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Por uma criminologia crítica feminista

CAMILA DAMASCENO DE ANDRADE*

Resumo:
Este artigo tem o escopo de trazer elementos para a construção de uma
criminologia crítica de cunho feminista, motivado pela histórica exclusão das
perspectivas de gênero nos mais afamados discursos criminológicos e pela
discordância em relação ao pleito feminista por punição. Discorre,
primeiramente, sobre a ausência das mulheres nas produções científicas e, em
especial, na criminologia. Em seguida, analisa as reflexões provocadas pelo
surgimento da criminologia feminista, que, ao mesmo tempo em que elabora
profundas críticas ao sistema penal, também atua no sentido de legitimá-lo. Por
fim, propõe a formulação de uma criminologia que acolha as experiências
femininas sem, todavia, clamar pela expansão do controle penal.
Palavras-chaves: criminalização; feminismo; punitivismo; sexismo;
vitimização.
Abstract:
This paper has the scope of bringing elements to the construction of a critical
criminology from a feminist slant, and is motivated by the historical exclusion
of the gender perspectives in the most acclaimed criminological discourses, and
by the disagreement about the feminist cry for punishment. First of all, it
discusses the women's absence in scientific productions, and specially in
criminology. Next, it analyzes the reflections caused by the appearance of the
feminist criminology, which, while elaborates profound critics about the penal
system, also acts in the sense of legitimating it. Finally, it proposes the
formulation of a criminology that receives the feminist experiences without,
however, claiming by the penal control expansion.
Key words: criminalization; feminism; punishment; sexism; victimization.

*
CAMILA DAMASCENO DE ANDRADE é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: camila_damasceno17@hotmail.com.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5917338636063851

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1. Introdução No que se refere, especificamente, à
O feminismo, enquanto teoria crítica, criminologia como disciplina científica,
não apenas ressalta a relevância das observa-se que os mais afamados
questões de gênero nas diversas áreas discursos criminológicos desenvolvidos
do conhecimento, questionando a a partir do medievo foram construídos,
naturalização da alegada inferioridade em princípio, "por homens, para
feminina, do sexismo e das homens e sobre mulheres" para, num
desigualdades que rondam os segundo momento, transformar-se em
masculinizados debates acadêmicos, discursos "de homens, para homens e
mas também procura construir espaços sobre homens", já que a importância das
de maior equidade dentro da academia. mulheres enquanto objeto de estudo foi
Esta, por ser uma extensão da deixada de lado (MENDES, 2014, p.
sociedade, reproduz e legitima a 157).
integralidade das desigualdades que a Destarte, a construção de uma nova
caracterizam, não problematizando o criminologia, edificada sobre uma
lugar historicamente subordinado das epistemologia feminista, surge como
mulheres no meio social e científico. resposta ao esquecimento da mulher e
Tais premissas nortearam a realização da opressão de gênero nos discursos
de pesquisas que buscaram denunciar o sobre o sistema de justiça criminal.
machismo dos discursos acadêmicos de Objetivando dar visibilidade às
maior relevo, uma vez que a produção especificidades da condição feminina
intelectual, enquanto reflexo das em face da violência estrutural do
contradições sociais, cotidianamente sistema penal, a formulação de um
espelha as relações de opressão que as discurso criminológico feminista não se
sustentam. resume a reinterpretar e estender o
alcance das categorias criadas pelas

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construções teóricas anteriores. A mera 2. O feminismo como crítica do
inserção das relações de gênero em sistema penal
teorias marcadas por estruturais
Sendo o gênero um dos eixos centrais
exclusões das experiências femininas que estruturam o poder e organizam as
não pode ser feita sem distorcê-las,
experiências no mundo social (SCOTT,
porque elaboradas sob parâmetros 2008, p. 64), as relações que dele
sexistas.
decorrem atravessam a sociedade e
Apesar de os discursos criminológicos fazem repercutir os seus efeitos de
já consolidados se aplicarem maneira diferenciada sobre homens e
parcialmente às mulheres, eles não mulheres. O gênero define, em
conseguem dar conta de sua posição intersecção com as limitações de classe
periférica dentro da sociedade, que não e raça, as posições que podem ser por
se confunde, embora esteja eles ocupadas, alicerçando, com isso, a
intrinsecamente relacionada, com a irrisória presença feminina nos espaços
marginalização socioeconômica tão de poder (BIROLI; MIGUEL, 2014, p.
