhe pague, dona”. Amém.

Hoje de manhã, sábado dia 23, recebi mais uma ligação, parecia ser mais

uma dentre muitas, ela se identificava como Janete, uma adolescente que havia

flagrado o padrasto abusando da irmã caçula em cima da cama da mãe.


CENA 6.2 MILTON

Um micróbio se duplica em sete minutos.

Sete e dezesseis era hora de passar o aspirador por todo o quarto e em

cima das camas. Os dois, juntos.

Banho bom é de bucha, em um grama de pele há um milhão de

micróbios, caindo pela metade se bem esfregada. Eles se escondem no suor, no

sebo, no folículo do pêlo.Depois do banho, tomado com sabonete anti-alérgico e

bactericida, passava talco pelo corpo e nos pés, principalmente nos pés.

Arregaçava os dedos e friccionava o pó na sola, sem esquecer aquele ponto

crítico de pele, e que é esquecido por (quase) todos, que se situa acima do

calcanhar e abaixo daquele ossinho saltado, quase no tendão, e que juntaria um

cascão, misto de pele morta e suor seco, não tivéssemos descoberto isso aos

quinze anos de idade. Nos apaixonamos assim, nos intervalos das aulas de

educação física, nos bancos de uso coletivo dos vestiários, tirando sujeira de

meias dos vãos dos dedos dos pés. Trocamos olhares, trocamos sorrisos,

trocamos telefones e finalmente trocamos os talcos, foi amor fulminante.

Nos pés as meias alvas, na boca o fio dente por dente e escovamos cada

vestibular. Só aí trocávamos um beijo nos lábios, de leve, discreto, evitando o

contato salivar e, ambos, secretamente, enxugávamos os lábios com um

lencinho embebido em álcool - certas coisas num casal requerem discrição.


Eu, o cônjuge (sempre gostei dessa palavra, enche a boca, palavras que

são possíveis de se pronunciar com a boca cheia de farinha, sempre são

benvindas. Não que pronuncie qualquer palavra no mundo sem ter terminado de

dar as doze mastigadas no bolo alimentar, longe disso) na volta do trabalho,

tirava os sapatos para entrar, ia para o banho. Ela, a esposa, bem asseada,

esperava ansiosa por limpar cada fresta das minhas orelhas, ficando atenta à

parte detrás dos lóbulos ( é engraçado que já notara que a do lado da mão que

escreve, junta mais sebo de cor escura que a do outro. Por quê? Será que se eu

fosse canhoto…não, não,esquece) do cônjuge(ela não gostava dessa palavra,

mas eu insistia. Um dia balbuciei algo a respeito de farinha, mas ela não prestou

muita atenção. Farinha? Será que ele anda metido com tóxicos? …não, não,

esquece).

O banho deve começar pelos cabelos, para que a sujeira deles escorra

para baixo e só então lavar o resto, sempre de cima para baixo respeitando a Lei

de Newton. Há uma toalha própria para os pés, outra para as partes íntimas. As

toalhas são descartadas por mês, mas lavadas diariamente. Os talheres não,

são de prata, mas acondicionados num forno próprio para a desinfecção.

Espirro. Sinal de ácaros. Momento de levantar os móveis e passar um

paninho úmido em tudo. Ou será uma gripe? Nada pior que um vírus que vem

dos patos chineses, se adapta num porco - ai Deus! - e depois ataca o ser

humano.

Mas naquele dia o patrão conseguiu encontrar uma desculpa pra me

mandar embora antes. Logo esse gringo me despede, eu sei. Esses gringos. Eu,
então, fui para a casa, mas não entrei. Era cedo, talvez devesse esperar, não

deveria chegar fora do horário. Esperei, esperei, não aguentei e subi. Usei as

escadas para perder mais tempo. Que arrependimento

CENA 2.2 MAURICIO

No laboratório eu deixava toda minha urina morna da manhã nos potinhos

de plástico transparente, ainda espumando do jato vindo da uretra. Com a

bexiga defeituosa já vazia, andava passo a passo contando os ladrilhos do

caminho e procurando não pisar nas pastilhas pretas, mirando só os intervalos

de cores da calçada, até a porta de casa, atrás das lentes grossas do meu

óculos.

Mas numa quarta feira menos fria e cinzenta, numa semana em que já

brotavam as primaveras roxas nas copas das árvores e as cascas velhas dos

troncos se reagrupavam com a cola gosmenta do caule, eu vi, a caminho dos

potinhos transparentes, ordenando meus passos dentro do conga, uma mulher

na janela da casinha de tijolos à vista, sentada em sua cadeira com as pernas

aquecidas por um cobertor xadrez, olhando para fora, com um xale cor de creme

de nozes dos bolos da minha mãe. À sua frente, mas não à sua vista, a floreira

brotava pequenas maria-sem-vergonhas de três cores, branca, vermelha e

rosácea, logo abaixo da vidraça e ela fitava o não-sei-o-quê. Tinha o corpo


ligeiramente inclinado e o pescoço esticado, como se estivesse observando algo

muito interessante. Cheguei a imaginar seus dedos tortos de artrose se

espremendo em uma sapatilha molinha, com meias de lã, como as que minha

avó usava para andar em casa,e aflita se contorcendo para ver melhor o aqui

fora.

