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Novos RumoS

Marius Romme e Sandra Escher


a Companhia das Vozes demonstra que organizadores

N uma boa parte de nós tem experiências


auditivas estranhas; que muitos de nós
não precisam de recorrer à Psiquiatria por isso; e
Zagalo-Cardoso e Cunha-Oliveira
coordenadores da edição portuguesa

que alguns de nós acabam por descobrir formas de


lidar com essa experiência auditiva sem que ela inter
fira com a sua vida social ou com as suas activi
dades quotidianas.
O núcleo essencial deste livro é constituído por I í
depoimentos íntimos de pessoas que, ouvindo vozes,
acabaram por estabelecer, de uma forma ou de outra,
NA COMPANHIA
um modus vivendi com as suas próprias experiências,
integrando-as nas suas vidas. Estes depoimentos
encontram-se entremeados por uma vasta gama de
DAS VOZES
formulações teóricas, algumas das quais abordam o
fenómeno à margem do modelo medico, enquanto
outras representam as linhas de referência que se
podem encontrar no interior da própria Psiquiatria. Para uma análise
Os organizadores deste livro estão duplamente da experiência de ouvir vozes
de parabéns, não apenas por terem produzido um
excelente exemplo de investigação original, para o
qual contribuíram muitos ouvidores de vozes holan
deses e britânicos, mas ainda pelos seus incansáveis
esforços, por essa Europa fora, no sentido de ultra­
passar os tabus sociais que rodeiam o assunto.»
Lord Ennals
(Presidente da Associação MINI))
003516 1 /

NAC0I1PANHIA DAS UOZES

ISBN 972-33-1272-7

ed it o r ia l E stam pa
9 789723 312720
Marius Romme e Sandra Escher
organizadores

Zagalo-Cardoso e Cunha-Oliveira

munumo
coordenadores da edição portuguesa

®e CI$
i doo

NA COMPANHIA
DAS V02XS
Para uma análise
da experiência de ouvir vozes
“As ilusões e alucinações explicam-se,
em grande parte, pela afectividade.”
P r o f e s s o r D o u to r H e r m é n io C a r d o s o
( A u la s T e ó r ic a s d c P s iq u ia tr ia :
Dementia Praecox , 1 9 4 4 )

F IC H A T É C N IC A
O rig in a l h o lan d ês: Stemmen Horen Accepteren '•**
R ijk s u n iv e rsite it L im b u rg . V a k g ro e p S o c ia le P s y c h ia fria -
S iso • 86 U D C 6 1 6 .8 9 -0 5 2
E d ito re s: Prol'. D r. M .A .J. R o m m e ; M w A .D .M .A .C . E sc h c r
C ap a: Jo sé A n tu n e s
l .a e d iç ã o : M aio d e 1997
F o to c o m p o siç ã o : B y b lo s - F o to c o m p o siç ã o , L da.
Im p re ss ã o e A ca b a m e n to : R o lo & F ilh o s - A r te s G rá fic a s, L da.
D e p ó sito L eg al n.° 11138 5 /9 7
IS B N 9 7 2 -3 3 -1 2 7 2 -7
C o p y rig h t: © P ro f. D r. M .A .J. R o m m e ; A .D .M .A .C . E sc h c r
© E d ito ria l E sta m p a , L da., L isb o a , 1997
p ara a lín g u a p o rtu g u e sa
Os organizadores
Marius ROMME
Professor Catedrático de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo
(Maastricht, Holanda), desde 1974. Director do Centro de Saúde Mental Comu­
nitário de Maastricht.
Foi discípulo do Professor Querido, psiquiatra e político holandês de origem
judaico-portuguesa, que exerceu cargos de primeiro plano na Organização Mun­
dial de Saúde e se notabilizou por ter criado, no ano de 1934, em Amesterdão,
o primeiro serviço comunitário de ajuda para prevenir a hospitalização de pacien­
tes psiquiátricos.
O Professor Romme tem aliado a investigação científica à organização social
da ajuda. A sua área principal de investigação e de intervenção vem-se centrando
nos cuidados comunitários de longo-prazo a pacientes psiquiátricos.
Tem já uma vasta obra escrita, nos campos da Psiquiatria Social,
Etnopsiquiatria, Reabilitação Psiquiátrica, Política de Saúde Mental e Ética.
É colaborador assíduo de revistas internacionais da especialidade, nomeadamente
Schizophrenia Bulletin, British Journal o f Psychiatry, Mental Health and Society,
The International Journal o f Social Psychiatry , e em fóruns internacionais de
debate da Questão Psiquiátrica.
É autor de trabalhos originais importantes para a compreensão do fenómeno
de escuta de vozes e pioneiro de intervenções inovadoras para ajudar os ouvidores
a lidar com as vozes - o que o tornou uma autoridade incontestada nesta área,
na Europa c nos Estados Unidos.
Sandra ESCHER
Jornalista de ciência e investigadora do Departamento de Psiquiatria Social
da Universidade de Limburgo (Maastricht, Holanda) e do Centro de Saúde Mental
Comunitário de Maastricht.
Depois de se graduar em Enfermagem, estudou Jornalismo em Utreque.
No Departamento de Psiquiatria Social da Universidade dc Limburgo, come­
çou por trabalhar no ensino da elaboração dc artigos científicos a jovens cien­
tistas. Participa, desde 1987, no Projecto “Ouvir Vozes”, onde: é auxiliar dos
ouvidores dc vozes na elaboração dc “ego-documentos” e dc comunicações para
congressos; é delegada para a comunicação social, na promoção da aceitação
social da experiência de ouvir vozes; e é investigadora sénior do projecto sobre
a escuta de vozes em crianças.

Os coordenadores da edição portuguesa


Foram co-autores, juntamente com os Professores F. A. Jcnncr e A. C. D.
Monteiro, do livro “Esquizofrenia”: Uma Doença ou Alguns Modos de Se Ser
Humano?, que foi publicado no Brasil (Editora Científica Nacional), em Portugal ÍNDICE
(Editorial Caminho), no Reino Unido (Sheffield Academic Press) e na Itália
(Edizione Trieste), pelo qual receberam do Governo português uma Menção
Honrosa do Prémio da Boa Esperança de Ciência e Tecnologia - 1993. A P R E S E N T A Ç Ã O - O U V IR V O Z E S : A P R E N D E R E E N S IN A R
São membros fundadores da SIRIS - Associação de Solidariedade, Investi­ 17
gação, Reabilitação e Intervenção Social, que, cm 1990, visou a articulação dc A L ID A R C O M A E X P E R IÊ N C IA ........................................................................
eforços entre profissionais e utentes de cuidados de Saúde Mental. In tr o d u ç ã o ............................................................................................................. 17
Foram delegados portugueses ao Congress on Hearing Voices: Developing D ar v o z aos q u e o u v em v o z e s .............................................................. 21
Partnership between Professionals and Users, realizado em Maastricht, Holanda, A n trop o lo g ia e H istó ria ............................................................................... 25
de 28 a 31 de Agosto de 1995. 30
Patsy H age e a exp eriên cia h o la n d e sa .............................................
N otas sob re a ed içã o p o rtu g u e sa .......................................................... 35
J. A. CUNHA-OLIVEIRA
37
Médico. Mestre em Psiquiatria. Chefe de Serviço Hospitalar. P R Ó L O G O D A V E R S Ã O I N G L E S A .............................................................................
Director de Serviço do Hospital Psiquiátrico do Lorvâo (Coimbra).
Representante de Portugal, cm nome da SIRIS, no grupo dc organização da 1. I N T R O D U Ç Ã O ........................................................................................................................ 39
Rede Europeia de Utentes de Saúde Mental (Londres, 1990).
2. A N O V A A B O R D A G E M - U M A E X P E R IÊ N C IA H O L A N D E S A 45
J. A. ZAGALO-CARDOSO O s p r im ó r d io s.................................................................................................... 45
O Q u e stio n á rio ........................................................................................... 47
Médico. Mestre em Psiquiatria. Doutor cm Psicologia. C om paração entre os que conseguiam e os que não
Professor da Faculdade de Psicologia c dc Ciências da Educação da Univer­ 47
sidade dc Coimbra. conseguiam entender-se com as v o z e s ..............................
Coordenador Nacional do INFORUM - International Forum of MentaI Health O C o n g re sso ................................................................................................ 52
and Social Sciences. A s três fa ses da ex p eriên cia d e ou vir v o z e s ............................... 52
Desde 1988, mantém intercâmbio académico c científico regular tanto com F ase de s u rp re sa ...................................................................................... 53
o Professor Marins Rommc e sua equipa como com a Hearing Voices NetWork 55
do Reino Unido. A con tecim entos a n te rio re s .................................................................

11
O im pacto das v o z e s .............................................................................. D esco brir persp ectiva s teóricas a lte rn a tiv a s ....................... 96
F ase d e organização: entender-se com as v o ze s .............. A u m entar a a c e ita ç ã o ........................................................................... 98
F ase de e sta b iliza ç ã o ............................................................................ R econ hecer o sig nificado das v o z e s ........................................... 98
A b ord agen s p e sso a is à c o m p r e e n s ã o ................................................ V alorizar os aspectos p o s itiv o s ...................................................... 99
P erspectivas p s ic o ló g ic a s ................................................................... E strutura r o contacto com as v o z e s .......................................... 99
P erspectivas não p sic o ló g ic a s ......................................................... U tilizar m ais eficazm ente a m e d ic a ç ã o .................................... 100
C o n seq u ên cias para a p rofissã o p siq u iá tr ic a ............................... O bter a com preensão dos fa m ilia r e s ......................................... 100
C rescim ento p e s s o a l ............................................................................... 101
3. A EXPERIÊNCIA BRITÂNICA................................................................ D esv an ta g en s da d is c u s s ã o ....................................................................... 103
E m bu sca d e n o v a s e x p lic a ç õ e s ........................................................... C o n c lu sã o .............................................................................................................. 104
B reve história d o d e se n v o lv im en to da rede b r itâ n ic a ..........
O P rim eiro C ongresso B r itâ n ic o .................................................. 6 . O U V IR V O Z E S : A E X P E R IÊ N C IA D O S Q U E N U N C A
O C ongresso de L ondres d e 1991 ............................................... R E C O R R E R A M À P S I Q U I A T R I A .......................................................................... 105
O Terceiro C ongresso N a c io n a l ................................................... I n tr o d u ç ã o ............................................................................................................. 106
O C ongresso de M an chester sob re E scuta de Vozes, C ontributos p e s s o a is ...................................................................................... 107
1 9 9 2 ............................................................................................................. P rim eiro contributo p e s s o a l ............................................................. 107
D a im portância de um a diversida de de explicações Segundo contributo p e s s o a l .............................................................. H2
- O C ongresso de M a n chester sobre E scuta Terceiro contributo p e s s o a l .............................................................. H6
de Vozes, 1993 ................................................................................... Q uarto contributo p e s s o a l ................................................................. 121
A criação da R ede B ritânica d e O uvidores d e V ozes... Q uinto contributo p e s s o a l .................................................................. 126
O G rupo de A juda M útua d e M a n c h e s te r ............................ Sexto contributo p e s s o a l ..................................................................... 132
D esenvolvim ento da R e d e ................................................................... Sétim o contributo p e s s o a l .................................................................. 138

4. PSI, PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA...................................................... 7. O U V IR V O Z E S : P E R S P E C T IV A S N Ã O P S IQ U IÁ T R IC A S ........... 141


A s v o z e s de W a lte r ........................................................................................ I n tr o d u ç ã o ............................................................................................................. 141
A s antigas c r e n ç a s .......................................................................................... E x p eriên cias d e v o z e s interiores: um estu d o d e trinta
O despertar das hum anidades: o m a g n e tis m o ............................ c a s o s ............................................................................................................. 143
A separação d os cam in h os ( 1 8 3 0 - 1 9 0 0 ) ......................................... Três reacções ao d esp erta r e sp iritu a l ...................................... 149
R ein o s separados (1 9 0 0 - 1 9 5 0 )................................................................ Um curriculum in te r io r ........................................................................ 150
A integração: o d esa fio a c tu a l.............................................................. B ases pa ra um a fu tu ra in vestig a çã o .......................................... 151
V o z e s, relig iã o e m is t ic is m o ................................................. 152
5. DISCORRENDO SOBRE VOZES........................................................... U m a p ersp ectiva m e ta fís ic a ............................................................. 157
A d iscu ssã o n e c e ssá r ia ................................................................................. A escu ta d e v o z e s e a p a r a p sic o lo g ia ............................................... 166
Identificar pa d rõ es de com portam ento das v o ze s ............. P ercepção extra -sen so ria l .................................................................. 166
E sba ter a a n sie d a d e ............................................................................... T elepatia e c la r iv id ê n c ia .................................................................... 167

12 13
C lassificação da p ercep çã o extra -sen so ria l....................... 168 A p e r so n a lid a d e d is s o c ia d a ....................................................................... 241
C ondições fa v o r á v e is ...................................................................... 171 T rau m as: u m estu d o sob re ab u so d e crianças
A escuta de vozes e O C am inho.................................................... 174 e a lu c in a ç õ e s ........................................................................................... 244
Um a perspectiva kárm ica.................................................................... 179 M o d e lo s c o g n it iv o s ........................................................................................ 252
P siq u iatria S o c i a l .............................................................................................. 259
8. CRESCER À MARGEM DA PSIQUIATRIA...................................... 185 In tera cçõ es fa m ilia res e p s ic o s e ............................................................ 266
Introdução.................................................................................................... 185 P s ic o s e ..................................................................................................................... 220
Contributos p e sso a is............................................................................... 186 Cari Ju n g e a p e rcep çã o e x tr a -se n so r ia l........................................ 279
O itavo contributo p e s s o a l............................................................. 186 Jayn es e a c o n s c iê n c ia ................................................................................. 284
Melhorar o controle...................................................................... 189
10. A S S U M I R O C O N T R O L E D A S I T U A Ç Ã O ......................................... 291
N ono contributo p e s s o a l............................................................... 190
I n tr o d u ç ã o ........................................................................................................... 292
Melhorar o controle...................................................................... 193
E scr ev er um d iá r io ....................................................................................... 294
D écim o contributo p e s s o a l.......................................................... 195
Interajud a e aju d a m ú t u a ........................................................................ 301
Ouvir v o z e s...................................................................................... 196 O rg a n iza ç õ e s d e u te n te s ................................................................... 301
A lucinações...................................................................................... 197 A F u n d a çã o R esson ância (W e e rk la n k ) .................................. 302
Delírios e ideias paranóides .................................... 198 G ru p o s d e a ju d a m ú tu a .................................................................... 304
Fenómenos físicos.......................................................................... 198 C o n cen tra r-se n as v o z e s ........................................................................... 310
Medo e vulnerabilidade............................................................... 200 T é c n ic a s d e co n tro le da a n sie d a d e ................................................... 313
Melhorar o controle...................................................................... 200 P ro v o ca r o D iá lo g o en tre V o z e s ....................................................... 321
D écim o p rim eiro contributo p e s s o a l....................................... 203 R e a b ilita ç ã o ........................................................................................................ 331
A Psiquiatria.................................................................................... 206 M e d ic a ç ã o e esc u ta d e v o z e s .............................................................. 341
Melhorar o controle...................................................................... 208
D écim o segu nd o contributo p e s s o a l....................................... 209 11. C O M P R E E N D E R A S V O Z E S ....................................................................... 353
Quebrar o silêncio.......................................................................... 211 Para q u e é p r e c isa um a lin g u a g e m ? ............................................... 353
Vozes: sobreviver e lidar com elas......................................... 212 O b je c tiv o s e estru tu ração da E n trev ista ........................................ 355
Aqui vão as minhas vozes... e os seus desencadeantes .. 212 E n trev ista e r e s u lta d o s .............................................................................. 357
Treinar as vozes: pô-las em equilíbrio com a minha vida 213 A p e r c e p ç ã o ....................................................................................................... 357
D écim o terceiro contributo p e s s o a l....................................... 215 V o z e s e ou tras p e rcep çõ es ex tr a -se n so r ia is................................ 359
C a ra cterística s d as v o z e s ........................................................................ 359
9. OUVIR VOZES: A PERSPECTIVA DA PSIQUIATRIA O r g a n iz a ç ã o d a s v o z e s ............................................................ 361
E DA PSICOLOGIA.................................................................................... 219 In flu ê n c ia d as v o z e s e su as c o n s e q u ê n c ia s ................................ 362
Introdução...................... 220 H istó ria da e s c u ta d e v o z e s e circu n stân cias relacion ad as
A Psiquiatria C lá ssic a ........................................................................... 222 c o m o seu in íc io ........................................................................ 364
A nálise fu n cion al...................................................................................... 227 A lg u n s e x e m p lo s d e a co n tecim en to s tra u m á tico s................. 365

14 15
O que in flu en cia o vir a ser-se p acien te ou n ã o .................. 366
D esen cad ea n tes im e d ia to s ....................................................................... 368
Identidade das v o z e s .................................................................................. 370
A in ter p reta ç ã o ............................................................................................... 371
L idar co m as v o z e s ..................................................................................... 372
C o n c lu sã o ........................................................................................................... 374

12. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 375


Partilha d e e x p e r iê n c ia s ........................................................................... 376
O prob lem a de lidar co m as v o z e s ................................................. 378
D iversid ad e de o r ig e n s .............................................................................. 379
D isp o n ib iliza r a in fo rm a çã o .................................................................. 387 APRESENTAÇÃO
C o n c lu sã o ........................................................................................................... 390
OUVIR VOZES: APRENDER E ENSINAR A LIDAR
BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 391 COM A EXPERIÊNCIA
J . A . C unh a-O liveira e J . A . Z ag alo-C ardoso
“Vocês sabem que as árvores falam? Sim, elas falam,
elas falam umas com as outras. E também falarão convosco,
se vos derdes ao trabalho de as escutar. O problema é que
os Brancos nunca escutam.”
(Búfalo, O Andarilho - Chefe índio)

Introdução
E ste livro, q u e agora apresentam os aos leitores d e lín gua portuguesa,
é fruto d e um a E sco la e d e um a Prática: a E sco la do D ep artam ento
d e P siquiatria S o cia l da U n iv ersid a d e d e L im b u rgo e a Prática do
C entro d e S aú d e M en tal C om u n itário d e M aastricht. E sco la e Prática
q u e m ergu lh am as suas raízes no trabalho d o P rofessor A rie Q uerido,
ju d eu h olan d ês d e o rigem p ortu gu esa, q u e rep resen tou o p on to de
partida da in terven ção p siq u iátrica com u n itária.
N o m ea d o resp on sáv el p ela o rg an ização d os S e rv iço s C om un itários
d e Saú d e do M u n icíp io d e A m esterd ão em 19 31 , o P ro fessor Q uerido

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fundava, em 1934, o prim eiro S erv iço D o m iciliá rio , 2 4 /2 4 horas, de d e se n v o lv im en to da parceria, isto é , da prática do d iá lo g o em p é de
ajuda (in terven ção em crise) a p acien tes p siq u iátricos, co m o p rop ó­ igu ald ad e.
sito de prevenir a sua h o sp ita liza çã o - facto qu e o n otab ilizou no D e acord o c o m esta p ersp ectiva, um sistem a m oderno d e cu id a d o s
m un do da P siquiatria. E m 1 9 5 2 , A . Q uerido era nom ead o p rofessor d e saúd e já n ão d ep en d e só d o s aportes c ien tífico s e té c n ic o s d os
de M ed icin a S o cia l da U n iv ersid a d e de A m esterd ão, passando a d e­ p ro fissio n a is d e saú d e, m as tam bém das asp irações e d o grau d e
sen v o lv er um a esp ecia l a ctiv id a d e na área da P siquiatria S o cia l. A n tes sa tisfação das n e c e ssid a d e s d o s seu s utentes.
da sua ju b ila çã o , o P ro fessor Q u erido to m ar-se-ia perito da O rgani­
zaçã o M undial de Saú de, na área da Saú de C om unitária. E ste tip o d e id eia s e in iciativ a s, qu e realçam o in d iv íd u o , a sua
N o seu co n h ecid o trabalho M últipla E quilibria (1958), pod e ler-se: su b jectivid ad e e in tera cçõ es, perante o estereótip o so cia l d om in an te,
“Ao reunir os recursos individuais, o homem pode contra-actuar e ten de a ser p o u co co m p reen d id o , a ceite e estim u lad o em so cie d a d e s
modificar as forças do ambiente; as suas acções podem, então, tornar- de raiz id e o ló g ic a ca tó lica , ortod oxa, islâ m ica e co m u n ista e ten d em ,
s e infinitamente mais eficazes. A estabilidade do sistema pode ser am­ p elo contrário, a m edrar e flo rescer em so cied a d es d e raiz id e o ló g ic a
plamente conseguida se as forças individuais partilharem um objectivo oriunda da R eform a p rotestan te, nas q u ais, ao contrário das an teriores,
comum. Quando os indivíduos conseguem congregar-se com vista a um o papel do in d iv íd u o n o seu próprio d estin o e sa lvação p rev a lece sob re
objectivo comum, cria-se uma estrutura supra-individual, nomeadamente a estrutura d e d o g m a s, in stitu içõ es e hierarquias da so cie d a d e orga­
a sociedade.” nizada. Por outro lad o, e ste aparente in d ivid u alism o p rop icia form as
E ste é o fu nd am en to d o s m o v im en to s de em an cip ação e de ajuda de organ ização da ajuda q u e partem da in iciativa, da v o n ta d e e da
m útua na área da Saú de M en tal e d o d esen v o lv im en to da parceria. intersolid aried ad e a ctiva d os in d iv íd u o s, en qu an to qu e nas so cie d a d e s
Seria p recisa m en te c o m o P ro fessor A rie Q u erido que M arius ca tó lica s, o rto d o x a s, islâ m ica s e com u n istas o in d ivíd u o ten d e a e s ­
R o m m e haveria de fazer, d e 1965 a 1967, a sua form ação pós-gra- perar qu e q u em lh e g ere o s d ogm as e a eco n o m ia da sa lv a çã o lh e
duada em P siquiatria S o cia l e a resp ectiva tese d e doutoram ento. prop orcion e tam b ém as form as de organ ização da ajuda (ou d e seg re­
g a çã o) - q u e e le , sem v o z activa, con su m irá p a ssiva m en te e sem
A P siquiatria S o cia l é o ca m p o p riv ilegia d o de ap licação do m o ­ crítica.
d elo In v estig a çã o -A cçã o . E ste m o d elo , criado por Kurt L ew in , carac- D e facto, a m aior parte das in iciativas e m ovim en to s d e u ten tes de
teriza-se p ela produção d e co n h ecim en to s através da m o d ifica çã o de Saú de M ental e a m aioria d o s esfo rço s qu e têm sid o feito s para rever
um a dada realidade so cia l, co m a participação activa dos interessad os. e reform ular as c o n c e p ç õ e s e as práticas p siqu iátricas su b sid iárias da
T rata-se de um a in v estig a çã o om bro a om bro, d e um a acção de par­ R ev o lu çã o F ran cesa têm tid o lugar em p a íses co m o a H olan d a, a
ceria, de um trabalho feito com as p essoas e não sobre as p esso a s. B é lg ica F lam en ga, a D in am arca, a E scó cia , a Inglaterra, a A lem a n h a
E ste m o d elo p erm ite o a c e sso d o s utentes à d efin içã o de m atérias e o N ord este d e Itália, para n ão falar d o s E stad os U n id os da A m érica.
tão im portantes co m o a id en tifica çã o dos prob lem as em presença, das
q u estõ es a levantar e dos p r o c esso s de lh es dar resp osta e da interpre­ C o m p reen d e-se, a ssim , por qu e con tin u am os n ós in flu en cia d o s e
tação e ap licação d os resu ltad os ob tid os. E ste p roced im en to perm ite refén s d e um a prática q u e p rod u z “d o en tes cró n ico s” , isto é , q u e reduz
m od ificar as práticas à m ed id a das n ecessid a d es d os utentes. a su b jectivid ad e ao silê n c io e qu e lan ça o utente para as m argen s do
A teoria v a i-se fa zen d o a partir da prática. O saber do p rofission al sistem a, n ão lh e d an d o e sp a ç o próprio d e d esen v o lv im en to das suas
ap ren d e-se e a p erfeiço a-se tam b ém co m o saber dos utentes e in teres­ p oten cia lid ad es. A própria R eab ilitação P siq uiátrica é en ten d id a m ais
sad os. P ro fissio n a is e u ten tes b en eficia m do d iá lo g o m útuo e do co m o um a form a d e tom ar o “d oen te m en tal” m en os “d o en te” d o qu e

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um p rocesso de tirar partido das p o ten cialid ad es e da exp eriên cia do cessá ria para q u e as p e sso a s se p ossam en ten d er co m as v o z e s qu e
ind ivíd u o para o d e v o lv er ao c o n v ív io so cia l p len o , livre de qualquer o u v em .
estig m a ou q u a lifica tiv o degradante. S ão co n h ecid a s as in iciativ a s, de A in v estig a çã o recen te n esta área v em d em on stran d o q u e as p e s­
resto m uito m eritórias, q u e co n sistem em criar R esid ên cia s C om u n i­ soas q u e o u v em v o z e s p od em ch egar a um m odus vivendi co m elas
tárias p a ra ... D o entes M e n ta is... e m esm o a aceitá -las co m o parte integrante da sua própria id en tid ad e.
É e ssa , p e lo m en o s, a o p in iã o d os o u vid ores d e v o z e s qu e aprenderam
N a ó p tica da P siquiatria S o cia l, a im portância d os utentes nos a aceitar as su as v o z e s, a con trolá-las e a en ten d er-se co m ela s.
cu id ad os q u e lh es são prestados d everá ser crescen te. P rofissio n a is e N ã o p o d em o s deixar d e referir aqui o gritante p aralelism o desta
utentes d everão p o is participar na avaliação d os S e rv iço s de P siq u ia­ ab ord agem da P siquiatria S o cia l h olan d esa co m o s d ad os an trop oló­
tria e Saú de M en tal. g ic o s reco lh id o s do estu d o d os xam ãs e p erson a g en s so cia is afin s,
cu jas ex p e riê n cia s, nas so cie d a d e s tra d icio n a is, são con trolad as e
N o ca so co n creto da escu ta d e v o z e s, a P siquiatria S o cia l con sid e- integrad as na p erson alid ad e, para reverterem , d e p o is, nu m pap el de
ra-a um a ex p ressã o m etafórica das histórias e situ a çõ es b iográficas de u tilid ad e e p restíg io so cia l in d esm en tív eis. P or essa razão, ach ám os
quem a exp erim en ta. S egu n d o este m o d elo , as v o z e s reflectem as por bem acrescentar um a abordagem tradicional do prob lem a na S ecçã o
interacções d o in d iv íd u o n o âm bito das suas rela çõ es e d o con texto A ntropologia e H istória d esta A p resen tação à ed içã o p ortu gu esa.
so cia l m ais a m p lo em que se en contra integrado.
A m aior parte d o trabalho d e se n v o lv id o n o extrem o sul da H olanda,
na região de L im b u rgo e na cid a d e de M aastricht, rela cion a -se, pre­ Dar voz aos que ouvem vozes
cisam en te, co m a P siquiatria S o cia l, tal co m o lá a en ten d em , e que
im p lica o estu d o da vid a qu otidiana das p e sso a s c o m prob lem as de O prin cíp io fu nd am en tal d este livro é valid ar as exp eriên cia s e as
saúde m en tal. C o m o d iz M arius R o m m e n este livro, p e rcep çõ es d os ou v id o res d e v o z e s e im p lic á -lo s na co n c ep çã o e na
“Para a Psiquiatria Social, os pensamentos, as emoções, as percep- im p lem en tação d e estratégias d e interajuda. O prob lem a da v alid ação
ções e o comportamento dos indivíduos estão relacionados com as con­ das ex p eriên cia s e das p ercep çõ es d os o u v id o res d e v o z e s resp eita não
dições em que as pessoas vivem e funcionam." apen as às p e sso a s nesta situ ação m as tam b ém a toda a g en te q u e, por
fo rm ação, cu riosid ad e ou a ctivid ad e p ro fissio n a l, n ecessita d e en co n ­
E m M aastricht, as p e sso a s qu e ou v em v o z e s estã o , d esd e 1987, a trar ex p lica çõ es e enquadram entos teóricos q u e n ão se lim item a reduzir
trabalhar em parceria co m o s p rofissio n a is, co m a fin alid ad e de tom ar ao silê n c io e ao iso la m en to a escu ta d e v o z e s e as p e sso a s q u e a
as suas ex p eriên cia s m ais co m p reen sív eis a si próprias e aos p rofis­ ex p erim en tam .
sion ais e n v o lv id o s, am plian do a co m p reen são das d iversas id eias que
ex istem sobre a escu ta de v o z e s e aprendendo uns co m os outros. O s tem as e o b jectiv o s cen trais d este liv ro p od erão, en tão, ordenar-
A ssim se fic o u a saber que as v o z e s são exp erim en tad as por 2 a -se c o m o segue:
4% da p op u lação adulta e que não são, em si m esm a s, sinal de doen ça. - Falar da im portância histórica, cultural, an trop o ló g ica e so cia l da
D o ap reciável nú m ero de p e sso a s que ou v em v o z e s só cerca de um escu ta d e v o zes;
terço procura ajuda p rofissio n a l. E quando o fa z é por causa das - E xp or as m ú ltip las id eias e co n c e p ç õ e s acerca da escu ta d e v o zes;
co n seq u ên cia s d essa ex p eriên cia e não d evid o à ex p eriên cia em si. O s - L evar o s ou v id o res d e v o z e s a falar e a escrev er acerca da sua
tratam entos m éd ico s habituais n ão parecem con stitu ir a resp osta n e­ própria exp eriên cia;

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- Saber se ex istem so lu ç õ e s e co m o proporcionar a ajuda de que E ainda:
os ou v id o res de v o z e s n ecessitam ; “Convirá lembrar que estamos completamente dependentes das nar­
- D ebater a ajuda m útua e as form as d e a consegu ir; rações dos pacientes, sempre que procuramos saber se estão ou não a
-O r g a n iz a r e pôr em fu n cion am en to grupos de ouvidores de ter ‘alucinações’. Em consequência da natureza totalmente subjectiva
v ozes; destas experiências, estamos desprovidos de qualquer critério objectivo
- O que se p o d e esperar da parceria entre utentes e profission ais; que confirme ou refute as afirmações do paciente; temos de aceitar as
- D iscu tir a utilidade e a valid a d e do d ia g n ó stico psiquiátrico; suas palavras e tentar compreender o seu significado ‘real’ com a ajuda
- D em onstrar q u e tanto as “n e u ro ses” c o m o as “p sic o se s” pod em dos elementos clínicos e biográficos de que dispomos a respeito deles.’’
ter origem em traum as, nas in teracções e na história de vid a dos
p acien tes. E ste livro v em tom ar a c e ssív e l ao leitor a su b jectivid ad e, as d ifi­
cu ld ad es e as in teracções so c ia is d aq u eles q u e o u v em v o z e s e v e m
D ar v o z à q u eles que o u v em v o zes: um prop ósito aparentem ente perm itir qu e o operador d e S aú d e M en tal e o p rofission al d e P siq u ia ­
estranho num cam p o co m o a P siq uiatria, em q u e o facto de se ouvir tria p o ssa m dar m ais sen tid o às suas in terven ções.
v o z e s tem hab itualm ente, ou tem tid o, um sig n ifica d o m órbido, p ejo­ U m m érito su p lem en tar d este livro é ex p lica r d e q u e form a as
rativo, sin ó n im o de an om alia ou p rod u ção espúria, sin tom a de um a ex p eriên cia s d e escu ta d e v o z e s p od em con d u zir a p esso a à co n d içã o
d o en ça que é n ecessário in vestigar e tratar. É , no entanto, um sig n i­ de p acien te ou , p e lo con trário, proporcionar a transform ação da sua
p erson alid ad e a um n ív el su p erior d e integração q u e se traduz nu m a
fica d o an óm alo fruto de um co n tex to anóm alo: observar o h om em -
m udança p o sitiva radical d o sig n ifica d o e estilo de vid a da p esso a .
-o b jecto sem tom ar em con ta o h o m em -su jeito e o h o m em -so cia l, isto
A ssim , d efin e co m o p a cien te o ou vid or d e v o z e s qu e n e cessita de
é , sem cuidar de saber do seu m u n d o interior, da sua história, das suas
recorrer aos cu id ad os p ro fissio n a is d e P siq uiatria e d e S aú d e M en tal,
cren ças, das suas rela çõ es e in ter-relações e das suas n ecessid ad es. não porque seja n ecessaria m en te portador d e um a d o en ça m ais ou
N a verdade, o s cu id ad os de saú d e, em particular o s cu id ad os p si­ m en os e sp e c ífic a qu e é n e cessá r io tratar e debelar, m as por n ão ser
qu iátricos, adoptam hab itualm ente co n c e p ç õ e s redutoras, segu n d o as ca p az d e lidar ad eq u ad am en te co m a ex p eriên cia d e ou vir v o z e s e su as
q u ais a escu ta d e v o z e s é co n c eb id a e teorizada, g en ericam en te, co m o co n seq u ên cia s. N a g é n e se d esta d ificu ld ad e ap on tam -se factores d e
um a categoria d e d o en ça m en tal. D este m o d o , a exp eriên cia subjec- vuln erab ilid ad e ao stress, q u e, m ais d o qu e m eros factores d e n atu reza
tiva é co n fisca d a por e sse tipo d e c iên c ia - cujas teorias se tom am , b io ló g ica , há b oas razões para adm itir qu e se trate sobretudo d e fa c ­
apesar d isso , a b ase do tratam ento. tores d e natureza p sic o sso c ia l, o n d e pon tuam sen tim en tos d e in se g u ­
Para dar um ex em p lo , essa s teorias p recon izam q u e não se fa le das rança e perturbações d o d e se n v o lv im en to da iden tidade durante o
v o z e s nem do seu sig n ifica d o porque isso iria confun dir ainda m ais p eríod o d e crescen ça.
o p acien te co m “alu cin a çõ es au d itiv a s”. M as a m aioria das p esso a s E sta form u lação p od e, a liá s, ajudar a A n trop o lo g ia a com p reen d er
que ou v em v o z e s não p en sa d e ssa m aneira. e d esm istificar o s p a ra lelism o s q u e se v ê forçad a a esta b elecer entre
A liá s, co m o n ós próprios tiv em o s o ca siã o d e dizer anteriorm ente a “loucura” xam ân ica e afin s, por um lad o, e a cham ada “esq u izo fren ia ”
(Jenner et al., 1992), por outro. S egu n d o P iers V iteb sk y (1 9 9 5 ),
“O termo ‘alucinações auditivas’ não pode ser utilizado para desig­ “o paralelismo mais gritante com a ‘loucura’ xamânica encontra-se,
nar todos os modos de encarar este fenóm eno, nem salienta suficiente­ talvez, na esquizofrenia. A crise esquizofrénica é susceptível de mergu­
mente a sua natureza complexa e as íntimas relações que tem com o lhar o indivíduo em terrores e pânicos comparáveis às visões iniciáticas
pensamento do paciente”. do xam ã siberiano. O que não impede que a diferença seja grande, tanto

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no plano social como no plano psicológico. Onde a concentração mental Antropologia e História
do xam ã está aumentada, dispersa-se a do esquizofrénico; o xamã man­
tém um poderoso controle do seu espírito, enquanto que a esquizofrenia A P siq uiatria tem andado arredada da A n trop o lo g ia e da H istória;
ocasiona a perda desse controle; e enquanto que a experiência do xamã p o d e m esm o d izer-se qu e n a sceu e cresceu d e costas voltad as para
regressa à sociedade, onde reverte e é partilhada para o bem de todos, ela s, q u içá co m a m issã o p rofética d e as revogar e negar.
o esquizofrénico fica aprisionado numa experiência privada, próxima do H istoricam en te, a escu ta d e v o z e s era a ceite p ela so cied a d e co m o
autism o”.
um a ex p eriên cia altam ente sig n ifica tiv a (e ainda o é em m uitas partes
N ã o estará aqui, antes, um a ex c e le n te d escriçã o da d iferen ça atrás d o m un do). O seu co n tex to e sig n ifica d o n u m in o so ca sa -se m elh or
esta b elecid a entre p acien te (o “esq u iz o fr é n ic o ”) e não p acien te (o co m um a co n c ep çã o e estilo an im ista da vid a e d o m un do do qu e co m
xam ã)? a estrutura das relig iõ es m o n o teísta s e da filo so fia d e E stad o. A lv o
F in alm en te, o livro de M arius R o m m e e Sandra E scher v em d e­ prim eiro d o s p rocesso s e a u to s-d e-fé da In q u isição, só d esd e o s alvores
m onstrar que, ao contrário das cren ças psiq u iátricas m ais co m u n s, os do sécu lo XIX, co m o triunfo da R ev o lu çã o F rancesa, o s prim eiros
ch am ad os “sin tom as p sic ó tic o s” tam bém sã o o reflex o de problem as p a sso s da S o cied a d e Industrial e a co n seq u en te a scen sã o so cia l da
p e sso a is, tal co m o se adm itia para o s ch am a d o s “sin tom as neuró­ B u rgu esia (e do P roletariad o), é qu e as v o z e s com eçaram a ser en ca ­
tic o s ”; isto é, q u e a cham ada “d o en ça ” em P siquiatria, seja ela “n eu ­ radas co m o elem en to s co n stitu in tes d e d oen ça s. R esta saber se en ca i­
ró tica ” ou “p sicó tica ”, p o d e ser seriam en te in flu en ciad a p ela seq u ên ­ xar as v o z e s n o co n tex to das d o en ça s terá sid o o m elh or cam in h o. H á,
cia das exp eriên cia s de vid a, ou seja, p ela biografia do pacien te. hoje em d ia, algu m a p reocu p ação co m o facto d e as ex p eriên cia s d os
A o valorizarem o m un do interior d o p a cien te, a sua história e o u vid ores d e v o z e s terem sid o relegad as para o pap el d e sin tom as
su b jectivid ad e, e as in teracções so c ia is o n d e a escu ta de v o z e s se d esp ro v id o s d e sen tid o e co m o facto d e se pedir aos o u vid ores de
insinu a, M arius R o m m e e Sandra E sch er arrebatam o “d o en te” ao v o z e s qu e p rescin d am da su a p erson alid ad e em troca d e p rotecção e
pap el subalterno, v a zio , p a ssiv o e m arginal q u e a P siquiatria trad icio­ de cu id ad os d e saúde.
nal* hab itualm ente lhe reserva. S e d ú vid as h o u v e sse bastaria a lista Ora, o s p rofissio n a is d e saú d e, en q u an to tal, não p od em dar res­
de colab oradores e protagon istas d este livro para as dissipar por co m ­ p osta a tod os o s prob lem as, n em isso p arece m in im am en te d esejável.
pleto: Paul B aker, B rian D a v ey , P atsy H age, A nn a H ofk am p, A lan P elo contrário, é até p o ssív e l q u e o s p ro fissio n a is d e saú d e tenham
L eader, R esi M aleck i, A n se Strefland são p e sso a s que irradiam en er­ poder d em asiad o.
g ia , cord ialid ade e força interior e a q u em a escu ta de v o z e s, no
c o n te x to d e sta n o v a a b o rd a g e m , c a ta p u lto u para um p a p e l de A lin g u a g em qu otidiana está , ainda h o je, recheada d e referên cias
reform u lad ores d e id eias e práticas e para p rotag o n ism o s so cia is residu ais a um a ex p eriên cia d e estar no m u n d o, porventura m uito
in su sp eitad os. A p esar das v o z e s q u e o u v em , d o s d ia g n ó stico s p siq u iá­ d iferen te da q u e h oje n os é fam iliar, qu e in clu ía a p resen ça d e v o z e s
tricos que lhes foram atribuídos e até d os m ú ltip lo s internam entos que e a c o n v iv ê n c ia co m ela s, n o co n tex to d o ex istir hu m ano norm al.
algu n s d eles tiveram , m an ifestam um a brilhante in telig ên cia , sen sib i­ P o d em o s d izer d e outro m odo: um a ex p eriên cia d e estar no m un do em
lid ad e e capacid ad e de ex p ressã o e d e sín tese q u e o s torna líderes que os h o m en s v iv e m , ou v iv ia m , na com panhia das vozes. D e algu m a
in con testad os d e M o v im en to s e A sso c ia ç õ e s d e d iversa natureza. form a, co m o se d iz n o “9.° C ontrib uto P e sso a l” d este livro (ver C a­
pítu lo 8), essa s v o z e s apareciam “com o se fo sse m pesso as na nossa
* A designação «Psiquiatria tradicional», presente ao longo deste livro, é um cabeça a explicar-nos as co isa s”. “P e sso a s” e ssa s, dentro ou fora da
termo equívoco e refere-se à Psiquiatria Clínica nas suas diversas vertentes. cab eça, co m as q u ais, co m o a co n te ce em certas rela çõ es fam iliares e

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a fectiv a s, se é forçad o o u lev a d o a m anter um a relação de c o n v iv ê n ­ que, em so cie d a d e s co m o a n o ssa , são con otad as co m a d o en ça m en ­
cia , por m uito boa, m á ou a m b ivalen te que e la seja. O u, co m o se d iz tal. É o ca so d o nh am ussoro, o curandeiro da m en te, e m certas s o c ie ­
n o “ 13.° C ontributo P e sso a l” (ver C apítu lo 8 ), essa s v o z e s p od erão ser dades m o ça m b ica n a s - e d o xam ã em geral*. N o te -se , a liá s, a própria
en tend idas co m o a m a n ifestação de “deuses om niscientes e o m n ip o ­ am bivalên cia sem ân tica do term o nh am ussoro: “P ara nós, assim ,
tentes que tudo orientam e determ inam sobre a terra ” , aos q u ais é n e­ nham ussoro será ‘aquele que exerce a pro fissã o do tratam ento dos
cessá rio e im p erio so o b ed ecer porque não p o d em ser d esau torizad os. m ales da ca b eça ’, ou é ‘aquele que p o ssu i na cabeça esses m a les’.”
O u, en tão, pod erão ser p erceb id o s co m o a m a n ifestação de um ou V a le a p en a citar um p o u co m ais d em orad am en te L u ís Polanah:
v á rios d os in u m eráveis esp írito s q u e reflectem , num a p ersp ectiv a “Saibamos em primeiro lugar que em um certo número de tratamen­
anim ista, as qu alida des am bíguas de um m eio em que os anim ais, tos desses doentes tropicais, segundo os métodos da moderna neuro-
a p a isa g em e o tem po p o dem , consoante os seus hum ores, alim entar- psiquiatria, com grande surpresa do médico, alguns dos seus doentes
-nos ou d estruir-no s” (V iteb sk y , 1995). não melhoravam quando submetidos a uma cura pelos processos da
medicina ocidental, mas restituídos ao seu meio tribal, passado algum
A “V o z da C o n sciên c ia ” , a “V o z da R a zã o ”, a “V o z do S a n g u e” tempo, podiam regressar à sua actividade normal, verificando-se que
(isto é, a co n sciên cia d e fa m ília , d e clã ou de tribo), a “V o c a ç ã o ” (isto podiam ser considerados clinicamente curados.
é, “ch am am en to”), ser-se “ um a p e sso a avisa d a ”, “ou vir o que n o s d iz Isto fe z os cientistas concluir que, diversamente do critério europeu,
o co ra çã o ”, etc., etc., etc., são apenas algu m as das m uitas ex p r essõ es certas doenças incluídas no quadro das doenças mentais possuem nas
que a essa form a de estar n o m un do, a e s s e co n tex to cultural, se sociedades iletradas um matiz fortemente cultural. Quer dizer: são ao
referem . C o n texto cultural, n o tem p o e no esp a ço , e form a d e estar mesmo tempo manifestações patológicas do espírito e sinais de eleição
n o m undo de o n d e em erg em , aqui e além , num a ou noutra ép oca, religiosa. De um lado, admitidas como doença as perturbações da razão
nesta ou naquela região, grandes vu ltos da H u m anidad e cu jo pap el e o comportamento, do outro, não a segregação imposta pelo grupo
cru cial na m o d ifica çã o ou reinterpretação de cren ças e de co stu m es, como indivíduos inúteis mas, pelo contrário, o sentimento e a crença
colectivos de que tais manifestações se fazem acompanhar duma intensa
de m o d o s de pensar e d e agir, radicou, directa ou ind irectam ente, na carga epifânica. O tratamento do doente, por esta forma, operava-se no
escu ta de v o z e s e na ex p eriên cia a sso cia d a * . T em p o e e sp a ç o de grupo respectivo para reintegração dele com uma outra personalidade,
m etáforas, tem p o e esp a ço , ta lv ez, “em que o s anim ais falavam ” e em aquela que parecia impor-se durante o período de perturbações, como
que anjos, d em ó n io s, esp íritos e d eu ses ou sa v a m con d u zir e orientar a nova personalidade de evasão ou sublimação. Ora isto parece que não
o d estin o d os h om en s e d os p o v o s. V o z e s, an im ais, anjos, d e m ó n io s, é o que preocupa ao psiquiatra europeu, que atende ao paciente sem lhe
esp íritos e d eu ses que sã o, afm al e tam bém , o s actores d os m ú ltip los garantir nenhum lugar ou posto de evasão dentro da sociedade a que
dram as, co m éd ia s e tragédias do teatro su b jectiv o do H o m em e da ambos pertencem, sim, mas em que não cabe a ambos a mesma oportu­
H um anidade. nidade. M uito pior o problema quando o doente dum neurologista ou
dum psiquiatra, em áreas tropicais, era apenas tratado ‘clinicamente
Entre n ós, L u ís P olan ah (1 9 8 7 ) ch am ou a aten ção para as trad ições sem qualquer acompanhamento ou consequência cultural, isto é, sem
de certas so cied a d es qu e p revêem a atribuição de um pap el so cia l qualquer possibilidade de transformar a terapêutica do desarranjo men­
e sp e c ífic o e de p restígio aos in d iv íd u o s que p assam por ex p eriên cia s tal num contexto carregado de vocação sacral como o seu grupo estaria
disposto a adm itir.”
* São habitualmente citadas as figuras de Pitágoras, Sócrates, Moisés, Jesus, São
Paulo, Maomé, Mestre Eckhart, Santa Teresa d’Ávila, Santa Joana d’Arc, Giordano * Como diz Piers Vitebsky, “os xamãs são ao mesmo tempo médicos, padres,
Bruno, Gichtel, Swedenborg, Fechner, Jung, etc. trabalhadores sociais e místicos”.

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E m ais adiante: “O molde cultural form a a personalidade xamânica, e os xamãs são
‘loucos’ com a permissão de uma cultura e segundo a óptica dessa
“...o que se assiste [...] é o reconhecimento colectivo de que a etiologia cultura. No fim de contas, é a sociedade que estabelece a distinção entre
de tais anormalidades do comportamento goza duma origem numinosa o comportamento dos xamãs e o do esquizofrénico ou do psicótico. Um
e requer, por conseguinte, um tratamento que, mais do que simplesmente torna-se um herói, enquanto o outro é bom para o asilo. O xamã vive
medicamentoso, é sobretudo espiritual e religioso, visto que põe o antigo à beira do abismo, mas dispõe dos meios necessários para não cair
padecente em ligação com o mundo invisível, panteão dos seres sagra­ nele.”
dos. O doente emerge assim da doença para a sacralidade de um novo
ministério: ele renasce com uma nova personalidade social. Sublima-se O q u e V iteb sk y n ão d iz é q u e a so cie d a d e q u e prod uz o xam ã e
perante o seu grupo porque reaparece ‘eleito’ para uma nova e superior a so cied a d e q u e prod uz o e sq u izo frén ico o u o p sicó tico n ão sã o a
condição de vida, de maior responsabilidade social. m esm a so cied a d e, e q u e n ão há n o tícia d e h aver a silo s d e lo u co s nas
Isto significa que, em face de casos clinicamente tratados como psi­ so cied a d es on d e há xam ãs. D ito d e outra m aneira, é tão im p rovável
coses e neuroses, desencadeados por circunstâncias económicas e so­ encontrar esq u izo frén ico s ou p sic ó tic o s, tal c o m o n ós o s co n h ecem o s,
ciais, ou por carências alimentares e estados de angústia, não chega num a so cied a d e q u e prod uz xam ãs c o m o encontrar xam ãs nu m a so ­
para levar a cura e a tranquilidade a ciência médica do europeu. Alguma cied a d e qu e prod uz os “n o sso s” e sq u izo frén ico s ou p sicó tico s.
coisa mais existe que é imperativo tomar em consideração: são os dados
N a so cied a d e q u e prod uz xam ãs - o u n h am u ssoros, ou outra d e­
da sua cultura, as raízes da sua mentalidade caracterizadamente emotivas
e metafísicas.” sig n a çã o q u a lq u e r -, o in d ivíd u o exp erim en ta a perturbação m ental
m ergu lh ad o num sistem a d e referên cias e stá v el qu e o m antém em
lig a çã o co m a u n idade e o eq u ilíb rio do c o sm o s, e , um a v e z superada
E stas co n sid era çõ es são v álid as tam bém para o s xam ãs em geral,
a sua perturbação, a so cied a d e rein tegrá-lo-a co m o curador da m en te,
cuja ex p eriên cia “p sico p a to ló g ica ” o s torna aptos e o s cred en cia para
cuidar d o s m a les d os seu s sem elh an tes. um a v e z qu e sofreu e superou a sua própria perturbação.
N o O cid en te, o in d ivíd u o qu e ex p erim en ta a perturbação m ental
M as o p aralelism o entre a v isã o xam ân ica da realidade e a abor­
m ergu lh a n o v a zio e, se recu sa an iq u ilar-se, terá qu e descob rir por si
d agem tratada n este livro não fica por aqui. O xam ã, d iz P iers V iteb sk y
m esm o o sistem a d e referên cias qu e d ê sen tid o e in telig ib ilid a d e ao
(1 9 9 5 ) encara “os ‘m a les’ dos pa cien tes com o episódios do seu d e­ que se p assa co n sig o . M as, ainda a ssim , n u n ca d escob rirá um sistem a
senvolvim ento p esso a l g e ra l”. E m ais adiante: “os p ro cesso s com o o de referên cias q u e seja partilhado por to d o s o s seu s sem elh an tes. N a
cham ado ‘teste da rea lid a d e’ não pro vam o real, apenas confrontam m elh or das h ip ó teses, passará a integrar um p eq u en o grup o, um a seita,
um m a teria l novo com um a ideia p reco nceb ida do re a l”. A própria um a a sso cia çã o , um m o v im en to . E , u m a v e z recuperado da sua per­
ideia de o b ten çã o do con trole sobre a ex p eriên cia de ouvir v o zes, turbação, n ão o esp era n enh um n o v o p ap el e sp e c ífic o na so cied a d e
várias v e z e s repetida n este livro, é , co m o se p o d e ver p elo que vem por virtud e da ex p eriên cia adquirida: tu do o q u e preten dem d ele é que
sen d o d ito até aqui, um a ideia profundam ente xam ân ica, isto é, tra­ reg resse o m ais d ep ressa p o ssív e l à p erson alid ad e qu e tinha antes da
d icio n a l. perturbação e qu e “esq u eça ” rapid am ente a sua n o v a iden tidade - se
Por isso m esm o , é um tanto desconcertante a form u lação de V itebsk y isso fo sse p o ssív e l.
sobre as rela çõ es entre o xam ã e o doen te m en tal esq u izo frén ico ou C o m o acab ám os d e ver, nas so cie d a d e s trad icion ais, o p ad ecen te
p sicó tico : p o d e to m ar-se so cia lm en te um e sp e cia lista “prático” e “teó rico ” do

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seu p ad ecim en to. E o que e ste livro v em dem onstrar é que e sse papel Para P atsy, as v o z e s têm um carácter d e realid ad e in so fism á v el.
pod e ser recuperado e u tilizad o tam bém na n o ssa so cied a d e, na m e­ P assa o p rim eiro ano d e terapia co m o P ro fessor M arius R o m m e a
dida em qu e, de acordo co m a ex p eriên cia h o lan d esa e britânica, há tentar c o n v e n c ê -lo d e qu e o p rob lem a d ela n ão era “c lín ic o ” , na m ed id a
o u vid ores de v o z e s que ajudam outros ou v id o res de v o z e s a lidar co m em q u e as v o z e s eram exteriores a si m esm a:
a ex p eriên cia - e na m ed id a em qu e c o m eça a tom ar-se em linha de “Se você acredita num Deus que ninguém pode ver, então por que
con ta o s quadros de referên cia teórica q u e e le s adoptam para exp licar não acredita nas vozes que, pelo menos eu, oiço nitidamente e tão reais
as suas exp eriên cias. são para mim?”
E m M aastricht, o s ou v id o res de v o z e s estão h oje a m inistrar cursos Internada várias v e z e s, c o m o d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia , tarda
sobre escu ta de v o z e s aos p ro fissio n a is e a participar em grupos de em encontrar um a saída para a tirania das v o z e s. O s n eu rolép ticos
ajuda m útua, em co n ferên cia s, em co n g re sso s, co m o trabalhadores na reduziam a an sied ad e, m as afectavam o esta d o d e alerta p síq u ico e
área de in iciativas com un itárias, etc. não tinh am q u alq uer acçã o sob re as v o z e s. P atsy c o m e ç a a falar cad a
v ez m a is em su icíd io .
A teoria q u e vin h a d e se n v o lv en d o sobre a natu reza das suas v o z e s
Patsy Hage e a experiência holandesa b a sea v a -se nas id eias d o p sic ó lo g o am erican o Julian Jayn es, segu n d o
o qual a escu ta d e v o z e s tinha sid o , nou tros tem p o s, um p rocesso
A person alid ad e de P atsy H a g e m a n ifesta -se ao lo n g o de todo este norm al d e tom ar d e c isõ e s - m as qu e tem v in d o a ser, a p o u co e p ou co ,
livro co m o sua figura tutelar e inspiradora. sub stitu íd o por aq u ilo a qu e h oje ch am am os c o n sciên cia . A ssim , não
O u vidora de v o zes d esd e o s 7 ou 8 anos de idade, P atsy fo i natu­ sen d o h oje a escu ta d e v o z e s o fen ó m en o gen era liza d o e un iversal qu e
ralm ente levad a a co n clu ir que e ssa s v o z e s, sobretudo d ep o is d os 15 noutros tem p os terá sid o , en tão, co m o d iz P atsy H age, “as p esso as
anos, quando passaram a com p ortar-se co m o figuras d em asiad o auto­
que continuam a ou vir vozes estão, a bem dizer, a viver no século
ritárias, austeras, restritivas e arbitrárias, ao p on to de a dom inarem e erra d o ”.
E sta fo rm u la çã o teó rica — d ig a m o s a ssim — viria a rev ela r-se
isolarem por co m p leto , eram a m an ifesta çã o de “deuses om niscientes “o ú n ico a sp ecto p o sitiv o ” das en trevistas terap êu ticas, e M arius
e om nipotentes que tudo orientam e determ inam sobre a T erra ". E sta R o m m e p a sso u a encarar a p o ssib ilid a d e d e u m a alteração radical da
era, sim u ltan eam en te, um a e x c e le n te ex p lica çã o para o en ig m a de ter sua abordagem :
de obed ecer a essa s vozes; os deuses são obedecidos p o rq u e os
“Para podermos compreender o outro, temos de fazer a transposição
hum anos não estão pred ispo sto s a discorda r das ordens deles; os d eu ­ do sistema de crenças do ouvidor de vozes para o nosso próprio sistema
ses, sendo om niscientes e om nipotentes, não p o dem ser desa utori­ de crenças. Ao contrário da Psiquiatria tradicional, nós não negamos
za d o s”. liminarmente a experiência só porque a explicação que o ouvidor de
A m aneira co m o o s d eu ses falam na Ilíada de H om ero e a form a vozes nos dá é inverosímil ou falsa aos nossos olhos. Ainda que essa
co m o Patsy v iv ên cia as suas v o z e s têm para ela um paralelism o notável:
explicação fosse completamente falsa no nosso sistema de crenças, a
experiência, essa, está lá e pode fazer todo o sentido.”
“Os deuses falam uns com os outros, ameaçam, troçam, dão ordens,
vaticinam. Gritam, lamuriam-se e escarnecem. Sem motivo aparente A teoria ex p lica tiv a q u e P atsy ad op tou e a v iv a cid a d e e clareza
passam do murmúrio à gritaria. Muitas vezes, exibem particularidades co m q u e a exp u n h a tom a v am -n a um a p oten cia l líder d e co m u n ica çã o,
específicas, como falar muito devagar ou muito ritmicamente." o qu e fe z M arius R o m m e organizar en trevistas a d o is, entre ela e

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outros ou v id o res d e v o z e s - en trevistas às qu ais e le próprio assistiu . F ace a toda esta n o v a realid ad e, M arius R o m m e in icio u o estu d o
V a le a p ena assin alar aqui a im p ressão qu e e sse s en con tros causaram das ex p eriên cia s d os o u v id o res d e v o z e s (v er C ap ítu lo 2 d o presen te
em M arius R om m e: livro), estu d o e s s e qu e p ro sseg u e actu alm en te em n o v o s m o ld es (ver
C apítu lo 11). E fe z ainda duas co isa s fu nd am en tais: apoiar a fu n d ação
"Eu, que estava presente assistindo às entrevistas, sentia-me perplexo de um m o v im en to d e o u v id o res d e v o z e s e organ izar um C on gresso
diante da facilidade e da vivacidade com que todos eles identificavam e
reconheciam as experiências uns dos outros. A princípio achava difícil co m v ista a p rom over um a d iscu ssã o m ais alargada d o fen ó m en o , e,
seguir a conversa deles: para os meus ouvidos, os conteúdos dessas sim u ltan eam en te, m od ificar a atitud e da so cied a d e perante a escu ta de
conversas eram bizarros e muito sui generis e, para cúmulo, discutiam v o z e s e a m aneira co m o o s o u v id o res d e v o z e s são h ab itu alm en te
tudo abertamente como se estivessem a fa la r de um mundo em si e para encarados e tratados p elo s p ro fissio n a is d e saú d e, em esp e cia l os
si mesmo.” E ainda: “Cada nova sessão que se fazia gerava uma iden­ psiquiatras.
tificação mútua ainda maior." A este p rop ósito, refira-se aqui o m od o c o m o p assam a ser en ca ­
Para o s in terven ien tes, esta v a quebrado o isolam en to. N o entanto, rados, n esta p ersp ectiva, o s sistem a s d e cren ças d o s ou v id o res de
ao lo n g o d estes en con tros n enh um d o s p a cien tes se m ostrou capaz de v ozes:
lidar p o sitiv a m en te c o m as suas v o z e s, apesar do à-von tad e co m que “Tal como os profissionais de Saúde Mental, também os ouvidores de
to d o s falavam das su as ex p eriên cia s. Era ch eg ad o o m o m en to de vozes têm um sistema de crenças que lhes permite compreender as suas
im aginar um p r o c esso d e am pliar o m ais p o ssív e l o leq u e de con tactos experiências. Por essa razão, tivemos que estabelecer um contacto muito
co m o u v id o res d e v o z e s que p erm itisse encontrar p esso a s que não só estreito com os múltiplos e variados sistemas de referência que os
não se sen tissem im p oten tes perante a ex p eriên cia de ou vir v o z e s ouvidores de vozes utilizam para as explicar” (Marius Rom m e - ver
c o m o fo sse m até ca p a zes d e se en ten d er co m ela s no d ia-a-d ia. A so lu ­ Capítulo 11).
çã o encontrada fo i o popular program a “Sonja op M aa n d a g ” (S ón ia
à S egu n d a ), da T V h o la n d esa - em que P atsy e R o m m e seriam os R efira-se aqui o trabalho d e fa m iliarização co m e sse s v a riad íssim os
en trev istad o s de um a das se ssõ e s. F alan do da sua própria exp eriên cia sistem as d e cren ças qu e ao s C oord en ad ores da E d ição P ortu gu esa
p e sso a l, P atsy co n fid en cia ria a S on ja, a apresentadora do program a: prop orcion ou e m ereceu o C ap ítu lo 7 d este livro. L o n g e d e con stitu ir
um a tarefa ingrata, fa stid io sa e “ in ú til” , rev ela r-se-ia um estim u lan te
"O mundo das vozes é mais real para mim do que o mundo que existe d esa fio e um a inesp erada d escob erta. N u m certo sen tid o, e co m o
em volta delas, o mundo que todos nós percebemos. Por isso, eu não sei tiv em o s já o ca siã o d e referir, e s s e s sistem a s d e cren ças porfiad am en te
o que é viver sem vozes.”
p rocu rad os p e lo s o u v id o res d e v o z e s - p e lo m e n o s, p e lo s m a is
D urante o program a, P atsy e R o m m e con vid aram o s telesp ecta d o ­ in con form ad os - v êm ocup ar o v a z io d eix a d o na estrutura p síq u ica e
res o u v id o res de v o z e s a co n tactá -lo s telefo n ica m en te no fim . V eri­ m ental da n o ssa so cied a d e p e lo s sistem a s d e cren ças trad icion ais,
ficaram q u e m u itas das p e sso a s q u e resp on deram eram ca p azes de se ca íd o s em d esgraça na seq u ên cia da In q u isição e da R ev o lu çã o U r­
en ten d er co m as v o z e s , sem precisarem de recorrer à a ssistên cia p si­ bana e Industrial. A liá s, o s sistem a s d e cren ças e referên cias pro­
qu iátrica. N a lg u n s c a so s até se sen tiam fe liz e s por as ouvirem . curados p elo s ou v id o res d e v o z e s n ão são característicos n em e x c lu ­
E sta d escob erta surpreendente levan tou um a q u estão fundam ental: siv o s d os o u v id o res d e v o z e s . T o d a s e ssa s teorias e p ersp ectivas
até q u e p on to as estratégias u tilizad as p ela s p e sso a s q u e se en tend em ex istia m já antes d e ser procuradas por e le s e têm ad ep tos e segu id ores
b em c o m as v o z e s q u e o u v em p od eriam ser tam bém u tilizadas pelas entre a p op u lação em geral. P o d e d izer-se q u e fa zem parte da verten te
p e sso a s co m d ificu ld a d e em lidar co m as suas? m eta física, m ística e relig io sa d o H om em .

32 33
P orém , co m o d iz M arius R om m e, b) T ratam ento
“nós não passámos a acreditar que Deus possa falar connosco da mesma Q u e teorias e práticas d e tratam ento são relevan tes e a ceitá v eis
maneira que as pessoas falam umas com as outras. M as ficám os, sem para as p e sso a s q u e o u v em v o zes; até qu e p on to é relev a n te o d ia g ­
dúvida, a saber que captar a fala de Deus pode estar, de muitas manei­
ras, em relação com a história biográfica de quem a escuta. Pode repre­ nóstico p siq u iátrico para qu e as p esso a s que o u v em v o z e s aprendam
sentar, por exemplo, a afirmação de determinados ideais, como na re­ a lidar co m ela s.
ligião, ou representar a figura de educadores que se comportavam como
deuses e em relação aos quais a pessoa se sentia impotente e obrigada c) A titud es sociais
a obedecer durante a infância, etc.”
T anto a atitu d e d os p ro fissio n a is d e P siq uiatria e S aú d e M ental
A história de P atsy H a g e é um bom ex em p lo de co m o a lg u ém que co m o a atitude so cia l em geral in flu en ciam a m aneira co m o as p e sso a s
passa p ela ex p eriên cia de ou vir v o z e s na co n d içã o d e p a cien te, de que o u v em v o z e s lid am co m as suas exp eriên cia s. M o d ifica r a im a­
que é testem u n h o o seu “C ontributo P esso a l” n este livro, a scen d e ao gem so cia l da escu ta d e v o z e s e encorajar a organ ização d e m eca n is­
papel de teorizadora da exp eriên cia v iv id a (ver S e cçã o Ja yn es e a m os de ajuda m útua p arece estim u lar a co n fia n ça d o s o u v id o res de
consciência, C ap ítu lo 9 ). v o zes em si próp rios e a form a d e lidar co m a exp eriên cia .
E é tam bém um e x c e le n te ex em p lo de c o m o as prop ostas e in icia ­
tivas resultantes d e fo rm u la çõ es co m o as da P siquiatria S o cia l da
e sc o la h olan d esa n ão p reten dem d iglad iar-se inu tilm en te co m as for­ Notas sobre a edição portuguesa
m u la çõ es e p rop ostas da P siquiatria C lín ica, de raiz b io ló g ic a ou
p sico d in âm ica , antes v êm , sim p lesm en te, ocup ar um esp a ço d e c o n ­ R esp eitan d o o p rop ósito da versão origin al h o lan d esa e da versão
cep çã o e de in terven ção q u e, por este ou por aq u ele m o tiv o , a P si­ in glesa qu e n o s serviu d e b ase, ao apresentarm os e ste liv ro ao leitor
quiatria C lín ica d eix a em branco ou não tem v o ca çã o para preencher. de lín gu a p o rtu g u esa ev itá m o s d elib erad am en te u tilizar q u aisq u er
term os ou ex p r e ssõ e s que p u d essem , ainda qu e in d irectam en te, ter
A través desta ab ord agem ou de abordagens afin s, e sta b e lec e-se co n o ta çõ es d e tip o técn ico ou qu e fo sse m fa cilm en te tran sform áveis
um a ponte entre a ex p eriên cia p esso a l d os o u vid ores d e v o z e s e as em tal, sob retu d o ten d o em lin h a d e con ta a lig eireza co m q u e ex p res­
c o n c ep çõ es e so lu ç õ e s m a is ou m en os d ogm áticas dos p r o fissio n a is, sõ es corren tes e co lo q u ia is da lín gu a in g lesa são capturadas p e lo falar
estim u la n d o-se o d e se n v o lv im en to da parceria - em que am bas as e escrev er d o s técn ico s d o s n o sso s p aíses.
partes p od em com partilhar os seu s co n h ecim en tos e sp e c ífic o s, a três A lém d o m a is, é p reocu p ação do livro n ão utilizar term os p siq u iá­
níveis:
tricos, m esm o a q u eles q u e porventura estejam tão co n sa g ra d o s p elo
uso que já sã o largam en te u tiliza d o s p elo s próprios u ten tes, c o m o será
a) E xperiência p esso a l
o ca so d e “a n teced en tes p e sso a is”, “p recip itan tes”, “p erson alid ad e
C o m o é que as p e sso a s aprendem a lidar co m a ex p eriên cia de prévia”, “ a lu cin a çõ es a u d itivas”, etc. N o co n tex to da abord agem pro­
escu ta de v o z e s, c o m o pod erão apoiar-se um as às outras e qu e im por­ posta por este liv ro , e s s e s term os não d ign ificariam , n ão valorizariam
tância tem para o s terapeutas aprender co m a exp eriên cia p esso a l dos nem reflectiriam a ex p eriên cia su b jectiva d os o u vid ores d e v o z e s nem
seu s utentes. o seu sig n ifica d o .

34 35
A versã o p ortu gu esa apresenta algu m as particularidades e sp e c ífi­
cas em relação às d em ais e d iç õ e s d este livro. A n tes d o m ais, apresenta
um C apítu lo inteiram ente n o v o (C apítu lo 11 - C om preender as V o­
zes), q u e n o s dá con ta de um n o v o estu do d e M arius R om m e e Sandra
E sch er (1 9 9 6 ) sobre o u vid ores de v o z e s, n om ea d a m en te a elaboração
e m o d o d e a p licação de um a E ntrevista P adronizada. E ste capítu lo
corresp on d e a um artigo q u e aguarda p u b lica çã o na literatura cien tí­
fica.
A p resen ta ainda um conjun to de notas de rodapé, cuja fu n ção é
situar o leitor n o prob lem a tratado, exp licar m elh or determ inado co n ­
ce ito , traçar p aralelism os interessan tes, ch am ar a aten ção para deter­
m inado a sp ecto , etc. C om ex cep çã o de se is n otas d o C apítulo 4, PRÓLOGO DA VERSÃO INGLESA
d ev id am en te assin alad as co m o fa zen d o parte da ed içã o origin al in­
g le sa (E .I.), todas as restantes notas de rodap é são de n o ssa inteira L o rd e E n n a ls
resp on sab ilid ad e. (Presidente da Associação MIND)
A s ep íg ra fes que en cab eçam alguns ca p ítu lo s sã o tam bém da n ossa
resp on sab ilid ad e. A fazer fé na im pren sa popular, ou vir v o z e s é um fen ó m en o que
A b ib lio g ra fia fo i reunida num corp o ú n ico , em lugar d e estar qu ase sem pre levaria as p e sso a s a co m eter a ctos v io len to s e destrui­
d ispersa, e ev en tu alm en te repetida, p e lo s d iv erso s cap ítu lo s, e foi dores. E , a acreditar na P siquiatria ortod oxa, a ú n ica saída para as
en riq u ecid a co m referên cias com p lem en tares por n ós acrescen tadas, p esso a s que o u v em v o z e s é tom ar m ed ica m en to s, o s q u ais, se pod em
b em co m o co m as referên cias b ib liográficas d o origin al h olan d ês que efectiv a m en te elim in ar as v o z e s, p o d em tam bém levar as p e sso a s que
foram om itid as na versão in glesa. os tom am a sen tir-se len tificad as ou irrequietas. M ed ica m en to s e sse s
que p od em tam bém provocar, seg u n d o se d iz, le sõ e s cerebrais perm a­
C rem os, assim , ter agu çad o o apetite d o leitor para um livro tão n en tes, se tom ad os em d o ses elev a d a s e por lo n g o s p eríod os d e tem po.
fascin an te c o m o inovador e que pod e alterar d ecisiv a m en te as ex p ec- D iversam en te, N a C om panhia das V ozes destrói o estereótip o da
tativas d os o u vid ores de v o z e s de lín gua p ortu gu esa e, qu em sabe,
im prensa popular quanto à propalada p erigosid ad e d os qu e ou vem
despertar in teresse entre algu n s d os trabalhadores de Saúde M ental
d os n o sso s p aíses. v o z e s e ao su p osto con trole d estas p e sso a s por in v isív eis forças d e­
m oníacas; dem on stra q u e um a b o a parte d e n ó s tem exp eriên cias
C on virá aqui escla recer o s leitores que tenham tido oportunidade au d itivas estranhas; q u e m u itos d e n ó s n ão precisam d e recorrer à
d e ler o n o sso livro “E squ izofrenia”: U m a D o ença ou A lg uns M odos P siquiatria por isso; e q u e algu n s d e n ó s acab am por d escob rir form as
de Se S er H um ano? e q u e se tenham interrogad o sobre a utilidade de lidar co m essa ex p eriên cia au d itiva sem q u e ela interfira co m a sua
prática d o s co n c eito s n ele ex p resso s, que encontrarão em N a C om pa­ vid a so cia l ou co m as su as activ id a d es q u otid ian as.
nhia das V ozes um d os cam in h os p o ssív e is d e ex p ressã o prática das N a m inha m aneira d e ver, o n ú cleo e ssen c ia l d este livro é co n s­
id eias e d o paradigm a que en tão prop u sem os. tituído por 13 d ep o im en to s ín tim os d e p e sso a s q u e, ou v in d o v o zes,
E por isso , aliás, que esta m o s aqui. acabaram por estab elecer, d e um a form a ou d e outra, um m odus

36 37
vivendi co m as suas próprias ex p eriên cia s, integran do-as nas suas
vid as. E stes d ep o im en to s en co n tra m -se en trem ead os por um a vasta
gam a de form u la çõ es teóricas, algu m as das quais abordam o fen ó m en o
à m argem do m o d elo m éd ico , en qu an to outras representam as linhas
d e referên cia que se p o d em encontrar no interior da própria P si­
quiatria.
O antepen últim o cap ítu lo d o livro é ta lvez aq u ele que m ais útil
poderá vir a ser para quem d e se je aprender a lidar co m as suas v o zes.
A í se d escrev em d iversas técn ica s co n ceb id a s n o sen tid o de se obter
um m aior con trole sobre a ex p eriên cia e, co m o diz o P rofessor R om m e,
assegurar que o d e se n v o lv im en to da p e sso a em lugar de ser inibido
seja estim u lad o. 1
O P rofessor M arius R o m m e e Sandra E sch er (organizadores d este
livro) estão du plam ente de parabéns, não apenas por terem prod uzid o INTRODUÇÃO
um ex celen te ex em p lo de in v estig a ç ã o o rigin al, para o qual con trib u í­
ram m uitos ou vid ores de v o z e s h o la n d eses e britân icos, m as ainda M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r
p elo s seu s in ca n sá v eis e sfo rço s, por essa E uropa fora, no sen tid o de
ultrapassar os tabus so cia is q u e rod eiam o assu nto.
A n tes d e m ais nada, e ste livro d estin a -se àq u eles q u e o u v e m v o z e s.
O n o sso prin cipal o b je ctiv o é p ô -lo s ao corrente da ex p eriên cia d e
outros co m o e le s, d e form a a aju d á-los a com p reen d er o p rob lem a e
a lidar co m e le so zin h o s.
T anto as p e sso a s q u e o u v em v o z e s c o m o toda a g en te q u e se
interessa por este fen ó m en o sab em qu e n ão é fá cil trazer à b a ila e sse
assu nto nas co n v ersa s d o dia-a-d ia; é , na verd ad e, um tem a virtu al­
m en te tabu. Por isso , esta m o s m u ito reco n h ecid o s a to d o s aq u eles qu e
se prontificaram a d escrev er-n o s as suas ex p eriên cia s d e v o z e s, m esm o
correndo co m isso algu m risco p esso a l. F oi con tu d o, p rov a v elm en te,
a ún ica m aneira d e tom ar esta form a d e p ercep ção m ais am p lam en te
com p reen d id a e aceite.
A s p esso a s lid am co m as su as v o z e s das m ais d iversas m aneiras.
A ssim , se se o u v e v o z e s , a form a co m o h o je se lid a co m ela s n ão é
n ecessariam en te a ú n ica ou a m elhor. O s C ap ítu los 6 e 8 rep rodu zem
as histórias d e vários o u v id o res d e v o z e s, tal co m o e le s as contaram .
U m a leitura cu id ad a d e sse s d ep oim en tos m ostra qu e a ex p ressã o “ou vir
v o z e s ” abrange um a va sta gam a d e ex p eriên cia s m u ito d iversas.