bem estudada pelas teorias críticas 8), o que abarca, inclusive, o espaço
convencionais. Nesse sentido, já acadêmico. Ainda que a inserção das
apontava Harding (1993, p. 7-8) que o mulheres no sistema de ensino seja
feminismo não deve ser encarado como crescente e já supere a dos homens em
um elemento a ser somado às teorias já vários segmentos1, a sua produção
existentes, porquanto pretende científica permanece invisibilizada e dá
inaugurar uma nova episteme científica lugar às produções masculinas.
na seara criminológica. A despeito das aparentes pretensões
A partir desses pressupostos, esta democráticas e igualitárias da academia,
pesquisa tem o propósito de trazer o conhecimento científico por ela
elementos para a caracterização de uma produzido perpetua as assimetrias e
criminologia crítica de cunho feminista. relações de dominação da sociedade,
Feminista porque inconformada com a naturalizando essas desigualdades ao
exclusão da mulher nos discursos ignorá-las sem questionamento.
criminológicos e, ao mesmo tempo, Ademais, a relevância política da
crítica, porque contrária à inclinação desigualdade de gênero é,
punitivista do movimento e das teorias
feministas, os quais, não raras vezes, 1
batalham pelo recrudescimento das No Brasil, segundo dados do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
punições e pela ampliação do rol de Anísio Teixeira (INEP), as mulheres
condutas criminalizáveis. Outrossim, representaram 57% do total de matrículas de
entendendo a crítica feminista como ingresso no ensino superior no ano de 2014,
epistemologia a ser tomada como pano superando o número de homens em mais de um
de fundo do saber criminológico, milhão de matrículas. No que diz respeito ao
número de concluintes, as mulheres
objetiva-se tecer uma criminologia equivaleram a 60% do total. Ressalta-se,
crítica que não só enxergue a entretanto, que o ingresso e mesmo a conclusão
perspectiva das classes subalternas na no ensino superior não garantem às mulheres
análise do sistema criminal, mas que posições de destaque dentro da academia.
privilegie as perspectivas femininas Conforme Harding (2007, p. 164), quanto mais
alto o escalão dentro das universidades, mais
frente à intervenção penal. escassa é a presença feminina.

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frequentemente, posta de lado pelas críticas às formulações abstratas de uma
análises científicas, que, ainda quando ciência masculinizada e, até então, não
críticas2, dão destaque às estratificações confrontada. Trouxe a lume novas
econômicas e, mais raramente, às formas de compreender, interpretar e
opressões étnico-raciais, mas olvidam valorar o objeto de análise, propondo
que as mulheres permanecem reflexões sobre conceitos como
subalternizadas nas mais diversificadas diferença, identidade e igualdade.
arenas sociais. Através de vozes individuais e
coletivas, o feminismo integrou as
A maturação das discussões feministas
vivências das mulheres à sua
fez surgir uma consciência cultural
epistemologia, modificando as formas
reflexiva ao mesmo tempo em que
influenciou substancialmente o campo estagnadas de ser e dever ser dos
comportamentos humanos em
dos saberes, tendo em vista que alumiou
sociedade, moldadas pelos estereótipos
experiências femininas até então
de gênero (SANTOS, 2014, p. 129-
invisibilizadas pelas teorias tradicionais.
130).