Minha bexiga me espremia, fazia eu me sentir carregando um balão

pronto a estourar a qualquer instante e por isso enchia com tanto prazer, a jatos

de mijo, aqueles potes de quarta. Meus dentes manchados dos antibióticos

mascaravam um sorriso puro e ingênuo, límpido como o ar daquela cidadezinha

e das brisas primaveris , enquanto urinava. Sentia-me um velho quando soltava

essa palavra: urinar. Ninguém com menos de sessenta anos fala urinar, mijar,

mijar sim. Mas gostava de me sentir velho. Urinaria, a partir de então.

Quando a outra semana chegou e o mesmo trajeto eu peguei, sempre

mirando os ladrilhos certos da calçada, notei a casa de tijolinhos e as flores e a

velha por trás da vidraça, com os olhos esbranquiçados a observar com gosto o

aqui fora, com um sorrisinho na boca engruvinhada, com o rosto perdido em

uma touca de crochê. E ela olhava. Não fazia nada, mas olhava. Virei de costas,

tentei encontrar o que ela tanto gostava de ver, mas não tinha nada de mais, só

tinham uns passantes, umas folhas secas pela calçada, uns passarinhos chatos

tentando me irritar e um garoto esquisito com sua mochila e sua bexiga

estragada. Velhos tem um sorriso triste e apavorante, quando eu os vejo logo

me imagino recebendo sopinhas na boca, dormindo na casa do meu genro e

sendo lavado por um enfermeiro afrescalhado. Talvez por isso guardem essa
expressão tranquila, eles já não tem mais nada a perder e talvez por isso

mesmo ela sorria na janela em sua cadeirinha, tomando a réstia do sol da

manhã.

E por toda quarta feira passava por ali e eu a observava absorta e

sorrindo, arqueada para frente, ora com luvas coloridas, ora com uma manta ou

com um chapeuzinho qualquer em desuso.

Quando o médico me liberou dos exames semanais e me instaurou uma

rotina quinzenal de visitas, eu me punha a imaginar, enquanto rabiscava o

caderno quadriculado, como estaria a velha, qual seria o grau de empenho em

olhar para a frente e para o nada, com que cores demodês estaria vestida e o

que estaria vendo em seus olhos embaçados. E na semana seguinte já não

passava com tanta pressa em seguir para minha urinadas e me deixava olhar

uns minutos para ela.

Dona Flora, me disseram que se chamava, morava com a filha, uma

moça alta, provavelmente aquela que a depositava ali pela manhã, no sol-

vitamina-D aclamado pelos doutores. Uma moça doce e de cabelos pálidos que

sempre trajava uma cachemir rosa bebê e um colarzinho reluzente no reflexo do

sol. Vez ou outra aparecia uma outra moça, que mergulhava os pés dela num

jarro esmaltado fumegante e depois ia embora.

Na semana em que perdia minhas ilusões e pensamentos nos

quadriculados das folhas, decidi bater palmas na casa da velha e me convidar a

tomar um chá com bolachas que eu levaria comigo. No final da xícara, lamberia

a borra com o açúcar e já familiarizado com aquele lar e as pessoas, perguntaria


sussurando a Dona Flora qual seu segredo, o que a fazia perder seu olhar com

tanto encantamento através da vidraça.

CENA 5.2 MAX

Eu sou Rita. Rita tem uma caixa cheia de despertadores à sua frente. Rita

escuta os despertadores tocarem sem parar o tempo todo em meio ao barulho

da Voluntários da Pátria. Rita tem trinta e cinco anos, um rosto que aparenta

quarenta e cinco e um corpo mais em dia do que os de muitas outras Ritas de

vinte e cinco. Rita diz para todos que não se incomoda nem um pouco com os

bipbipbipbipbipbipbipbip dos despertadores que vende, mas de noite não

consegue dormir porque está sentindo muita dor de cabeça. Rita não escuta

quando alguém que passa a chama de gostosa, porque o som dos

despertadores é mais alto. Rita também vende guarda-chuvas quando o tempo

está ruim. Quando chega em casa Rita vira coxão mole.

Os médicos me enchem de remédios, e eu tomo todos. No começo eu

fingia que engolia e depois cuspia fora, e pra continuar fazendo que era louco eu

de vez em quando quebrava a cara de algum dos loucos de verdade que ficam

aqui junto comigo. Aí apareciam do nada um monte de atendentes, me

agarravam por todos os lados e me amarravam numa cama, onde eu ficava


horas. Não é uma coisa muito legal. Dá vontade de mijar, de cagar, e vc não

pode fazer nada. Tem uns que sujam a cama inteira. Mas o pior mesmo é

quando dá coceira, porque se você não coça na hora, ela vai aumentando,

aumentando até tomar conta de todo o corpo. E amarrado numa cama você não

tem como se coçar, porra. Foi por essas coisas e por estar um pouco cansado

de brigar que eu comecei a tomar os remédios direitinho. Engulo tudo a seco e

fico quieto no meu canto, me fazendo de louco sob controle. Os médicos ficam

satisfeitos, os atendentes também, e ninguém me enche o saco.