38 39
Q u em n ão c o n se g u e lidar co m as v o z e s q u e o u v e acaba, habitual­ Em certa m ed id a, é tam b ém sig n ifica tiv o q u e, e ssa s p e sso a s c o n ­
m en te, por precisar de ajuda psiquiátrica. O tratam ento que lh e é tinuem a id en tifica r-se co m as suas v o z e s, sem q u e, n o en tan to, isso
o ferecid o assen ta m uito no p ressu p osto de que o m elh or para o pa­ represente qualq uer em p ecilh o a um a vid a so c ia l norm al.
cien te é elim in ar-lh e as v o z e s por com p leto . C ontu do, este p on to de A ex ten sã o e a n atu reza d e ssa id en tificação variam m u ito d e p e s­
vista tem v in d o a m udar a p o u co e p ou co. A s p e sso a s co m eça m agora soa para p e sso a . A lg u m a s acabaram por tom ar a d e cisã o d e recusar
a com p reen d er q u e o p rob lem a fundam ental não é tanto o fa cto de toda e qualquer a ssistên cia p siqu iátrica, p e lo fa cto d e esta pressu por
ou vir v o z e s m a s, antes, a incap acid ade de lidar co m ela s. a c o n c ep çã o d o fen ó m en o d e ou vir v o z e s c o m o um m ero sin tom a d e
E m vários p o n to s d este livro se poderá verificar q u e há p e sso a s que um a d o en ça , ign oran d o o p o ssív e l sig n ifica d o das v o z e s no co n tex to
d e se n v o lv em um a relação m uito p o sitiva co m a ex p eriên cia d e ouvir da história b io g rá fica do p acien te. E ste g én ero d e tratam ento n ão dá
v o z e s, lid an d o co m o prob lem a totalm ente à m argem de qualquer qualquer oportu n id ad e d e id en tificação co m as v o z e s, oportunidade
ap oio ou tratam ento psiquiátrico; qu e adoptaram um sistem a de refe­ que con stitu i o p rim eiro p a sso para a criação d e estratégias d e su p e­
rên cias teóricas (co m o a p arap sicologia, a teoria da reincarnação, a ração do prob lem a. O co n c eito d e d o en ça e c lip sa tudo o resto.
m etafísica, o in co n scien te c o le c tiv o , ou um a esp iritu alid ad e de n íveis Para a P siq u iatria clá ssica , um a a lu cin ação é , fu n d am en talm en te,
m ais elev a d o s d e co n sciên cia ) que o s lig a aos outros, em v e z de os um sin tom a d e um a d o en ça m ental grave ch am ad a esq u izofren ia. Era
m anter iso la d o s, e lh es o ferece um a p ersp ectiva e um a lin gu agem que esta a p ersp ectiv a d e q u ase tod os o s patriarcas da P siq uiatria, de
lh es perm ite com partilhar as suas exp eriên cias. D e sse m od o, sentem E. K raepelin a W . G riesin g er e a K . S ch n eid er. C on tu d o, esta inter­
qu e são a ceites, qu e o s seu s d ireitos são recon h ecid o s e d ese n v o lv em pretação tem v in d o a ser alterada a p o u co e p o u co por um a série de
um sen tid o d e iden tidade q u e o s p od e ajudar a fazer um u so constru­ em in en tes psiqu iatras. Cari Jung é, ta lvez, o m ais bem co n h ecid o .
tivo das suas ex p eriên cia s, em seu próprio b e n efício e em p roveito dos A lém d isso , e s s e m o d elo tradicional é co n testá v el tam bém à lu z da
outros. A lg u m a s d essa s p esso a s d escrev em as suas ex p eriên cia s no d escrição d e a lu cin a çõ es exp erim en tad as em circu n stân cias extrem as:
C apítu lo 6. por e x e m p lo , seg u n d o a A m n istia Intern acion al, 80% das p esso a s
E ste livro co n ta tam bém a história de p esso a s q u e precisaram de sujeitas a tortura exp erim en tam a lu cin a çõ es durante o ord álio, e o
cu id ad os p siq u iátricos por terem sid o incap azes de lidar co m o facto fen ó m en o tem sid o tam bém ob servad o em v eleja d o res d e lo n g o curso
d e ouvir v o z e s ou co m o s prob lem as do d ia-a-d ia q u e habitualm ente (B en n et, 1 9 7 2 ). O ra, em ca so s co m o estes, n ão há, m uito p e lo c o n ­
lhe estão a sso cia d o s. O C apítulo 8 dá-n os o s seu s d ep o im en to s p es­ trário, qu alq uer in d ício d e d o en ça m ental.
soais. S e le c c io n á m o s as p esso a s q u e tiv essem tentado d escob rir a sua O C ap ítu lo 2 trata das prim eiras in v estig a ç õ e s qu e viriam a in sp i­
própria m aneira, ainda q u e tortuosa, de lidar co m as suas v o z e s e rar e ste liv ro e ex p lica co m o a in cap acid ad e d e m uitas p esso a s se
p ercep çõ es. E ram p esso a s que de um ponto de v ista psiqu iátrico se en ten d erem co m as v o z e s qu e o u v em n os le v o u a procurar algu ém que
pod eriam con sid erar gravem en te doen tes; num a ou noutra o ca siã o , tiv e sse d escob erto estratégias m ais ou m en o s e fic a z e s d e lidar com
todas ela s tinham estad o internadas num hospital psiqu iátrico. O leitor elas.
irá agora c o n h ecê-la s. A o contrário d o que estaria à espera, irá pare­ N o C ap ítu lo 3, Paul B aker d escrev e-n o s o con ju n to d e d e se n v o l­
cer-lh e q u e e ssa s p e sso a s irradiam en ergia, cord ialid ad e e força inte­ v im en to s q u e ocorreram na G rã-B retanha in sp irad os por esta in v es­
rior. S e não tiv e sse m encontrado um com pan heiro, a m ig o s ou fa m i­ tigação.
liares que lh es tiv esse m a ceite e com p reen d id o a presen ça das v o zes N o C ap ítu lo 4 , a D r.a d e Bruijn d á-n os um a b rev e resen ha histórica
e das p ercep çõ es a ssociad as, ta lvez nenhum a d essa s p e sso a s tiv esse da co n tín u a b u sca hum ana d e form as d e ex p lica r e d e com preend er
ido tão lon g e. as ex p eriên cia s e as p ercep çõ es m en os h ab itu ais, realçand o as d ificu l-

40 41
dudcs sentid as p e lo in d ivíd u o e por a q u eles que o rodeiam em aceitar da exp eriên cia do n o sso p rim eiro estu d o (C ap ítu lo 2 ). E ssa en trevista
e s s e s fen ó m en o s. consagra a b u sca d e um a n o v a lin g u a g em q u e p o ssa reflectir o n o sso
h m situ a çõ es d este tipo, q u e p o d em ser extrem am en te p en o sa s, o interesse p ela exp eriên cia d a escu ta d e v o z e s, d esign ad am en te p e lo
ap o io m útuo a ssu m e um a en orm e im portância. O p ersisten te tabu con teú d o d aq u ilo qu e as v o z e s d izem a q u em as o u v e e p elas situ a çõ es
so cia l que rodeia a qu estão das v o z e s tem sid o a m o la propulsora da de vid a e e m o ç õ e s qu e ev en tu a lm en te tenham estad o na origem do
criação de o rg a n iza çõ es q u e ajudem o s ou v id o res d e v o z e s a reunir- despertar da exp eriên cia. N o v a lin g u a g em essa qu e seja tam bém re­
-se, a co n h ecer-se e a cooperar uns co m o s outros. A prim eira prio­ co n h ecív el p elo ou vid or d e v o z e s co m o u m c ó d ig o d e co m u n ica çã o
ridade da R ed e B ritânica d e O u vid ores d e V o z e s, bem c o m o dos que, ao in v és da lin g u a g em adop tada p ela P siq uiatria clá ssica , tenha
terapeutas e d os trabalhadoresa so cia is, é a prom oção e o encorajam ento directam ente qu e ver co m a ex p eriên cia viv id a .
da co m u n ica çã o entre ou v id o res de v o z e s. C o m o o dem onstra Sandra O in teresse d este n o sso seg u n d o estu d o m a n ifesta -se ainda, e a ci­
E sch er no C apítu lo 5, esta form a d e co m u n ica çã o recíp roca m ostrou- m a d e tudo, nas d iferen ças q u e p erm ite esta b elecer entre os p acien tes
-se de grande utilid ad e para m uita gen te. e os não p acien tes e nas p istas q u e p arece oferecer para a com p reen sã o
O s C apítu los 6 e 8 são, sem d ú vid a, as partes m ais im portantes dos m eca n ism o s qu e lev am o s ou v id o res d e v o z e s a p erm an ecer n ão
d este livro. R efer em -se às ex p eriên cia s p e sso a is d e g en te que o u v e ou pacien tes ou , p elo contrário, a to m a r-se p acien tes.
o u v iu v o z e s. O C apítu lo 6 é d ed ica d o a algu n s h ola n d eses que nunca F in alm en te, o C ap ítu lo 11 p od erá even tu a lm en te perm itir qu e os
se sub m eteram a cu id a d o s p siq u iátrico s p ro fissio n a is, en qu an to o
leitores m ais reticen tes, n om ea d a m en te o s p rofissio n a is d e P siq uiatria
C apítu lo 8 se d ed ica às ex p eriên cia s d e um a h olan d esa e d e cin co
e Saú de M en tal, com p reen d am m elh or o s o b je ctiv o s d este livro e a
b ritân icos, utentes ou ex -u ten tes d o sistem a psiqu iátrico.
in clu são de d eterm in ad os ca p ítu lo s e se c ç õ e s qu e estão m ais rela cio ­
O C apítu lo 7 d etém -se n algu m as p ersp ectiv a s não psiqu iátricas do
tem a, situando portanto a audição de v o z e s fora do m od elo das doen ças. nados co m a ex p eriên cia v iv id a p e lo s o u vid ores d e v o z e s d o q u e co m
N o C apítu lo 9 , p assam os em revista várias abordagens da esfera os estereótip o s con sagrad os p ela P siq uiatria clá ssica .
da p rofissão psiquiátrica, co m o form a de pôr o leitor ao corrente da O C apítu lo 12 co n tém um apan hado p rovisório d os o b jectiv o s do
variedade d e teorias ex p lica tiv a s q u e a P siquiatria p o ssu i sobre o livro e das suas im p lica çõ es.
tem a.
N o C apítu lo 10, p a ssa -se um a v ista d e o lh o s por estratégias que D ada a natureza do fen ó m en o , a an á lise cien tífica terá sem p re um a
poderão auxiliar o ou vid or de v o z e s a co n seg u ir e a m anter um certo utilidade lim itada para a co m p reen sã o da cap tação d e v o z e s. Parafra­
grau de con trolo sobre a situ ação. A lg u m a s destas estratégias p od em seand o Jung, quando falava d as rela çõ es entre C iên cia e A rte, a C iên ­
ser p ostas em prática p elo próprio o u v id o r d e v o z e s, co m o seja escre­ cia opera co m co n c eito s d e regu larid ad e e d e m éd ia qu e são d em a ­
ver um diário ou participar em gru p os de ajuda m útua. O utras estra­ siad o gerais para qu e p o ssa m fazer ju stiça à varied ad e su b jectiva de
tég ia s, co m o as técn icas de con trolo da an sied ad e ou a própria m ed i­ um a vid a in d ivid u al. T al c o m o a co n tece na A rte e na R e lig iã o , a
ca çã o , p od em n ecessitar do co n cu rso de p rofissio n a is cred en ciad os. essên c ia d e ou vir v o z e s é a su a su b jectivid ad e. E m situ a çõ es tais em
N o C apítulo 11 *, apresentam os algu n s resu ltad os d o n o sso segu n d o que ou p o d em o s exprim ir o s n o sso s sen tim en tos ou en tão n os p o d e­
estu d o sobre a E scu ta de V o z e s (R o m m e e E sch er, 1 996), n o qual m os perder, o e x erc ício da e sc o lh a e da von tad e d á-n os a p o ssib ilid a d e
in trod uzim os um m o d elo de en trevista estruturada, co n ceb id o a partir d e viv er a n o ssa in d ivid u alid ad e, q u e n os d istin g u e uns d o s ou tros,
e procurar d e se n v o lv ê -la co m o um a força criativa cap az d e integrar­
* Exclusivo da edição portuguesa. m o s nas n o ssas próprias v id a s.

42
E sp eram os qu e ao ler este livro cada ou vid or de v o z e s en con tre
n ele um a m ig o , ca p a z de o ajudar na d escob erta d e um a relação
harm on iosa co m as suas v o z e s e na u tilização p o sitiva das su as e x ­
p eriên cias, co m o elem en to s de estím u lo ao seu próprio d e se n v o lv i­
m en to p esso a l. E q u e as suas fam ília s, o s seu s a m ig o s, o s terapeutas
e o s trabalhadores so c ia is p a ssem a com preend er m elhor e ste im p or­
tante asp ecto da sua vid a, que sejam m ais ca p azes de aceitar a sua
sin gularidade e d e lh e oferecer o ap oio que tenha esc o lh id o solicitar.

2
A NOVA ABORDAGEM - UMA EXPERIÊNCIA HOLANDESA
M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r

Os primórdios
A lg u n s an o s atrás, um a p acien te m in h a, d e 3 0 an os d e idade,
co m eço u a o u v ir v o z e s. E stas v o z e s d avam -lh e ord en s, p roib iam -n a
de fazer c o isa s e d om in avam -n a por co m p leto . A sen h ora fo i inter­
nada várias v e z e s, co m o d iagn óstico de esq u izofren ia. O s n eu rolép ticos
que lhe foram p rescritos n ão tiveram qualquer acçã o sob re as v o z e s,
em bora tenham con trib u íd o para esb ater a an sied ad e. In felizm en te, os
n eu rolép ticos d im in u íam o estad o d e alerta p síq u ico , p e lo q u e ela não
tom ava a m ed ica çã o con tin u ad am en te ou , quando era internada, recla ­
m ava alta ao fim d e p ou co s d ias. A s v o z e s foram -n a iso la n d o p rogres­
sivam en te, na m ed id a em q u e a proib iam , por e x e m p lo , d e fazer as
co isa s que e la m ais g o stav a d e fazer.
N o ú ltim o an o, p a sso u a falar cad a v e z m ais em su icíd io e p areceu-
-m e que esta v a a en vered ar por cam in h os sem retorno. N a altura, o
ú n ico asp ecto p o sitiv o das n o ssa s en trevistas era a teoria q u e ela vin h a
d e se n v o lv en d o sob re a natureza das suas v o z e s. E ssa teoria b aseava-
-se no livro The O rigin o f C onsciousness in the B reakd ow n o f the

44 45
Bicameral M ind, do p sic ó lo g o am ericano Julian Jaynes (1 9 7 6 ) (ver suas v o zes - d e m o d o a ajudar outras p e sso a s a ganhar um m aior
Ja yn es e a consciência, últim a S e cçã o do C ap ítu lo 9). A leitura d esse con trole sobre as suas exp eriên cias.
livro d eu -lh e algu m a lív io , na m ed id a em q u e o autor era d e op in ião A partir daq ui, as co isa s com eça ra m a avan çar rapidam ente. F a­
q u e, até cerca d o ano 13 00 a.C ., ou vir v o z e s era con sid erad o um lando num program a pop ular da T e le v isã o H olan d esa, a m inh a pa­
p ro cesso norm al de tom ar d e c isõ e s. S egu n d o o m esm o Jayn es, essa cien te e eu co n v id á m o s as p e sso a s n e ssa s co n d iç õ e s a entrar em
ex p eriên cia d e o u vir v o z e s tem vin d o a desap arecer a p o u co e p ou co , contacto co n n o sco . F in d o o program a, resp on d eram ao n o sso ap elo
sen d o sub stitu ída por aqu ilo a que hoje ch am a m o s co n sciên cia . 7 0 0 p esso a s. 4 5 0 ou viam v o zes; d estas, 3 0 0 d eclararam -se in cap azes
P en sei para c o m ig o que ta lv ez ela p u d esse vir a revelar-se um a boa cie lidar co m as suas v o z e s e 150 d isseram qu e tinh am d escob erto
com u n icad ora e qu e, se calhar, outras p e sso a s qu e o u v em v o z e s p o ­ m aneiras de as controlar. A resp osta d este ú ltim o grupo fo i esp e cia l­
deriam achar a sua teoria a ceitável e útil. Para m im , isso poderia ter, m ente determ inante para a d e cisã o d e organizar co n tactos entre p e s­
p elo m en o s, um e fe ito p o sitiv o sobre o estad o de isolam en to d essas soas que o u v isse m v o z e s e d e se ja ssem trocar id eias sob re as suas
p esso a s, as suas ten d ên cias suicidiárias e o seu sen tim en to de estarem exp eriên cias. D ad a a d ificu ld a d e prática d e reunir um tão grande
à m ercê das v o z e s. núm ero de p esso a s, co m eçá m o s por lh es en viar um qu estionário. M ais
E u e ela co m eçá m o s a im aginar form as de com partilhar as suas tarde, organ izám os um C o n g resso para reunir todas as p e sso a s que
ex p eriên cia s e as suas m aneiras de ver co m outras p esso a s nas m es­ responderam ao program a te le v isiv o , co m a fin alid ad e d e recolher
m as c o n d içõ es. E assim , lo g o que a oportunidade surgiu, organ izám os
m ais inform ação.
en trevistas a d o is, entre ela e outros o u v id o res d e v o zes. E u, que
esta v a presente assistin d o às en trevistas, sen tia -m e p erp lexo diante da
fa cilid ad e e a v iv a cid a d e co m que tod os id en tificav a m e recon h eciam O Questionário
as ex p eriên cia s uns d os outros. A p rin cíp io, ach ava d ifícil segu ir a
co n v ersa deles: para o s m eu s o u v id o s, os co n teú d o s d essa s co n versas E stávam os in teressad os num certo n ú m ero d e a sp ecto s, co m o a
eram bizarros e m uito sui generis e, para cú m u lo , discu tiam tudo idade de in ício , o nú m ero e a natu reza d as v o z e s, o s in cid en tes e as
abertam ente co m o se e stiv e sse m a falar de um m un do em si e para exp eriên cias qu e an teced eram a prim eira au d ição, as estratégias e o
si m esm o . grau de en ten d im en to c o n seg u id o c o m as v o z e s, a h istória clín ica
O rgan izám os n o v o s en con tros em d iversas oportunidades e cada individual, etc. N o en tan to, o q u e n ó s co n sid erá va m o s d e in teresse
sessã o q u e se fa zia gerava um a id en tifica çã o m útua ainda m aior. m ais im ediato eram as d iferen ças q u e porventura p u d essem existir
C on tu d o, restava sem pre um a lacuna em term os de eficácia: é que entre aq u eles q u e co n seg u ia m en ten d er-se co m as suas v o z e s e aqu e­
nen h um d e sses p acien tes se m ostrava cap az d e lidar p ositiva m en te les q u e não co n seg u ia m .
co m as suas v o z e s. P u sem o -n o s então a im aginar um p ro cesso de
contactar co m o u vid ores d e v o z e s qu e não só não se sen tissem im p o­ Comparação entre os que conseguiam e os que não conseguiam
ten tes perante as v o z e s co m o até fo ssem ca p a zes d e lidar bem co m entender-se com as vozes
ela s. P areceu -n os que a ún ica m aneira de esta b elecer um a co m u n ica ­
çã o clara sobre a ex p eriên cia de ouvir v o z e s seria através de um A freq u ên cia d os d iv erso s tip os d e resp osta à escu ta d e v o z e s fica
program a d e telev isã o . A lém d isso , qu eríam os atingir um núm ero ilustrada nos quadros qu e se seg u em e qu e se referem às resp ostas ao
su ficien te de p esso a s que n os perm itisse encontrar algu ém que tiv esse qu estionário. O rgan izám os o s dad os em fu n çã o das d iferen ças ob ser­
d e se n v o lv id o um a boa estratégia de lidar de form a p o sitiva co m as v a d a s en tre o s q u e c o n se g u ia m e n te n d e r -se c o m as su as v o z e s

46 47
(G rupo A ) e o s que não c o n seg u ia m en ten d er-se co m elas (G rupo B ). elas as sentiam co m o p o sitiva s e am istosas. P or outro lad o , a q u eles
O Q uadro 1 m ostra algu m as das variá v eis que parecem diferenciar o s que se en tend iam b em co m as v o z e s q u eix a v a m -se m en o s d e receb er
d o is grupos. ordens delas.
H o u v e bastante g en te (34% ) q u e afirm ou ser cap az de en ten d er-se E stávam os igu alm en te in teressad os em averiguar as d iferen ças entre
ra zoavelm en te bem co m as v o z e s, m as a m aioria (66% ) d isse que não o G rupo A e o G rup o B quanto aos tip os d e estratégia u tilizad a para
era cap az. O s q u e lid avam b em co m as v o z e s sen tia m -se m ais fortes lidar co m as v o z e s (Q uadro 2).
qu e ela s, sen d o o contrário verd ad eiro para o seg u n d o grupo. O s q u e
n ão co n seg u ia m en ten d er-se c o m as v o z e s sen tiam -n as em geral n e­
g ativas e agressiv a s, en qu an to o s q u e co n seg u ia m en ten d er-se co m Q UADRO 2
Estratégias comparadas entre os que se entendem
QUADRO 1 e os que não se entendem com as vozes
Diferença entre os que se entendem e os que não se entendem Grupo A Grupo B
com as vozes Sim 42 (24% ) 10(26% ) 32 (43% )
Tentar distraí-las N ão 72 (42% ) 29 (74% ) 43 (57% )
Total N = 173 = 100% Resposta om issa 59 (34% )
p < 0,05
Grupo A Grupo B Comentário: O Grupo A tenta m enos distrair as vozes.
Entendem -se N ão se entendem
58 (34% ) 115 (66%) Sim 54(31% ) 31 (56% ) 23 (25% )
O Eu 39 (72% ) 40 (38% ) Ignorá-las N ão 57 (33%) 21 (37% ) 36 (39% )
Qual o mais forte? A V oz 5 (10% ) 44 (42% ) A s vezes 37 (21% ) 4 (7%) 33 (36% )
Outra resposta 9(16% ) 20(19% ) R esposta om issa 25 (24% )
p < 0,001 p < 0,001
Comentário: N o Grupo B o m ais frequente é as vozes serem mais fortes. Comentário: O Grupo A ignora m ais as vozes.

Positiva 16(30% ) 1 0 ( 10%) Sim 30(17% ) 19(46% ) 11 (14% )


Natureza das vozes Contraditória 14 (26% )17(16% ) Escuta selectiva N ão 87 (50% ) 22 (53% ) 65 (85% )
Negativa 23 (43% )75 (73% ) R esposta om issa 56 (33% )
p < 0,001 p < 0,001
Comentário: N o Grupo B as vozes são mais frequentemente negativas. Comentário: O Grupo A utiliza m ais a escuta selectiva.

Sim 1 0 (20%) 26 (24% ) Sim 45 (26% ) 19(48% ) 26 (30% )


As vozes dão ordens? Não 38 (74% ) 41 (38% ) Fixar-lhes limites N ão 79 (46%) 20 (51% ) 59 (70% )
A s vezes 3 (6 %) 41 (38% ) R esposta om issa 49 (28% )
p < 0,001 p < 0,001
Comentário: 0 Grupo A recebe m enos ordens das vozes. Comentário: O Grupo A consegue m ais fixar lim ites às vozes.

48 49
A escuta selectiva fo i con sid erad a para aqu elas p e sso a s q u e, por C o m o fico u d em on strad o n os quadros an teriores, ex istem c o n sid e ­
ex em p lo , d ã o m a is o u v id o s às v o z e s p o sitiv a s do q u e às v o z e s n ega ­ ráveis d iferen ças entre o s d ois grup os. R esu m im o -la s no Q uadro 4.
tivas. A fix a ç ã o d e lim ites fo i considerada para as p e sso a s q u e eram
cap azes de d izer “não vou d a r ouvidos a um a voz dem asiado estri­ QUADRO 4
dente ou crítica ” , etc. O G rupo A (o d o s que c o n seg u ia m entender-
-se co m as v o z e s ) serv ia-se m ais d e m eca n ism o s d e escuta selectiva Resumo das diferenças entre os dois grupos
e de fix a ç ã o de lim ites. O G rupo A tam bém se m ostrou m ais capaz
Grupo A Grupo B
de ig norar as vozes e raram ente u tilizava técn icas d e distracção,
en quanto o in v erso se v erifico u no grupo d os q u e n ão se en tend iam Pessoas que se entendem Pessoas que não se entendem
co m as v o z e s (G rupo B ). com as vozes com as vozes
U m outro p on to de in teresse esta tístico era a d iferen ça q u e p u d esse • Sentem-se mais fortes que as vozes • Sentem-se mais fracos que as vozes
existir entre as p e sso a s q u e tinham sid o p acien tes p siq u iátricos e as • Experimentam mais vozes positivas • Experimentam mais vozes negativas
que nu nca o tinham sid o . A s d iferen ças m ais im portantes fica m e x ­ • Recebem menos ordens das vozes • Recebem mais ordens das vozes
postas n o Q uadro 3. • Estabelecem mais limites às vozes • Não se atrevem a estabelecer-lhes limites
• Escutam as vozes mais selectivamente • Utilizam mais técnicas de distracção
QUADRO 3 • Sentem-se mais apoiados pelos outros • Sentem-se menos apoiados pelos outros
• Comunicam mais sobre as suas vozes • Comunicam menos sobre as suas vozes
Diferenças relevantes entre não pacientes e pacientes
Não pacientes Pacientes E stas co m p a ra çõ es levaram -n os a um a im portante con clu são: as
N = 58 N = 79 p essoas que co n seg u em en ten d er-se co m as su as v o z e s g o za m da
Solteiro 11 (19% ) 30 (38% ) vantagem d e c isiv a d e um a resistên cia m aior, qu er perante as v o z e s
Casado 35 (60% ) 31 (39% ) quer perante o m eio - q u e v iv en cia m , aliás, m a is co m o um a fon te de
Estado civil Divorciado 11 (19% ) 15 (19% ) apoio do que co m o um a fo n te d e am eaça. A ssim , p od erem os encarar
Viúvo 1 (2%) 3 (4%) as v o z e s, não apen as co m o um a ex p eriên cia p sic o ló g ic a ind ividu al
isolada, m as co m o um fen ó m en o in teractivo q u e reflecte a relação do
Comentário: Os não pacientes são predominantemente casados. ind ivídu o co m o seu m eio e, claro, v ic e-v ersa . Por outras palavras, as
N = 70 N = 96 v o zes, a lém d e um fen ó m en o p sic o ló g ic o , sã o tam b ém um fen ó m en o
Sentimento de apoio Não sentem apoio 1 (2%) 47 (49% ) social.
Sentem apoio 69 (98% ) 49 (51% )
D e entre as qu e n os d evo lv era m o Q u estion ário p reen ch id o, selec-
Comentário: Os não pacientes sentem -se m ais apoiados. cio n á m o s um certo n ú m ero d e p e sso a s q u e eram cap azes d e se en ten ­
N = 71 N = 101 der co m as suas v o z e s e co n v id á m o -la s para um a en trevista ond e
Os outros sabem Sim 2 (2%) 15 (14% ) d iscu tiríam os as suas form as d e encarar o prob lem a. S e lec cio n á m o s
das vozes? Não 69 (98% ) 86 (86% ) então as 2 0 p esso a s qu e ach ám os m ais ca p a zes d e ex p or co m clareza
as suas ex p eriên cia s. E a 31 d e O utubro d e 19 87 essa s p e sso a s foram
Comentário: Os não pacientes com unicam mais acerca das suas vozes. oradoras num co n g re sso on d e com p areceram 3 6 0 o u vid ores de v o zes.

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O C ongresso m aneira d e se en ten d erem c o m as v o z e s, p a rece-n os m ais útil d ivid ir
as suas ex p eriên cia s em três fases:
O C o n g resso tev e lugar nu m a sala d e um a A sso cia çã o C om ercial, - F ase de surp resa - O in íc io h ab itu alm en te é súb ito e a e x p e ­
sem qualquer lig a çã o físic a ou outra co m in stitu içõ es psiquiátricas ou riência é assustadora;
m éd icas. - F a s e de organização - D á -se um p r o c esso d e se le c ç ã o e de
E m bora o n o sso D ep artam ento de P siquiatria tiv esse p esso a s en ­ com u n ica çã o co m as v o zes;
v o lv id a s activam ente na organização e no ap oio log ístico do C ongresso, - F ase de estabilização - P erío d o durante o qual se d e se n v o lv em
o s oradores eram to d o s, sem e x c e p ç ã o , p e sso a s q u e ou viam v o zes e p rocessos m a is co n sisten tes e co n tín u o s d e lidar co m as v o z e s.
q u e tinham resp on d id o ao já referid o program a de telev isã o . A seguir
à sessã o plenária da m anhã, h o u v e um a série d e se ssõ e s de trabalho M uitos d o s p articip an tes n o C o n g resso d escreveram fa ses q u e
d e 1 hora, co m o ap oio de elem en to s do D epartam ento de Psiquiatria,
praticam ente co in c id e m c o m as q u e n ó s referim os. U m d os orad ores,
q u e se abstiveram de con d u zir as d isc u ssõ e s e se lim itaram a dar a
a ssistên cia n ecessária. por ex em p lo , d istin g u ia as seg u in tes fa ses n o p rocesso d e ap ren d iza­
gem de lidar c o m as v o zes:
O P rofessor Strauss, de N e w H a v en , qu e assistiu ao C on gresso
co m o co n v id a d o d os autores, referiu -se à in iciativa nos segu in tes “7. M edo, an sied ade e fu g a ; 2. P rocura do significado das vozes
term os: e aceitação delas com o entid ades independentes de m im ; 3. A ceitação
de m im m esm o, p ro cura ndo d esco b rir de qu e é que ando a fu g ir,
“A atmosfera geral do Congresso era a de um encontro de pessoas deixar de confrontar-m e com as vozes e d eixar de fu g ir .”
reunidas em torno de interesses e experiências comuns. Embora tenham N as p ágin as qu e se seg u em ilu strarem os essa s três fa ses, tal c o m o
sido discutidos aspectos médicos dessas experiências, não havia qual­ elas se en contram entre as p e sso a s q u e aprenderam a lidar co m as suas
quer semelhança com um Congresso de M édicos ou com uma Reunião vozes.
ou Encontro de Doentes. Os participantes compartilharam livremente as
suas experiências, as diferentes interpretações que tinham a respeito
delas, incluindo pontos de vista religiosos, e uma vasta gama de outras Fase de surpresa
reacções humanas, bem como as estratégias de cada um para conseguir
lidar com a experiência. Algumas pessoas sentiam-se visivelmente per­ A m aior parte d os q u e o u v em v o z e s d escrev e o in ício da ex p eriên ­
turbadas pelas suas vozes e encaravam-nas como parte de uma doença cia co m o um fa cto bastante sú b ito, surp reen dente e gerador d e a n sie­
mental, mas uma grande parte dos presentes dispunha de form as muito dade, e é ca p az d e recordar o m o m en to ex a cto co m m uita nitidez:
diversificadas de interpretar essas experiências, parecendo pessoas per­
feitam ente capazes e idóneas." “Num domingo de manhã, às 10 horas, fo i como se tivesse havido
uma enorme e inesperada explosão na minha cabeça. Eu estava só efo i-
-me enviada uma mensagem - mensagem que não era coisa que se
As três fases da experiência de ouvir vozes dissesse a ninguém. Fiquei em pânico e não pude deixar de pensar nas
coisas terríveis que estavam para acontecer. A minha primeira reacção
A con sid erável gam a d e ex p eriên cia s d escritas p elo s participantes foi: o que é que está a acontecer no mundo? E a segunda foi: provavel­
e as m últiplas form as que encontravam d e lidar m elhor ou pior com mente estou a imaginar coisas. Então pensei: não, não estás a imaginar
ela s pod em ser vista s sob d iversas p ersp ectivas. T en d o em conta a coisas, é preciso levar isto a sério."

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A idade d e aparecim ento das prim eiras experiências de v o z e s variava presença ameaçadora que pairava algures por ali, de maneira que tinha
largam ente, assim co m o a intensidade da fa s e de surpresa - que a nítida sensação de já não estar sozinho no quarto. Ouvi então nos meus
p arece ser b em m a is grave quando aco n tece durante os anos v u ln e­ ouvidos um ruído monótono que não vinha de mim e que não podia
ráveis da a d o lescên cia . A perturbação causad a p elas v o z e s p arece, no explicar. Era algo parecido com o ruído que se obtém quando se põem
entanto, m en os acentuada quando ela s surgem p ela prim eira v e z durante os dedos nos ouvidos, embora mais surdo e mais monótono. Era também
a in fân cia ou na id ad e adulta. uma emoção, embora fosse mais profundo que isso, e eu tinha a impres­
M u itos d os q u e resp on deram ao n o sso Q u estionário afirm aram ter
são de que algo andava à minha procura."
o u v id o as prim eiras v o z e s na infân cia. E m 6% dos ca so s a idade de
in ício fo i antes d o s 6 anos; em 10% d os ca so s as v o zes surgiram entre
Acontecimentos anteriores
o s 10 e os 2 0 anos; e 74% d os ca so s ocorreram d ep ois d os 2 0 anos.
À pergun ta se o in ício das v o z e s teria sid o d e v id o a alg u m a co n ­
“Desde que eu me lembro que ouvia uma e depois mais do que uma tecim en to anterior, 70% d os in q uiridos resp on deram q u e as su as v o z e s
voz dentro de mim. A i minhas primeiras recordações a esse respeito tinham c o m e ç a d o a m a n ifestar-se d ev id o a um a co n tecim en to e m o c io ­
remontam ao jardim de infância. Talvez dê vontade de rir, mas eu tinha nal ou trau m ático, c o m o um acid en te (4% ), d iv ó rcio ou lu to (14% ),
dois egos: um ego infantil normal, em relação com a minha idade; e um sessão d e p sico tera p ia (12% ), ex p eriên cia esp irita (4% ). O u tros (36% )
ego de adulto. Conforme o caso, a voz mudava: falava à maneira infantil referiram u m a d o en ça , p rob lem as a m orosos, m u d an ça d e ca sa , gravi­
quando era o ego infantil e à maneira dos adultos quando era o ego de dez.
adulto. Durante a escola primária, o ego de adulto fo i desaparecendo
gradualmente. Quando eu era criança, não achava estranho ter dois O impacto das vozes
egos. Para uma criança não há nada que seja estranho."
A s p e sso a s q u e tinh am co m eça d o a ou vir v o z e s na seq u ên cia de
U m outro orador, qu e tinha co m eça d o a ouvir v o zes na a d o lescên ­ um traum a referiram d o is tip os d e im pacto. Para o grupo m ais afor­
cia - o períod o d e d e se n v o lv im en to da ind epen dência p esso a l - , d isse ­ tunado, e s s e im p a cto trad u zia-se na p ercep ção das v o z e s co m o um
m os: a co n tecim en to p ro v id en cia l, rep resen tando o in ício d e um p rocesso
“Em 1977, depois de ter deixado a escola secundária, decidi mudar- integrativo d e su p eração d o traum a. A s v o z e s fa zia m lem brar um
-me para um quarto alugado. Confesso que a vida de estudante era sen tim en to d e id en tific a ç ã o ou assin alavam o c o m e ç o d e um p eríod o
fascinante, mas a verdade é que eu não dormia o suficiente e não comia de paz d e p o is d e tem p o s d e in felicid a d e. A m ed id a q u e o tem p o
com regularidade. Alguns meses depois, comecei a ficar obcecado com corria, e ssa s p e sso a s sen tiam q u e o p rop ósito das v o z e s era, p or e x e m ­
a ideia de pintar a parede branca do meu quarto; essa grande parede plo, fo rta lecer-lh es o esp írito ou fa zer-lh es aum entar a au to-estim a. A s
era um desafio para mim. Comecei por pintar uma floresta escura, com v o zes eram v iv id a s p o sitiva m en te por essa s p e sso a s, c o m o asp ectos
um réptil em primeiro plano. Pintar é uma coisa que se transmite da co m p r een sív eis d a su a realid ad e interior. Para outras p e sso a s m en os
cabeça à mão, e eu sempre fu i capaz de ouvir as cores; elas são trans­ afortunadas, as v o z e s eram v iv id a s, d esd e in ício , c o m o a g ressiv a s e
mitidas através de vibrações. Eu oiço o preto, o vermelho e o castanho n egativas. U m a sen h ora referiu:
escuro. Como eu não tinha rádio nem nada, quando estava a pintar a
parede do quarto havia um silêncio de morte. Naquele silêncio comecei, “A s vozes positivas acompanhavam-se subitamente de verdadeiras
porém, a sentir crescer qualquer coisa de aterrador, uma espécie de interferências, por vezes muito desagradáveis, que vinham de todo o

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lado: do centro da minha cabeça, de trás de mim, da minha frente. Era sultado. D as en trevistas q u e rea lizám o s co n c lu i-se q u e, d ep o is de
como se uma autêntica central telefónica estivesse a operar no interior sen tim en tos in iciais d e p ân ico e im p o tên cia, vin h a m uitas v e z e s
do meu peito.” um períod o d e grande cólera contra as v o z e s. P orém , co m o estra­
tégia de lidar co m a situ ação, esta có lera n ão parecia ser d e grande
Para este seg u n d o grupo de p esso a s, as v o z e s eram h ostis e em utilidade. O Sr. R d isse-n os:
geral n ão eram a ceites co m o partes do E u o u c o m o fen ó m en o s gera­
d o s in tem am en te.
‘‘De cada vez que pensava estar em contacto telepático com outras
pessoas, ia a casa delas tirar satisfações. Se essas pessoas negavam ter
A s p e sso a s que suportam v o z e s n ega tiv a s sen tem que ela s são qualquer contacto telepático comigo, eu tentava contra-argumentar com
geradoras d e ca o s na sua m en te e que são tão ab sorven tes que quase as vozes que tinha ouvido. Então brigávamos uns com os outros e en­
n ão perm item a co m u n ica çã o co m o m un do extern o. D izia um dos trávamos num processo de intensa comunicação negativa. E isso só
participantes: contribuía para tornar as vozes ainda mais fortes e agressivas.”
‘‘Devido às vozes, eu tinha, num mesmo instante, contactos com os U m a outra estratégia seg u id a por a q u eles qu e ou viam v o z e s n e g a ­
meus fam iliares, os meus amigos, vizinhos, colegas, o meu psiquiatra, a
polícia, os serviços secretos, criminosos, membros da fam ília real e outras tivas era ign orá-las. N o en tan to, só 33% d os n o sso s inq uiridos atri­
pessoas muito conhecidas. Entrei em contacto com plantas, animais e buíam algum ê x ito a estes e sfo r ç o s, q u e, aliás, co n d u zia m m uitas
objectos - até descobri a presença de pessoas-robô. Uma vez, o meu v ezes a várias restrições no e stilo d e vid a. V eja -se o seg u in te relato:
irmão veio visitar-me: os seus olhos eram vítreos, a sua pele parecia “Decidi, por fim , ignorar as vozes e pedir-lhes que me deixassem em
polida e pensei que ele estava substituído por um robô. Eu tinha de ter paz. Na minha ignorância, acabei por agir da pior maneira possível.
imenso cuidado porque os robôs são incrivelmente fortes. Conversei com Algo que está dentro de nós mesmos e se manifesta de maneira tão
ele o mais superficialmente que pude e livrei-me dele na primeira opor­ poderosa não pode ser varrido para um canto. Seja como for, qualquer
tunidade. ” tentativa bem sucedida de ignorar as vozes devia resultar no seu desa­
parecimento, por falta de energia e de atenção - o que não era, eviden­
Fase de organização: entender-se com as vozes temente, o que as vozes desejavam. A té ter decidido ignorá-las, as vozes
tinham sido sempre amistosas e corteses, mas a partir daí mudaram
M u itos inq uiridos sen tia m -se co n fu so s co m as v o z e s e d eseja ­
radicalmente: passaram a dizer as coisas mais absurdas e faziam pare­
cer ridículo tudo o que era importante para mim. Era uma guerra civil
vam livrar-se d elas. Para algu ns, este d e se jo durava apenas sem a­ pegada, mas estava decidida a vencê-la e continuei a ignorar o que as
nas ou m eses; para outros, durava m u itos an os. P arece agora claro vozes me diziam. Para isso, era preciso manter-me ocupada permanen­
que para a fa s e de organização ser co m p leta m en te bem su ced id a temente o dia inteiro. Fazia palavras cruzadas, limpava e tornava a
tem qu e haver um a form a qualquer de a ceitação. A n ega çã o não limpar a minha casa, e o meu quarto nunca tinha estado tão bem arru­
dá resu ltad o nenhum . A s p e sso a s referiram graus de êx ito variáveis mado. O resultado é que a minha vida se tornou mais pacífica, mas muito
na tentativa de chegar, durante esta fa se, a um m odus vivendi co m mais confinada. Já quase não tinha um momento de sossego.”
as suas v o z e s. A s estratégias pod iam passar, co m o v im o s, por
ignorar as v o z e s, d is tr a í-la s , o u v i-las selectiv a m en te, entrar em A m ais fru tuosa estratégia q u e n o s d escreveram co n sistia em se-
d iá lo g o aberto ou esta b elecer acordos e sp e c ífic o s co m ela s. A s leccionar as v o z e s p o sitiva s e só as o u vir a ela s, só d ialogar co m elas
ten tativas de distrair as v o z e s ou ign orá-las raram ente davam re­ e tentar com p reen d ê-la s. A oradora q u e acab ám os d e citar d isse ainda:

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“Durante o período em que procurava ignorar as vozes, surgiram, “É bom que se entenda que fui atacada por uma força do demónio.
para espanto meu, duas vozes que me queriam ajudar. A minha primeira Com a vontade do meu Eu, decidi não me deixar identificar com o
reacção foi repeli-las, dado o meu estado de nervos, mas elas insistiram demónio. O diabo dentro de mim, dentro de outras pessoas, nas coisas
que eu iria precisar delas e, confesso, achei que tinham razão. Essas que me rodeiam, é coisa que não quero. É por isso que faço gestos.
vozes ensinaram-me a ver, a ouvir e a sentir. Por exemplo, elas pergun­ Também os podereis fazer mentalmente. Mas creio que só podereis virar
tavam-me: ‘Como é que tu nos ouves?’ e: ‘Como é que nós te falamos?’ as costas às vozes se fizerdes um gesto físico: ‘Isto não é para mim, eu
Respondi-lhes, um tanto descarada: ‘Ora, eu oiço-vos com os meus lanço a mensagem fora'. Isso dá-me um sentimento de alívio, e então
ouvidos e vós falais com as vossas bocas!’ penso: Ora aí está, desta já eu me livrei! A seguir, mando o mensageiro
Ah, sim? — responderam — ‘Onde estão então as nossas laringes? e embora e digo para mim mesma, em voz alta: ‘Vai para os teus amigos,
já agora, diz-nos como consegues tu responder-nos?!’ Esta última obser­ não me aborreças!’ Este é o primeiro passo. O segundo passo é escolher,
vação divertiu-me imenso. A princípio, levava tudo à letra, o que não com a minha própria vontade, as coisas com as quais quero estar em
ajudava nada a melhorar as relações, já de si tensas, que mantinha com contacto; associar à luz que há em mim o que houver de mais belo.
as vozes. No entanto, acabámos por concordar dizer cada coisa duas Tenho uma fonte de calor, um núcleo sadio, de pura energia sã. Sei que
vezes, mas de maneira diferente - pelo menos as coisas importantes: da tudo isso existe em qualquer ser humano e que cada um de nós pode
primeira vez, diríamos o que tínhamos a dizer da maneira habitual de escolher se quer contactar ou não.”
sempre; da segunda vez, di-lo-íamos por símbolos, de uma forma expres­
siva. E cada um deveria repetir, sumariamente, a essência do que tinha
sido dito pelo outro.
A princípio, a coisa resultava um tanto forçada - não estava habi­ Ease de estabilização
tuada a pensar por símbolos. No entanto, foi-me possível começar a pôr
imediatamente em prática aquilo que as vozes me ensinavam e, desse A s p esso a s q u e aprenderam a en ten d er-se co m as su as v o z e s en ­
modo, comecei a sentir-me melhor.” contraram um a e sp é c ie d e eq u ilíb rio. N e ste eq u ilíb rio, as p e sso a s
encaram as v o z e s c o m o u m a parte d e si m esm a s, co m o a lg o q u e p o d e
A ceitar as v o z e s rev elo u -se um factor m u ito im portante para um a ter um a in flu ên cia b e n éfica . D urante esta fa se, o in d iv íd u o é ca p az de
estratégia b em su ced id a de lidar co m ela s. E ssa aceitação p arece estar escolh er segu ir o c o n se lh o das v o z e s ou en vered ar p elas su as próprias
relacionada co m um p rocesso d e crescim en to individual rum o à tom ada op çõ es, sen tin d o -se a ssim em co n d içõ es d e dizer: “O iço vozes e sinto-
d e resp on sab ilid ad e das d e c isõ e s próprias. E m geral é im p roced en te m e fe liz p o r isso .”
tentar acusar o s outros d os n o sso s próprios prob lem as e isso é igu a l­ U m a senh ora d isse-n o s:
m en te verdadeiro para um fen ó m en o co m o o u vir v o z e s. C om o algu ém “As vozes mostram-me os erros que cometo e ensinam-me a corrigi­
d isse, é p reciso aprenderm os a pensar de um m o d o p o sitiv o a resp eito dos. Mas deixam para mim a decisão de os corrigir ou continuar a
d e n ós m esm o s, das n o ssa s v o z e s e d os n o sso s problem as. cometê-los. Elas acham, por exemplo, que tenho uma maneira errada de
ouvir música. Perco-me na música e elas dizem que não devia ser assim.
U m a outra estratégia freq u en tem en te m en cio n a d a c o n sistia em Tento ouvir música da maneira que para as vozes é correcta, mas acho
esta b elecer lim ites às v o z e s ou estruturar o con tacto co m ela s, um a essa maneira complicada e não consigo compreender a sua vantagem.
v e z por outra a com p an h an d o-se de a cçõ es rep etitivas ou ritualizadas. Este género de decisões implica sempre uma troca de impressões com as
U m ex em p lo p od e ser este, de alg u ém q u e o u v ia v o z e s n egativas e as vozes, mas a última palavra é a minha e elas nunca deixaram de a
interpretava do segu in te m odo: aceitar. ”

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U m a outra oradora referiu: Perspectivas psicológicas
“M ais tarde, era como se a vida se tivesse lentificado um pouco. E stas p ersp ectivas v ã o buscar as suas ra ízes a m ú ltip las esco la s.
Passei a navegar em águas calmas e podia concentrar-me na minha vida Cari Jung, por ex em p lo , d eu -n o s um m o d elo p sico d in â m ico , segu n d o
outra v e z"
o qual o s im p u lso s p roven ien tes d o in co n scien te se p od em exprim ir
na form a de v isõ e s ou d e v o z e s. P en sa m o s qu e a obra d e Jung n este
U m a terceira participante p ô s o prob lem a assim :
cam p o se fic o u a d ever, em grande parte, ao s ou v id o res d e v o z e s, qu e
“Q uando alguém cai da bicicleta não deita a bicicleta fo ra m uitas v e z e s referiam ter gan h o um a co m p reen sã o m ais profunda das
-p ro cu ra é melhorar a form a de a montar e conduzir, estabelecendo suas v o z e s e d aq u ilo qu e elas ten tavam d izer-lh es.
com ela uma adequada relação e criando um estilo próprio. O mesmo U m a teoria afim (P utnam , 1 987) cen tra-se m ais esp e cifica m en te
se pode passar relativamente ao eu de cada um. Por fim , cheguei a um nos m eca n ism o s p sico d in â m ico s qu e in tervêm em situ a çõ es d e pro­
ponto em que já me não sentia vencedora nem vencida. Era como se uma fundo sofrim en to físic o ou em o cio n a l. A d m ite-se q u e um a p esso a
nova dimensão tivesse sido acrescentada à minha vida - dimensão essa pode reagir a um a ex p eriên cia extrem am en te traum atizante (in cesto ,
que se pode trabalhar com determinação, de maneira a acabar por ser abuso sex u a l, le sõ e s traum áticas, rapto, in cid en tes d e guerra, etc.)
útil.” isoland o da c o n sc iê n c ia e ssa s m em órias. O traum a p o d e voltar à
su p erfície na form a d e lam p ejos m n é sic o s, sen tim en to s d e p erseg u i­
çã o , v o z e s a g ressiv a s, im ag en s aterradoras. M u itos d os participantes
Abordagens pessoais à compreensão no n o sso C o n g resso ach avam esta teoria interpretativa m u ito ajustada
ás suas próprias ex p eriên cia s p esso a is.
D isse m o s na Introdução que um a das n o ssa s p a cien tes se havia A s abord agens m ística s fo rn ecem outras e x p lic a ç õ e s p o ssív e is e
sen tid o de algu m m o d o aliv iad a d ep ois d e ter adop tado um a teoria p r e ssu p õ e m q u e as v o z e s d e se m p e n h a m u m a fu n ç ã o p o s itiv a
m uito própria, à qual p assou a atribuir as suas ex p eriên cia s. F icám os c en riq ueced ora para a person alid ad e - origin an d o um m o d elo que
co m grande cu riosid ad e em saber até que pon to outros ou v id o res de encoraja a aceita çã o d ecid id a da ex p eriên cia d e ou vir v o z e s, enquanto
v o zes pod eriam perfilhar a sua teoria - o que viria a revela r-se algo elem en to natural e criativo do crescim en to esp iritu al (R oberts 1979).
in gén u o, um a v e z que se tornou evid en te q u e o s o u v id o res de v o z e s Este p on to d e v ista é tanto m ais n otável qu anto p ressu p õ e q u e, lon g e
adoptam p ersp ectivas m uito d iversificad as (p sico d in â m ica , m ística, de ser um a d esgraça, ou vir v o z e s é, m u ito p e lo contrário, um p rivi­
p a ra p sico ló g ica e m o d elo s m éd ico s), que en contram in spiração em lég io , que p o d e prop orcionar o s m eio s para um co n h ecim en to d ivin o
livros ou artigos de autores q u e v ã o de Jung a E h ren w ald , d e R oberts situado para lá d os co n fin s do Eu.
Para algu m as interpretações p a ra p sico ló g ica s, ou vir v o z e s é tam ­
a P ierrakos, A tk in son , etc.
bém um d om ou sen sib ilid a d e esp ecia l q u e deriva d e um n ív el m ais
N um a ten tativa de cla ssifica r essa variedade en orm e de teorias subtil d e c o n sciên cia . E sse d om tem , n este co n tex to , um valor parti­
e x p lic a tiv a s, d iv id im o -la s em du as grand es ca teg o ria s principais: cular, na m ed id a em qu e p o d e ser tam b ém u tilizad o em b e n efício d os
aq u elas que co n ceb em as v o z e s co m o um fen ó m en o (fran cam ente) outros, através d e práticas d e v id ên cia e m ed iu n id ad e. Para aq u eles
p sic o ló g ic o , oriun do de dentro d o indivíduo; e as que co n ceb em as que aceitam este m o d elo , o p rob lem a n ão é livrar-se d essa sen sib ili­
v o z e s c o m o um fen ó m en o de origem não p sico ló g ica . dade m as sim con trolá-la e d irigi-la.

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Perspectivas não psicológicas
Perspectivas psicológicas Psicodinâmica: psicoterapia centrada nos
arquétipos e nas em oções bloqueadas;
M u itos d os participantes no C o n g resso tiveram a preocup ação de
d escrev er as suas ex p eriên cia s em term os m u ito p róxim os da cham ada M ística: treino m ístico, v.g., m editação
P siquiatria B io ló g ic a . T al c o m o na P siquiatria clá ssica , n este tipo de e práticas transcendentais;
abordagens en ten d e-se o facto d e ou v ir v o z e s co m o um sintom a de um a Parapsicologia: ensinar a lidar com di­
d oen ça , n este ca so co m um a tó n ica m u ito particular num a d isfu n ção ferentes níveis de consciência e a con­
orgân ica ou, por outras palavras, num a avaria físic a ou q u ím ica no trolar a sensitividade pessoal.
interior d o cérebro. A co n seq u ên cia d este m o d elo é pod er restab ele-
cer-se a n orm alidade p rescreven d o o adeq uad o tratam ento b io ló g ico . Perspectivas não Psiquiatria Biológica: medicação;
U m a das oradoras disse: psicológicas M edicina Natural (segundo a Sociedade
“Nunca senti as vozes como algo exterior a mim própria. Sei que elas H o la n d esa de M ed icin a N atu ral):
estão dentro de mim e que me é possível fazer qualquer coisa para interaeção criativa com o espírito dos
solucionar o problema. Tomo a medicação todos os dias e sei que terei mortos;
de continuar a tomá-la o resto da minha vida. Mas isso não me preocupa. Religião: cura pela Fé.
Trabalho há dez anos como secretária e sinto-me bem."
M uito diferen te é o tipo d e ex p lica çã o não p sic o ló g ic a d efen d id o Seja qual for a p ersp ectiv a seg u id a , o d esen v o lv im en to d e qualquer
p ela S o cied a d e H olan d esa d e M ed icin a N atural - grupo que interpreta estratégia d e en ten d im en to c o m as v o z e s p arece d epen der, antes d e
as v o z e s co m o sen d o p roven ien tes d e esp íritos errantes d os m ortos. m ais, de um a teoria ex p lica tiv a , seja ela qual for. É m u ito d ifícil
A lg u n s grupos r e lig io so s, co m o as T estem u n h as de Jeová, vão ainda passar à fa se de organização d a relação da p e sso a co m as suas v o z e s
m ais lon g e, con sid eran d o q u e o u v ir v o z e s é um a prova de p o ssessã o (para con seg u ir um a red u ção da an sied ad e) se n ão for atribuído às
p e lo s d em ó n io s. A e s s e resp eito, um d os participantes no C on gresso v o zes um sig n ifica d o qualquer. P orém , as p ersp ectivas qu e en corajam
referiu: o indivíduo a procurar u m a form a d e d o m ín io sob re as suas v o z e s
“Ouvia três a cinco vozes diferentes. Eram vozes sem sexo, mas tendem , geralm en te, a p rod u zir e sc a sso s resu ltad os p o sitiv o s. U m
sempre ameaçadoras. Tinha que fa zer exactamente o que elas me man­ ex em p lo é interpretar as v o z e s c o m o m a n ifesta çõ es d e in flu ên cias
davam. Certo dia, até me ordenaram que matasse o meu padrasto, mas electrón icas. D o m esm o m o d o , em term os d e estratégia d e en ten d i­
no último momento caí em mim. Pouco tempo depois, solicitei o meu m ento co m as v o z e s, a e x p lic a ç ã o forn ecid a p e la P siq uiatria B io ló g ic a
internamento num hospital psiquiátrico. Tomava a medicação, mas as pode ser tam bém inú til, na m ed id a em qu e situa o fen ó m en o fora d os
vozes continuavam. Como os meus passatempos preferidos são a História d om ín ios da p essoa.
e a Arte Medieval, comecei a ler a Bíblia. E hoje creio que Jesus curou
pessoas como eu, como na história do possesso (Mateus, VIII: 1-5;
Marcos, V: 2-20).” Consequências para a profissão psiquiátrica
C ada um d os tipos d e ex p lica çã o atrás d escritos co n d u z a um a M uito d o q u e o u v im o s n o C o n g resso co n firm ou qu e a red u ção da
determ inada estratégia terapêutica. Im p licitam en te, o s seu s d e se n v o l­ exp eriên cia d e ou vir v o z e s ao estatu to d e m era p a to lo g ia n ão ajuda
v im en to s são o s seguintes: m uito o s p acien tes a lidar c o m a situ ação. E p o d e, além d o m a is, ser

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um a an álise incorrecta. F ora d o m undo da P siquiatria há m uitas p e s­
so as q u e o u v em v o z e s e qu e co n seg u em v iv er co m essa exp eriên cia;
algu n s ch eg am m esm o a co n sid erá-la um a form a d e en riq u ecim en to
da sua vid a. V a leria p o is a pena que tod os o s que trabalham em
p rofissõ es ligad as à S aú d e M ental averigu a ssem co m m ais d etalh e as
linhas de referên cia e as estratégias que se m ostram m ais ú teis para
os p acien tes q u e o u v em v o zes; p roced en d o d essa m aneira, pod ería­
m os dar um a p o io e um a a ssistên cia m ais e fic a z e s aos o u v id o res de
v o z e s, nas ten tativas d e se haverem c o m as sin gu lares ex p eriên cia s
que estão a viver.
O s prin cipais p a sso s n este p rocesso serão:
- A ceitar a ex p eriên cia d o p acien te. A s v o z e s que o u v e sã o sen ­ 3
tidas, m uitas v e z e s, de form a m ais intensa e real que as percep-
ç õ es sen so ria is vu lgares. A EXPERIÊNCIA BRITÂNICA
- T entar com p reen d er as d iversas lin gu agen s d e que o p a cien te se
serve para d escrev er e exp licar as suas ex p eriên cia s, b em co m o Paul Baker
as lin g u a g en s utilizadas p elas próprias v o z e s. M uitas v e z e s , é
todo um m u n d o de sen tim en tos e d e sím b o lo s q u e está em jogo;
por e x em p lo , se um a v o z fala de lu z e de trevas, p o d e querer Em busca de novas explicações
dizer am or e ód io.
- A dm itir a p o ssib ilid a d e de ajudar o ind ivídu o a co m u n icar co m C on h eci M arius R om m e e Sandra E sch er em 1 9 8 8 , p or o ca siã o do
as v o z e s, o q u e p o d e im plicar a n ecessid a d e de adm itir a d ife ­ C ongresso L a Q uestione P sich iatrica * , realizad o em T rieste e patro­
ren ciação entre v o z e s boas e m ás e aceitar as e m o ç õ e s n egativas cinado p ela O rgan ização M undial d e Saú de.
do p acien te. E sta form a de aceitação p o d e dar um contributo Eu tinha lá id o falar d os esfo rço s d e se n v o lv id o s p ela A sso cia çã o
essen cia l para a p rom oção da auto-estim a. M IN D em M an ch ester, na b u sca d e so lu çõ es n ão m éd ica s para os
- Encorajar o p a cien te a co n h ecer outras p e sso a s co m ex p eriên cia s problem as d e S a ú d e M en tal. M arius R o m m e e Sandra E sch er foram
sem elh an tes e a ler liv ro s e artigos sobre a escu ta d e v o z e s, por a T rieste apresentar o seu trabalho sobre a escu ta d e v o z e s.
form a a ultrapassar o isolam en to e o tabu so cia l. D urante o C o n g resso , trocám os im p ressõ es sob re as n o ssa s a ctivi-
dades e fiq u ei particu larm ente en tu siasm ad o co m a m aneira co m o ele s
E stes p roced im en tos p od iam con stitu ir um co n sid erá vel alarga­ abordavam a q u estão das v o z e s. P or um lad o, o m eu in teresse na
m en to da p ersp ectiva clín ic a e das teorias geralm en te a ceites na pro­ m atéria rad icava no facto d e um fam iliar m eu ter p assad o por um a
fissã o psiquiátrica. E stam os m uito in teressad os em co n h ecer as e x p e ­ exp eriên cia d e ou v ir v o zes; por outro lad o, na q u alid ad e d e trabalha­
riências dos c o le g a s p ro fissio n a is n este cam p o e as su as o p in iõ es dor na área d e in iciativas com u n itárias, esfo rça v a -m e por p rom over
sobre qualquer d o s a sp ectos ou su g estõ es v eicu la d o s p e lo s particip an­
tes no C on gresso. * Onde estiveram também os Coordenadores da edição portuguesa.

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a ctiv id a d es que ajud assem as p e sso a s a m anter a sua própria au ton o­ Saúde M ental não aceitavam a realidade das suas vozes. Para esta
m ia perante sin tom as tão desagrad áveis e tão p o u co com p reen d id os. reunião fo i convidado um número um pouco maior de profissionais de
T a lv e z por não fazer parte d o m un do m é d ic o da S aú d e M en tal, eu Saúde M ental do que de ouvidores de vozes. Ao virem aqui falar das suas
tinha a abertura d e esp írito n ecessária para a colh er a h ip ótese de experiências pessoais, os ouvidores de vozes traziam consigo a esperan­
M arius R o m m e e Sandra E sch er, seg u n d o a qual as v o z e s são na ça de poder explicar o que realmente acontece com eles próprios, con-
verd ad e p erceb id as p elo s seu s o u vid ores e têm um sig n ifica d o que frontando-se com a teoria que os profissionais defendem para o mesmo
está para além do saber h ab itualm ente recon h ecid o - para o qual as facto. Ao tentarem transpor o verdadeiro fosso que os separava dos
v o z e s não p assam de m eras a lu cin a çõ es. P rom etem o s m anter-nos em profissionais, deram-lhes a oportunidade de conhecer pessoas normais,
co n tacto e parti de T rieste revigorad o p e lo p en sam en to criador co n ­ saudáveis, que ouvem vozes sem serem psicóticas. Essa gente aprendeu
tid o n esta abordagem . a lidar com as vozes, criando as suas próprias teorias - que lhes pro­
P o u co d ep o is, em N o v em b ro de 1988, fu i co n v id a d o por M arius
porcionam alguma coisa a que podem agarrar-se."
R o m m e a participar em M aastricht no C o n g resso subordinado ao tem a
O C on g resso fo i extrem am en te útil e fascin an te. N a abordagem
“P esso a s que o u v em v o z e s ”. O C o n g resso tev e lugar no prestigiado
C entro E uropeu d e C o n g resso s, em M aastricht (H oland a) e fo i orga­ seguida por M arius R o m m e, Sandra E sch er e F u n d ação R esson ân cia,
n izad o con ju n tam en te por um grupo d e sig n a d o F un dação R esson ân cia 6 fundam ental co lo ca r a tón ica na parceria entre o s o u vid ores d e v o z e s
(W eerklank) - organ ização de ajuda m útua para o u vid ores de v o z e s - c os p rofissio n a is aliad os q u e o s acom p an h am . F o i, sem dú vid a, um a
e p e lo D ep a rta m en to d e P siq u ia tria S o c ia l da U n iv e r sid a d e de m udança retem peradora em relação à m aioria das abord agens que
L im b urgo. tenho en contrad o, q u e raram ente d ão im p ortân cia à op in ião d os que
E ste C o n g resso con stitu iu um a o ca siã o ú n ica para o s p rofission ais experim entam na própria p ele p rob lem as d e saú d e m ental (B aker,
d e S aú d e M ental ou virem de v iv a v o z as ex p eriên cia s dos ou vid ores 1989).
d e v o z e s, ao m esm o tem p o que as referên cias teóricas p rofission ais A exp eriên cia h olan d esa fo i d escrita em tod o o porm enor noutro
co rren tes. E , se é certo q u e surgiram in terp retações rad icais do ponto d este liv ro , m as não qu eria d eixar d e realçar este pon to de
fen ó m en o , apareceram tam bém , por outro lad o, propostas concretas partida, tal fo i o efeito qu e p rod u ziu em m im .
para ajudar as p e sso a s a lidar co m ele . N o centro desta abordagem
p io n eira esta v a o p rop ósito d e libertar o s o u v id o res d e v o z e s da
im p esso alid a d e d o m o d elo das d oen ças. A cred ib ilid ad e nacional deste Breve história do desenvolvimento da rede britânica
p rop ósito era tal que a S e ssã o de A bertura d o C o n g resso fo i presidida
p e lo Inspector Superior de Saú de M ental, d o M in istério da Saú de e “Peço-vos que tentem fazer o mesmo na Inglaterra. É preciso criar
B em -E star da H olanda. grupos destes em todos os países, grupos em que as pessoas possam falar
O C on g resso coroava três anos de trabalho, durante os quais foram umas com as outras sobre a questão de ouvir vozes [...] pegar em grupos
su rgind o m uitos d e sa fio s às interpretações correntes do fen ó m en o de pessoas com as mesmas experiências, com a finalidade de modificar
o u vir v o z e s. N o final do C o n g resso , in terveio M arius R om m e para atitudes [...] na América e na Inglaterra, presentemente, os psiquiatras
recordar: comportam-se como paizinhos. O meu objectivo não é modificar a Psi­
quiatria, não é modificar os paizinhos, mas antes proporcionar aos
“A decisão de reunir este Congresso não fo i minha, mas sim da ouvidores de vozes uma Organização através da qual possam emanci­
Fundação Ressonância. Os pacientes sentiam que os profissionais de par-se."

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C om estas palavras d e M arius R om m e p resen tes no m eu esp írito, C om o fim d e preparar o terreno em M an ch ester, A lan L ead er, da
escrev i, d ep o is d o C o n g resso , um artigo para a O P E N M IN D , R evista L am beth L ink, v e io falar da sua própria ex p eriên cia d e o u v id o r de
N acion al da M IN D , artigo e s s e q u e fo i p u b licad o em A g o sto de 1989 v o z e s , num c o n c o r rid íssim o E n con tro q u e te v e lugar n a C âm ara
e d esp ertou algu m in teresse entre o u vid ores d e v o z e s e p rofissio n a is M un icip al em O utubro d e 1990. A lan L eader, q u e h a v ia p assad o
d e Saú de M en tal. A lg u m tem p o antes da p u b licação d o m eu artigo, 20 a n o s da su a v id a em v á ria s in s titu iç õ e s p siq u iá tr ic a s c o m o
N ig e l R o se e M ark G reen w o o d (m em b ros fu nd ad ores da R ed e N a c io ­ esq u izo frén ico d ia g n o stica d o , fa lou da form a co m o aprendera a v iv er
nal d e O u vid ores de V o z e s ) tinham aderido às id eias de M aastricht; co m as suas v o z e s e até co m o aprendera a servir-se d ela s para o
e durante e s s e ano, n o R ein o U n id o, realizaram -sc outros con tactos ajudarem na vid a d o d ia-a-d ia. H avia m u itos ou v id o res d e v o z e s no
co m p esso a s interessadas na q u estão. A recep tivid ad e encontrada lev ou E ncontro, e a o p in iã o gen eralizad a era a d e q u e seria im portante que
a qu e M arius R om m e, Sandra E sch er e A n se Streefland (representante e le s se ju n tassem e fa la ssem das suas ex p eriên cia s. O próprio A lan
da F un dação R esson â n cia ) se d e slo ca sse m ao R ein o U n id o no V erão L eader deu o e x e m p lo , falan d o da sua ex p eriên cia p esso a l em p ú b lico,
d e 1989, para apresentar o s resu ltad os do seu trabalho. H ou ve e n co n ­ com p letam en te à von tad e.
tros bastante con corrid os em M anch ester, L iverp ool e S h effield , co m
a p articip ação de “so b rev iv en te s” * e suas fam ília s, p rofissio n a is de
Saú de M en tal e p ú b lico e m geral. A s rea cçõ es in d ivid u ais foram O Primeiro Congresso Britânico
m u ito variad as, sen d o notória um a certa resistên cia da parte d os pro­
fissio n a is d e S aú de M en tal. P orém , a reacção glob al foi francam ente O rgan izad o p e lo G rupo d e O u vid ores d e V o z e s d e M an ch ester,
p ositiva. D a parte d o s o u v id o res de v o z e s a reacção foi, e v id en te­ tev e lugar nesta cid a d e, em N ov em b ro d e 1990, o I C o n g resso B ri­
m en te, en tu siástica. U m d o s E n con tros, que tev e cerca de 100 parti­ tân ico de O u vid ores d e V o z e s, co m o s seg u in tes o b jectivos;
cip an tes, a m aior parte d o s q u ais falava p ela prim eira v e z cm pú blico
acerca das su as ex p eriên cia s e interpretações sobre o sig n ifica d o das 1. Fundar um a red e d e p e sso a s qu e tiv esse m tid o essa ex p eriên cia
v o z e s, viria a revelar-se um a autêntica arena de catarse pura o s m uitos e qu e e stiv e sse m in teressad as na ajuda m útua, d e m od o a lev á -la s a
ou vid ores d e v o z e s presen tes. partilhar as su as ex p eriên cia s e a debater estratégias d e en ten d im en to
E m co n seq u ên cia d esta v isita , com eçaram a d e se n v o lv er -se no co m elas.
R ein o U n id o n ovas in iciativ a s de p rom oção c debate d o problem a
entre o u vid ores de v o z e s, p ro fissio n a is de Saúde M ental e p ú b lico em 2. T entar am pliar as abord agens d os p ro fissio n a is d e S aú d e M ental
geral. U m grupo de ín d o le nacion al reuniu em L ondres co m o intuito sobre o fen ó m en o .
d e p rom over as diversas p ersp ectiv a s alternativas o ferecid as por esta
n ova abord agem . Surgiram gru p os em M anchester e em L ondres, e N este C o n g resso , o rgan izad o esp e cifica m en te para q u e as p esso a s
em M arço d e 1990 o rg a n izo u -se um E ncontro em N ottingham . O s p u d essem partilhar as su as ex p eriên cia s, participaram 14 o u v id o res de
grupos d e L on dres e d e M an ch ester planearam realizar co n g resso s v o z e s. N e le p articip ou tam bém M yrtle H eery (ver C ap ítu lo 7 ), um a
id ên ticos ao qu e se rea lizou na H oland a em 1987. in vestigad ora ca lifo m ia n a q u e v e io assistir ao decorrer d o s trabalhos.
A in v estig ação d e se n v o lv id a por M yrtle seg u e, em m u itos a sp ectos,
* Survivors, no original: aqueles que sobreviveram ao "naufrágio" psicológico paralela à de M arius R o m m e, cen tran d o-se n o “desfazer do estereó­
e emocional; ex-“doentes.” tipo corrente sobre as vozes interiores com o p rerro g a tiva d e santos

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e de p sicó tico s e, desse m odo, estim ular a in vestigação sobre o seu D a ex p eriên cia d e ou v ir v o z e s d eriva um a série d e p rob lem as
p o d er liberta do r das poten cialid ades hum anas que nos são p ró p ria s” d esa g ra d áv eis, o m en o s im portante d os q u ais n ão será o estig m a qu e
(H eery, 1 9 89 ). lh e está a sso cia d o . C on tu d o, e sse s p rob lem as p od em ser ultrap assados
O C o n g resso fo i gravad o em áudio e , por isso , fo i p o ssív e l repro­ se as p e sso a s q u e o u v em v o z e s co n seg u irem d e se n v o lv er a co n fia n ça
du zir n u m artigo toda a diversid ad e de p ersp ectivas d e com p reen são e as ap tid ões n ecessária s para d escrever e ex p o r as suas ex p eriên cia s.
p resen tes (G rierson , 1991). O s participan tes n o C on g resso ficaram sa tisfeito s por terem p od id o
M u itos d o s in terven ien tes denunciaram a o p in iã o corrente segu n d o partilhar co m o s outros a sua h istória e as su as id eias - q u e até aí
a qual ou v ir v o z e s é , de certo m od o, um in cid en te irreal. A interpre­ guard avam na intim idade.
tação qu e n o s dá a P siquiatria clá ssica tende a m ascarar a riqueza das E ste C o n g resso fe z n ascer a esp eran ça n o ap arecim en to d e um
ex p eriên cia s in d ivid u ais em m atéria d e v o z e s e das form as m uito m o v im en to m ais am p lo qu e p o ssa ajudar a m od ificar a com p reen são
d iversas d e as en ten d er e d e co m elas se relacionar. V á rios oradores d o fen ó m en o por parte da n o ssa S o cied a d e.
d efen d eram o p on to de v ista de que as ex p eriên cia s d e v o z e s são
ex p eriên cia s reais, qu e são parte integrante da sua v id a e q u e têm de
ser lev ad a s a sério. U m d os oradores da sessã o inaugural p ô s a questão O Congresso de Londres de 1991
do segu in te m odo: “F o i um a experiência bem rea l que tive.”
N o C o n g resso d eu -se n o tícia da grande variedade d essa s ex p eriên ­ E m M arço d e 1991, m ais d e 2 0 0 p e sso a s participaram em L on dres
cias: para u n s, é um grupo de v o z e s que se e n v o lv e em d iscu ssã o num C o n g resso sob re E scu ta d e V o z e s, organ izad o p ela R ed e B ritâ­
dentro da cab eça; para outros, trata-se de v o z e s q u e p assam o tem p o n ica de O u vid ores d e V o z e s e p ela L am b eth L in k, qu e con stitu iu o
a d izer d isp arates ou em in fa tig á veis rep etiçõ es q u e p õ em o s nervos m aior a co n tecim en to d o gén ero no R ein o U n id o , até agora. M u itos
em franja; algu n s outros, experim entam v o z e s m aravilh osas, viciadoras
d o s p articip an tes eram o u vid ores d e v o z e s e o s restan tes eram sob re­
até, qu e trazem bem -estar; outros ainda, referiram v o z e s que lhes
tudo p ro fissio n a is d e S aú d e M ental e, aqui e além , fa m iliares ou
d izem c o isa s fan tásticas, in acred itáveis, fa zen d o p rom essa s ex a g era ­
das. H o u v e q u em fa la sse d e v o z e s que p erseg u em as p e sso a s e lhes m em b ros d e grup os d e volu ntariado.
ch am am m iserá veis e m ás. U m d os oradores referiu q u e as suas v o z e s O s trabalhos da m anhã incluíram co m u n ica çõ es d e A lan L ead er e
tom am parte nas suas fantasias sex u a is, o que o rigin ou um a d iscu ssã o de A n n e W alton sobre as suas próprias ex p eriên cia s p esso a is; de
d e fazer in veja, em que outros intervenientes revelaram um idên tico M arius R o m m e e Sandra E sch er sobre a in v estig a çã o qu e v êm fazen d o
pap el das su as v o zes! P or fim , algu m as p e sso a s d escreveram as suas na H olanda; d e M ik e G rierson , s o c ió lo g o d e M an ch ester, sobre a
v o z e s co m o um a m a n ifestação de com u n ica çã o telep ática. form a c o m o a c iên c ia p od e m altratar as p e sso a s qu e o u v em v o z e s,
M u itos d o s oradores p resen tes faziam a d istin çã o entre as v o zes m esm o quand o a in v estig a çã o é co n d u zid a d e m od o co m p a d ecid o e
qu e o u v ia m dentro da sua ca b eça e as v o z e s que vin h am claram ente sen sív el; d e um a psiquiatra qu e falou da su a in v estig a çã o sobre o u so
do exterior. Para algu ns, as v o z e s eram um a ex p eriên cia p o u co e x c i­ d e tam p ões n o s o u v id o s, d e stereo -w a lkm ans e d e técn ica s d e con ta­
tante, co m q u e não perdiam m uito tem p o - ou v ia m -n a s e pronto. Para g em para si m esm o co m o estratégias p o ssív e is d e lidar co m as v o zes;
outros, as v o z e s eram fam iliares e rec o n h ec ív eis, en qu an to havia quem e , por fim , fu i eu próprio falar da p rob lem ática geral da escu ta de
d isse sse q u e as v o z e s eram d e estranhos. M u itos d o s participantes v o z e s.
disseram q u e ficariam terrivelm en te só s sem as suas v o z e s, enquanto A parte da tarde fo i destin ad a a s e ssõ e s d e trabalho, em qu e as
outros ach avam que as v o z e s tinham n eles um a in flu ên cia b en éfica. p e sso a s puderam d iscu tir as su as ex p eriên cia s e a form a co m o apren-

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il« """ ti lltlin « "iii as suas v o zes. O s p ro fissio n a is e o s fam iliares de d izer q u e as v o z e s eram u m a ex p eriên cia relativam en te vu lgar n a sua
........ . d» Na mio M cnlal tiveram oportu nidad e de fazer perguntas e fa m ília e contar c o m o tinha aprend id o a v iv er co m elas.
do liiiiiai so As d iscu ssõ es. R ealiza ra m -se d e seg u id a p eq u en as se ssõ e s d e trabalho, para qu e
N o fim , reu n im o-nos tod os na sala principal e cada um pôd e dizer as p e sso a s p u d essem d iscu tir as suas v o z e s e as teorias qu e sob re ela s
o q u e p en sava d o C o n g resso e co m o d everia ser organizado o pró­ tinham a propor.
x im o . N a sua m aioria, as p e sso a s m ostra va m -se m uito en tusiasm ad as N a S e ssã o P lenária, m u ito s d o s participantes afirm aram ter g o sta ­
co m o C on g resso e sen tia m -se sa tisfeita s por terem tido oportunidade d o m uito da form a co m o tinh a d ecorrid o o C o n g resso , e fico u assen te
d e ou vir falar, d e v iv a v o z , das ex p eriên cia s p e sso a is d os ouvidores que M ike G rierson seria o relator das actas fin ais.
d e v o z e s. F icou claro qu e as e x p lic a ç õ e s aí surgidas trouxeram um a
n o v a esp eran ça e um a n ova determ in ação a m uita gen te, no sentido
d e encontrar o s seu s próprios p r o c esso s d e en ten d im en to co m as v o zes. O Congresso de Manchester sobre Escuta de Vozes, 1992
O C on g resso encerrou co m um a m en sa g em m uito positiva: o tra­
b alh o iria p rossegu ir e tinha sid o fundada um a R ed e de O u vid ores de E ste C o n g resso tev e lugar num H osp ital P siq u iátrico acab ad o d e
V o z e s. F oi d ecid id o ainda organizar n o v o C o n g resso n e sse m esm o inaugurar em M an ch ester N o rte e con stitu iu a p rim eira ten tativa
an o, ten do em con ta a en orm e quantidade d e p e sso a s que tinham d e prom over o d iá lo g o en tre ou v id o res d e v o z e s e p rofissio n a is d e
d esejad o participar n este sem o co n seg u ir. S aú d e M ental, psiqu iatras in clu íd os.
Perante um aud itório d e m a is d e 100 p e sso a s, usaram da palavra
o Prof. M arius R om m e, o p s ic ó lo g o R ichard B en tall, da U n iv ersid a d e
O Terceiro Congresso Nacional d e L iverp ool, e o Prof. A le c Jenner, da U n iversid ad e d e S h effield .
O m ote d o C on g resso fo i d ad o por Sandra E sch er, qu e sob re o qu e
S e is m eses d ep o is, em S etem b ro d e 1991, tev e lugar no D eparta­ p od e realm ente ajudar o s o u v id o res d e v o z e s disse:
m en to d e S o c io lo g ia da U n iv ersid a d e de M an ch ester o C on gresso “Todas as pessoas que ouvem vozes e que aprenderam a lidar com
seg u in te, no qual participaram 3 0 p e sso a s oriundas d e toda a Grã- elas são claras em realçar a importância de ter um amigo, um compa­
-B retanha. U m a v e z m ais, fic o u dem on strada a n ecessid a d e im periosa nheiro, um familiar que as oiça, que as aceite e as faça sentir em segu­
d e um a m aior co m p reen são e a ceita çã o da exp eriên cia de ou vir v o zes. rança. Uma relação assim pode proporcionar segurança durante os
T o d o s os p resen tes e todos o s oradores eram o u vid ores d e v o z e s, cada períodos em que as vozes são predominantes. Durante esses períodos, é
um co m as su as próprias abord agens e ex p lic a ç õ e s, uns tom ando crucial ir em busca do apoio adequado. Dar apoio significa que a pessoa
m ed ica çã o e outros não. que o recebe não se torna dependente, significa dar-lhe um potencial de
A n n e W alton (m em b ro do G rupo d e A juda M útua de M anchester crescimento com vista à auto-confiança e à gestão de si própria. As vozes
d esd e N ovem b ro de 1990) ex p lico u c o m o se viu en v o lv id a n o M o v i­ são um grande desafio que pode ser visto como uma ameaça mas que
também pode ser visto como uma inspiração. As vozes podem fazer com
m en to d e O u vid ores de V o z e s e d eu con ta d os p rogressos da R ed e que uma pessoa se sinta desamparada, mas também podem agir como
B ritânica. M ick ey D e V alda (tam bém m em bro do grupo de M anchester) Mestres que incentivam a viver uma vida mais elaborada. O crescimento
falou sob re o s efeito s do abuso de m ed ica çã o e da n egação d os d irei­ pessoal só pode dar-se num meio estimulante, com oportunidades so­
tos fu nd am en tais q u e se pratica n o s h osp ita is e noutras in stitu ições. ciais. O objectivo final é desenvolver uma identidade enquanto pessoa
Sandra C h am ock , aluna de E n ferm agem P siquiátrica, veio de D oncaster que ouve vozes.”