Assim, pensar a dimensão
epistemológica do feminismo na A teoria crítica feminista enveredou
história traz à tona, em primeiro lugar, o seus esforços iniciais em prol da
debate acerca do relevo político-social desmistificação do machismo radicado
desse movimento, que se confunde com nos discursos acadêmicos, empenhando-
o seu desenvolvimento ontológico se em confrontar as teorias tradicionais
existencial e cognitivo (SANTOS, 2014, e questionar a exclusão feminina nas
p. 129). ciências, mascarada pela suposta
Ao inserir o recorte de gênero nas universalidade do masculino como
diversas concepções de conhecimento, o representativo de toda a espécie
feminismo questionou a universalidade humana. O feminismo formulou
e neutralidade atribuídas às categorias importantes críticas à ciência ao
científicas, firmando possibilidades de impugnar a efetividade de princípios
norteadores da produção científica,
2
como a sua neutralidade, objetividade e
Por "crítica", adota-se, aqui, o sentido
universalismo, além de denunciar o
instituído pelo marxismo e aprofundado pela
Escola de Frankfurt, que conceitua a teoria sexismo por trás dos obstáculos
crítica como aquela que intenta desmistificar as enfrentados pelas mulheres para
ideologias e as ideias por elas legitimadas, conquistar posições de destaque na
revelando os objetivos reais por trás de academia. Então, em um primeiro
projeções ideológicas distorcidas. O criticismo
momento, o feminismo empenhou-se
está, então, vinculado a ações e teorias
comprometidas com a transformação da em destruir os parâmetros sexistas das
realidade. Segundo Wolkmer (2015, p. 29), teorias tradicionais, rompendo com a
"pode-se conceituar teoria crítica como o masculinização da produção do
instrumento pedagógico operante (teórico- conhecimento científico (BANDEIRA,
prático) que permite a sujeitos inertes,
2008, p. 207-208; HARDING, 1993, p.
subalternos e colonizados uma tomada histórica
de consciência, desencadeando processos de 7-8).
resistência que conduzem à formações de novas
sociabilidades possuidoras de uma concepção de
Posteriormente, no entanto, verificou-se
mundo libertadora, antidogmática, participativa, que não bastava inserir perspectivas
criativa e transformadora". femininas em discursos hegemônicos

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apartados de qualquer recorte de gênero, desenvolvida a partir do paradigma da
o que conduziu a crítica feminista a um reação social, privilegia as opressões de
novo estágio de desenvolvimento, que gênero em suas análises, consolidando-
não mais se contentava em acrescentar se como uma perspectiva político-
as experiências das mulheres a teorias criminal (CAMPOS; CARVALHO,
elaboradas por homens e voltadas 2011, p. 151).
prioritariamente ao público masculino.
Partindo do pressuposto de que a
Indo além das abordagens clássicas, o dominação masculina se mantém e se
feminismo criou suas próprias
reproduz por meio de instituições que
categorias e discursos teóricos, alimentam uma lógica androcêntrica
buscando preencher as lacunas
que desiguala homens e mulheres, a
decorrentes da ausência das mulheres na criminologia feminista entendeu o
construção das teorias tradicionais
patriarcado como uma das estruturas
(BANDEIRA, 2008, p. 208-209;
que sustentam o próprio controle social
HARDING, 1993, p. 7-8).
formal e legitimam a alegada
No que diz respeito, em particular, à inferioridade feminina (MENDES,
construção do pensamento 2014, p. 88). O controle penal reproduz
criminológico, o caminho traçado pela os mecanismos de dominação que
teoria feminista não foi diferente: além oprimem as mulheres, estando, por sua
de apontar o sexismo dos discursos vez, na base da manutenção da
criminológicos hegemônicos, que organização social de gênero.
ocultam a figura da mulher de suas Ao colocar as perspectivas femininas no
análises, trouxe elementos para a centro da investigação acerca do
configuração de uma nova criminologia, controle punitivo, a criminologia
edificada sobre uma epistemologia de feminista percebeu o cárcere como
viés feminista. Nessa senda, a chamada resultado de um sistema patriarcal que
criminologia feminista visibilizou os
altos índices de violência contra as
mulheres, estruturando-se como um teórico subjetivo da criminologia tradicional,
discurso de denúncia que, centrada na figura individual do criminoso,
diferentemente da criminologia crítica3 desloca-se para as condições estruturais e
objetivas que definem a conduta desviada,
ressaltando a influência social na criação do
3
O que aqui se denomina "criminologia crítica" desvio. Segundo Andrade (2015, p. 189), "sob a
diz respeito a teorias criminológicas denominação de 'Criminologia crítica' designa-
desenvolvidas a partir do paradigma da reação se, em sentido lato, um estágio avançado da
social que têm em comum uma atitude crítica evolução da Criminologia 'radical' norte-
frente ao controle penal, assim como americana e da 'nova Criminologia' europeia,
compartilham de uma análise materialista - não englobando um conjunto de obras que
necessariamente marxista - e macrossociológica desenvolvendo um pouco depois as indicações
do sistema criminal. Conforme Baratta (2011, p. metodológicas dos teóricos do paradigma da
159-161), o chamado paradigma da reação reação social e do conflito e os resultados a que
social alterou o objeto de estudo da haviam chegado os criminólogos radicais e
criminologia, que passa a abordar o processo de novos chegam, por dentro desta trajetória, à
construção da criminalidade ao invés de buscar superação deles. E nesta revisão crítica aderem a
as causas do crime (paradigma etiológico). uma interpretação materialista – e alguns
Entendendo que os processos de criminalização marxistas, certamente não ortodoxa – dos
impõem, de forma seletiva e desigual, o rótulo processos de criminalização nos países do
de desviante a determinadas pessoas, o enfoque capitalismo avançado."