Eu sou Marciano. Marciano tem centenas de papéis na mão.

CENA 7.2 MESTE EME

“No rosto do teu dono”. Ele queria no rosto. Freneticamente,

exaustivamente. A chuva prateada no rosto. Enquanto mijava nele, a imagem do

meu filho de bexiga problemática me passou pela cabeça, numa rápida cena,

que me excitou ainda mais.

Com a medicalização da sociedade, imoralidade foi substituída por

doença. Inúmeras práticas sexuais foram rotuladas de "desvios", o que significa

"doente" no contexto diagnóstico. E muitas dessas práticas, como o sexo oral,

esse mesmo que você faz no seu marido, o sexo anal, que seu marido faz na

senhora, são hoje consideradas normais, ou pelo menos não como doenças
como se pensava. Uma razão para isso é a crescente aceitação de atividades

sexuais como prazeres legítimos, a atividade sexual não necessariamente tem a

procriação como objetivo. Isso a gente tá cansado de saber… Se para Sartre no

seu L`Être et le Néant, por princípio o masoquismo é um fracasso, isso em nada

pode nos surpreender, se pensarmos que o masoquismo é um "vício" e que um

vício é, por princípio, o amor do fracasso. Sinto se te faço de meu uso e meu

escravo aqui, pobre Sartre.

Foi na Itália e não em Amsterdam que experimentamos nosso primeiro

sexo eletrizante, tinhamos bebido quatro doses de uísque e assistido a um

campeonato americano de beisebol na televisão. Mas John era um workaholic.

Se estivesse vivo, agora estaria digitando algo, lendo uma planilha ou

analisando gráficos sobre energias condutoras em usinas hidrelétricas. Meu

mestre me amordaçou, amarrou meu braços e pernas na cama e começou seu

estudo. Sexo e energia elétrica juntos! Umedeceu todo meu corpo com a boca e

sacou uma parafernália que ele mesmo havia preparado com eletrodos

encontrados em lojas de equipamentos cirúrgicos, de borracha condutiva. Um

eletrodo anal e outro uretral. “Vou te acender”, cochicou. John falava coisas

como corrente alternada, corrente contínua, ampere, corrente elétrica, diferença

de potencial…a bem da verdade, o que me importava não tinha nome. “Não se

preocupe, vou ficar entre os 30 e os 70 mili-ampères”, disse ele. Gritaria “me põe

em curto-circuito!”, se não estivesse tão bem amordaçado. Ele pegou um par de

eletrodos bipolares e colocou um na minha próstata, por via anal e outro no


pênis, como uma espécie de sonda uretral, umedecendo com um gel específico.

Não precisa ser um gênio da física pra saber que a correte elétrica sempre faz o

menor caminho, o que oferece a menor resistência e por isso ele me umedecia

com tanto empenho…Nunca imaginaria o que as barragens hidrelétricas

poderiam me trazer além de energia para um banho morno! E então acionou o

interruptor, primeiro um formigamento, depois as contrações musculares

começaram, uma, duas, três, e aquilo que parecia um prêmio, na quarta vez se

tornava um castigo terrível e que eu amava em gozo profundo, amaldiçoando e

rezando em brasas elétricas, enquanto me retorcia.

Ao invés de ensinar piano às meninas, pilotar carros aos meninos, os pais

deveriam prescrever a liberdade como o elemento de obediência e regra de

conduta. Ah, e jamais perdoar às faltas às aulas de física!

Quando nos encontramos novamente no Rio, já tinha deixado os dedos

grossos e quentes de John pulsarem dentro de mim. Os dedos sim. Primeiro um

- uma vodca, depois dois-a noite dos Lakers, depois três- dopado de Lexotan.

O resto ele colocou aqui mesmo, alguns meses depois, num motel barato de

uma cidade do interior com barreira hidrelétrica em análise. Nada de uísque,

Lakers, Lexotan ou vodca. Eu queria estar inteiro e ele inteiro em mim.

Foi quando enfiou a mão. Até o punho.


CENA 3.2 MAGALI

Eu não gosto ter que decidir, mas eu tenho. Eu gosto tanto das balas

moles que a tia me dá. Tudo de ruim acontece comigo ao mesmo tempo. Minha

xoxinha tem sangue, minha mãe não pode saber, senão vai querer enfiar aquele

treco comprido que ela e a tia escondem no armário, embaixo das sacolas de

viagem e que não gostam que eu mexa. A Mônica diz que é absorvente, o da

mãe dela é pequenininho e tem outro que é comprido, fino e parece papel, mas

a mãe dela deixa na gaveta do banheiro e não esconde. Mas o da minha mãe e

da tia é mais bacana, é enorme, cabe pilha e fica pulando quando a gente aperta

o botãozinho. Mas elas não deixam eu mostrar pras visitas aqui em casa.