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Da importância de uma diversidade de explicações - O Congresso A criação da Rede Britânica de Ouvidores de Vozes
de Manchester sobre Escuta de Vozes, 1993
C riám os n a G rã-B retanha um a R ed e d e O u vid ores d e V o z e s (que
E ste fo i o C o n g resso m ais a m b icio so até agora realizad o. E stiv e­ in clu i p e sso a s sim p lesm en te interessad as n o assu n to) e em Setem b ro
ram p resen tes para cim a de 150 p esso a s, oriundas de tod o o país, para d e 1993 a lista d e m em b ros era já superior a 3 5 0 p esso a s. O B o letim
participar nu m a jornada em que se iria explorar um a série de diferen ­ trim estral da R ed e N a cion a l d e O u vid ores d e V o z e s (N ational H earing
tes abord agens q u e procuram ex p licar as v o z e s e ajudar as p e sso a s a V oices N etW ork Newsletter), q u e saiu p ela prim eira v e z a p ú b lico no
ch egar a um en ten d im en to co m ela s. Entre os oradores co n tavam -se O u tono d e 1 9 9 0 , é d istribu ído gratuitam ente a to d o s o s filia d o s. E ste
B o letim co n tém n o tícia s das activid ad es da R ed e, in fo rm a çõ es ú teis
esp ecia lista s em P siquiatria e P sico fa rm a co lo gia , m as tam bém apare­
e relatos p e sso a is d e ou v id o res d e v o z e s d o R ein o U n id o. E d itám os
ceram co m u n ica çõ es sobre E sp iritism o, P arap sicologia, P sic o lo g ia e
A ju da M útua. tam bém um v o lu m e d e in form ação e p u b licá m o s quatros fo lh eto s,
in clu in d o as A cta s d o I C o n g resso d e M an ch ester, um a d escrição
N as se ssõ e s de trabalho, o s participantes exploraram as ap lica çõ es sum ária da in v estig a ç ã o h o lan d esa e d o d e se n v o lv im en to da R ed e
práticas das resp ectiv as abord agens, particularm ente o u so de m ed i­
d eles.
ca çã o , o esta b e lec im en to d e redes de ajuda m útua, a u tilização de A juntar à lista d e con tacto da n o ssa R ed e, ex istem agora vários
cartas astro ló g ica s, etc. G rupos d e A ju d a M útua: o prim eiro surgiu em M an ch ester, enquanto
O p rop ósito d este C o n g resso fo i desafiar a m aneira c o m o a P siq uia­ o u tro s fo ra m s e n d o fu n d a d o s e m L o n d r e s, D o n c a ste r , O x fo rd ,
tria esp artilh ou a com p reen sã o das v o z e s, e pôr à con sid era çã o geral L iv erp o ol, H u d d ersfield , F ife, E d im b u rgo, O ld ham e G w yn ed d .
outras p ersp ectivas. C o m o d isse M arius R om m e, A R ed e B ritân ica fo i criada para ajudar o s o u v id o res d e v o z e s a
encontrar as su as próprias m aneiras d e se en ten d er c o m ela s, d em o n s­
“E um tanto ridículo pretender reduzir as nossas possibilidades de
percepção aos cinco sentidos, pretender reduzir as nossas capacida­ trando que:
des de comunicação às actividades discursivas motoras. Quem quer que - para a e x p e riê n cia d e o u vir v o z e s há várias e x p lic a ç õ e s qu e dão
alguma vez tenha amado alguém sabe isso melhor que nós. A im­ v o z a ctiv a a o s ou v id o res d e v o z e s e o s hab ilitam a v iv er d e um a
portância da percepção espiritual é a da inspiração, a de aprender a m aneira p o sitiv a co m elas;
crescer - a possibilidade de abertura para além das nossas dificulda­ - há q u em en co n tre ex p lica çã o para as v o z e s fora d o m o d elo p si­
des quotidianas. A importância da Parapsicologia reside em ter-nos q u iátrico, e d escub ra m aneiras d e lidar co m e la s sem tom ar
ensinado que a intuição e as percepções psíquicas necessitam de ve­ m ed ica m en to s;
rificação; que é necessário controlar as impressões e que é preciso - as p e sso a s q u e o u v em v o z e s p od em ser ajudadas a d esen v o lv er
treino. E claro que não nos é possível controlar todas as influências m an eiras d e lidar co m ela s, através da a d esão a gru p os d e ajuda
que se exercem sobre nós, até porque vivemos numa sociedade muito m útua - em q u e p ossam partilhar as suas ex p eriên cia s, as suas
pouco agradável em que proliferam, nas mais diversas áreas, a dis­ e x p lic a ç õ e s e o s seu s m éto d os d e lidar co m a situ ação, e p ossam
criminação, a agressividade e a injustiça. Estou em crer que é da b e n eficia r d e ap oio m útuo.
máxima importância dar voz, de forma sistemática, às pessoas que
ouvem vozes e informarmo-nos sobre todos os aspectos da sua expe­ T anto as p e sso a s qu e o u v em v o z e s co m o o s seu s fam iliares e
riência, num diálogo permanente com elas.” a m ig o s só têm a ganhar co m a d e se stig m a tiza çã o da exp eriên cia, na

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m ed id a e m q u e ela co n d u z a um m aior grau d e tolerância e de c o m ­ O s m em b ros d o G rupo têm colab orad o n o B o letim e v êm partici­
p reen sã o . E ssa d e se stig m a tiz a ç ã o p o d e c o n se g u ir -se p ro m o v en d o pando num projecto v íd eo , co n c eb id o para a p rom oção d o s asp ectos
e x p lic a ç õ e s m ais p o sitiv a s, q u e d êem às p e sso a s um a b ase d e referên ­ em jo g o na escu ta d e v o z e s, e foram à H olan d a en contrar-se co m
cia q u e lh es perm ita d e se n v o lv er as su as próprias m aneiras d e lidar representantes da F un dação R esson â n cia .
co m as v o z e s e d êem à so cied a d e em geral a p o ssib ilid a d e de aum en­
tar a sua co n scien cia liza çã o para o prob lem a.
O s n o sso s o b je ctiv o s são: Desenvolvimento da Rede
- esta b elecer um a grande rede nacion al de p esso a s que o u v em
E n q u an to g ru p o , e sta m o s a in d a na fa s e d e arranq ue, m as a
v o z e s e seu s alia d o s, d e m od o a co n seg u ir -se um a m elh or co m ­
p reen são das exp eriên cias; recep tivid ad e tem sid o m u ito en corajadora. T rabalhando d e form a
inteiram ente volu ntária, estip u lá m o s a n ós próprios o s seg u in tes o b jec­
- fundar grupos d e ajuda m útua d e o u v id o res de v o z e s, para par­ tivos:
tilhar ex p eriên cia s e discu tir estratégias d e en ten d im en to co m as 1 - O rgan izar um C o n g resso N a cio n a l em 19 92 co m esp ecia listas
v o zes; co n v id a d o s q u e se p rop onh am falar das suas p ersp ectivas sobre o
- escla recer a so cied a d e sobre o sig n ifica d o das v o z e s, d e form a fen ó m en o d e o u vir v o z e s, sejam ela s d e natureza relig io sa , extra­
a reduzir a ign orância e a ansiedade; terrestre, esp irita, m ística, p siq u iátrica, ou qualquer outra;
2 - Produzir um d ocu m en tário v íd e o sob re a escu ta d e v o z e s, d es­
- d e se n v o lv er um a gam a de p ro cesso s não m éd ico s de ajudar as
p e sso a s a lidar co m as suas v o zes; tinado ao a p o io a n o v o s gru p os, colab oran d o, na sua prod ução e
distrib u ição, co m o C o n selh o d e C o m u n ica çã o S o cia l para a Saúde
- facilitar o en con tro de o u vid ores d e v o z e s q u e nunca tenham tido M ental;
con tacto co m serv iço s de P siquiatria co m ou vid ores de v o zes 3 - A ngariar fu n d os para a con tratação d e um fu n cion ário para a
qu e se sin tam em d ificu ld ad e. sed e, em M an ch ester, co m a m issã o d e ajudar a R ed e a lidar co m o
núm ero crescen te d e so licita çõ es e p ed id o s d e inform ação. E ste pon to
é particularm ente im portante, se con sid erarm os a on d a de in teresse
O Grupo de Ajuda Mútua de Manchester que a p u b lica çã o d este livro p o d e provocar;
4 -E n v ia r n o v o s m em b ros da R ed e à H olan d a, co m o fim d e se
O seu prim eiro E ncontro tev e lugar em F evereiro de 1991. en contrarem co m m em b ros da F u n d ação R esson â n cia , em esp ecial
R eú n e m en sa lm en te e fu n cion a de um m o d o m uito inform al, in s­ para terem a oportu nidad e d e aprender m ais sob re as técn ica s u tiliza­
p iran d o-se em grup os h o la n d eses d o m esm o tipo. N essa s reu niões das p elo s gru p os h o la n d eses d e ajuda m útua e para, sem p re qu e se
particip am m ais de 30 p esso a s. O G rupo d iscu te as exp eriên cias e as rev ele adeq u ad o, d ivu lgar essa s práticas no R ein o U n id o.
teorias in d ivid u ais e p rop orciona o s m eio s para as p esso a s se ajuda­ F in alm en te, esp eram os estruturar a R ed e co m o um serv iço glob al
rem um as às outras a d ese n v o lv er m étod os d e lidar co m as v o z e s. N as de a co n selh am en to e d e in form ação para o s o u vid ores d e v o z e s e para
reu n iões participa um a en ferm eira de P siquiatria com unitária, para dar o s grupos d e ajuda m útua. E stam os m u ito an im ad os co m as p ersp ec­
a p o io e fu n cion ar co m o e lo de lig a çã o en tre o grupo de ajuda m útua tivas que se abrem co m esta m aneira d e trabalhar e esp eram os prom ovê-
e a eq u ip a d e p lan eam en to. -la e d e se n v o lv ê -la até ao lim ite das n o ssa s cap acid ad es.

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PSI*, PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA
Gerda de Bruijn
“Há vibrações ou forças no Universo que nos tocam e
nos dão um conhecimento da realidade que não pode ser
dado pelos nossos sentidos. O reconhecimento deste facto
provocaria uma revolução no seio da Psicologia.”
(Charles Richet, 1923)
As vozes de Walter
D urante o tem p o d e form ação em P sic o lo g ia Infan til, seg u i durante
d o is an os um jo v e m d escrito co m o esq u izó id e e qu e sofria d e a lu ci­
n açõ es au d itiv a s. A terapia fo i d irigid a p rin cip alm en te à m elh oria das
ap tid ões so c ia is d e s s e a d o lescen te in telig en te e reservad o, sem que,
nos p rim eiros 18 m e se s, tiv e sse algu m a v e z n otad o q u e e le o u v ia
co isa s q u e eu n ã o p u d e sse o u vir tam bém . A té qu e um d ia, nu m d os
ú ltim os m e se s da n o ssa relação terap êutica, acon teceu um ep isó d io
extraordinário.

* Em investigação parapsicológica, psi é o substantivo colectivo usado para


designar fenómenos psíquicos como a telepatia, a percepçâo extra-sensorial, a
precognição e a psicocinese (EI).
N a q u ele d ia, a m inh a en trevista co m W alter n ão esta v a a correr p o d em estar à beira d e um e p isó d io p sic ó tic o (E h ren w ald , 1977;
m u ito b em , sobretudo porq ue eu só lh e esta v a a dar parte da m inha U llm a n , 1977; W olm an , 1986; S ilverm an , 1 988).
aten ção; a outra parte esta v a centrada num a zan ga qu e eu tinha aca­ E m bora n ão p o ssa ter a certeza, creio agora qu e pod eria ter sid o
bado d e ter. N o decorrer da n o ssa co n versa, W alter fo i fican d o cada m u ito útil a W alter eu ter-lh e co n fessa d o na altura, pura e sim p les­
v e z m ais ab sorto, ch eg an d o a pon tos de parecer estar a escutar o m en te, que as palavras qu e e le ou viu corresp on d iam , p on to por p on to,
interior d e si m esm o . D e repente, v isiv elm en te perturbado, d isse-m e àq u ilo q u e eu esta v a a pensar.
qu e por detrás d o m un do real, co n creto, da n o ssa co n v ersa , havia um E m m atéria d e lin g u a g em para d escrev er e ste s in cid en tes, a m inha
m u n d o am eaçad or, d e o n d e provinham as v o z e s q u e esta v a a ouvir. p rofissã o d eix a ainda m u ito a desejar e n ã o tem h avid o qualquer
E u n ão o u v ia essa s v o z e s, m as, p ela form a co m o W alter trem ia, in v estig a çã o sistem ática n este cam p o. A P sic o lo g ia e a P siquiatria, de
era ev id en te q u e esta v a m esm o assu stado co m o q u e ou via. P assado um lad o, e a P ara p sico lo g ia, d o outro, têm d em on strad o sem p re p o u co
um b o ca d o , acab ou por m e contar o que as v o z e s lh e tinham revelado: en tu sia sm o p e lo estu d o d os ach ad os u m as das outras.
m a ld içõ es h orríveis. Para tod os aq u eles q u e estão em d ificu ld a d es d e saú d e m en tal,
E sta h istória não teria nada de esp ecia l, não fora o facto de as seria m u ito b e n éfica um a alteração d esta situ ação. T em sid o sugerid a
palavras q u e W alter ou v iu do m undo am eaçador co in cid irem textu al­ a e x istê n c ia d e um a correla çã o en tre um e stilo d e v id a a ctiv o e
m en te co m as m a ld içõ es qu e eu estava a pronunciar m en talm en te, no satisfatório e o fa cto d e o o u vid or d e v o z e s d isp or d e lin h as d e refe­
d ecu rso da n o ssa en trevista, co m a tal outra parte da m inh a atenção. rên cia p a ra p sico ló g ica e/o u esp iritu ais para interpretar as suas e x p e ­
Era c o m o se as v o z e s d e W alter tiv essem ad ivin h ad o o que eu estava riên cias (H eery, 1 989). N a esp eran ça d e alargar a d iscu ssã o destas
a pensar em silên cio . F iq u ei sem fala. p ersp ectiv a s, procura-se apresentar n este cap ítu lo um resu m o h istó ­
N ã o d isse ao m eu orientador de form ação q u e W alter tinha tido rico da relação entre o s fen ó m en o s p si, a P sic o lo g ia e a P siquiatria.
a lu cin a çõ es n e sse dia. N em sequ er tentei ex p lica r o q u e realm ente se
tinha passado: não tinha palavras para d escrev er a ex p eriên cia — em
b oa verd ad e, o vocab u lário da m inha p rofissã o tam bém não tem - e, As antigas crenças
além d isso , tinha receio de falar no assunto.
Isto p a sso u -se já lá v ã o vin te anos. M uito em b ora este ep isó d io A n tes d o n ascim en to da P sic o lo g ia e da P siquiatria, as ex p eriên ­
nu nca tiv e sse sid o m en cion ad o durante a m inha form ação, sei hoje cia s p síq u ica s e m ística s eram um e lem en to m u ito fam iliar na c o m ­
qu e estes in cid en tes rem in iscen tes p si foram já d escritos por outros p reen são q u e m uitas so cied a d es tinham da h u m anidad e e da saúde
p sicoterap eu tas. m en tal. N as so cied a d es p oliteístas e p an teístas pré-cristãs era vu lgar­
R ela to s sem elh a n tes revelam várias coisas: qu e o s seu s autores m en te a ceite qu e a vid a interior d e um a p e sso a p od ia dar a cesso àq u ilo
m uitas v e z e s p en sam q u e e s s e s ep isó d io s corresp on d em a inform ação q u e se con sid era o d iv in o , e a m ilagres d o g én ero das transferências
qu e o terapeuta está a suprim ir da sua c o n sciên cia ou, en tão, que essa in ex p licá v eis d e co n h ecim en to ou d e en erg ia curadora. T êm sid o
in form ação é tão sig n ifica tiv a d o ponto de vista p esso a l que o terapeuta en con trad os v e stíg io s d essa s cren ças n as an tigas culturas greg a e
se sen te atin gid o na m o uch e ; que tais e p isó d io s são m ais frequentes e g íp cia , assim co m o no g n o sticism o d o s p rim eiros tem p os cristãos.
quando e x iste um a transferência p o sitiva m uito forte e o terapeuta não S ócrates adm itia qu e a sua v id a era d irigid a p e lo seu anjo, um a v o z
está totalm en te d isp o n ív el para o p acien te, ou quando o contacto d e sabed oria q u e e le n ão ex p erien cia v a c o m o um asp ecto d o seu
terap êutico está a ch egar ao fim ; e que e s s e tip o d e in cid en tes é próprio p en sam en to. E le sab ia tam b ém q u e a p ercep ção clarivid en te,
particu larm ente frequente entre pacien tes cu jo d ia g n ó stico sugere que clariau d ien te, cla rissen sitiv a , etc., p od eria co ex istir co m a loucura: ou

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" 11 | •<>i m uras palavras, q u e um a p e sso a em brenhada n essa s percep- outras p esso a s. D e ix o ao ju lg a m en to d os leitores a q u estão d e saber
l u a , co m p reen siv elm en te, m al-ajustada às ex ig ê n c ia s esp a ço - se as rev ela çõ es d e sses fu n d ad ores d e relig iã o são testem u n h o d e
im nporais da rotina qu otidiana — co m o era o ca so , por ex em p lo , das sanidade ou de lou cu ra, sem esq u ecer q u e, por v e z e s, o s co n tem p o ­
sacerd otisas d e D e lfo s e D o d o n a . Para S ócrates, este tipo de loucura râneos de Jesus o tom aram por p o sse sso . P orém , n aq u elas partes d o
era de origem divina. m undo on d e viriam a p redom inar estas r elig iõ es m on o teísta s, e apesar
O s rituais seg u id o s n os T em p lo s d os M istérios da G récia e do das p e rseg u içõ es, so b rev iv eu a id eia d e qu e é p o ssív e l en contrar o
E gip to su gerem que as p e sso a s d e ssa ép o c a recon h eciam , naquilo a d iv in o n o interior da c o n sc iê n c ia hum ana e , através d e le, en contrar
qu e h oje ch am am os su b co n scien te hu m an o, a presen ça de um certo oportunidades d e ev o lu ç ã o . E sta n o çã o tem sid o d ifu n d id a qu er por
co n h ecim en to e pod er cu rativos, em b ora interpretassem essa s p o ten ­ in d iv íd u o s iso la d o s quer por gru p os, co m o é o ca so d o s S u fis n o
cialid a d es num a p ersp ectiva m a is esp iritu al, religiosa. m un do islâ m ico , d os C ab alistas n o m u n d o ju d a ico e - sem falar d o s
D ep o is d e preparada, por m eio d e um ritual de p u rificação, a G n ó stic o s d os prim eiros tem p o s - d os R o sa-cru cia n o s, M a ço n s e
p e sso a d o en te era visitad a em so n h o s p e lo espírito de um m éd ico -d eu s Q uakers d os p a íses cristãos.
(h ab itualm ente, A sclep iu s para o s G regos e Im hotep para o s E gíp cios); A s p e r se g u iç õ e s foram p articu larm en te v io le n ta s con tra to d o s
este curador d iv in o curava o p a cien te toca n d o -o durante o sonh o ou a q u eles q u e se ju lg a v a praticarem a feitiça ria, a a d ivin h ação e a
ex p lica v a q u e tipo de p roced im en to era p reciso praticar para que se n ecrom an cia*. A té ao ap arecim en to da P sic o lo g ia e da P siq uiatria, era
d e sse a cura. S egu n d o algu m as fo n tes, o s tex to s d os papiros eg íp cio s a Igreja que ch am ava a si o d ireito d e cla ssifica r e ju lgar e s s e s in d i­
revelam ainda o con h ecim en to de determ inadas técn icas transcendentais v íd u o s, segu n d o 4 categ o ria s d ia g n ó stica s principais: santidad e, p o s ­
d e con cen tração m ental. sessã o , heresia e b ruxaria**. Joana d ’A rc, q u e o u v ia v o z e s, m orreu na
D o m esm o m od o, as re lig iõ e s orientais reuniram co n h ecim en tos
sobre o sofrim en to hum ano e sobre a form a co m o e sse sofrim ento se * Feitiçaria abrange um conjunto daquilo a que hoje podemos chamar medicina
poderia curar partindo d o interior d o in d ivíd u o. O s a forism os yoga de popular, sugestão e psicocinese. A clarividência e a precognição seriam os equiva­
Patanjali, form u lados p rovavelm en te n o sécu lo II, con stitu em um a lentes modernos da adivinhação. A necromancia seria semelhante ao que hoje cha­
in esg o tá vel fo n te de in form ação sobre as d im en sõ es p síq u ica e esp i­ mamos espiritismo (EI).
ritual da ex istên cia hum ana. Patanjali d efin e o yoga co m o o controle ** A glória da canonização era concedida a indivíduos piedosos que não só não
representavam qualquer ameaça para a autoridade da Igreja como podiam até servir
das ond as d e p en sam en to da m en te ou , segu n d o outra tradução, a para lhe aumentar o prestígio; consequentemente, os santos tinham a liberdade de
restrição das flu tu a çõ es d o co n teú d o da m en te - um a e sp é c ie de fazer o mesmíssimo tipo de milagres pelos quais outras pessoas eram perseguidas.
ciên cia da saúd e m en tal. O o b je ctiv o do con trole das ond as de p en ­ O estado de possessão, segundo o Rituale Exorcistarum, podia ser caracterizado
sam en to é a c o n sciên cia d e (e a com u n h ão co m ) a d ivin d ad e presente por: dizer ou compreender palavras numa língua estranha, sem a ter aprendido; ter
n os seres hu m anos e em tod os o s a sp ectos da criação: a obtenção informação de coisas distantes ou secretas (podendo incluir a precognição); demons­
d essa co n sciên cia traz o sam ad hi - o fim do sofrim en to. U m dos oito
trar um vigor antinatural. Supunha-se que todos estes prodígios se deviam a uma
relação forçada, isto é, não desejada, com o Diabo; por isso, a possessão era con­
ram os do yog a, a concentração, dá a cesso aos sid hi - aqu ilo a que siderada uma doença, que podia ser curada por meio de exorcismos e pela oração.
p o d em o s ch am ar pod eres p síq u ico s. Patanjali dá-n os um a descrição As categorias heresia e bruxaria não se excluíam mutuamente. Tanto os hereges
dos sidhi, m as adverte que se trata d e pod eres em estad o profano, como as bruxas podiam ser condenados à morte. A heresia consistia em proclamar
portanto, ob stácu los ao sam adhi. uma fé em desacordo com a doutrina da Igreja; essa fé podia basear-se em milagres,
M o isés, Jesu s e M aom é, fu n d ad ores das três relig iõ es m onoteístas
mas podia igualmente inspirar-se na percepção sensorial e cognitiva. A bruxaria
podia caracterizar-se por adivinhação e feitiçaria; porém, os prodígios operados eram
ocid en tais, tod os e le s o u v ia m v o z e s q u e não estavam ao alcan ce das atribuídos, neste caso, a um pacto voluntário com o Diabo (EI).

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fo gu eira em 1431; as autoridades tentaram , até ao ú ltim o m o m en to , M esm er exp u n h a a sua cren ça na ex istên cia d e um flu id o sub til e
fa zê-la co n fessa r q u e as v o z e s d e santos, que ela d izia ou vir, não eram im p on d erável q u e im pregn a tod o o U n iv erso e q u e, por isso , se rela­
reais - m as na verd ad e essa s v o z e s eram reais para ela . P or v o lta de cio n a co m tudo o q u e e x iste (p lan etas, p lantas, seres h u m an os). A cre-
1600, B runo m orre tam bém na fogu eira por ter afirm ado que o s seres d ita v a -se q u e, n o s seres h u m an os, esta co n ex ã o co m o flu id o u n iversal
h u m an os têm ca p acid ad es d ivin as, por isso m ágicas, q u e p od em d e s­ se dava n o interior do sistem a n ervoso: a d o en ça seria cau sad a p elas
cob rir-se por m eio d o treino da m em ória. C erca do ano 17 00 , G ich tel p o ssív e is ob stru çõ es ao flu x o e reflu xo d e sse flu id o através do corp o.
p rop agou id eias sem elh a n tes na A lem an h a, m as o seu c a stig o n ão fo i A m a g n etiza çã o , ao ex ercer in flu ên cia na circu la çã o d e sse flu id o no
além d e ter sid o ex p o sto no p elou rin h o, ex ila d o e ex p u lso da p rofissão interior d o co rp o, pod eria, segu n d o M esm er, curar d irectam en te as
d e ad vogad o. C inq uen ta anos m ais tarde, S w ed en b org* ex p ô s as m es­ d o en ça s n ervosas e , ind irectam en te, outras q u eix as.
m as id eias, sem ter co m isso prejudicado a sua carreira p o lític a - não U m d os d iscíp u lo s d e M esm er, d e P u ységu r, a ssin alo u a im portân­
sem um certo grau de su sp eiçã o p ú b lica por cau sa das v o z e s que cia da von tad e e da fé n o p ro cesso d e m a g n etiza çã o e, ainda, d os
ou via. Por esta ép o ca , a S o cied a d e O cid ental estava a ca m in h o do esta d o s de transe q u e algu n s in d ivíd u os m a g n etiza d o s ex ib em .
n ascim en to da P s ic o lo g ia e da P siquiatria. N e sse tipo d e transe, o s p acien tes p od iam p or v e z e s experim entar
in cid en tes sem elh a n tes aos fen ó m en o s psi: por e x e m p lo , ser ca p azes
de d escrev er a natureza da sua própria d o en ça e p rescrever o s rem é­
O despertar das humanidades: o magnetismo d ios e as atitud es cap azes d e proporcionar a cura - tal e qual co m o
n o s r e la to s d o s r itu a is s e g u id o s n o s T e m p lo s d o s M is té r io s
N o s p rin cíp ios do sécu lo XIX, M esm er, m éd ico v ien o -p a risien se,
m ed iterrânicos. F o i este tip o d e transe m a g n ético q u e se difu nd iu
procurava ajudar o s seu s p acien tes m ais n erv oso s u tilizan d o aq u ilo a
particularm ente na H olan d a e na A lem an h a. N e ste s p a íses, o transe
qu e ch am ava m a g n etism o . M esm er en carava esta terapia co m um a
m ag n ético fo i d escrito co m o um p rocesso por etapas: in icialm en te, a
atitude p rov a v elm en te p o u co vulgar para a época: le v a v a a sério as
d escriçõ es d os seu s p a cien tes sobre aqu ilo que sen tiam dentro dos aten ção con cen trad a na p ercep ção sen sorial vu lgar torn a-se m ais lim i­
seu s corp os** - o q u e resu ltou num a série de p r o p o siçõ es em que tada; a p e sso a p o d e ficar in sen sív el à dor físic a e tornar-se m u ito
su g estio n á v el - fica n d o , por ex em p lo , m ais su scep tív el a qu e lh e
induzam a lu cin a çõ es através da su gestão. P o d e d ar-se um au m en to da
* Sobre as ideias e experiências interiores de Emanuel Swedenborg, ver Jorge clareza interior, qu e perm ita ao p acien te perscrutar tod o o seu corp o
Luiz Borges (s/d, pp. 47-59). e saber o q u e lh e poderá prop orcionar a cura; p o d em tam b ém ocorrer
** Mesmer relata que um dos seus primeiros pacientes sentia um fluxo subtil, fen ó m en o s telep á tico s, in icialm en te lim itad os às p e sso a s do círcu lo
quase doloroso, que irradiava iniçialmente em todas as direcções no interior do relacion al p róx im o do p acien te. P or fim , p od e d ar-se um a entrada em
abdómen e que depois, subitamente, se dirigia para ambos os pés. Aqueles que têm transe, q u e dá a c e sso à clareza u n iversal - um estad o d e p ercep ção
treino nas modernas psicoterapias orientadas para o corpo reconhecem aí a chamada
“ligação à terra”. Na época de Mesmer, contudo, o clima social e científico era muito sem lim ites d e tem p o n em d e esp a ço que o in d iv íd u o p o d e exp eren ciar
desfavorável ao reconhecimento dessas experiências. Os historiadores estão em geral c o m o um esta d o d e êx ta se. E stes estad os fin a is d e êx ta se são raros:
de acordo que o período de 1500 a 1800 se caracterizou por um progressivo retrai­ um tex to d e 1815 ca lcu la q u e a clareza u n iversal e o êx ta se ocorrem
mento da experiência física e táctil, incluindo a sexualidade, e que a voz das mu­ apenas num a em cada 100 p esso a s em transe m a g n ético . O s estad os
lheres (que tendem a ser mais sensitivas do que os homens em relação às experiên­ de transe d escritos por e s s e s autores m ostram um a im p ression an te
cias corporais internas) foi progressivamente silenciada e as suas oportunidades
educativas foram cada vez menores durante esse período (EI). sem elh a n ça co m os sutras yog a de Patanjali (q u e na ép o c a ainda não

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esta v a m trad u zid os), sem elh an ças q u e m u ito d ificilm e n te se p od em F ech n er é h o je p or m u itos co n sid era d o o fundador da P sico lo g ia .
atribuir a um a m era co in cid ên cia . D ep o is de ter p assad o por um a crise p esso a l, d e se n v o lv eu um a v isã o
N a altura em que M esm er e de P u y ség u r in iciavam as suas práti­ panteísta da realid ad e qu e en g lo b a v a o s fen ó m en o s paranorm ais e as
ca s, a In q u isição esta v a a ex tin g u ir-se em França, e na H oland a aca­ ex p eriên cia s esp iritas. E le acred itava q u e a c o n sciên cia in d ivid u al está
bava d e ocorrer o ú ltim o p ro cesso de bruxaria. E m parte, a excitação em lig a çã o co m um a alm a u n iversal q u e se ex p an d e através do esp a ço
p rovocad a p or esta s duas in flu en tes figuras resid ia em prom overem e e d o tem p o. E sta é um a c o n c ep çã o m u ito sem elh an te à d e Patanjali
praticarem técn ica s h eréticas eq u iv alen tes a bruxaria. C ircularam por e que viria a ser partilhada p or algu n s filó so fo s do sécu lo XIX e, p elo
toda a cid ad e d e Paris caricaturas que rep resen tavam os m agnetizadores m en os, por d o is d o s p rim eiros p sic ó lo g o s: o h olan d ês H eym an s e o
m o n tad os em vassou ras. A In q u isição de R om a não abriu m ão dos fa m o so W illia m Jam es, para q u em (Jam es, 1909):
seu s p rin cíp ios e con d en ou o m ag n etism o até 1840.
E sta ép o c a ex cita n te é v ista agora por m u itos co m o o berço das “[...] uma conclusão se destaca dogmaticamente: existe um continuum
h u m an id ad es e da p sicoterap ia. A lg o de m u ito im portante tinha a con ­ de consciência cósmica em que mergulham as nossas mentes colectivas,
tecid o: M esm er, em n o m e d o d e se n v o lv im en to das p ro fissõ es m éd i­ como num reservatório ou mar maternos. A nossa consciência normal
está limitada pela adaptação ao nosso meio exterior terrestre, mas o
ca s, reinvidicara a autoridade para d efin ir a saúd e m en tal, arrebatando casco de protecção tem pontos fracos por onde irrompem, de vez em
ao clero essa prerrogativa tradicional. E llen b erger (1 9 7 0 ) escrev eu um quando e subitamente, influências vindas do além, mostrando uma
b elo rom an ce h istórico (A D escoberta do Inconsciente), em que d es­ interconexão de que, de outro modo, se não poderia ter prova.”
cre v e o d e se n v o lv im en to do co n c eito d e in co n scien te a partir de aco n ­
tecim en to s da época; dem onstra o crescen te recon h ecim en to da influên­ U m d os p io n eiro s da P siq u iatria P sico d in â m ica , o fran cês Pierre
cia p ela su g estã o e da im portância da relação entre curador e p acien te, Janet, d e se n v o lv e u um a tese idêntica: acred itava que tudo o que a l­
e d e q u e m an eira tu do is s o viria a d e se m b o ca r n o c o n c e ito de gum a v ez tiv e sse ex istid o co n tin u ava a existir, num a form a e num
p sicoterap ia, n o virar d o sécu lo . M as, algu res para cá de 1830, per­ plano tais q u e estã o para a lém da co m p reen sã o hum ana; acreditava
d eram -se algu n s elem en to s im portantes: a arte da m agn etização e os
qu e, um dia, seria p o ssív e l ao H o m em estudar H istória através d este
ch am ad os m ilagres em estad o de transe. P or vo lta d e 1900, estes
a ssu n tos foram desterrados para o s d o m ín io s da P arap sicologia.
continuum . N o en tan to, na su a obra n ão há m uita c o isa que faça
lem brar a cren ça em qu e a c o n sc iê n c ia hum ana - ou o in co n scien te -
seja um sistem a aberto, lig a d o a um tod o m ais vasto.
A separação dos caminhos (1830-1900) D urante um cu rto p eríod o, q u an d o era ainda filó so fo , P ierre Janet
d e d ico u -se a ex p eriên cia s d e su g estã o à d istân cia co m um a m ulher
N o sécu lo XIX d e u -se um im portante aum en to de interesse p elos saud ável* (para outros tratar-se-ia d e su g estã o telep ática), m as, em
m éto d o s pop ulares de cura e con h eceram um a en orm e v o g a alguns geral, e le in teressa v a -se m ais por trabalhar co m p esso a s tidas co m o
d e se n v o lv im en to s h istó rico s directos d o m o v im en to in icial do m agn e­ m en talm en te d o en tes. P or isso , Janet c o m e ç o u a estudar M ed icin a e
tism o: para citar apenas três, o esp iritism o , o recém -criad o M ovim en to torn ou -se um terapeuta d otad o, a q u em d e v e m o s m uita da m oderna
d a C iên cia C ristã e as in v estig a ç õ e s sobre as auras, con d u zid as p elo co m p reen são d e co m o p od e um in d iv íd u o sofrer c isõ e s dentro da sua
q u ím ico alem ão R eich en b ach .
U m d os a m ig o s de R eich en b a ch , o fís ic o e filó so fo F echner, aper­ * Essas experiências foram também reunidas por Richet (1923), que participou
ceb eu -se, por v e z e s, de auras que ele caracterizava com o corpos etéreos. em algumas delas (EI).

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p erson alid ad e e d e que m aneira p od em as in flu ên cia s por su g estã o prestar aos p a cien tes, em b ora a c o n sciên cia (p osta já d e lad o a c o n s­
ajudar a restab elecer o co n tacto entre as partes separadas. ciên cia có sm ic a ) p arecesse, d e m om en to, co m p leta m en te afastad a da
P or esta altura, ainda e le n ão tinha c o lo c a d o a qu estão de saber se P sico lo g ia . A P a ra p sico lo g ia m an teve, por algu m tem p o ain da, um a
a extrem a sen sitivid ad e q u e en contrava em certos in d ivíd u os (co m o certa lig a çã o às p r o fissõ es d e prestação d e cu id ad os, através d os e s ­
a sen sib ilid a d e à su g estã o à distân cia) lh es p od eria aum entar a v u ln e­ fo rço s de M yers, H y slo p e P rince, n o sen tid o d e com p reen d erem as
rab ilid ad e à d o en ça m en tal n em procurava saber co m o p od eriam essa s p o ssív e is c o n e x õ e s entre o s fen ó m en o s d e tip o p si e a d o en ça m ental
p e sso a s p roteger-se das im p ressõ es in d esejá v eis. P orém , acred itava - em particular a d esin tegração da p erson alid ad e. P or v o lta d e 1925,
q u e a m a ssa g em p od eria ser um a terapia com p lem en tar útil quando porém , essa lig a çã o p erd eu -se e a P a rap sicologia fico u red u zid a à
as d ificu ld ad es p sic o ló g ic a s se reflectem em esp a sm o s m u scu lares - in v estig ação d e lab oratório co m cartas e d ad os.
qu e atribuía a em o ç õ e s co n g ela d a s. Para e le , a relig iã o era a lg o cap az T end o em v ista a in tegração d os d o is rein o s, a lin h a d e exp lo ra çã o
d e fortalecer o m oral e a m oral de um a p e sso a , em bora p en sa sse que m ais prom issora ta lv ez tenha sid o a prop orcionada p e la P siquiatria
a relig iã o ta lv ez fo sse irreco n ciliá vel co m um a abordagem m ais c ie n ­ P sicod in âm ica. É certo q u e para Freud o fen ó m en o da relig iã o se
tífica da realidade. p od ia exp licar satisfatoriam en te c o m o a fé n aq u ilo qu e se d eseja que
N o m esm o ano em q u e P ierre Janet escrev ia sobre su g estã o à seja verdade: e le acred itava qu e o desam p aro hu m an o origin av a a
d istân cia, um grupo d e e stu d io so s de O xford pu b licava um a in v esti­ n ecessid ad e d e um pai forte.
g a çã o m u ito m ais alargada sob re o s fen ó m en o s de tipo p si (G urney O s a sp ectos rela cio n a d o s co m a P a ra p sico lo g ia foram , p orém ,
M yers et al., 1 886). D escrev eram cerca de 7 0 0 ca so s de telep atia centrais na relação entre Freud e Jung, assim co m o na ruptura entre
espon tânea e experim ental, em que algum a da inform ação fora forn ecida o s d o is. É bem c o n h ecid o o ap elo d e Freud a Jung para q u e este se
por figuras cim eiras da h istória da h ip n o se, co m o L ibault, E llio tso n , não p erd esse n o lam açal d o o cu ltism o . Já m en os c o n h ecid o é o facto
E sd a ile e R ich et. O s resu ltad os desta in v estig ação su gerem qu e a de Freud, p o u co tem p o d ep o is d e ter feito esta ad vertên cia a Jung, se
telep atia esp on tân ea é m ais freq uente entre in d ivíd u os que partilham ter tornado m em b ro da S o cied a d e para a In v estig ação P síq u ica * e se
um a lig a çã o em o cio n a l e q u and o o receptor da in form ação está rela­ ter m antido m em b ro d ela até m orrer. N as duas ú ltim as d éca d a s da sua
xad o, estan d o o em isso r agitad o ou em p erigo. vid a, Freud to m o u -se cad a v e z m ais sim p atizan te da h ip ó tese da te­
P essoa lm en te, acred ito q u e este é um dado sig n ifica tiv o para tod os lepatia co m o fen ó m en o p o ssív e l n o decorrer da an álise, m u ito em bora
o s qu e se en contram p ro fissio n a lm en te en v o lv id o s co m p e sso a s em tenha acon selh a d o o seu ú ltim o b iógrafo (Jon es, 1 957) a m in im izar
d ificu ld ad e. essa esp ecu la çã o .
A o lon g o d este p eríod o, em b ora co m in teresses d iv erg en tes, a
P sico lo g ia e a P siq uiatria tinham um a c o isa em co m u m - um a v isã o
Reinos separados (1900-1950) analítica, m ecan icista e algo determ inista do d esen v o lv im en to hum ano:
o s problem as d o p resen te são h ab itu alm en te interpretados c o m o c o n ­
N a prim eira m etade do sécu lo XX, as prin cipais p reocu p a çõ es da seq u ên cias de d e fic ien tes p r o c esso s d e ap ren d izagem e/o u d e traum as
P sico lo g ia cen travam -se na percep ção sen sorial e na teoria da apren­ p sico ló g ico s in co n scien tes, algures na infân cia. E m co n seq u ên cia d este
d iza g em . E sta últim a fo i a q u e m ais tardiam ente revelou algu m a uti­
lid ad e para a com p reen sã o das rela çõ es terapêuticas e d os cu id a d o s a * “Psíquica” no sentido de “mental”, “mediúnica”.

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p reco n ceito , q u ase se perdeu um a verdade im portante: que as forças A integração: o desafio actual
in tegrativas e autocurativas se pod em encontrar n o m om en to presente
e, até, n o in co n scien te d o pacien te. Jung (1 9 6 3 ), M aeder (1 9 4 9 ) e A partir d o fim d a II G uerra M un dial, tem -se dad o um a anim adora
A ssa g io li (1 9 6 5 ), cada qual p ela sua própria via, realçaram a presença fecu n d a çã o m ú tu a en tre as d iversas teorias e terapias da P sic o lo g ia e
d estas forças criativas em p e sso a s que exp erim en tam sofrim ento p sí­ da P siq uiatria. U m a terceira força h u m a n ística introduziu o co n ceito
qu ico; cad a um d eles adm itia um in co n scien te m ais ou m en os aberto, d e a u to -reg u la çã o orgân ica, ajudando d e sse m o d o a restab elecer um a
na lin ha das id eia s anteriores de F echner, H eym an s e Jam es. N ão d eve v isã o m a is cria tiv a d a co n sc iê n c ia e d o in co n scien te. F oi um p eríod o
ser m era c o in cid ê n cia q u e tanto Jung co m o M aeder e A ssa g io li te­ em que n ó s, n o O c id en te, fo m o s ob rigad os a abandonar a arrogância
nh am fe ito parte da sua form a çã o co m B leu le r, n o H osp ital de c o lo n ia l e a ap ren d er a reavaliar as trad ições esp iritu ais do O riente
B u rg h õ lzli. D e fa cto , B leu ler era geralm ente c o n h ecid o co m o um dos - co m a sua p rofu n d a sab ed oria p sic o ló g ic a - e a recon h ecer o s fac-
p o u co s p siq u iatras ca p a zes de estab elecer rela çõ es terapeuticam ente tores co m u n s a o s rituais d e cura do T erceiro M un do, à cura p síq u ica
b en éfica s c o m p acien tes em p sico se. e à p sico tera p ia .
Ju n g a cred ita v a q u e o s a rq u étip os (q u e p o d em ap arecer nos Isto daria o rig em à actual retom a das práticas associadas aos m étod os
fen ó m en o s d e tipo p si) em erg em do in co n scien te c o le c tiv o com p op u lares d e cu ra, c o m p e lo m en os d u as características salien tes: a
m ais in cid ê n cia durante o s p eríod os p sic ó tic o s. M aeder esforçou - u tiliza çã o de té c n ic a s corp orais em p rob lem as d e saúd e m en tal e o
-se por encontrar o m od o e a im agem arcaica curadores próprios de treino c o n sc ie n te d e várias p o ssív e is p e rcep çõ es da realid ad e - a sp ec­
cada p a cien te - a lg o q u e e le com parava ao daim on de Sócrates. E le to s q u e a P s ic o lo g ia e a P siq uiatria tinh am tentado pôr d e lad o no
acred itava q u e a adequada u tilização d essa im ag em -gu ia poderia re­ p eríod o d o m a g n etism o . H oje ex iste um im portante corp o d e co n h e­
duzir em m u ito o tem p o n ecessário à cura e fe c tiv a em psicoterapia.
c im e n to s sob re m ed ita çã o e quer os terap eutas quer o s p acien tes têm
Jung e M aed er eram am b os d e opinião q u e o s so n h os d os p acien tes
v in d o a fazer a lg u m a in v estig a çã o sob re o s seu s p o ssív e is p od eres
pod eriam trazer rev ela çõ es de um saber cu rativo e, por v e z e s, pré-
cu ra tiv o s (S h ap iro e W alsh , 1984; K w e e , 1990). O s p ara p sicó lo g os
-c o g n iç õ e s e p ercep çõ es telep áticas - n o çõ es fortem en te rem iniscen tes
o b tiv era m o seu reco n h ecim en to cie n tífic o p ela A sso cia çã o A m erican a
d o s T e m p lo s d o s M is té r io s da A n tig u id a d e e d a s d e s c r iç õ e s
oitocen tista s do transe profundo. para o P rogresso d a C iên cia (Am erican A ssociation fo r the A dvancem ent
A ssa g io li d em on strou um a grande sen sib ilid a d e n o seu trabalho o f Science), e m 1969.
terap êu tico co m sím b o lo s curadores e co m as p rojecçõ es que os pa­ N o en ta n to , su b siste a n e cessid a d e d e p rossegu ir as in v estig a ç õ e s
cien tes, a partir das instâncias m ais elev a d a s d o E u, fa zem para os em áreas co m u n s à S aú d e M ental e à P arap sicologia: em virtude da
seu s p sicoterap eu tas, d eu ses e am antes. Já em 1930 A ssa g io li escrevia v elh a c isã o en tre as duas d iscip lin a s, há q u estõ es qu e têm sid o m uito
sobre o d e se n v o lv im en to espiritual e as d oen ça s (m en tais) que lhe n e g lig e n c ia d a s p e lo s in v estig ad o res, m as q u e pod erão vir a ser de
estão a sso cia d a s. Para ele , era p reciso ser-se extrem am en te cau telo so grande relev â n cia para a co m p reen sã o e tratam ento d e certos p rob le­
e hábil ao tentar penetrar n o in con scien te d e p acien tes que m ostrem m as d e saú d e m en tal.
p ossu ir algu m a sen sib ilid a d e telepática; e advertia que o in con scien te P recisa m o s d e in vestigar, por exem p lo:
d essa s p e sso a s p o d e conter inform ação q u e não d iga resp eito à h is­ - se e de q u e m an eira um a sen sitiv id a d e p síq u ica (co n scien te ou
tória d elas e q u e, portanto, a revelação d essa inform ação pod e ser outra) e um a d im en sã o esp iritu al ou tran scen d en te p od em contribuir
disru ptiva para o seu sen tid o p esso a l de identidade. para a co n fu sã o p s ic o ló g ic a ou para a p sico p a to lo gia ;

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- se um traum a p sic o ló g ic o p o d e despertar um a sen sitivid ad e p sí­
qu ica*;
- se a q u eles q u e se d iz p ossu írem essa sen sitivid ad e e/o u as p es­
so as treinadas num a d iscip lin a espiritu al p o d em ser úteis às p esso a s
q u e atravessam prob lem as de saúd e m ental;
- se a prática de um a d iscip lin a esp iritu al e/o u as abordagens m ais
sub tis do tip o co rp o-en ergético (in clu in d o as técn icas de ajuda m útua)
p o d em ser ú teis ao resta b elecim en to d o eq u ilíb rio m ental.

O co n h ecim en to p esso a l e a co m p reen sã o das p esso a s que ou vem


v o z e s é in d isp en sá v el para este p r o c esso , e este livro con tém um a
vasta gam a d essa s ex p eriên cia s. E x iste um a grande d iferen ça entre
ou v ir um a v o z o p ressiv a q u e p rofere m en sa g en s am eaçadoras ou 5
inju riosas e ou v ir um a v o z que prop orcion a in form ação útil e que
p o d e ter um a in flu ên cia p o sitiv a na vid a da p e sso a que a ou ve. DISCORRENDO SOBRE VOZES
N o m ín im o , na F un dação R esso n â n cia fo i dada um a im portante
oportu nidad e a tod os aq u eles que se sen tem co n fu so s por causa das Sandra Escher
v o z e s que ou vem : o s m eio s para com partilharem abertam ente essa s
v o z e s. D e se jo encerrar e ste C ap ítu lo co m um a m en sagem : n ovas
oportu nidad es poderão ainda surgir para to d o s o s que se sen tem per­ A discussão necessária
turbados p elas suas v o zes; na F un dação R esson â n cia esta m o s abertos
à d iscu ssã o , o m ais alargada p o ssív e l, das exp eriên cia s que dizem A s p e sso a s q u e o u v em v o z e s sen tem -se forçad as a lidar co m um
resp eito ao tran scendente, ao ch am ad o “p síq u ico ” e ao espiritual. N o outro m u n d o q u e as p o d e su b ju gar e lh es m o n o p o liza a aten ção
p ro cesso d e partilha d e in form ação sob re as n ossas ex p eriên cia s, a em prejuízo d e tudo o resto, da m esm a form a qu e tod os n ós, d e v e z
atm osfera d e abertura p od e vir a trazer d escob ertas surpreendentes. O s em quando, n o s sen tim o s op rim id o s por um a em o çã o vio len ta . E m
p sic ó lo g o s e o s psiquiatras p od em vir a aprender m uito co m o co n h e­ co n seq u ên cia d isso , a cap acid ad e da razão p od e ficar, p e lo m en os de
cim en to p esso a l d os seu s p acien tes — e iss o já aco n teceu outrora, aliás. in ício , virtu alm en te extin ta, to m a n d o im p o ssív el um a vid a qu otidiana
livre da perturbação cau sad a por e ssa ex p eriên cia tão in ten sa e tão
d escon certan te.
N o s ú ltim os an os, ao lo n g o das n o ssa s m uitas en trevistas e d iscu s­
sõ es co m o u v id o res d e v o z e s , ficá m o s im p ression ad os co m a c o n v ic ­
çã o nítida d e q u e a d iscu ssã o aberta co m outras p e sso a s qu e o u v em
v o z e s prop orcion a um d o s m a is im portantes p ro cesso s de introduzir
* Hipótese formulada incialmente por Ferenczi, nos anos 30. Ver Masson (1984), algu m a ordem na ten tativa d e ch egar a um en ten d im en to co m essa s
pp. 184, 283-295 (EI). ex p eriên cia s.

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E m esp ecia l, con statám os que a com u n ica çã o ajudou im en so m uitas Identificar padrões de comportamento das vozes
p e sso a s a aceitar as suas v o z e s e qu e, em co n seq u ên cia d isso , a sua
au tocon fian ça aum en tou m u ito, fa zen d o co m que se lib ertassem do A s p e sso a s qu e o u v em v o z e s d izem q u e é m u ito im portante para
iso la m en to e a u m en tassem o seu sen tid o de en v o lv im en to co m aqu e­ ela s ser ca p a zes d e falar das v o z e s co m o se fala, por e x em p lo , de
les q u e as rodeiam . fam iliares p o u co sim p á ticos. D urante o p rocesso d e d iscu ssã o , é p o s­
In felizm en te e co m d em asiad a freq u ên cia, o s ou v id o res d e v o ­ sív el aprender a recon h ecer o s jo g o s e o s truques das v o z e s , assim
z e s d ep aram -se co m o em b araço e o receio d os seu s fa m iliares e co m o o s seu s a sp ecto s m ais agrad áveis, e a id en tificar pad rões e sp e ­
a m ig o s em ou vir falar d essa s ex p eriên cia s - o qu e, às v e z e s , tom a c ífic o s de determ in ad as situ a çõ es. E ste co n h ecim en to p o d e ajudar o
im p o ssív el encontrar a lg u ém interessad o em saber o qu e as v o z e s ouvidor de v o z e s a estar m ais b em preparado para qu alq uer even tu al
n ova in v estid a das v o z e s. U m a senh ora d e 35 an os, internada freq u en ­
d izem ou d eix a m d e dizer. M esm o quando algu ém está preparado
tem en te n o h osp ital p siq u iátrico, com entava:
para ouvir, o fen ó m en o é tão fora d o vulgar que p od e ser m uito
d ifícil fa z ê -lo com p reen d er por algu ém que não esteja d evid am en te “As questões que as pessoas puseram fizeram-me reflectir sobre as
fam iliarizado com essa s experiências. U m a so lu ção prática para estes vozes que oiço - assunto em que eu nunca tinha realmente pensado.
p rob lem a s é a c o m u n ic a ç ã o m útua en tre o u v id o res d e v o z e s . A Fiquei surpreendida ao descobrir um padrão: sempre que penso nega­
partilha d e ex p eriên cia s sem elh a n tes num a lin g u a g em co m u m o fe ­ tivamente dou comigo a ouvir uma voz negativa.”
rece aos o u vid ores de v o z e s reais oportunidades de particip ação e
d e aprend izagem . Esbater a ansiedade
Porque esta é um a área extrem am en te im portante, d ed icá m o s todo
este cap ítu lo aos resu ltad os p o sitiv o s d essa co m u n ica çã o , tal co m o A s p e sso a s qu e o u v em v o z e s a prin cíp io ju lgam q u e isso só a co n ­
e le s n os foram referid os p ela s p esso a s que o u v em v o z e s. O s prin cipais tece co m ela s. E ste facto, só por si, é su ficien te para tom ar a e x p e ­
b e n efício s da d iscu ssã o aberta destas ex p eriên cia s p o d em resu m ir-se riência d esagrad ável e a n sio g én ica e produz sen tim en to s d e vergon h a
da seg u in te form a: e m ed o d e estar lou co .
U m b om ex e m p lo d e esb atim en to da an sied ad e fo i-n o s dad o por
R eco n h ecer m ais fa cilm en te o s padrões de com p ortam en to das
um h om em d e 3 6 an os, qu e falou no prim eiro C o n g resso . E le tinha
v ozes;
o u v id o as prim eiras v o z e s por v o lta d os 2 0 an os d e id ad e e tinha
E sbater a ansiedad e;
ficad o terrivelm en te am edrontado. S eis m eses d ep o is do C o n g resso ,
D escob rir p ersp ectiv a s teóricas alternativas; perdia o em p reg o e esta v a c o n fu so por estar a o u vir v o z e s d e n o v o .
A um en tar a a ceita çã o das v ozes; D esta v e z , p orém , já n ão ach ava a exp eriên cia tão perturbadora n em
R eco n h ecer m ais claram ente o sig n ifica d o das v o zes; tão chocante: o C o n g resso tin h a-lh e dado a recon fortan te n o çã o de
V alorizar a sp ecto s p o ten cia lm en te p ositivo s; que não era o ú n ico a ou vir v o z e s, e isso aju d ou -o im en so .
Estruturar m elh or o con tacto co m as v o zes; A an sied ad e co n d u z, m uitas v e z e s, ao evitam en to das situ a çõ es
U tilizar m ais efica zm en te a m ed icação; que p od em d esen cad ear a escu ta d e v o z e s, e este ev ita m en to b loq u eia
O bter m aior tolerân cia e com p reen são n o seio da fam ília; seriam ente o d e se n v o lv im en to do E u. A ssim , a lgu n s o u vid ores de
C rescim en to p e sso a l. v o z e s já não se atrevem a ir a festa s, a con d u zir o carro ou a entrar

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num sup erm ercad o. U m tal grau de an sied ad e restrin ge gravem en te a R esp o n d eu a senh ora, perguntando:
lib erd ad e d e m o v im en to s, e as estratégias d e evita m en to , a m aior “Quando é que você sente esse sofrimento?”
parte das v e z e s , só contrib uem para agravar o prob lem a. U m a senhora
d isse-n o s: E ntão, e le d isse-lh e qu e isso a co n tecia sobretudo quando se en co n ­
“Assim que as vozes se calam, começo a preocupar-me com o facto trava rodeado d e um grande n ú m ero d e p e sso a s solitárias em grandes
de elas poderem aparecer outra vez.” esp a ço s, por e x e m p lo , em su p erm ercad os. A senh ora aju d ou -o a co m ­
preender q u e e le tinha ten d ên cia a ab sorver o sofrim en to das outras
E sta sen h ora está agora em con tacto te le fó n ic o regular co m outras p e sso a s e, em b ora n ão o p u d esse en sin ar a im u n izar-se contra e sse
p e sso a s q u e o u v em v o z e s e que a en corajam a ultrapassar o s seus sofrim en to, a co n selh o u -o a fazer e x e r c íc io s qu e o aju d assem a adq ui­
m ed os. E ste en corajam en to, vin d o de alg u ém fam iliarizad o co m a sua rir p ro cesso s d e se m anter à d istâ n cia e resguardar-se, assim , do s o ­
ex p eriên cia , d á -lh e a p o ssib ilid a d e de quebrar o círcu lo v ic io so da frim en to.
an sied a d e e do m ed o. A prender a m an ter-se à d istân cia - e , su b seq u en tem en te, a reabrir-
-se - é um a técn ica relacion ad a co m a P arap sicologia: selar as fron ­
teiras do Eu. S egu n d o o Sr. X , a ex p lic a ç ã o qu e a senh ora lh e tinha
dad o fazia p len o sen tid o.
Descobrir perspectivas teóricas alternativas D ig a -se, d e p a ssa gem , qu e o s c o n se lh o s dou tros o u vid ores d e v o z e s
n em sem pre são au tom aticam en te escu ta d o s. A lgu m a s p e sso a s d isse ­
C o m o o s p ro fissio n a is d e Saú de M en tal, tam bém o s ou vid ores de ram -n os que o s co n selh o s receb id o s as tinh am p osto ainda em m aiores
v o z e s procuram ex p lic a ç õ e s teóricas a que p o ssa m atribuir a ex istên ­ d ificu ld a d es. A s in v estig a ç õ e s e en trevistas q u e realizám os su geri­
cia das suas v o z e s. C o m o n os d isse um a senh ora d e 5 0 anos que há ram -n os, por e x em p lo , qu e a freq u ên cia d e se ssõ e s esp iritas ou p sí­
c in c o an os com eçara a ou vir vozes: q u icas* p od e por v e z e s con fu n d ir ain d a m ais o s o u vid ores d e v o zes
“Depois de o meu filho morrer, comecei a ouvir a voz dele. Mas que m ais recen tes. O utras p e sso a s referiram -n os q u e a ajuda b em in ten ­
fazer com essas mensagens? Pensei que outras pessoas com experiências cion ad a p od ia, em situ a çõ es d e co n fin a m en to num quarto de iso la ­
idênticas me podiam ajudar, e comecei a procurá-las - mas, de início, m en to de um h osp ital p siq u iátrico, d esen cad ear a escu ta d e v o z e s ou
essa busca foi infrutífera. No Congresso, conheci pessoas envolvidas n’0 tornar estas ainda m ais a g ressiv a s, em lu gar d e prop orcionar a protec-
Caminho /Padwcrk - ver Capítulo 7], um movimento espirita baseado ç ã o pretendida. G eralm en te falan d o, é n ecessá rio ter-se sem p re m uito
nas conferências da médium Eva Pierrakos. Essas pessoas aconselha- cu id ad o co m o s co n selh o s e as e x p lic a ç õ e s qu e se d ão, q u e n ão p as­
ram-me a ler os livros dela, o que fiz. Reconheci nesses livros muito de sam de c o n v ic ç õ e s p esso a is e n ão tom am em lin h a d e con ta outras
mim própria, o que me ajudou a superar o meu problema." p o ssib ilid a d es d e interpretação. E fu n d am en tal ter-se p len a co n sc iê n ­
cia da en orm e varied ad e d e situ a çõ es e circu n stân cias in d ivid u ais.
A ex p eriên cia p esso a l p od e ser m uito im portante para ajudar e O co n selh o m en os arriscado ten d e a ser o q u e serve para aum entar o
acon selh ar outras p esso a s. P or ex em p lo , nu m a con v ersa co m um a con tro le do in d iv íd u o sob re as v o z e s e q u e m en os contrib ui para
senh ora q u e tam bém o u v ia v o z e s, o Sr. X disse: aum entar o sen tim en to d e im p otên cia. O au to co n h ecim en to e a auto­
determ inação são as p alavras-ch ave.
“Puseram-me o diagnóstico de esquizofrénico e oiço vozes - por que
é que elas provocam tanto sofrimento?" * No sentido de “mediúnicas”, “mentalistas”.

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Aumentar a aceitação p o d e ser m u ito fru tu oso d iscu tir a natureza da m en sa g em . E sta abor­
d agem será ex p o sta e m p orm en or no C ap ítu lo 9, S e cçã o A n á lise fu n ­
U m a senhora de 38 an os de idade d isse-n os: cional.
“Quando falava com outras pessoas sobre as suas experiências de
escuta de vozes, convenci-me de que podia lidar melhor com as minhas Valorizar os aspectos positivos
se as aceitasse em vez de as negar. Deixei de lutar com as vozes. Ainda
não posso dizer que me sinto feliz por as ouvir, mas a minha vida tornou- Q uando as p e sso a s o u v em v o z e s au ten ticam en te m a ld o sas - qu e
-se mais fá cil.” rid icu larizam ou a m esq u in h am outras p e sso a s ou m altratam até os
seu s o u v id o res, ao p on to d e e ste s se injuriarem a si próp rios - p od e,
N o p rocesso de d e se n v o lv im en to d e o p in iã o própria e de tom ada c o m p r een siv elm e n te, ser d ifíc il co n v e n c ê -lo s a aceitar a p resen ça das
d e resp on sab ilid ad e de si m esm o , o prim eiro e fundam ental p asso é v o z e s c o m o u m a d im en sã o útil e p o sitiva da exp eriên cia.
a aceitação das v o z e s co m o fa zen d o parte d e si. Isto é de extrem a O co n tacto c o m outras p e sso a s p od e levar à surp reen dente d e sc o ­
im portância, se b em q u e seja tam bém um d os p a sso s m ais d ifíceis. berta d e que as v o z e s p o sitiv a s ex istem , e à co n v icçã o d e q u e ela s
p od em surgir ou ser d etectad as d ep o is da adequada a ceita çã o , por
parte do o u v id o r, d o seu próprio lad o n ega tiv o . U m a sen h ora d e 40
Reconhecer o significado das vozes an os d eu -n o s um e x e m p lo d esta situação:
“Ao longo da minha comunicação com os outros, tive de aprender
U m a jo v em d eu -n os v á rios e x em p lo s de situ a çõ es em que lhe que em mim existe um lado positivo e um lado negativo. E muito difícil
acon tecia d izer de v iv a v o z aq u ilo em que o seu m arido tinha estado de explicar, mas, ao aceitar o meu lado negativo, posso prestar mais
a pensar. Isto ta lv ez não tiv e sse um sig n ifica d o por aí além , dado o atenção ao meu lado positivo. Posso aprender a cuidar de mim própria."
co n h ecim en to ín tim o que cad a um d o s d o is tinha dos hum ores e
particularidades do outro, m as h avia v e z e s em que isso acon tecia na Estruturar o contacto com as vozes
au sên cia d e qualquer in d ício claro do que ele p u d esse estar a pensar.
E sta situ ação irritava o m arid o, em b ora e le o não d em on strasse. U m a senh ora d e 2 8 an os, qu e a p rin cíp io o u v ia v o z e s o d ia to d o ,
A jo v em deu co n sig o a assim ilar a irritação d ele, enquanto a v o z que ex p lico u :
o u v ia lh e in ten sifica v a e ssa irritação, ao dizer que o seu m arido a
“Fiz um acordo com as vozes, segundo o qual passaria a reservar a
haveria d e assassinar. C on seq u en tem en te, co m eço u a ter m ed o do noite para elas. A partir das 8 horas da noite, não estou disponível para
m arido, qu e cada v e z fica v a m ais p erp lexo co m a situação. ninguém, e pedi a todos os meus amigos que não liguem para minha casa
N e s te c a so , as v o z e s e x p r im ia m o q u e e la m esm a sentia: a depois dessa hora. Felizmente, o meu marido também aceitou este pacto.
a g ressivid ad e era o que m ais tem ia na sua relação. A vantagem deste sistema é que agora as vozes raramente me criam
Sem p re qu e as v o z e s v eicu la m in form ação desta natureza, o d esa­ dificuldades durante o dia e passei a funcionar muito melhor."
fio co lo ca d o p ela sua presen ça é , as m ais das v e z e s, m en os sig n ifi­
cativo do qu e os prob lem as d e relacion am en to cau sad os por aquilo A introd ução d e ste tip o d e ordem na relação co m as v o z e s p od e
qu e é reflectid o ou d iv u lg a d o através d elas. E m ca so s co m o este, em ajudar a m in im izar o habitual sen tim en to d e im p otên cia - o q u e p od e
qu e a v o z rev ela in form ação sob re a sen sitivid ad e da sua ouvidora, ser extrem am en te v á lid o para ajudar as p e sso a s a verificar q u e é

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p o ssív e l esta b elecer lim ites às v o z e s e afastá-las de um a introm issão que me rodeiam percebem agora que, às vezes, não estou aberta à
ex c e ssiv a . comunicação com elas por causa das vozes. Os meus familiares dão-me
muito mais apoio e quando me comporto de maneira diferente aceitam-
-me mais prontamente."
Utilizar mais eficazmente a medicação
Crescimento pessoal
A partilha d e ex p eriên cia s dá às p e sso a s a p o ssib ilid a d e de ficarem
tam bém a saber q u e m ed ica çã o estã o o s outros a tom ar, que b en efício s Q u ase tod os o s o u v id o res d e v o z e s q u e aprenderam a adaptar-se
traz e qu e efe ito s secu nd ários p o d e ter. É im portante saber, por e x e m ­ às suas ex p eriên cia s referem q u e, em ú ltim a an álise, o p r o c esso tinha
p lo , se um a determ inada m ed ica çã o se tem m ostrado e fic a z para re­ contrib uíd o para o seu crescim en to p esso a l.
du zir a escu ta de v o z e s ou para esbater a an sied ad e e a con fu são P or crescim en to p o d e en ten d er-se a id en tificação d aq u ilo q u e é
p sic o ló g ic a associad a. D esta m aneira, é p o ssív e l ventilar certas q u es­ n ecessá rio para se ter u m a v id a p len am en te satisfatória e sab er c o m o
tõ es e avaliar rea cções co m o ta lv ez não fo sse p o ssív e l fazer junto do atingir e s s e o b je ctiv o . P od eria ta lv ez d escrev er-se co m o um p r o c esso
m éd ico , on d e as o p in iõ es se ten d em a extrem ar d e parte a parte, d e em a n cip a çã o. A Sr.a X é d isso um b om ex em p lo . C o m eço u a ou vir
ten d en d o, quer o m éd ico quer o p a cien te, a pintar a situação em v o z e s em 19 80 , ao s 2 6 an o s d e idade. V iv ia co m o s p ais, raram ente
term os d e preto e branco. saía e era um a p e sso a ex trem am en te d ep en d en te. A p ó s um a d as suas
E n ecessá rio que am bas as partes com p reen d am q u e em qualquer m uitas ten tativas d e su ic íd io , fo i internada num hosp ital psiq u iátrico;
m ed ica çã o a eficá cia e a a d esã o sã o dad os da exp eriên cia individual. ao prim eiro dia c o m e ç o u a o u vir v o z e s q u e d ep ressa a d om in aram
U m a jo v e m , que ainda está a fazer tratam ento am bulatório, referiu: co m p leta m en te, p roib in d o-a, por e x em p lo , d e com er, d e beb er e d e
“Tomei neurolépticos durante algum tempo, mas depois resolvi parar dorm ir. S e is m eses m a is tarde, porém , a situ ação alterou -se rad ical­
com eles, porque me sentia um zombie*. Já nem podia ler um livro. Ainda m ente: e la tom ou a d e c isã o d e se tom ar in d ep en d en te. A s v o z e s eram
tomo medicamentos, mas agora numa dose de manutenção, com escassos agora um a in flu ên cia b en éfica , ap oian d o-a d e algu m m o d o na sua
efeitos secundários. Quando as vozes ameaçam subjugar-me, aumento crise de iden tid ad e. D era m -lh e m aior com p reen sã o e aten ção para
temporariamente a dose.” c o n sig o m esm a e , tam b ém , a p o ssib ilid a d e d e v iv er a vid a c o m m ais
profun didade. Q uatro m e se s d ep o is, d e ix o u o h osp ital e c o m e ç o u a
v iv er in d ep en d en te, a estu d ar e a trabalhar.
Obter a compreensão dos familiares C o n h ecem o s esta m u lh er em 1987, na en trevista em q u e a se le c -
cio n á m o s c o m o oradora d o P rim eiro C o n g resso . N essa altura, ainda
U m a senh ora de 3 0 anos d isse-n o s: esta v a e m tratam ento am b u latório e n ão p od ia trabalhar. C o n to u -n o s
“Em consequência do Congresso, os meus pais e o meu marido q u e tinha tido três e p isó d io s d e escu ta d e v o z e s, m as ach ava qu e o
passaram a aceitar a existência das minhas vozes e, a partir daí, a minha m elhor p r o c esso d e lidar c o m ela s era ign orá-las. N o decorrer das
vida tornou-se mais fácil. Até a vida social melhorou, porque as pessoas n o ssa s en trevistas e co n v er sa s co m outros ou v id o res d e v o z e s , p a sso u
a reconsiderar esta su a form a d e ab ord agem e a co locar a si m esm a
* Veja-se: Paes de Sousa, M. (1982) Problemas Éticos na Práxis Clínica Psiquiá­ n o v a s q u estõ es sob re as v o z e s. D ep o is do C o n g resso , torn ou -se m em ­
trica; Psiquiatria Clínica, 3 (3), pp. 127-139 bro a ctivo da F u n d ação R esso n â n cia , on d e p assou a trabalhar na L inha

100 101
S O S para aten d im en to d e ch am ad as d e p esso a s em d ificu ld a d e por d e form ação para líd eres d e grupos d e ajuda m útua. E stá en cantad a
cau sa das v o z e s. Q u and o, n e sse m esm o ano, v o ltá m o s a falar co m ela, co m a d escob erta das suas próprias cap acid ad es e, a p o u co e p ou co ,
a sua atitude perante as v o z e s tinha m udado sign ificativam en te: fo i ap ren d en d o a con fiar n o seu sen so próp rio. A g o ra con tin u a a
trabalhar, ao m esm o tem p o q u e p rosseg u e o s estu d o s, para aum entar
“Aprendi a encará-las como um sinal de alarme; sempre que se as suas q u a lific a ç õ e s, e d iz q u e se sen te m elh or d o qu e nu nca. C o m e­
materializam, já sei que as coisas não vão bem comigo e que preciso
de estar mais atenta.” ço u a falar d e escu ta d e v o z e s co m as p e sso a s q u e a rodeiam : distri­
buiu p e lo s seu s a m ig o s có p ia s das actas fin a is d o C o n g resso , nas qu ais
N o ano anterior tinha fica d o lou ca m en te apaixon ada por um h o ­ se in clu ía a su a h istória, e o fereceu um a có p ia à m ãe n o d ia d e anos.
m em qu e lh e retribuía a a feiçã o por co m p leto . A certa altura, porém , T enta tam b ém falar co m o pai, dizendo:
a Sr.a X c o m e ç o u a ou vir a v o z d o seu nam orado d irig in d o -lh e pala­ “A nossa conversa não tem que ficar limitada à sua mania do fu te­
vras in a ceitá v eis e in su ltu osas. D esta v e z , no entanto, não se d eix o u bol".
afogar em p â n ico, ten d o antes a presen ça de espírito n ecessária para
n ão con fu n d ir a v o z co m a p esso a . F oi ter co m o seu nam orado e Desvantagens da discussão
p ergu n tou -lh e se e le a lgu m a v e z tinha tido sem elh an tes p en sam en tos
a resp eito dela; e e le tev e a arte n ecessária para a c o n v en cer de que A co m u n ica çã o acerca d e ou vir v o z e s tam b ém tem , ev id en tem en te,
n ão. A o escla recer a situ ação co m o seu nam orado, co n seg u iu um as suas d e sv a n tag en s.
m aior autoC onhecim ento a resp eito d o s seu s próprios problem as: “Ao expormo-nos desta maneira podemos sentir-nos muito vulnerá­
“Há uma parte de mim que não é capaz de aceitar que as pessoas veis; é como se a nossa roupa suja estivesse toda em exposição.”
sejam simpáticas comigo. Essa parte de mim quer-me destruir.”
A lg u n s o u v id o res d e v o z e s têm m uita d ificu ld a d e em se abrir sobre
A ca b o u por com p reen d er q u e as v o z e s, quando apareciam , faziam as su as ex p e riê n cia s, em b ora m u itos ach em q u e é m ais fácil falar se
parte d e um a paran oia na qual p en sava que toda a g en te esta v a a falar estiv erem no m eio d e outros co m o e les. A q u eles qu e nu nca foram
d ela - ao p on to de ju lgar qu e, quando alg u ém aparecia a rir na tele­ p acien tes p siq u iátricos é esp ecia lm en te n ecessária um a b oa d o se de
v isã o , se esta v a a rir d ela. H oje, quando isso a co n tece, vira sim p les­ cora g em para enfrentar um m u n d o q u e lh es ch am ará lo u co s se fa la ­
m en te as co sta s à telev isã o . C om a ajuda das suas inú m eras activid a- rem das su as vid a s. Para o s q u e estão n esta situ ação p o d e ser d ifícil
d es, a Sr.a X co n seg u iu deixar as suas v o z e s para trás. H o je, co n seg u e descortin ar o q u e têm a ganhar em fazer isso e, m uitas v e z e s, a sua
lidar m u ito m elh or co m as suas próprias e m o ç õ e s, q u e costu m am ser ún ica m o tiv a çã o é ajudar o s outros, isto é, a q u eles q u e n ão são cap a­
m uito v o lú v e is e tom ar o con tacto co m ela bastante d ifíc il. C ontinua z e s d e lidar co m as v o z e s q u e ou v em . U m outro factor d e retraim ento
a ser m u ito sen sitiv a - por ex em p lo , sin ton iza de im ed iato com o em revelar q u e se o u v e v o z e s é estas, nu m ou noutro ca so , pod erem
hum or d os outros - m as já não se d e sfa z em lágrim as ao prim eiro tornar-se tem p orariam en te m ais activas. U m a senh ora de 30 an os de
sinal d e alarm e. idade d isse-n o s:
A Sr.a X d eu con ta d e q u e as suas aptid ões c o m o con selh eira “Sempre que fa lo de ouvir vozes, é certo e sabido que nessa noite vão
telefó n ica v ã o m elh oran d o con tin u am en te e está agora a pensar em estar mais activas. Mas, ainda assim, as vantagens são muito maiores
fundar um gru p o d e estu d o s. C o n seg u iu co n clu ir co m ê x ito um curso que os inconvenientes.”