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recorre à violência para fundamentar o Denunciando, portanto, a ineficácia do
domínio do homem sobre a mulher. A sistema penal no que se refere à
institucionalização estatal da violência proteção das mulheres contra a
generificada expõe a fluidez das violência, a criminologia feminista
fronteiras entre espaço público e demonstrou que ele promove, na
privado, pois absorve do controle social verdade, uma dupla ou tripla agressão
difuso da família e da moralidade os contra a mulher: não é capaz de prevenir
elementos necessários para subjugar as novas situações de violência
mulheres também no âmbito formal. (ANDRADE, 2012, p. 131); subvaloriza
Além de retratar as relações sociais as especificidades das violências de
gênero quando a mulher ocupa a
entre os sexos, a violência simboliza o
"eu" masculino e atravessa os métodos condição de vítima (CAMPOS;
CARVALHO, 2011, p. 152) –
punitivos contemporâneos, decorrentes
violências perpetradas, frequentemente,
de aplicações e interpretações
no ambiente doméstico e decorrentes,
masculinizadas do direito penal
muitas vezes, de relações afetivo-
(CAMPOS; CARVALHO, 2011, p.
familiares –; e agrava a punição quando
152; MENDES, 2014, p. 92). Sendo um
sistema intrinsecamente androcêntrico e a mulher é sujeito ativo do delito,
que, historicamente, já se voltou contra submetendo-a a penalidades extra-
as mulheres4, é possível afirmar que o oficiais não aplicadas aos homens –
controle penal é estéril para a sua estupros e humilhações perpetradas por
proteção. Agravando a dominação agentes penitenciários, negação da
masculina nas relações de gênero, o maternidade, revistas íntimas, escassez
aparato punitivo multiplica a violência de absorventes, etc.
contra a mulher ao desmoralizá-la e
culpabilizá-la, mesmo quando vitimada Nota-se que, de maneira análoga à
pelo delito (ANDRADE, 2012, p. 131- criminologia crítica, que evidenciou o
132). papel do capitalismo e do racismo para
a manutenção do sistema penal, a
criminologia feminista operou
4
As mulheres foram perseguidas pelo sistema importantes mudanças no pensamento
penal desde o período inquisitorial, com a criminológico, demonstrando que a
redação do Malleus Maleficarum pelos dominação patriarcal também integra as
dominicanos Heinrich Kramer e James
Sprenger, que transformou a caça às bruxas na
estruturas do controle punitivo. No
principal atividade do Tribunal do Santo Ofício, plano epistemológico, por conseguinte,
além de iniciar um complexo processo de os saberes crítico e feminista se
custódia das mulheres que as excluiu do espaço complementam e contribuem para a
público ao confiná-las nos reservados espaços desconstrução da concepção ontológica
do lar ou do convento. Da mesma forma, as
políticas de higienização do século XIX
da criminalidade e da racionalidade
perpetuaram o estereótipo da mulher como etiológica da criminologia tradicional,
naturalmente pérfida, maliciosa e predisposta ao ampliando as suas formas de abordagem
crime. Todavia, ainda que permaneçam e os horizontes de investigação. Porém,
custodiadas e controladas pelos processos de no plano político-criminal emergem
criminalização e vitimização, as mulheres
perderam, hoje, o protagonismo nas análises
relevantes conflitos entre os referidos
criminológicas, que passaram a enfocar a figura modelos criminológicos, que recorrem a
do homem delinquente (MENDES, 2014). projetos bastante distintos e até

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antagônicos para buscar solucionar os como alheia ao interesse público, a
problemas que lhes são apresentados tipificação dessas condutas estende a
(CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. intervenção estatal ao seio do espaço
153). doméstico, sob o alegado desejo de
proteger as mulheres vulneráveis das
3. O feminismo como apelo ao sistema relações de autoridade exercidas na vida
penal cotidiana.