E ainda eu tenho que decidir. A tia é bacana, mas minha mãe dá beijos

mais melados. O pai da Mônica mora com a mãe dela, então ela não tem que

escolher.

Eu devia falar mais da tia, mas tinha uma época que eu era proibida de

dizer qualquer coisa a esse respeito. Meu pai morava aqui. A tia chegava a tarde

e me dava um monte de presentes para eu não falar nada. Eu sei que isso dá

cadeia, minha mãe diz que chama chantagem, meu pai já foi pra cadeia. Não

por causa da chantagem, ele é muito rico e minha mãe diz que é com dinheiro

dos outros. O irmão da tia é louco. Mas ela não é. Minha mãe conheceu a tia lá

no trabalho dela, minha mãe cuida do irmão louco da tia.

Hoje eu vou ter que ir lá de novo, olhar na cara daquela mulher e dizer se

quero ou não que meu pai me visite. Acho que até quero, se ele não bater na

minha mãe, mas a tia me dá balas de morango que grudam no céu da boca e
que posso ficar horas sentindo o gosto. Ela não quer que eu deixe o pai me ver.

Minha mãe fala que eu tenho que decidir, mas eu sei que ela não quer também.

Na outra semana eu disse “Quero ficar com a minha mãe e a tia”, elas

ficaram muito felizes comigo. Em casa fizeram batatas fritas, me disseram que

vão me dar um cachorrinho igual aquele do meu pai que foi atropelado, depois

se abraçaram e se beijaram na boca, eu acho, mas eu finjo que nem vejo. Às

vezes as duas entram no quarto e ficam vendo televisão. Outras vezes elas

entram e ficam fazendo um barulho e minha mãe dá gritinhos. Acho que elas

gostam de conversar. A minha amiga Mônica disse que as duas ficam beijando

na boca e contando piada suja, mas eu acho que elas ficam passando pomada

no cu. Ai, vou ter que falar com o padre Alberto. Toda vez que eu falo bobagem

eu converso com ele. Mas dessa vez eu só pensei, não sei se precisa.

O padre Alberto me dá muitos conselhos e um dia pediu pra ver se meus

peitos estão grandes, pra saber se deveria pedir sutiã pra minha mãe. A Mônica

falou que ele não usa cuecas e que já mostrou pra ela. Pra mim ele ainda não

mostrou, mas em mim ele já examinou se não tinha caroços nos peitos e nela

não. Esse exame é muito importante. Ele é um homem muito bom e acho que se

preocupa mais comigo que com a Mônica. Talvez eu leve minha calcinha suja

pra ele jogar fora, ele disse que tudo bem, que a Mônica tinha dado a dela pra

ele. E olha que a dela ainda nem tinha sujado.


CENA 5.3 MAX

Eu sou Marciano. Marciano tem centenas de papéis na mão. Marciano

fica encostado em um poste da Voluntários da Pátria distribuindo folhetos e

recebendo apostas do jogo do bicho. Marciano fica puto da cara quando alguém

não pega um de seus folhetos anunciando corte de cabelo a três reais (aluno) e

cinco (profissional), mas fica feliz quando algum outro Marciano ganha algum

trocado no bicho. Marciano pensa que isso fará com que eles comecem a

acreditar que ele dá sorte, e é mais ou menos assim que essa coisa toda

funciona. Marciano está sempre com caganeira, mas não sabe o motivo.

Quando chega em casa Marciano vira feijão.

Hoje minha mãe apareceu de novo aqui no hospital. Ela faz isso meio que

uma vez ou duas por ano, e eu sempre percebo que ela ta chegando. Eu estou

ali no banco, sentado na frente das árvores, pitando meu cigarro, e de repente

escuto os passinhos dela. Não tem como confundir. É uma coisa pequenininha,

que vem arrastando os pés dum jeito que só ela faz. Cada vez que ela aparece

ta mais velhinha, mais cheia de rugas e com as pelancas da cara se descolando

todas. Eu sinto ela chegando devagarinho por trás de mim e eu faço que nem

ligo. Ela fica na minha frente um tempo, me olhando como se eu estivesse

longe, perdido, e eu continuo me fingindo de louco, indo pra frente e pra trás,

porque se algum médico me enxergar dando um abraço ou até falando com ela

é capaz de descobrir o meu segredo e me mandar pra fora do hospital e aí

mesmo é que eu vou me foder. A mãe senta do meu lado e às vezes toca em

mim e eu nada. Uma vez ela deu uns socos no braço até que chegou uma
enfermeira e levou ela embora. Em um bando de vezes ela só fica quieta,

chorando. Uma coisa que ela sempre faz é dizer Sou eu, meu filho, sua mãe.