102 103
Conclusão
A ca b á m o s d e ver um a série d e ex e m p lo s que confirm am a extrem a
im portância d e se partilhar a ex p eriên cia d e ou vir v o z e s, co m vista ao
n ecessá rio p rocesso d e aceitação e reco n cilia çã o interior. T od os os
q u e aprenderam a lidar co m as suas v o z e s testem u nh am que, sejam
q u ais forem o s factores d e retraim ento, o s efeito s p o sitiv o s d essa
partilha d e ex p eriên cia s são sem pre sup eriores às d esvan tagen s.
E vid en tem en te, àq u eles cuja vid a se tornou insuportável por causa
das v o z e s, p od e ser m uito d ifíc il d izer, filo so fica m en te , que é um
p rob lem a tem porário, ou co m eça r a planear um a relação aceitável
co m as v o z e s ou, ainda, antever um a clara v ia de saída. Q uando a 6
an sied ad e é m uito acentuada, p o d e não ser p o ssív e l nada d isso . N este
ca so , a so lu çã o in icial p o d e passar por técn ica s d e con trole da an sie­ OUVIR VOZES: A EXPERIÊNCIA DOS QUE NUNCA
dad e (ver C apítu lo 10). RECORRERAM À PSIQUIATRIA
A q u eles qu e co n seg u em lidar co m ê x ito c o m as suas v o z e s referem
q u e é fundam ental tratá-las na terceira p e sso a e aprender a dizer
“n ã o ”, co m o se fa z a qualquer su g estã o sem p és n em cabeça.
A prender a lidar co m a ex p eriên cia de ou vir v o z e s é um co m p lex o Autopsicografia
p ro cesso interno que p o d e não se co n seg u ir levar a b om term o sem
ajuda. A q u eles que o u v em v o z e s d e v e m ter a oportunidade d e falar O poeta é um fingidor.
sob re isso , d e trocar ex p eriên cia s, d e q u eix ar-se delas até, de m odo Finge tão completamente
a to m arem -se m ais fortes em si m esm o s. Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(Fernando Pessoa, Poesias)

104 105
Introdução 1. ° - G uarda estritam en te a tua rotina diária.
2. ° - C on cen tra-te n os teu s atributos p o sitiv o s.
Marius Romme 3. ° - C o n h ece-te a ti m esm o e aceita o teu lad o n ega tiv o .
4. ° - A ceita a p resen ça d e um a in flu ên cia exterior a ti m esm o , m as
N o d ecu rso da n o ssa in v estig a çã o (ver C apítu lo 2 ), co n h ecem o s c o n v e n c e -te de qu e ela n ão é m ais p od erosa do q u e tu.
um nú m ero co n sid erá vel de hom en s e m ulh eres q u e o u v ia m v o z e s, 5 . ° - F a z o q u e p u deres por encontrar ap oio e a ceita çã o n aq u eles
m as q u e nunca tinham sid o p acien tes psiq u iátricos nem se c o n sid e ­ que te rod eiam , e fala co m outras p e sso a s acerca das tuas
ravam m en talm en te d o en tes. A pesar das v o z e s, os seu s fa m ilia res e
ex p eriên cia s.
a m ig o s tam bém não o s via m co m o d oen tes.
Q u and o os c o n h ecem o s na seq u ên cia do program a de T V , ficá m o s
A terceira razão para pu blicar e sse s relatos é sugerir q u e o verd a­
m u ito surp reendidos porq ue está v a m o s habituados, co m o a m aioria
deiro p rob lem a n ão é tanto o ou vir v o z e s m as sim a in cap acid ad e de
d os psiquiatras e certam ente a m aioria d os le ig o s, a encarar qu em quer
lidar co m ela s (ver C apítu lo 7 , S e cçã o P arapsicologia). E ssa s h istó ­
q u e o iç a v o z e s co m o alg u ém m en talm en te perturbado. F o m o s lev a d o s
rias revelam um a en orm e varied ad e d e graus d e su ce sso em lidar co m
a m od ificar a n o ssa o p in iã o , ao confrontar-n os co m p e sso a s b em
as v o z e s e um a igu al varied ad e in d ivid u al d e lin h as d e referên cia
eq uilib radas e sa u d áv eis, a qu em sim p lesm en te acon tecia o u vir v o zes:
v o z e s qu e n ão eram o u v id a s p elas p e sso a s que as rodeavam e que teórica.
eram v iv en cia d a s co m o vin d as d o exterior de quem as ou via.
A s v o z e s ou vid as por essa s p e sso a s satisfazem os critérios u tiliza ­
d os p ela P siquiatria para d efin ir a lu cin a çõ es auditivas; em term os Contributos pessoais
m ais sim p les, trata-se d e v o z e s que o ind ivíd u o o u v e, m as qu e não
exp erim en ta co m o sen d o d ele. A d esig n a çã o “a lu cin a çõ es a u d itiv a s” T o d o s o s autores d os sete con trib u tos qu e se seg u em con segu iram
é in feliz, já que p ressu p õ e a ex istên cia de p atologia, d e doen ça; seria aceitar as suas v o z e s. É n o tá v el q u e tam bém tod os e le s ten ham a ceite
ta lvez m en os p r eco n ceitu o so cham ar às v o z e s “p ercep çõ es extra-sen - a ex istên cia d e um m u n d o im aterial; e qu e tod os e le s com p artilh em
so ria is” . E sta é, d e fa cto , a prim eira razão para n este livro pu blicar as um a p ersp ectiva p a ra p sico ló g ica ou espiritu al para interpretar as suas
exp eriên cia s d aq u eles q u e o u v em v o z e s m as que nunca se sentiram na v o z e s (ver C ap ítu lo 7, S e cçã o E xperiências de vozes interiores).
p e le d e p acien tes p siq u iátricos nem foram rotulados co m o tal.
U m a segu n d a razão para publicar essa s exp eriên cias é aprender Primeiro contributo pessoal
co m elas; aprender, por e x e m p lo , co m o é p o ssív e l controlar a escu ta
d e v o z e s sem se passar p ela situação d e p acien te p siq u iátrico, e co m o Antes de falar de vozes e de como elas afectaram a minha vida,
é qu e algu m as p e sso a s - a p ó s um períod o de d ificu ld ad e - p o d em permitam-me que me apresente. Sou uma mulher de 61 anos de idade,
encontrar n essa s v o z e s um a fon te de inspiração (a que Jung ch am ava casada, com um filho, uma nora e dois netos. Durante muitos anos,
"vocação") ou , sim p lesm en te, um b om co n selh o . E ssas ex p eriên cia s consegui conciliar a minha carreira de serviço social com a de dona de
têm m u ito a en sin ar-n os sob re co m o as p esso a s, durante o p r o c esso casa e mãe de família, até ficar incapacitada fisicamente. Presentemente,
d e integração das v o z e s , p o d em lidar co m as suas v o z e s e co m a sua estou a receber do Estado um subsídio de doença.
própria vid a. A s p e sso a s parecem aplicar cin co m and am entos para Oiço vozes desde a minha infância. Elas prediziam o futuro, davam-
integrar as suas v ozes: -me bons conselhos e orientavam-me. Por vezes falavam-me doutras

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pessoas — por exemplo, da evolução da doença de alguém. Embora tuada a este fenómeno - ouvia vozes que me abriam os olhos e me
pareça impossível, aprendi a dar ouvidos a essas vozes, porque, invaria­ ajudavam a formar as minhas opiniões.
velmente, demonstravam ter razão. Adoptei-as como companheiras de Um bom exemplo disso mesmo relaciona-se com um tio meu, que era
viagem. Embora isso me possa arranjar problemas, confidencio as mi­ um obcecado pela política e pela maneira como se devia conduzir a
nhas experiências àqueles que me rodeiam. Guerra. Ouvi uma voz a contradizê-lo, e surpreendi toda a gente ao
Recebi a minha primeira mensagem clara tinha eu nove anos de anunciar que a Guerra terminaria com a queda de Berlim. A minha mãe
idade. Na altura, vivíamos numa pequena cidade portuária e, certo dia, declarou “só me faltava ouvir essa!”, e o meu tio rejeitou a minha
um navio-tanque grego fundeado no porto começou a explodir. O estron­ afirmação como sendo uma fantasia de crianças. Na altura eu tinha 14
do da primeira explosão foi tão grande que se ouviu na minha escola. anos. O incidente nunca mais foi mencionado na família, se calhar ainda
O meu pai era membro do corpo de bombeiros e precipitou-se sobre o bem. Pela minha parte, aprendi a confiar nas minhas vozes.
local do sinistro. A notícia do desastre espalhou-se rapidamente por toda Outro exemplo dos tempos de guerra aconteceu a seguir à mudança
a cidade e a minha mãe ficou a recear pela vida do meu pai. Como é para Ede de uma amiga minha e dos pais dela, depois de um intenso
típico dumafamilia cristã, fomos criados em casa, e então a minha mãe bombardeamento. Em Agosto desse mesmo ano, eu e outra amiga minha
e eu pusemo-nos a rezar para que nada de mal acontecesse ao meu pai. fomos visitá-la. Ao passearmos junto a Castle Doorwerth, perto de Arnhem,
Algumas horas mais tarde, ouvi uma voz que do íntimo me dizia: “O teu caminhávamos pela velha estrada romana, quando ouvi aviões a apro­
pai vai voltar.” E falei nisso à minha mãe. Precisamente nesse momento, ximar-se. Naquela época, isso nada teria de extraordinário, não fosse o
chegaram os nossos vizinhos e disseram que se estava à espera que o facto de os aviões estarem desarmados e o alarme antiaéreo não ter
navio-tanque fosse pelos ares. Eu estava cheia de medo, mas tornei a tocado. Tentei confirmar o caso junto das minhas amigas, mas elas nada
ouvir, nitidamente, uma voz repetindo: “O teu pai vai voltar.” De facto, tinham ouvido. Quando regressávamos a casa pela ponte do Reno, ouvi
o que se passou foi que um estranho agarrou o meu pai e puxou-o, uma voz subitamente dizer-me: “É neste preciso lugar que vai dar-se a
enquanto um colega, que estava junto dele, morreu atingido por barras invasão aliada.” Embora a medo, contei às minhas amigas o que acabara
de aço que vinham pelo ar. de ouvir, mas elas responderam-me que isso era mesmo típico de mim.
Fiquei calada sobre este incidente, apesar de as vozes passarem a ser A amiga que vinha comigo foi contar ao pai, e ele riu-se desdenhosa­
cada vez mais frequentes. Estava perplexa perante o que as vozes pode­ mente e disse: “Que tolice mais infantil! Presta atenção: nós aqui, no
riam querer dizer - eu não acreditava em espíritos - e não sabia se devia leste, não corremos perigo; vocês, que vivem junto à costa, é que têm de
resistir-lhes. Fosse como fosse, ignorar as vozes não dava grande resul­ estar preocupados...” Ele interpretava a evolução da Guerra em função
tado. Elas estavam constantemente presentes, o que era bastante cansa­ do que via. Fiquei calada, mas sabia mais que ele. Quando a invasão
tivo para mim. Por fim, a minha única esperança de alívio era contar se deu, viu-se que a informação dada pelas minhas vozes é que estava
tudo aos meus pais. Eles não compreenderam, mas também não troçaram certa: a invasão surgiu precisamente por aquela ponte...
de mim; ouviram-me com atenção, embora não soubessem bem que tipo Bom, mas ouvir vozes também me causou problemas. Por exemplo,
de conselhos me haviam de dar. Achava impossível resignar-me com a quando passámos a trabalhar sob as ordens de um novo chefe - alguém,
situação, mas continuei a ouvir vozes antes e durante a II Guerra Mun­ aliás, já conhecido de alguns dos meus colegas, incluindo o meu futuro
dial. marido, que o admirava por algumas realizações. Com o que tinham dito
Quando era miúda, as pessoas admiravam-se da minha segurança, dele, estava morta por conhecê-lo. Contudo, quando fomos apresentados
principalmente quando respondia com grande convicção às perguntas - e apesar de me ter feito um cumprimento caloroso e encantador - uma
delas. Isso distinguia-me das outras crianças e a minha mãe convencia- voz disse-me: “Ele é o diabo.” Então, algo de inacreditável aconteceu:
s e que eu era uma menina precoce. Por sorte, os meus pais prestavam a face do director transformou-se na cara do diabo. Foi um momento
pouca atenção aos comentários das outras pessoas. Eu já estava habi­ verdadeiramente difícil para mim, embora tivesse conseguido manter a

108 109
compostura e continuar a responder cordialmente. Por lealdade para anos e meio de serviço (uma efeméride muito celebrada na Holanda*),
com os meus colegas, tinha uma certa relutância em falar deste incidente a administração e todos os 123 colegas trabalhadores deram uma festa
mas, por fim, contei tudo ao meu marido, que aceitou totalmente a minha em minha honra. Dois dos meus desejos mais queridos foram satisfeitos:
explicação - embora tudo isso fosse muito estranho para ele. Uma vez ofereceram-me um relógio de ouro e um estojo de toucador em prata. Ao
que as vozes não eram um problema para mim, mas algo em que eu receber o estojo, o vidro do espelho de mão partiu-se espontaneamente.
acreditava, ele aceitava-as como fazendo parte de mim. Mas isso nem Ficaram todos muito chocados e logo se ofereceram para o trocar, mas
sempre foi fácil para ele. Mais tarde, provou-se que as minhas vozes, uma voz convenceu-me de que o devia levar tal como estava. Contra o
mais uma vez, tinham razão: o tal director era mesmo o diabo. meu íntimo, insisti em ficar com o espelho. Um ano depois, dava comigo
Noutra ocasião, um dos colegas do meu marido sentiu-se doente. O a reconhecer que já não estava fisicamente em condições de voltar a
meu marido disse-me que era cansaço, que o homem andava a trabalhar trabalhar. O espelho partido seria um presságio? Durante esse período
demais e que em pouco tempo ia recuperar, mas eu logo lhe disse: “Ele terrível, ouvia imensas vozes e, quando estive de cama, vi também um
vai morrer.” Não voltámos a discutir o assunto. O meu marido, que era vulto em forma de fantasma. Tentei afastá-lo, mas sem êxito. “Anda”,
amigo íntimo desse homem, visitava-o regularmente; seis semanas de­ disse o fantasma. Pensei que isso talvez quisesse dizer que eu deveria
pois, o senhor foi internado no hospital, onde morreu. Como lidariam começar uma vida nova, e fiquei descansada. Desabrochei de novo e,
vocês com este tipo de informação? Eu e o meu marido decidimos não apesar da minha doença, sinto-me agora mais feliz e mais realizada do
falar disso mas aceitar a situação. que quando tinha a minha carreira profissional. Será que tudo isto se
Depois do nascimento do meu filho, continuei a ouvir vozes. Só falei pode interpretar como um processo de crescimento pessoal e como uma
no assunto ao meu filho quando ele entrou para a Escola Secundária. forma de auto-realização?
A reacção dele foi que devia haver uma relação qualquer entre o facto Outro período muito difícil da minha vida foi quando me dei conta
de eu ouvir vozes e ser dotada de tantas capacidades. Ele contou aos da doença progressiva do meu marido. A primeira vez que fui alertada
amigos: “As pessoas parece que sentem que a minha mãe tem um dom para isso foi numas férias, na Grécia. Depois da sesta do meio-dia,
especial. Estejamos nós onde estivermos, mesmo em férias, as pessoas tínhamos ido visitar uma igreja antiga, quando uma voz me chamou a
mais desconhecidas aproximam-se dela, fazem-lhe confidências e pe­ atenção: “O teu marido está com muito mau aspecto, não achas?” Olhei
dem-lhe conselhos.” Eu própria não tinha estabelecido essa ligação. para o meu marido e não vi que houvesse nada de anormal. Ao conduzir
Depois de casar, mantive o emprego durante uns tempos e continuei à toa por uma rodovia, comecei a empreender no assunto. Não estava
a ouvir vozes. As minhas colegas não sabiam o que fazer quando lhes em posição de fazer confidências ao meu marido e vi-me obrigada a lidar
falava das minhas experiências. Uma vez, foi instalado um computador sozinha com a minha ansiedade. Depois de algumas semanas de angús­
no meu emprego e recebi a novidade de braços abertos. As minhas vozes tia, regressámos a casa. Mas a minha preocupação não parava de cres­
é que não: estavam sempre a chamar-me a atenção para a possibilidade cer. Sabia que o meu marido andava desejoso de visitar as ruínas da
de a utilização dos computadores pôr em perigo a privacidade dos meus civilização minóica, e tive um impulso irresistível de marcar uma viagem
clientes. Embora o sistema parecesse seguro, estava preocupada. Por a Creta. O meu marido ficou entusiasmado com a surpresa, mas conti­
fim, insisti em utilizar um código para proteger os meus clientes: isso era nuei preocupada, porque as vozes continuavam incessantemente a alertar-
um procedimento complicado e cansativo e trouxe-me a fama de obsti­ -me para o estado de saúde dele. Pouco depois de regressarmos de Creta,
nada e manienta, o que dificultava a minha vida. Recentemente, porém, o meu marido teve de ir de urgência ao hospital, onde lhe diagnostica­
uma colega minha comentou: “Estávamos a pôr em perigo a confiden- ram um tumor de que eu já suspeitava. Recebeu a notícia com grande
cialidade dos nossos clientes e tu previste isso.” serenidade e, de certo modo, também eu tentei arranjar forças para
Num período particularmente difícil da minha vida, com o meu marido
doente, fui ajudada pelo facto de ouvir vozes. Tendo completado doze * Metade das “bodas de prata”.

110 111
manter a calma. Auto-sugestão, dirão vocês. Quando o meu marido teve se, desde há 10 anos, uma duradoura paixão para mim, sempre a tinha
alta, começámos a refazer a nossa vida e seguimos o conselho do médico encarado como uma mera área de estudo e nunca pensei vir a estar
de relaxar e fazer novas férias. Fomos a Viena. Certa noite, eu estava pessoalmente envolvida nela. Inesperadamente, vejo-me agora transpor­
acordada por causa de uma voz mas também devido a um vulto enevoado tada do estudo dos fenómenos paranormais para as experiências pro­
que, empaticamente, me dizia: “Eles vão dar cabo da saúde do teu marido; priamente ditas. Ao princípio, foi muito difícil para mim reconhecer que
tens de lutar por ele.” Estava em rebuliço, mas tinha o meu marido ao ouvia vozes, já que, a bem dizer, não as ouvia com os meus ouvidos, mas
pé de mim, dormindo tranquilamente. No dia seguinte, quando passeá­ era mais como se fossem impressas na minha consciência: era mais do
vamos os dois por um bosque, uma voz repetiu amenamente: “Luta; eles género da comunicação telepática. Por vezes - como, por exemplo, no
vão dar cabo da saúde do teu hom em .” Imaginem como eu me sentia! processo de escrita automática* — tinha dificuldade em distinguir se se
Não tinha vontade de deixar Viena e diligenciei junto de um especia­ tratava de algo genuíno ou se era uma projecção pura e simples da
lista local no sentido de fazer radioterapia ao meu marido. Ele estava minha imaginação. No geral, contudo, sentia essa voz - o meu espírito-
a sentir-se pior e tinha passado a noite com muitas dores. Mais uma vez -guia - como parte integrante de mim, e assim fo i desde início.
ouvi a voz repetindo: “Luta; eles vão destruir a saúde dele.” Imaginem Uma vez ciente da presença constante dessa voz, a minha vida tocou
como isso foi doloroso para mim: devia eu contribuir para a angústia noutra dimensão, umas vezes enriquecedora, outras vezes perturbadora.
do meu marido? Finalmente, encontrei coragem para me abrir com ele. Em retrospectiva, verifico que tanto as experiências dos píncaros como
Ele não disse nada e, então, agarrei no telefone e marquei uma entrevista as provações mais dolorosas fazem parte do fenómeno, e devo suportar
com o médico que o estava a tratar. A radioterapia e a quimioterapia umas e outras. O primeiro ano deste período foi particularmente angus­
foram suspensas e eu e o meu marido ultrapassámos este tempo difícil. tiante, porque quase todos os dias alternava altos e baixos. Naturalmen­
Nunca deixei de ouvir vozes. Elas são intrusivas mas amistosas; aumen­ te, isto tinha as suas consequências na vida familiar, mas para mim era
taram-me a atenção ao que me rodeia e fazem parte, são uma parcela, essencial aguentar a situação, já que não podia esperar que alguém
de mim mesma. Não vou dizer mais nada, mas espero que tenham con­ compreendesse a ruptura que eu simultaneamente experienciava e cau­
seguido apanhar o que tenho estado a tentar exprimir. Nunca descartei sava.
as vozes como forças sobrenaturais, magia, bruxaria, ou qualquer coisa Muitas vezes, tinha a sensação de estar metida numa missão impos­
assim. Aí vozes transformaram a minha vida e peço-vos que respeitem sível, mas, vezes sucessivas, quando mais precisava de alívio encontrava
esse facto. libertação; embora frustrada, conseguia sentir. A explicação que a voz
me deu para ter de sofrer tanto é que o sofrimento era essencial para
a minha preparação, e que, quando compreendesse a obra que me estava
Segundo contributo pessoal reservada, todo o sofrimento iria desaparecer. Disse a voz: “A obra tem
de prosseguir, é preciso que sejas perseverante - o que tenho para te
Nos últimos 14 anos, tenho estado em contacto telepático com a voz ensinar é difícil”. Apesar desse incitamento, eu achava difícil aceitar
do meu espírito-guia*. todas essas provas sem me enfurecer. A vida parecia-me demasiado
Este diálogo começou depois de um período de vários meses em que difícil, mas CORAGEM E PACIÊNCIA foi o lema que me guiou. Fazia
passei por muitas e variadas experiências paranormais, como o desenho parte da essência dar tempo ao tempo.
e a pintura automáticos, a clarividência, as premonições e as curas por
meios a que chamaria magnetismo. Muito embora a parapsicologia fos-
* A q u e o s e sp irita s ch a m a m “ p sic o g ra fia ” . N o te -se , aq u i, a su b tile z a d e F e rn a n d o
P e sso a q u a n d o e s c re v e o p o e m a “ A u to p s ic o g ra fia ” (v id e F e rn a n d o P e s so a (1 9 8 0 )
* O u “ g u ia e s p iritu a l” , n a te rm in o lo g ia e s p irita - q u e c o rre sp o n d e s e n siv e lm e n te Poesias de Fernando Pessoa, Obras Completas de Fernando Pessoa, C o le c ç ã o
à n o ç ã o d e a n jo -d a -g u a rd a , n a te rm in o lo g ia c a tó lic a . P o e sia , E d iç ã o Á tic a , p. 2 37 ).

112 113
Dois anos depois, cruzei-me com as Obras Completas de Santa Te­ perspicácia é essencial para entender a voz. Manterá o vosso espírito
resa d’Avila. Quem me dera tê-las descoberto mais cedo! Para mim, esse desperto. Vós não sois instrumentos passivos.
livro confirma e atesta tudo o que passei, já que Teresa sofreu um - Sede discretos. Evitai falar desnecessariamente com a família, os
processo semelhante ao meu. Ela concebeu o livro* como um guia de amigos e conhecidos sobre a vossa experiência de ouvir vozes. Por mais
jornada para todos os que andam em busca de Deus. difícil que seja, tentai levar uma vida o mais normal possível. Cultivai
Escreveu sobre os problemas que lhe surgiram por causa de ouvir a companhia de almas semelhantes à vossa, nas quais possais confiar;
uma voz: aqueles que a rodeavam advertiram-na de que essa voz era só elas podem compreender a vossa experiência.
obra do demo, e essas calúnias fizeram-na duvidar da existência de Deus - O completo desabrochar da alma: tudo gira em volta disto. Para
- o mesmo que aconteceu comigo. No seu livro, Teresa descreve a ca­ que se possa dar a união com Deus, a alma tem de estar completamente
minhada rumo às sete moradas do nosso castelo interior. Chegados à purificada. A sua santificação é simultaneamente um fim e um meio;
Sétima Morada, entramos em contacto com Deus, através da voz que como dissse a voz: “a caminhada rumo à união com Deus tem por con­
ouvimos, e vivemos em plenitude. Santa Teresa resumia a Sétima Morada dição o sofrimento e tem por resultado o amor eterno”.
da seguinte maneira:
“Ser o violino de Deus é diferente de tocar violino para Deus. Por P ostscrip tum , 3 an os d epois:
agora, Ele preocupa-Se com o aperfeiçoamento da composição final.
Quando me tiver entregado totalmente a Deus, quando Ele tiver o violino Nestes últimos anos, encontrei um apoio incomensurável nas obras
na Sua mão, ficará concluída a composição final.” místicas de S. João da Cruz, contemporâneo e amigo íntimo de Santa
Com a ajuda do que li, e a partir da minha própria experiência, posso Teresa d’Ávila e carmelita como ela. Os seus escritos estão agora dis­
agora dar algumas sugestões: poníveis nas suas Obras Completas, que incluem Subida ao Monte
-Escolhei a bondade, a luz, Deus. Quando tiverdes escolhido, não Carmelo, A Noite Obscura da Alma* e As Chamas Vivas do Amor. Estes
permitais que nada nem ninguém vos faça desviar. Acima de tudo tende três livros mostram-nos como abordar a união com Deus. As obras de
confiança, porque, seja qual for o vosso sofrimento, virá depois o cres­ Santa Teresa introduzem-nos nas Sete Moradas do castelo interior e
cimento da vossa alma. S. João amplia e clarifica este processo. As suas obras deram-me conforto
-Pensai positivamente. Durante muito tempo, não me dei conta da nos momentos críticos. Parece paradoxal, mas é verdade, que seja pre­
importância deste aspecto, já que os tempos difíceis, por vezes, são ciso sofrer para chegar a este ponto: o sofrimento favorece o crescimento
esmagadores. espiritual e conduz à experiência do sempre crescente e ilimitado amor
- Entregai-vos à criatividade. Para sairdes da depressão dai voz às divino; o sofrimento tempera a alma, o espírito, a mente e o corpo.
vossas lamentações (através do vosso Guia espiritual, por exemplo) e A voz, que ainda hoje não oiço com os ouvidos, ajuda-me de várias
pedi ajuda ao Alto, para emergirdes do vosso Vale de Lágrimas. Aproveitai maneiras neste processo; às vezes sinto que ela me conduz, sinto que as
a energia libertada pelo vosso pranto e começai a usar criativamente as coisas progridem sem necessidade de ajuda ao nível humano; outras
vossas mãos. vezes, penso que é impossível prosseguir e, na verdade, não consigo se
- Comungai frequentemente com a natureza. A natureza é a presença não for encorajada.
tangível do espírito de Deus. Quando a vossa alma está em sofrimento, Hoje em dia, a ideia de sofrimento é em geral rejeitada como não
a natureza tem os seus próprios poderes de cura. tendo sentido, como algo que é preciso evitar a todo o custo. No entanto,
- Sede perspicazes e ficai alerta. Sobretudo nos primeiros tempos, a

* Las Moradas. P u b lic a d o em P o rtu g a l (1 9 9 4 ) p o r A ssírio & A lv im , so b o títu lo * P u b lic a d o em P o rtu g a l (1 9 9 3 ) p e la E d ito ria l E sta m p a , so b o títu lo A Noite
“ A s M o ra d a s” (trad . d e M a n u el d e L u c e n a ). Obscura.

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o sofrimento tem uma função que está para além da imaginação de muita aprendi que não devia contar com a ajuda das vozes nas situações em
gente. S. João da Cruz escreveu: “O sofrim ento conduz à purificação, de que fosse capaz de desenvencilhar-me sozinha. Não devemos ficar depen­
onde em erge um novo hom em espiritual, que se deleitará na presença de dentes das vozes e, sobretudo, deixar-nos resvalar para a preguiça.
Deus por toda a eternidade.” Na verdade, eu até já tinha prometido não explorar as vozes por esses
caminhos, mas as conveniências depressa nos fazem esquecer estas so­
lenes resoluções. O castigo por me ter portado mal no ponto de Alemão
Terceiro contributo pessoal foi um severo lembrete da minha promessa. Para o meu Eu interior, a
experiência foi muito educativa. Anos mais tarde, tive uma experiência
(Anna Hofkam p) semelhante: quando estava a jogar cartas, ouvia exactamente que cartas
devia reter e que carta devia jogar. Por isso, ganhava sempre. Então
Eu tenho dotes paranormais de clariaudiência, clarissensitividade, convenci-me que não estava a ser honesta e parei de seguir as instruções
intuição e, ainda, mas em menor escala, de clarividência. das vozes. Resultado: passei a perder. Mesmo hoje, se estiver dinheiro
Desde que me lembro, sempre tive pelo menos uma e mais tarde em jogo, não aceito que as vozes me digam o que devo fazer.
várias vozes interiores. As minhas primeiras memórias desse facto re­ O intercâmbio entre mim e as vozes prosseguiu desta forma durante
montam ao jardim de infância. Nessa altura, eu tinha dois Eus: um Eu muitos anos. Quando era criança, por exemplo, avisavam-me que estava
infantil normal, crescendo como é costume; e um Eu completamente atrasada e que eram horas de ir para casa; já adulta, avisavam-me, por
desenvolvido. A voz que ouvia mudava de estilo consoante o Eu que exemplo, que não era bom ficar em determinado hotel. Sempre reservei
estivesse em predomínio, falando em termos infantis para o Eu infantil para mim mesma a decisão de acatar ou ignorar esses conselhos mas,
e em termos adultos para o Eu maduro. mais tarde ou mais cedo, provava-se que as vozes tinham razão. Por
Eu aceitava a situação sem reservas, como é normal nas crianças. Os vezes, as vozes assumiam o papel de professores, explicando-me as coisas
meus dois Eus alternavam de um momento para o outro, sem qualquer que me aconteciam, sobretudo até aos meus 6 ou 7 anos e, mais tarde,
transição. A voz interior não permanecia inalterável. O carácter da voz depois dos 26. Por vezes, os seus conselhos eram extremamente práticos
mudava nitidamente consoante as ocorrências. Em geral, advertia o meu como, por exemplo, descobrir algures um lugar para estacionar ou como
Eu infantil em certas situações, por exemplo, do perigo de brincar ao pé apanhar o comboio.
de uma vala. A voz era geralmente mais explícita para com o meu Eu Tendo nascido na companhia de uma voz, nunca a vivi como um
adulto, avisando-me para não dizer que ouvia vozes, por isso poder ser fenómeno exterior a mim, mas sim como parte de mim mesma - como
mal interpretado, ou, então, explicando-me por que razão um professor uma consciência, se bem que não a possa pura e simplesmente ignorar
agia de determinada maneira. A diferença de tom era tão nítida que quando ela se torna um problema. Nunca senti grandes dificuldades com
ainda hoje está gravada em mim. À medida que fui crescendo, o meu Eu esta experiência, embora reconheça que isso é a excepção e não a regra.
adulto foi-se desvanecendo, até se extinguir por volta dos meus 10 anos. Em 1976, tirei um curso de psicoterapia espiritual, com um inglês
A voz continuava, misto de anjo-da-guarda e melhor amigo. Era sempre chamado Beesley. Aprendi imenso com ele sobre o ser humano enquanto
fácil reconhecê-la, umas vezes advertindo-me, outra vezes confortando- ser espiritual e sobre a reincarnação. Estes temas poderiam ser consi­
-me, mas sempre afectuosa. derados como do foro paranormal, mas hoje há tanta gente que se
Uma vez, na escola secundária, tirei proveito dessa minha voz inte­ confronta com o paranormal, numa ocasião ou noutra, que isso acabou
rior: respondeu a todas as perguntas num teste de Holandês. Era a por se tornar um lugar-comum. Entre outras coisas, aprendi muito sobre
cábula ideal, que nenhum professor podia detectar! Infelizmente, quando o significado de ouvir uma voz ou mais. Essas vozes podem ser guias
precisei de idêntica ajuda num ponto de Alemão, não aconteceu nada interiores, mas nem sempre assim é - também há vozes negativas. As
disso e tive que me contentar com um 3. A partir desta experiência, vozes podem vir dos mortos, mas também podem ser uma projecção do

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" " " " próprio inconsciente. Aí vozes negativas ocupam-se geralmente cer, por fim, o meu ponto fraco - a relação com as outras pessoas. O
dos medos e doutras emoções negativas. O inconsciente é muito comple­ mundo invisível, as suas vozes e imagens, era-me familiar e não me dava
xo e, tal como acontece no mundo objectivo, pode ser ora uma fonte de motivos de ansiedade. Aprendi a adaptar-me a eles, incorporando os
disputas, ora uma fonte de afeição. elementos concordantes e rejeitando, respeitosa mas firmemente, os ele­
Depois de acabar o curso, reparei que o carácter da voz se começou mentos discordantes de mim. Isto nem sempre é fácil, sobretudo quando
a alterar. Por exemplo, uma vez insistiu comigo para nunca mais fumar o medo controla e domina tudo. Quando aparecem as circunstâncias
nem comer carne. Achei que era um abuso e respondi-lhe que a vida era negativas, não é a voz em si que nos oprime, é antes uma ameaça
minha e que se eu quisesse fumar fumava, ninguém tinha nada com isso. aterradora e difusa. Deste modo, é importante fomentar atitudes positi­
Então, uma voz simpática e afável disse-me que era o meu conselheiro vas e ganhar força, o que pode trazer ajuda e confiança, sobretudo
interior. Fiquei lívida e atónita, sentada, de olhos arregalados e de boca àqueles que são menos receptivos à influência das forças negativas.
aberta. A partir de então, a voz negativa desapareceu e a voz amiga Quando se procura compreender o fenómeno de ouvir vozes, pode ser
ficou. difícil encontrar explicações lógicas para o conteúdo delas. Se se der
Desde 1976, esta voz - o meu Guia espiritual - tem-me dado muitas atenção às circunstâncias em que as vozes aparentemente surgem, talvez
lições filosóficas. Entre outras coisas, aprendi como agir perante as seja mais fácil dar algum sentido ao fenómeno. Douwe Bosga, na sua
vozes positivas e negativas e qual o compromisso ideal entre esses dois Secção sobre Parapsicologia (ver Capítulo 7), cita Spinelli, especialista
pólos. Claro que é maravilhoso poder contar com essa voz, com esse britânico em Psicologia do Desenvolvimento, que formulou a hipótese de
companheiro, mas nem sempre é fácil, na medida em que, andando assim antes da aquisição de uma identidade estável haver uma maior suscep-
tão absorvida, se torna fácil perder o contacto com a realidade. Houve tibilidade à distorção das percepções. As opiniões que formulou são o
uma altura em que me vi dilacerada entre dois mundos. Andava, então, resultado, sobretudo, do trabalho com crianças. Pela minha parte, venho
na Escola Superior de Ciências Sociais, cujo ambiente e nível de exigên­ notando que as pessoas que têm problemas de identidade também têm
cia estavam num comprimento de onda totalmente diferente do do meu dificuldade em lidar com os fenómenos paranormais. Ao lidar com estes
mundo interior - e esse conflito tornou-se-me tão difícil que acabei por fenómenos, creio ser de capital importância valorizar a formação da
perder o interesse por ambas as realidades. Fiquei fisicamente doente, identidade pessoal, desenvolver o amor próprio, a auto-estima e a acei­
completamente esgotada, embora os meus sintomas fossem bastante vagos tação total de si mesmo, com as qualidades e os defeitos próprios. Isto
e o meu médico não lhes desse grande importância. é verdade para toda a gente. Quando a auto-estima é insuficiente, a
Através de uma pessoa conhecida, entrei em contacto com Zohra (a pessoa torna-se facilmente sugestionável e pode ficar à mercê da influ­
Sr.a Bertrand-Noach), que faz conferências e escreve livros sobre a sua ência dos outros. Isto é particularmente assim na escuta de vozes que
vivência espiritual. Quando eu estudava com ela (1982-1988) e meditava emitem ordens e ameaças absurdas, ou fazem aparecer imagens
nos seus ensinamentos, ficava maravilhada com a forma como ela era desconcertantes, que despertam sentimentos de culpa e medos
capaz de fazer luz sobre o meu guia interior; Zohra foi a única pessoa inexplicáveis. O único valor que reconheço às vozes e às imagens nega­
capaz de sondar e iluminar a minha experiência. A sua abordagem tivas é o facto de revelarem zonas de fraqueza do nosso inconsciente e
poderia chamar-se “Psicosofia”: de psycho - “alma” e sophya - “sa­ nos darem uma prova clara de que na nossa vida há muito mais do que
bedoria”. É uma maneira de estabelecer contacto com a sabedoria e o aquilo que os nossos cinco sentidos sugerem; esta é uma verdade impor­
poder interiores de cada um. tante, que pode conduzir-nos a um maior conhecimento e a uma cons­
Então e agora, essa mulher ajudou-me a integrar a dimensão espi­ ciência interior mais clara.
ritual na vida quotidiana e a aprender a estar bem comigo mesma. Quando De acordo com a minha experiência, sugiro-vos um exercício que
estava enredada entre dois mundos, esse dilema alienava-me e consumia pode ser útil para o desenvolvimento de uma atitude positiva e aumentar
as minhas energias. Não fui capaz de lidar com a situação até reconhe­ a força interior:

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Tentem relaxar-se e imaginem no vosso coração uma chama que Uma palavra final: quanto melhor aprendermos a lidar com as nos­
irradia luz e calor. Não é necessário que seja uma grande chama, basta sas emoções, mais leve e mais positivo se tornará o ambiente que nos
que tenha o tamanho certo para que se sintam confortáveis. Vejam como rodeia. Indirectamente, isso irá alimentar as almas dos mortos e outras
a luz e o calor são uma fonte de energia que se difunde em vós com a forças, permitindo que elas se aproximem da sua própria luz. A escuta
vida; irradiam do vosso coração, penetram no fluxo sanguíneo e espa­ de vozes é uma coisa extraordinária, em especial se não estiverem em
lham-se por todo o vosso corpo. Sintam-se muito seguros, no vosso causa emoções perturbadas. A todos vós que ouvis vozes, desejo muito
próprio calor. Esta luz não pode ser afectada por nada que esteja fora amor e muita sagacidade no trato com elas.
de vós, e está sob o vosso completo controle; não pode extinguir-se,
existirá sempre. Esta é a fonte do vosso poder, a força que vos permite
ser aquilo que quiserdes. Deixem a luz e o calor fluir através do vosso Quarto contributo pessoal
corpo por algum tempo, e sintam a vossa energia crescer, como se fosse
uma bateria a carregar. Tudo começou quando o mensageiro fantasma me apareceu no jar­
Podem repetir este exercício as vezes que for necessário. Se à primei­ dim, anunciando que a presença de Marc no meio de nós estava a chegar
ra vez parecer que não resulta, não se preocupem. Com a prática, torna- ao fim. Marc, o meu filho, que tinha então 28 anos de idade, sofria da
s e cada vez mais fácil concentrar-vos e a sensação de luz e calor au­ doença de Hodgkin - um cancro dos gânglios linfáticos. Esse mensageiro
mentará. era belo e cortês, muito alto e moreno, e tinha uma presença que infundia
Actualmente, parece assistir-se a uma onda de interesse por diversas respeito. Transmitia as mensagens telepaticamente e eu compreendia-o,
formas de contacto com os mundos invisíveis, positivos ou negativos. Em sem que ele pronunciasse uma só palavra.
consequência disso, as forças positivas que influenciam a nossa vida Durante a agonia de Marc, vi o seu ser espiritual separar-se do seu
estão a aumentar. Eu própria vi a negatividade ser superada pela corpo real: um vapor saía em espiral da sua boca*. Marc teve uma
positividade. Este é o caminho. Uma pessoa clarividente, muitas vezes, recuperação parcial e esse vapor ficou a pairar em volta da sua cabeça.
apercebe o medo sob a forma de um grande gancho: a cada vitória sobre Houve momentos em que deixei de ver esse vapor e Marc recuperou a
o medo, o gancho endireita-se, fica mais transparente, mais pequeno, consciência por instantes. Este corpo espiritual reapareceu mais tarde
menos real e menos capaz de prender. E vocês ficam realmente mais sob várias formas diferentes, todas maravilhosas.
aliviados. Depois que Marc foi levado de junto de nós, vi-me rodeada de ruídos,
rangidos e coisas do género. Quando me dispus a falar no caso, as
Não acredito que se possa resolver os problemas relacionados com pessoas diziam que todas as casas rangiam e faziam vários ruídos, mas
a escuta de vozes negando-as ou suprimindo-as - isso só poderá agravar eu sabia que no meu caso era muito diferente. Mais tarde, deu-se um
os problemas. Ouvir vozes tem um lado positivo; confiem na vossa in­ episódio em que os meus amigos foram levados a concordar com a minha
tuição. Fazei um pacto convosco: se as vozes quiserem que façais alguma opinião, e essa confirmação deu-me uma grande alegria. Agora eu tinha
coisa, sugeri-lhes que o peçam três vezes. Se os pedidos ou conselhos das a prova de que não estava só. Recebia sinais e avisos tão claros e
vozes forem realmente importantes, terão de ser repetidos, mesmo que miraculosos que só podiam vir de Marc.
isso leve algumas semanas. Entretanto, lembrem-se: sempre que fizerem Contudo, os ruídos continuavam a perturbar-me, a ponto de não me
o que as vozes dizem, é a vossa vida que está implicada e vós sois os atrever a ir para a cama: sempre que estava a começar a dormir, os
responsáveis por ela. Não precisais de vos deixar dominar pelas vozes ruídos atingiam o seu máximo e tornavam-se insuportáveis. A situação
mas podeis entrar em contacto com elas - não há nada que vos impeça
de fazer isso. Se tratardes as vozes com respeito, também elas vos res­ * A ideia deste “vapor” está consagrada, entre nós, no túmulo de Egas Moniz,
peitarão. em Paço de Sousa (Penafiel).

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manteve-se assim durante algum tempo. Então, uma bela noite, comple­ Sempre achei os meus pais e as pessoas que me rodeavam mais
tamente exausta, amaldiçoei-os com violência e virei-lhes as costas. simpáticos, mais gentis, mais amáveis e sobretudo mais sensíveis e co­
A partir desse momento fui sempre capaz de adormecer longa e profun­ nhecedores do que eu, o que me tornava difícil compreender por que é
damente. Recusei entregar-me ao medo e sempre que ouvia um ruído de que agiam como agiam, fazendo-me sentir que estavam a cometer erros
ranger ou de estalar encarava-o de frente e dizia-lhe que não me inco­ grosseiros. Era quase como se agissem por mera má vontade e má fé,
modasse. Em consequência disso, o medo e os ruídos foram desapare­ causando efeitos nocivos em mim e nas outras crianças. Sempre me
cendo gradualmente. admirei, dada a minha curta experiência de vida, como é que eu, aos 6
Desejava saber o significado de tudo isto e, depois de muito procurar, anos, compreendia tão bem o comportamento de um adulto. Agora sei
encontrei uma mulher — Simone van Vel — que era médium espirita. que isso se devia ao facto de compreender tudo numa dimensão dife­
A primeira coisa que me disse foi que eu e o meu filho estávamos em rente.
comunicação telepática. Através dela, Marc disse-me que, daí a uns Sei agora que aquilo a que costumava chamar a minha consciência
meses, eu iria entrar num período de aprendizagem e que, então, poderia - a voz que me vem acompanhando ao longo da vida - tem sido, como
compreender melhor. Tudo isso era incrível e surpreendente para mim, agora lhe chamo, um Auxiliar Supremo. Ele tem cuidado de mim em
tanto mais que gostava de acreditar que Marc ainda existia, estava bem circunstâncias que outros, segundo eles próprios me dizem, nunca pode­
e era feliz. No entanto, não me queria agarrar a uma esperança baseada riam suportar. Sem o conhecer, este poder (seja ele o que for) tem
numa mera ilusão. Depois de esgotar as possibilidades mais imediatas, governado toda a minha vida. No mais profundo de nós mesmos, reside
estava determinada a saber mais, e essa determinação impulsionou-me essa parte de nós que é a verdadeira fonte de sabedoria e conhecimento
a prosseguir a minha busca. que está à espera de se abrir ao exterior. Os termos que cada um escolhe
Fiz um curso de autodesenvolvimento, dado pela referida médium, para descrever esse poder dependem da perspectiva que tiver sobre a
que repetidamente me instruía a sentar-me a uma mesa, com uma vela vida.
e uma foto do meu filho, e a apontar tudo o que me viesse à mente. Assim, dei início a um lento e laborioso processo de crescimento, um
Tentei, mas não descortinava qualquer sentido. Estaria a ouvir as mi­ estudo de todos os aspectos do sobrenatural (acima de tudo, a sua
nhas próprias palavras e os meus próprios pensamentos? Parecia sim­ maravilha e a sua beleza), interrompido, aqui e além, por hiatos, aos
ples demais. Mais tarde, porém, cheguei à conclusão de que as mensa­ quais se seguia um progresso mais rápido. Entretanto, aprendi a contactar
gens eram de facto transmitidas e recebidas. Para espanto meu, estava deliberadamente os Seres Supremos para descobrir o que de melhor
a receber mensagens de outro mundo, onde o meu filho está, e onde todos existe em mim, culminando em jubilosas vibrações que percorriam todo
continuam a existir depois de abandonar o corpo terreno. o meu corpo. Aprendi a fechar a minha aura, de forma a que só as
Durante o curso, aprendemos a desenvolver a utilização dos nossos Entidades Supremas me possam atingir. Isso quer dizer que deixava de
sentidos e, ao longo desse processo, convenci-me de que sempre tinha estar à mercê de influências inferiores, ligadas à terra, que têm as suas
lido o futuro. Então compreendi que era mais sensitiva do que a maioria próprias necessidades e exigências espirituais e que, por isso, não têm
das pessoas e que já tinha esses dons quando era criança — na verdade, orientações nem conselhos para oferecer.
esses dons tinham sido até a causa de algumas dificuldades de relacio­ A passagem por este processo fez-me mudar radicalmente. Ao fim de
namento com os meus pais, embora ache que talvez eles compreendessem uns anos, as minhas ideias acerca da vida e da morte, das pessoas e da
o que se estava a passar. Sempre me senti revoltada ante situações sociedade, alteraram-se de tal maneira que tudo o que me era familiar
evidentes para mim mas que para as outras pessoas eram invisíveis ou passou a ser uma questão em aberto. Sem o saber, e com resultados
desconhecidas. Na altura, interpretava como mero despeito a incapaci­ excelentes, tinha entrado em contacto com uma rede de apoio. Fui auten-
dade deles em compartilhar da minha sensibilidade. ticamente inundada por muitas e preciosas intuições que, a bem dizer,

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me têm vindo a guiar para o meu supremo bem. Esta nova visão das amigos e das outras pessoas e de não procurar impor os meus pontos
pessoas e do mundo contém uma profunda filosofia de vida, que nos de vista. Aliás, quando eles próprios se encontram em dificuldade, de­
torna capazes de funcionar ao nível mais intuitivo e profundo. Todos pressa lá chegam.
podemos mobilizar as nossas próprias fontes de energia interior para nos Se é certo que fiz consideráveis progressos, também é verdade que
realizarmos e nos livrarmos dos processos de doença e de confusão. tive de interromper o trabalho de vez em quando, por estar muito can­
Cada um de nós possui a capacidade de compreender a sua própria sada, por vontade de me distanciar, ou, simplesmente, por estar farta.
sugestionabilidade e de aprender a seguir o seu destino, educando o seu Preocupa-me muito poder cometer erros e causar ainda mais problemas
próprio Eu. às pessoas que vêm ter comigo em dificuldade. Sinto-me extremamente
A partir deste processo, aprendi a ajudar as pessoas a valer-se sis­ animada pela confiança que as pessoas depositam em mim, especialmente
tematicamente das sugestões dos Auxiliares que todos nós temos. Des­ porque eu própria me sentia muito hesitante no início. Curiosamente,
cobri que não funciono se estiver muito preocupada, desanimada ou mais cedo ou mais tarde, as minhas predições acabam sempre por dar
fatigada. Percebi que se der algo de mim a pessoas com medo, ansio­ certo. Sugiro às pessoas que apontem ou gravem tudo o que se passa
sas ou inquietas, essas emoções me incapacitam; por isso, tive de fazer entre nós e, depois, relatem, tão literal e honestamente quanto possível,
frente às reais dificuldades das situações adversas e de aprender a ser tudo o que eu ouvir; preocupo-me tanto comigo como com elas, para ser
selectiva. Confrontada com tanta comunicação, tive de aprender a pre­ o mais responsável possível. Comovo-me sempre quando, talvez alguns
servar o meu equilíbrio e a detectar se estou ou não no comprimento anos mais tarde, as pessoas me vêm dizer que as mensagens veiculadas
de onda adequado.
A experiência de estabelecer contados deliberados depende, em grande por mim tinham sido seguidas por elas com grande proveito.
medida, da energia interior de cada um. Antes de mais, sempre que me No Congresso de Maastricht, travei conhecimento com várias orga­
encontrava casualmente com alguém, emergia de um estado de torpor. nizações, entre elas O Caminho. O Caminho e as ideias de Eva Pierrakos
Cada um de nós é influenciado pela energia interior dos outros; isso estão muito próximos das minhas próprias experiências. A perspectiva de
mantem-nos ligados à terra e constitui o ponto de onde fluem as decisões Pierrakos e as expressões por ela utilizadas deram conforto à minha
que regem a nossa vida terrena. Mas, se existir dentro da alma uma alma; até então, nunca eu tinha conhecido ninguém que tivesse desen­
vontade suficientemente forte, podemos aprender a dar resposta às ex- volvido a sua própria abordagem nesta área. Falta dizer que, do fundo
pectativas e exigências do sobrenatural e a trabalhar com ele. Mas, para do coração, recomendo os livros e os artigos desta notável médium. Com
isso, não temos que ser usados como autómatos; caso contrário, será a sua ajuda, experimentei uma nova onda de crescimento e posso agora
impossível organizar uma contra-força. O mesmo se diga de outras in­ trabalhar outra vez com as pessoas com uma confiança renovada.
fluências fortuitas. É essencial que nos agarremos a um sentimento pleno Numa retrospectiva da minha vida, poderei concluir que o maior
de identidade própria, mas sem que as nossas imperfeições e insuficiên­ benefício que obtive foi, em última análise, o desenvolvimento de uma
cias nos toldem a visão correcta dessa identidade — o que poderia en- grande energia interior; embora tivesse sido ajudada e orientada das
fraquecer-nos. maneiras que descrevi, tenho de reconhecer que foi a minha própria
Quando se começa a confiar nas pessoas, adquire-se um novo círculo iniciativa que desencadeou um novo crescimento. O ímpeto para a acção
de amigos e depressa se descobre que nem toda a gente está sensibili­ tem de vir de dentro de mim mesma; tenho de correr o risco e assumir
zada para estes assuntos. Mas tenho de confessar que se não tivesse sido a responsabilidade de me lançar para a frente. Todos os que já trilharam
predisposta pela morte do meu filho, dificilmente estaria sintonizada com estes caminhos sabem, certamente, o que isso exige: todos os perigos, a
esta linha de pensamento e, se calhar, até lhe teria resistido veemente­ angústia, o começar de novo. Apesar de tudo isso, porém, podemos
mente. Por isso, tenho sempre o cuidado de respeitar a opinião dos aprender a ganhar a coragem necessária para continuar.

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Quinto contributo pessoal Ele disse-me que o conteúdo tinha sido expresso por Eva Pierrakos,
embora não fossem exactamente palavras dela; que ela era uma médium,
Desde já vos digo que sou uma mulher de sorte: nunca me senti que entrava em transe e servia de porta-voz de uma outra personalidade
confundida pelas vozes que oiço. Isto não quer dizer que eu seja uma ou consciência espiritual. Eu não acreditava nesse gênero de coisas e
espécie de heroína; o que se passa, simplesmente, é que tinha lido umas disse-lho, e não tornámos a falar no assunto. No entanto, continuei a ler
coisas sobre escuta de vozes antes de as começar a ouvir; isso e mais coisas dela, ao todo 260 conferências que passavam em revista todos
algumas ocorrências prepararam-me para o fenómeno. os aspectos concebíveis da psicologia humana. A pouco e pouco, dei
Creio que esta nova fase da minha vida terá começado já em 1979. comigo a querer saber se havia de facto um espírito implicado naquilo.
Nessa altura, atravessava uma crise terrível e andava muito descrente em Alguns anos mais tarde, chamou-me a atenção um livro escrito por
relação a mim mesma: tudo o que fazia era para mim um libelo acusatório, Jane Roberts; ela também era capaz de entrar em transe e de falar em
fazendo-me ver que não prestava. Uma convicção destas depressa con­ nome de seres espirituais. Tanto Eva como Jane impressionavam-me por
duz qualquer pessoa ao desespero, e vi-me forçada a pedir ajuda a um serem totalmente normais: gostavam de discotecas, eram gulosas, gos­
psicoterapeuta*. tavam de se estender ao sol e de beber bom vinho. Mas eram também
Retrospectivamente, sinto que o psicoterapeuta, ao dar-me tempo e capazes de algo extraordinário.
atenção, me ajudou a desenvolver um sentido saudável do Eu. Ele per­ Jane Roberts tinha 32 anos quando ouviu pela primeira vez uma voz
guntava “O que é que você ganha com isso?” ou “Por que é que você na sua cabeça. A sua reacção foi de que estava tudo muito bem, mas
diz isso? Quando eu tinha que tomar decisões sobre qualquer assunto queria ter a certeza de que não era uma ilusão nem um produto do seu
que me dissesse pessoalmente respeito, nunca era capaz de decifrar o subconsciente ou inconsciente. Assim, dedicou um ano ao estudo dessa
que ele sentia das coisas. Pôs-me a andar novamente pelo meu próprio voz, dando-nos conta disso no livro O Que Diz Seth (Seth Speaks). Ela,
pé. Ajudou-me a desenvolver a capacidade de fazer escolhas conscientes, o marido e outras pessoas envolvidas no caso começaram a convencer-
de medir os prós e os contras de cada decisão e de assumir a respon­ -se de que, na verdade, ela falava em nome de uma entidade chamada
sabilidade dessas escolhas, mesmo nos aspectos menos agradáveis. Na Seth.
altura, tudo isso era um conceito completamente novo para mim. Seguidamente, devorei um por um os outros cinco livros sobre Jane
Certo dia, depois de eu ter estado a falar de mim, o terapeuta per­ Roberts e Seth. Havia uma impressionante semelhança entre os relatos
guntou-me se eu gostaria de ler qualquer coisa e deu-me, para levar de Jane e os de Eva, que também tinha um Guia que falava através dela.
para casa, 9 páginas dactilografadas em papel A4, com o título “60.a Entretanto, abandonei a minha incredulidade em entidades espirituais.
Conferência . Tratava-se de um relato de um aspecto do desenvolvimento Já não me lembro em que livro li que Seth tinha introduzido um
psicológico. Fiquei muito impressionada com a perspicácia revelada no exercício de relaxamento para nos auxiliar no entendimento da possibi­
texto, que viria fazer luz sobre a minha atitude negativa até então. Tudo lidade de haver outras coisas. Pratiquei esse exercício e, ao fim de
isso era e é muito claro para mim, mas ainda tenho dificuldade em algumas sessões, vi, ou melhor, senti uma imagem do lado de dentro dos
descrevê-lo aqui. Consegui entender esse texto, quer no plano intelectual meus olhos fechados; percebi de imediato que era uma advertência sobre
quer no plano emocional. Os seus esclarecimentos mostravam como um pensamento que acabava justamente de passar na minha cabeça.
trabalhar no auto-aperfeiçoamento. Eu tinha 43 anos de idade e nunca Fiquei agradavelmente surpreendida, na medida em que essa advertên­
tinha lido nada a um plano que se me afigurasse tão elevado; assim, cia representava ajuda numa area psicológica em que eu tinha alguma
senti-me levada a perguntar ao meu terapeuta quem tinha escrito aquilo. prática. Depois disto, durante ano e meio, passei a admitir que, com
ajuda e prática, qualquer pessoa seria capaz de experiências semelhan­
* Como se verá de seguida, o termo “psicoterapeuta” é utilizado aqui em tes. Oportunamente surgiram novas imagens, mais tarde palavras. Por
sentido lato, de alguém que dá ajuda psicológica, neste caso, espiritual. se tratar de coisas muito pessoais, guardei tudo isso para mim. E, é

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• também tinha algum receio de que as outras pessoas achassem lhantes. Já não me lembro com que frequência ocorriam esses episódios,
isso muito estranho. Quando mais tarde me abri com outras pessoas mas sei que estive preocupada com esses problemas durante algum tem­
rspiritualmente evoluídas, tive um grande trabalho em convencê-las de po. Eram várias vozes: uma, era uma voz áspera, de homem, na minha
que essas experiências não estavam ao alcance de qualquer um. Pode­ cabeça ou mesmo atrás de mim; outra, uma voz aguda, estridente, de
mos comparar este fenómeno com o estar ou não sintonizado com deter­ mulher, sussurrando com força no meu tórax, mais branda daí para
minado comprimento de onda. baixo, que aparecia por baixo de mim, à esquerda, ou por cima de mim,
E-me difícil dizer se oiço palavras ou se as sinto. As vezes, elas à direita; e uma outra voz, nasalada, que me ridicularizava ou se ria de
parecem vir de muito longe; muitas vezes compreendo imediatamente, mim. Ora apareciam sozinhas ora em grupo, dando-me ordens destrutivas
outras vezes não. Sempre tive a certeza de que determinadas mensagens ou fazendo comentários sem sentido. Faziam também algumas observa­
não provinham do mundo dos meus próprios pensamentos; o pensar ções sarcásticas, umas muito astutas outras mais cruéis - e estas magoa­
sente-se de uma maneira diferente. Durante este período, as minhas vam-me profundamente. Estava estonteada com a subtil e penetrante
experiências quando muito foram inesperadas, surpreendentes, mas nunca inteligência demonstrada por algumas vozes. Todas elas tinham manei­
senti nelas nada de ameaçador. A linguagem utilizada puxava um tanto rismos que eu reconhecia em mim mesma. Mas era muito confuso para
para o formal e era diferente do meu estilo pessoal de falar; normalmen­ mim quando um bom conselho era dado numa lamúria desagradável ou
te, o conteúdo era algo que eu nunca tinha conseguido atingir: uma quando um comentário vexatório era feito num tom de voz amistoso.
ideia, um palpite, uma sugestão ou uma resposta a qualquer coisa que Estava embaraçada, sem saber o que fazer e em que acreditar.
me tivesse deixado curiosa. A fonte dessas palavras conhecia-me melhor Sempre preferi a certeza à incerteza, e sempre me recusei a fazer
que eu própria, e isso fazia-me sentir que não tinha segredos. Tudo isso fosse o que fosse sem antes estar convencida de proceder correctamente;
era estranho para mim e, além do mais, fazia-me perder muito tempo. se sentia que alguma coisa estava errada, cortês mas firmemente (por
Depois de ano e meio de experiências positivas, algo de muito dife­ vezes zangada), mandava o mensageiro embora para junto dos seus
rente aconteceu. Passados dois anos, numa manhã de domingo, senti amigos. Na dúvida, dizia-lhe que não tinha a certeza, que precisava de
subitamente um estrondo junto à minha testa, acompanhado de uma pensar, que me deixasse sozinha. Então, a voz ia-se sempre embora. Eu
longa torrente de palavras, predizendo um terrível acontecimento. Tudo sabia que, mesmo que estivesse com medo, nunca devia pedir satisfações
isto foi completamente inesperado; fiquei em pânico e nem queria acre­ nem agir intimidada. Tornou-se-me claro que seria ridículo pensar que
ditar no que estava a acontecer. A princípio, pensei que era imaginação elas pudessem prevalecer sobre a minha própria vontade. Nunca lhes
minha, mas depois achei que era melhor levar aquilo a sério e fazer coloquei questões que as pudessem encorajar; na verdade, estava
alguma coisa. Estava completamente perplexa, quando me lembrei de convencida de lidar com forças potencialmente perigosas, de que tinha
Seth. Fui procurar num dos livros dele se haveria alguma pista sobre a medo.
maneira de afastar pensamentos negativos, seja através da imaginação, Para mim, um aspecto central é saber como lidar com visitas não
seja através de gestos físicos. Tudo isto era novo para mim mas, feliz­ convidadas ou indesejáveis - e as mais importantes são as piores. Dei-
mente, estava sozinha e não corria o risco de parecer maluca aos olhos xem-me dar-lhes um exemplo. Com o tempo, acabei por verificar que há
de ninguém. Nos seus livros, Seth dá instruções sobre a maneira de uma relação entre os padrões do meu pensamento e o tipo de visitas que
detectar e afastar esses pensamentos negativos, e eu imediatamente pus posso esperar. Sempre que alimento pensamentos negativos, as vozes
em prática os seus conselhos. Mais adiante, voltarei a este assunto. negativas aparecem. Eu sei isso, mas às vezes ainda me esqueço. Há
A minha reacção ao que se estava a passar foi de raiva —eu não iria duas semanas estava muito zangada com uma pessoa, e passei grande
ser usada para tais propósitos. Fervendo de indignação, passei à acção parte do dia a resmungar comigo mesma. À noite, estava sozinha em
recomendada por Seth. O incidente parecia sanado, mas depressa ficou casa, quando, de repente, uma voz estridente gritou “Olá, querida!”
claro que aquilo era apenas o começo de uma série de episódios seme­ Nesse preciso instante, vi uns olhos grandes, lânguidos e flamejantes que

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me fitavam, e senti toda a minha energia escapar-se em todas as direc- padrões de pensamento negativo e o comportamento execrável das vozes,
ções, como se eu estivesse a explodir de susto. Sabia por experiência e eu, perante essa realidade, fico compreensivelmente apavorada. Nós
própria que, se não fizesse nada, ficaria inquieta, incapaz de me concen­ humanos preferimos não acreditar que, em parte, podemos ser os respon­
trar, respondendo tensa às pessoas e aos acontecimentos. sáveis pelas experiências negativas que temos. Todos apreciamos o
Sendo assim, achei que tinha de fazer qualquer coisa, seguindo o prazer, enquanto que o que é desagradável não atrai ninguém. Contu­
conselho de Seth. Confio nele e não sei de ninguém mais competente para do... Isto é muito bem conhecido n ’0 Caminho.
me dizer como lidar com as vozes que surgem na minha cabeça; Ele É assim que eu vejo esta questão. Sempre que mando o diabo embora,
próprio aparece sempre nas nossas cabeças sob a form a de uma voz. tenho paz por um instante, mas, mais tarde ou mais cedo, de uma form a
Naquele dia, tendo irradiado tantas forças negativas, atraí o diabo. ou de outra, ele regressa à minha vida. Depois do segundo ano de vida,
Sabia que tinha negatividade, ou seja, o diabo em mim - mas eu não sou construímos convicções interiores, uma miscelânea de positivo e de
o diabo. Assim quando ouvi a voz naquele domingo, imediatamente decidi negativo, de verdade e de juízos errados. Do lado negativo, encontramos
não me identificar com o diabo - estivesse ele dentro de mim, dentro dos o ressentimento, o medo, a desconfiança, a incredulidade, o ódio, a
outros ou à minha volta. Atirei para o mais longe que pude todo o diabo crueldade e outros impulsos destrutivos. Habitualmente, é a um nível
que estava dentro de mim. Aprendera com Seth a fazer um gesto físico inconsciente que nós, correcta ou incorrectamente, interpretamos as
que me dá força e permite dizer: “Pronto, já saiu”. Depois, gritei para experiências da vida e outras impressões; os erros de interpretação que
o mensageiro: “Não te quero aqui, vai para os teus am igos.” se mantêm no inconsciente são os responsáveis pelos nossos problemas.
Agora sei que as pessoas trazem dentro de si não só o diabo mas Como o inconsciente não nos é directamente acessível, não o podemos
também a luz e o bem. Existe um Eu superior, uma fonte de calor feita confrontar com a realidade. Nós somos cegos para os mecanismos que
de energia positiva pura, e é a partir dela que tomo as minhas decisões impedem as nossas interpretações de corresponder à realidade - uma
construtivas. Sempre achei que, em boa verdade, apesar de todos os realidade que, aliás, varia de indivíduo para indivíduo, na mesma me­
meus defeitos, sou boa pessoa. Um bebé comove-me porque irradia doçura. dida em que as nossas vidas diferem umas das outras. Assim, há pessoas
A minha descoberta da bondade fo i dificultada por concepções erróneas, que têm sorte no amor mas não têm tostão, enquanto a outras sucede o
interpretações negativas e coisas assim, mas decidi que, acontecesse o contrário. Nós reagimos de acordo com as nossas conclusões e, ao mesmo
que acontecesse, iria cultivar em mim o bem. No meu caso, faço-o pre­ tempo, criamos também a nossa própria irradiação, com a qual atraímos
enchendo os pensamentos com imagens de luz. Respiro luz pelo alto da pessoas semelhantes, acontecimentos e, ainda, as vozes. Por estas ra­
minha cabeça, até que a luz preenche todo o meu ser físico. Isso relaxa- zões, todas as pessoas na escola de O Caminho trabalham em confor­
-me e dá-me sensações de prazer, e continuo até me sentir como que a midade com esta visão de si mesmas, quer oiçam vozes quer não. Uma
sorrir por dentro. Ao mesmo tempo, penso na fonte que tenho dentro de vez conscientes dos nossos impulsos destrutivos e da maneira como lhes
mim e digo algumas frases afirmativas, como: “vivo num mundo segu­ damos expressão na nossa vida, podem os, se assim escolherm os,
ro”; “sei que presto”; e “gosto das pessoas e elas gostam de m im ”. transformá-los em algo positivo, no nosso próprio interesse e no interes­
Passado um bocado sinto a minha energia fluir de novo e fico cheia de se dos outros. Na companhia de pessoas preparadas para esta tarefa,
paz interior. A í vezes sinto um rugir de fundo e a inquietação ameaça ajudamo-nos a nós mesmos e a cada um dos outros, com graus variáveis
voltar, mas só paro o meu exercício quando tudo se pacifica à minha de sucesso, a não negar os defeitos que abrigamos dentro de nós.
volta; isso pode levar 2 a 20 minutos, consoante a minha capacidade de Tudo isto pode parecer um tanto ameaçador mas, felizmênte, o resul­
concentração. Depois já sou novamente capaz de pensar com clareza, tado é que as pessoas passam a gostar mais de si mesmas - e, por
sem perturbação emocional. extensão, das outras pessoas também. O que acontece é que, quando se
Chegada a este ponto, sinto-me realizada, mas o meu trabalho não passa a conhecer a nossa realidade corrente, todos os aspectos da per­
está ainda concluído. Como disse, existe uma conexão entre os meus sonalidade que estiveram em exame são inundados por um estado de

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alívio. Negá-los só contribuirá para desenvolver um sentimento de culpa. secretamente, inconscientemente, sabia que eram mesmo vozes. Rezei
A medida que aumenta a nossa convicção e o nosso desejo de mudar, uma Ave-Maria à minha mãe, na campa dela, e acrescentei: “Quando
torna-se-nos cada vez mais difícil exprimir espontaneamente o melhor do chegar a casa volto a falar contigo.” Então, ouvi uma voz dizer: “Está
nosso Eu. Eu própria me tornei mais dócil e as minhas experiências com bem, minha filha, então vai-te embora.” Decididamente, era mesmo a
vozes inúteis estão agora espaçadas de meses umas das outras. minha mãe a falar.
De tudo isto, é possível que vocês concluam que sou m édium , mas Quando optei por me relacionar conscientemente com as vozes, por
não é esse o caso. Ainda tenho de passar por um longo trabalho de vezes recebia informação que fazia sentido; essas eram as vozes positi­
purificação e não sei o que me está reservado. vas. Havia também vozes negativas, que me impediam de fazer coisas ou
que me faziam coisas a mim. Por exemplo, podiam tornar o meu braço
pesado e levantá-lo no ar; então, eu chegava à parede e punha-me a
Sexto contributo pessoal escrever nela, sem lápis, o que as vozes me diziam. Escrevia na parede
as coisas mais incríveis, os desejos mais embaraçosos. Aí vozes também
Para vos contar a história de como me dei conta de ouvir vozes, me mandavam ir a lojas onde, diziam, iria ver ou experimentar alguma
positivas e negativas, e de como aprendi a lidar com elas, terei de recuar coisa, mas, evidentemente, não era esse o caso. As vozes faziam-me
aos meus 28 anos de idade, quando o meu marido, eu e o nosso filho Lex também mentir às pessoas. Quando as minhas irmãs me perguntaram se
vivíamos em casa dos meus pais. a minha madrasta estava realmente tão doente como os médicos faziam
A minha madrasta tinha ido ao médico queixar-se de dores de estô­ crer, respondi calmamente: “Claro que não, isso é tudo im aginação dela.
mago. Foi-lhe pedido um estudo radiológico da situação e ela veio dizer- - quando sabia perfeitamente que não era assim. Eu sabia já, através das
-mo antes de ir aos raios X. Quando saiu, fiquei sentada, tranquilamente, minhas vozes positivas, que ela tinha um cancro, que os médicos viriam
a matutar na doença que ela teria e logo ouvi e vi que se tratava de um a confirmar aos raios X.
cancro. E mais: que era o fígado que estava afectado e que ela ia morrer. As vozes continuaram implacáveis por mais algum tempo. Não podia
Vi o funeral e ouvi que ele ia ter lugar no Ano Novo; que o céu ia estar ignorá-las de maneira nenhuma, e mantive-me na companhia delas porque
nublado e o chão coberto de folhas. E foi precisamente o que se passou. não sabia como as fazer parar. Um dia, anunciaram que eu estava muito
Foi já mais tarde, na idade adulta, que eu conscientemente ouvi vozes doente. É certo que me sentia doente - digamos que mal podia andar,
pela primeira vez e, embora a informação por elas veiculada fosse ter­ com uma dor que tinha numa perna. Quando o meu marido me pergun­
rível, despertaram o meu interesse. Comecei conscientemente a lidar com tou o que é que se estava a passar, as vozes informaram-me que era a
elas. Tudo o que eu fazia inconscientemente desde criança acontecia polio e que ele me devia meter na cama. Mas, longe de sentir compaixão
agora conscientemente. por mim, o meu marido ficou furioso: praguejou e disse-me que essa
Em criança, sabia que algo invisível estava em contacto comigo, maluqueira de ouvir vozes tinha de acabar. Assim, fui obrigada a tentar
embora não descortinasse como. E brincava e tagarelava com crianças levantar-me e ir para a cama pelo meu pé e, para grande surpresa
invisíveis. Uma vez, a minha mãe quis saber com quem eu estava a falar, minha, descobri que não precisava de ajuda para me segurar de pé e que
e respondi-lhe: “com igo”; mas eu sabia que estava a mentir. Aliás, dizia- era capaz de caminhar normalmente.
-se nessa altura que eu tinha uma imaginação muito fértil. Com este incidente aprendi que podia optar por dar rédea solta às
Quando a minha mãe morreu, tinha eu 13 anos, o meu pai fazia-me vozes ou desprezá-las, e nos anos seguintes, de acordo com a situação,
ir todas as semanas ao cemitério. Supunha-se que eu rezasse (raramente pus esta opção em prática. Quando as vozes eram negativas, rejeitava-
os adultos sabem o que os seus filhos estão a tramar). Numa das vezes -as; quando eram positivas, tomava nota das suas mensagens — por
que fui ao cemitério, ouvi umas vozes que falavam umas com as outras. exemplo, quando me avisavam que tinha perdido a carteira ou as chaves,
Fiz de conta que era apenas o vento a sussurrar nas árvores, mas, o que era sempre exacto. Gostava de fazer mais qualquer coisa com as

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vozes positivas, mas não sabia muito bem onde aprender a fazê-lo. participantes eram convidados a colocar em cima da mesa um objecto
Encontrei o caminho completamente livre à minha frente quando o meu ou uma fotografia para que a médium se pudesse pronunciar. Quando
fú h o Lex adoeceu. Logo após o seu casamento, ficou afectado com uma a médium entrou em acção, fiquei surpreendida porque tudo o que ela
dor nas costas, e eu queria fazer alguma coisa para o ajudar. Lembrei- viu e ouviu eu vi e ouvi também.
-me que, quando era pequeno, ele tinha estado gravemente doente e Depois deste, assisti a vários outros serões abertos, do mesmo género
tinha sido curado pela intervenção do mundo espiritual. Deixem-me e, por fim , juntei-me a um grupo dessa associação, na esperança de
contar-vos como foi. Lex tinha na altura 2 anos e meio, e quando ficou desenvolver a minha acuidade. Neste grupo, aprendi sobretudo a sinto­
doente levei-o ao médico de família. O meu filho fo i internado no hos­ nizar-me com os meus sentimentos e a identificá-los como positivos ou
pital e, depois de muitos exames, veio a confirmar-se que sofria de não. Aprendi ainda que todos temos um Mestre ou Guia espiritual e
osteomielite da anca. As injecções não fizeram efeito e o médico disse­ ganhei consciência do meu.
mos que ele já não recuperava mais. A minha cunhada fo i visitá-lo ao O Guia espiritual põe-nos em contacto com coisas que de outro modo
hospital precisamente quando ele estava no seu pior, e ficou chocada não podemos conhecer, trá-las à nossa consciência e tudo o que ele diz
porque pensou que Lex estava morto. Quando ela regressou a casa fo i fa z completo sentido. Isso provoca-nos uma sensação de afabilidade
falar com um vizinho que sabia estar envolvido num grupo que mantinha imediata; e, dado que tudo o que ele diz está certo, passamos a confiar
contactos com o mundo espiritual. nele, e ao assentarmos nisso aprendemos a funcionar com positividade.
O mundo espiritual é assim chamado pelos que acreditam numa vida Foi assim que aprendi a funcionar com o meu Guia.
para além da vida terrena. Nesse outro mundo estão evidentemente as Durante as reuniões da associação aprendi também que há vozes que
almas de médicos e especialistas, e o grupo a que pertencia esse senhor pertencem aos mortos que permanecem ligados à terra. Estes espíritos
mantinha contacto com essa gente espiritual. A minha cunhada falou-lhe ligados à terra não têm consciência de que estão mortos e de que depois
do meu filho Lex e perguntou-lhe se seria possível ajudá-lo através dos da sua vida terrena devem seguir para outro mundo. Assim sendo, alguns
contactos que tinha. Ele assim fe z e disse à minha cunhada que ela tinha deles identificam-se com, e desse modo tomam posse de, pessoas vivas
chegado na hora exacta para salvar Lex. Para nossa completa surpresa que, na aparência e na maneira de pensar, se assemelham a eles. Por
e alegria, e sem qualquer razão médica, Lex reanimou. Toda a gente exemplo, o espírito de um morto que tenha sido um paciente em cadeira
ficou perplexa, sem explicações para essa melhoria, inclusive eu própria. de rodas poderá habitar a mente de uma pessoa viva que esteja em
Só alguns anos depois é que eu viria a conhecer toda a história. Dois condição semelhante - tendo concluído que são uma e a mesma pessoa.
meses depois, o meu filho estava em condições de voltar para casa. Durante cerca de dois anos estive ligada a outra associação, até que
Quando tentei agradecer ao especialista, este disse, com toda a hones­ alguém me aconselhou a ir à Associação para a Cura Espiritual e Natural
tidade: “N ão m e agradeça, o mérito não é meu. Foi um milagre. Agra­ (ASNH - Association o f Spiritual and Natural Healing). A í disseram-me
deça a D eus.” que iria poder desenvolver os meus talentos de magnetizadora - um dom
Naturalmente, não pude deixar de evocar este incidente quando fortemente presente em mim. Vi-me atraída pela ASNH porque a sua
comecei a preocupar-me com as dores de costas do meu filho Lex. sintonia espiritual era semelhante à minha. Além de magnetizar, aprendi
Entretanto, um especialista disse-lhe que não fizesse trabalhos pesados, também a servir-me das vozes positivas e a evitar envolver-me com as
caso contrário poderia ficar preso a uma cadeira de rodas. Então eu quis vozes negativas - que podem tornar verdadeiramente insuportável a vida
saber se ele sofria de algum género de paralisia. Queria contactar o humana na terra. Mais tarde, acabei por me convencer de que lidar com
vizinho da minha cunhada mas, depois de algumas diligências, soube que as vozes negativas constitui uma área de trabalho específica. Aprendi
já tinha morrido. Alguém me deu a direcção das pessoas com quem ele que as vozes negativas podem surgir das vozes boas, uma confirmação
tinha trabalhado e fo i assim que, pela primeira vez, entrei em contacto de algo que já sabia. Descobri a importância de permanecer estável por
com uma associação espirita. Assisti a um serão aberto, em que os form a a manter o controle e a evitar a exaustão física. Aprendi a agarrar