Ao passo em que a criminologia crítica A utilização simbólica do direito penal
se insurge ferrenhamente contra a tem o condão de estender a regulação
expansão do controle penal e contra os estatal às situações que violam os
processos de criminalização, a direitos das mulheres e, com isso,
criminologia feminista, não raras vezes, pretende modificar a percepção social
apela ao discurso punitivista que relativa a esses problemas, ainda que o
identifica no sistema penal uma forma castigo não seja efetivamente aplicado
de reduzir os altos índices das aos autores dos delitos. Parte-se da
violências de gênero. Entendendo que noção de que o direito é capaz de
as formulações e interpretações da lei intervir na simbologia social que
penal são permeadas pelo reproduz a supremacia masculina,
androcentrismo, a crítica feminista criando novos valores a partir da
pressupõe que inserir a mulher no tipificação de determinadas condutas
centro das preocupações do direito (CAMPOS, 1998, p. 53-54).
penal será suficiente ou, ao menos,
necessário para que a violência contra Ademais, é cediço que a ausência de
as mulheres seja reduzida. Pleiteia, legislação penal sobre a violência
então, o agravamento das punições, a generificada tem, também, importantes
ampliação do rol de condutas efeitos simbólicos, porquanto traz a
criminalizadas, a inserção de novas mensagem sub-reptícia de que o corpo
hipóteses qualificadoras, causas de feminino está disponível para as
aumento de pena e circunstâncias violações masculinas. Logo, não
agravantes, tudo afim de que a estabelecer punições aos autores dessas
legislação penal garanta a segurança condutas, ao menos no plano formal,
feminina, porque inibiria as condutas pretere a relevância dessas violências,
violentas perpetradas contra as legitimando as relações desiguais no
mulheres. âmbito doméstico e relegando a mulher
a uma posição inferiorizada à ocupada
Não se olvida que a criação de leis pelo patrimônio privado, por exemplo,
penais que criminalizam extensamente protegido pela legislação
comportamentos masculinos violentos – penal (CAMPOS, 1998, p. 53).
como a Lei Maria da Penha (Lei n.
11.340/2006) e a recente inclusão do A violência contra as mulheres não é
feminicídio como qualificadora do resultado de uma má gestão do
delito de homicídio – tem a qualidade relacionamento marital, mas corolário
de dar visibilidade a essas condutas e de de uma ordem social que não protege as
enfraquecer a ilusória dualidade entre mulheres das violações cometidas em
espaço público e privado. Ao abandonar sua intimidade, dado que esta é tomada
o ideal de preservação da esfera familiar como um espaço privado e apolítico.

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Nessa perspectiva, a ausência de publicizar e politizar a questão, uma vez
intervenção penal estabiliza essas que seus efeitos concretos sobre os
relações de poder e assegura a criminalizados são perversos,
dominação masculina no âmbito estigmatizantes e destacadamente
doméstico (CAMPOS, 1998, p. 55, 58). insuficientes para a modificação da
estrutura patriarcal (CAMPOS, 1998, p.