Mas eu fico quieto, pra frente e pra trás, fumando o filtro do cigarro até queimar

meus dedos. Eu sei que é você, mãe, claro que eu sei. Não estou louco, é só

fingimento. Eu também te amo, mãe, mas não vou dizer nada porque os

médicos podem ouvir. Eu preciso guardar segredo mãe. Volta ano que vem, tá?

Eu gosto quando você vem, mãe, gosto mesmo. Não chora. Cuida bem dos

meus irmão que eles precisam, ta bom? Eles não são espertos como eu. Tchau,

mãe. Até daqui a um ano. A gente se vê.

Eu sou Osvaldo. Osvaldo tem um microfone. Osvaldo fica em frente a

uma loja da Voluntários da Pátria anunciando produtos e ficando de olho para

ver se algum outro Osvaldo não rouba alguma camiseta de três reais e

cinqüenta centavos. Osvaldo tem voz de radialista, mas não nasceu assim.

Osvaldo aprendeu a falar desse jeito em um curso do SENAC. Osvaldo ri de vez

em quando com o microfone em punho e fala coisas que acha engraçadas

quando avista alguma menina gostosinha passando na calçada. Quando chega

em casa, Osvaldo vira rapadura.

CENA 1.3 MADÁ

Hoje de manhã, sábado dia 23, recebi mais uma ligação, parecia ser mais

uma dentre muitas, ela se identificava como Janete, uma adolescente que havia
flagrado o padrasto abusando da irmã caçula em cima da cama da mãe. Não

sabia o que fazer, havia cortado os pulsos com uma lâmina de barbear do

homem, mas arrependeu-se e foi pedir socorro na farmácia em frente a sua

casa. Seu padrasto era um velho de uns 70 anos, caboclo do sítio, no sétimo

casamento e costumava enfiar a mão em sua calcinha, para ver se estava

nascendo os pelinhos, mas nunca o havia visto apertando a irmãzinha. O que

fazer? Tinha medo de ser expulsa de casa, caso contasse sua história,

“mentirosa compulsiva”, dizia a mãe com freqüência, “cadelinha”. Qual a rotina

do casal? Onde trabalham? Distraía a garota que se acalmou, tomou um copo

de água com açúcar e desligou, com a ansiedade controlada.

Peguei minha bolsa, apertei o rabo-de-cavalo e saí. Passei numa drogaria

na Vila Matilde, comprei uma gilete, um enxaguatório bucal e fiquei sentada num

parquinho, vendo algumas crianças se sujarem na areia escura do lugar.

De um lado, um casal atendia aos filhos, enquanto de outro, um homem

franzino conduzia um pequeno carrinho com sorvetes caseiros, parecendo um

vozinho simpático de boina na cabeça. Um sorvete, ainda que porcaria, serviria

para resfrescar e baixar a minha ansiedade. Sinalizei dentre as árvores e o

velhinho se aproximou. “Vinte e cinco centavos, é o gelado de groselha”.

Rasguei aquele plástico, dei uma mordida no gelo colorido e joguei o resto na

lixeira. “Não vai pagar, moça?”. Claro, desculpe. Abri a bolsa, saquei a carteira e

de lá tirei a gilete que passei perpendicularmente na jugular do infeliz. Arrastei-o

até a mata fechada e desabotoei sua calça. Com a mão esquerda segurei seus

grãos, enquanto a lâmina rasgava a pele. Abri seu saco, tirei as gônadas e com
certo prazer, confesso, coloquei-as dentro de sua própria boca. Limpei as mãos

na casca do tronco de uma árvore e voltei ao trabalho. Janete e sua irmãzinha

seriam enrabadas somente por quem elas quisessem.

Antes de abrir a porta da salinha com telefones, que ainda estavam

tocando freneticamente, tirei o elástico do cabelo, soltei o rabo-de-cavalo. Ficam

lindos soltos, eles têm volume e maciez, preciso começar a comprar mais creme

de pentear.

Sentei em frente ao telefone, dentro da minha bolsa uma gilete com

sangue coagulado, um elástico velho, o enxaguatório bucal verde-mentolado

embrulhado no papel da farmácia e um pequeno bilhetinho. “Maria Alice, para

você. Use e descubra a felicidade.” Não assinei e discretamente deixei o

embrulho em sua mesa.

Chacoalhei o cabelo no vento com cheiro de enxofre que entrou pela

janela e sorri, antes de atender ao próximo telefonema.

CENA 7.3 MESTRE EME

Os dedos sim. Primeiro um - uma vodca, depois dois-a noite dos Lakers,

depois três- dopado de Lexotan.

O resto ele colocou aqui mesmo, alguns meses depois, num motel barato

de uma cidade do interior com barreira hidrelétrica em análise. Nada de uísque,

Lakers, Lexotan ou vodca. Eu queria estar inteiro e ele inteiro em mim.