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.1 i'n\lll\id(uJe que tenho e a alicerçar-me nela: por esta via, é possível, batiam certo. Sentia que muita coisa não estava bem e que havia uma
i nti i outras coisas, transmitir energia aos outros. corrente inferior negativa que era desagradável à minha inteligência
Nas reuniões da anterior associação tinha aprendido coisas sobre as espiritual, sobretudo tendo suposto à partida que todos os outros esta­
almas dos mortos que ainda estão ligados à terra; nas reuniões da vam sintonizados nesta actividade de maneira idêntica à minha.
segunda associação aprendi a conduzir as vozes desses espíritos para o Entretanto, conheci uma mulher dotada de faculdades paranormais.
futuro, ou seja, para a vida eterna. Uma maneira de o fazer é explicar- Discutimos uma com a outra uma data de coisas; ela tinha desenvolvido
-Ihes que algo terá acontecido que lhes provocou morte súbita e, con­ as faculdades de clariaudiência e de clarividência, e era capaz de dis­
sequentemente, os arrebatou aos seus corpos terrenos. Faço-lhes com­ tinguir as vozes positivas e as vozes negativas. Foi comigo às sessões do
preender que já não podem ver os seus corpos terrenos mas que ainda grupo, duas ou três vezes, e disse-me que alguns dos membros presentes
estão aprisionados ao momento da sua morte. Quando eles compreen­ eram terrivelmente negativos. Era a confirmação que faltava do que me
dem, fico em condições de lhes dizer que têm uma outra vida, melhor, tinha dito já o meu Guia espiritual - que eu devia sair daquele grupo
à espera deles. e fundar o meu.
Deixem-me dar-lhes um exemplo. Estava sentada à mesa num grupo, Por esta altura, comecei novamente a ouvir vozes negativas. E não
e comentávamos algumas fotos. Sobreposta à fotografia de uma criança tinha aprendido ainda a lidar com elas. Aprendera a fa la r com elas e
que tivera um acidente, vi uma criança morta, um rapazito. Comecei a a mostrar-lhes o reino maravilhoso que as espera na outra vida, mas elas
falar com ele e descobri que tinha saltado da carrinha da escola e tinha não se mostravam muito receptivas. Pelo contrário, eram agressivas e
sido atropelado por um carro. Ele pensava que só tinha caído e por isso ameaçavam a existência dos meus guias espirituais e a minha crença em
permanecia junto da carrinha. Estava a chorar e andava à procura de mim própria. Sentia que o meu magnetismo se deteriorava, assim como
qualquer coisa; quando lhe perguntei de que é que ele andava à procura, a relação que mantinha com o meu Mestre espiritual; dada a maneira
disse: “Perdi o meu boné.” Perguntei-lhe: “Para que queres tu o boné?”; como andava a sentir-me, as questões que lhe colocava arriscavam-se a
respondeu-me que não podia ir para casa sem ele. M ostrei-lhe (simbo­ receber respostas erradas. Quem quer que oiça vozes saberá bem do que
licamente, claro) onde estava o boné, e ele sorriu; então expliquei-lhe estou a falar.
o que tinha realmente acontecido. Quando o compreendeu, pude condu­ Sentia-me impotente e deixei-me desmoralizar ao ponto de sentir que
zi-lo para a luz. não era capaz de prosseguir. Felizmente, Ann, a mulher de que atrás
Aprendi também que as almas dos mortos comunicam do além falei, estava ainda por perto. Ela também era incomodada por vozes
- o paraíso, o céu ou como lhe queiram chamar - e guiam aqueles que negativas, que lhe diziam ser mau para ela deixar-se envolver comigo,
ainda permanecem na terra, ajudando-os a fazer o bem; uma alma assim e que eu era vingativa e mentirosa. Sugeriram-lhe, ainda, que eu estava
é o que pode chamar-se o vosso Auxiliar, Mestre ou Guia. Isto já me era menos sintonizada espiritualmente do que ela podia pensar e que nada
familiar, uma vez que já funcionava positivamente com a voz do meu mais tinha a fazer comigo. Ann e eu falám os com as vozes e, a despeito
Mestre. das suas mentiras, chegámos à conclusão de que elas eram enviadas
Obtive a minha qualificação como magnetizadora e descobri, na minha pelos poderes do pensamento de outrem. Pode transmitir-se o mal ou a
prática, que ouvia onde e qual era a queixa do paciente. Graças ao meu autodestruição a uma pessoa por meio de poderes negativos, que podem
Mestre, ouvia e entendia-me pessoalmente com médicos do mundo espi­ ser enviados através de sentimentos de ódio, ciúme ou inveja. Foi o que
ritual. Eles davam-me conselhos sobre determinadas doenças e indispo­ me aconteceu; mais tarde, espíritos bem intencionados disseram-me quem
sições e estavam sempre prontos a atender-me. Foram tempos maravi­ e porquê estava por detrás disso.
lhosos esses, até um dia me convencer de que a negatividade, a inveja Prosseguimos a caminhada juntas, tentando pôr de lado os pensa­
e o ciúme grassavam no grupo em que eu trabalhava. Isso tornou-se mentos negativos e discutir as coisas em termos positivos. Continuámos
óbvio a partir de discussões em que se faziam observações que não afazer ver às vozes negativas o mundo maravilhoso que têm à sua frente

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depois da morte terrena. Repetimos-lhes constantemente que terão de se plano. Pintar é uma coisa que se transmite da cabeça à mão e eu sempre
ir embora deste mundo e deixar em paz as pessoas da terra, afim de que fui capaz de ouvir cores; elas transmitem-se por vibrações. Eu oiço o
elas mesmas possam encontrar a felicidade, o amor e a luz. Ann e eu, preto, o vermelho e o castanho escuro. Como eu não tinha rádio nem
durante este período, aprendemos uma data de coisas, sobretudo que o nada, enquanto pintava a parede do quarto estava um silêncio de morte.
positivo triunfa sempre sobre o negativo. Aprendemos que, por mais Naquele silêncio, porém, comecei a sentir crescer qualquer coisa de
terrível que possa ser a influência das vozes na nossa vida, essa influên­ aterrador, uma espécie de presença ameaçadora que pairava algures por
cia terá sempre um fim, se estivermos preparados para lutar por ele. ali, de modo que tinha a nítida sensação de já não estar sozinho no
Juntas fomos capazes de nos empenhar neste esforço e aprendemos agora, quarto. Ouvi então nos meus ouvidos um ruído monótono que não vinha
afortunadamente, a lidar com as vozes negativas. de mim e que não era capaz de explicar. Era algo parecido com o ruído
Quanto a mim, passei um inferno durante alguns anos, mas, graças que se ouve quando se põem os dedos nos ouvidos, embora mais surdo
a Deus, sobrevivi. Durante esse período aprendi tanto que, juntamente e mais monótono. Era também uma emoção, embora fosse mais profundo
com Ann —a minha melhor amiga e companheira nesta tarefa -, posso que isso, e eu tinha a sensação de que algo andava à minha procura.
agora e cada vez mais ajudar os que estão a passar por um inferno igual. De facto, o que estava a ouvir era um grito de socorro de um grupo
de pessoas. Para ser mais exacto, descrevê-lo-ia como o barulho dos
aborígenes, de vozes muito primitivas: um ruído misterioso, muito amea­
Sétimo contributo pessoal çador. Começava numa lamúria e logo parava, apertando-me
e estimulando-me repetidamente. Algo queria tomar posse de mim e
Para explicar como aprendi a lidar com as vozes, deixem-me, antes, conseguia. O que eu ouvia não era holandês nem outra língua qualquer,
contar-vos como as ouvi pela primeira vez e que influência tiveram na estrangeira; pelo contrário, era tudo falado através de emoções. Em
minha vida. resposta, eu não era capaz de articular um conjunto inteligente de síla­
bas, só ruídos. Para efeitos desta comunicação, direi que ouvia vozes
Terminado o curso secundário em 1977, comecei a minha formação quando me refiro a estes ruídos.
como terapeuta ocupacional. Para tirar o curso, tive de ir para outra Tive, muitas vezes, experiências semelhantes no passado, mas os ruídos
cidade e alugar um quarto. Uma descrição muito sumária de mim mes­ eram sempre mais distantes e menos ameaçadores. Depois deste episó­
mo. sou filho único e, possivelmente por isso mesmo, sou exímio em dio, passei a sentir-me ameaçado e perseguido. Era como se houvesse
entreter-me a mim próprio. Digamos que sou um solitário. Sou extrema­ algo dentro de mim que pudesse irromper subitamente a qualquer mo­
mente criativo e, entre outras coisas, adoro pintar; nos meus novos mento: este sentimento estava sempre presente, consciente ou incons­
aposentos tinha espaço de sobra para isso. A minha namorada tinha cientemente. Na verdade, sentia que tinha enlouquecido. Não me atrevia
ficado na minha terra natal e, embora eu tivesse estabelecido alguns a falar com ninguém sobre as vozes e tinha imenso medo de estar só e
novos contactos, devo dizer que a vida de estudante não foi feita para de exprimir as minhas emoções, por exemplo, no papel. Nunca sabia
mim, na realidade, eu dormia muito pouco. Pela primeira vez na minha quando as vozes podiam aparecer; muitas vezes, surgiam nas ocasiões
vida, podia decidir por mim próprio o que queria comer, cozinhava a menos indicadas.
minha própria comida ou, então, comia na cantina do hospital. Em Sempre fui religioso - não apenas por educação de família mas
resumo, era livre de sair e voltar quando me apetecesse, sem outras também por opção minha. A oração é uma parte da contemplação; orar
amarras ou constrangimentos que não fosse a questão do que fazer ao é comunicar com um poder a que chamo Deus, embora outras pessoas
meu futuro. Lhe possam dar outro nome. Eu pedia a esse poder que me ajudasse. Não
Alguns meses depois, comecei a ficar obcecado pela ideia de pintar sei exactamente há quanto tempo passei a ter a coragem de dizer "ALTO!’’
a grande parede branca do meu quarto; essa parede era um desafio para às vozes, mas lembro-me do momento emocional. Penso que vai há três
mim. Comecei por pintar uma floresta escura, com um réptil em primeiro anos. Pouco tinha mudado na minha situação; as vozes já não eram tão

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activas, mas continuava a sentir-me perseguido - elas podiam subjugar-
-me de repente, a qualquer momento.
Enquanto fo r vivo jam ais irei esquecer a primeira vez que tive cora­
gem de dizer “ALTO !". Vinha de Zwolle, de regresso do trabalho, con­
duzindo o meu carro. Tinha acabado justam ente de ter uma conversa
muito emocional, na qual me tinha aberto completamente. Vinha ao
volante do meu carro na auto-estrada quando, subitamente, tomei cons­
ciência de estar com medo: medo do poder das vozes. Não uma, mas
várias vezes, gritei dentro do carro: “Tenho medo!" Sozinho, dentro do
carro, pode gritar-se sem ninguém ouvir, e fo i o que fiz. Era uma espécie
de guincho primitivo. Era como se estivesse expulsando qualquer coisa 7
de dentro de mim, e isso dava-me uma sensação de libertação que me
fazia feliz; fo i nesse momento que senti que estava a ficar plenamente
maduro. Aceitei-me tal como era e tal como ainda sou. Já não tinha que OUVIR VOZES: PERSPECTIVAS NÃO PSIQUIÁTRICAS
andar a fugir, porque passei a aceitar a existência das vozes. Disse-lhes
“ALTO !”, enquanto as aceitava como espíritos independentes, como algo “A psique é uma parte do nosso ser que não encontra­
exterior a mim. O processo por que passei descrevê-lo-ia nos seguintes mos nos nossos estudos de Anatomia nem de Bioquímica
termos: nem de qualquer outra disciplina. E imaterial, pelo que nao
pode ser dissecada nem observada na sua essencia;
- choque; conhecemo-la pelas suas manifestações que constituem os
- medo e fuga; chamados fenómenos psicológicos ou manifestações
- busca do significado das vozes; anímicas, porque a psique também se chama alma - apesar
- aceitação das vozes como espíritos independentes; de este termo ser rejeitado por alguns cientistas como ana­
-aceitação de mim mesmo; crónico e irritante do seu tímpano mais afeito a neologis-
- busca das minhas razões para fugir;
- confrontação com as vozes; Professor Doutor Herménio Cardoso
-com prom isso entre a aceitação e a rejeição das mensagens das (Aulas Teóricas de Psiquiatria;
vozes. Dementia Praecox, 1944)
Depois de tudo isto, parece que a turbulência desapareceu do rio da
minha vida. Navego em águas calmas e sou capaz de escolher o meu
próprio rumo. Ainda oiço ou sinto aquele grito de socorro, mas agora Introdução
mando-o embora e isso liberta-me. Eu sou eu e sou capaz de preservar
e manter a minha identidade. Marius Romme
Espero ser capaz de ajudar as outras pessoas a encontrar o caminho
para este mesmo sentimento. Vocês têm de ser capazes de dizer: “Eu A s e x p lic a ç õ e s p siq u iátrica s rep resen tam apen as um a p eq u en a
estou OK; você está OK."* p arcela do grande n ú m ero d e teorias q u e têm sid o p rop ostas para
esclarecer o fen ó m en o d e o u vir v o z e s. T en d o em con ta a am pla b ase
co n cep tu al d este liv ro , a ch á m o s por b em in clu ir um d eterm in ad o
* “Eu estou OK; você está OK?” - Trata-se duma expressão da Análise Transac- nú m ero de co n trib u içõ es q u e d essem relev o a algu m as d essa s teorias
cional (ver Harris, T. A., 1993).
n ão p siq u iátricas. A n o ssa selecçã o g u io u -se p ela s histórias contadas m e n ta lista s. E m r ec o n h ec im en to d esta im p ortan te ab ord agem ao
n o c a p ítu lo an terior, p e lo q u e in c lu ím o s as lin h a s d e referên cia fen ó m en o , in clu ím o s um a secçã o escrita por um m en talista, su b li­
con cep tu al seg u id a s p elo s autores d e sses con trib u tos. D ev erá referir- nhando a sua an álise p esso a l dentro d esta p ersp ectiva. A s teorias da
-se qu e as e x p lic a ç õ e s adoptadas p e lo s ou v id o res d e v o z e s raram ente reincarnação têm aqui um particular sig n ifica d o , assu m in d o qu e a
têm um a corresp o n d ên cia integral co m qualquer teoria iso la d a e x is ­ alm a hu m ana ren asce várias v e z e s, d e cad a v e z co m um a n o v a m issã o
ten te, co m b in a n d o , p elo contrário, v ários e le m e n to s d e diferen tes para cum prir (K a rm a).
m o d elo s. H á vários outros a sp ectos e teorias a sso cia d o s ao fen ó m en o de
V im o s já , n o C apítu lo 6, um a am pla varied ad e de persp ectivas o u vir v o z e s e q u e n ão n os fo i p o ssív e l in clu ir aqui. N este particular,
p esso a is. A autora d o 1,° C ontributo atribui a v o z a um orientador o s leitores in teressad os n o fen ó m en o d e o u vir v o z e s nas ch am ad as
espiritu al. U m b o m núm ero d os que o u v em v o z e s d efen d e este ponto culturas prim itivas p od erão recorrer à literatura an trop ológica, n o m ea ­
d e vista, m esm o para lá d os o u vid ores d e v o z e s q u e n o s fo i dado d am en te aos trabalhos da P rof.a Erika B o u rgign on .
con h ecer; p o d e v er-se na literatura sobre o tem a v ários ex em p lo s
d isso m esm o , c o m o é o ca so da in v estig ação co n d u zid a p e la p sicó lo g a
am ericana M yrtle H eery. P or isso , in clu ím o s um a b reve d escrição da Experiências de vozes interiores: um estudo de trinta casos
sua in v estig a çã o c o m 30 ou v id o res de v o zes.
A autora d o 2 .° C ontributo caracteriza o fen ó m en o co m o sen d o de Myrtle Heery
natureza m ística , id en tifica n d o -se fo rtem en te c o m as ex p eriên cia s
m ísticas d e S t.a T eresa d Á v ila . E sse facto im p eliu -n o s a co lig ir um A o lo n g o da h istória hu m ana, ap arecem in sisten tes d escriçõ es da
artigo sob re m isticism o e religião. escu ta d e v o z e s, seja n o co n tex to da R e lig iã o e da H istória, seja no
A autora do 3 .° C ontributo interpreta a escu ta d e v o z e s c o m o um co n tex to da P sico lo g ia , da F icçã o ou do M ito. A literatura p sic o ló g ic a
d om paranorm al e , sim u ltan eam en te, um m eio para obter o c re sci­ q u e se ocu p a d estas ex p eriên cia s cen tra-se p rim ord ialm en te n os ind i­
m en to esp iritu al. A P arap sicologia to m o u -se um im portante m o v i­ v íd u o s que se su p õ e estarem p sico lo g ica m en te atorm en tad os, ao p asso
m en to con tem p o râ n eo que atrai m uitos d os q u e o u v em v o z e s e, por q u e a literatura relig io sa se ocu p a d e in d iv íd u o s qu e se ju lg a estarem
isso , in clu ím o s, para reflex ã o , um a secçã o sobre e ste tem a. d iv in a m en te in spirad os ou d iab o lica m en te p o ssu íd o s. S u rp reen den te­
A autora do 4 .° C ontributo representa um a outra v ia , na qual as m en te, p o u ca aten ção v em sen d o dada às ex p eriên cia s d e v o z e s in te­
v o zes p od em con stitu ir um a fa se n os esfo rço s p e lo a v a n ço espiritual. riores de p e sso a s q u e n ão integram n en h u m d e sse s d o is gru p os.
O C am in h o, co m o é co n h ecid o o m o v im en to , é um sig n ific a tiv o re­ O estu d o q u e se seg u e, q u e co n tém relatos seleccio n a d o s d e sse tipo
p resentan te d os ram os do p en sam en to espirita em q u e a figura do d e ex p eriên cia s, representa um trabalho exp loratório e pod erá c o n s­
m édium d esem p en h a um pap el de interm ediário activ o. tituir um p on to d e partida para um a ulterior in v estig a çã o d o fen ó m en o .
A cren ça n u clear da autora d o 5.° C ontributo é a d e q u e ex iste vid a O term o “v o z interior” d esig n a um a ex p eriên cia su b jectiva sign i-
d ep ois da m orte e q u e é p o ssív e l com u n icar co m o s m ortos; essa ficante: a p ercep ção e fe c tiv a d e um a v o z q u e fala interiorm en te e/o u
crença n ão só tem um grande im pacto no p r o c esso de luto co m o um a sen sa çã o m ais v a ga d e ter ocorrid o o u estar a ocorrer d eterm i­
m od ela ainda a vid a do en lu tado. E ste tipo d e ab ord agem e x ig ia um nada co m u n ica çã o interior. A ssim co m o a v o z físic a co m u n ica entre
artigo sob re a e sc o la m eta física de p en sam en to. um ser h u m an o e ou tro, tam b ém a v o z in terior p o d e co m u n icar
Para a autora d o 6.° C ontributo, as v o z e s derivam d o esp írito de intrap siq uicam en te — isto é, entre um n ív el e outro da p siq u e (van
m ortos qu e n ão estã o em p az, p on to de v ista q u e é d efen d id o por D u sen , 1 9 81 ).

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A história das prin cipais r elig iõ es m u n d iais m ostra co m o santos, ocorriam nas m ais d iversas circu n stân cias, e toda um a vasta gam a d e
sáb ios, p rofetas e m estres (ca so d e M o isé s, M aom é e St.a T eresa o cu p a çõ es p r o fissio n a is, n ív e is d e ed u ca çã o , ren d im en tos e c o n ó m ic o s
d ’A v ila , por ex em p lo ) se inspiraram m a ciça m en te em v o z e s interiores e estilo s de vid a. O m aterial resu ltan te fo i an alisad o p ela autora e por
e n elas assentaram o s seu s en sin a m en to s e a sua autoridade. A s e x ­ um c o le g a p o ssu id or d e va sta ex p eriên cia na a v aliação d os d ad os de
p eriên cias d e sses h om en s e d essa s m u lh eres tiveram um trem endo en trevistas su b jectivas. C ada um d e n ó s leu , separadam ente, as trans­
im p acto n o n o sso m undo. M as, a ssim c o m o as p e sso a s co m d ia g n ó s­ criçõ es literais das en trevistas, em paralelo co m as m inh as n otas sobre
tico d e p sic o se ou esq u izo fren ia não têm o m o n o p ólio da escu ta de o s resp ectiv o s pad rões d e en to ação e d e silê n c io s, e d ep o is reu n im o-
v o z e s interiores, tam bém o s santos e o s sá b io s o não têm . H á m uitos -n os para confrontar o s n o sso s ach ad os. H avia algu m as áreas d e c o n ­
h om en s e m ulheres vu lgares, que ocu p am o vasto continuum entre cord ân cia m u ito ev id en te, e o n d e surgiam d ú vid as e in certezas v o ltá ­
e s s e s d o is ex trem o s, q u e tam bém referem ou vir v o z e s interiores. m os directam en te às tran scrições e gra v ações para escla recim en to.
O presen te estu d o trata das ex p eriên cia s d e escu ta d e um a v o z interior D ep ressa com eçaram a em erg ir agrup am entos bastante n ítid os d e ti­
d e 3 0 h om en s e m ulh eres adu ltos q u e n ão são santos n em têm d iag­ pos de exp eriên cia d e v o z e s interiores.
n ó stico d e p sico se. D as prim eiras 9 en trevistas ressaltaram 3 categorias p rin cip ais, qu e
p assám os a usar co m o referên cia para a an á lise d os dad os das en tre­
vista s seg u in tes, apurando-as e red efin in d o-as à m ed id a qu e o estu d o
M étodo
p rossegu ia. E ssa s 3 categ o ria s eram as segu in tes:
1. E xp eriên cias d e v o z e s in teriores qu e revelam partes fragm en tá­
N este estu d o participaram 3 0 in d iv íd u o s, todos e le s referindo ouvir rias do Eu;
v o z e s. 15 foram p esso a lm en te sele c c io n a d o s p ela autora e o s restantes 2. E xp eriên cias de v o z e s in teriores caracterizadas por um d iá lo g o
15 foram tirados à sorte de entre 5 0 p e sso a s que responderam a um proporcionador d e orien tação para o crescim en to p esso a l do
q u estion ário sobre ex p eriên cia s de o u v ir v o z e s, o qual tinha sido indivídu o;
en via d o p e lo correio a 2 0 0 p e sso a s q u e con stavam d e um a lista de 3. E xp eriên cias d e v o z e s interiores qu e abrem can ais em d irecção
en d ereço s das áreas p sic o ló g ic a e ed u ca tiv a da C alifórn ia. A s ex p e­ e para lá d os n ív e is su p eriores d o Eu.
riên cias d os in d ivíd u os foram exp lorad as d e um a m aneira delib e-
radam nente naturalista, que p erm itisse a em erg ên cia d o s m ais diver­ Três estudos de caso
so s a sp ectos co m o m enor risco p o ssív e l de con tam in ação por parte
d o observador. A m inha particular in ten çã o era exam in ar em profun­ O s estu d os d e ca so q u e se seg u em in clu em um representante por
d id ad e a relação p o sitiva entre as ex p eriên cia s de escu ta d e v o zes cad a um a das três categ o ria s a cim a d escritas. A s id en tid ad es d os
interiores e as form as de vid a exterior das p e sso a s n essa s co n d içõ es. protagonistas foram alteradas para acautelar o seu anon im ato.

C ategorização 1. E xperiências de vozes interio res que revelam p a rtes fra g m e n ­


tárias do Eu
N o sen tid o de defin ir algu m as ca teg o ria s, foram seleccio n a d o s 9
in d ivíd u os que co n stitu íssem um a am ostra representativa d os 30 in­ E ric é um p rofission al lib eral d ip lo m a d o , d e 33 an os d e idade,
d iv íd u os a en trevistar - e cada um d e le s fo i en trevistad o duas v ezes. casad o e pai d e d ois filh o s. T en d o estad o anteriorm ente em p regad o n o
E sta selecçã o abrangeu variadas ex p eriên cia s de v o z e s interiores, que sector da adm inistração e g e stã o , está agora d esem p regad o e v iv e co m

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a m ulher e o s filh o s em ca sa d os sogros. C o m eço u a estudar n o intuito “E a minha voz interior que me diz quando pintar, quando é o momento
d e vir a ser p rofesso r e está tam bém a tirar um cu rso na área da indicado ou não e quando seria infrutífero fazê-lo. E fo i a minha voz
in terven ção so cia l. A sua d ificu ld a d e em em p en h ar-se nu m a carreira, interior que me direccionou para abandonar a minha profissão e passar
e bem assim no su sten to da fam ília , su gere q u e se en con tra ainda a fazer o que estou a fazer na pintura.”
fragm en tad o em áreas fu n d am en tais da sua vida.
E ric referiu que a sua v o z interior tinha con trole sobre determ in a­ E d e notar q u e a tón ica está aqui n o d iá lo g o co m a v o z interior,
das situ a çõ es, co m o fora o ca so do ab an don o d o seu ú ltim o em p reg o m ais d o qu e na su b m issã o aos seu s d itam es, co m o era o ca so d e E ric.
- um a v e z q u e h a v ia su b m etid o a sua liv re von tad e à v o z. “Farto-me de conferir o que faço quando estou a pintar. Na Prima­
“Fui absolutamente uma vítima da coisa. Tinha acabado de reclinar- vera passada, ofereceram-me uma oportunidade de promoção ao lugar
-me no sofá e a coisa [a voz interior ] fez-m e o que fez, sem que eu tivesse de consultora. À primeira vista pareceu-me uma possibilidade tentadora,
voto na matéria. Eu era mais um que ela possuía.” mas quando a submeti à apreciação da minha voz, ela disse-me redon­
damente que não, que isso iria atravessar-se no caminho da minha pin­
tura [...], que me roubaria tempo para pintar, de modo que o que eu
A s ex p eriên cia s de E ric con d u ziram -n o num a d irecção p o sitiv a , acho é que ela [a voz interior] só tem querido orientar-me na direcção
em b ora n eg u e q u e a v o z interior seja um a parte de si m esm o . Por do meu propósito inicial, que era pintar.”
v e z e s con testa a o rien tação q u e ela lh e dá, m as tem um a fo rte sen sa ­
çã o d e qu e a v o z acab a por ter a ú ltim a palavra em tudo. A virag em p rofissio n a l d e R u b y é um a resu ltan te directa das suas
“Tinha chegado ao fim de algumas relações que tornavam a rea­ exp eriên cias d e um a v o z interior. R ep are-se na su a frase “quando a
lidade negativa, mas não tinha a coragem necessária para acabar com subm eti à aprecia ção da m inha vo z”. R ub y e n v o lv ia -se em d iá lo g o
elas. Estava eu embrenhado na situação, quando uma segunda voz se co m a v o z , u san d o-a activam en te co m o g u ia na lib ertação d e en ergia
destacou da minha voz e disse coisas que destruíram a relação. Ou seja, criativa; isto é m u ito d iferen te da resign ação d e E ric ao s d itam es da
ela [a voz interior] acabou com a relação, o que era a coisa ao mesmo sua v o z interior.
tempo mais adequada e mais saudável que podia acontecer. Eu, na
minha personagem individual, não sabia o que fazer e então a voz en­
3. C anais em direcção e p a ra lá dos níveis sup eriores do E u
carregou-se disso.”

Isto su gere fo rtem en te um a ex p ressã o d e partes fragm entárias da R ob é um escritor e co n selh eiro espiritu al d e 63 an os, p ai d e 3
person alid ad e d e E ric - e esta fragm en tação p arece estar a co n d u z i­ filh o s adu ltos. P erd eu um quarto filh o , por d o en ça súb ita, há 2 4 anos
d o n o sen tid o da integração. atrás, perda q u e levaria m u ito tem p o a superar. R ob sen te qu e a
paternidade fo i a ex p eriên cia m ais gratifican te e a m aior prova de
2 D iálogo p ro p o rcio n a d o r de o rien ta çã o p a ra o crescim ento hu m ild ad e da sua vid a, e q u e o s seu s 38 anos d e casa m en to o en ri­
p esso a l q u eceram . N aturalm en te, tudo isso deu a R ob a so lid e z n ecessária e
o sen tim en to de se encontrar p rofun dam ente en raizad o na vida.
R uby é um a ex -co n su lto ra p ed a g ó g ica , d e 3 8 anos d e id ad e, casada. O seu sistem a d e cren ças fe z co m q u e e le p e rceb esse as su as v o z e s
N este ú ltim o ano, aban donou a sua a ctivid ad e de con su ltad oria e interiores co m o “um nível m ais pro fu n d o do m eu se r” . P assar por essa
p assou a d ed ica r-se à pintura. ex p eriên cia viria a con stitu ir um a parte im portante da sua vid a, no

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m om en to em q u e term in ava o d ou toram ento em T e o lo g ia e se em p e­ R esum o
nh ava nu m trabalho n otá v el p ela sua natureza abn egada e não v io ­
lenta. F o i d esta m aneira q u e e le d escrev eu um a ex p eriên cia que tev e T o d o s os in d iv íd u o s da C ategoria 3 praticam um a form a regular
aos 33 anos: qualquer de m ed itação e exp rim em um p rofun do sen tim en to d e c o n e ­
xão espiritu al, em virtude das suas ex p eriên cia s d e um a v o z interior.
“Lembro-me de que tudo aconteceu durante o Movimento dos Direi­ O seu sen tim en to d e co n v icçã o é m u ito sem elh an te ao qu e A rbm an
tos Cívicos, quando me encontrava no Mississipi, em 1961, fazendo parte (1 9 6 3 , 1 970) d e sc rev e qu and o trata d e id ên ticas ex p eriên cia s em
de um grupo de visita a Jackson, onde havia os Cavaleiros da Liberdade.
Éramos um grupo de 40 a 50 pessoas numa sala de uma Universidade m ístico s. É p o ssív e l q u e os in d iv íd u o s q u e cab em nesta categoria
para negros, quando começaram a pedir 7 ou 8 voluntários para ir ao tenham atingido um certo n ív el d e ex p e riê n cia m ística q u e abrange
restaurante do aeroporto, o que significava ficarem sujeitos a ser presos um co n tex to au d itivo e qu e co n d u z a um a acção p o sitiv a e abnegada,
e levados para a cadeia. Eles precisavam de um Pastor protestante co m o a atrás descrita n o ca so d e R ob .
branco, e pediram-no por duas ou três vezes. Estavam quase prontos
para sair quando Rabbi, o chefe da delegação, disse: ‘Bem, ainda não Três reacções ao despertar espiritual
conseguimos arranjar um Pastor branco.’ Foi então que eu ouvi a voz
dizer: ‘Bem, acabaram de arranjar um’ - e esse um era eu. A ssa g io li (1 9 8 6 ) sub lin ha três r ea cç õ e s ao despertar esp iritu al, que
Fiquei tão surpreendido por ser o escolhido, que repeti em voz alta vão resp ectivam en te a par co m cad a um a das três categorias d e e x ­
o que a voz me dissera. Ela vinha de uma parte muito profunda de mim p eriên cias de v o z interior em erg en tes d este estu d o. D escrev e-a s em
mesmo. Eu ouvia e, acto contínuo, repetia em voz alta o que acabava de term os de n ív e is d e en ergia e d e orga n iza çã o fa ce a exp eriên cias
ouvir... Não me sentia muito incomodado com isso. Afinal de contas, era extraordinárias. S eg u n d o esta c o n c e p ç ã o , as en ergias su p ercon scien -
o que eu queria, era aquilo em que acreditava e era o que eu, no mais
profundo do meu ser, desejava fazer. Nunca me senti perturbado, des­ tes actuam no in d ivíd u o d e acord o c o m o s n ív e is d e organ ização a que
contente ou descontrolado por aquilo que tinha dito, simplesmente sur­ e le , ou ela é cap az d e as receb er e integrar.
preendido. ” A ssa g io li ob serva qu e um a saíd a p o ssív e l d e um a exp erên cia e x ­
traordinária é essa m esm a ex p eriên cia n ão con d u zir a um n ív el m ais
R o b sen te um a d im en são espiritual, q u e d efin e co m o “o Eu fa zen d o elev a d o de organ ização. N e ste c a so , a ex p eriên cia é m uitas v e z e s
p a rte de um pro cesso m ais vasto ” , em acçã o nas suas exp eriên cias de p en o sa e o in d ivíd u o p o d e n ão recon h ecer a sua origem tran sp essoal.
v o z e s interiores. E ncara o fen ó m en o c o m o estan d o estreitam en te rela­ A ev o lu çã o p o sitiv a d este tip o d e ex p eriên cia é p od er con d u zir o
cio n a d o co m a in tu ição, m as sem pre cien te d e q u e as suas ex p eriên ­ in d iv íd u o ao s degrau s seg u in tes n e cessá r io s a um a in tegração m ais
cia s d e ou vir v o z e s têm con stitu íd o, sem e x c e p ç õ e s, um a parte da sua plena. E sta ideia vai d e par co m a C ategoria 1 d o n o sso estu d o, na qual
vid a e do seu ser esp iritu ais. Para R ob , há sem pre um elem en to de as exp eriên cia s d e um a v o z interior rev ela m partes fragm entárias do
E u . P o r e x e m p lo , E ric a in d a n ã o tin h a r e c o n h e c id o a o r ig e m
von tad e e d e esco lh a n essa s ex p eriên cia s. S egu n d o ele, sem pre que
tran sp essoal das suas ex p eriên cia s d e v o z interior, m as ela s co n d u ­
d e cid e esta b elecer con tacto co m a v o z interior, a oração e a m ed itação
zia m -n o , a tod o o m o m en to , à reu n ião d os vários fragm en tos d e si
são um a grande ajuda. R ob tam bém tem co n tacto s co m a v o z quando
m esm o: andava em b u sca d e u m a carreira q u e reflectisse o s seu s
não o s procura deliberadam ente, m as a in ten ção, n o entanto, é sem pre
talen tos e que, ao m esm o tem p o o aju d asse a sustentar a fam ília;
um a sp ecto im portante da sua relação c o m a v o z. nu nca fica v a sa tisfeito co m o trabalho q u e tinha m as, através das suas

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ex p eriên cia s de ou vir um a v o z , criou um certo co m p ro m isso d e e n ­ realidade. D ep o is, o in d ivíd u o entra n u m p r o c esso d e instrução in ten ­
contrar um trabalho q u e p u d esse reflectir a sua person alid ad e. siv a , que p o d e in clu ir p eríod os d e iso la m en to . O ú ltim o p a sso do
A segu n da ev o lu çã o p o ssív e l das ex p eriên cia s extraordinárias é, curriculum co n siste na “ u n ião”, caracterizad a por um a m ais co m p leta
segu n d o A ssa g io li, m en o s en érg ica e im p lica um a neutralização tem ­ id en tificação co m e sse outro m u n d o, um a v ia g em através d o s céu s e
porária d os padrões habituais da p erson alid ad e. O que perm an ece é d os in fern os, e um ca sam en to espiritu al co m o M estre interior. T o d o s
m u ito im portante: um m o d elo ideal e um sen tid o director de q u e o a q u eles qu e passaram por este n ív el d e ed u ca çã o interior se puseram
in d ivíd u o se p od e servir para co m p leta r a transform ação seg u n d o o s em m archa para m issõ e s d e u n ificação n o m u n d o exterior: o c o n h e­
seu s próprios m éto d os in ten cio n a is. É p recisam en te este sen tid o d irec­ cim en to que têm do “lad o d e lá” é tão n ítid o e tão forte q u e são
tor o qu e n ós en con tram os n o s in d iv íd u o s integráveis na n o ssa C ate­ ca p a zes de fazer co m qu e o “ lad o d e c á ” se lh e a sse m e lh e m ais
goria 2 d e exp eriên cia de um a v o z interior, na qual se esta b e lec e um estreitam en te. M u ito em b ora n enh um d os in d ivíd u os d este estu d o se
d iá lo g o propiciador de crescim en to e d e se n v o lv im en to àq u ele que referisse con cretam en te a este n ív el d e ex p eriên cia (um curriculum de
o u v e a v o z. A s ex p eriên cia s de R u b y, por ex em p lo , guiaram -na na aprend izagem interior), a q u eles qu e s e en glo b a v a m na C ategoria 3
d irecção da m udança de carreira para se tom ar pintora. - a m ais integrada - estavam e n v o lv id o s firm em en te em a ctivid ad es
A terceira p o ssib ilid a d e d e e v o lu ç ã o é, seg u n d o A ssa g io li, para abn egadas. E m certos c a so s, e s s e e n v o lv im e n to já ex istia antes do
um a m ais elev a d a integração da p erson alid ad e, em que o in d ivíd u o ap arecim en to das v o z e s, m as d eu -se sem p re um a in ten sifica çã o d esse
sofre um a perm anente tran sform ação da sua vid a em resultado da e n v o lv im e n to d ep o is d e ela s aparecerem . E stes in d ivíd u os estavam
exp eriên cia. E ste tipo d e in tegração é raro e p o d e com parar-se à n o ssa em con tacto co m a lg o qu e tran scend ia a su a in d ivid u alid ad e.
C ategoria 3 de ex p eriên cia s d e um a v o z interior. O s que estão abran­
g id o s por esta categoria en co n tra m -se integrad os e abertos aos seu s Bases para uma futura investigação
E u s m ais elev a d o s, em virtude das suas ex p eriên cia s, e passam por
um a tran sform ação p erm anen te nas suas vid as. N o n o sso estu d o, esta E stes achad os su gerem qu e o s p sicoterap eu tas farão b em se tom a­
transform ação perm anente a sso c ia v a -se ao serv iço abn egado - d e se n ­ rem em con sid era çã o um a gam a m u ito alargada d e p o ssib ilid a d es
v o lv er a ctivid ad es que não trazem q u aisq uer b e n efício s fin an ceiros sem p re que um clien te lh es refere ou vir um a v o z interior. Entre essa s
n em qualquer gratificação aparente para o ego.
p o ssib ilid a d es serão d e in clu ir p r o c esso s tão díspares co m o a v o z
fragm entada, a d isso cia çã o p sicó tica e integrada, a p ercep ção extra-
Um curriculum interior -sen so ria l, a in tu ição, a v o ca çã o e o despertar espiritu al. A s três c a ­
tegorias em erg en tes d este estu d o pod erão forn ecer um p on to d e par­
E stes ach ad os su g erem a e x istê n c ia de um a ed u ca çã o interior
con tín u a, que tem a v o z interior por m estre. A lsch u ler (1 9 8 7 ) fe z um tida e um m apa das p rin cip ais q u estõ es a exp lorar no fen ó m en o das
estu d o d e várias p erson alid ad es relig io sa s q u e passaram por ex p e riê n ­ v o z e s interiores. P od erão con stitu ir ainda as b a ses d e um a futura
cias d e ou vir v o z e s interiores, e p ostu lo u a ex istên cia de um curriculum in v estig ação nu m a ex p eriên cia tão falad a m as tão p o u co con h ecid a.
interior. A s exp eriên cias relatadas por in d ivíd u os da n o ssa C ategoria 3 F in alm en te, este estu d o p od e ajudar a d issip ar o estereótip o vu lgar
(em qu e se abrem canais em d irecção e para lá d o s n ív eis m ais e le ­ seg u n d o o qual a v o z interior é um a prerrogativa d e san tos e de
vad os d o Eu) m ostravam algu m as sem elh an ças co m este curriculum p e sso a s d iagn osticad as co m o p sicó tica s e , d e sse m od o, estim u lar a
interior. E m prim eiro lugar, seg u n d o A lsch u ler, o con tacto co m a v o z in v estig a çã o n o q u e resp eita ao seu e fe ito p oten cia lm en te libertador
interior p õ e em cau sa as cren ças anteriores do in d ivíd u o a resp eito da das n o ssa s cap acid ad es hu m anas.

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Vozes, religião e misticismo assim tanta q u e todas as ex p eriên cia s qu e estão para lá d os h o rizo n tes
racionais sejam au tom aticam en te rejeitadas co m o n ão reais. A o lo n g o
A a d van M arreio e T o n van d er S ta p dos sécu lo s, a O riente e a O cid en te, tem h avid o m ú ltip las ten tativas
de encontrar um a b a se filo s ó fic a sistem á tica para a ex p eriên cia m ís­
“Para apreender a verdade da vida, tica. T a lv ez o e x em p lo m a is b em co n h ecid o seja a E sco la d e B u d ism o
é preciso silenciar as vozes exteriores." de K y o to , n o Japão, o n d e a secu lar tradição d o B u d ism o Z en se casa
(E. Drewermann) co m a herança filo só fic a o cid en tal. N o sécu lo XIII, M estre E ckhart
fe z -se notar entre a q u eles q u e, n o C ristian ism o, situam a su a e x p e ­
O m isticism o é antes d o m ais um a exp eriên cia. A p esar de as d es­ riência m ística n o se io d e um a referên cia teo ló g ic a e filo só fic a .
criçõ es d e que d isp o m o s estarem in ev ita v elm en te m arcadas p elo m o ­ P orém , seja qual for a cultura, to d o s o s m ístico s su b lin h am in sis­
m en to h istórico e cultural em q u e surgiram , todas elas com partilham ten tem en te que a ex p eriên cia em si p erm an ece in a cessív e l à racion a­
um a afirm ação d e fu n d o, ou seja, q u e o ob jecto da exp eriên cia não lização e que é, ao m esm o tem p o , in ex p licá v el e in co m u n icá v el. Isso
é um a m era parte da realid ad e, antes é, em si m esm o , a própria s ig n ific a , n e c e ssa r ia m e n te , q u e o c o n te ú d o d e ssa e x p e r iê n c ia é
realidade na sua totalid ade e na sua un idade. O su jeito da exp eriên cia in verificável e q u e só pod erá ser co n h ecid o por q u em tiver p ercep çõ es
m ística acredita q u e está em co m u n ica çã o co m um reino que abarca sim ilares e por q u em estiv er aberto e recep tiv o à exp eriên cia m ística.
tudo o qu e existe; um reino q u e n ão está separado da realidade em si E sta característica d e in v erifica b ilid a d e através da razão é com p arti­
m esm a m as que não é totalm en te co n h ecív el através da percep ção lhada por várias outras p e rcep çõ es hu m anas fu n d am en tais q u e ten d em
vulgar. E ste rein o p arece revelar ao su jeito um a verdade a u to -ev i­ a ser m ais bem a ceites q u an d o se exp rim em na lin g u a g em corp oral ou
dente, para lá dos lim ites da razão e d os sen tid o s, e que representa o poética.
p on to sup rem o d e todas as co isa s. O ob jecto da ex p eriên cia m ística - a ap reen são da realid ad e co m o
D esd e o s p rim órd ios d e todas as r elig iõ es que o m isticism o pre­ um a unidade v iv a e sig n ifica n te - tem na trad ição relig io sa ocid en ta l
ced e tudo o resto: é im p o ssív e l co n ceb er qualquer form a de religião o n o m e de D eu s, e tem tid o sem p re um carácter p esso a l. E sta p erso ­
— seja qual for a cultura d e o rig em — que nasça sem o suporte de um a n ifica çã o da R ealid ad e S u p rem a n ão é ev id en tem en te e x c lu siv a da
exp eriên cia m ística. O v e lh o X in to ísm o jap on ês b a seia -se na e x p e ­ cultura o cid en tal, m as a v ersã o q u e d ela en con tram os n o C ristian ism o
riên cia do d iv in o na natureza; o B u d ism o surge no m om en to da ilu ­ p od e ser seg u id a d e sd e o m o n o teísm o ju d a ico . D e acordo co m este
m in ação espiritu al do Buda; o C ristian ism o surgiu d os en con tros in­ m o d elo , assum ir a e x istê n c ia d e um D eu s co n d u z à cren ça d e q u e E le
d ivid u ais das p e sso a s co m D eu s na form a de um ser hum ano, Jesus se dá a con h ecer às p e sso a s e q u e estas O d everão procurar; d aq u i se
d e N azaré. E m qualquer d os c a so s, a exp eriên cia m ística acon teceu com p reen d e qu e este D eu s se m a n ifeste através da fala. A o lo n g o d e
prim eiro: só no C ristian ism o se lh e su ced eu um a doutrina (form a toda a B íb lia Judaica en co n tra m o s D eu s d irig in d o -S e aos h u m an os
estrutural dentro d e um a dada so cied a d e) e c ó d ig o s de m oralidade através da fala: ch am a -o s para lh es pedir con tas, entra em d iá lo g o co m
coeren tes. e le s, escu ta o q u e e le s têm a dizer. A p esar da fecu n d ação recíp roca
M uito em bora, dada a natureza d o seu ob jecto, a exp eriên cia m ística co m trad ições relig io sa s doutras fon tes (o N eo p la to n ism o , por e x e m ­
não seja em si m esm a a c e ssív e l à ex p lica çã o racional, tam bém não p lo ), o C ristian ism o m a n tev e sem p re o seu co n c eito d e um D eu s
está em si m esm a em con trad ição co m as p oten cialid ad es da R azão. p esso a l. C o n seq u en tem en te, a ex p eriên cia m ística cristã tem sid o
P or m uita qu e seja a estim a da n o ssa so cied a d e p ela R azão, não é sem pre exp ressa sob a form a d e um en con tro p esso a l. N a c o n sc iê n c ia

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cristã popular, D eu s é um a realidade externa, ao m esm o tem p o que v isõ e s e a escu ta d e v o z e s, d esd e qu e esteja n itid am en te assegu rad a
o m un do p ercep tív el, a C riação, é, d igam os a ssim , n ã o -D eu s. E sta a sua p ro v en iên cia d e D e u s, d e Jesus ou d e qualq uer outra figura
d icotom ia, p ecu liar d o m o n o teísm o ocid en ta l, in flu en cia o s term os em santa, c o m o a V irg em M aria. Para apurar se qualq uer d essa s v o zes
qu e se p od e form u lar a ex p eriên cia m ística - que em si m esm a rem ete provém realm en te d e um a au tên tica fon te d iv in a , a Igreja C ristã d e­
igu alm en te para essa d ico to m ia . D aqu i o cu rioso d ilem a qu e se apre­ sen v o lv eu u m a tradição esp e cia l, co n h ecid a por Ju lgam en to d o s E s­
sen ta ao s m ístic o s o cid en ta is e q u e é ab so lu ta m en te estran h o ao píritos, qu e essen c ia lm en te é um a e sp é c ie d e teste d e saúd e p sic o ló ­
B u d ism o, por ex em p lo . g ic a co n d u zid o p elas autoridades eclesiá stica s. O s m ístico s con trib u í­
U m a v e z q u e n o B u d ism o a R ealid ad e Suprem a n ão se caracteriza ram m uitas v e z e s para este p r o c esso d e a v alia çã o, ao d escrev erem as
por um D eu s p e sso a l, a h ip ó tese de essa realidade se exp rim ir através suas próprias ex p eriên cia s. A ssim , o m ístico in g lês Julião d e N o rw ich
da fala é in co n ceb ív el. R estrin g im o -n o s aqui à form a m ais elev a d a do d eclarou q u e o sen tid o d e co n v icçã o interior era em si m esm o um a
m isticism o bu dista, n om ead am en te ao B u d ism o Z en, q u e não dá azo garantia da au ten ticid ad e das in tu ições m ística s. D e igu al m o d o , Santo
a qualquer tipo d e escu ta de v o z e s. C om certeza q u e o M estre Z en In ácio de L o io la a co n selh a v a o s seu s p aroq uianos a d ecid ir por si
exp erim en tad o sab e que o s seu s d iscíp u lo s p od erão, o ca sio n a lm en te, m esm o s, perante um a in sp iração m ística particular (q u e p o d e em
ter a im p ressão que o u v em v o z e s, e com p reen d e q u e e ssa s v o z e s si m esm a parecer m u ito sen sata ou m u ito exaltad a), se ela traz real­
p od em ser tão co n v in c en te s que o d iscíp u lo se ach e ca p az d e id en ti­ m en te paz interior ou não. D e um m od o geral, o s critérios fu n d am en ­
ficar o ex a cto lugar de on d e p rovêm o s so n s. M as o M estre sab e que, tais da Igreja para ju lgar da v alid ad e das ex p eriên cia s m ística s c o n ­
co m o a co n tece na p ercep ção de im agen s invulgares ou noutras e x p e ­ sistem em determ inar se essa s exp eriên cia s já foram com partilhad as
riên cias p aranorm ais, essa escu ta de v o z e s fa z sim p lesm en te parte de por outros.
um a fa se e sp e c ífic a por on d e d ev e passar o d iscíp u lo n o d ecu rso do Q u ase sem e x c e p ç õ e s, o s m ístico s afirm am q u e têm ou tiveram
seu treino d e m ed itação. O M estre saberá aconselhar q u em quer que v isõ e s ao m esm o tem p o qu e o u v em ou ou viram v o z e s, e este facto é
se depare co m e ssa s ex p eriên cia s a m anter-se calm o e con cen trad o e, m uitas v e z e s citad o co m o testem u n h o da sua c o n v ic ç ã o d e q u e essa s
sobretudo, a n ão dar qualquer sig n ifica d o ao fen ó m en o . O s M estres v o z e s sã o captad as interiorm en te. E m sum a, a v o z ex p lica a v isã o que
Z en co n tem p orân eos ex p lica m q u e essa s p ercep çõ es sã o de origem é v ista p e lo o lh o interior. P or v e z e s, a v o z p o d e fazer afirm ações
sen sorial e são libertadas p elo in co n scien te. A c o n v ic ç ã o seren a co m m isteriosa s, ob scu ras, q u e p rovocam um a reflex ã o sob re o seu sig n i­
que estes M estres orientam o s seus d iscíp u lo s entronca, p rovavelm en te, fica d o . O utras v e z e s, a v o z p o d e dar a resp osta a um a antiga e pro­
na secu lar fam iliarid ad e desta E sco la co m o m isticism o . C o m b ase na funda r eflex ã o sob re a vid a, ou satisfazer, m elh or ou pior, d esejo s
sua lon ga ex p eriên cia histórica, eles sabem o que é m ais útil aos seus esp iritu ais in co n scien tes. O elem en to com u m d iz resp eito, in variavel­
d iscíp u lo s na v ia da ilu m in ação espiritual, porque estã o fam iliarizad os m en te, ao q u e p o d e ch am ar-se o sig n ifica d o o cu lto da realid ad e (por
co m o s o b je ctiv o s e co m o s m eio s de o s atingir. e x e m p lo , a un idade da C riação co m D eu s, a natu reza d o m al ou a
T udo isto é m u ito diferen te da tradição cristã, na qual a exp eriên cia certeza de q u e, m esm o na sua so lid ã o , o in d iv íd u o é d irigid o e orien ­
m ística tom a, m uitas v e z e s, a form a de um d iá lo g o co m um D eu s que tado por D e u s). P or v e z e s, as v o z e s inspiram sen tim en to s d e profunda
fala. O C ristian ism o, em geral, tem -se notab ilizad o p e la d esco n fia n ça m á g oa por co isa s co m o o p eca d o e o sofrim en to, m as, quando isto
com qu e encara tod as as form as de exp eriên cias in vu lgares que pa­ a co n tece, a ex p eriên cia cu lm in a sem p re n u m irresistível sen tim en to
recem afectar o m ístico , co m o seja o êx ta se, o falar lín g u a s, a le v i­ d e bem -aven tu ran ça, qu e en tron ca na e x c e lê n c ia da realid ad e em D eu s.
tação, etc., m as tem -se m ostrado m uito m en os reticen te perante as A ev o lu çã o d este p ro cesso d ep en d e da p red isp o sição do in d ivíd u o em

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causa: em larga m ed id a, a inten sid ad e d o q u e lh e é transm itido é um a encaradas co m o ex p eriên cia s r elig io sa s elem en tares. A té certo p on to
fu n ção do grau d e en v o lv im e n to p e sso a l n esta área d e exp eriên cia. aceites dentro d este co n tex to , ela s são en caradas, p orém , co m o ten do
M as, um a v e z alcan çada, a paz não m ais abandona o m ístico , que se apenas um sig n ifica d o in d iv id u a l, sem qualquer fu n ção dentro da
n ota b iliza p ela sua lú cid a p ersp ectiva m oral e pela d efesa d e um a so cied a d e - ao contrário d os grand es m ístico s d e outrora.
firm e v isã o op tim ista da vid a. E m resu m o, a escu ta de v o z e s im prim e
n essa s p e sso a s um a n otável a u tocon fian ça, um a certeza serena q u e é
verd ad eiram ente sentid a, e não um a m era crença con form e co m os Uma perspectiva metafísica
en sin am en to s da Igreja.
A s v o z e s o u vid as p e lo s m ístico s ten d em a exp rim ir-se na lin g u a ­ Ingrid Elfferich
g em da ép oca. A s exp eriên cias relatadas p e lo s m ístico s da Idade M édia,
p or ex em p lo , estã o fortem en te m arcadas p ela s form as e estilo s de P od em interrogar-se a q u e p rop ósito um a g ero n tolo g ista co m o eu
cu lto m ed iev a is. P arece ex istir tam bém um a lig a çã o estreita entre as escrev e sobre m eta física, n u m liv ro q u e trata do fen ó m en o da escu ta
estruturas so cia is dom in an tes e as form as d e ex p ressã o cultural de um de v o z e s. T u d o c o m e ç o u na U n iv ersid a d e, quando eu in v estig av a os
dad o p eríod o. Para H ildegarda de B in g en , n o sécu lo XII, D eu s é o m od os c o m o as p esso a s qu e sofriam um a perda im portante se orien ­
P rin cíp io O rganizador d o C osm os; p o d em o s aí descortinar um reflex o tavam na procura d e um n o v o sig n ifica d o para as suas vid as. A s
da b em organ izada so cied a d e dos H oh en stau fers (sécu lo s XII e XIII). p esso a s q u e m elh or resu ltad o tinh am n este p ro cesso pareciam ter tido
E m m ead os do sécu lo XIII, em p len a era d o s trovadores, H ad ew ijch - c o m o ela s m esm a s d izia m — co n tacto co m a lg o m ais elev a d o . Era
encara o m isticism o sob a form a d e um a nob re aventura, co m parti­ surpreendente verificar co m o e ssa s p e sso a s lid avam m u ito m ais fa c il­
cular ên fa se na ex p eriên cia d o am or in co n d icion a l e da fid elid ad e m en te co m o s seu s p rob lem as qu and o tinham tid o o q u e se p od e
absoluta. Santa C atarina de S ien a, n o sé c u lo XIV, en con tra-se centrada cham ar um a ex p eriên cia tran scen d en te.
n o sofrim en to d e Jesus e, em con form id ad e, exp erim en ta a sua a sso ­ N a m inh a activid ad e p ro fissio n a l tiv e ainda o p riv ilé g io d e lidar
cia çã o co m D eu s so b a form a de b ap tism o n o sangue de Jesus. co m p esso a s n o seu leito d e m orte. C om o tem p o, fu i d escob rin d o qu e
P or vo lta do sécu lo XVI, o s fen ó m en o s m ístico s p arecem tom ar-se o m oribundo tem um a a g on ia m a is fácil e m ais tranquila quando
m ais m argin ais, surgind o já só relatos o ca sio n a is de v isita çã o divina p assou previam en te p ela ex p eriên cia d e atravessar a m orte. A lgu m as
através d e v o z e s e v isõ e s, em bora o s relatos que ainda aparecem d essa s p e sso a s foram ca p a zes d e m e transm itir q u e estavam a ou vir
con tin u em a revelar a m esm a m arca d e factores culturais e so cia is. v o z e s. N orm alm en te, id en tifica v a m e ssa s v o z e s co m o sen d o d e p e s­
N o sécu lo XIX, as m en sa g en s p assam a fazer parte d e aparições da soas que m orreram antes d e la s, a lg u ém qu e ela s con h eceram e am a­
V irgem M aria, d eixan d o d e referir-se às profundas v iv ên cia s e x iste n ­ ram , se b em qu e eu ten ha p len a c o n sciên cia d e qu e m u itos outros
cia is com u n s a tod os o s m ístico s até aí, ten den do a restrin gir-se à o u vid ores d essa s v o z e s n em sem p re fa zia m um a id eia tão clara da sua
ex p ressã o d e im perativos m orais - a p elo s e a v iso s que reflectem o p roven iên cia.
sta tus quo, v eicu la d o s d ep o is por um clero con servad or em m eios E stas exp eriên cia s lev aram -m e a procurar um sistem a d e referên ­
h u m ild es, p eq u en os e fech a d o s sob re si próprios. N estas circu nstân­ cia s que fiz e s s e m ais ju stiça a tod os o s qu e o u v em v o z e s m as são
cia s, a escu ta de v o z e s p assa a estar con fin a d a ao co n tex to das v isõ es p erfeitam en te sau d áv eis d o p on to d e v ista m en tal - ju stiça qu e n ão é
relig io sa s e fica à m argem da b ase m ística profunda que de outro feita p elas teorias p sic o ló g ic a s ortod oxas.
m o d o lh e estaria sub jacente. P od e d izer-se q u e esta atitude p revaleceu E sta in v estig a çã o tem sid o inspirad a, p elo m en o s, por três tip os d e
até aos d ias d e hoje: as v o z e s e as v isõ e s têm vin d o há m uito a ser co n sid era çõ es. A prim eira é q u e, p elo m en os em algu n s ca so s, as

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v o z e s transm item um a m en sa g em con creta, sã, q u e está em co n so n â n ­ Para co m eçar, gostaria d e ch am ar a terreiro d o is filó s o fo s h o la n ­
cia co m o s factos d o n o sso m un do v isív e l, e que traz m esm o in for­ d eses. O prim eiro, B erger, escrev eu um a introd ução à M eta física na
m ação n o v a para e s s e m u n d o. E stas m en sa g en s co n têm m aterial qu e, qual afirm ava q u e o sig n ifica d o literal d e “M eta física ” é visar para
tanto quanto n os é d ad o saber, não p od eria residir na co n sc iê n c ia da além d e” ou “cam inh ar para lá d e” . A h ip ótese m eta física im p lica um a
p e sso a qu e o u v e a v o z. A segu n d a é q u e essa s p e sso a s têm plen a realidade por n íveis: um a realid ad e com p o sta por várias e en trelaçadas
co n sciên cia d e ou vir m en sa g en s q u e m ais n in gu ém ou ve; e ssa s p e s ­ d im en sõ es tem p o -esp a ço qu e o s n o sso s sen tid os norm ais d o d ia-a-d ia
soas n ão falham no ch am ad o teste da realidade. O terceiro fa cto é que não p od em apreender. O segu n d o filó so fo , P oortm an, su gere q u e a
algu m as d essa s p e sso a s esta b e lec em um a nítida d istin çã o entre os n ossa m en te ou esp írito tem um a en ergia própria q u e, nu m certo
seu s próprios p en sam en tos e as v o zes. A s v o zes pod em aparecer quando sentid o, é físic a . S en d o assim , p od eríam os adm itir q u e e ssa en ergia
essa s p esso a s se en con tram co m p leta m en te ocup adas co m assu n tos espiritual im pregn a por co m p leto o n ív el fís ic o da n o ssa ex istên cia .
co n cretos e, até, q u and o estã o em brenhadas a falar e a pensar para si S egu n d o esta filo so fia , é p o ssív e l a ex istên cia d e p la n o s e d im en ­
m esm as.
sõ es que rod eiam e interpenetram as n o ssa s vid a s físic a s, in flu en -
E stes três fa cto s n ão se ajustam ao m o d elo habitual de co m p reen ­
cia n d o-n o s por p r o c esso s ainda n ão totalm en te co m p reen d id o s. E sta
são da escu ta de v o z e s, q u e d efen d e tratar-se d e um fen ó m en o intra-
persp ectiva m eta físic a su gere q u e, a um dad o n ív el da n o ssa c o n sc iê n ­
p sic o ló g ic o . C arecem os d e um a n o v a h ip ótese e é fo rço so q u e reco ­
n h eçam os essa n ecessid a d e. cia, p o d em o s estar lig a d o s n ão apenas co m o m u n d o d o s v iv o s m as
A q u eles qu e o u v em v o z e s sen tem -se em d ificu ld ad e quando eles tam bém co m o m u n d o d os m ortos, o s qu ais p od erão ain da continuar
ou aq u eles qu e lh es sã o p róx im o s n ão d isp õ em de um co n tex to de a existir num corp o m a is subtil e n e ssa tal outra d im en sã o da reali­
referên cia. A s co isa s p o d em to m ar-se ainda p iores se e le s adoptam dade. N esta p ersp ectiv a , a escu ta d e v o z e s p o d e en ten d er-se co m o um
um a teoria qu e lh es retire o p rotagon ism o. N este sen tid o, um a teoria acto de co m u n h ã o co m seres h u m an os n o sso s sem elh a n tes, m as num
alternativa pod erá aju d á-los a alcançar um m odus vivendi co m as suas plano d iferen te da realid ad e - co m o algu n s cla rivid en tes d izem ser
ex p eriên cia s. A sim p les n o çã o de q u e o u vir v o z e s p o d e ser o resu ltad o ca p azes de aperceber. É p o ssív e l q u e um traum a em o cio n a l p o ssa
d e um a p ercep ção q u e n ão ca b e à P siquiatria n em à P sic o lo g ia orto­ rom per as fron teiras h ab itu ais d o n o sso cam p o d e ex istên cia , abrindo
d oxas p o d e p roporcionar um a lív io con sid erável. um a p assagem através da qual as v o z e s p roven ien tes d e outra d im en ­
A m ed id a q u e eu ia co n h ecen d o essa s p e sso a s e estu d an d o estes são p od em alcan çar a p e sso a aflita. O s clarivid en tes e o s clariau d ien tes
asp ectos, aum entava a m in h a co n v icçã o d e que a n o ssa c o n c ep çã o afirm am , por v e z e s , q u e são realm en te ca p a zes d e “v er” essa s p assa­
co n v en cio n a l do m un do e das p esso a s é, pura e sim p lesm en te, d em a ­ g en s m as, d ad o q u e n ão se trata d e ex p eriên cia s v u lg a res, física s ou
siad o lim itada. M u itos outros cien tista s ch egaram a co n c lu sõ e s se m e ­ sen soriais, ta lv e z seja m ais correcto falar d e p ercep ção extra-sen so-
lhantes e acabaram por se aventurar por áreas consideradas estranhas rial. N o en tan to, e n u m a p ersp ectiva m ais am pla, este s ex tra-sen tid os
à sua p rofissão, na b u sca d e um a n o v a com p reen são. p od em p erfeitam en te ser o s sen tid os norm ais d e um m etaorgan ism o
- organ ism o e s s e ev en tu a lm en te co n stitu íd o por um outro tipo de
Uma persp ectiva m ais vasta m atéria.
G ostaria d e propor um a p ersp ectiva m eta física que enquadre o
fen ó m en o da escu ta d e v o z e s num a v isã o m ais am pla do ex istir h u ­ * A este p ro p ó sito v e ja -se a S ec çã o “ C ard u m es, B an d o s e R e b a n h o s , in S held rake,
m ano no m undo. R . (1996), A Ressonância Mórfica e A Presença do Passado - os Hábitos da
Natureza, p p. 3 1 9 -3 2 5 .

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A n o ssa in v e stig a ç ã o , p orém , não se lim ita a e ste s d o m ín io s N ão p o d em o s evitar a co n c lu sã o d e q u e p o d e h aver um a ordem
p a ra p sico ló g ico s; p od e vir a ser útil en veredar p e lo s d o m ín io s da transcendente, um p rin cíp io esp iritu al, co m um a in flu ên cia form ativa
físic a ou por um a in v estig a çã o sobre a natureza da co n sciên cia . sobre a m atéria. É sig n ifica tiv o q u e a físic a esteja sen d o forçad a a
recorrer à m eta física - um a p ersp ectiv a q u e p ressu p õe um a ord em do
F ísica un iverso inteiram en te d iferen te da q u e é v eicu la d a p ela ciê n c ia tradi­
cio n a l. T a lv ez o s tem p os estejam m aduros para tom arm os c o n sciên cia
O s fís ic o s con tem p orân eos esfo rça m -se por fazer notar que a n o ssa das q u estõ es m eta físicas q u e se o cu ltam nas le is aparentes da natureza
p ersp ectiva da realidade é inadequada; as estruturas fu nd am en tais d o e para entrarm os em lin h a d e con ta co m um a versão da realid ad e que
n o sso u n iverso v ê m -se m ostrando m uito m ais co m p lex a s do que n ós abarque n o v o s co n c eito s d e tem p o e d e esp a ço . M u itos físic o s pare­
ju lg á v a m o s. C o m o d isse um físic o (C apra, 1982): cem h o je aceitar q u e a F ísica M od ern a tem im portantes im p lica çõ es
nalgun s d os c o n c e ito s fu n d am en tais da P sic o lo g ia e da P siquiatria,
“A Teoria Quântica vem mostrando que as partículas subatómicas pon do em qu estão as n o ç õ e s g eralm en te a ceites acerca d o E u, d os
não são grãos de matéria isolados mas padrões de probabilidade,
interconexões num tecido cósmico indivisível que inclui o observador sen tim en tos, da m en te e da realid ad e*.
humano e a sua consciência. A Teoria da Relatividade veio ajudar a
compreender a vida deste tecido cósmico, ao revelar o seu carácter Investigação na área da consciência
intrinsecamente dinâmico. A imagem do universo como uma máquina fo i
superada por uma perspectiva de um todo dinâmico indivisível, cujas A té há p o u co tem p o , a C iên cia O cid en tal esta v a co n v en cid a d e que
partes estão essencialmente interligadas e que só podem ser compreen­ tod os o s a sp ectos da c o n sciên cia hu m ana se p od iam ex p licar através
didas como padrões de um processo cósmico." das in teracções fisio ló g ic a s d o s p r o c esso s celu la res cerebrais. H oje,
p o r é m , h á u m a c o n v ic ç ã o c r e s c e n te d e q u e e s ta s a c tiv id a d e s
V ários outros físic o s con tem p orân eos, além d e C apra, têm tentado electroq u ím icas se p od em ex p lica r atrib u in d o-as a um p rin cíp io esp i­
aplicar este pon to de vista da F ísica M oderna às áreas da saúde física , ritual au tón om o. G . R . T aylor, in v estig ad o r d o cérebro, d á-n os in ú m e­
m ental e espiritu al (B o h m ,1 9 8 5 ; W o lf, 1986; H ayw ard, 1987; Z ohar, ro s e x e m p lo s d e p e r c e p ç õ e s q u e su r g e m n a a u sê n c ia d e u m a
1990). S egu n d o algu n s d e sses físic o s, o m isticism o - sobretudo o estim u la çã o sen sorial co m p rov á v el e c o n c lu i qu e a a ctivid ad e cere­
oriental - exp rim e a natureza da realidade m ais correctam ente do que bral, só por si, é in su ficien te para ex p lica r a d in âm ica da co n sciên cia .
as e x p lic a ç õ e s q u e n os transm item na esc o la , q u e tentam co n v en cer­ A n o ssa c o n sciên cia p arece ter, às v e z e s , u m a en ergia própria ao seu
m o s d e qu e o m un do é con stitu íd o por en tid ad es co m p leta m en te in­ d isp or, q u e se d istin g u e n itid am en te da q u e caracteriza a activid ad e
d ep en d en tes um as das outras e de que a n o ssa m en te está tam bém , de cerebral norm al o b serv á v el.
algu m a m aneira, separada do un iverso. Ora, as estruturas que p erce­ A lg u n s cien tista s q u e in v estig a m a m en te hum ana encontraram
b em os n o esp a ço tridim en sional parecem , p e lo contrário, entrançadas in d íc io s m uito segu ros d e qu e a m en te hu m ana se p od e encarar m elh or
na totalid ad e do u n iverso. O m o d elo h o lo g rá fico, por ex em p lo , é um a co m o um prin cíp io espiritu al lig a d o a outras d im en sõ es da realidade,
teoria d e vanguarda que se serve da m atem ática e da ló g ica para
dem onstrar que o ch am ad o sobrenatural é , p rov a v elm en te, um a parte
da natureza quotidiana.
* Ver Sheldrake, R. (1996)

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isto é , co m o um a en ergia q u e ao lo n g o da n o ssa vid a físic a é, p e lo A experiência m ística
m en os em parte, in d ep en d en te da activid ad e cerebral. O psiquiatra
am ericano S tan islav G r o f le v o u a ca b o um a in v estig ação d e trinta “ M ístico ” sig n ifica o q u e está em com u n h ão directa co m a rea li­
an os sob re as alterações d o esta d o da co n sciên cia , ten do contrib uíd o, dade absoluta, ou seja, q u e ex p erien cia a un id ad e do u n iverso. U m a
em larga m ed id a, para o estu d o das cham adas ex p eriên cia s trans- exp eriên cia m ística é a p e rcep çã o, para lá do q u e é c o m u n icá v e l, de
p esso a is. G r o f d e se n v o lv eu um m éto d o para penetrar n os n ív eis m ais um a realidade sup erior e é a v ia m ais im portante por o n d e o s seres
profun dos da c o n sciên cia , ten do v erifica d o qu e, a estes n ív eis, a n o ssa hum anos p od em captar en erg ia s d e um a fo n te exterior a si m esm o s.
m en te p o d e entrar em co n tacto c o m um a realidade e sp e cífica , in a ces­ A través d essa ex p eriên cia m ística p o d em o s co n clu ir qu e a n o ssa v isã o
sív el à n o ssa m en te norm al n o esta d o de v ig ília . N o fu n d o, G rof repete vulgar da realidad e é ap en as um a entre m uitas form as d e p ercep çã o.
m uitas das id eias da F ísica M oderna, encarando as alterações do estad o Por m eio d e forças origin árias doutra d im en são , p o d em o s ser trans­
da c o n sciên cia c o m o fo n tes d e in form ação sobre a natureza do un i­ portados para um p lan o m a is elev a d o e ch egar à co n v icçã o d e q u e a
v erso e da m en te hum ana. A s su as o b serv a çõ es sobre a p sic o se são n ossa co n sciên cia é in d estru tível. P o d em o s entrar em co n tacto co m
particularm ente im portantes n o q u e resp eita à escu ta de vozes: um a realidade q u e tran scen d e a qu e estam os h ab ituados a aceitar.
Q uem p assa por estas ex p eriên cia s costu m a d escrev ê-la s c o m o e sta ­
“Todas as definições ocidentais de psicose acentuam a incapacidade dos d e co n h ecim en to, m as e ste co n h ecim en to é d ifíc il d e reproduzir,
do indivíduo para estabelecer a distinção entre a experiência subjectiva dadas as lim ita çõ es d o n o sso estad o d e c o n sciên cia habitual; c o n se ­
e a percepção objectiva do mundo. Na definição de psicose, a ideia q u en tem ente, este n o v o co n h ecim en to n ão é trasm issível ao s outros
chave é o conceito de teste da realidade.”
seres hum anos. O im p acto p sic o ló g ic o da ex p eriên cia é evid en te: o
con tacto directo c o m a u n id ad e do u n iverso co n d u z à c o n v ic ç ã o
A ssim , to m a -se claro q u e o c o n c e ito d e p sic o se d ep en d e, e sse n ­ im ediata de qu e e x iste m m a is co isa s d eb a ixo do céu e em c im a da
cia lm en te, d o s c o n c e ito s c ie n tífic o s correntes acerca da realidade. terra d o que aqu elas q u e a n o ssa filo so fia p od e im aginar.
A P siquiatria tem d efin id o , trad icion alm en te, a saúde m ental co m o A versão da realid ad e q u e o s m ístico s têm está m uito p róxim a da
um estad o d e con cord ân cia p ercep tiv a e co g n itiv a co m a co n cep çã o que v em sen d o p rop osta p e lo s físic o s m od ern os. E m 1966, o p s ic ó ­
m eca n icista d o m undo. S e a ex p eriên cia q u e o in d iv íd u o tem d o lo g o L eSh an le v o u a ca b o um a ex p eriên cia altam en te reveladora;
u n iverso se afasta m uito d este m o d elo , to m a -se um indicador, em si
seleccio n o u 6 2 p r o p o siçõ es acerca da m aneira co m o o m u n d o fu n ­
m esm a, d e um p ro cesso p a to ló g ico do cérebro ou de um a d oen ça.
cio n a e escrev eu cad a u m a d ela s nu m cartão; m etad e d essa s p rop o­
D ad o qu e o d ia g n ó stico de p sic o se é insep arável da d efin içã o de
s iç õ e s fo i fo rm u la d a p o r f ís ic o s (E in ste in , O p p e n h eim e r, B o h r,
realidade, en tão qualquer m u d an ça d e fu nd o n os paradigm as cie n tí­
fico s qu e altere o c o n c eito d e natureza da realidade terá um a in flu ên ­ H eisen b erg, P lan ck ) e a outra m etad e por m ístico s (E ckart, A u rob in d o,
cia crucial no d ia g n ó stico de p sic o se . C on clu i G rof (1985): V ivek an ad a). B aralhou o s ca rtões e d eu -o s, sem nen h u m a in d ica çã o
de autoria da resp ectiv a frase, a um grupo d e p esso a s, em q u e um a
“Segundo o novo modelo que aqui se apresenta, as matrizes funcio­ parte tinha form ação e m F ísic a e outra parte form ação em D isc ip lin a
nais que têm valor instrumental nos episódios psicóticos são parte inte­ M ística. Interrogados sob re a id en tid ad e d o autor d e cad a um a das
grante da personalidade humana. O problema central da compreensão p ro p o siçõ es, as p e sso a s d avam p alp ites q u e n ão iam a lém d e 60% de
da psicose é, pois, identificar os factores que distinguem os processos resp ostas certas. E ram m u ito grand es as sem elh an ças d e p o n tos d e
psicóticos dos processos m ísticos.” v ista co n tid o s n essa s p r o p o siçõ es e as co n c lu sõ e s a q u e h aviam ch eg a -

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d o físic o s e m ístic o s sob re a natureza da realidade eram d em asiad o e atingir outras d im en sõ es - q u e são tão parte da criação co m o o
próxim as para se p od erem destrinçar co m segurança. inundo v isív e l.
U m n o tá v el ex e m p lo da c o n sciên cia d e um ex istir para lá da p siq u e E ntão, em qu e p od e esta p ersp ectiva m eta físic a ser útil à p esso a
in d iv id u a l é a e x p e r iê n c ia d o s m o m en to s q u e ro d eia m a m orte. que o u v e v o z e s? A s van tagen s d esta p ersp ectiv a resid em , p o te n cia l­
A in v estig a çã o sob re a p ercep ção d o s m oribu ndos tem m ostrado que m ente, n o fa cto d e ela prop orcionar o en sejo d e as v o z e s rep resen ta­
essa s p e sso a s p o d em passar por ex p eriên cia s id ên ticas às ex p eriên cia s rem um fen ó m en o q u e tran scen d e a in d ivid u alid ad e d e q u em as o u v e.
d os m ístico s. P orém , a rev ela çã o m ais im p ression an te é , ta lv ez, a da Este m o d elo c o lo c a as n o ssa s p ercep çõ es num co n tex to d e com p reen ­
natureza au tón om a, d in âm ica, da n o ssa m en te e da ex istên cia doutras são m ais a m p lo, d e q u e um a das p o ssib ilid a d es é a cap acid ad e de
d im en sõ es dentro d o n o sso u n iverso - rev ela çã o q u e tem sid o propor­ esta b elecer e m anter o con tacto co m outros p la n o s d o ser. N o ca so das
cion ad a p ela exp eriên cia d e p esso a s que estiveram clin ica m en te m ortas. v o zes n ega tiv a s, p o d er-se-ia adm itir qu e a p e sso a está a lutar contra
N ã o há ex p lic a ç ã o cien tífica para o fa cto de essa s p e sso a s, após a algo q u e ex iste d e verd ad e, m esm o qu e essa realid ad e n ão seja per­
ressu scita çã o , serem ca p a zes de d escrev er co m p recisão o s a co n teci­ ceb id a p elas outras p esso a s. E n tão, é n ecessá rio q u e o s ou v id o res de
m en tos q u e en v o lv era m o seu corp o m orto durante o tem p o em que v o zes d e se n v o lv a m o p od er e a cap acid ad e m en tais n ecessá rio s para
n ão fo i ca p táv el qu alq uer reg isto de activid ad e cerebral. E m qu ase cortar co m e ssa s p ercep çõ es.
A principal co n seq u ên cia p sic o ló g ic a d esta p ersp ectiva é a n e c e s­
tod os os c a so s em q u e fo i p o ssív e l com provar in d ep en d en tem en te este
sidade d e trabalhar o co n tex to das em o ç õ e s e d os traum as q u e não
facto, as p e rcep çõ es d o m orto co in cid ia m p on to por p on to co m os
foram adeq uad am en te reso lv id o s no p assad o — sob retu d o n o ca so das
a co n tecim en to s reais. N ã o há qualquer ex p lica çã o sen so ria l para esta
v o zes n ega tiv a s. A harm on ia resu ltan te da aceita çã o d e si m esm o
p recisão. A lém d isso , o s co n teú d o s d essa s ex p eriên cia s sã o m uito pode ser o m elh or escu d o protector quando se está con fron tad o co m
co n sisten tes entre si - m u ito m ais d o que se p od eria esperar se fo ssem
essa s en ergias n ega tiv a s.
um m ero produto d e cad a um d os cérebros isolad am en te. M u itos d os A q u eles q u e receia m ser tom ad os por lo u c o s p e lo fa cto d e ou vir
qu e passaram por e ssa ex p eriên cia estã o co n v en cid o s d e q u e tiveram v o z e s, p od em encontrar um grande a lív io na sim p les m en ção d e qu e
o p riv ilé g io d e ver d e relance um a outra form a d e ex istên cia . as suas ex p eriên cia s n ão sã o anorm ais, antes sã o com p artilh ad as por
O s m u itos cien tista s que estudaram este assu n to em profundidade m uita g en te m en talm en te sau d ável. O pior q u e p o d e a con tecer a um
têm ten d ên cia a supor qu e a ex p eriên cia de passar p ela m orte é um ou vid or d e v o z e s é cair nas m ã o s d e alg u ém q u e ign ora estas co isa s
forte in d icad or d e q u e a m en te hum ana p od e estar a ctiva e co n scien te e, por isso , encara co m o p a to ló g ico tod o e qu alq uer ca so d e escu ta de
noutra d im en são da realidade, m esm o que não se v erifiq u e qualquer v o zes. P elo contrário, um p sic ó lo g o ou um psiqu iatra q u e co n h eça
activid ad e cerebral. A c iên c ia co m o um todo não p o d e ignorar o s bem o p o ssív e l im p acto d e exp eriên cia s tran scen d en tes p o d e estar
factos q u e estã o à n o ssa frente. apto a ajudar o s outros n o cam in h o para um a sau d ável in tegração
d essa s ex p eriên cia s, n u m p rocesso qu e irá en riq u ecer o sig n ifica d o
C onclusão das suas v id as.
P recisa m os d e p roced er a um a in flex ã o d e p o n to s d e v ista q u e n os
A in v estig a ç ã o con tem p orân ea nas áreas da F ísica e da C o n sciên ­ ajude a escla recer o fa cto d e v iv erm os nu m u n iverso co m p o sto por
cia H um ana p arece confirm ar a v isã o m eta física d o m u n d o, n o m ea ­ n ív e is d e realid ad e q u e se interpenetram m u tu am en te. O u vir v o z e s
dam en te, q u e é p o ssív e l ao ser hu m ano transcender o seu ex istir físic o p od e até ajudar a p roced er a essa in flex ã o , d e v id o à riq u eza das

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in fo rm a çõ es q u e essa s v o z e s p o d em veicu lar. A ju dados p e lo s próprios acrescen tar-se à p ercep ção vu lgar qu e se dá através d os c in co sen tid os
ou v id o res de v o z e s, p od erem o s vir a d escob rir as leis qu e regem a físicos. O resu ltad o é qu e o s in d iv íd u o s p ossu id o res d este d om são
n o ssa cap acid ad e de sin ton ia co m outras d im en sõ es desta realidade cap azes, por m eio s ex tra -sen so ria is, d e ter a cesso a co n h ecim en tos
esp a ço -tem p o . sobre fa cto s do m un do qu e o s rod eia e sobre as exp eriên cia s doutras
pessoas: v ê e m , o u v em ou sa b em co isa s qu e n ão lh es seria p o ssív e l
percepcionar se co n ta ssem ap en as co m o s m eio s d isp o n ív eis através
A escuta de vozes e a parapsicologia d os o lh o s, d o s o u v id o s o u d e q u a lq u er outro ó rg ã o c o n h e c id o .
A p ercep ção extra-sen sorial d iv id e -se h ab itu alm en te em d ois grupos:
Douwe Bosga telepatia e clarivid ên cia.