Destarte, tanto o feminismo como 54).
outros movimentos sociais, tais qual o
movimento negro, ambientalista e O direito penal se volta,
LGBT, enxergam no direito penal uma especificamente, para as manifestações
possibilidade de tutela de interesses de violência individual, enfocando a
fundamentais até então negligenciados figura do agressor e deixando de lado
pela legislação, crendo que a expansão toda a estrutura que alimenta o seu
do controle punitivo está apta a tutelar comportamento violento (BARATTA,
as minorias sociais mais débeis e 1993, p. 47, 49). Não se esforça, de
violentadas. Contudo, as demandas modo algum, para modificar esse
punitivistas desses movimentos cenário, investindo seus esforços em
acrescentam munição ao discurso investigar, denunciar e aprisionar os
legitimador do sistema penal, ignorando membros das camadas sociais mais
que esse mesmo sistema foi edificado débeis, majoritariamente jovens negros,
sobre uma estrutura individualista de baixa renda e baixa escolaridade5,
incapaz de proteger interesses coletivos ignorando a violência exercida pelos
(ANDRADE, 2015, p. 294). homens brancos integrantes das classes
médias e alta.
Tais reivindicações político-criminais se
revelam contraditórias para o próprio A operacionalidade seletiva do sistema
sistema penal, que, ao mesmo tempo em penal colhe os seus alvos no interior dos
que atende aos anseios por estratos mais marginalizados ao mesmo
criminalização primária desses sujeitos tempo em que imuniza os crimes
e grupos minoritários (potencial praticados pelos mais abastados. Assim,
humanista-garantidor), prova, na o preço da visibilidade conquistada pelo
prática, a ineficácia das garantias feminismo com a extensão do controle
prometidas e a sua debilidade na penal às violências de gênero será pago,
proteção dos grupos vulneráveis, visto quase exclusivamente, pela juventude
que se assenta num projeto classista,
racista e sexista que se volta, 5
Segundo dados do Sistema Nacional de
predominantemente, contra os menos Informação Penitenciária (Infopen) de
favorecidos no momento da dezembro de 2014, 61,67% da população
criminalização secundária (potencial carcerária brasileira é negra, ao passo em que
essa etnia representa 51% da população
técnico repressivo) (ANDRADE, 2015, nacional. Analfabetos, alfabetizados
p. 294). Verifica-se, outrossim, que o informalmente ou com instrução formal até o
diálogo entre o direito e a sociedade é ensino fundamental completo são equivalentes a
muito mais complexo do que sugere o 72,13% dos encarcerados, sendo que a maior
pleito feminista pela utilização parcela destes é a relativa àqueles que têm
ensino fundamental incompleto (BRASIL,
simbólica do direito penal em prol das 2016). As estatísticas de 2014 não
vítimas de violência. Ele não deve ser contemplaram a divisão dos encarcerados por
encarado como um simples meio de renda.

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negra e pobre, já vitimada pelo racismo prática, por funções latentes opostas
cotidiano e pelas opressões de classe. (ANDRADE, 2012, p. 221-222).
Entende-se, então, que criminalizar as
Nesse sentido, é fundamental avaliar a violências de gênero, em que pese todo
eficácia da legislação criminalizante o arcabouço teórico desenvolvido pelo
elaborada em prol das mulheres. No que feminismo, não se configura como um
diz respeito à Lei Maria da Penha – instrumento adequado para a proteção
resultado de amplas discussões das mulheres, nem como uma solução
encabeçadas pelo movimento feminista, para resolver os problemas decorrentes
que batalhou por mais de uma década de uma estrutura social sexista e
pela elaboração de leis e políticas violenta. Igualmente, tentativas de
especializadas no enfrentamento das reconciliação e a aplicação de penas
violências de gênero –, observa-se, hoje, restritivas de direitos como alternativa
que a sua implementação e aplicação ao encarceramento também não têm
ainda passam por muitos obstáculos, gerado efeitos positivos no combate à
mesmo nove anos após a sua aprovação. violência. Nessa senda, novos desafios
As relações de autoridade fazem com são impostos tanto à criminologia
que poucas mulheres procurem o apoio crítica quanto à criminologia feminista:
policial e jurídico e, quando o fazem, aquela não pode mais ignorar as
têm a seu favor somente o registro relações desiguais de poder entre
formal da agressão nos boletins de homens e mulheres sustentadas pela
ocorrência ou a medida protetiva preservação da dualidade
expedida pelo juiz, ambos insuficientes público/privado; e esta não pode deixar
para afastá-la efetivamente da situação de lado a seletividade racista e classista
de violência (PASINATO, 2015, p. 534- do sistema penal e a ineficácia da
535). criminalização para a segurança das
mulheres.