Foi quando enfiou a mão. Até o punho.

Eu pedi, implorei pela minha felicidade e ela tava me rasgando, me

abrindo, me purificando e me ligando a Deus em êxtases que eram respondidos

com as contrações musculares e flores azul-marinho que se abriam ao sol.

Amarras no saco, algemas, couro, vara de ratam e velas derretendo sobre o

sexo pareciam brincadeira de adolescentes nos vestiários das escolas públicas.

Ele vestia luvas brancas cirúrgicas, mergulhadas num lubrificante aquoso e se

metia por dentro de mim, rasgava, abria, doía, enquanto isso observava as

primeiras gotas de seu sêmem que escorriam pela cabeça do seu pau sem que

John controlasse, ele suava em sua busca de felicidade.

“Nora, Nora, minha flor…é algo de terrivelmente excitante ver uma mulher

de roupa arregaçada esfregando furiosamente a boceta, ver suas bonitas calças

brancas abertas atrás com a bunda aparecendo e um troço gordo e escuro

saindo a meio caminho pelo buraco. Dizes que vais cagar nas calças, querida, e

então deixar que eu te foda. Eu gostaria de te ouvir cagá-las, querida, primeiro -

e depois foder-te. Uma noite quando estivermos em algum lugar no escuro e

falando sacanagem e sentires que tuas fezes estão a ponto de sair, passa os

braços ao redor de meu pescoço com vergonha e vai cagando devagar. O ruído

me enlouquecerá e quando eu puxar teu vestido para cima… Não adianta

continuar! Podes calcular porque!" Assim termina uma das cartas a Nora. Ficaria

chocada se te contasse que fui que escrevi estas cartas? Aposto que não. Já

espera isso de um devasso que se esporcalha no sêmem de seu dono e gosta


de ver a mão dele entrar pela sua bunda. Pois te digo que quem escreveu estas

cartas foi James Joyce, um dos maiores e mais respeitados escritores à sua

esposa, Nora Barnacle, a pacata Nora, flor azul-marinho. Como é ridículo e

hipócrita o ser humano, não me canso de rir de mim mesmo.

Se eu lhe pareço um monstro, digo que sou um homem da natureza, a

natureza me inspira e me impõe isso, eu opto pela minha felicidade, meta que a

natureza criou. Obedeço meus desejos, meus anseios mais íntimos e puros. O

que é natural não se discute, assim sendo não há lugar para essa moralidade.

Ademais, antes que pareça ser mais um devaneio insensato de um seguidor de

Donatien Alphonse-François, O Marquês, digo ainda que sou o mestre

modernizado, que pretendo alcançar minha meta e estendê-la mais tempo que

ele, pelo resto de meus dias, utilizando para isso todas as artimanhas que o

dinheiro e a contemporaneidade me propõe…disfarces, subterfúgios, não há

porque ser punido, o que faço é consensual, portanto legítimo. Nem as polícias,

nem Deus.

A verdade é que o padeiro quando me serve um café nem imagina o que

me faz gemer, o chefe do meu departamento sequer tem a bravura de ouvir os

seus desejos antes de penetrar a esposa, quanto mais olhar ao seu lado no

escritório e minha mulher só saberá o que me move no dia em que se propuser

a ser feliz e for inspirada com o princípio da liberdade, talvez aí, finalmente

estejamos unidos e rasgaremos os papéis que guardam promessas firmadas por

testemunhas. John morreu fibrilando. Eu matei John.


CENA 4.3 MOJO

Resolvi chamar uma puta no centro. Ela fez gracinhas, me roubou um

isqueiro e eu lambi a pálpebra que cobria uns olhos azuis irresistíveis e a grudei

no carro que fedia a sangue. Ela saiu e resolveu me fazer um estripetise (strip

tease) iluminada ,pelos faróis do meu carro, Não faz isso, não faz isso comigo.

Ridícula, não tinha o corpo perfeito e se achava o máximo. Disse algumas

obscenidades, mas nem ouvi. Ainda riu quando liguei o carro e ameacei

acelerar, ela riu, antes que pudesse sentir o peso do corpo de encontro com o

pára-choques e o estrondo dos pneus contra seus ossos.

O carro virou e tudo me parece ainda mais invertido do que antes. É

como se eu tivesse no Japão, exatamente do outro lado. Todas as coisas me

escapam e se invertem, tudo fica ao contrário. Mas é muito mais bonito do que

eu imaginava tudo de ponta cabeça!

É interessante notar as diferentes formas de morrer, o gradiente completo

entre resignação e desespero. Quando morre de velho, um cachorro se recolhe

num canto de um muro e fica em silêncio, com os olhos tristes e morre

deitadinho. No extremo oposto o porco sendo carneado, chocante e inspirador.

Já as ovelhas morrem sempre em silêncio, mesmo na ponta da faca. Seres

humanos morrem de forma mais irracional: ficam tentando extrair inúteis e

moribundos instantes de vida, multiplicando a dor de todos os envolvidos,

nutrindo um pouco mais da angústia de todos nós.