E errado fazer g en era liza çõ es sob re as exp eriên cia s d e ou vir v o zes,
c o m o se ela s fo ssem todas igu ais. U m a an á lise m ais co m p leta m ostra Telepatia- e clarividência
q u e a ex p ressã o “ou vir v o z e s ” é um sa co m u ito grande ond e cab e um a
vasta gam a de exp eriên cia s m uito d iversas. U m a p esso a que não seja A telepatia d e fin e -se c o m o a cap acid ad e d e obter in form ação sobre
ca p az d e lidar co m e ssa s v o z e s acaba, geralm en te, por n ecessita r de o con teú d o da c o n sciên cia dou tro ser (h u m an o ou an im al), sem a
ajuda p siqu iátrica, m as essa ajuda b a seia -se no p ressu p osto de que o m ed iação d os c in co sen tid o s. O s co n teú d o s da c o n sciên cia sã o p en ­
clien te teria tudo a ganhar se as v o z e s d esa p a recessem por co m p leto . sam entos, m as tam bém sen tim en to s e e m o ç õ e s, ou seja, tod os aq u eles
E sta p o siçã o tem vin d o a m udar a p o u c o e pouco: as p e sso a s estão a elem en to s que con stitu em a c o n sc iê n c ia hum ana. P orque e ste c o n h e­
co m eça r a tom ar c o n sciên cia de q u e o verd ad eiro prob lem a não é cim en to se ob tém sem in term ed iação d os cin co sen tid os v u lgares, a
tanto o facto d e se ou vir v o z e s m as, an tes, a incap acid ade de lidar co m corresp ond ente p ercep ção n ã o está con fin ad a p elo esp aço: as m en sa ­
ela s. gen s telep áticas p od em atingir lo n g a s d istân cias.
Isso é particularm ente verd ad e na form a d e escu ta d e v o z e s co n h e­ A clarividência é a cap a cid ad e d e obter in form ação sobre p esso a s,
cid a por clariaudiência - que está ligada aos d om ín ios da parapsicologia. co isa s ou a co n tecim en to s se m a m ed ia çã o d os c in c o sen tid os. A d i­
C o m o o próprio term o su gere, a clariau d iên cia é um parente ch eg ad o ferença entre clarivid ên cia e telep atia resid e essen cia lm en te n o ob jecto
do fen óm en o, m uito m ais con h ecid o , da clarividência. Para exem p lificar do con h ecim en to: se o co n h ecim en to n ão d iz resp eito ao con teú d o da
o tip o d e luz que a P arap sico lo g ia p o d e fazer sobre o fen ó m en o da co n sciên cia doutro ser m as a a co n tecim en to s - qu e p od em ou n ão
escu ta de v o z e s, co m eça rem o s por tratar resu m id am ente o fen ó m en o en v o lv er p e sso a s ou an im ais fa lam o s en tão d e clarivid ên cia. E stas
da p ercep ção paranorm al em geral. p ercep çõ es d izem resp eito a a co n tecim en to s p assad os, p resen tes e até
futuros.
P or d efin içã o, telep atia e cla rivid ên cia estão estreitam en te rela cio ­
Percepção extra-sensorial nadas, tão estreitam en te q u e, m u itas v e z e s, é im p o ssív el d istin gu i-las.
Isto ex p lica por qu e razão as p e sso a s, na prática, p referem d esign ar
A P a rap sicologia rela cion a -se c o m o estu d o da p ercep ção extra- em conjunto os d o is fen ó m en o s por P E S (P ercep ção E xtra-S en sorial).
-sen sorial ou paranorm al. “Para” sig n ifica , n este co n tex to , “para lá Seja co m o for, o term o cla riv id ên cia n ão é m u ito satisfatório, na
d e ”; a p ercep ção paranorm al refere-se, en tão, à p ercep ção q u e v em m ed id a em q u e dá a en ten d er q u e o m éd iu m tem um a n ítid a p ercep -

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Ção visu al; ora, co m o irem o s ver, m u itos ca so s d e P E S não im p licam co n h ecim en to paranorm al, ou seja, co m aq u ilo a q u e p o d erem o s ch a­
qualquer p ercep ção v isu a l e , quando a in clu em , raram ente a im ag em mar clarisciên cia.
é nítida. A im p ressão paranorm al p o d e ser m uito v aga e corresp ond er
apen as p arcialm ente à realid ad e. W arner T h o len , um m éd iu m m u ito 1. C larivid ên cia
co n h ecid o , d escrev eu , certo dia, o fen ó m en o desta m aneira:
U m a das m od a lid a d es m ais freq u en tes d e ex p ressã o da P E S é a
‘‘Deixem-me dar um exemplo de como a clarividência funciona. percep ção v isu a l. N e ste ca so , a in form ação extra-sen sorial é transfor­
Imaginem que tinham acabado de passar pelo Piccadilly Circus, em m ada num a im a g em visu al.
Londres, e tentavam visualizar o cenário mentalmente, pouco depois.
Com toda a probabilidade, aquilo que conseguiriam evocar seria apenas 2. S e n sa çõ es paranorm ais
uma vaga impressão ou, então, veriam com muita nitidez uma parte da
zona, mas não as outras. Uma pessoa veria nitidamente o monumento, S e é certo q u e a cla rivid ên cia é d e lo n g e a m a n ifesta çã o d e PE S
outra veria os degraus e as pombas, outra ainda veria a praça apinhada m ais b em co n h ecid a , as sen sa çõ es paranorm ais, p ro v a v elm en te, aco n ­
de gente, etc. Isto é muito semelhante à experiência da clarividência: tecem m uito m ais v e z e s. P or sen sa çã o paranorm al q u erem os sig n ifi­
umas vezes podereis ver apenas uma pequena parte, outras vezes vereis
vagamente alguma coisa e podereis captar um determinado sentimento, car que um in d iv íd u o capta as dores física s e as sen sa çõ es d e outrem ,
outras vezes vereis diversos fragm entos sem saberdes como se relacio­ sen d o e ssa in fo rm a çã o ex tra -sen so ria l tran sform ad a e m sen sa çã o
nam entre si." corporal.

Classificação da percepção extra-sensorial 3. C lariau d iên cia


A clariau d iên cia c o n siste na escu ta d e um a v o z interior q u e trans­
T êm sid o feitas várias ten tativas para cla ssifica r o fen ó m en o da
m ite um a m en sa g em relacion ad a co m a realidade.
P E S . U m a cla ssifica çã o ainda h o je largam ente utilizada é a q u e fo i
introduzida em 1 9 04 p e lo p ara p sicó lo g o Frederic M eyers. M eyers
4. O lfa cçã o paranorm al
d iv id iu as várias m o d a lid a d es d e P E S em duas categorias principais:
autom atism os sensoriais e autom atism os m otores. E m cada um a d e s­ Q uando o o lfa c to d esem p en h a um p ap el im portante em d eterm i­
tas categorias id en tifico u v ários tip os. C o m o o s au tom atism os m o to ­ nado tem a, p o d e aparecer na P E S . A ssim , um m éd iu m p o d e su b ita­
res n ão têm qualquer in teresse para o q u e esta m o s a tratar, não irem os m en te, durante um a con su lta, sentir, por ex em p lo , o ch eiro a estrum e
d iscu ti-lo s aqui. , de vaca, in d ican d o qu e a p e sso a a q u em a m en sa g em se d estin a tem
um a certa lig a çã o co m vacas.
A utom atism os sensoriais
5. G u stação paranorm al
N o s au tom atism os sen so ria is, a in form ação paranorm al é trans­
form ada in co n scien tem en te num a p ercep ção sensorial. P od em d istin- U m a v e z q u e a in cid ên cia da P E S está bastante d ifu n d id a p elo s
gu ir-se seis tipos de a u tom atism os sen soriais, c in co d os q u ais corres­ quatro sen tid os anteriorm ente tratados, é d e supor q u e haja m ais ca so s
p on d em aos cin co sen tid o s, enquanto o sex to se relacion a co m o de en v o lv im e n to d o sen tid o do g o sto do qu e a q u eles q u e têm sid o

168 169
d o cu m en tad o s. U m d os e x em p lo s p o ssív e is d iz resp eito a um a dona O p a rap sicólogo h olan d ês W . H . C . T e n h a e ff (1 9 7 2 ) co n sid ero u a
d e ca sa q u e ten tava d ecid ir o que havia de co zin h ar para a fa m ília no clariau d iên cia um fen ó m en o d e p seu d o -a lu cin ação veríd ica. N o e x e m ­
d ia segu in te; ainda ela não tinha d ecid id o e já o seu filh o sabia qual p lo acim a, p od e d izer-se q u e o padre tev e um a alu cin ação, na m ed id a
o resu ltad o da esco lh a , ao sentir na b o ca o sabor a spaghetti. C asos em q u e o u v iu qualquer c o isa qu e n ã o tinh a um suporte sen sorial. N o
d e stes, p orém , esc a sse ia m na literatura, p ro v a v elm en te porq ue os entanto, tratava-se d e um a p seu d o -a lu cin ação , porq ue e le sabia que
p a ra p sicó lo g o s não têm dado grande aten ção a esta área. esta v a a ou vir algu m a c o isa q u e na realid ad e n ão estava p resente. Por
fim , trata-se d e um a ex p eriên cia v eríd ica p orq ue o con teú d o d aq u ilo
6. C o n h ecim en to paranorm al que a v o z lh e d isse corresp on d eu a a co n tecim en to s posteriores.

H á c a so s d escritos em que a PE S não é transform ada num a im a­ Condições favoráveis


g em , n u m so m , n em em qualquer outra im p ressão sen sorial, m as em
q u e, ap esar d isso , a p ercep ção penetra na c o n sciên cia . N estes ca so s, H á certas co n d iç õ e s q u e p arecem p articu larm ente p rop ícias às
fa lam o s d e co n h ecim en to paranorm al. O in d ivíd u o tanto p od e sentir exp eriên cias d e P E S . H á estu d o s q u e m ostram (S ch m eid ler, 1 988) que
um a d eterm inada sen sa çã o sem saber o seu sig n ifica d o , co m o p od e quando as p e sso a s estã o num estad o d e c o n sc iê n c ia alterada (co m o na
ficar su b itam en te cien te da ocorrên cia de determ inado facto. E n con ­ h ip n ose, no son h o, n o relaxam en to p rofu n d o ou no stress extrem o),
tram o-n os aqui num a lin h a de fronteira partilhada por fen ó m en o s se dá um aum en to da ocorrên cia esp o n tâ n ea d e exp eriên cia s d e c la ­
co m o a in tu ição e a inspiração, para o s q u ais a ciê n c ia tam bém não rivid ên cia e clariau d iên cia. T em sid o tam b ém dem on strado q u e os
está b em eq uipad a em term os de ex p lica çõ es. c a so s d e P E S são particularm ente co m u n s em p esso a s q u e têm laços
em o cio n a is entre si, c o m o é o ca so d os nam orad os, d e fam iliares
C lariaudiência p róxim os e , ainda, d o s terapeutas e seu s p acien tes (S ch w artz, 1980;
d e B ruijn, 1992 - ver tam b ém C ap ítu lo 4).
E m P a ra p sico lo g ia, a escu ta de v o zes sem qualquer b ase sensorial E m 1987, o p sic ó lo g o britân ico S p in elli, da P sic o lo g ia d o D e se n ­
está a sso cia d a , por rotina, à v isã o de im agen s, à p ercep çã o de od ores, v o lv im en to , form u lou um a h ip ó tese in teressan te. S u geriu qu e n ós só
etc. T in h a in teresse saber em que circu n stân cias se p od eria abordar o esta m o s em p o siçã o d e falar d o reg isto d e p en sam en to d o s outros se
fen ó m en o p or form a a revelar-se um ad eq uad o o b jecto d e estu d o tiverm os c o n sciên cia do n o sso próprio p en sam en to, ou seja, se puder­
p a ra p sico ló g ico . S egu ram en te, h á-d e ser sem p re q u e se p o ssa d e­ m o s distingu ir o q u e é n o sso d o qu e n ão é n o sso . Por outras palavras,
m onstrar q u e a m en sa g em o u v id a corresp ond e a a co n tecim en to s reais só um in d ivíd u o q u e p ossu a em p len o a sua própria iden tidade pod erá
do m u n d o m aterial. Para o ilustrar, p o d em o s servir-n os d o segu in te avaliar correctam en te a entrada em cen a d e p en sam en tos ou e x p e ­
e x e m p lo dram ático: riên cias de outrem na sua c o n sciên cia . D aq u i, S p in elli p assou para a
h ip ótese de a P E S só ser esp e cia lm en te freq u en te até ao m o m en to em
Um padre fora avisado insistentemente por uma voz interior para não que determ inado in d iv íd u o c o m eça a esta b elecer um a id en tid ad e e s ­
ir ao teatro nessa noite. Obedeceu à voz e não foi. Porém, como já tinha
comprado o bilhete, achou mal deitá-lo fora e ofereceu-o a um amigo. tável. A té aí, as fron teiras entre o E u e o O utro n ão estã o ainda
Este, radiante por aquela generosidade, aceitou o bilhete e foi ao teatro su ficien tem en te esta b elecid a s e , d e sse m o d o , a p esso a en con tra-se
no lugar do padre. No decorrer da peça, o teatro incendiou-se e foi largam en te aberta aos outros, e as im p ressõ es p ertecen tes a outrem
devorado pelas chamas, tendo o amigo do padre morrido no incêndio. são v iv en cia d a s co m o próprias. N esta s circu n stân cias, é d ifíc il que

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essa s im p ressõ es sejam sen tid as c o m o um a am eaça, um a v e z que a 1. P roblem as que advêm da p ró p ria experiência
n ecessid ad e d e p roteger a id en tid ad e não se encontra ainda d e se n v o l­
vid a*. D e acordo co m e ste m o d e lo , é de esperar que se en contrem O s con teú d os da ex p eriên cia em si são d esagrad áveis. A in form a­
m u itos e x em p lo s d e P E S e m crian ças jo v en s - o que é confirm ad o ção recebida d iz resp eito a assu n tos co m o d oen ça , m orte, etc. Isso
p elo estu d o d e S p in elli, q u e d em on strou tam bém que o núm ero d essa s pod e despertar sen tim en to s d e cu lp a, m as tam bém con fu sã o - p orq ue
exp eriên cias dim inu i co m o avançar da idade. é m u ito d ifícil às p e sso a s com p reen d er a natureza d essa s ex p eriên cia s.
É claro q u e há m uitas ex p e riê n cia s de clarivid ên cia e clariau d iên cia M uitas p esso a s sen tem -se au ten ticam en te a v iv er em d o is m u n d os
em adu ltos, m as ela s p arecem ocorrer sobretudo em esta d o s de c o n s­ separados.
ciên c ia alterada ou no co n tex to de rela çõ es em o cio n a is. E m qualquer
d estas circu n stân cias, o in d iv íd u o tem m en os in clin a çã o para proteger 2. P roblem as que advêm da reacção da fa m ília e conhecidos
a sua id en tid ad e, en co n tra n d o -se, por isso m esm o , m ais recep tivo ao
O u tro. N e s te c o n te x to , é cla ro q u e o s p e n sa m en to s a lh e io s sã o Q uando têm ex p eriên cia s d estas, as p esso a s acabam por se sentir
v iv en cia d o s c o m o m en os am eaçad ores do q u e se a situ ação fo sse diferentes e incom p reen didas e as reacções d os seu s sem elh an tes fazem -
outra. Seria, sem dú vid a, u m a sim p lifica çã o e x c e ssiv a afirm ar que -nas sentir-se só s. A ssim , ten d em a sen tir-se m u ito in segu ras, co n fu ­
qualquer exp eriên cia P E S q u e ocorra fora d estas circu nstâncias e sp e ­ sas e desam paradas.
c ia is é um a p rova de id en tid a d e fraca; no en tanto, a abord agem
sp in ellian a d á-n os um a p ersp ectiv a interessan te para in v estig a ç õ e s 3. P roblem as que advêm da p rá tica de jo g o s pa ran orm a is
futuras. F oi sem pre um p a ssa tem p o bastante pop ular tentar esta b e lec er
M an tém -se a qu estão d e saber se a p e sso a tem algu m a vantagem con tacto co m o s m ortos. In d ep en d en tem en te d e se saber se isso é
n o facto d e saber qu e as su as v o z e s prod uzem in form ação a partir de p o sív el ou não, é e v id en te q u e e s s e tipo d e jo g o s p od e, em certas
um a p ercep ção paranorm al. A n o ssa exp eriên cia d iz-n o s que só em p esso a s, con d u zir a terrores, o b se ssõ e s e esta d o s d e a lien ação.
parte assim é. N a prática, e ssa s ex p eriên cia s são, m uitas v e z e s, d esa ­
grad áveis e p o d em acarretar p rob lem as m ais ou m en os graves. N o 4. P roblem as errad am ente atribuídos a um a causa p a ra n o rm a l
D ep artam ento d e C on su lta d o Instituto de P a rap sicologia de U treque,
ten tam os ajudar tod os aq u eles q u e, bem ou m al, acreditam estar a Q uando um a ex p e riê n cia paranorm al isolad a a co n tece n o m eio de
viven ciar fen ó m en o s p síq u ico s ou paranorm ais, e que n ão sabem co m o um gen u ín o so frim en to m en tal, a p esso a p od e agarrar-se a essa e x ­
lidar co m e le s. V ários tip os d e p rob lem as p od em surgir; um a das periên cia paranorm al para ex p lica r tudo o resto. D o m esm o m o d o , as
n o ssa s colab oradoras, M artine B u sch , agru p ou -os em cin co categorias q u eix as p sico sso m á tica s p od erão ser erradam ente atribuídas a um a
principais: p resu m ível sen sitiv id a d e paranorm al.

* Isto é, o adulto, porque tem uma identidade estável, defende-se perante a PES 5. P roblem as de assim ilaçã o
e rejeita-a; a criança, cuja identidade não se encontra ainda suficientemente
estabelecida, está muito receptiva à PES, mas não a reconhece facilmente como tal. O in d ivíd u o n ão sa b e o q u e fazer n em o qu e p o d e ser fe ito perante
Dir-se-á que, com o correr da idade, se identifica melhor a PES mas se está menos as exp eriên cias paranorm ais; procura o crescim en to in d ivid u al, quer
receptivo para ela. Por outro lado, a PES é geralmente vivenciada como algo desa­
gradável pelo adulto e como algo indiferente pela criança. d esen v o lv er as suas ca p a cid ad es paranorm ais ou d eseja en contrar um a

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m aneira d e incorporar o paranorm al na totalidade d o seu d e se n v o lv i­ a sim p atia e a cru eld ad e. Q u and o se é recep tiv o , tod as estas caracte­
m en to p esso a l. rísticas se p o d em m anifestar: tanto se p o d e ser in flu en cia d o para o
S e aceitarm os q u e p od e haver fen ó m en o s d e escu ta de v o z e s que bem c o m o se p o d e ficar co m p letam en te fa scin a d o ou p erd id o n este
reflectem um a cap acid ad e activa de p ercep ção paranorm al, resta, ainda processo. E vid en tem en te, ex iste tod o um m u n d o d e seres para lá das
a ssim , controlar a in flu ên cia das v o z e s. O d o m ín io da situ ação é n ossas p e rcep çõ es q u otid ian as h ab itu ais - m u n d o e s s e q u e é tão
essen cia l para tod os a q u eles qu e, dotad os efectiv a m en te d e cap acid a­ m ultifacetad o co m o o n o sso próprio m u n d o h u m an o. D e in ício , E va
d es paranorm ais, sejam con fron tad os c o m im p ressõ es in d esejá veis. estava ex p o sta a e s s e outro m u n d o através da escrita au tom ática - era
N ão n os p arece p o ssív e l im ped ir que essa s im p ressõ es in d esejá veis a form a d e e s s e m u n d o penetrar n ela. O a m ig o fe z -lh e v er q u e, por
acon teçam , m as é p o ssív e l aprender a lidar co m ela s. Isto lev a-n o s m aior q u e fo s s e a ten tação, nu n ca d everia ced er o con trole a essa s
para áreas q u e estã o para lá do n o sso p rop ósito, p e lo q u e bastará entidades: um m un do tão e x ó tic o e tão m á g ico p o d e ser d em asiad o
deixar aqui um a breve nota. T o d o s a q u eles q u e são, ou acred itam que fascinante; é um rein o d e m aravilha do qual é m u ito fácil ficar refém .
estão a ser, in co m o d a d os por im p ressõ es extra-sen so ria is, p od em , em O s en tes que m ais con ten tes fica m co m essa p o ssib ilid a d e são o s seres
larga m ed id a, b en eficia r d e um períod o de cerca d e 10 m in u tos de inferiores, q u e se d elicia m em poder penetrar nu m ser h u m an o e
rela x e, um a a d u as v e z e s p or dia; iss o d a r-lh es-á o p o rtu n id a d e ocu p á -lo. A o lo n g o d e m u itos an os, E va aprendeu a ser selectiv am en te
d e recon h ecer e aceitar todas as im p ressõ es receb id as. S e lh e juntar­ recep tiva para o s en tes n ob res e sup eriores, q u e lh e p rop orcion avam
m os um a in stru ção p o sitiv a , n o sen tid o de um m an ejo e fic a z d essa s um a com p an h ia p a cífica e am ável. A judada por e ste s seres, lev o u a
p ercep çõ es, e s s e tipo de ex e r c íc io p o d e aliviar grande parte da ten são cab o um p ro cesso d e an á lise extrem am en te penetran te e p rofun do,
qu e estão a sofrer. que durou c in c o a n o s, até q u e a n o to ried a d e p ú b lica a fo rço u a
interrom pê-lo, para orientar outras p e sso a s na m esm a situ ação.
E m resu ltad o d e sse p r o c esso , E va en treg o u -se n as m ãos d o seu
A escuta de vozes e O Caminho G uia - co m o d esign aria m ais tarde o seu C om p an h eiro - e, já n o seu
próprio pap el d e g u ia d e m u itas outras p e sso a s c o m o ela, d escob riu
O C am inho (The P ath, P athw ork) é um m o v im en to fu nd ad o em
que a p rogressão d e cad a um d ep en d e d o tip o d e en te qu e v e m em
1952, em b ora o n o m e só fo sse adoptado m ais tarde. A o s 37 an os de
idade, a sua fundadora, E va Pierrakos (então co n h ecid a por E v a B roch), b u sca d e m orada. C ada um d e n ó s é um ca m p o d e en ergia q u e atrai
sentiu qu e lh e p ega v a m n o braço e a lan çavam para a escrita autom á­ outra en ergia. A s características n egativas q u e to d o s n ós trazem os no
tica. E m bora n ão se sen tisse particularm ente perturbada por isso , teve n o sso cam p o d e en ergia d ão azo a qu e n e le p o ssa m entrar n o v a s e
a sen sib ilid a d e su ficien te para contactar um a m ig o m a is fam iliarizad o in d esejá v eis en ergias - qu e p od em até ser m ais d esco m ed id a s. Para
co m estes assu n tos. A p rin cíp io, E va não se sen tia m u ito cap az de se ser o m elh or m éd iu m p o ssív e l, é im portante pu rificar-se ao m á­
enfrentar essa ex p eriên cia so zin h a e, por isso , tod os o s dias ped ia xim o; o p ro cesso d e p u rificação lev a an os, às v e z e s a vid a inteira. A o
co n selh o s ao seu am igo. contrário da an á lise ortod oxa, qu e p od e ser relativam en te rápida, este
A p esso a q u e é sen sitiv a para fen ó m en o s co m o e ste s tem , por é um p ro cesso d e crescim en to con tín u o (P ierrak os, 1978).
assim dizer, um a abertura no seu ca m p o en erg ético , por o n d e p od em N esta situ ação, há im portantes esco lh a s a fazer, d e entre várias
penetrar d eterm in ad os en tes. E va d escob riu que estes en tes p o ssu em p ossib ilid ad es: se o s en tes são para utilizar ap en as para p rop ósitos
várias características: o b em e o m al, a agradabilidade e a falsid ad e, elev a d o s - isto é, ao serv iço d o p rocesso d e crescim en to p e sso a l de

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cad a um e d o s outros en tão é n e cessá r io q u e se esco lh a ficar sin ­ m ed iu nidad e, e q u e ex p erim en ta m esta estrutura d e carácter a lg o
ton izad o apen as co m o s seres b en ig n o s. O s en tes c h eio s d e falsid ad e, fendida, é cam inh ar para a u n idade.
q u e com an d am as a c ç õ e s das p e sso a s sem respeitar a livre vontad e Pela m inha própria ex p eriên cia , in clin o -m e a pensar qu e quando
d ela s, n ão d e v e m ser a co lh id o s. O s seres que bajulam e elo g ia m o iço v o z e s m e en con tro nu m p lan o d e n ív el m ais elev a d o . Para ser
e x cessiv a m en te tam bém n ão são d ig n o s d e aten ção, o que não quer m ais claro, e s s e tipo d e o corrên cias a co n tece num p lan o em qu e eu ,
d izer q u e um esp írito b en ig n o não p o ssa contribuir para ajudar um a a bem dizer, n ão e x isto en q u an to Eu: isto é , d á -se nu m a d im en são da
p e sso a , afirm an d o-lh e o seu Eu ou ap on tan d o-lh e as suas m elh ores ex istên cia em q u e a m inh a co n stitu içã o é feita d e um a en ergia su p e­
q u alid ad es. H á que estar tam bém em guarda contra o s esp íritos que rior e em qu e, por isso , n ão há qualq uer d istin çã o entre o E u e o O utro.
fa zem p rofecias: p o d em levar ao esg o ta m en to de en ergias e é p reciso D urante m uito tem p o, serv i-m e d e um p ên d u lo para esta b elecer c o n ­
correr co m e les. tacto co m e s s e plano. S em p re q u e o fazia tinha a n ítid a sen sa çã o de
A o a p ren d er a lid a r c o m v o z e s o u c o m o u tr o s fe n ó m e n o s que a en ergia era m ais b aixa q u an d o esta v a a orientar algu ém d o q u e
paranorm ais, é e sse n c ia l procurar a ajuda de um terapeuta com p eten te quando procurava orien tação para m im ou para outra p essoa; e q u e,
na m atéria. V arrer e s s e s en tes para d e b a ix o d o tapete não é solu ção; neste ca so e n este plan o m ais alto, era d e lo n g e m ais d ifícil lidar co m
um a v e z despertada e s s a sen sitiv id a d e, n ão é p o ssív e l fazer de con ta a situação. A escu ta interior q u e d ia a d ia p reen ch e a m inh a vid a situa-
qu e n ão ex iste. A cim a d e tudo, essa sen sitiv id a d e é um d om e é vital -se algures entre o plano m ais elev a d o e o plano inferior e é freq u en ­
q u e cad a um recon h eça o s seu s próp rios traços n eg a tiv o s, o s d om in e tem ente m uito concreta; in esp erad am en te, ta lv ez, está relacion ad a co m
tanto quanto p o ssív e l e aprenda a fu n cion ar co m o s seu s traços p o ­ qu estões do qu otid ian o, c o m o a estrada qu e d e v o tom ar para um
sitiv o s, sem se tom ar v ítim a das arm adilhas que essa sen sitivid ad e determ inado sítio , avisar-m e d e q u e o s tem p os estão m aduros para
con tém . Por m u ito q u e isso cu ste, cada um d e nós é resp on sável por fazer determ inada co isa , ou lev ar-m e a com prar qualquer c o isa no
si próprio. P or isso , ao aprender a lidar co m as v o z e s, é req u esito superm ercado. M uitas v e z e s lu to contra isso . P or ex em p lo , p o sso
essen c ia l ser-se um a g en te livre e resp o n sá v el co m total cap acid ad e ouvir d izer que é p reciso com p rar um a c o isa sem grande in teresse
d e esco lh a . para m im - d ig a m o s, um a garrafa d e leite, q u e é c o isa qu e n orm al­
H averá im en sas p e sso a s para q u em as v o z e s representam partes m ente não bebo. A lg u n s d ias m a is tarde, se aparece alg u ém e m e p ed e
fragm entárias da p erson alid ad e (ver C ap ítu lo 10) e para quem o s en tes um co p o de leite, fic o m u ito co n ten te por ter tid o em con ta o q u e a
a qu e m e v en h o referin do pura e sim p lesm en te não ex istem . A própria v o z m e tinha dito, ou fic o c h e io d e pena por a ter ignorado.
E v a P ierrakos ad m ite n ão ter a certeza absoluta de que a sua inter­ P o sso não actuar em co n form id ad e co m as su g estõ es da v o z , tanto
pretação esteja correcta. O G uia, de qu em ela tão próxim a fo i durante m ais que estou c o n v en cid o d e q u e d e v o ser resp on sável p elo s m eu s
23 an os, seria um en te au tón om o ou era, antes, um a parte m ais e le ­ próprios actos.
vada d ela própria? C reio q u e am bas as alternativas têm um fu nd o de A lgu m a s co isa s q u e o iç o sã o p erfeitam en te esp a n to sa s, sobretudo
verd ad e. N o s seu s m elh o res m o m en to s, ou tros m éd iu ns m eu s co n h e­ quando se referem a fa cto s q u e ta lvez n ão p u d esse saber à partida.
cid o s ad m item q u e um as v e z e s se co n fu n d em com o seu G u ia, e n ­ C om vários a m ig o s m eu s a co n te ce exactam en te o m esm o; n ão é um
q u a n to q u e n o u tr a s o c a s iõ e s e x p e r im e n ta m u m a e s p é c ie d e fen ó m en o assim tão raro c o m o algu m as p esso a s p od eriam pensar.
d istan ciam en to. E v a d e sc rev e e ssa situ ação co m o “esq u izo fren ia p o ­ T am b ém é verd ad e q u e qu anto m a is p reocu p ad o se está co m o pro­
sitiv a ”, fen ó m en o q u e fa z parte do crescim en to rum o à integração. c e sso d e p u rificação, m ais s e d e se n v o lv e um a form a ou outra de
C reio q u e o d e stin o d e m u ito s d o s q u e têm te n d ê n c ia para a p ercep ção extra-sen sorial. Para grand e prazer m eu , ten ho a sen sação

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d e v iv er dentro d e u m a p ersp ectiv a m u ito m ais am pla e sei q u e e x is ­ O C am in ho o fe r e c e um a p ersp ectiva m ais am pla das p o ssib ilid a d es da
tem m u itos outros m u n d o s em redor d o m eu . S ei que para algu n s isso vida; em si m esm o , isto p od e ser m u ito e fic a z na red u ção d o s sen ti­
é um fardo m uito p esa d o , m as o en orm e p oten cial que tem n ã o d e v e m entos de in certeza e p od e servir d e tram p olim n u m p r o c esso d e
ser n eglig en cia d o ; ten h o esp eran ça q u e h a v em o s de co n seg u ir criar m ovim en to p o sitiv o para a fren te. E x iste ainda a o p çã o d e participar
um clim a favorável para q u e as p e sso a s p o ssa m aprender a lidar co m no sem in ário ou nas jorn ad as b ien ais d ’0 C am in h o q u e se realizam
essa s exp eriên cias. na H olanda.
A lgu n s terapeutas, sobrecarregados em m aior ou m en or grau p elas E stá sem p re d isp o n ív el a orien tação por p eritos em ajuda, algu ns
suas v o z e s, estão c o n sc ie n te s d e ter um a brecha n o seu ca m p o m a g ­ dos quais têm ex p eriên cia p e sso a l d e escu ta d e v o z e s ou d e qualquer
n ético, através da qual p o d em penetrar livrem en te o s m ais d iv erso s outra form a d e P E S (se b em qu e p o u co s en carem essa ex p eriên cia
en tes. Encerrar e ssa b rech a con stitu i um co n sid erá vel d e sa fio e c o s ­ p essoal co m o o a sp ecto m ais im portante da orien tação q u e d ão). O s
tum a acon tecer em resu ltad o dum a ex p eriên cia de cura, durante a qual peritos em ajuda da organ ização O C am in h o são preparados para
a aura p o d e ser encerrada d e n o v o . A certa altura da terapia p o d e exercer a fu n çã o d e terapeutas e têm sem p re a p o ssib ilid a d e d e recor­
ev id en ciar-se a e x p e riê n cia traum ática qu e p rov o co u a brecha; o e n ­ rer a reu n iões d e con su ltad oria.
cerram ento desta d ar-se-á quando o traum a é adeq uad am ente id en ti­ E sp ero q u e este b reve apanhado da abord agem seg u id a n ’0 C am i­
fica d o e p rocessad o. T en h o o u v id o falar d e um h osp ital su l-am erican o nho p o ssa ser útil a tod os o s ou v id o res d e v o z e s q u e procuram m a­
qu e p o ssu i um a eq u ip a d e terapeutas co m d otes paranorm ais; sem pre neiras d e aprender a lidar co m ela s, ou a todas as p e sso a s qu e g o s ­
qu e n ecessário , e s s e s e sp e cia lista s en tabu lam co n v er sa çõ es co m o tariam d e ajudar outras a atingir e s s e o b jectivo .
en te perturbador e p e d em -lh e q u e d e ix e o p acien te em p az - e é
exactam en te o q u e a co n te ce. N a H oland a e na Inglaterra ex istem
algu n s grup os d e terapia d e sse tipo. O s leitores que d e se jem um a Uma perspectiva kármica
ex celen te ex p lica çã o d o ca m p o en erg ético hum ano e das resp ectiv as
estruturas p sic o ló g ic a s p od erão ler M ão s d e L u z (H ands o fL ig h t), de Han vati Binsbergen
Barbara A nn B rennan, q u e fo i a m inha m estra durante algu m tem p o.
É tam bém fu nd am en tal prestar a m áxim a aten ção ao corp o físic o . A o abordar este assu n to, partirei d o p rin cíp io d e q u e toda a vid a
Para se p od er esta b elecer um a b ase de trabalho só lid a e segu ra co m hum ana é anim ad a por um esp írito q u e assen ta resid ên cia n u m corp o
essa s en ergias, é e sse n c ia l estar b em lig a d o à terra e rem over tod os e n e le habita até à m orte. A o lo n g o d esta o cu p a çã o , o esp írito d ev e
o s b lo q u eio s. Por isso , O C am in h o sub lin ha a n ecessid a d e d e en sin ar cum prir um d eterm in ad o nú m ero d e tarefas, d e acord o co m o d estin o
as p esso a s a fu n cion ar e m harm onia co m o seu corp o, e o m étod o outorgad o p elas leis do K arm a. Q uando o corp o m orre, o esp írito
esco lh id o é o ch am ad o trabalho de en ergia fundam ental. O p rin cíp io regressa ao seu rein o, pronto a reincarnar noutra form a corporal.
essen cia l desta ab ord agem é q u e o corp o físic o , as e m o ç õ e s, o in te­ Os m édiuns, esp e cia lm en te o s qu e são sen sitiv o s para as v o z e s,
lecto e o esp írito sã o parte integrante d e um todo: tudo está rela cio ­ estão h ab ituados a com u n gar ora co m o s esp íritos d o s v iv o s, ora co m
nado e tudo é in teractivo e , por isso , é p reciso trabalhar to d o s o s aq u eles qu e já regressaram ao rein o esp iritu al. N e ste co n tex to , a e s ­
a sp ectos. cuta de v o z e s n ão tem d e ser n ecessariam en te um a in tim id ad e in d e­
Q u e tem O C am in h o a o ferecer aos o u vid ores de v o zes? A n tes de sejável. Para um m édium , é da m aior im portância a cap acid ad e de
m ais nada, através dum a co m p ila çã o das con ferên cias de E va P ierrakos, dialogar co m o s esp írito s, tanto para d e les receb er as m en sa g en s que

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pod erá transm itir aos seu s destin atários, c o m o para tom ar co n sciên cia tivos n o seu rein o para o receber, até q u e isso se v erifiq u e terá de
d os p rob lem as q u e pod erão surgir no eq u ilíb rio entre o espírito e o vaguear em d e sa sso sse g o . N esta s circu n stân cias, é fá cil com p reen d er
corp o. S e este eq u ilíb rio se alterar, o esp írito a ssin ala o fa cto ao seu que e s s e esp írito d e se je com u n icar co m outro qu e ainda hab ite um
co rp o, através de um a dor ou de um a d o en ça - q u e de outro m od o corp o, trocando co m e le m en sa g en s através d o in co n scien te - m en ­
serão in ex p licá v eis. U m m édium co m o eu , se n sitiv o para as v o z e s, sagen s qu e pod erão ser trazidas à c o n sc iê n c ia d ep o is d e vertidas para
p od e ajudar à com p reen sã o d e sses sin a is, fa cilita n d o a sua tradução a lin gu agem hum ana. A o p rin cíp io, por n ão estar fam iliarizad a co m
para a lin g u a g em hum ana, fa zen d o co m q u e a perturbação se p o ssa e sse con tacto e só estar habituada a falar co m p esso a s, a p e sso a
reso lv er n o m ais curto esp a ço de tem p o p o ssív e l. esco lh id a p od e ficar atem orizada. M u itas v e z e s, d iz-se qu e o fen ó m en o
N o ca so d e um d oen te grave, atorm entado p ela dor e p ela ap roxi­ é co m p letam en te im agin ário e p rocu ra-se outro tipo d e ex p lica çõ es
m ação da m orte, o m édium poderá entrar em con tacto c o m o espírito para aqu ilo q u e se o u v e. S ó qu and o a ex p eriên cia aparece repetida-
v iv o d o p acien te. E claro que isso só se pod erá fazer co m o co n sen ­ m en te se c o m eça a p erceb er qu e a im ag in a çã o n ão ex p lica tudo e que,
tim en to e x p r e sso do p a cien te ou da p e sso a resp o n sá v el por e le . na verd ad e, se trata d e um a v o z au d ível; ev id en tem en te, a d ificu ld ad e
O m éd iu m poderá indagar até que pon to e sse esp írito se encontra é q u e essa v o z é in au d ível para to d o s o s d em ais. N a altura d evid a, isto
perto d e saldar as suas d ív id a s kárm icas: o esp írito p o d e revelar o é, lo g o que ten ham co m u n ica d o a su a im portante m en sa g em e en co n ­
p on to ex a cto da situação e , em estreita co o p eração co m o m édium , trado o cam in h o d e regresso ao rein o d o s esp íritos, essa s v o z e s, em
assegu rar q u e o corp o fiq u e liberto da dor. A co rd a -se en tão co m o geral, desap arecem .
esp írito o ferecer-lh e um a esco lta para q u e p o ssa regressar ao seu
rein o. E ste ap oio espiritual é , em tod os o s seu s a sp ecto s, um a das V ozes de satisfação do destino kárm ico
e x p e r iê n c ia s m a is m a ra v ilh o sa s e m ira cu lo sa s q u e ao terap euta
paranorm al é dado ter. A ssim q u e o esp írito co n clu i as tarefas da sua en carnação e satisfaz
C o m o se v ê , nem todas as v o z e s são m alig n a s, n em todas p rov o ­ o K arm a, receb e autorização para vagar o corp o. E n este p reciso
cam sofrim en to, p o d en d o , p elo contrário, prop orcionar grande sa tis­ m o m en to q u e a co n te ce a m orte, seja o p ro cesso d e m orte gradual ou
fação. súb ito. N o p rocesso d e abord agem d a m orte, quando se ap roxim a o
m om en to de partir d e ju n to d os en tes q u erid os, o esp írito en contra-
Vozes asso ciad as a dívidas kárm icas -se ocu p ad o na sa tisfa çã o das d ív id a s k árm icas. A m orte por cau sas
naturais só a co n tece qu and o o esp írito tiver term in ad o as suas tarefas
Q u alq uer um de n ós p od e perder a vid a em qualquer m om en to e e abandonado o corp o. É m u ito surp reen dente q u e em m u itos d e sses
das m aneiras m ais diversas: aciden te, su icíd io , guerra, a ssa ssín io , etc. c a so s o esp írito n ão con tin u e a m an ifestar-se, em b ora haja e x c e p ç õ e s,
c o m o v erem o s. Q u and o a partida d o esp írito é súbita, o p rocesso p od e
E m qu alq uer d os ca so s, o espírito deparar-se-á co m um facto co n su ­
to m a r-se m u ito a flitiv o para o s parentes: nada está preparado, as
m ado: ex cep to nas raras situ a çõ es em q u e o K arm a se encontra já
d e sp ed id a s n ã o s e fizera m e o s p a ren tes e stã o m u ito c o n fu so s.
totalm en te sa tisfeito , a m issã o d o esp írito na p resen te en carnação
O casio n a lm en te, um d o s parentes o u v e , sem a v iso p révio, a v o z in ­
estará ainda por cum prir. N o entanto, por já n ão ter um corp o ond e
co n fu n d ív el d o d efu n to dan d o in stru ções, por ex em p lo , a resp eito de
m orar, o espírito é obrigado a regressar ao rein o espiritu al. M as, co m o d o cu m en -to s im p ortan tes; e ssa v o z p o d e tam b ém tran q u ilizar o s
o esp írito só pod e regressar d ep o is de feito s o s n ecessá rio s prepara­ parentes, d izen d o -lh es q u e se sen te m u ito fe liz no reino d o esp írito.
V ozes p ro voca da s p elo luto errado: n este sen tid o , u m a m ed ica çã o p o d e ter co n seq u ên cia s d e sa s­
trosas quer para o corp o qu er para o seu habitante leg ítim o .
N atu ralm en te, a m orte de um a p e sso a cau sa grande pesar aos seus O resultado da p o sse ssã o é , m uitas v e z e s, n ão m ais, a v ítim a , ser
parentes. N as d ifíc e is fa ses in icia is d o p ro cesso d e luto, são norm ais capaz de reagir e d e fu n cion ar d e acordo co m a sua própria vontad e;
in ten sos sen tim en tos de dor, d e v a z io e de perda. privada da sua d irecçã o n orm al, as su as cord as v o ca is fa lam -n o s n u m a
D o p on to d e vista d o esp írito , a qu estão é totalm en te diferente. v o z estranha. N a m in h a própria ex p eriên cia , há o e x e m p lo d e um
Partindo d o prin cíp io d e q u e o K arm a se encontra sa tisfeito , o esp írito, aluno do 5.° ano d e esco la rid a d e qu e d ava ao p rofessor resp ostas qu e
d ep o is d e ter vagad o o co rp o, aborda o reino espiritual. A sua entrada não tinham qualq uer rela çã o co m a aula em cu rso. U m c a so m ais
n este rein o é acom pan hada p ela esc o lta espiritu al, e p od e d izer-se que grave era o de um a m iú d a qu e v iv ia num subúrbio tranquilo e q u e,
o esp írito ren asceu para o m un do d o s esp íritos, on d e há grande reg o ­ subitam ente, se lan ço u p ela ja n ela aberta, soltan d o um a torrente de
zijo p elo seu regresso. P orém , na terra, o s parentes contin uam a chorar ob scen id ad es e co m eça n d o a insultar os seu s pais n os m esm o s term os.
N este ex em p lo , fo i p reciso ch am ar a p o lícia para levar a m iú d a. F ica
a perda do seu en te querido. T en d o cu m prido o seu árduo d estin o n o
claro, por estes e x e m p lo s, q u e o s eg o -esp írito s são tu rb u len tos e
d ecu rso da sua e x istên cia hum ana, o esp írito torn ou -se m erecedor de
m a licio so s e são to d o s á v id o s, tam b ém , d e se fazer ouvir.
d escan so, m as a in ten sid ad e d o pranto terreno não o perm ite. É co m o
se os parentes do d efu n to ten ta ssem m a n tê-lo v iv o . A ssim , o esp írito
Vozes no leito de m orte
não tem outra alternativa sen ã o com u n icar co m um ou m ais parentes
do fa lecid o e, através du m a v o z a u d ív el, im plorar-lhes que se r esig ­ A s exp eriên cias v iv id a s n o leito d e m orte com b in am , m u itas v e z e s,
nem co m a sua partida e o d e ix e m d escan sar em paz. a escu ta de v o z e s c o m v isõ e s d os esp íritos d e a m ig o s e p aren tes já
fa lecid o s. O m orib u n d o p o d e pron un ciar d istin tam en te n o m e s d e
V ozes de ego-espíritos p esso a s e sorrir p razen teiram en te; a su a fa ce p o d e ganhar v id a su b i­
tam ente e os seu s o lh o s ilu m in a m -se. O s parentes p od em achar in ­
A fa se in icia l d e c r e sc im e n to d e cad a esp írito é a fa se e g o . com p reen sív el o qu e estã o a ver e, freq u en tem en te, d izem un s para os
A fin alid ad e d este p eríod o d e crescim en to é fazer co m qu e o esp írito outros que o m orib u n d o está delirante e alu cin ad o. N o en tan to, é de
aprenda a “cam inhar p e lo seu próprio p é ”, sen d o esta a b ase de toda notar que o d elírio c e s s a e o m orib u n d o v o lta a d irigir-se ao s p resen tes
a ap ren d izagem segu in te. D urante este períod o d e treino, porém , há - o espírito p erm ite q u e o p od er da razão v o lte a operar n o reino
sem pre o p erigo d e o esp írito adquirir qualquer d efeito , co m o o ciú m e. m undano e se cen tre e x clu siv a m e n te na terra e n os seu s hab itan tes.
U m eg o -esp írito é aq u ele q u e não é capaz d e tolerar a ideia de que E ste p rocesso , n o qual o esp írito, alternad am ente, sin to n iza co m o
há outros esp íritos, que hab itam num plano m uito m ais elevad o; e lad o de lá e v iv e n o p lan o terreno, p o d e rep etir-se várias v ezes: a
que fará tudo o q u e estiv er ao seu a lcan ce para desalojar qualquer co n sciên cia tem a c e sso a lam p ejo s do m un do q u e aguarda o esp írito
esp írito superior do corp o hu m ano que esco lh eu habitar - por outras assim que abandonar a sua form a terrena. P en a é q u e o m orib u n d o,
palavras, um eg o -esp írito arrebatará para si um corp o que não lhe a qu em estas v is õ e s sã o co n c ed id a s, seja tantas v e z e s tom ad o por
p erten ce d e direito, não só para se m anifestar, m as tam bém para d em en te ou esteja alu cin a d o por e fe ito da m ed ica çã o . Isto é ainda
neutralizar o seu ocu p an te leg ítim o . É a isto que se ch am a p o ssessã o . m ais triste se tiverm os em lin h a d e con ta o com ité d e recep çã o q u e,
E stas situ a çõ es p od em ser ex trem am en te desagrad áveis e são ex a cer­ aos portões do rein o d o esp írito , aguarda o s en tes qu eridos q u e vão
badas, m uitas v e z e s, p e lo s e fe ito s de um d ia g n ó stico p sic o ló g ic o partindo de ju n to d e n ós.

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C onclusão

C om o v im o s, há várias m aneiras d e ou vir v o z e s, in clu in d o m uitas


outras qu e n ão abordei aqui. H á m uita g en te q u e se sen te grata p elo
ap oio qu e receb e das suas v o z e s e tam bém porque, sem ela s, as suas
vid as seriam m en o s fe liz e s e m en os realizad as. P orém , tod os os
ou vid ores d e v o z e s se deparam co m o m esm o prob lem a de fundo: a
q u estão da prova. M esm o quando um m éd iu m está em co n d iç õ e s de
confirm ar a e x istê n c ia das v o z e s, con tin u a a ser im p o ssív el prová-la
às outras p e sso a s, dada a falta de ev id ên cia ab solu ta d e natureza
cien tífica . P or isso o s ou v id o res se en contram sob grand e p ressão, já
que o s outros ou n ão lh es ligam ou o s encaram co m o lou co s. 8
E sp erem o s q u e o trabalho p ion eiro qu e está a ser lev a d o a cab o
co m o s o u v id o res d e v o z e s ven h a um dia a dar o s seu s frutos, por CRESCER À MARGEM DA PSIQUIATRIA
form a a q u e as p e sso a s recon h eçam que o espírito im ortal, q u e habita
cad a um d e n ó s, é o factor m ais im portante sobre a terra.
“Porque os médicos insistem em recolher dados e mais
dados, em ver e tornar a ver, em ser mais objectivos,
mais científicos, os seus pacientes sentem, muitas vezes,
que eles não os ouvem.”
(Stanley W. Jackson, 1992, American Journal of Psychiatry)

Introdução
Marius Romrne
N e ste C ap ítu lo, c in co in g leses e um a h o la n d esa, tod os co m um a
lo n g a história d e seg u im en to p siq u iátrico, d esc rev em -n o s a sua e x p e ­
riên cia de o u vir v o z e s e d e aprender a lidar co m ela s. O s autores d os
se is contrib utos qu e se seg u em form am um a se le c ç ã o m u ito rep resen ­
tativa d e tod os a q u eles qu e encontraram as su as próprias m aneiras de
lidar co m as v o z e s e co m outras ex p eriên cia s fora d o co m u m . N u m a
ou noutra o ca siã o , tod os foram , ou têm sid o , u ten tes regu lares d os
serv iço s d e P siquiatria e passaram m u ito tem p o internados. P elo m en os
um a v e z , to d o s foram d ia g n o stica d o s c o m o esq u izo frén ico s e , do

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p on to d e v ista p siq u iátrico, ainda h o je seriam con sid erad os d oen tes passando a o u v i-la s regu larm en te em 19 84 , d ep o is d e se terem v eri­
graves. N o entanto, apesar d e contin uarem a ouvir v o z e s e a ter outras ficad o prob lem as raciais n o seu em p reg o . N o s d o is an os seg u in tes fo i
exp eriên cia s e x cep cio n a is, tod os co n seg u iram encontrar m aneiras de internada por duas v e z e s e d e u -se o d iv ó rcio . A senh ora M . L. é
fu n cion ar co m e fic iê n c ia na esfera so cia l. T o d o s o s seis recon h ecem rastafariana*: o q u e para ou tros seria um a relig iã o , para ela con stitu i
q u e con tin u am a ter as suas d ificu ld a d es o ca sio n a is, durante as quais um a form a de estar na vid a.
n ecessita m do ap oio d e outrem . N a verd ad e, o seu ê x ito em levar um a
vid a ind ep en dente é d ev id o , p e lo m en o s em parte, à sorte que tiveram "Suponho que teria 3 anos de idade quando um primo meu, que teria
d e pod er contar co m um com p an h eiro, fam iliares ou a m ig o s, d isp o s­ então os seus 12 anos, abusou sexualmente de mim. O meu primo pare­
tos a aceitar a presen ça das v o z e s e d e outras p ercep çõ es fora do cia-me enorme. Na altura, a minha fam ília vivia nas Pequenas Antilhas,
co m u m . na ilha Dominica. Tinha eu 7 anos quando nos mudámos todos para
T o d o s eles acham q u e isso fo i um factor essen cia l para qu e se Inglaterra, o que haveria de constituir para mim muito mais do que um
simples choque cultural. Nas ruas, as pessoas mais velhas - que eu tinha
tiv esse m id en tificad o co m as suas v o z e s, co m vista a con trolá-las e aprendido a respeitar - viravam-se para mim e diziam-me coisas do
a m an tê-las afastadas de um a interferên cia in d evid a na luta por um género: ‘Sua negra porca’; e ‘Vai para a tua terra, macaca.’ Ficava muito
estatuto so cia l e p ela realização p rofissio n a l. chocada. No princípio, os meus pais não me deixavam ir brincar lá para
In felizm en te para n ós, psiquiatras, isso o b rig o u -o s a distan ciar-se fora mas, quando ganharam mais confiança, começaram a deixar-me ir
da P siquiatria, a qual con tin u a a n ão estar preparada para perm itir aos para a rua. No entanto, eu não tinha ninguém com quem brincar; era
ou vid ores d e v o z e s id en tificar-se co m as v o z e s que o u v em . A atitude uma situação horrível.
ortod oxa perante este fen ó m en o não c o n se g u e observar adequada­ Aos 9 anos voltaram a abusar sexualmente de mim. Vivíamos numa
m en te a ex p eriên cia tal co m o e la é, dan do assim p ou ca ou nenhum a parte de um prédio onde, no andar de cima, vivia um homem com a sua
aten ção à reso lu çã o d o s prob lem as so cia is ou de relação que c o stu ­ família. Ele não só abusou de mim como o vi fazer o mesmo com as
m am estar a sso cia d o s a essa exp eriên cia. próprias irmãs. Ele avisou-me: ‘Livra-te de contar alguma coisa aos teus
pais’, e eu não contei. Logo que ele se fo i embora do prédio, contei tudo
à minha mãe e ela fo i fazer queixa à Polícia. M as a Polícia disse que
Contributos pessoais isso era uma questão que tinha de ser provada em tribunal. E claro que
uma coisa dessas nem sempre é fá cil de provar e, ainda por cima, não
era de excluir que dissessem que eu tinha, de algum modo, provocado
O s autores d os seis contrib utos que se seg u em m ostraram um a o comportamento do senhor.
coragem e um a en ergia extraordinárias na luta p ela recuperação do Quando eu tinha 12 anos, mudámo-nos para um apartamento num
con trole da sua vid a. Para n ós, fo i um prazer im en so reunir e trabalhar prédio muito velho. Era véspera de Todos-os-Santos (no que me toca,
co m e le s e gostaríam os de lhes agradecer, calorosam en te, a c o la b o ­ acho que a véspera de Todos-os-Santos fo i feita para tornar os medos
ração en tu siástica que deram ao p rojecto d este livro. respeitáveis). Nessa noite ouvi umas gargalhadas horríveis que vinham

Oitavo contributo pessoal


M . L. é um a m ulher d e raça negra, d e 40 anos de idade, m ãe de
* A seita rastafari, de origem jamaicana, defende que os negros constituem o
Povo Eleito e que o último imperador da Etiópia, Hailé Selassié, Deus Encarnado,
três filh o s e a v ó, q u e o u v iu v o z e s p ela prim eira v e z ao s 12 anos, conduzirá a raça negra de volta à sua Pátria Africana.

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do jardim. Pareciam risadas de bruxas*. O jardim teria, pelo menos, uns tinham que dizer de mim (isto punha-me completamente fula). Por isso,
15 metros de comprido e as voz.es vinham lá do canto. Rezei a Deus; senti que estava a precisar de um sítio só para mim.
nessa noite, rezei com toda a devoção para que Deus fizesse parar aquele Senti necessidade de deixar o meu marido. Não é que fosse muito mau
barulho. A minha experiência de ouvir vozes na cabeça era Deus a dizer viver com ele, mas eu estava a passar por um grande sofrimento.
que aquele barulho era o meu medo, e que eu devia deixar de ter medo A principal razão por que me fui embora é que andava com demasiado
do escuro. ódio dentro de mim. E a questão era: ou deixava que esse ódio se
Aos 12 anos conheci o meu ex-marido, que foi também o meu primei­ soltasse, e sofreria as consequências, ou tentava mantê-lo sob controle.
ro namorado propriamente dito. Aos 16 anos fiquei grávida por duas Decidi mantê-lo sob controle, de uma forma justa e aceitável - o que
vezes e de ambas as vezes perdi a criança. A minha mãe meteu na cabeça levava o seu tempo."
que eu não ia ter filhos. Disse-me para usar o duche e eu obedeci. Da
segunda vez que abortei perdi muito sangue e fui às escadas chamar pela Melhorar o controle
minha mãe. Desmaiei e bati com a cabeça na soleira da porta. Ao
desmaiar, ainda vi o meu pai subir as escadas a correr e senti que ele ‘‘Regressei ao trabalho mas, passado um ano, estava com o mesmo
me pegava ao colo. Perdi os sentidos. problema: questões raciais. Comecei a pôr-me à defesa. Tive que deixar
Nessa noite o meu espírito abandonou o meu corpo. Para ser franca, de ir ao trabalho, porque no emprego resolveram participar de mim. Este
pensei que tinha morrido. Quando estava a meio caminho entre o céu e facto motivou o meu primeiro colapso nervoso. Entretanto, divorciei-me.
a terra, perguntei a JAH (O Imperador Hailé Selassié) ‘Posso ir ter Quando comecei a ficar adoentada, disse para mim mesma: ‘Desta
Convosco?’ Então, vi uma grande esfera oca e enrolei-me nela como um vez tens que pôr um ponto final nesta história. ’ O tempo urgia. Eu tinha
bebé. Aconcheguei-me naquela cápsula como um pintainho no ovo e quis de responder à carta de denúncia para conseguir voltar ao trabalho. Por
saber se já não teria de regressar mais. Mas JAH disse: ‘Terás de isso, sabia que ia melhorar. Um primo entendido ajudou-me a responder
regressar, porque irás ter gémeos.’ E eu disse: ‘Oh, JAH, se assim é, à carta. Segui o parecer dele. No emprego, a minha resposta foi com­
então regressarei’; e ondeei esvoaçando de regresso ao meu corpo. preendida e aceite. Resolveram organizar um curso de sensibilização
Sonhei do Além e vi dois bebés embrulhados num carrinho. Então decidi racial, dando a cada trabalhador uma semana de licença para frequen­
voltar. Despertei e disse à minha mãe que vinha para ter gémeos. Ela tar o curso. Terminado este, regressei ao trabalho. As coisas mudaram
julgou que eu tinha estado a delirar. e passei a sentir-me mais aceite pelas colegas.
Os gémeos nasceram quando eu tinha 18 anos. Quando engravidei, Queria ser independente, porque não estava disposta a que os meus
ainda não era casada. Mas queria os bebés e não dei ouvidos à minha filhos me vissem novamente em crise. Eles já tinham sofrido coisa que
mãe. Casei aos 20 anos e quis ter outro filho. Nessa altura, eu e o meu chegasse. Mas havia ainda outra razão. Embora a minha mãe estivesse
marido discutíamos um bocado, mas eu queria ter outro filho. Pedi a farta de o saber, eu tinha que lhe provar que não era tão doente como
Deus o meu filho Sam e supliquei-Lhe que fizesse com que o meu marido toda a gente pensava. Queria ser independente. Nunca tinha vivido
estivesse de acordo. sozinha. A cama era toda a mobília que eu tinha.
Quando Sam fez 3 anos, comecei a ter problemas no emprego. Sou Fui internada pela segunda vez. A minha mãe mandou chamar uma
auxiliar de acção educativa, num jardim de infância. Uma das educado­ ambulância. Ficou muito aborrecida porque não a deixei ir comigo. Lia-
ras andava a tentar provar que eu era agressiva e o resto do pessoal -Ihe os pensamentos e achei que ela queria ir comigo para mandar dar
dizia ámen com ela. Eu tinha a impressão de estar a falar para as uma injecção que me matasse.
paredes, mas elas diziam que a culpa disso era toda minha. Se abria a Desta vez estive mais tempo doente que da primeira. Estive bastante
boca, diziam que eu era demasiado emotiva. Se não falava, também mal, de Janeiro a Novembro. Parti as janelas todas e por isso mantive­
ram-me isolada durante 28 dias. Ouvia vozes por todo o lado. Até ouvia
* “ H a llo w e e n ” , lite ra lm e n te “ V é sp e ra d e T o d o s-o s-S a n to s ” , é ta m b é m o d ia d as
os meus pensamentos fora da minha cabeça. Medicaram-me, mas nin­
b ru x a s. guém me deu qualquer ajuda psicológica. Um psiquiatra falou comigo,

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mas eu não confiava nele. No entanto, a medicação reduziu o meu nível m ed icação regular. D e sd e o n a scim en to d o filh o , sen te-se co m m ais
emocional e eu já não sentia medo. Assim, já era capaz de separar as controle sobre a vid a.
coisas, já não me irritava. O pior é que agora ouvia constantemente um
ruído de vidros partidos. “A minha experiência de ouvir vozes começou em 1980, quando tinha
Fui à Etiópia, em pensamento, contar tudo ao Imperador. Mas Ele 25 anos. Nessa altura andava a fazer experiências de telepatia. Acredi­
disse: ‘Já sei. ’ Ofereceu-me um livro de Educação Infantil. Quando olhei tava que podia, com o meu pensamento, levar as pessoas a fazer deter­
para o livro vi que tinha capas pretas, mas as páginas estavam em minadas coisas. Pouco depois, comecei a ouvir vozes. Pensava que os
branco. E eu disse ao Imperador: ‘O livro não tem nada escrito.’ E Ele meus vizinhos falavam de mim; estava no quarto e ouvia vozes através
respondeu: ‘Tu é que o vais escrever. Escreve a tua própria história.’ das paredes: tinha mesmo a sensação de estar a ouvir alguém. Não
Tudo isto aconteceu há já algum tempo. Continuo a ouvir vozes. pensava estar a ouvir vozes dentro da minha cabeça; pensava que eram
Continuo a ouvir a voz de Deus. Não é uma voz falada, é uma intuição. vozes reais. Não sabia nada de problemas de saúde mental, só imaginava
A í minhas vozes dão-me instruções úteis, do género: ‘Tem cuidado ao que as pessoas não gostavam de mim e andavam a dizer coisas a meu
atravessar a estrada.’ A minha voz disse: ‘N ão, tu és capaz de ser inde­ respeito nas minhas costas.
pendente.’ A minha doença é ouvir vozes fora da minha cabeça. Normal­ Na altura, andava muito deprimida, paranóide; não podia concen­
mente, oiço os meus pensamentos dentro da cabeça, mas quando estou trar-me no trabalho porque sentia que toda a gente estava contra mim.
doente oiço-os fora da minha cabeça. Continuo a tomar a medicação: Pensava que isso tinha que ver com a minha relação, que não estava a
tomo um comprimido de duas em duas ou de três em três semanas. correr bem. Eu tinha vivido com um estudante, em Cambridge, durante
Das duas vezes que estive doente, o problema era viver num país que 4 anos. Esse homem dava cabo de mim. Fazia comentários sobre a minha
não aceita as pessoas de raça negra. Vocês fazem ideia que uma grande maneira de vestir e estava sempre a criticar-me. Eu imaginava que não
parte da História da Raça Negra tem sido sistematicamente silenciada? iria encontrar mais ninguém na vida se as coisas não corressem bem
Os Mouros eram africanos. Os Egípcios eram africanos. O branco só entre nós. Ficaria sozinha e entregue a mim mesma para sempre. Ima­
sabe falar de servidão. É assim que eles falam de nós. O problema é que ginava-me com 80 anos, sozinha e sem filhos. Por isso, decidi aguentar
não podia ser eu mesma, vivendo num país que não aceita as pessoas as coisas com ele.
de raça negra. Através das vozes, encontrei-me, descobri a minha iden­ Quando fui ao médico da empresa, ele mandou-me ao clínico geral,
tidade, que tem tudo a ver com a minha história racial e com o meu que, por sua vez, me enviou ao psiquiatra. Não lhe disse que ouvia vozes,
próprio passado. A memória dos abusos sexuais de que fui vítima man­ porque não me apetecia falar do que as vozes andavam a dizer de mim
tém-se, mas aprendi a distanciar-me dela. Sei agora que numa situação —não fosse dar-se o caso de serem mesmo vozes de pessoas. Por isso,
humilhante me excluo dela, embora a memória da situação permaneça. só lhe disse que andava deprimida e me fartava de chorar, o que era
Como é que sobrevivi à minha guerra? Sem dúvida, porque confiei verdade.
em JAHOVIAH! Todos os meus pensamentos estão dentro da minha A conselho de pessoas amigas, fui passar o fim-de-semana a casa dos
cabeça.” meus pais, em Bolton. Tive uma espécie de colapso físico, que atribuí às
drageias de dotiepina que o psiquiatra me receitou. Perdi completamente
Nono contributo pessoal o controle das minhas emoções. Pensei que ia morrer e fui assaltada por
um sentimento de culpa esmagador: pensava que tinha matado alguém,
embora não soubesse quem. Os meus pais chamaram um médico. Fui
A . G . é um a m ulher de 3 6 anos co m um filh o d e 4. C o m eço u a internada na terça-feira. Ninguém me disse para onde me iam levar e
ou v ir v o z e s quando a sua relação a fectiv a d e ix o u de correr co m o nunca pensei que me levassem para um hospital psiquiátrico. Odiei a
sonhara. E ste v e internada por cin co v e z e s e está agora a fazer um a minha estadia naquele velho edifício: parecia-me uma espécie de campo

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de treino militar. Pensei que, para o Governo me ter mandado para À parte algumas semanas de internamento, continuei a sentir-me bem
aquele sítio, é porque, se calhar, eu tinha feito algo de mal. Tive o até aos 31 anos. Nessa altura, encontrei um companheiro por quem me
pressentimento de que estava envolvida numa conspiração qualquer e senti verdadeiramente atraída. Vamos chamar-lhe Tom. Depois de uma
que me tinham destinado um protagonismo específico: uma espécie de amizade de alguns meses, em que o único contacto físico que tínhamos
missão. era através de beijos nas bochechas, apaixonei-me por ele. Escrevi-lhe
Este primeiro internamento foi nubloso. Não me lembro de muitas uma série de cartas e, quando me apercebi de que ele não as lia, saí de
coisas, só sei que estava sempre a procurar escapar-me, a tentar fugir. Bolton e, na sequência de um namorico fugaz no Sul da Inglaterra,
Ao fim de três semanas, deram-me alta e mandaram-me para um Centro engravidei. Durante algum tempo fui viver para casa de um irmão meu,
de Dia. Eu ainda não fazia a mais pequena ideia do que fossem doenças no Sul. Ouvia a voz do Tom na minha cabeça e imaginava que tinha sido
mentais, não imaginava que ouvir vozes fosse um sintoma de esquizofrenia. ele que me engravidou.
Estava a tomar imensa medicação e continuava convencida de que me A voz de Tom misturava-se com outras que diziam coisas terríveis
estavam a tratar de uma depressão. dele e das outras pessoas. Como não conseguia livrar-me dessas vozes,
Ao fim de 7 meses de frequentar o Centro de Dia, arranjei emprego tomei uma série de comprimidos para me matar. Voltei a ser internada
num campo de férias, em França. Contudo, voltei a ouvir falar de mim, por mais algumas semanas, mas, como estava grávida, davam-me uma
nomeadamente duas pessoas minhas conhecidas, que diziam: ‘Faz o que medicação numa dose muito reduzida.
tens a fazer’. Julguei que elas me queriam destruir para salvar a Ingla­ Ao longo da minha gravidez, sempre desejei encontrar-me com o
terra de um ataque nuclear - pelo que deitei fogo a mim própria. A Tom. Julgava estar em comunicação telepática com ele. Estava constan­
seguir a esta tentativa de suicídio, regressei à Inglaterra para fazer um temente a ouvir vozes. Parecia que ele estava sempre a dizer-me, na
enxerto de pele e passar mais 3 meses internada num hospital psiquiá­ minha cabeça, tudo o que se passava com ele. As coisas que ele me dizia
trico. faziam-me gritar para lhe responder, mesmo que alguém estivesse comigo
Enquanto permaneci no hospital, tiveram-me debaixo duma grande no quarto."
dose de clorpromazina e eu passava a maior parte do tempo em sonhos
fantásticos, que depois contava à psiquiatra. Ela dominava mal o inglês, Melhorar o controle
pelo que, certamente, se devia interrogar sobre que diabo se estaria a
passar comigo. Nessa mesma altura, cheguei a ter alucinações visuais, “Depois de o meu filho nascer, a minha vida melhorou. Se queria
coisa que nunca me tinha acontecido fora do hospital. Devem-me ter tomar conta do meu bebé como devia ser, tinha que me reunificar.
alterado a medicação para flupentixol, e então comecei a sair do estado Embora ainda ouvisse vozes, comecei a dar-lhes menos atenção. Pensei
psicótico em que a clorpromazina me tinha posto. que, se não fosse capaz de cuidar do meu bebé, poderiam tirar-mo e,
Após a alta, voltei a frequentar o Centro de Dia. Mas era-me muito quem sabe, levá-lo para adopção, e eu perdê-lo-ia para sempre.
difícil sair da cama, sobretudo nos dias em que não tinha de ir ao Centro. Após uma permanência voluntária de 4 meses no hospital (voluntária
Frequentei um curso da Escola Superior Técnica de Sulford, após o que no sentido em que não fui obrigada a ir; mas, na realidade, não-volun-
passei a trabalhar numa firma de artigos desportivos, durante 1 ano. tária, porque o meu filho carecia de cuidado, e eu não voltaria a vê-lo
Voltei a ter uma vida normal, mas passei a ter que me haver com o se não tivesse optado por ir para o hospital), fomos os dois para casa,
estigma de ser uma ex-internada da Psiquiatria. Em Psiquiatria, metade em 17 de Outubro de 1988. Ele continua ao pé de mim. A medicação que
do problema de estar doente é lidar com esse estigma: pouco importa estou afazer é apenas uma ampola de 20 mg de decanoato de flupentixol,
como a questão da doença se resolve. Apesar de doente, tentei manter de 4 em 4 semanas.
o contacto com os meus amigos e a maior parte deles lidou muito bem Oiço vozes através dos meus ouvidos, mas as vozes estão dentro da
com a situação. minha cabeça e não fora. Agora preciso de fazer algum esforço para as

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ouvir. Se estiver a fa ze r qualquer coisa, como, por exemplo, ver televi­ pacidade de lidar com o facto de ouvir vozes. Só espero que os psiquia­
são, não as oiço. Num certo sentido, as vozes são uma companhia. Acho tras aprendam a ser mais comedidos na prescrição de medicamentos e
que costumava sintonizá-las, como se sintoniza uma emissora no rádio. tentem reduzi-los ao mínimo, mesmo quando o paciente está internado."
Creio que elas me ajudam um bocado a pensar nas coisas. É como se
fossem pessoas na cabeça a explicar-nos as coisas. M uitas vezes elas são
verdadeiras e dão realmente ajuda e, às vezes, espero por esse conforto Décimo contributo pessoal
antes de desligar e ir para a cama. Normalmente, as vozes fazem mais
comentários do que críticas. M esmo quando dizem coisas do género ‘Faz A . B . é um h o m em d e 3 4 an os, solteiro , c o m u m filh o . T rabalha
o que tens a fazer’, a escolha fina l é minha. Nunca me dizem coisas do por con ta própria, fa zen d o e v en d en d o jó ia s e en sin an d o f ai chi* em
tipo ‘Vai ver se o teu filho está bem .’ diversas a g rem iações e cen tros d e ed u ca çã o d e adu ltos.
A explicação mais plausível que encontrei para as vozes é a telepatia.
E a única explicação com que me entendo. Muito mais que a da loucura. “Terminado o liceu, não me apetecia ir trabalhar, de maneira que fu i
Telepatia com seres humanos vivos ou mortos. Às vezes, oiço a voz da para a universidade estudar Geografia Social. Quando acabei o curso,
minha falecida avó: essa voz tem o mesmo toque de humor que ela tinha não havia nada que verdadeiramente eu quisesse fazer. Então comecei
quando era viva. a fazer trabalhos incertos, do género vender tapetes. Quando passei a
Às vezes, as vozes dizem o que vai acontecer; mas nem sempre acer­ trabalhar 5 dias por semana, pensei que talvez pudesse arranjar um
tam. Outro dia, tive uma experiência estranha: ouvi uma amiga minha emprego decente. E fo i assim que comecei a trabalhar num jornal, em
e o marido que falavam de ter um bebé; e efectivamente, dois dias depois, Oxford.
a minha amiga abordou-me para me dizer que ia ter um bebé. Decidi que não gostava da vida que estava a levar e fu i passear pelo
Por vezes, as vozes dizem coisas aborrecidas a meu respeito, criti­ estrangeiro. Quando voltei, fu i ter com o meu irmão a M anchester e
cam-me de uma modo desagradável e fazem -m e sentir que as pessoas instalei-me em casa dele. Arranjei um emprego do género trabalhador
andam a dizer coisas de mim nas minhas costas - coisas que nem sequer de saúde. Na altura, eu encarava as coisas muito negativamente e an­
são verdade, a respeito da minha sexualidade e da minha moral. dava muito confuso sobre o rumo a dar à minha vida. Não me via como
Ultimamente tenho andado a ouvir a voz do Tom, na minha cabeça, um homem de sucesso, andava um bocado ao deus-dará.
dizendo, entre outras coisas, que vai voltar para mim, que me vai escre­
ver ou telefonar - tudo coisas que ele não faz. Creio que a origem do Passados nove meses, comecei a ouvir vozes. Lembro-me, quando
meu problema ainda não fo i verdadeiramente compreendida, nomeada­ esta experiência excepcional aconteceu pela primeira vez, que estava
mente o meu am or pelo Tom e a rejeição que ele me faz. Certo dia, num quarto e me senti invadido por uma estranha energia. Entrei em
quando eu confessava o que sentia por ele, a minha assistente social ligação com uma força relacionada com a morte, uma força que tinha
disse imediatamente: ‘N ão estás doente outra vez, pois n ã o ...? ’ a ver com entes. Compreendi subitamente uma nova dimensão global das
Ainda hoje creio que uma situação psiquiátrica coloca ao paciente coisas. Coisas que eu tinha lido separadamente umas das outras passa­
um problema com o qual não é capaz de lidar de uma maneira normal, vam a estar agora, de repente, relacionadas com esta nova experiência.
problema esse que se manifesta sob a form a de comportamento anormal. Sentia-me muito bem e muito feliz com a experiência que estava a ter.
Penso que os psiquiatras deveriam tentar fazer algo mais pela identifi­ Da primeira vez que fiquei psicótico, isolaram-me. Disseram à minha
cação desses problemas e ajudar os pacientes a resolvê-los por si. Então mãe que o meu diagnóstico era esquizofrenia paranóide. Tinha eu 24
sim, acredito que a cura para os problemas de saúde mental seria mais
simples.
À medida que o tempo passa e a dose da medicação vai sendo pro­ * Tai chi - Sistema chinês de exercícios físicos e de autodefesa, caracterizados
gressivamente reduzida, vou-me tornando mais confiante na minha ca- pela prática de movimentos rítmicos lentos.