A criminologia crítica trouxe
importantes contribuições a respeito da 4. Uma criminologia crítica feminista
eficiência do discurso criminalizante. Embora embasada em ideais
As funções oficiais declaradas da pena emancipadores, a criminologia crítica
criminal (neutralização, retribuição, não deixou de se apoiar em
reeducação e prevenção) se pressupostos androcêntricos6. Ao
caracterizam por uma trajetória de
profunda ineficácia, pois a reprimenda 6
Segundo Mendes (2014, p. 140-145), a
corporal, além de dificilmente lograr concepção de que o cárcere foi uma novidade
êxito na tarefa de ressocializar o moderna, resultante de uma necessidade
encarcerado, não exerce relevante efeito burguesa, exemplifica, de certo modo, o
sexismo da criminologia de cunho crítico: a
inibitório sobre a sociedade, literatura criminológica tradicional, ao vincular
apresentando-se, na realidade, como a gênese do encarceramento ao trabalho fabril e
mera vingança social contra o ao início do capitalismo industrial, ignorou o
condenado. Portanto, mais do que processo de reclusão das mulheres leigas,
ineficaz, a pena e o próprio direito penal iniciado ainda no medievo e, portanto, anterior à
construção das primeiras workhouses inglesas.
apresentam funções reais de eficácia Os conventos, ao contrário do que apregoa o
invertida em relação às suas funções senso comum, não eram locais de mera
declaradas, que são substituídas, na expiação dos pecados e de refúgio do mundo

22
abordar a criminalização do subalterno, penal. Quando muito, nota-se o apelo a
a despeito da pretensão de generalidade projetos criminais mínimos de viés
e de indistinção sexual do conceito, garantista7 que tomam como pano de
acabou por se focar no homem fundo os direitos fundamentais
subalterno. Conforme Spivak (2010, p. específicos da mulher, teoricamente a
67), "se, no contexto da produção protegendo das violências de gênero e
colonial, o sujeito subalterno não tem garantindo o direito de
história e não pode falar, o sujeito autodeterminação sobre as questões que
subalterno feminino está ainda mais envolvam seu próprio corpo e seus
profundamente na obscuridade." Além direitos reprodutivos. Logo, o direito
disso, o conhecimento crítico penal seria delimitado pelo princípio
desenvolvido na seara criminológica constitucional da dignidade humana,
parece negar a existência de toda a não podendo ultrapassar as restrições
elaboração teórica produzida pelo por ele impostas. Faz-se referência, por
feminismo, desconsiderando conceitos exemplo, a Mendes (2014, p. 181), que
como gênero e patriarcado em suas afirma que o abolicionismo pretendido
análises (CAMPOS, 1998, p. 56). pela criminologia crítica constitui utopia
Percebe-se que a criminologia feminista regressiva que abriria as portas para
tem se apresentado muito mais arbitrariedades e vinganças privadas.
receptiva à criminologia crítica do que o Observa-se a inclinação reformista de
contrário. Ao passo em que esta tal proposta, que, mesmo admitindo a
ignorou, por décadas, as contribuições truculência do sistema penal e a
do feminismo e de suas categorias impotência de suas finalidades, não
centrais, aquela incorporou com mais consegue formular nenhuma alternativa
facilidade os aportes teóricos não penalista à problemática das
desenvolvidos pela criminologia crítica, violências de gênero. Ao encarar a
apontando, inclusive, novas ressalvas à lógica do sistema como inalterável, as
utilização do sistema penal por parte das tentativas de sobrepujá-lo são tidas
mulheres ao denunciar o sexismo que como estéreis, o que mantém intactas as
lhe acompanha historicamente suas determinações estruturais
(CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. fundamentais (MÉSZÁROS, 2008, p.
166). 25).