Acho que fraturei algum osso da perna e minha cabeça parece que vai

estourar. Mas nada ainda de túneis ou de parentes mortos se aproximando. Só a

música do meu pai zunindo na minha cabeça. Tudo o que eu queira na vida era

um manual pra aprender as coisas e pra seguir vivendo. Mas nada tem regras e

é uma bosta ter que se aprender na prática. Hoje vou perguntar pro meu chefe

quando eu vou ter umas férias, porque quando eu tiver eu vou viajar, tomar

banho de mar e ler mais livros, isso é necessário para aliviar as tensões e, creio

eu, pra manter a sanidade também.

CENA 3.3 MAGALI

O padre Alberto é um homem muito bom e acho que se preocupa mais

comigo que com a Mônica. Talvez eu leve minha calcinha suja pra ele jogar fora,

ele disse que tudo bem, que a Mônica tinha dado a dela pra ele. E olha que a

dela ainda nem tinha sujado.

Daqui a pouco minha mãe entra e a tia vem atrás dela pra me acordar. Eu

não queria ter que escolher, mas acho que vou querer ganhar o guarda roupa da

Barbie que a tia prometeu. Se meu pai chorar, eu dou um abraço nele e falo pra

ele me visitar escondido, igual a tia fazia quando ele morava aqui. Só que ele vai

ter que me trazer balas coloridas. E se ele me der o carro da Barbie, eu falo pra

mulher que eu quero que ele me veja, mas não pode ficar cheirando aquela

poeira branca na minha frente, porque minha mãe não gosta e ele fica esquisito
depois. Ele canta o pneu quando faz isso, eu fico com medo, mas ele sabe o

que faz. Gente grande é mais esperta.

“Filha, nós tivemos uma idéia. Você diz que quer ficar com a gente e que

seu pai pode vê-la uma vez por mês, se a gente ficar por perto.”

Eu sorri e fiquei feliz, minha mãe é genial. Eu vou dizer isso pra mulher

até porque a tia disse que se disser, vai me dar o carro da Barbie que eu pedi. A

tarde eu vou mostrar a minha calcinha pra mamãe e pedir pra ela deixar eu ficar

sem o absorvente grande e emprestar um pequeno da mãe da Mônica.

De noite eu vou pedir pra falar com o padre Alberto, vou pedir perdão pelo

palavrão, agradecer a Deus pela idéia da mamãe e pedir pra ele me mostrar

também que não usa cuecas, pra Mônica deixar de ser metida e aí quem sabe

ela me deixa saber porque que ela anda chorando tanto e porque não quer mais

rezar na igreja com ele.

CENA 2.3 MAURICIO

Na semana em que perdia minhas ilusões e pensamentos nos

quadriculados das folhas, decidi bater palmas na casa da velha e me convidar a

tomar um chá com bolachas que eu levaria comigo. No final da xícara, lamberia

a borra com o açúcar e já familiarizado com aquele lar e as pessoas, perguntaria

sussurando a Dona Flora qual seu segredo, o que a fazia perder seu olhar com

tanto encantamento através da vidraça.


Na semana fui até o mercadinho e demorei na escolha do melhor biscoito,

fiquei em dúvida entre o insosso água e sal ou o mais insosso ainda maisena.

Optei por ambos. Segui até em casa com as bolachas latejando na mochila, na

espectativa de que a semana seguisse seu curso sem demora.

E o dia chegou, apanhei meu estojo, minha caneta dez cores, minha

pasta, guardei tudo e vesti o casaco do uniforme. Fui trôpego até o pátio, sorvi

mais água do bebedouro e segui até a risadinha simpática que me abriria o

portão. Já nem mais lembrava das cores do ladrilho ou da minha pança

estendida para a frente que dificultava meus passos. Seguia com destreza a rua

e os paralelepípedos, depois os branco e preto da calçada, aproveitando para

estalar com minhas pisadas as conchas que guardavam as sementes das

árvores e que andavam espalhadas pelo chão naqueles dias.

Mais adiante a casinha com tijolos à vista, as mesmas marias de três

cores na floreira e a vidraça. E por trás dela só havia a cadeira vazia e a

saudade que Dona Flora deixou em um menino que sonhava em descobrir a

felicidade que há em olhar o vento pôr a correr as folhas, em ver os passarinhos

darem seus rasantes à procura de alimentos para seus filhos e em fitar, com um

risinho melancólico, apertada por seu cachecol, um garoto esquisito que se

punha a observá-la às quartas-feiras felizes. E ali, de pé, guardei as bolachas na

mochila, me virei, fiquei olhando para frente e sorrindo ao contemplar as folhas

secas voando rebatidas pela aragem , tomando uma réstia do sol da manhã,

enquanto urinava e o líquido morno escorria pelas calças vermelhas do

uniforme e coloria de amarelo os ladrilhos branco e preto da calçada.