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anos. Poucos dias depois, comecei a ouvir vozes. Para mim, ouvir vozes intermédio, o que pode ser um pouco preocupante, sobretudo quando
era apenas uma parte do conjunto de fenóm enos que vivi durante aquilo dizem coisas que metem medo. Mais raramente, a pressão que fazem
a que a Psiquiatria chama episódios psicóticos. Esses fenóm enos têm-me para que as deixe falar por intermédio de mim é tão forte que o melhor
acontecido nos últimos dez anos. que posso fazer é deixá-las falar, e tapar a boca para esconder das
Entre eles incluo ouvir vozes (que sinto como pensamentos que pa­ pessoas presentes o movimento dos lábios. Nalguns casos fo i a única
recem projectados na minha mente a partir de uma fonte exterior), de­ maneira de as suportar. Por ocasião da Guerra do Golfo, tive realmente
lírio e ideias paranóides de todo o tipo, alucinações visuais, estados de uma experiência muito estranha, deste tipo, quando uma voz, num tom
grande clareza de consciência, depressão, etc. E embora essas experiên­ insolente, teimava em dizer que tinha chegado a hora de fazer sangue
cias não se excluam mutuamente, fu i forçado a lidar com cada uma delas e que estavam todos a pedi-lo. Se alguém a ouvisse, ficava chocado.
de per si.” Uma outra form a de comunicar vem sendo fazer perguntas que re­
cebem resposta simlnão através de acenos da minha cabeça comandados
por elas. Isto acaba por se tornar bastante desagradável, porque parece
Ouvir vozes im plicar uma certa possessão. Algum as destas experiências são
involuntárias, embora eu tenha bastante interesse em saber o que as
“Essas vozes interiores pareciam vir de fontes do exterior. Muitas vozes têm para dizer - e, por isso, ando a investigar o fenómeno.
vezes, a fonte era desconhecida, mas eu julgava que as vozes vinham (ou
eram elas que me diziam que vinham) duma fonte identificada.
Essas fontes incluíam uma grande variedade de pessoas, vivas e Alucinações
mortas (um aborígene da Austrália, um índio americano, pessoas de
várias confissões religiosas, figuras ocultas, animais, plantas, extrater­ “As alucinações podem ser boas e más: o mundo pode transformar-
restres, antepassados, personagens mitológicas, Belzebu, espíritos do s e num céu ou num inferno, num abrir e fechar de olhos. O meu tipo
céu e do inferno, outros pacientes do hospital e pessoas que eu encon­ de experiência mais frequente envolve pessoas que ganham, subitamente,
trava casualmente). A maioria dessas vozes era benigna. Às vezes, dava- características demoníacas. É mais frequente quando há muita gente à
s e a comunicação e eu podia conversar com elas; outras vezes, não. minha volta: por exemplo, no centro de uma cidade. Esse tipo de expe­
Uma voz, de origem desconhecida, anda quase sempre à minha volta, riências pode adquirir aspectos bastante estranhos e assustadores, em ­
mas eu sei que está do meu lado. Acompanha os meus pensamentos com bora sejam tão frequentes que a gente acaba por se habituar a elas.
comentários e conselhos como ‘Sim’, ‘Não’, ‘Talvez’, ‘Bem’, ‘Mal’, Como sei que mais tarde ou mais cedo têm um fim , acabo por ignorá-
‘Muito bem’, ‘Tem cuidado’, ‘Está certo’, ‘Está errado’, etc. Não ligo -las sem dificuldade. O lado agradável da experiência é proporcionado
muito aos conselhos que as vozes me dão, e muitas vezes até faço o por certos momentos cheios de vida, que desembocam num passeio pelo
contrário do que elas me dizem, sem consequências de maior. Àv vezes, parque ou, aqui e além, numa viagem pelo paraíso.
comunico com essa voz, embora isso possa ser um bocado difícil e até Os dois tipos de alucinações que referi são estados de percepção
frustrante. É frequente a voz dizer-me ‘Não te preocupes. Vai dar tudo alterados. Surgem espontaneamente e com frequência durante os episó­
certo’ - o que me dá algum consolo, embora isso seja dito em situações dios psicóticos. Nessas alturas, oiço e vejo coisas que não existem, mas
tais que tenho que ficar na dúvida acerca da sinceridade do que ela me que, naquele momento, são reais para mim. Agora sei que não são reais.
diz. Por exemplo, um dia encontrei um disco no meu quarto. A capa do disco
Uma vez por outra, as vozes são negras e diabólicas e a experiên­ tinha a fotografia de alguns amigos meus que formavam um grupo. Eu
cia torna-se desagradável, especialmente quando sinto a presença do tinha ideia de que eles tinham gravado um álbum. Pus o disco a tocar.
dono da voz. Outra coisa é quando deixo que as vozes falem por meu Noutra altura encontrei uma carta mas, quando a fu i verificar, afinal não

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era carta nenhuma. Agora confiro tudo e, sobretudo, tenho o cuidado de de reacção a forças invisíveis. Sinto-me tão saudável e tão cheio de
não desconcertar as pessoas nem desconfiar delas. Então o que faço é energia que me acho capaz de feitos incríveis de força e de agilidade.
dizer, por exemplo: ‘Sonhei que vi gente à porta’. E observo a reacção: E não devo andar muito longe da verdade, tanto mais que faço coisas
se a pessoa com quem fa lei pensa que é um sonho engraçado, não falo que em condições normais não sou capaz de fazer. Por exemplo, sobre­
mais nisso; se essa pessoa diz que de facto está gente à porta, então sei vivo a dormir muito pouco. Contudo, o fenómeno físico mais incrível é
que é mesmo real. ” a capacidade de reagir a forças exteriores invisíveis. E claro que se trata
de forças interiores, mas não é isso que parece quando estou nesses
estados.
Delírios e ideias paranóides Investiguei este fenóm eno até onde pude, o que me levou a factos
bizarros e misteriosos. Descobri que, sempre que prescindo da autoria
“Há imensos tipos. As vezes penso que nunca mais vou cair noutra. dos meus movimentos, fico transformado num autómato. Chamo a isso
Já passei por tanta coisa que me parece pouco provável existir outro tipo movida*. Esta m ovida faz-m e executar uma dança estranha parecida
qualquer que eu nunca tenha experimentado. Porém, o princípio da com o T a i chi - que só mais tarde viria a aprender. Noutras ocasiões,
criatividade não tem limites e um novo delírio ou ideia paranóide, cui­ era levado a adoptar posições semelhantes às do yoga. Um padrão de
dadosamente arquitectados para parecerem plausíveis, vêm bater de novo movimentos que se costuma repetir, e se tornou uma espécie de ritual,
à minha porta. consiste em fazer-m e dobrar até tocar os dedos dos pés e, inversamente,
Quando se está num estado delirante, delírio e realidade são a mesma dobrar-me para trás arqueando as costas. Em seguida, os meus braços
coisa. Leva-se a coisa a sério, mesmo que o nosso mundo se torne abrem-se para fora e eu giro para um lado e para o outro, de maneira
absurdo à reflexão. O delírio e as ideias delirantes podem ser bons, no a que as-m ãos descrevam um círculo completo. Uma vez nesta posição,
sentido em que o mundo se torna mágico, estimulante, e onde tudo acaba conjuro vários espíritos animais - já não me lembro como é que esta
em bem; também podem ser maus, no sentido em que o mundo se torna ideia me surgiu. Os espíritos desses animais entrariam em mim e eu
um lugar sombrio e perigoso. Alguns delírios e ideias delirantes são passaria a movimentar-me como se compartilhasse algumas das suas
realmente uma coisa boa, que me inspira. Gosto de ser criativo e, por características.
isso, sempre que estou num estado desses ponho-me a pintar. As mais interessantes experiências de m ovida são, de longe, as que
O mais grave de tudo é ser espiado, perseguido, acusado e am ea­ me fazem caminhar. A mais notável durou uma noite inteira e traduziu-
çado por todo o género de coisas terríveis que me acontecem. Esses -se numa jornada de cerca de 25 km. Tudo começou quando, estando
delírios e ideias delirantes põem-me em pânico. Alguns deles contêm um sozinho no quarto, resolvi tentar praticar um pouco de m ovida. Depressa
factor de forte plausibilidade e são muito difíceis de afastar. Sobrevivem dei por mim a andar em círculo no quarto; depois comecei a girar em
sob a form a de teias subconscientes, muitas vezes bem complicadas. torno de mim próprio, cada vez mais rápido, como se fosse um dervixe
Sempre que surge o elemento de prova que parece completar o puzzle, rodopiante **. De facto, parecia-me estar a girar a uma velocidade
o delírio surge subitamente na sua máxima pujança e subjuga-me por
completo durante algum tem po.”
* Following, na versão inglesa. No sentido em que é utilizado no texto, trata-
Fenómenos físicos -se de um neologismo, que entendemos substituir por um neologismo português o
mais equivalente possível.
** Dervixe: membro de uma das várias ordens religiosas esotéricas muçulmanas
“Quando fico psicótico, experimento, do ponto de vista físico, um sufis, que fazem voto de pobreza e austeridade. Algumas dessas ordens praticam
forte sentimento de bem estar e tenho uma inacreditável sensação de rituais extáticos, entre eles o canto e a dança. Por isso, se designam também, con­
imensa energia interior, que possui características de realidade e forme o caso, por dervixes dançarinos, dervixes rodopiantes e dervixes gritadores.

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louca. Subitamente, fiquei parado, quase imóvel, enquanto o quarto passou pessoas ao barulho, o que habitualmente cria uma situação desagradá­
a girar à minha volta. Nesse momento, senti um impulso para sair e dar vel e um comportamento bem esquisito. Ao arrastar as pessoas para os
um passeio. Estava com curiosidade de saber onde isto ia parar, e lem­ meus delírios, posso incomodá-las a sério. E também posso incomodar
bro-me de ter imaginado os possíveis destinos do passeio. Umas horas as pessoas na medida em que elas me atacam.
depois, convencido, pelo tempo que tinha passado, de que estava perto Ao longo de todos estes anos, cheguei à conclusão de que esses
de Londres, saí da estrada e cheguei casualmente a uma povoação. A fenómenos têm um padrão e que esse padrão é do tipo montes e vales.
aldeia tinha um pequeno relvado triangular com uma cerca de espinhos. Na fase inicial, passei muito tempo no vale. Digamos, tinha experiências
Dei comigo a andar em volta desta cerca. A certa altura, virei-me para dessas cerca de I hora por dia. Sobravam 23 horas para mim. Depois
ela e arqueei-me para trás; pensei que estava prestes a estabelecer passaram a ser 2 horas por dia, 3 horas por dia. A certa altura, eu já
contacto com qualquer coisa e que esse, se calhar, era o tal destino do estava no cimo do monte e, então, já só tinha 1 hora por dia livre dessas
passeio. Então, súbita e rapidamente, fui sacudido da posição em que experiências. Mas como, ainda assim, tinha 1 hora para reflectir, con­
estava e a minha cabeça subia e descia na minha frente. Parei abrup­ seguia manter uma certa distância. Nunca tomei medicação nenhuma.
tamente e dei com os meus lábios beijando um dos espinhos da cerca. Quando atinjo o cume do monte, não tenho tempo para mim, mas ando
Isso alarmou-me um bocado e deixei de praticar movida.” mais activado e dedico-me a explorar tudo.
O que de mais importante me aconteceu nestes anos todos foi ter
conseguido escapar aos cuidados psiquiátricos. Não quero medicação.
Medo e vulnerabilidade Assim, quando estou psicótico, evito as pessoas do meu círculo familiar.
Não quero ter as minhas experiências à frente dos meus pais, porque
“As minhas experiências surgem espontaneamente e começam por me pode acontecer que eles me fechem em casa. Os meus amigos ficam
dominar. Podem acompanhar-se de estados de humor que vão do êxtase preocupados quando me vêem em crise, mas agora já me conhecem.
a um medo enorme. O pior ainda é o medo e a vulnerabilidade. A Quando se está com alucinações não quer dizer que não se possa sair
vulnerabilidade é mais difícil porque, durante a minha experiência, vivo de casa para comprar roupa e, mesmo que estejamos delirantes, conti­
num mundo mais abstracto. Para as minhas psicoses a paixão não existe, nuamos a precisar de comer. De certo modo, a vida quotidiana continua.
mas elas são influenciadas pelo que se passa no mundo real. Por vezes, Agora, quando oiço vozes já sou, em certa medida, capaz de as pôr
são tão intensas que chego a esquecer-me das circunstâncias concretas. um pouco de lado, como se fossem uma segunda natureza. Se é certo que
Quando passo por elas, faço por não me ralar. Ai minhas psicoses são há ocasiões em que a voz ainda me domina por completo, também é certo
influenciadas pelo mundo que me rodeia e torno-me mais vulnerável à que chega um ponto em que ela perde força. E há também sempre um
influência das outras pessoas.” ponto onde ainda consigo manter a capacidade de decisão. Como da
última vez que decidi que não queria fumar marijuana, porque o delírio
estivera demasiado forte, demasiado real, no dia anterior. E, se me
Melhorar o controle pusesse a fumar marijuana, tinha receio de mergulhar no delírio e não
sair mais dele. Aprendi a ser muito cuidadoso no que digo. A princípio,
“A princípio, não fazia ideia nenhuma de como lidar com as minhas quando tinha contados espirituais, sentia necessidade de falar deles.
experiências. No entanto, com a repetição da experiência, fui aprenden­ Agora tento comunicar mais por anedotas e pequenas histórias e acho
do, excepto em crise, a lidar com a maior parte desses fenómenos. Para que as pessoas se interessam mais e se assustam menos.
mim, como já tive a ocasião de dizer, ouvir vozes é apenas uma parte Às vezes não é possível evitar o envolvimento dos outros. Muitas
da vasta gama de fenómenos que tenho vivido nos últimos 10 anos. Por vezes eles querem ser envolvidos. Chegam e interessam-se. E um proble­
exemplo, pretender intervir sobre as vozes pode levar-nos a meter outras ma quando se tem um delírio e se quer contá-lo a alguém, porque se

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deseja que alguém diga ‘Isso não é bem assim ’. Então aprendi a dizer me vêem. Rejeito todos os rótulos. Quando encontro os que gostariam de
que estou a ter uma ideia maluca e, logo a seguir, conto o que se passa. me classificar, o mais provável é que veja neles uma gente muito
Vejo qual é a reacção das pessoas. As vezes sinto que, se alguém me pequenina, de mente raquítica, que não posso levar muito a sério. A
dissesse ‘Sim, é verdade’, ficava chocado, porque estava com vontade minha situação é bastante estável e creio que hei-de ser capaz de lidar
que fosse imaginação minha. com o próximo episódio ou momento de crise que venha a acontecer.”
Muitas vezes podem os alimentar a nossa própria paranoia, porque se
dissermos a alguém ‘Passa-se isto assim , assim ’, esse alguém pensa ‘Por
que é que ele pensa aquilo?’ Então vai contar a outra pessoa o que acha Décimo primeiro contributo pessoal
daquilo que nós dissemos e vai alterar um bocado. E, quando ouvimos
de uma terceira pessoa essa história já toda modificada, ficam os adm i­ L. P. é um a m u lh er d e 2 6 an os, cu jo d ia g n ó stico m éd ico in clu ía
rados como é que isso aconteceu. É difícil explicar. As pessoas exage­ a esq u izofren ia. A p ó s um p eríod o d e 5 an os em q u e ora esta v a fora
ram, a história começa a engrossar e foge ao nosso controle. ora dentro d o h osp ital p siq u iátrico, d esem p en h a agora as fu n ç õ e s de
Outra barreira a que nos possam os entender com essas experiências presid en te d ’A V o z d o s S o b rev iv en tes (Survivors Speak O ut).
e manter os pés bem assentes no chão é a natureza aditiva das experiên­
cias superlativas. É uma espécie de droga, é algo que as pessoas dariam “Na minha vida sempre tive uma intensa actividade espiritual, a que
dinheiro para experimentar: delírios de grandeza, o ego agarrado a um sempre dei muita importância. Tenho necessidade de contacto espiritual.
exagerado sentido do self. Os delírios negativos não são coisa que se Lembro-me de, por volta dos meus 10 anos, ter tido um ano de sonhos
deseje a ninguém mas, na verdade, não há maneira de impedir que coisas sucessivos, como se fosse uma telenovela. Todas as noites a sintonizava.
dessas aconteçam. Talvez se possa fazer alguma coisa por preveni-las Nesses sonhos, eu era indestrutível e o personagem que me perseguia
ou, pelo menos, dificultá-las. Estar acordado até muito tarde, beber e também. Cada um de nós esforçava-se por aterrorizar mais o outro. Eu
fum ar demasiado, abusar da cerveja e do café — essas coisas levam à tomava sempre o mesmo tipo de form as físicas: um crucifixo ou uma
exaustão e provocam mais confusão. Como o alcoólico, talvez bebamos caixa metálica.
simultaneamente o bem e o m al que estas coisas fazem . Há muitas des­ Por essa mesma altura, comecei a sentir uma presença espiritual do
cobertas valiosas que surgem durante estes estados. Os exploradores lado de fora da porta do meu quarto. Felizmente, havia qualquer coisa
involuntários do subconsciente (ou como lhe queiram chamar) estão em à porta que impedia essa presença de passar e entrar. Mas eu sabia que
óptima posição para trazer qualquer coisa à superfície. Algumas dessas se esse espírito pudesse entrar ia ser nocivo para mim. Sentia que ele
explorações conduzem aos confins da morte. Outras podem levar à fazia pressão sobre a porta e às vezes até via a porta ceder um pouco
descoberta de ideias, de jóias sem preço, de novas maneiras de ver as à sua pressão. Durante 7 anos, permaneci dentro do meu quarto, dia e
coisas, de instrumentos criativos, etc. noite. Não creio que alguém pudesse acreditar em mim e por isso é que,
Esta maneira de pensar fa z aumentar as minhas capacidades. Já que nos últimos 7 anos, nunca falei a ninguém sobre o assunto.
isto me está a acontecer, tenho de encarar a situação da melhor maneira Aos 17 anos, entrei em contacto com um terapeuta espiritual. Conhe­
que puder. Tendo em conta os pontapés que levei, os embaraços por que ci-o literalmente por acaso; não andava à procura dele. Ele era amigo
passei, os prejuízos que tive por causa do que acontece comigo, podia dum amigo meu que notou que eu andava perturbada, cada vez mais
ser uma pessoa muito ressabiada. No entanto, considero-me o mais afor­ perturbada desde os meus 14 anos. Esse amigo sugeriu-me que um
tunado dos homens e estou muito satisfeito com a cabeça que tenho. No terapeuta espiritual talvez me pudesse ajudar. Quando vi o homem, falei-
mínimo, sou um explorador das florestas-virgens da ilusão. A minha vida -Ihe do espírito que está à porta do meu quarto. E ele perguntou-me: ‘Por
é uma aventura, não necessariamente segura nem confortável, mas sem ­ que não falas com ele? ’ - e assim fiz. Falei com o espírito e ele foi-se
pre aventura. Aquilo que sou não depende da maneira como os outros embora. Então, um dia acordei e senti-me como se o meu próprio espírito

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tivesse morrido. Foi devastador. Senti-me uma nave vazia. Pensei que, vão ela s.’ Fred também me dizia a cor delas. Então, sentava-me e pen­
se o meu espírito tinha morrido, o meu corpo devia ir com ele - e fiz uma sava: ‘Merda! o que é que eu vou fazer?’ Então, ouvia o bater das
tentativa de me matar. cabeças das cobras contra a porta. Mas era por baixo da porta que elas
Quando recuperei, tudo tomou uma aparência nova. Reparei que um entravam. Às vezes, via-as literalmente a assobiar no quarto, para cá e
espírito substituto tinha entrado no meu corpo. Senti que esse ente era para lá. Não era um ver exactamente como ver esta cadeira ou esta mesa.
muito mau: o meu corpo sentia-se contaminado, era como se alguma É difícil explicar como é que eu via, porque não era desse tipo de visão
coisa estivesse a apodrecer dentro de mim. Quis-me ver livre daquilo e que se tratava: era mais do género de conhecer as dimensões delas, a
fui a um padre, que me fez um exorcismo. Também aqui foi um amigo sua forma e a sua envergadura - era uma espécie de visão diferente.
dum amigo meu que me disse: ‘Bom , conheço um padre assim , assim; Por vezes, era um par de pequenas cobras que entrava na minha
porque não vais ter com ele?’ - e assim fiz. Falei-lhe do ente que habi­ bebida. Quando começava a engolir, imaginava que tinha uma cobra no
tava em mim, e ele fez-me o exorcismo. Eu nem imaginava que ele era, meu estômago, que me mordia por dentro e depois se dissolvia. As vezes,
nem mais nem menos, o exorcista-mor da Igreja de Inglaterra. Fiquei elas iam para as minhas pernas e de vez em quando uma delas mordia-
bem por uns tempos, mas o ente voltou. Agora já sei por que é que -me o pescoço ou o punho e ficava aí. Então, eu ficava imobilizada,
voltou: tenho uma abertura na minha aura, e essa abertura situa-se no apavorada e sem fala. Às vezes, via a cobra entrar no fogão a gás aceso
meu peito; sei o ponto exacto. Aprendi a detectar quando é que a aber­ e ficar queimada. Eu sentia o cheiro a cobra queimada. Os assobios
tura surge, de maneira que, quando ela abre, é-me fácil tapá-la com as delas eram horríveis. Quando se juntavam muitas, o som saía mais
minhas mãos ou com o meu companheiro. Se fizer isso, os entes não abafado. Enquanto estas coisas se passavam, era muito difícil dizer às
podem entrar; sou capaz de os deter. É tão simples como isso. pessoas o que estava a acontecer; por isso, sentia-me muito desampa­
Voltemos atrás, aos meus 19 anos: tinha então aquele ente mau rada e não sabia o que fazer.
dentro de mim. Mas havia ainda um outro espírito, que me seguia de Comecei a ter outros tipos de experiências sonoras e visuais com
perto: era um espírito masculino, que me disse chamar-se Fred. Disse- cores. Ia pela rua fora e tudo o que fosse vermelho saltava em direcção
-me que era o advogado do Diabo e eu sentia-o sempre junto do meu a mim: uma luz vermelha de semáforo, umas meias ou um colete que
ombro direito. alguém trouxesse vestido, tudo saltava em direcção a mim. E diziam:
Nos anos imediatos, tudo ficou um tanto obscuro; é-me difícil trazer ‘Contam inada!’ Simplesmente isto: ‘Contam inada!’ Ou, então, saltava
à memória qualquer coisa que tenha acontecido nessa altura. Não sei se em direcção a mim tudo o que fosse verde, e dizia: ‘Estás viva!’ O verde
Fred tinha alguma coisa a ver com o ente que estava dentro de mim. Era foi a primeira experiência verdadeiramente positiva que tive. Ia pela rua
muito raro mandar-me fazer coisas. Os seus comentários a meu respeito fora e sentia-me eufórica. Vocês já ouviram falar da Marks & Spencer?
eram persecutórios e punham-me sempre em baixo. Fred nunca me re­ Na frontaria do edifício há um reclame verde. Pois as letras mudaram
velou por que tinha vindo, mas dizia-me que eu era uma merda, que era e formaram a frase ‘Estás viva!’ E senti-me encantada, feliz com esta
gorda, feia e estúpida. Dizia-me o que pensava de mim e cada uma das experiência. Havia uma certa alternância entre vermelho e verde, mas
palavras que dizia caía dentro da minha cabeça. Era como se a minha eu quase sempre preferia que fosse verde.
cabeça fosse uma taça, alguém lançasse um objecto para dentro dela e Por vezes, observava o meu corpo a aumentar. Acontecia em minutos:
o objecto batesse no fundo. quase sempre começava pelas mãos e alastrava ao resto do corpo; dava-
Nunca falei do Fred a ninguém. Ele às vezes fazia coisas absoluta­ -me a impressão de que estava a sofrer uma mutação. Quando isto
mente pavorosas. Mandava cobras para me atacar, e foi quando fiquei sucedia eu não ouvia vozes, mas era uma coisa muito aflitiva.
muito alterada. Nesses momentos, era como se eu ficasse catatónica, por Gostava de contar-vos uma experiência muito importante que tive
estar completamente aterrorizada. Ele mandava as cobras de uma ma­ com cobras. Foi a primeira premonição que tive a respeito delas. Uma
neira muito própria: dava-me conhecimento, dizendo: ‘M andei-tas, aí noite, veio uma cobra que me fez passar um mau bocado: forçou a

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entrada na minha boca e penetrou no meu corpo, de onde saiu pelo canal raiva. E, para lá da minha frustração, também como uma form a de
do parto. Eu sabia que tudo isso tinha a ver com a minha irmã, que resolver tudo o que me estava a acontecer, nomeadamente o Fred e as
estava grávida. Quando telefonei à mamã para saber como estavam as cobras. Não fo i o espírito nem o Fred que me mandaram fazer isso: fiz
coisas, ela disse que a minha irmã tinha dado à luz um bebé com um isso de minha livre e espontânea vontade.
ligeiro defeito na face: a menina tinha lábio leporino. Eu tinha pressen­ Por essa ocasião, ouvia também uma voz fem inina a guinchar. Esse
tido que alguma coisa estava a correr mal quando resolvi telefonar à barulho estava junto dos meus ouvidos, mas fora da minha cabeça. Era
mamã e senti que tinha a ver com a minha irmã, por a cobra ter saído como se fosse uma mulher de cada lado, a guinchar. Creio que era uma
pelo canal do parto. Foi uma experiência horrorosa, mas ao mesmo metáfora do meu próprio grito interior. Por vezes, não era capaz de
tempo incrível, por ter um significado autêntico. Foi a primeira e única gritar nem de chorar. É claro que num hospital não se pode fazer isso,
vez que uma cobra me disse verdadeiramente alguma coisa. mas mesmo fora do hospital sentia que não era capaz de o fazer. Assim,
Com o passar dos anos, tornei-me capaz de captar um mal-estar creio que o que eu ouvia era o meu próprio grito, do qual me tinha
geral, e não estou sozinha nesta aptidão - outros ouvidores de vozes dissociado. Porque, quando o sangue corria de uma ferida, sentia uma
passam por essas experiências. Somos capazes de captar se algo de mal espécie de lágrimas. O ferim ento causava-me o choro.
está para acontecer; é um mau pressentimento que depois se confirma Como é óbvio, não recebi grande ajuda da Psiquiatria. Quando estava
nos noticiários: um avião que se despenhou, uma pessoa que se aleijou, congelada, rígida, na altura em que as diferenças perceptivas eram
etc." muito grandes, picaram-me o corpo todo. Submeteram-me a técnicas de
modificação do comportamento e administraram-me fármacos. Não ten­
do qualquer controle sobre a minha vida, era-me muito difícil saber o
A Psiquiatria que fazer. No entanto, tentava comportar-me de acordo com aquilo que
esperavam de mim. Estando a ser tratada como uma criança, tinha de
“Entrei em contacto com a Psiquiatria aos 17 anos. Fui-me queixar comportar-me como uma criança. Era o que eles esperavam de mim e,
que comia e vomitava, e puseram-me o rótulo de transtorno alimentar. por isso, tinha de corresponder às expectativas deles.
Quando falei de ir a um exorcista, eles começaram a duvidar do diag­ Quando saí do hospital e fu i para o hospital de dia, tentaram fazer
nóstico que tinham feito. E caí na asneira de falar ao psiquiatra no Fred chantagem para eu tomar injecções de tranquilizantes. Foi quando eu
e nas cobras. E o psiquiatra disse: ‘A h, muito interessante... Estou a disse ‘N Ã O ’. Foi a primeira vez que realmente me impus. Foi a primeira
v er... Sei de que é que m e estás a fa la r...’. Rotulou-me de esquizofrénica vez que fu i auto-afirmativa. Tomei então a decisão de pôr a Psiquiatria
e, sem eu saber, informou os meus pais. Lembro-me de ele dizer: ‘Apa­ de lado.
nhaste uma doença para m uitos anos’, mas eu não percebi onde ele Entrar em contacto com outros ‘sobreviventes’ viria a ser o ponto de
queria chegar. viragem da minha vida. Foi quando pude começar a reparar em todo
Durante 5 anos, até fazer os 21, a minha vida continuou nessa em­ esse inferno que estava a acontecer. Só quando deixei a Psiquiatria,
brulhada. Nesse tempo, andava fora e dentro do hospital. Estivesse eu deixei de ser medicada e deixaram de me controlar é que pude reparar
internada, em ambulatório ou na urgência, estava sempre a fazer mal a no que me tinha acontecido. Só quando entrei em contacto com outros
mim própria. Para onde fosse, quase sempre ia o Fred também. O es­ sobreviventes é que me fo i possível falar da minha raiva e validar os
pírito maligno estava ainda no lugar do meu espírito. Sentia-me como meus sentimentos. Senti-me à vontade para falar das minhas experiên­
morta: como podia estar viva, se o meu espírito não estava dentro do cias, sem medo de ser julgada ou de que me achem estúpida ou doente.
meu corpo? Eu não existia. Comecei a fa ze r mal a mim mesma porque Foi um alívio enorme. Fiz alguns amigos que me aceitaram tal como sou.
me sentia impotente - o que era uma reacção ao tratamento que me Se sentisse as cobras a chegar, já não tinha que fugir precipitadamente.
estavam a fazer. Cortei os pulsos para exprimir a minha dor e a minha Já era capaz de ficar onde estava.

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Penso que fo i quando o Fred se fo i embora que aumentou a minha ram junto de mim para impedir que alguém pensasse: ‘Esta m ulher é bem
compreensão do que se estava a passar. No entanto, não fo i uma coisa estranha, é m elhor chamar um m édico ou uma am bulância.’ Os meus
súbita, do género de acordar um belo dia e verificar que já não havia amigos protegeram-me disso. Levei a noite inteira mas consegui desem-
Fred. Foi um processo gradual, em que a presença de Fred se tornou baraçar-me das cobras.
cada vez menor. Todavia, as cobras ficaram . Fred já não as envia e A maneira como lido com elas depende, pois, do estado de perturba­
custa-me a perceber por que é que elas ainda continuam a incomodar- ção em que me encontro, isto é, da maneira como a vida esteja a correr.
-me. Mas agora a minha maneira de lidar com o problema é muito Se me sinto mais perturbada, tenho mais dificuldade. Quando me sinto
diferente." mais forte, sou capaz de me desembaraçar delas dizendo-lhes, simples­
mente, que se ponham a andar. Agora sinto-me com mais força; sei que
Melhorar o controle elas podem vir a qualquer momento e morder-me, e as mordeduras delas
fazem mal, mas sei que elas mais tarde ou mais cedo se vão embora.
“A princípio, eu não era capaz de falar do que estava a acontecer.
A certa altura, comecei a acreditar que havia de chegar o momento em
Mas, a pouco e pouco, fu i ganhando coragem. Um dia, disse a um amigo: que elas já não se dirigiriam mais fisicam ente para mim, o momento
em que eu as poderia mandar embora antes que elas fossem longe de­
‘A s cobras estão no quarto.’ Ele falou com elas e disse-lhes: ‘Vá, saiam mais. Sei que já atingi esse ponto.
daqui, deixem a L ouise em paz!’ A té que enfim alguém acreditava em O meu espírito voltou ao meu corpo. É difícil precisar o momento
mim! Até que enfim alguém me levava a sério e fazia alguma coisa! exacto em que ele regressou. Mas, sem dúvida, fo i quando eu já estava
Talvez isso não convencesse as cobras a ir embora, mas já não me sentia a pôr a Psiquiatria de lado. O meu espírito abandona-me periodicamente,
tão isolada. Talvez isso não me ajudasse a dizer que as cobras não eram mas isso já não constitui uma catástrofe para mim. Cada vez que o
reais, porque eram. Não há nenhuma maneira de negar o que me estava espírito me abandona já não sinto necessidade de me matar. Se o meu
a acontecer. espírito não está comigo, sinto-me muito deprimida, mas sei que ele há-
Realmente libertador para mim é o facto de o meu companheiro ser -de voltar, mais tarde ou mais cedo.
particularmente bom a ajudar-me a lidar com as cobras. Se alguma se Tenho aprendido imenso com o meu companheiro, porque ele próprio
agarra ao meu corpo, digo ao meu companheiro: ‘Está uma na minha tem uma grande experiência pessoal de vozes e entes. E óptimo falar com
m ão.’ Digo-lhe o tamanho que ela tem e ele ajuda-me a correr com ela; ele sobre essas coisas: é isso que fa z a diferença. Ganhei domínio sobre
pega nela fisicam ente e atira-a pela porta fora. Ele resolve por mim esse as minhas experiências e encontrei o meu próprio significado para elas.”
tipo de problemas, porque ainda não sou capaz de o fazer sozinha.
Contudo, a minha capacidade de lidar com as cobras foi-se desenvol­
vendo. E muito raro que esteja completamente incapaz de o fazer; se Décimo segundo contributo pessoal
estou, é apenas por algumas horas. Sei que, mais tarde ou mais cedo,
acabam por ir embora, o que me dá força para ser mais auto-afirmativa A . L . tem 4 2 an os e o u v e v o z e s d esd e o s 10. C o m eço u agora a
com elas. Na semana passada havia cobras por toda a cama e eu disse: d e se n v o lv e r u m a série d e estra tég ia s q u e o aju d am a lid ar co m
‘V ão-se foder, ponham -se a andar daqui!’ Quando fico zangada, elas
vão-se embora, ainda que isso leve a noite inteira. O ano passado, a situ ação. P resen tem en te, é o C oorden ador do F orum L am b eth para a
quando eu estava num congresso, o vestíbulo estava repleto de cobras. Saúde M ental.
Eu andava por ali, completamente transtornada, tentando pôr os pés nos “Lembro-me de ouvir vozes desde a mais tenra idade, sempre asso­
espaços entre elas. Alguns amigos meus ficaram ao p é de mim a noite ciadas à visão de uma cara ondulante de sorriso malicioso. Agora já não
inteira. Não havia nada que os obrigasse a estar ali. Não fu i capaz de tenho essa visão. Tinha eu cerca de 10 anos quando as vozes se tornaram
dizer nada acerca das cobras até de manhã. Os meus amigos perm anece­ agressivas e difíceis de lidar. Ao longo da minha infância e adolescência,

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um membro da minha fam ília abusava sexualmente de mim. Nessa altura, raçosos para ficarm os bem adaptados, isto é, sem quaisquer veleidades
as vozes estavam sempre presentes e lembro-me que elas me arreliavam, de rebelião.”
falavam para mim e me faziam ameaças. Lembro-me de viver mergulha­
do dentro de mim próprio: se é certo que eu ia à escola, a verdade é que
me sentia de fora da corrente principal de actividade. Tinha um amigo Quebrar o silêncio
chamado Trevor, que estava ao corrente das minhas vozes. Ele dizia que
isso o assustava, mas não me rejeitava e éramos muito amigos. No Em 15 anos de intervenção psiquiátrica, só uma vez — tinha eu 36
entanto, as vozes começaram a dominar-me de tal maneira que passava anos de idade - encontrei alguém disposto a ouvir-me. Isso viria a
horas a responder-lhes e andava sempre distraído por causa disso. constituir para mim um ponto de viragem e, a partir daí, deixei de ser
Aos 14 anos levaram-me a um pedopsiquiatra que me internou num uma vítima e comecei a tornar-me senhor da minha própria experiência.
hospital enorme, que tinha uma unidade só para crianças. A verdade, Esse alguém fo i uma enfermeira, que, na verdade, arranjou tempo para
porém, é que me puseram numa enfermaria de adultos. Puseram-me o me ouvir fa la r da minha experiência e dos meus sentimentos. Ela fez-m e
diagnóstico de esquizofrenia e deram-me injecções de decanoato de sentir sempre bem-vindo e arranjava maneira de nunca sermos incomo­
flufenazina. O efeito real dessas injecções fo i tirar-me a capacidade de dados. Desligava o bip e punha o telefone fora do descanso e, às vezes,
lidar com as vozes; as minhas emoções ficavam embotadas e a minha como havia sempre gente no corredor, corria as cortinas do gabinete.
mente não era capaz de me ajudar a controlar as vozes. Tudo isso me fazia sentir mais à vontade. Em vez de se pôr atrás de uma
Estavam sempre a mudar-me de um hospital para outro. Nunca nin­ secretário, sentava-se ao p é de mim. Dizia-me que tudo o que fosse
guém procurou saber o que eu pensava ou sentia, e sempre que dizia que conversado entre nós era confidencial, excepto se e quando eu decidisse
ouvia vozes, ou mandavam-me fazer um esforço para melhorar, ou da­ o contrário. A pouco e pouco, à medida que aumentava a confiança entre
vam-me vários coquetéis de medicamentos. A Psiquiatria, para mim, tem nós, tornei-me capaz de lhe fa la r dos abusos que sofri e das vozes. Â.v
o hábito muito desagradável de transformar experiências vulgares em vezes, quando eu descrevia o que tinha acontecido comigo, ela dizia-me
experiências extraordinárias. Ela confisca-nos a experiência, obscure- que essas coisas buliam com ela e que, por isso, precisava de parar por
ce-a, desfigura-a e, por fim , devolve-a à procedência, esperando que lhe momentos. Finalmente, encontrava alguém que dava valor à dor que eu
fiquem os muito gratos por isso. Nunca ninguém me perguntou como ia sentia. Ela ajudou-me a perceber que as vozes eram parte integrante de
a minha vida em casa. Na vez de estarem a cuidar de mim, parecia que mim mesmo e tinham um sentido e um valor próprios. Passado um p e­
me estavam a gerir: eu não passava de uma das muitas almas humanas ríodo de 6 meses, fu i capaz de desenvolver uma estratégia de base para
ali armazenadas. As experiências de abuso sexual por que passei deixa­ lidar com as minhas vozes. O mais importante nessa enfermeira fo i a
ram marcas físicas, emocionais, espirituais e psicológicas, e estou em honestidade das suas motivações e as respostas que me deu ao que eu
crer que esses quatro elementos estão estreitamente relacionados com as lhe dizia.
quatro vozes que oiço. Gostaria aqui de afirmar que talvez outros profissionais de Saúde
Em boa verdade, o problema não estava nas minhas vozes, mas mais M ental ou de Intervenção Social possam aprender com a abordagem
na atitude da sociedade para com elas. Ao tentar abafá-las ou exorcizá- seguida por essa enfermeira - que pode resumir-se como segue:
-las, através de medicação ou de electrochoque, a Psiquiatria reforçou - ser honesto sobre a motivação e as razões para intervir;
o ciclo de abuso e repressão. Fossem quais fossem as intervenções te­ -estabelecer regras de base à partida;
rapêuticas, eu continuava a ouvir vozes. O sistema psiquiátrico parecia -g a ra n tir e preservar uma atmosfera de segurança;
que só ficaria satisfeito quando eu negasse a minha experiência. Este - não forçar a agenda - garantir um espaço para respirar, de modo
processo de negação significa que teríamos de nos transformar em pa­ a que a pessoa possa decidir o que dizer ou não dizer;
cientes-modelo e jogar o jogo com as regras da Psiquiatria. Teríamos de - deixar que a pessoa decida quais devem ser os objectivos a atingir
enterrar todos e quaisquer sentimentos, emoções e pensamentos emba- e se pretende a mudança ou não.

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Vozes: sobreviver e lidar com elas É com estas duas vozes que eu tenho mais dificuldade em lidar.
Desencadeantes: estas vozes parecem dominantes a seguir a qualquer
“Graças ao apoio dessa profissional, fu i capaz de desenvolver uma actividade sexual; por vezes irrompem quando toco em antiguidades,
série de mecanismos de entendimento com as vozes. Um desses mecanis­ como móveis, jóias e espelhos.
mos consiste em lhes conceder diariamente um certo tempo para que elas - Voz n.° 4: a Voz Mecânica. Esta voz surge habitualmente de noite
se possam manifestar e para que eu me possa ocupar delas. Para que e é activa e dominante quando está escuro. Repete habitualmente o mesmo
isso aconteça, preciso de me preparar. Há determinadas condições que conjunto de frases - muitas vezes, diz-me que outros seres, em geral
podem ajudar nesse objectivo, por exemplo, estabelecer um padrão re­ animais, são capazes de ouvir todas as vozes e que os gatos são os que
gular de sono. Apesar de lhes conceder um tempo só para elas, mesmo as ouvem melhor. Parece ter a sua graça, mas esta é a voz que mais me
assim as vozes continuam a fazer-se ouvir, mas já não me oprimem. Uma assusta; mas eu engendrei um mecanismo de lidar com ela, deixando-me
das coisas que aprendi fo i a entrar em contacto com as minhas emoções assustar - o que fa z a voz desvanecer-se. Desencadeantes: a escuridão,
e, por vezes, fico com medo dos meus sentimentos e das minhas vozes. a lua cheia, gatos sentados ao meu colo, ficar na cama acordado en­
Nos últimos 4 anos, tornei-me capaz de reconhecer os acontecimen­ quanto toda a gente dorme.
tos, factos ou situações que fazem disparar as vozes. Por vezes, fico mais
consciente da profundidade e da tonalidade das cores: o seu brilho Para ser capaz de funcionar e de reagir ao mundo, tive de ganhar
parece muito intenso. Esta fa se dura cerca de 20 a 25 minutos e, então, controle e de me tornar razoavelmente disciplinado. O que eu não faço
de um mar de sons emerge a voz. Por vezes, quando a voz se torna é tentar bloquear as vozes pondo-me a tocar música ou a ouvi-la através
dominante, sinto-me assustado. de auscultadores, como alguns terapeutas têm proposto. Sempre que eu
Há quatro vozes distintas na minha vida e tenho notado que, à medida fazia isso, as vozes esperavam que estivesse numa situação social em que
que avanço na idade, a sua tonalidade e volume vêm sofrendo alterações. não me pudesse escapar para se fazerem ouvir, de maneira a que me
Cada uma das quatro vozes parece ter o seu desencadeante próprio; sentisse tonto e completamente desorientado. Alguns terapeutas propõem
porém, há alguns acontecimentos mundiais que funcionam como um esse tipo de métodos, mas, pessoalmente, acho que esses métodos são
desencadeante comum de todas elas. Por exemplo, durante a Guerra do uma mera form a de negar a experiência, uma maneira de dizer que ela
Golfo, tinha dificuldade em dormir de noite e em concentrar-me de dia, não tem qualquer valor ou significado. Por mim, rejeito totalmente essa
dado que as vozes passaram o tempo a gritar comigo 3 dias a fio." atitude.
Acho mais fá cil viver com as vozes, agora que desenvolvi um equi­
líbrio de energias e me perm ito sentir a incerteza, a ansiedade e às vezes
Aqui vão as minhas vozes... e os seus desencadeantes também o medo - por form a a tornar-me senhor da minha experiência,
respeitar-me a mim próprio e conseguir o máximo de controle possível.
Voz n.° 1: a Voz de Prata. Esta é uma voz suave, habitualmente Como disse, descobri uma série de coisas que tornam mais fácil a tarefa
toma a form a de murmúrios, muitas vezes com frases fragm entárias e de lidar com as vozes; no entanto, cada voz necessita de ser tratada de
comentários sobre pessoas que encontro ou com quem mantenho rela­ uma form a especial."
ções. Desencadeantes: fa la r com pessoas ao telefone; se tenho de me
deslocar a novos lugares ou se conheço novas pessoas, torna-se dom i­
nante; muitas vezes fa la quando toco em alguém pela primeira vez, por Treinar as vozes: pô-las em equilíbrio com a minha vida
exemplo, com um aperto de mão.
—Vozes n.° 2 e n.° 3: os Dois Irmãos. Estas duas vozes falam uma A Voz de Prata: M uitas vezes acho que fazer desenhos ou repe­
com a outra, mas também falam para mim, num padrão rítmico. São tir em voz alta o que a voz está a dizer ajuda a reduzir a sua potência
muito agressivas e abusadoras e falam comigo acerca das outras vozes. (esta voz aparece por períodos de cerca de 10 minutos).

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- Os D ois Irmãos: Estas são as vozes que mais exigem de mim somos nós que temos de viver e de lidar sozinhos com as nossas vozes.
emocionalmente. Quando começam, tenho de procurar um refúgio e Não precisamos de entrar em competição uns com os outros, porque
deixá-las fa la r (duram mais de 3 horas). cada uma das nossas experiências é única e válida em si mesma.
- A V oz M ecânica: Habitualmente reajo a esta voz pondo-lhe ques­
tões que julgo serem de resposta difícil para ela. Deixando-me assustar De um mar de sons, de um caldo de emoções,
sou capaz de a questionar, perguntando-lhe, por exemplo: ‘N ão és capaz uma força irrompe
de m e magoar, ou és?’ Ao arreliar a voz, provo-lhe que sou mais forte e
do que ela. Se não lhe respondo, ela torna-se por vezes muito abusadora o mundo fica cheio
e diz coisas estranhas, mas só dura cerca de 10 minutos por hora ao de
longo da noite. vozes,
vozes que murmuram
Descobri que para viver a minha vida tinha de conseguir o controle vozes
da situação e pôr de lado o costume de me ver como vítima. Vocês que se riem,
poderão descobrir o mesmo se falarem com outras pessoas acerca das vozes
vossas vozes. Essas vozes podem provocar-vos durante alguns dias, podem que me comprimem na
incomodar-vos e perturbar seriamente a vossa rotina diária: não cedam. escuridão
Quando conseguirem impor um padrão e mantê-lo, as vozes tornam-se do dia
menos poderosas. Aqui vão algumas sugestões que podem ser úteis: mas eu
- Tentem criar um espaço ou um horário em que possam ocupar-se tenho uma canção
das vozes. Estabelecer um horário certo em cada dia, ao longo de um no meu peito
determinado período, reduz o tempo em que vocês perm item que as vozes que diz que
estejam em contacto convosco. elas podem viver
- Não tentem bloquear as vozes; em vez disso, tentem descobrir se em paz ao pé
elas têm um fio comum: quando e onde é que elas se manifestam?, de m im ”
conseguem identificar algum facto ou situação que as desencadeie?
- Pode ser útil aprender algumas técnicas elementares de relaxamen­ Décimo terceiro contributo pessoal
to. Podem mostrar-se particularmente úteis quando as vossas emoções
se complicam fa ce ao tiroteio permanente das vozes. Usem essas técnicas E sta é a história d e um a m ulher (P. H .) q u e M arius R o m m e c o ­
de relaxamento quando as vozes começam. m eço u a tratar em 19 83 . T in h a ela en tão 2 6 an os d e id ad e e ou via
- Dominem a vossa experiência: vivam-na e respirem-na, desfrutem- v o z e s d esd e o s 14 ou 15. Procurou o Prof. M arius R o m m e p orq ue as
-na no vosso próprio tempo e no vosso próprio espaço. v o z e s lh e davam ord en s, proib iam -n a d e fa zer certas co isa s ou d e se
encontrar co m p e sso a s - e d om in avam -n a p or co m p leto . F o i internada
Não fo i fá cil escrever isto. A i minhas vozes disseram-me que, assim
que isto fosse lido por outras pessoas que ouvem vozes, se tornariam várias v e z e s, co m o d ia g n ó stico de esq u izo fren ia . O s n eu rolép ticos
mais fortes e voltariam a incomodar-me. E claro que isto me assusta um não lh e acalm aram as v o z e s, em b ora ten ham red u zid o a an sied ad e
bocado, mas, enfim, estou vivo. Estou contente por haver pessoas que provocad a por ela s. In felizm en te, a m ed ica çã o tam b ém a fectava o seu
dão ajuda, mas é necessário que essa ajuda, esse cuidado ou essa esta d o d e alerta p síq u ico , p elo qu e ela o p tou por n ão a tom ar por
assistência, seja dada nos nossos próprios termos, porque, ao fim do dia, p eríod o s m uito p rolon gad os e por evitar estad ias dem orad as n o h os-

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pitai. P orém , as v o z e s iso la v a m -n a cad a v e z m ais, proib iam -n a de mentos e as vozes que eu ouvia, mas, no máximo, essa relação consistia
fazer as co isa s q u e sem p re gostara d e fazer e, in clu siv e, m andavam - em as vozes poderem reforçar um determinado estado de humor. Por
-na in su ltar-se a si própria. N o P rim eiro C o n g resso para O u vid ores de exemplo, se não me sinto muito bem, as vozes assanham-se e fazem
V o z e s, em 1 9 8 7 , con tou a sua h istória co m o segue: tempestades num copo de água. Fizemos então algumas tentativas de
treino. Com o Professor Romme aprendi a criar as condições necessárias
“Tanto quanto sou capaz de me lembrar, teria 7 ou 8 anos quando a um melhor controle sobre mim própria, e agora sou menos fá cil de
ouvi vozes pela primeira vez. Nessa altura, elas eram amistosas, conta­ impressionar pelas vozes. Não consegui ver-me livre delas, mas as con­
vam-me histórias, davam-me conselhos e protegiam -m e de situações versas que tive com o Professor Romme ajudaram-me muito. Ele fez-m e
desagradáveis, como discussões, por exemplo. Mas quando cheguei aos pensar com clareza e obrigou-me a usar o cérebro. Aprendi a descobrir
15 anos tornaram-se maldosas e começaram a dar-me ordens. A prin­ relações entre os meus sentimentos e aquilo que as vozes dizem e, ainda,
cípio, essas ordens eram inofensivas, por exemplo fazer determinadas a estruturar a minha rotina diária. Reservo a noite para as vozes, de
coisas por uma certa ordem, de manhã ao levantar. Com o decorrer dos maneira que, assim, durante o dia, sou menos atormentada por elas e
anos, foram -se tornando cada vez mais coercivas e importunas. Come­ funciono melhor. Aprendi também a usar adequadamente a medicação
çaram a proibir-me as amizades ou a dar cabo delas, fazendo as outras neuroléptica. A utilização desse tipo de medicamentos é algo a que resisti
pessoas sentir-se totalmente ridículas. Muitas vezes não me deixavam durante muito tempo, na medida em que provocam o embotamento do
atender o telefone, nem abrir a porta quando a campainha tocava, nem pensamento e do sentimento. Actualmente, tomo-os em baixas doses e
visitar fosse quem fosse. Elas tinham um comentário sobre tudo e as sinto-me menos perturbada pelos seu efeitos secundários; e quando as
observações que faziam eram negativas por sistema. Perturbavam-me vozes parecem querer dominar de novo, aumento a dose temporariamente.
sempre que estivesse a estudar, a ler ou a conversar. Durante anos, evitei Desde que pus a minha fam ília ao corrente das vozes que oiço
sistematicamente falar do assunto, porque as vozes também me proibiam - o que, aliás, a ajudou a compreender melhor o meu comportamento -,
de o fazer. Se não lhes obedecesse, faziam um barulho ensurdecedor que ela passou a dar-me muito mais apoio. Este ano, estando eu a passar
não me deixava ouvir o que se passava à minha volta. Apareciam e ainda um mau bocado, fu i viver com a minha mãe. As coisas correram
amedrontavam-me. Se as coisas chegassem a extremos, faziam -m e insul­ bem. Esbateu-se o medo que sentia de nunca mais ser capaz de cuidar
tar a mim mesma. de mim própria. E também me ajudou muito o optimismo da minha mãe.
Eu costumava pensar que as vozes eram deuses omniscientes e om­ Disse ela: ‘Enquanto isto se resolve, sempre passam os o tem po.’ Não sei
nipotentes que orientavam e determinavam tudo sobre a terra. Âs vezes de onde vêm as vozes nem o que significam, mas sei que elas são parte
tentava ludibriá-las, mas elas eram demasiado espertas para se deixarem de mim e estão para ficar. Se bem que possa agora lidar melhor com a
enganar. Outras vezes, procurava aliar-me a elas, fazendo-lhes conces­ situação do que há alguns anos atrás, ainda tenho uma certa dificuldade
sões - mas as vozes não desapareciam. Comecei a pensar que as vozes em viver com elas.”
tinham alguma coisa a ver com o que se passava em casa e fui-m e
embora. Comecei a ser tratada na Secção Juvenil do Departamento de
Psiquiatria Social mas não conseguiram livrar-me das vozes.
Durante um breve período pensei que tinha enlouquecido, mas de­
pressa pus essa ideia de lado. As vozes são demasiado reais para serem
alucinações. Quatro anos depois, conheci o Professor Romme. Passei o
primeiro ano de terapia com ele a tentar convencê-lo de que o meu
problema não era clínico, que as vozes eram exteriores a mim. Tentámos
ambos averiguar se haveria alguma relação entre determinados senti-

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OUVIR VOZES: A PERSPECTIVA DA PSIQUIATRIA
E DA PSICOLOGIA

“Os fenómenos psicológicos são qualitativos e


insusceptíveis de medida; são subjectivos, pessoais e im­
penetráveis, só conhecidos por quem os experimenta. Estas
características são bastantes para os considerarmos como
bem diferentes dos fenómenos fisiológicos. [...] A distin­
ção entre categorias de fenómenos psicológicos toma-se
útil para fins didácticos mas a sua independência na re­
alidade é bem hipotética. Sabemos das relações íntimas
entre o psíquico e o somático mas as relações dos
fenómenos psíquicos entre si são mais íntimas ainda:
‘Quem o feio ama bonito lhe parece’, ‘Quem corre por
gosto não cansa’, etc.
A recordação destes conhecimentos é indispensável para
entrar na ‘compreensão’ de uma psicose.”
Professor Doutor Herménio Cardoso
(Aulas Teóricas de Psiquiatria: Dementia Praecox, 1944)
Introdução Em P sicologia C ognitiva o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s é v isto
co m o sen d o um a interpretação esp e c ia l das p ercep çõ es, isto é , por
Marius Romme outras palavras, co m o sen d o u m a v ia particular d e p rocessa m en to da
inform ação q u e p o d e ser esp e cia lm en te d escon fo rtá v el ou d ifíc il d e
E d ifíc il calcu lar o nú m ero de p e sso a s qu e o u v em v o z e s, m as a assim ilar.
verd ad e é q u e, num a ou noutra fa se, grand e parte d elas acaba por A P siq uia tria Social co n sid era as v o z e s co m o um a ex p ressã o
entrar em con tacto co m o m un do da P siquiatria. P or isso , in clu ím o s m etafórica da h istória e da situ ação b io g rá fica d e q u em as o u v e.
aqui um a sele c ç ã o das linhas d e referên cia u tilizad as p ela P siquiatria, S egu n d o este m o d elo , as v o z e s reflectem as in teracções do in d ivíd u o
o u qu e se d esen v o lv eram em nítida relação co m ela. no âm bito das su as rela çõ es e n o co n tex to so cia l m ais am plo.
O utras razões ex istem para aqui apresentarm os essa s perspectivas: E m Interacções fa m ilia res e p sico se ex a m in a -se a con trib u ição do
u m a parte d elas fo rn ece algu m as das estratégias p o ssív e is para se m eio d o m éstico quer para o desp ertar das v o z e s quer para o seu
aprender a lidar co m a escu ta d e v o z e s, se b em qu e, in felizm en te, não m anejo. A atm osfera em o cio n a l e a d in âm ica interna d e um a d eter­
se p o ssa m aplicar a tod os o s ca so s. A s várias S e c ç õ e s d este C apítu lo m inada fam ília p arecem con stitu ir d o is factores fu n d am en tais para
ap resen tam so b rep o siçõ es em d iversas áreas e , a lém d isso , não são dificu ltar ou favorecer o en ten d im en to co m as v o zes.
m u tu am en te ex clu siv a s; em term os g erais, cad a um a d elas, de per si, Em P sico se p rop orcion am -se as re fle x õ e s d e B rian D a v ey sobre
ex a m in a e p õ e em relev o um asp ecto d iferen te e particular do m esm o d iversas abord agen s da perturbação m en tal e em o cio n a l, in clu in d o -se
corp o teórico. tam bém aí o n o tá v el relato q u e n o s fa z das suas batalhas co m a
N a P siquiatria C lássica é vulgar p en sa r-se q u e as v o z e s são sin ­ p sico se. B rian estu d ou em p rofu n d id ad e a teoria p sic o ló g ic a e p sica-
tom as d e um a d o en ça ou d e um a d isfu n çã o cerebral, em esp ecia l a n alítica, o ferecen d o -n o s um a agrad ável teoria p esso a l a ssen te na sua
esq u izo fren ia . É claro q u e esta abordagem p o u ca ou nenh um a atenção
própria exp eriên cia.
c o n c e d e às v o z e s em si m esm a s e im p lica um tratam ento que co n siste
E m C ari Jun g e a p ercep ção extra -sen soria l ex p lo ra -se o co n c eito
em su p rim i-las através da adm inistração d e n eu ro lép tico s.
de in co n scien te c o le c tiv o c o m o p o ssív e l fo n te d e p r o v en iên cia das
A A ná lise fu n cio n a l cen tra-se naq uilo qu e as v o z e s d izem , reunindo
v o z e s. P siquiatra, e le m esm o o u v id o r d e v o z e s, Jung acred itava qu e
ab ord agen s ao d iá lo g o co m as v o z e s e m ostrand o d e que form a essa s
ela s p od iam ser a ex p ressã o d o co n tacto , a um n ív el m ais p rofun do,
ab ord agen s se p od em utilizar para d escob rir o sig n ifica d o das m en ­
co m o reino in co n scien te da v id a esp iritu al qu e n os é com u m a tod os.
sa g en s v eicu la d a s p ela v o z e s, n o co n tex to da h istória b iográfica de
q u em as ou ve. E sta id eia fo rn ece um a ex p lic a ç ã o p o ssív e l para o facto, m u ito fre­
E m P ersonalidade dissociada interpreta-se a escu ta d e v o z e s co m o qu en te, de a ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s ser v iv en cia d a co m o não-
a e v o lu ç ã o d e um m eca n ism o p sic o ló g ic o p o sto em m archa para se -E u.
p od er lidar co m situ a çõ es am eaçad oras, em esp e cia l na infân cia. E m Ja yn es e a consciência a n a lisa -se o pap el da ev o lu çã o h istórica
O resu ltad o, seg u n d o se d iz, é separar da person alid ad e certas e m o ­ n o d e se n v o lv im en to da c o n sciên cia . O fu nd ad or d esta teoria, o p sic ó ­
ç õ e s e m em órias, as quais ten dem a reaparecer sob a form a d e v o zes. lo g o Julian Jayn es, acredita q u e tem p o s h o u v e em q u e ou vir v o z e s era
N a Secção T raum as d iscu te-se a ex p eriên cia infantil de abu sos um a ex p eriên cia hum ana d e rotina, e q u e o fen ó m en o representaria
sex u a is ou outros e apresenta-se o resu ltad o d e in v estig a ç õ e s que h oje um atavism o e v o lu tiv o . E sta é um a p ersp ectiva m ais p esso a l do
p arecem dem onstrar um a correlação entre e sse s ab u sos e o apareci­ que a m aioria das q u e são ap resen tad as n este C ap ítu lo, tanto m ais que
m en to d e a lu cin a çõ es aud itivas, m ais tarde. raram ente é in v o ca d a n o ca m p o da P siq uiatria - e, d ig a -se em abon o
da verd ad e, tam bém n ão é particularm ente corrente noutros ca m p o s N o entanto, u m sim p les erro d os n o sso s o lh o s e o u v id o s n ã o c o n s­
do saber. P orém , d e cid im o s in clu í-la aqui, num texto de P atsy H a g e titui ex p lica çã o su ficien te para a p ercep ção, por e x em p lo , d e u m a fala
(ela própria ou vid ora d e v o z e s ), porque tiv em o s o ca siã o de verificar na n ossa própria lín g u a . A haver um a ex p lica çã o físic a , e la diria
o qu anto esta teoria p o d e ser útil a m u itos o u vid ores d e v o z e s q u e respeito a determ in ad as partes d o cérebro q u e, por n ão estarem a
procuram form as de com p reen d er as suas exp eriên cias. funcionar correctam en te, n os ind uziriam em erro - partes d o cérebro
E p en a que o s o u v id o res d e v o z e s raram ente en con trem na P siq u ia ­ essa s que d everiam ter p reviam en te aprendido a n o ssa lín g u a . O s
tria lin has de referên cia teórica cred ív eis e con form es co m a sua psiquiatras c lá ssic o s sab em q u e há m uitas situ a çõ es na v id a e m que
própria ex p eriên cia p e sso a l. P or isso , to m a -se im p eriosa um a troca de a n ossa im agin ação entra e m torvelin ho: quando esta m o s c h e io s d e
exp eriên cia s e de teorias o m ais livre p o ssív e l entre p ro fissio n a is e m edo ou so zin h o s, q u an d o b eb em o s d em ais, quando p ressen tim o s que
o u vid ores de v o z e s. Para já , porém , con tin u a a sub sistir um ab ism o algu ém está a falar d e n ó s, quando esta m o s a co m eçar a d orm ir ou a
en tre a teo ria e a e x p e r iê n c ia p e ss o a l - en tre o b je c tiv id a d e e acordar. N o en tan to, para o psiquiatra, ex p eriên cia s d este tip o, n estas
su b jectivid ad e — que to m a ex trem am en te d ifíc e is a coop eração e fe c - circu nstâncias, n ão co n stitu em verdadeiras alu cin a çõ es.
tiva e a ajuda m útua. A q u estão fundam ental não é, p o is, a de saber O s psiquiatras esfo rça m -se por d istin gu ir as a lu cin a çõ es q u e o co r­
qual d os ca m p o s tem razão, m as, antes, de q u e m aneira se p o d e rem em estad os d e p erfeita v ig ília d aq u elas q u e a co n tecem em esta d o s
transpor ou reduzir e s s e a b ism o . E sp eram os que este C apítu lo p o ssa de so n o lên cia ou d e feb re elev a d a , n o s in d iv íd u o s sen is e n o s d oen tes
contribuir para sugerir a lg u m a s abordagens a esta tarefa e ssen c ia l. co m le sõ e s cereb rais ou em certas d oen ça s física s. Q u an d o as a lu ci­
n açõ es ocorrem n u m estad o d e co m p leta v ig ília , co n sid era -se q u e são
sinal de um a d o en ça p síq u ica grave - aq u ilo a qu e se ch am a psicose.
A Psiquiatria Clássica N ão ex iste c o n se n so sob re a n atu reza das ch am ad as p sic o se s fu n c io ­
nais m as a cred ita-se gera lm en te q u e são d evid as a certas d o en ça s a
Alec Jenner q u e se é su scep tív el d e v id o a um a d e fic iên cia hereditária d o cérebro.
São d oen ças nas q u ais se perd e o con tacto co m a realid ad e. Já m ais
V er qualquer c o isa q u e n ão está presente ou ou vir a lg o que n ão fo i controverso é aq u ilo q u e efectiv a m en te fa z deseq u ilib rar a balança:
dito p od e parecer, n o m ín im o , incorrer em erro. E stes d o is tip os d e tanto pod e en glob ar d iversas co m b in ações d e d efeito s co n g én ito s co m o
exp eriên cia são co n h ecid o s em P siquiatria por a lu cin a çõ es v isu a is e in fec çõ es virais ou d eterm in ad os p eríod os d ifíceis da v id a - em e s ­
aud itivas, resp ectivam en te. Para o psiquiatra c lá ssic o , essa s ex p e riê n ­ p ecia l no se io da fam ília .
cias sig n ifica m q u e a lg o está errado co m a p esso a que as tem , u m a N a essên cia , há d o is tip o s recon h ecid o s d e p sic o se s fu n cio n a is. N a
v e z qu e ela não p o d e fia r-se n os seu s sen tid o s, p e lo m en os em d eter­ d o en ça m a n ía co -d ep ressiva , p en sa -se q u e o hum or d o in d iv íd u o o sc ila
m inadas circu nstâncias. Q u and o esta m o s b em , p ressu p õ e-se q u e s o ­ num ou noutro sen tid o p orq u e se en co n tra ’ avariad o o resp ectiv o
m os cap azes d e separar a n o ssa p e sso a e o s n o sso s p en sa m en to s m eca n ism o d e regu lação: as a lu cin a çõ es p od em surgir n o s esta d o s de
d aq u ilo qu e a co n tece à n o ssa v o lta , isto é, esta b e lec em o s b em a d i­ hum or extrem os, sen d o então encaradas co m o um a co n seq u ên cia d esses
ferença entre ou vir e im aginar. S egu n d o se d iz, não co n seg u ir esta ­ hum ores. A esq u izo fren ia seria, n o en tan to, a d o en ça e m q u e m ais
b elecer essa d iferen ça co n stitu i um a perda das fronteiras do E u (a l­ nu clearm en te está im p licad a a escu ta d e v o z e s. A té certo p on to, esta
gu n s psiquiatras usam m esm o um a ex p ressã o ainda m ais técn ica: en tid ade p o d er-se-ia en ten d er c o m o um a perda das a sso c ia ç õ e s de
“falh a da d ia crese”). p en sam en tos e id eia s m ais habituais: há q u em veja n isso um a co n fu -

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são de circu ito s cerebrais, a lg o sem elh an te a um a troca d e fio s num aqu ilo a que e le s ch am am fo rm a e aqu ilo a qu e e le s ch am am con teú do :
aparelh o d e telev isã o . A lé m d isso , o s psiquiatras ob servaram qu e as neste c a so , a form a é o u vir v o z e s falan d o na 3 .a p esso a , en qu an to qu e
p esso a s esq u izo frén ica s tinham ten d ên cia a deteriorar-se p rogressiva­ o con teú d o é aq u ilo q u e ela s d izem . Q u an d o o u v im o s p e sso a s a falar
m en te, en q u an to q u e as m a n ía co -d ep ressiva s o sc ila m habitualm ente c o n n o sco , de duas um a: ou ela s estã o d e fa cto a falar c o n n o sco , e a
entre a m an ia (ela çã o e h ip eractivid ad e) e a d ep ressã o . E m bora haja form a é a dum a p ercep ção; ou n ão estã o , e en tão a form a é a du m a
um fu n d o d e verd ad e nesta o b servação, e la só é v á lid a parcialm ente, alucinação. E m am b os o s c a so s, o co n teú d o é o m esm o , em b ora as
na m ed id a em q u e um a parte da ev o lu çã o deteriorante p arece d evid a form as sejam d iferen tes (e o in v erso , o b v ia m en te, tam bém se p o d e
à natureza das in stitu içõ es para on d e essa s p e sso a s costu m am ser aplicar). Para e fe ito s d e d ia g n ó stico , a form a é , en tão, m ais im portante
en viad as. do q u e o con teú d o. T entar fazer um d ia g n ó stico é sem pre nu clear em
Sin tam as d ificu ld a d es q u e sentirem , o s psiquiatras d everão esfo r­ M edicina: aliás, é por isso q u e se co stu m a ir ao m éd ico.
çar-se p or cla ssifica r o s tip os de estad o m ental qu e as p e sso a s esperam S ó p o d e haver tratam ento adeq uad o se h o u ver antes um d ia g n ó s­
qu e eles tratem . É p o ssív e l qu e o s psiquiatras ten ham co m etid o o erro tico correcto. E p reciso n ão esq u ecer q u e a P siq u iatria é um ram o da
d e acreditar que ex istem d o en ça s b em d elim itad as - o u q u e d isp õem M ed icin a e, por isso , é natural qu e tenha um a lin g u a g em m éd ica.
da cla ssific a ç ã o correcta, ca so essa s d oen ça s b em d elim itad as e x is ­ A qu estão do q u e d e v e ou n ão d e v e cair n o s d o m ín io s da M ed icin a
tam . N o en tan to, o s esfo rço s para esta b elecer um a c iê n c ia da P siq u ia ­ toca a sp ectos que estão fora d os p rop ósitos d esta S ecçã o .
tria c o n d u z ira m a o s e stu d o s d as c o r r e la ç õ e s - o q u e é q u e se O qu e esto u a fazer é tentar ajudar o c lien te a com p reen d er a
correlacion a c o m o quê. E a b em dizer fo i o h o m em da rua, e não os m aneira de pensar d os psiqu iatras e aq u ilo q u e e le s fazem ; isto é , por
psiqu iatras, q u e id en tificou prim eiro o s p rob lem as m en tais que care­ q u e é q u e e le s fa zem esta pergunta e n ão aq u ela e por q u e é q u e e le s
ciam d e ex p lica çã o . dão m a is im portância a um a parte da resp osta e n ão a outra. O p si­
A C lín ica d e H eid elb erg , na A lem an h a, tev e, h istoricam en te, um a quiatra passa a p en te fin o a con v ersa co m o p acien te, entre outras
esp ecia l im p ortância na ten tativa de d escrev er as d o en ça s m en tais e co isa s para cham ar alu cin a çõ es esq u izo frén ica s às tais v o z e s q u e falam
o s seu s sin a is e sin tom as. E m particular, n ela se esta b e lec eu que a na 3 .a p esso a .
escu ta d e v o z e s falan d o na terceira p esso a , co m o p a cien te em v ig ília O que vem a ser ser-se hum ano é, sem d ú vid a, extrem am en te
total, era d ia g n ó stica de esq u izo fren ia (a p rop ósito, “E u so u ” está na c o m p le x o , e m uita da ciê n c ia qu e está por detrás da M ed icin a P sic o ­
prim eira p esso a ; “T u é s ” está na segunda; “E le ou E la é ” está na ló g ica im p lica um a ten tativa d e com p reen d er co m o é q u e um ob jecto
terceira p e sso a ). T am b ém se afirm ou que o d ia g n ó stico fic a v a con fir­ fís ic o - o céreb ro - p rod u z o s p e n sa m en to s, a im a g in a çã o e as
m ado se as v o z e s p areciam pertencer a grup os d e p e sso a s falando v iv ê n c ia s. V ista s assim as co isa s, é claro q u e, qu and o o s m eca n ism o s
um as co m as outras acerca d o ouvidor, esp ecia lm en te se fa zem co m en ­ fís ic o s não fu n cion am co m o d e v e ser, o m esm o d everá a con tecer aos
tários d ep recia tiv o s a seu resp eito. A m aioria d o s psiquiatras m oder­ p en sa m en to s. E m bora seja an tip ático d izer-se q u e n ão há p en sam en to
n os ainda cla ssifica ria co m o esq u izo frén ico tod o aq u ele q u e referisse retorcid o sem m o lécu la s retorcid as, um a c o n c ep çã o assim n ão d eix a
ter ex p eriên cia s destas. M uita g en te p od e achar estran ho que esta de ser um a das atitud es p o ssív e is perante a d o en ça m en tal. D e um
p reocu p ação co m o d ia g n ó stico p o ssa sig n ifica r qu e o m éd ico esteja m o d o m uito sim p lista, p o d em o s ob servar isso m esm o em p acien tes
m ais in teressad o na form a co m o as v o z e s d izem o q u e d izem d o que, q u e ten ham tido um a h em orragia cerebral: a p resen ça d e san gu e no
prop riam ente, naq u ilo qu e ela s realm ente d izem . M as isso d e v e -se aos lad o esq u erd o d o cérebro (d e um a p e sso a dextra) lesa a cap acid ad e de
esfo rço s d o s psiquiatras no sen tid o de esta b elecerem a d istin çã o entre encontrar as palavras correctas para dizer, ain da qu e o p acien te co m -

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preend a p erfeitam en te o q u e lh e d izem . E ste ex em p lo dá um a id eia fazer incorrer em erro. O term o “esq u izo fren ia ” é essen c ia lm en te um
d e co m o a m en te é afectad a p elo fu n cion am en to de determ inadas guarda-chuva qu e se u tiliza para abrigar d eb a ixo d e si um con ju n to
partes d o cérebro. de esta d o s n os q u ais as p e sso a s o u v em v o z e s d e determ inada m an eira
O utra razão para esco lh er o e x e m p lo acim a é assin alar as d iferen ­ e têm d elírios qu e n ão sã o fá c e is d e com p reen d er em fu n ção d o s seu s
tes fu n çõ es d os lad os esq u erd o e d ireito do cérebro. N a m aioria das fundam entos raciais, r e lig io so s ou ou tros. E ssa s ex p eriên cia s e cren ­
p e sso a s, o lad o esqu erd o d o cérebro está d e se n v o lv id o para asp ectos ças p od em m uitas v e z e s ced er a certas drogas a n tip sicóticas, em b ora,
co m o a lin g u a g em , a ló g ica , a teoria e a m atem ática; o lad o d ireito in evita v elm en te, à cu sta d e d eterm in ad os efe ito s colaterais - e sp e c ia l­
tem m ais a ver co m a arte, a im ag in a çã o e as rela çõ es esp a cia is entre m ente certos m o v im en to s corp orais in d esejá veis.
ob jecto s. T em h avid o um a in v estig a çã o co n sid erá vel para tentar apu­ Q uando a vid a d e u m a p e sso a co m outrem se to m a p en o sa ou
rar esta s id eias, m as é d ifíc il ser-se ca teg ó rico - antes do m a is, porque m esm o im p o ssív el por ca u sa d essa s v o z e s e d essa s id eias, o s p siq u ia ­
há m uitas varia çõ es individuais: o co m a n d o da fala n em sem p re se tras, e bem , sen tem -se ju stific a d o s ao fazerem o q u e pu derem por
d e se n v o lv e n o lad o esq u erd o d o cérebro, m esm o em p e sso a s dextras. m elhorar a situ ação. M as q u an d o n ão há in có m o d o para o próprio n em
A in d a assim , todas as id eia s n o v a s q u e v ã o surgindo a resp eito da para o s outros, o sim p les fa cto d e o u vir v o z e s não autoriza a in terven ­
fu n ção cerebral têm sid o estu d ad as ao porm enor, n o sen tid o d e se ção, esp ecia lm en te se n ão se tratar d e um sin al p reco ce d e um a e v o ­
d esven d ar a natureza da esq u izo fren ia . lução m ais grave.
H á provas d e q u e a lesã o ou m alform ação d e determ inadas partes
d o cérebro, em esp ecia l d o ch am ad o lo b o tem poral, ten de a produzir
e fe ito s p s ic o ló g ic o s ca ra cterístico s, in clu in d o a lu cin a çõ es - parti­ Análise funcional
cu larm en te em p e sso a s co m ep ilep sia .
A s p esso a s co m d e fic iên cia s d o céreb ro esqu erd o ten dem a ter um Jan van Laarhoven
forte sen tid o do d estin o p e sso a l, um a grande cu riosid ad e filo s ó fic a e
fortes escrú p u los m orais. S ã o cu rio sid a d es interessan tes d este tipo, A tecn o lo g ia m od ern a v e m to m a n d o cad a v e z m ais fá cil a n o ssa
nas rela çõ es entre fu n çõ es cerebrais e v iv ê n c ia s, qu e p o d em fa c ilm e n ­ co m u n icação a lo n g a d istâ n cia un s co m o s outros. U m as v e z e s, essa
te in flu en ciar o psiquiatra quando en trevista um p acien te. Será que com u n ica çã o tom a a fo rm a d e d iá lo g o , por ex em p lo através d o te le ­
esta p esso a , e le ou ela tanto fa z, p o d e ter um a m a n ifestação p sic o ló ­ fo n e, e outras v e z e s trata-se d e m en sa g en s u n id ireccion ais, por e x e m ­
g ic a d e um quadro fís ic o cerebral - u m a ep ilep sia tem p oral, por p lo através da rádio ou da tele v isã o . P orém , co m o se fora um a lei da
ex em p lo ? S e a ssim é, e s s e quadro fís ic o p o d e ter m ais im portância do natureza, p arece q u e, à m ed id a q u e se ex p an d e essa fa cilid ad e d e
q u e as d ificu ld ad es da vid a q u e o p a cien te esteja ev en tu a lm en te a com un icar à distân cia, m a is as p e sso a s vão sen tin d o n ecessid ad e d e lh e
atravessar. pôr lim ites. A n e c e ssid a d e d e p az, tran qu ilidade e p rivacid ad e, a
“E sq u izo fren ia ” é um a palavra tão con creta na n o ssa lín g u a co m o n ecessid ad e d e um e sp a ç o p e sso a l reservad o, é , m uitas v e z e s, con tra­
“bruxa” ou outra palavra qualquer. N o entanto, é frequente esq u ecerm o- riada p ela falta d e m e io s fin a n ceiro s, p e la sob rep op u lação ou , sim ­
-n os d e q u e as palavras n em sem p re representam co isa s esp e cífica s; p lesm en te, p ela in trom issão d a q u eles qu e n o s rodeiam .
algu m as rep resentam conjun tos d e co isa s co m o , por e x e m p lo , a p a­ N o ca so das p e sso a s q u e o u v em v o z e s, lid a -se co m um a form a de
lavra “ a n im ais”. E claro que sem palavras ficaríam os lim ita d o s na com u n ica çã o q u e raram en te é volu n tária ou desejad a. P elo m en os ao
n o ssa cap acid ad e d e pensar, m as tam b ém é claro que ela s n o s p o d em p rin cíp io, as v o z e s sã o g era lm en te exp erim en tad as co m o v in d o d e

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fora, co m o sen d o intru sivas; apresentam um a co m u n ica çã o unilateral da vid a d o p acien te. E tam b ém a form as d e ab u so (con tin u ad o), de
q u e, n estas fa ses, to m a im p o ssív e l qualquer d iá log o . É p reciso q u e se natureza sexu al ou outra, durante a in fân cia (v er S e cçã o Traum as
d iga qu e esta perda do co n tro le sobre a privacidad e p o d e provocar deste C ap ítu lo).
grande an sied ad e, in d ep en d en tem en te d e o con teú d o das v o z e s ser U m a m aneira d e interpretar a escu ta d e v o z e s é in clu í-la s nas
am eaçador ou não. P erturbações D isso cia tiv a s, ou seja, en cará-las co m o um a form a de
A lgu n s ou vid ores d e v o z e s co n seg u em encontrar ex p ed ien tes que os organ ização através da qual a m en te se fragm en ta em várias partes,
ajudam a lidar co m as v o z e s que o u v em e é p o u co p rov á v el que de um a form a m a is v isív e l do qu e é habitual. N o d ecu rso d e qualquer
o s p o ssa m o s en con trar n o s lo c a is o n d e se p restam cu id a d o s p s i­ ob servação, o terapeuta d e v e estar alerta para ou tros sin a is d e pertur­
q u iátricos - tal c o m o su c e d e , a liá s, c o m a q u eles q u e p rocuram bação d isso cia tiv a , co m o a alteração da p ercep ção tem p oral (in clu in d o
delib erad am ente ter ex p eriên cia s d e v o z e s e , ainda, a q u eles outros que m esm o a perda da n o çã o d o tem p o), a u tilização d o “N ó s ” m ajestático,
encaram as v o z e s c o m o fen ó m en o s p o sitiv o s. O s psiquiatras são c o n ­ a n eg a çã o da e v id ên cia d o com p ortam en to próprio e , ainda, sen tim en ­
su ltad os por p e sso a s q u e, d e um a form a ou de outra, se sen tem per­ tos de d esp erso n a lização e d esrealização. S e porven tu ra h ou ver gran­
turbadas p elo fa cto d e o u vir v o z e s o u q u e têm co m ela s um con tacto des flu tu a çõ es ulteriores d e sin tom as p siq u iátricos ou d e d ia g n ó stico s,
d ifícil. há ra zões acrescid as para se pensar qu e esta m o s a lidar co m um a
M as isto n ão n o s d e v e fazer cair na tentação d e tirar co n c lu sõ e s perturbação d isso cia tiv a (ver S e cçã o P ersonalidade dissociada d este
apressadas: o n o sso o b je ctiv o não é reduzir as v o z e s ao silê n c io , C apítu lo).
m esm o q u e iss o fo s s e p o ssív e l. O im portante é ajudar o p a cien te a À s v e z e s , a fu n ção d esem p en h ad a p elas v o z e s é im ed iatam en te
aum entar o seu co n tro le sobre as v o z e s, tirando o m á x im o partido de v isív e l, em term os da eco n o m ia m ental d o p acien te; na verd ad e, o
um a situ ação p o ten cia lm en te d esvan tajosa. O m eu contrib uto para p acien te é ca p az d e ex p lica r essa fu n ção ao terapeuta, lo g o à prim eira
este livro con sistirá em deixar aqui um certo núm ero d e ex p ed ien tes sessão . N o en tan to, o m a is p rovável é qu e o p a cien te so zin h o não
qu e ju lg o ú teis, ten d o aqu ela fin alid ad e em vista, e sugerir algu ns interprete as suas v o z e s, em term os da fu n ção q u e d esem p en h a m , ou
instrum entos que p od erão servir para d esen v o lv er o d iá lo g o co m as não seja ca p az d e a descortinar. A s p erturbações d isso cia tiv a s não
v o z e s (e a resp eito das v o z e s), co m v ista a detectar, em co o p eração aparecem sem m ais n em m en os: m uitas v e z e s têm um a fu n ção pro-
co m o p acien te, o sig n ifica d o e a fu n ção das v o z e s na v id a d e quem tectora. P or isso , m esm o qu e o terapeuta tenha um a id eia clara sobre
as ou ve. o sig n ifica d o e a fu n ção das v o z e s, n ão d everá con fron tar im ed iata­
Sem pre que o p a cien te so licita a ajuda do terapeuta, a sua história m en te o p acien te c o m ela. Para fazer um a id eia da fu n çã o das v o z e s,
clín ica p siq u iátrica, o seu ca so , vai passar a letra de form a, o q u e tem é im portante ter em co n sid eração as seg u in tes q u estões:
a fin alid ad e de s e saber s e por detrás das v o z e s não estará um quadro
d e an sied ad e, d e d ep ressã o ou de p sic o se (isto é, o resu ltad o ca ó tico
da tentativa de p rocessar determ inado tipo de in form ação). Q ualquer C ircunstâncias
d estes quadros p o d e co n d u zir à p rescrição de p sico fá rm a co s ou de
qualquer outra form a d e tratam ento. Para se pod er d etectar um a p o s­ - Q u and o e em q u e circu n stân cias surgiram as v o z e s p ela prim eira
sív e l d o en ça orgân ica, é igu a lm en te im portante um a h istória c lín ica vez?
m éd ica qu e in clu a o ex a m e físic o . - A s v o z e s são as m esm a s q u e da prim eira v ez? S e n ão, o qu e é
A o in vestigar a p erson alid ad e, o terapeuta terá de dar u m a esp ecia l que m udou?
aten ção a tod o e qu alq uer acon tecim en to d ifícil e m arcante da história - A s v o z e s ocorrem em d eterm in ad o tip o d e o ca siõ es?