Por outro lado, a demanda punitivista 7
do feminismo não pode ser O garantismo jurídico, desenvolvido por Luigi
Ferrajoli (2002), propõe um modelo ideal de
desconsiderada. Expressiva parcela do Estado de Direito Constitucional, no qual as
feminismo ainda clama por mais constituições devem postular valores
punição e criminalização, crendo na fundamentais que precisam ser perseguidos na
eficácia da pena e na ideologia que prática, como a igualdade substancial, a
sustenta o discurso oficial da dogmática liberdade e a dignidade humana. A teoria
garantista, ao voltar-se para a área criminal,
denuncia a ineficácia da normatividade
exterior, mas instituições de correção e de constitucional e se apoia em um modelo de
cumprimento de penas de caráter perpétuo. A direito penal mínimo, no qual o sistema penal
desconsideração de tais instituições como as permanece atuante, mas confere garantias aos
antecessoras das modernas penitenciárias sujeitos criminalizados e também às vítimas, em
demonstra a omissão do discurso criminológico atenção àqueles valores tornados como
frente ao histórico encarceramento feminino. essenciais pela Constituição.

23
O abolicionismo pretendido pela (HARDING, 1993, 8-9). Assim, uma
criminologia crítica não se trata, releitura feminista da criminologia
entretanto, de utopia impraticável, crítica é possível, mas não sem a
porquanto reconhece a impertinência de subversão de, ao menos, algumas de
um indefensável sistema produtor de suas categorias, pois as suas limitações
estigmas e desigualdades. Não se nega a não permitem a visualização da mulher
importância do minimalismo, como protagonista de seus debates.
especialmente se compreendido como
meio para o alcance do abolicionismo, Considerações finais
mas é falacioso afirmar que apenas o
Ao propor a investigação das relações
método punitivo, fator de reprodução
entre o controle social e as
criminógena, é capaz de administrar a
desigualdades de gênero, a perspectiva
violência8 (ANDRADE, 2012, p. 312-
feminista permite uma compreensão
313).
ainda mais globalizante do universo do
Por conseguinte, harmonizar a sistema penal. Destarte, uma
criminologia crítica e a criminologia criminologia que seja ao mesmo tempo
feminista passa pelo estabelecimento de feminista e crítica deve deslocar o
projetos político-criminais que enfoque da visão androcêntrica da
viabilizem a redução das violências de criminalidade para a análise e
gênero praticadas contra as mulheres ao julgamento dos impactos do controle
mesmo tempo em que combatam as formal e informal sobre a mulher, seja
violências institucionais que recaem como autora ou como vítima do delito.
sobre os estratos sociais mais Sem se conformar com os altos índices
vulneráveis. Um projeto crítico de violência contra as mulheres, deve
feminista deve, portanto, empenhar-se reconhecer a ineficácia da pena para o
na criação de pautas de ação que combate das violências de gênero,
atendam, simultaneamente, aos compreendendo que toda a estrutura da
interesses das mulheres violentadas e lei é fundamentada na dominação
das camadas sociais mais débeis, estas patriarcal. A adesão ao pleito
compostas tanto por homens quanto por abolicionista, então, não significa
mulheres. relegar a violência generificada ao
É importante entender que as teorias âmbito privado, mas enfrentá-la sem
feministas se originaram a partir das recorrer à repressão penal.
vivências femininas e de sua Portanto, a construção de uma
valorização enquanto instrumento criminologia crítica feminista tem o
intelectual, pensadas para expor e condão de suscitar nova virada
problematizar questões direcionadas às paradigmática no pensamento
mulheres, ao passo em que os referidos criminológico, pois formulada sob os
discursos hegemônicos não se parâmetros de uma epistemologia
fundamentaram nos mesmos objetivos feminista. Agregando a perspectiva do
sistema sexo-gênero como elemento
8
Soluções não punitivas, como a justiça indissociável do controle social e das
restaurativa, têm se revelado bastante eficientes
na seara da resolução dos conflitos, devendo ser
relações de poder, as reflexões
acolhidas pelo feminismo no combate às feministas não só permitem a denúncia
violências de gênero. das discriminações misóginas que

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permeiam a academia, como podem ser CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO,
tomadas como um novo paradigma do Salo de. Tensões atuais entre a criminologia
feminista e a criminologia crítica: a experiência
conhecimento que trabalha a partir da brasileira. In: CAMPOS, Carmen Hein de
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