CENA 6.3 MILTON

Mas naquele dia o patrão conseguiu encontrar uma desculpa pra me

mandar embora antes. Eu, então, fui para a casa, mas não entrei. Era cedo,

talvez devesse esperar, não deveria chegar fora do horário. Esperei, esperei,

não aguentei e subi. Usei as escadas para perder mais tempo. Que

arrependimento senti ao ver as paredes mal cuidadas e sentir o cheiro do resto

dos outros apartamentos, mas era tarde. De repente deparei-me com uma cena

grotesca, digna de filme americano (e isso não é um elogio, só gosto de filmes

ingleses): a minha mulher (eu a chamava assim para contentá-la) estava nos

braços de um homem de calça rasgada e barba por fazer, chupando sua boca,

enquanto os braços se enfiavam por baixo de sua camisa suada, com manchas

escuras de suor e restos orgânicos. Era o homem que tirava o lixo. Ela chorou,

eu tive náuseas e o homem grunhiu “ desculpa véio, foi só um esfrega, mermão”.

Passei por eles sem tirar o lenço das narinas, tratando de não esbarrar no

homem, mas senti uma mão forte e grossa dando uns tapinhas nas minhas

costas.

Não senti nada, nem ciúme, nem revolta. Só nojo. Se não fosse um

lixeiro, desculpe, o senhor que tira o lixo, talvez a perdoasse em alguns anos.

Mas não. Tudo acabou, fui atraiçoado, eu e minha pele.


Vivi sozinho por anos, mas percebi que só, não dava conta desse mundo

infestado.Queria mesmo era morrer através dos micróbios dos carrapatos, e

depois sentir dores no corpo e então deixar a febre maculosa tomar conta de

mim, mas, pena, não encontrei nenhum carrapato por perto. Acabei com meu

tormento tomando um litro de pinhossol ( de eucalipto, claro).

Os micróbios tinham me vencido. E eu sabia disso. Só não sabia que

desinfetante tinha um sabor tão agradável, mas não tive tempo de contar isso

pra ninguém e ainda que tivesse, acho que não contaria.

Hoje engordo aos vermes.

CENA 7.4 MESTRE EME

Eu matei John.

Se a senhora está pensando que matei John asfixiado em “nosso antro

de indecência e imoralidade” ou entalado com algum legume, saiba que quem

matou John foi você, fui eu com o nosso cristianismo, John morreu de ataque

cardíaco, em Detroit, ao lado da família, cortando grama, depois de ter que

despedir um de seus funcionários brasileiros. Estava doente de remorsos,

porque John, acima de tudo, era um homem bom, bom pai, bom marido, um

cristão. Estamos sujos, nós dois, propagadores da culpa cristã, somos

igualmente assassinos.
Agora a senhora não se esqueça da meta que a natureza traçou para o

homem e que só será alcançada através das paixões obscenas e deliciosas, só

quando seu ronronar em nossos pescoços provocar arrepios nas nossas

penugens é que seremos verdadeiramente felizes. Talvez um dia a gente se

cruze no metrô, no cinema, ou na saída da escola das crianças e pode ser até

que me dê um oi, talvez todo dia, por todos esses anos a senhora tenha me

dado um tchauzinho na rua, porque não?… mas isso não temos como saber.

Desculpe, mas agora preciso me desconectar. Foi um prazer conversar

com você. Um pequeno prazer. Em suas preces noturnas reze por nós todos.

Rezarei por você também, por John e pelos nossos anjos e demônios. Até

breve. Seu Mestre EME.

(musica entra)

(estas frases ficam sendo repetidas até que a cortina se feche)

MOJO Eu vou viajar, tomar banho de mar e ler mais livros, isso é necessário

MAGALI De noite eu vou pedir pra falar com o padre Alberto

MILTON Os micróbios tinham me vencido. E eu sabia disso

MAURICIO E por trás dela só havia a cadeira vazia e a saudade que Dona Flora

deixou em um menino

MADÁ Chacoalhei o cabelo no vento e sorri, antes de atender ao próximo

telefonema.
MESTRE EME Eu matei John. Reze por nós todos.

MAX Eu gosto quando você vem, mãe, gosto mesmo. Não chora. Eu também te

amo, mãe

(off e trilha vão se sobrepondo com repetições das últimas falas)

Esta é mais uma história real para aqueles que escondem seus

segredos e para aqueles que guardam os segredos dos outros.

Esta é mais uma história absurda para aqueles que não conseguem

enxergar aquilo que não se vê.

Esta é mais uma história biográfica dedicada aos monstros e para

aqueles que existem, estão ao nosso lado, mas que não vemos.

Esta é apenas mais uma história, feita para todos que amam sem se

ver e para os nossos pais e amantes que possuem o segredo de nos amar

de maneira monstruosa e incondicional, apesar de todas as nossas

monstruosidades.

Esta é só mais uma história de amor. De amor pelos homens.

E ponto final.

(cortina se fecha)

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