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- A s v o z e s ocorrem em determ inado tipo d e lugares? C onteúdo
- O correm quando o p acien te está em determ inada com pan hia?
- O correm durante determ inado tipo d e activid ad e? - E m geral, o p acien te exp erim en ta as v o z e s co m o p o sitiv a s, ou
- O correm quando o p acien te está so b d eterm inado tipo de hum or? negativas?
- A s v o z e s têm todas o m esm o sig n ifica d o em o c io n a l, ou e sse
sig n ifica d o é variável?
Id en tid a d e - A s v o z e s têm um p rop ósito d efin id o?
- A s v o z e s co n têm um a m en sa g em clara, ou am bígua?
- A s v o z e s id en tificam -se? - A s v o z e s a v isa m o p acien te a resp eito d e certas co isa s?
- A s v o z e s são d e p esso a s, ou de esp íritos? - A s v o z e s in citam o p a cien te a fazer certas co isa s? S e sim , e sse s
- S ã o m ascu lin as, ou fem in in as? in citam en tos v isa m actos con cretos?
- S ã o de p e sso a s co n h ecid a s, ou d esco n h ecid a s?

O rganização interna P ap el das vozes

- Q uantas v o z e s sã o ao todo? - A s v o z e s sab em ou fa zem algu m a c o isa q u e o p a cien te n ão seja


- A s v o z e s sab em da ex istên cia um as das outras? capaz de sab er ou fazer?
- A s v o z e s form am entre si um siste m a organizado? - O p a cien te sab e ou fa z algu m a c o isa q u e as v o z e s n ão sejam
- A p areceram todas ao m esm o tem p o, ou um as prim eiro e outras cap azes d e sab er ou fazer?
d ep o is? - O que m u d ou na vid a do p acien te d e sd e q u e apareceram as
- A s v o z e s são todas p esso a s, ou todas esp íritos? v o zes?
- O q u e m udaria na vid a d o p acien te se as v o z e s d esap arecessem ?
C ontrole
C om b ase nas resp ostas a estas q u estõ es, ten tarem os d escortin ar o
padrão das v o z e s e explorar a sua fu n ção e sig n ifica d o na vid a do
- O p acien te sen te q u e as v o z e s v êm de dentro, ou d e fora?
- E stá d ep en d en te das v o zes? p acien te. S e p o s s ív e l, e co m a ajuda d o p acien te, o terapeuta deverá
tentar exp licita r claram en te essa fu n ção. O s d o is em con ju n to tentarão
- E cap az, deliberadam ente, de fazer co m q u e as v o z e s en trem em
acção? defin ir até q u e p on to essa fu n ção é a ceitá v el para a p e sso a do p a­
- P ressen te a entrada das v o z e s em a cção? S e sim , o que é que cien te. S egu id a m en te, d everão avaliar o grau d e ê x ito ou in êx ito das
a co n tece? E capaz de entrar em d iá lo g o co m elas? estratégias adop tadas p elas v o z e s. E , fin alm en te, d everão avaliar se há
- A s v o z e s o b ed ecem -lh e quando as m anda calar? ou não m aneiras m elh ores ou m ais fá ceis d e alcan çar o s o b jectivo s
- E cap az de não lh es ligar? prop ostos.
- A s v o z e s ocu p a m -lh e a m en te por co m p leto ? E m q u e m ed id a aqu elas q u estõ es n o s p o d em ajudar a clarificar as
- A s v o z e s são se n sív e is aos argum en tos d ele? fu n çõ es das v o z e s? B em , há bastantes lin h as d e referên cia teórica que
- O p acien te é cap az de d eso b ed ecer às ordens das v o zes? n os p od em orientar e , de um m o d o geral, só p o d em o s encontrar um

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padrão se co n h ecerm os a referência teórica corresp on d en te. S e tiver­ zação verbal. S ob circu n stân cias redutoras da an sied ad e, co m o é o
m os várias lin has d e referên cia, p o d em o s ser m a is fle x ív e is na n ossa ca so de um a terapia estruturante, p o d e estim u la r-se um a troca m ais
in terven ção. Isto sig n ific a que o p acien te n ão d e v e ser v isto apenas livre d e inform ação entre as m etad es esq u erd a e direita do cérebro.
na p ersp ectiv a do terapeuta. P elo contrário, d e v e -se , tanto quanto
p o ssív e l, atender à ex p eriên cia p esso a l e à lin g u a g em do p acien te. N o
en tan to, um a dada lin ha de referência p o d e ser u tilizad a c o m o orien ­ Teoria freu d ia n a do id, e g o e su p er-ego
tação g en érica e d e ap oio às in terven ções q u e v isa m ajudar o p acien te.
V eja m o s em seg u id a algu m as das fu n çõ es m ais co m u n s das v o z e s, E ste m o d elo assen ta n o p ressu p o sto d e q u e a p erson alid ad e é
ten d o em con ta as linhas de referência teórica m a is im portantes. A s com posta por id, ego e super-ego. E m geral, as d elib erações do ego
p ersp ectiv a s a segu ir descritas de m od o n enh um se ex clu em m utua- são experim entad as c o m o e g o -sin tó n ica s (isto é, co m o E u) e são a cei­
m en te; antes se fundam entam , em geral, e m m a is d o q u e um a lin ha táveis para o p acien te (em b ora se o b serv em e x c e p ç õ e s a esta regra em
d e referên cia ao m esm o tem po. m uitas perturbações d isso cia tiv a s). A ssim , h ab itualm ente, o ego não
tem n ecessid a d e d e se exprim ir so b a form a d e um a v o z . A s v o zes
podem em ergir do id quando d eterm in ad os im p u lso s p rim itivos não
T eoria freu d ia n a do inconsciente são aceites p elo super-ego\ e ssa s v o z e s p o d em en tão ser ex p erim en ­
tadas co m o ten tações d o d iab o, p or e x em p lo . A s v o z e s acusadoras
P artirem os do p ressu p osto da ex istên cia da c o n sc iê n c ia e d o in­ p od em ser vistas co m o oriundas d e um super-ego rigoroso e austero
co n scien te. A lg u n s m od ern os d efen so res d este m o d elo acreditam que que exprim e críticas sobre o s im p u lso s d o id - críticas q u e, send o
o in co n scien te se lo c a liza no h em isfério cerebral d ireito, q u e apenas d em asiado severas para qu e o ego as a ceite, p od em en tão ser e x p e ­
d isp o n ib iliza ao h em isfério esqu erd o verb al um a parte da inform ação rim entadas co m o a v o z d e um D e u s ju lgad or. N u m tom m ais c o n s­
q u e co n tém . S e não estiv er em co rresp on d ên cia co m aqu ilo que o trutivo, há tam bém v o z e s co n selh eiras q u e se p resu m e oriundas do
h em isfério esq u erd o pensa, a inform ação oriunda d o h em isfério d i­ ego e do ego-ideal (o qual, co m a co n sc iê n c ia , p rovém do super-ego).
reito é exp erim en tad a co m o eg o -d istó n ica (isto é , co m o n ã o -E u ), e é
escu tad a, por v e z e s , sob a form a de v o z e s. N a h ip n o se ten tam os Exemplo
esta b elecer con tacto directo co m a m etad e d ireita d o cérebro, evitan d o
ou p assan d o ao lado da m etad e esquerda. S e e s s e con tacto se puder Uma moça de 16 anos masturbava-se desde os 3. Um dia, a mãe entrou
efectu ar, será en tão p o ssív e l exercer a lgu m a in flu ên cia. no quarto sem avisar e apanhou-a a masturbar-se; corando de embaraço, a
A natureza da organ ização-in form ação da m etad e direita do cére­ mãe deu meia volta e retirou-se sem dizer uma palavra. A partir desse dia,
bro (p ro cesso s prim ários, pré-verb ais ou p r é -ló g ic o s) sig n ifica q u e a
a moça passou a ouvir a voz da mãe e a duma mulher desconhecida, dizendo-
-Ihe que seria queimada viva à vista de toda a gente. Durante a terapia, a
m elh or m aneira d e exercer in flu ên cia sobre e la é através de p ro cesso s moça foi recebendo informação objectiva e factual sobre o desenvolvimento
do m esm o tipo, ou seja, por ex em p lo , através d e m etáforas, de sons sexual normal e leu o Relatório Hite. Decidiu transmitir essa informação às
n ão-v erb a is, de m o v im en to s, etc. É tam bém p o ssív e l à m etad e direita vozes, mas na noite em que o tentou fazer, as vozes desapareceram e nunca
do céreb ro com p reen d er frases bastante sim p les; a cap acid ad e de mais voltaram. A moça deu a ler à mãe um livro sobre o assunto e a mãe,
co m p reen sã o p a ssiv a é superior à activa. E ste m o d elo p o d e aplicar- por sua vez, revelou-lhe um pouco do seu próprio desenvolvimento sexual,
-se n o ca so de v o z e s que tenham tam bém um b a ix o grau de organ i­ que havia sido marcado por um forte preconceito religioso.

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N o relacion am en to co m as v o z e s originárias do id, é co n ven ien te P erspectivas sociais
utilizar argu m en tos m orais o u práticos. C om as v o z e s originárias do
super-ego, u tilizar-se-ão argum en tos d e co m p a ix ã o e clem ên cia , se N este ca so , as v o z e s rep resen tam u m su b stitu to d e co m p an h ia. S e
n ecessário ap oiad os por cita çõ es b íb lica s (por ex em p lo , a parábola do um p acien te co stu m a sen tir-se só , p o d erem o s ajud á-lo a analisar se na
B om S am aritano) ou através d e um a d escrição m ais realista de um a sua vid a ex istem op ortu n id ad es d e aum entar as h ip óteses d e esta b e­
figura paterna en ten d id a c o m o p resen ça pu n itiva (“Já p en sou q u e o lecer con tactos in terp esso ais. P o d e p on d erar-se a p o ssib ilid a d e d e o(a)
seu pai p o d e tam bém ter fe ito o m esm o ? ”, etc.). p a c ie n te fa z e r p a rte d e c lu b e s o u a s s o c ia ç õ e s o u d e p rocu rar
P a rece-m e co n v en ien te m anter um a certa distância entre as várias com pan heiro(a) através d e um a a g ên cia m atrim onial ou d e en con tros.
co m p o n en tes estruturais; o m ais im portante é tentar co n seg u ir um a
b oa co m u n ica çã o entre ela s e dar a cada co m p o n en te um a ju sta par­ Exemplo
cela d e aten ção.
Um marroquino, de 34 anos de idade, vem perdendo progressivamente
as suas ligações com o mundo circundante. Considera que 90% da população
O rganização dissociativa é desonesta e receia tornar-se agressivo, como já havia acontecido antes, e,
assim, poder cometer actos contra as pessoas ou contra a propriedade.
N a b ase desta p ersp ectiv a está o p ressu p osto de que a p erson ali­ Quando está sob pressão, vê pessoas minúsculas em redor dele, que lhe
dade alb erga no seu se io um conjun to de sub person alidad es m ais ou falam na sua língua e lhe trazem simpatia e paz. Ele acha o tamanho dessas
m en os separadas, cada um a co m um p ro cesso próprio d e aprendiza­
pessoas mais atraente que o do mundo normal. Não se considera louco, mas
sente-se com pavor de ficar louco.
g em m ais ou m en os d e se n v o lv id o . Q uanto m ais estreitam en te inter­
ligad as estiv erem essa s su b p erson alid ad es, m ais o seu hosp ed eiro se T erem os de d istin gu ir cu id ad osam en te ca so s c o m o e ste d o b em
sentirá um todo unitário. Q uanto m ais separadas estiv erem , m aior será
co n h ecid o fen ó m en o , vu lgar entre as crian ças, d o com p an h eiro faz-
o esfo rço n ecessário a n ív el d o d iá log o interno e m ais subpersonalidades
-d e-con ta (que p o d e ser u m a p esso a , um anim al ou um a p erson a g em
serão v iv en cia d a s c o m o n ão-E u . A ocorrên cia de um a organ ização
d isso cia tiv a da p erson alid ad e d ep en d e da p red isp o sição inerente e da de um con to d e fa d a s), co m o qual só a crian ça é cap az d e com u n icar.
n ecessid ad e d e fazer fren te a q u aisq uer exp eriên cias traum atizantes E stas com p an h ias im agin árias n ão são em si m esm a s anorm ais; só é
(ver S ecçã o Traum as d este C apítu lo). n ecessário tratam ento se a crian ça rom per co m o m u n d o real. S e um
E m geral, o tratam ento d irig e-se a um a m elhor co m u n ica çã o entre dado p acien te reco n h ece as v o z e s qu e o u v e co m o sen d o d e alg u ém
as partes d issociad as; por outras palavras, para um m elh or eq u ilíb rio co m quem gostaria d e ter um a relação estreita na vid a real, en tão
entre o s d iv erso s con stitu in tes e para um reforço da sub person alidad e torna-se um a q u estão d e teste da realidade. C o m p reen siv elm en te, a
principal. A m inha p referên cia vai n o sen tid o de se prom over um parte em cau sa raram ente está d isp osta a en v o lv er-se; m as, se puder­
“en con tro”, em qu e cada u m a das partes p o ssa ter um a palavra a dizer, m os ganhar a sua co o p era çã o , p od e ser útil proporcionar um d eb ate
dando m ais tem p o para falar a um a parte e m en os a outra; nestas durante a terapia em q u e esteja realm en te p resen te essa p esso a . M esm o
“a sse m b leia s”, o “p resid en te” n e cessita hab itualm ente d e um a p o io en tão, n o entanto, o p a cien te p o d e atribuir por v e z e s m aior realid ad e
in ten siv o por parte d o terapeuta. P od em tam bém u tilizar-se outras às v o z e s do qu e à p e sso a da vid a real: p o d e, por e x em p lo , d izer que
m etáforas: o s m em b ros d e um a orquestra, de um a em p resa, de um a essa p esso a se está a con ter d ian te do terapeuta e, por isso , n ão d iz
fam ília, etc. a verd ad e toda.

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Exemplo vive um conde, e o nome do seu filho é Jantje”, seguido de uma terrível
gargalhada. Nessa voz ela reconhecia a voz do marido.
Há 7 anos atrás, esta mulher de 29 anos teve um romance passageiro com Após uma troca de impressões com o terapeuta, a senhora escreveu três
um artista. Conserva ainda o auto-retrato dele como recordação, e quando cartas ao marido. Na primeira, confessou a sua infidelidade; na segunda,
pega no quadro estabelece contacto paranormal com o artista: a face do relatou todos os belos momentos que ambos tinham partilhado no casamento;
auto-retrato mexe e ela fala com ele. Por este processo, ele garantiu-lhe que na terceira, falou dos planos que vem fazendo para a vida que lhe resta viver.
um dia casará com ela e que as antigas namoradas nada significam para ele. Queimou as três cartas no jardim, debaixo do banco onde ambos costuma­
O artista concordou em falar com ela e com o terapeuta simultaneamente e vam sentar-se juntos. Depois disso nunca mais voltou a ouvir a voz do
em tentar convencê-la de que as expectativas dela são irrealistas. Ela então marido.
destruiu o auto-retrato, se bem que mais tarde o tentasse restaurar.
Recentemente ela tem tido dúvidas sobre a possibilidade de esse casa­ O s fam iliares so b rev iv o s p od em por v e z e s ou vir v o z e s a falar
mento se realizar; de momento põe a hipótese de fazer votos e entrar para d aq u ilo a q u e se atribui a resp on sab ilid ad e da m orte; isso é parti­
um convento. Ouve também a voz de Deus: Ele diz-lhe que está ansioso por cu larm en te co m u m n o caso da m orte d e um filh o . A crian ça p od e
recebê-la como Sua noiva, assim que esteja completamente limpa de desejos
pecaminosos. Ela não está preparada para tomar neurolépticos ou lítio. chorar pu n jen tem en te do outro m un do, im p loran d o a p rotecção qu e o
pai (a m ãe) fo i in cap az d e lh e dar em vid a . A tarefa do terapeuta é
co lo c a r a situ ação so b um a p ersp ectiva realista; n estes c a so s, p od em
L uto ser ú teis o s rituais d e pranto, particu larm ente n o fim da terapia.
É tam bém m u ito co m u m ser o u vid a a v o z d o m orto quando o
N ão sã o raras as p e sso a s qu e, im ed iatam en te ap ós a m orte d e um cô n ju g e so b rev iv o se prepara para dar in ício a um a n o v a relação.
com p an h eiro, parente ou a m ig o íntim o, o u v em e fec tiv a m en te o m orto A qui, o terapeuta p od e ajudar a trabalhar algu ns p on tos d e am bivalên cia.
falar. E in teressan te notar co m o , m uitas v e z e s, a v o z dá co n selh o s ou S e a relação em vid a era b asicam en te b oa, o (a ) m orto(a) co m certeza
co m o , p e lo contrário, lh e p ed em co n selh o s a ela; o padrão co n siste que dará a sua b ên çã o , se estiv er co n v en cid o (a ) d e q u e essa n ova
freq u en tem en te em palavras de con forto e d e carinho. E m ca so s d e s­ relação tem futuro.
tes, n ão v e jo n e cessid a d e nenhum a de intervir. O utra co isa , e v id e n ­
tem en te, é se o m orto se transform a num torm ento, sem pre a repisar
q u estõ es q u e tinham p erm an ecid o em segred o ou q u e eram tabu antes A uto-exaltaçã o
da m orte. O terapeuta p od e ajudar, en corajand o o p a cien te a levar este
tipo d e d iá lo g o s até ao fim , de um a v e z por todas, em lugar de os E m certos c a so s, há q u em receb a d irectam en te d e D eu s, ou de
interrom per sem p re n o m esm o pon to. a lgu m a p erson agem h istórica fam osa, um a m issã o im portante. N o seu
con ju n to, e ssa s m issõ e s são p o u co v iá v eis na prática: m uitas v e z e s são
Exemplo d e tal natureza q u e, se o p acien te em b arcasse n ela s efectiv a m en te,
trariam co n seq u ên cia s m u ito d esagrad áveis.
Uma senhora de 64 anos procura ajuda. O marido morrera de ataque S e e ssa s id eias d e gran d eza forem rejeitad as b ru scam en te, há um a
cardíaco sete meses antes, depois do que ela considera ter sido um bom p rob ab ilid ad e razoável d e o p acien te se sen tir in com p reen d id o, a lie­
casamento. No entanto, ela nunca ousara dizer-lhe que o segundo dos seus nad o e insultado; por d eb a ixo da capa da au to-exa lta çã o estã o , em
quatro filhos - o único filho varão - não era filho dele, mas o resultado de
um romance passageiro que tinha tido na Haia. Nos últimos quatro meses geral, sen tim en to s d e inferioridad e. Q u er-m e parecer qu e a m elhor
vinha sendo atormentada todas as noites por uma voz cantando: “Na Haia m aneira d e reso lver estas situ a çõ es é analisar co m o p acien te os pro-

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p ó sito s da en tid ade que lhe co n fio u a m issã o e n ego cia r co m as v o zes tentativas. Durante muito tempo, recusava dizer mais do que umas quantas
um o b jectiv o m ais e x e q u ív e l, e m a is a ceitá v el m oralm ente, e só então palavras, e mais tarde soube-se que estava proibida de falar pelas vozes que
tentar cu m pri-la. ouvia. Perdeu 16 kg de peso desde que as vozes começaram a dizer-lhe
que tudo o que comesse se transformaria em lombrigas. O avô, de quem era
Exemplo muito chegada, faleceu quando ela tinha 13 anos; no funeral, ela sentiu-se
como que atraída para o fundo da campa. Ela disse que o avô fora sepultado
Um jovem de 29 anos desistiu, há pouco tempo, do seu curso de Histó­ ao lado da avó e que agora ouvia as vozes de ambos, à noite, pedindo-lhe
ria na Universidade. Descobriu que não conseguia concentrar-se nem esta­ que se deitasse no meio deles. Durante a terapia foi incitada a submeter as
belecer contactos com os seus colegas de curso e voltou para casa dos vozes a um esforço de crítica: se o que elas dizem é bem intencionado, não
pais, onde passa horas e horas no computador. Ouve uma voz que lhe diz porão qualquer objecção a que se esclareça aquilo que as move. Para aju­
que ele é a reincarnação de Mussolini e que tem por missão unificar a dar, foi-lhe prescrito um neuroléptico dépôt.
Europa. Além de treinar os seus reflexos com os Invasores do Espaço, es­
creve a pedir informações sobre sistemas de armamento e está a tentar ser A s ordens d e a u to -agressão pod erão entroncar ainda noutro tip o d e
aceite nos Comandos. co n flito s. Por e x em p lo , as v o z e s p o d em d izer q u e isso é n ecessá rio
Trabalhando sobre a hipótese de ele procurar uma solução final para o para salvar a fa m ília inteira, o u algu m parente, d e um a grande tragé­
seu próprio caos interior e para a sua vida social desorganizada, a aborda­
gem terapêutica tem sido a de prosseguir passo a passo um programa de dia. À s v e z e s, é co stu m e a co n tecer em crianças d e pais q u e estão a
reinserção social. Em resultado disso, ele e os seus pais têm agora perspec- divorciar-se. N e ste s c a so s, a m elh or o p çã o é organizar se ssõ e s co m
tivas mais realistas e as vozes tornaram-se menos intrusivas. toda a fam ília.
E stas situ a çõ es tam bém p o d em ser en ten d id as sob outras p ersp ec-
tivas que são apresentadas n e ste C apítulo: por ex em p lo , p od em ser
A uto-agressão ordens p roven ien tes d o su p er-eg o para elim in ar im p u lsos d o id.
Q u and o as v o z e s m andam a p e sso a agir contra si própria e até
su icid ar-se, em c a so s extrem os, esta tem hab itualm ente co n sciên cia A spectos m etafísicos
d e estar num estad o de hum or d e fu n d o d ep ressivo , q u e às v e z e s se
fa z acom panhar de id eias delirantes de cu lp a ou de c o n v ic ç õ e s niilistas. O ou vid or d e v o z e s p o d e d e se n v o lv e r o u adoptar p ersp ectivas
O s sen tim en tos d ep ressiv o s tam bém se p o d em d isso cia r por com p leto. m eta físicas ou m ística s m u ito variad as. P or e x em p lo , p od e en carar-se
A tarefa do terapeuta será a d e o ferec er ap oio à parte saud ável da co m o um eleito ou p roteg id o , a q u em foram co n ferid o s p od eres e s ­
person alid ad e - qu e p od e estar representada por um a v o z , que p od e p eciais e a qu em foram p rom etid as recom p en sas; m as, para q u e isso
ser encorajada. A n e g o cia çã o co m v o z e s destrutivas é m ais produtiva se verifiq u e, pod erá ter d e su b m eter-se prim eiro a d eterm inado tip o
d o q u e qualquer tentativa de as ignorar. O s m ed ica m en to s antide- de p ro cesso s e p rovas. E stas p e sso a s têm ten d ên cia a procurar o
p ressores, em p o ssív e l a sso cia çã o c o m o s n eu ro lép tico s, poderão dar co n selh o e a orien tação d e g en te en ten d id a n o sistem a m eta físico
a p o io a essa n eg o cia çã o . adoptado. D o m eu p on to d e v ista , é essen cia l q u e o terapeuta le ig o
Exemplo n estas m atérias se certifiq u e d e q u e o p acien te, n este co n tex to , n ão se
esq u ece da sua saú d e, das su as tarefas diárias e d os seu s con tactos
Uma jovem de 23 anos sofre de depressões desde os 15, e tinha 17 p esso a is. T am b ém é im portante estar atento às arm adilhas co lo ca d a s
quando se tentou suicidar pela primeira vez. Desde então, tem feito outras p ela estrutura p sica stén ica da p erson alid ad e, tal c o m o a d escrev eu o

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p sic ó lo g o e psiquiatra fran cês Pierre Janet (ver a S e cçã o segu in te curem o ap o io e a ajuda de p rofissio n a is e d e so b rev iv en tes n esta área.
d este C apítulo, sobre P erson alida de dissociada). F inalm ente, em tod os o s tratos q u e haja co m as v o z e s , o sen so co m u m
6 o m elhor guia.
C om o tentei dem onstrar, as o p çõ es v iá v eis no ca m p o da ajuda
efectiv a ou do ap oio ao ou vid or de v o z e s depen dem , em grande m edida,
da fu n ção que as v o z e s d esem p en h a m em cada ca so . H á, n o en tanto, A personalidade dissociada
um certo núm ero de lin h as gerais de orientação que se p o d em a co n ­
selhar ao o u vid or d e v o zes: Onno van der Hart
- H ab itualm ente, as v o z e s são um tanto vagas. M uitas v e z e s é
van tajoso encetar um d iá lo g o para lh es pedir escla recim en tos. Introdução
- N o in ício ten d em a surgir m o m en to s d ifíceis; se as v o z e s são
p o sitiv a s, p o d em o s esta b elecer um horário para lh es prestar aten ção. T o d o s n ós n o s relacion am os co m o m un do q u e n o s rod eia d e duas
- S e há m ais d o q u e um a v o z , é im portante ch am á-las ao d iá lo g o m aneiras fu n d am en tais. A lg u m a s das co isa s qu e fa z e m o s n ão p assam
um as co m as outras. S e tiver de haver d iscu ssõ es, ela s pod erão passar- de rep etiçõ es d aq u ilo qu e aprend em os n o passado; outras são ou re­
-se totalm ente entre as próprias v o zes; n em sem pre é n e cessá r io que presentam esfo r ç o s n o v o s e criativos n o sen tid o d e n o s adaptarm os a
o o u vid or se e n v o lv a n essa s d iscu ssõ es. circu nstâncias q u e estão em m utação. E v id en tem en te, o n o sso co m ­
- S e as v o z e s estã o sem p re a rep etir-se, en tão o m elh or será a p o n ­ portam ento é , em regra, um a co m b in ação das duas v ia s. A m aior parte
tar o q u e elas d izem ; a ssim , da próxim a v e z que surgirem , p o d e d izer- das a cçõ es q u e sã o características d e cad a um d e n ó s sã o -n o s m u ito
-se-lh e s qu e já se sab e o qu e têm para dizer. fam iliares; quanto m ais as ex ecu ta m o s au tom aticam en te, m ais elas
- N ã o se d e v e dar d em asiad a im portância ao q u e um a v o z tenha fazem parte da n o ssa p erson alid ad e.
para dizer; cada v o z , d e per si, representa apenas um p on to d e vista , M as tam bém é verd ad e q u e algu m as p e sso a s lev a m a cab o, m ais
nada m ais do q u e isso . ou m en os au tom aticam en te, a cçõ es q u e, na essê n c ia , são caracterís­
- T entar aprofundar o sig n ifica d o sim b ó lico das v o z e s e explorar ticas d ela s, em b ora v iv e n c ie m p en sam en tos e sen tim en to s p e lo s qu ais
ao m áxim o esta via. não se sen tem resp o n sá v eis. E stas a cçõ es, p e n sa m en to s e sen tim en tos
- S e as v o z e s o u o seu con teú d o não forem agrad áveis, o m elh or não são, por a ssim dizer, fu n cio n a is para ela s p e sso a lm e n te. N e sse s
será tratá-las co m o se trata qualquer ruído in cóm od o. Será interessan te ca so s, um a parte da p siq u e fu n cio n a m ais ou m en o s in d ep en d en te da
aprender p ela ex p eriên cia a afu gen tá-las, co m ex p ed ien tes d o género: personalidade c o m o um tod o, m as, n o entanto, é su scep tív el d e in flu en ­
baixar o v o lu m e das v o z e s , fazer m uito barulho, usar auscu ltad ores ciar a m aneira co m o cada um d e n ós fu n cion a co m o in d ivíd u o. E ste
estéreo, prestar a ten ção a outras fo n tes de ruído; procurar um a form a fen ó m en o , cu jo p rin cipal a sp ecto é a d isso cia çã o , tem sid o a lv o de
d e d istracção, e m e sp e c ia l praticar a ctivid ad es física s. um a d ed icad a aten ção n os an os m ais recen tes.

D o m eu pon to de v ista , o o b jectiv o d ev e ser alcançar um m aior D issociação


con trole sobre as v o z e s , para n ão se ficar p rision eiro d o s seu s capri­
ch os; p elo contrário, são as v o z e s q u e d ev em estar ao serv iço de qu em E m 1889, o psiquiatra e p sic ó lo g o fran cês P ierre Janet (1 8 5 9 -
as o u v e. O m eu co n se lh o é qu e, durante este p rocesso , n ão se fiem -1 9 4 7 ) d efin iu dissociação co m o sen d o a fu ga ao co n tro le da p esso a ,
ex clu siv a m en te nas v o z e s, n em tão-p o u co n os livros, m as q u e pro­ no estad o d e alerta p síq u ico habitual do q u otid ian o, d e sistem a s de

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id eia s e, m uitas v e z e s, d o co n h ecim en to. E stes sistem a s d e ideias tecto, observan d o o q u e estava a acon tecer e m b aixo. O s naturais
d irigem a vid a d e cada um d e n ó s a um n ív e l in co n scien te e podem sentim en tos de m ed o, raiva, tragéd ia, etc., a ssim co m o as sen sa çõ es
interferir co m a co n sciên cia quotidiana ou , sim p lesm en te, alternar lísica s d e dor e d e ten são n ão fa zem parte da exp eriên cia tal c o m o ela
c o m ela. O e x e m p lo m ais sim p les da a ctiv id a d e d e sse s sistem a s de ocorreu, dado q u e estavam d isso cia d o s.
id eias é ta lv ez a su g estã o hip nótica, a qual tem e fe ito de um m odo D á -se um a d isso cia çã o m ais co m p leta quando a criança qu e sofre
a u tom ático; o ex e m p lo m ais co m p leto pod erá ser a form a çã o de o abu so co n seg u e d esap arecer m en ta lm en te da cen a por co m p leto .
um transtorno de personalidade m últipla, n o qual a personalidade de um A criança p o d e fantasiar voar p e la ja n e la fora, esco n d er-se atrás d e um
in d iv íd u o se fragm enta num certo nú m ero d e id en tid ad es separadas biom bo, refu giar-se nu m a n u vem e , assim , n ão poderá ter m em orizad o
q u e p o d em co ex istir e em ergir in d ep en d en tem en te um as das outras. um traum a que n ão fo i v iv id o co n scien tem en te. N o en tanto, há p elo
Janet con sid erava um sin tom a p a to ló g ico a ten d ên cia (ou a capacidade) m en os um a outra parte (d isso cia d a ) da person alid ad e qu e v iv e u o
para d isso cia r; p s ic ó lo g o s m o d ern o s c o m o H . e E . F rom m , que traum a co m p leta ou parcialm en te e q u e, p or isso , tev e um certo grau
red escob riram a teoria da d isso cia çã o de Janet, acred itam q u e se trata de co n sciên cia d aq u ilo q u e a co n teceu . A h ip n o se o ferec e a p o ssib ili­
d e um fen ó m en o da esfera da n orm alidade - por outras palavras, dade d e in vestigar isso .
qu alq uer p e sso a é cap az, em graus v a riá v eis, de m anifestar essa ten­
d ên cia . A in v estig a çã o m oderna in d ica q u e as p e sso a s que passaram
por ex p eriên cia s particularm ente traum áticas na sua ju ven tu d e d e se n ­ M em órias traum áticas
v o lv erã o , em regra, essa cap acid ad e em grau m a is elev a d o do que as
outras p essoas: p arece, p o is, ex istir um a co rrelação entre o s traum as A ex p eriên cia d isso cia d a n ão se to m a parte integrante da p erso­
e a ten d ên cia para d issociar. nalidade; a sua record ação n ão é arm azen ad a n o b an co da m em ória
da m aneira habitual. E m v e z d isso , a p ercep çã o traum ática fica d ep o ­
sitada n o b an co da m em ória co m o um esta d o em o cio n a lm en te carre­
T raum as e dissociação gad o, q u e p od e ser reactivad o e m circu n stân cias (p recip itan tes) que,
de certo m o d o , ten ham a lg o q u e ver co m determ inado a sp ecto do
O term o “traum a” a p lico u -se in icialm en te às le sõ e s física s e , e fec ti- a co n tecim en to o rigin al. P or e x e m p lo , a m ulh er v io la d a co m um a
v a m en te, ainda h oje se m antém em uso n e ssa a sserção. N o sécu lo XIX, navalha à fren te p od e rem em orar o in cid en te sem pre qu e esteja na
a ex p ressã o “traum a p sic o ló g ic o ” fo i introd uzid a c o m o um a m etáfora co zin h a a cortar leg u m es, e rea g e co m a m esm a an sied ad e e pân ico
para as rea cçõ es d e m ed o e desn orte p rovocad as por um a co n tecim en ­ que sentiu , em b ora d isso cia d o s, durante a v io la çã o propriam ente dita.
to in feliz. P o d em o s d izer que determ inada p e sso a sofreu um traum a A ssim , as m em órias traum áticas n ão são m em órias n o sen tid o
p sic o ló g ic o (ou psicotraum a) quando v iv e u d irectam en te um a co n te­ habitual da palavra, em q u e a p e sso a p o d e rem em orar e contar à
cim en to trágico, fo i testem u nh a d e le ou d e le o u v iu falar, e reagiu co m von tad e um a exp eriên cia; essa s m em ó ria s traum áticas n ão têm qu al­
sen tim en to s in ten sos de m ed o e im p otên cia. E sse s acon tecim en to s quer fu n ção so cia l (n ão e n v o lv e m m ais n in gu ém n o presen te) n em
p od em in cluir aciden tes de v iação graves, roubo, rapto, v io la çã o , abuso têm valor adaptativo em relação às circu n stân cias d o traum a origin al.
sex u a l na in fân cia ou m orte súbita de um fam iliar. E m particular, tem - N ã o representam um a m em ória narrativa m as, antes, estad os v iv en cia is
-se v isto q u e m uitas vítim a s d e in cesto so frem d isso cia çã o durante a d isso c ia d o s. Q u an d o algu m e le m e n to da ex p e riê n cia d isso cia d a é
ex p eriên cia traum ática; algu ns referem , m ais tarde, durante a terapia, reactivad o, o estad o ex p erien cia l em si é au tom ática e v ivid am en te
qu e en q u an to durou a exp eriên cia d o ab u so se sentiam a flutuar no ch am ad o à com p arên cia.

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O fen ó m en o das m em órias traum áticas reactivadas ex p lica por que lig a çõ es. Por v o lta d e 1 9 8 6 , p recisam en te 10 anos d ep o is da p u b lica ­
é q u e tantas p e sso a s traum atizadas reagem tão violen ta m en te em s i­ ção do prim eiro relato p e sso a l, B row n e e F in k elh or esta v a m em c o n ­
tu ações qu e sã o in teiram en te neutras ou p o u ca ten são despertam à d içõ es de proced er à rev isã o d o s resu ltad os d e 14 p rojectos d e in v e s­
m aioria das outras p e sso a s. M u itos p acien tes p siq u iátricos ex ib em tigação nesta área, p rojecto s e sse s q u e tinh am seg u id o , to d o s e le s,
sin tom as que são o resu ltad o de um a traum atização precoce; essa s um a só lid a m eto d o lo g ia d e in v estig ação . Surgiram q u ase lo g o outros
p e sso a s carregam , m uitas v e z e s , um fardo m u ito p esa d o , quer por ter tantos trabalhos.
sid o enterrada a sua p ercep çã o d o traum a, quer p e lo s fen ó m en o s N u m estu d o c o n d u z id o por n ó s, tom aram parte cer ca d e 100
d isso cia tiv o s a sso cia d o s - am bas as co isa s su scep tív eis de não serem m ulh eres, tod as e la s v ítim a s d e ab u so p red om in an tem en te sex u a l
im ed iatam ente co m p reen d id as p ela s outras p esso a s, in clu in d o, por durante a in fân cia, p or parte do pai ou do padrasto, durante um p e­
ex em p lo , os trabalhadores so c ia is q u e lid am co m o ca so . E sta p o d e ríodo de 4 an os o u m ais.
ser um a das razões p ela s q u ais o com p ortam en to e as p ercep çõ es E sta in v estig a çã o b a seia -se n o p ressu p osto d e qu e já esta v a c o m ­
ligad as ao traum a reactivad o lev a m por v e z e s o rótulo d e p sico se; e provada a correlação en tre o abu so sex u a l sofrid o durante a in fân cia
d e fen ó m en o s correla tiv os, c o m o a escu ta de v o z e s, m erecerem o e determ inados sin to m a s p siq u iátricos p osteriores. V ários estu d o s há,
d ia g n ó stico de esq u izo fren ia . A s d isfu n çõ es do transtorno d e p erso ­ por ex em p lo , qu e m ostram q u e as m u lh eres vítim as d e ab u so sexu al
n alid ad e m últipla - m uitas v e z e s co n sid era velm en te m ais variadas - durante a in fân cia têm m a is ten d ên cia a fazer ten tativas d e su icíd io
p assam , a ssim , em claro. do que as outras m u lh eres; outros estu d os en contram um a relação
entre o abuso so frid o e a p resen ça d e perturbações d isso cia tiv a s na
Traumas: um estudo sobre abuso de crianças e alucinações actualidade. N e ste s ú ltim o s estu d o s, as a lu cin a çõ es au d itivas v êm
send o relacion ad as c o m trau m atism os d e in fân cia. A q u estão central
Bernardine Ensink do n o sso estu d o era a segu in te: será qu e as d iversas características do
abu so (sex u a l) durante a in fân cia têm algu m a co rrelação co m os
Introdução sin tom as p siq u iátricos e sp e c ífic o s ap resen tad os na vid a adulta? D o
conjun to d e sin to m a s rela cion a d o s co m o ab u so sexu al na in fân cia
N o s an os m ais recen tes tem vin d o a p u b licar-se um a série d e seleccio n á m o s a q u eles q u e fa zem parte d e quatro grand es áreas: per­
trabalhos sobre o im p acto p s ic o ló g ic o d o abu so sexu al em crianças. turbações d isso cia tiv a s d o estad o da c o n sciên cia , a lu cin a çõ es, auto-
O s prim eiros estu d o s tinham ten d ên cia a tom ar a form a de d o cu m en ­ -agressiv id a d e e ten d ên cia s su icid as.
tos p esso a is, do gén ero “D á U m B eijo ao Papá. B o a N o ite” (K iss C o n cen trar-n os-em os aqu i, em particular, na relação en tre as ca ­
D addy G ood N ight), de L o u ise A rm strong (1 9 7 8 ), e “A C onspiração racterísticas d o ab u so sex u a l na in fân cia e as a lu cin a çõ es aud itivas.
de S ilên cio ” (C onspiracy o f Silence), d e Sandra B utler (1 9 7 8 ). Para efeito s d este estu d o (q u e apenas in clu i vítim a s do se x o fem in in o ),
A estas obras d ep ressa se segu iriam liv ro s e artigos in flu en tes, o abu so sexu al na in fâ n cia d e fin e -se p e lo s seg u in tes critérios:
escritos por terapeutas c o m o H erm an, G elin a, G o o d w in e Su m m it, -p r á tic a s se x u a is q u e in clu e m co n ta cto s corp orais c o m zo n a s
qu e tratavam m u lh eres co m h istória d e abu so sexu al na infân cia. gen itais prim árias ou secu nd árias;
P orém , n em aq u eles relatos p e sso a is n em estas prim eiras o b serv a çõ es - q u e são realizad as em crian ças d e se x o fem in in o co m 15 an os de
clín ica s d e 1981 a 1983 perm itiam g en era liza çõ es em que se p u d esse idade ou m en os;
con fiar sobre o im pacto d e sse s ab u sos, até surgir, um p o u co m ais - levad as a ca b o p or m em b ros da fa m ília ou do círcu lo d e a m ig o s,
tarde, um p eríod o de extraordinário flo rescim en to d e sse tipo de in v es- cuja idade é , p elo m en o s, 5 an os superior à da vítim a.

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Para e fe ito s d este estu d o, d e fin im o s a lu cin a çõ es c o m o quaisquer J. fo i abusada sexualm ente pelo p a i várias vezes, entre os 6 e os
ex p eriên cia s d e tipo p ercep tivo que: 27 anos de idade. D urante a terapia tentou rem em ora r diversos p o r ­
- ocorram na a u sên cia de um estím u lo adequado; m enores em ocionais dos incidentes da infância.
- ten ham a força da p ercep ção real corresp ond ente;
- n ão sejam a c e ssív e is a um co n tro le directo e volu n tário. “Sucedeu, então, uma coisa que me assustou verdadeiramente. Senti que
voltava a ser criança, com o mesmo sentimento de estar presa num túnel -
o sentimento de não poder fugir da situação. Na verdade, não sabia como
N o n o sso estu do, fizem o s a distinção entre vários tip os d e fen óm en os escapar. Era difícil convencer-me a mim mesma de que, há muito tempo atrás,
alu cin atórios: lam p ejo s m n é sico s co m características alu cinatórias, já tinha conseguido escapar.”
a lu cin a çõ es v isu a is e a lu cin a çõ es aud itivas.
A lg u m a s m u lh eres p assam por fa ses na v id a em qu e rev iv em as
EXPERIÊNCIAS ALUCINATÓRIAS Distribuição (N = 97) suas m em órias d e in fân cia co m tal in ten sid a d e qu e n ecessita m da
n % ajuda d e terceiros para discrim inar a realid ad e. T od as as qu e relata­
lampejos mnésicos alucinatórios 33 34 ram e s s e s lam p ejos m n ésico s d isseram q u e e ssa s ex p eriên cia s foram
alucinações visuais 41 42 breves.
alucinações auditivas 37 43
A lucina ções visuais
L am pejos m nésicos com características alucinatórias
F oram relatadas por 42% d os elem en to s da n o ssa am ostra, que
P or lam p ejo s alu cinatórios pretende d esig n a r-se o qu e ta lvez se v iv en ciaram vários tip os d e a lu cin a çõ es visu ais:
p o ssa ilustrar m elh or através d os seg u in tes ex em p lo s: - terrores diu rnos v iv en cia d o s co m o a lu cin a çõ es
- p eríod os d e son a m b u lism o diurno tão v ív id o s co m o alu cin a çõ es
I. fo i ab usa da sexualm ente e m uito m altratada p e lo p a i. E is com o - a lu cin a çõ es a u to scó p ica s (v isõ e s da sua própria p esso a )
descreve um dos seus p ro blem as de hoje: - a lu cin a çõ es v isu a is claram en te relacion ad as co m o ab u so sexu al.
“O mais horrível é que já nem posso olhar para o meu marido. Quando N o n o sso estu d o , 8 m u lh eres referiram ex p eriên cia s alu cinatórias
estou na casa de banho e ele chega, tenho logo que me retirar - para mim
não é o meu marido que chega, mas sim o meu pai. Vejo o meu pai entrar relacion ad as d e algu m m od o, e em m aior ou m en or grau, co m o facto
na casa de banho. Só de pensar nisso fico logo enojada.” de terem sid o vítim a s d e ab u so sexu al.

I. tem tido distorções perceptivas: o aco ntecim ento real (ver o K. fo i, na infância, vítim a de abuso sexua l p o r p a rte do p a i e fo i
m arido) desencadeia um lam pejo m nésico que tra nsform a a sua p e r ­ violada na idade adulta.
cepção.
H á q u em d iga que estes lam pejos m n ésico s p od em ser tão intrusivos “Depois de ter sido violada fui internada no hospital. Durante a estadia
que a p e sso a ch eg a a perder o s seu s pon tos de lig a çã o à identidade lá, recusava-me a comer: via esperma na comida, nas bebidas, via esperma
adulta e p a ssa a sen tir-se n ovam en te criança. por todo o lado.”

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Terrores diurnos na fo rm a de alucinaçõ es visuais A lucinações autoscópicas
C in co m ulh eres referiram terrores diurnos co m con teú d o sem e­ D iz E.:
lhante aos seu s p esa d elo s n octurn os. “Às vezes, quando ando em volta da minha casa, acontece-me dar comigo
mesma em qualquer lado. Quando abro a porta, vejo-me a mim em pé, atrás
H. d isse-n os: dela. Quando essas coisas acontecem, fico muito aflita.”
“Tirlha muitas vezes este sonho terrível, que o meu pai vinha para me
matar. Quando acordava de um desses pesadelos e via o meu companheiro D iz G.:
a dormir a meu lado, não conseguia afastar o pressentimento de que ele me “Enquanto o meu marido teve um affaire, tive experiências muito estra­
queria matar. Durante o dia, sentia que alguém me estava a apertar o pescoço nhas. Via-me a mim própria sentar-me realmente junto de mim. A que se
e que havia monstros a saltar por cima de mim. Isso era mil vezes pior do sentava junto de mim queria suicidar-se, mas eu não.”
que aquilo que o meu pai me fez. Em geral, eu acordava porque gritava (muito
alto, pensava eu), mas ninguém me ouvia. Na realidade, não gritava assim tão
alto e tenho a certeza de que alturas houve em que esses gritos não passavam D iz L.:
de sonhos.” “Nos sonhos e nos lampejos mnésicos que tinha, encontrava-me comigo
própria criança. Eu pegava em mim-criança pela mão e dizia-lhe ‘Vou tomar
Sonam bulism o com alucinações visuais conta de ti’."

O ito m u lh eres referiram p eríod o s de son a m b u lism o diurno, durante A lucinações au ditivas rela cion ad as de algum m odo com o abuso
o s q u ais tinham a lu cin a çõ es terríveis, tão v ívid as q u e as faziam gritar sexual durante a infância
e con torcer-se.
V in te e sete das m u lh eres da n o ssa am ostra referiram qu e o u v ia m
E. con tou -nos: v o z e s, e 8 d elas d escreveram a lu cin a çõ es au d itivas relacion ad as, p e lo
“Certa vez, vi o meu marido entrar. Deitou-me as mãos ao pescoço e m en os em parte, co m o ab u so sexu al sofrid o na infân cia. Q uatro
tentou matar-me, e senti a minha vida a escapar-se de mim. Nesse momento, outras m ulheres d isseram q u e n ão se lem bravam directam en te d e ssa
comecei a resistir, a esbracejar, a espernear, a lutar. Depois de uma luta exp eriên cia, m as o u v ia m v o z e s q u e lh es davam in form ações a resp eito
incrível, atirei o meu marido ao chão e ele fugiu porta fora. Após esta da infância.
experiência, passei a verificar, antes de ir para a cama, se deixava a porta do
meu quarto bem fechada. Era como se eu tivesse estado a lutar com o meu H. fo i abusada sexua lm ente até aos 11 anos de idade p elo pa i, que
pai, como se essa luta tivesse realmente acontecido.” a violou violentam ente e a am eaçou de m orte. E la disse-nos que já
só tinha um a vaga record açã o do que lhe acontecera. A m aior p a rte
E. duvida hoje que tivesse acontecido de fa c to algum a coisa d a ­ dessas recordações referem -se a um a criança de tenra idade, no
quele género. E la experim entara essas situações de um a m aneira p a p el de terceira pesso a. E xplicou -n os que na sua infância costum ava
m uito vívida, m as num a espécie d e sonho. E conclui: fa la r consigo m esm a p a ra a fa sta r essas m em órias horríveis. Q uando
“Penso que essa experiência será idêntica à daquelas pessoas que estive­ H. tem lam pejos m n ésicos desses, a rapariguinha diz: “S ab es o q u e
ram num campo de concentração.” a co n teceu .”

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“Ela [a rapariguinha] conta-me o que aconteceu e então eu digo-lhe: ‘Isso C orrelação entre abusos na infância e alucinaçõ es au ditivas
que tu me contas é medonho’.”
O s traum as d e in fân cia p o d em relacion ar-se co m a lu cin a çõ es au­
A voz da rap arig uinha tam bém fa la de outras coisas; às vezes H. ditivas na id ad e adulta através d e d iv erso s tip os d e p ro cesso s p sic o ­
tam bém tem p erío d o s em que ouve m uitas vozes, entre as quais id en­
ló g ico s. Surgiram várias teorias n esta área, sen d o sem d ú vid a a m ais
tifica a voz da m ãe.
co n h ecid a a T eoria da S ed u çã o, proposta por F reud n o s seu s p rim eiros
trabalhos.
A lu c in a ç õ e s: h is té r ic a s ou d isso c ia tiv a s versus p s ic ó tic a s ou C on fron tám os algu m as d essa s teorias co m o s resu ltad os da n o ssa
esquizofrénicas in v estig a çã o . R esu m im o s d e seg u id a algu n s d o s p rin cip ais d ad os
ob tid os n o n o sso estu d o. Para n ão com p licar a ap resen tação d os re­
N o seio da P siq uiatria sem pre h o u v e d iversas abord agens ao pro­ su ltad os, criám os um sistem a d e P on tu ação C u m u lativa d e T raum as,
b lem a do esta b e lec im en to de um a relação entre d eterm inados sin to ­ através d o qual cad a um a das m u lh eres fo i p on tu ad a em fu n ção de:
m as e determ inados d ia g n ó stico s, tendo sid o d efin id o s v ários e d ife ­ exp eriên cia s d e ab u so sexu al na infân cia; agressão físic a por parte do
rentes critérios para d istin gu ir as a lu cin a çõ es d isso cia tiv a s o u h isté­ autor d o abuso; e ab u sos sofrid os por outros m em b ros da fam ília
ricas das qu e se a sso cia m a outros d ia g n ó stico s p siq u iátricos. G rande (h ab itualm ente a m ãe). E stes vários tipos d e traum as foram d ep o is
parte das ex p eriên cia s referid as n o n o sso estu d o (isto é , 23 das 27 pon tuad os para cad a um a d e três fa ses etárias:
m ulh eres co m a lu cin a çõ es aud itivas) o b ed ecem aos critérios d e Kurt - 1 .a in fâ n cia (0 -6 anos);
S ch n eid er para as a lu cin a çõ es auditivas. E m 1959, S ch n eid er form u ­ - 2 . a in fân cia (7 -1 2 anos);
lou um con ju n to d e 11 critérios d e d istin çã o entre a lu cin a çõ es audi­ - a d o le s c ê n c ia (13 ou m ais an os).
tivas sim p les e co m p le x a s, critérios e sse s q u e in clu íam categorias
co m o v o z e s im p erativas, v o z e s com en tadoras e e c o d o p en sam en to A s P o n tu a ç õ e s C u m u la tiv a s d e T rau m as fo ra m seg u id a m en te
(ou vir o próprio p en sa m en to em v o z alta). P osteriorm en te, M ellor correlacion ad as co m a p resen ça ou au sên cia d e a lu cin a çõ es au d itivas.
red efin iu e restrin giu e s s e s critérios. D ezo ito das 27 m u lh eres d isse ­ O s resu ltad os en con trad os p o d em resu m ir-se d o seg u in te m odo:
ram q u e as suas a lu cin a çõ es au d itivas se lo ca liza v a m dentro da ca b e­ E m relação às m u lh eres q u e n ão ap resen tavam a lu cin a çõ es au d i­
ça, enquanto 4 d issera m qu e essa s v o z e s vin ham de fora e 5 d isseram tivas, as m u lh eres co m alu cin a çõ es auditivas:
qu e tanto vin ham d e fora co m o d e dentro da cab eça. A s q u e referiram - tinham so frid o nas prim eiras fa ses da vid a traum as m ais n u m e­
essa s alu cin a çõ es n ão pareciam in flu en ciad as por qualquer factor sub- rosos e m ais graves;
cultural; n enh um a d ela s era m em bro d e qualquer seita e m u ito p ou cas - tinham so frid o antes d os 7 an os d e id ad e m ais a g ressõ es física s
m an ifestavam alg u m in teresse por fen ó m en o s paranorm ais. N o s 8 e sex u a is por parte d o pai;
ca so s em qu e as m u lh eres d ia log a v a m co m as suas v o z e s, e s s e d iá lo g o - tinham sofrid o co m m ais freq u ên cia, e d esd e a m ais tenra idade,
tinha sid o estim u la d o p e lo terapeuta. S ó um p eq u en o nú m ero das 27 de d e sc u id o em o cio n a l por parte da m ãe.
m ulh eres co m a lu cin a çõ es auditivas referiu que as suas a lu cin a çõ es
tinham ocorrido na seq u ên cia im ediata d e a co n tecim en to s trágicos É claro q u e, ao interpretarm os o s relatos retrosp ectiv os d e situa­
sú b itos e in esp erad os. A m aior parte d essa s 27 m ulh eres d isse que ç õ e s de ab u so em id ad es in feriores aos 7 an os, terem os d e ser m u ito
ou v ia v o z e s há m u ito s anos. cau telosos: a ú n ica co n clu sã o q u e d e les se p od e extrair c o m seguran ça

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é q u e as m ulheres que o s referem não co n seg u em lem brar-se de nenhum abordagem co g n itiv a em P sic o lo g ia e ten tarem os m ostrar d e qu e form a
p eríod o da sua v id a em que não tenham sid o m altratadas, ou p elo ela co n d u ziu ao s p rogressos v erifica d o s na co m p reen são das ex p eriên ­
m en o s n e g lig en cia d a s, p elo seu pai ou p e la sua m ãe. cia s alu cinatórias, n om ead am en te a escu ta d e v o zes.
U m a criança p eq u en a tem de aprender a d istin gu ir a realidade da
im ag in a çã o . S egu n d o Su m m it, há in d íc io s seg u ro s d e que o in cesto
parental se a sso cia h ab itualm ente a um a d istorção da realidade por P sicologia C ognitiva
parte d o s pais; se o s pais da criança não sã o ca p a zes de esta b elecer
a d istin çã o entre realidade e im agin ação, en tão a criança terá sérias A P sic o lo g ia C o g n itiv a o cu p a -se da form a co m o a in form ação é
d ificu ld a d es em aprender a d istin g u i-la s. A lém d isso , é claro q u e a percebida, arm azenada e u tilizad a por org a n ism o s in telig en tes (sob re­
crian ça abusada por um ou por am bos o s pais d e sd e m uito ced o pod e tudo os seres h u m an os, em b ora o s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s v o lte m por
ter a lgu m a van tagem em não aprender a d iferençar a realidade da v e z e s a su a a ten ção tam b ém para outras e sp é c ie s e m esm o para
im agin ação: um a a valiação m uito correcta d essa s d iferen ças poderia m áquinas in telig en tes). H istoricam en te, este ram o do saber d e v e m uito
ter co n seq u ên cia s d em asiad o devastadoras para a criança. à ciên cia d os com p u tad ores, na m ed id a em qu e o s com p u tad ores
U m ú ltim o e m uito im portante achado fo i a co n statação de que a parecem forn ecer um bom m o d elo da form a co m o a in teligên cia poderá
rep ressão das e m o ç õ e s é ta lv ez o factor q u e m ais contribui para actuar.
a in cid ên cia de a lu cin a çõ es aud itivas. Isso su g ere q u e o não recon h e­ A té qu e p on to a m en te é ex a cta m en te an áloga ao com p u tad or é
cim en to d os sen tim en to s co m o perten ça d o E u torna m ais p rovável m atéria qu e p erm an ece con troversa. P or um lad o, a m en te, tal co m o
qu e as e m o çõ es, o s pen sam en tos e im agen s asso cia d a s sejam atribuídos o com putador, p arece o b ed ecer a d eterm in ad as regras quando p rocessa
a fo n tes eg o -d istó n ica s. E ste p rocesso d e atribu ição p arece particular­ a inform ação sob re o m undo. P or outro lad o, a arquitectura d e c o n s­
m en te im portante na relação entre a lu cin a çõ es au d itivas e traum as de trução da m en te p arece diferir rad icalm en te da d os com p u tad ores de
in fâ n cia cu m u lativos. m esa m éd io s. P rossegu in d o na a n a lo gia , tem -se d ito q u e, se preten­
d em o s com p reen d er a m en te hu m ana, o prob lem a se p o d e abordar a
três n ív eis. E m prim eiro lugar, p recisa m o s d e com p reen d er as fu n çõ es
Modelos cognitivos da m en te (o qu e é qu e ela é ca p az d e fazer e o qu e é q u e e la não é
Richard Bentall cap az de fazer). E m seg u n d o lugar, é p reciso descob rir as regras ou
a lgoritm os d e q u e a m en te se serv e para ex ercer essa s fu n çõ es (regras
N a s ú ltim as d écad as tem -se dado um p rogresso co n sid erá vel na ou algoritm os an á lo go s aos program as d os com p u tad ores). F in alm en te,
co m p reen sã o da m en te hum ana. O ram o da P sic o lo g ia m ais resp on ­ a m aquinaria u tilizad a p e lo céreb ro para execu tar ou im plem en tar
sá vel por e s s e p rogresso é, talvez, a P s ic o lo g ia C o g n itiv a , que trata essa s regras é su scep tív el d e estu d o e in v estig a çã o . O s p rim eiros d ois
d o s p r o c esso s através d os quais o in d ivíd u o adquire e ap lica o s seus n ív e is perten cem ao foro da P sic o lo g ia C o g n itiv a , en qu an to o terceiro
co n h ecim en to s a resp eito do m undo (cognição = conhecim ento). O s p erten ce à N eu ro fisio lo g ia .
m o d elo s teóricos d e se n v o lv id o s p e lo s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s acerca T rad icion alm en te, os p sic ó lo g o s co g n itiv ista s têm estu d ad o pro­
d o s p ro cesso s m en tais têm sid o, por outro lad o, u tiliza d o s co m êx ito c e sso s co g n itiv o s “frio s”, co m o a p ercep çã o e a m em ória. P orém ,
na com p reen sã o d os fen ó m en o s m en tais m en o s vu lgares. N esta S e c ­ m ais recen tem en te, com eçaram tam b ém a in teressar-se por p ro cesso s
çã o , d arem os um b reve apon tam ento d aq u ilo qu e se en ten d e por co g n itiv o s “q u en tes”, isto é, in flu en cia d o s p elas em o ç õ e s e p e lo papel

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qu e o in d ivíd u o se atribui a si próprio. É sem surpresa que a P s ic o ­ - D e algu m m o d o relacion ad o co m o q u e acab ám os d e d izer, está
lo g ia C o g n itiv a tem v id o a ser u tilizad a na in v estig a çã o de um a série o facto de ser p o ssív e l, por m eio da su g estã o , p rovocar a lu cin a çõ es
d e p rob lem as p siq u iátricos. M u ito em b ora grande parte d e sse trabalho em algum as p e sso a s q u e em tudo o resto são n orm ais. P or ex em p lo ,
se ten ha centrado na a n sied a d e e n a d ep ressão, a in v estig ação m ais se d isserm os a um grup o d e p e sso a s dentro da m éd ia q u e fe c h e m os
recen te tem vo lta d o a sua aten ção para ex p eriên cia s p sicó tica s, co m o o lh o s e o içam o d isc o d e um a can ção m u ito pop ular (d e N atal, por
as a lu cin a çõ es e o s d elírio s. ex em p lo ), cerca d e 5% d essa s p e sso a s dirão q u e ou viram o d isco ,
A o rea liza r e s s e tip o d e in v e s tig a ç ã o , a tarefa d o p s ic ó lo g o ainda que de fa cto e le n ão tenha sid o p o sto a tocar. E ste e x em p lo
co g n itiv ista será a de averigu ar se o p rocessa m en to da inform ação tam bém ind ica q u e as cren ças e as exp ecta tiva s d esem p en h a m um
p elas p esso a s que têm problem as psiquiátricos difere ou não das p esso a s papel im portante n as ex p eriên cia s alu cinatórias.
q u e o s n ão têm . E x p eriên cia s co m o as a lu cin a çõ es prestam -se por si - A s a lu cin a çõ es a u d itivas ten d em a ocorrer co m m ais freq u ên cia
m esm as à abordagem c o g n itiv a , dado q u e p arecem indicar que a m en te
em determ inado tip o d e circu n stân cias, particularm ente em esta d o s de
está a p rocessar de form a anorm al a inform ação a resp eito do m undo.
privação sen sorial (o u d e silê n c io q u ase total) ou quando e x iste m uita
P o d er-se-á dizer qu e, n o ca so das a lu cin a çõ es, a lg o se p assa co m a
m en te do in d iv íd u o q u e fa z co m que e le acredite na p resen ça de estim u lação d esord en ad a (ruído de m áqu in as, por e x e m p lo ).
algu m a c o isa à sua v olta, qu and o, d e facto, nada ex iste que corresponda - U m facto q u e p od erá surpreender algu n s leitores é q u e as a lu ci­
à ex p eriên cia perceb id a. n açõ es são, m u itas v e z e s , exp erim en tad as durante p eríod os d e stress.
P esso a s que noutras o c a siõ e s n ão o u v em v o z e s pod erão o u v i-la s em
m om en tos de ex a u stã o ou ap ós stresses g raves, co m o a m orte d e um
A lg uns fa c to s sobre alucinaçõ es en te querido. O s p a cien tes p siq u iátricos referem , m uitas v e z e s , qu e as
suas v o zes se acen tu am quando estã o sob stress ou q u an d o a lg o de
Q ualquer d escrição p sic o ló g ic a a resp eito de alu cin a çõ es deverá m al lhes a co n tece. C on cord an d o co m esta o b servação, te m -se v isto
ter em lin h a d e con ta um certo núm ero de factos: que o despertar das v o z e s n o s p acien tes p siq u iátricos se fa z an teced er
- C om o dem on stra o trabalho d e M arius R o m m e e Sandra E sch er, de determ inadas resp osta s fisio ló g ic a s (alterações da con d u tân cia da
as a lu cin a çõ es são exp erim en tad as não só por p e sso a s rotuladas de p ele, por e x e m p lo ), q u e ocorrem h ab itu alm en te em resp osta a estím u ­
d oen tes m en tais, m as tam bém por um nú m ero surpreendente de p e s­ lo s stressantes.
soas q u e lev am um a vid a relativam en te fe liz e que não se con sid eram - P o r fim , um fa cto m en os ev id en te d iz resp eito ao p ap el d os
a si m esm a s d oen tes m en tais sob a sp ecto nenhum . m ú scu los da fala durante as a lu cin a çõ es aud itivas. Q u and o um a p es­
- A s a lu cin a çõ es são m u ito m ais com u n s num as so cied a d es do que soa o u v e v o z e s, o s m ú scu lo s da fala to m a m -se m ais a ctiv o s, o q u e se
noutras; por ex em p lo , entre o s n ativos do H aw ai é relativam en te vulgar com prova p elo au m en to da activid ad e eléctrica. E ssas su b v o ca liza çõ es,
d izer-se qu e se v iu um an tep assad o. E ste dado su gere que as crenças co m o o s p sic ó lo g o s lh es ch am am (são m o v im en to s d os m ú scu lo s da
e as exp ecta tiva s das p e sso a s p o d em in flu en ciar o fa cto de ela s terem fala d em asiad o p eq u en o s para se verem e q u e n ão p rov o ca m nenh um
ou n ão exp eriên cia s alu cin atórias. E cu rio so q u e haja tam bém d iferen ­ so m ), aco n tecem durante o p en sam en to verbal norm al e reflectem o
ças culturais entre o s tip os d e a lu cin a çõ es referidas p elo s p acien tes facto de que p en sar em palavras im p lica um a e sp é c ie d e d iscu rso
p siq u iátricos. P or e x e m p lo , as a lu cin a çõ es v isu a is são m uito m ais interior. (O s leitores sab em b em q u e e ste d iscu rso n em sem p re é
freq u en tes em p acien tes d e p a íses em vias d e d esen v o lv im en to do que totalm ente in tem a liza d o , e é por isso q u e, por v e z e s, em esp ecia l
n os p aíses o cid en ta is o u d e se n v o lv id o s. quando estam os só s, n o s p o m o s a falar so zin h o s em v o z alta.)

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A psico lo g ia d a s alucinações E sta teoria ex p lica b o a parte das o b serv a çõ es q u e têm sid o feitas
sobre ex p eriên cia s alu cinatórias. Por e x e m p lo , n ão surpreende q u e as
V árias teorias têm sid o prop ostas para ex p lica r esta s o b serv a çõ es, a lu cin a çõ es se acom p an h em d e a ctivid ad e eléctrica d os m ú scu lo s da
em b ora tod as e la s apresentem diversas sem elh an ças. E m resu m o, todas fala, já q u e e s s e tipo d e a ctivid ad e co stu m a acom pan har o p en sam en to
su gerem q u e as a lu cin a çõ es surgem quando d eterm in ad os a co n teci­ verbal. N em surpreende qu e as a lu cin a çõ es ocorram m ais em co n d i­
m en tos da v id a m ental são erradam ente tom ad os por acon tecim en to s ç õ e s d e silê n c io ou d e estim u la çã o desord en ad a, já q u e é p recisam en te
do m u n d o real. D e acordo co m esta m aneira d e ver, a p e sso a que ou v e n essa s co n d iç õ e s qu e m ais d ifíc il se to m a apontar as d iferen ças entre
v o z e s está a pensar em palavras m as tom a erradam ente e s s e s p en sa ­ a v o z interior e o s estím u lo s exteriores.
m en tos p or a lg o que está a ser dito por outra p e sso a . D e m uitas O q u e a teoria d eix a sem resp osta é a q u estã o d e se saber por que
m aneiras, esta v isã o d o p rob lem a é m u ito sem elh a n te ao que Cari razão algu m as p e sso a s têm ten d ên cia a tom ar o s seu s p en sam en tos
Jung d isse sob re as a lu cin a çõ es, co m o se refere noutro p on to d este interiores por estím u lo s exteriores. C om certeza q u e o cérebro terá um
livro. sistem a que lhe perm ita d iferenciar o s p en sa m en to s gerad os interna-
U m b om nú m ero d e p sic ó lo g o s v em d e se n v o lv e n d o in v estig a çõ es m en te d aq u ilo qu e ocorre no m un do exterior. P orém , este sistem a nem
no sen tid o d e com provar esta teoria. P or e x em p lo , nu m estu d o levad o sem pre é exacto; o s cien tistas, por ex em p lo , co n fu n d em , por v e z e s, as
a cab o por m im e por c o le g a s m eu s da U n iv ersid a d e de L iverp ool, ideias q u e ouviram d e outros co m as id eia s q u e e le s próprios p en sa­
p ed iu -se a p a cien tes p siq u iátricos, algu ns q u e o u v ia m v o z e s e outros ram , e n os so n h os tod os n ó s co n fu n d im os im ag in a çã o co m realidade.
que n ão, q u e escu ta ssem 100 alarm es d e 5 seg u n d o s d e ruído puro C hris Frith su geriu qu e o sistem a resp o n sá v el p ela d istin çã o entre
(um a e sp é c ie d e ch iad eira, co m o a d e um rádio n ão sin ton izad o). a co n tecim en to s interiores e a co n tecim en to s do m u n d o real - sistem a
H avia um a v o z d e fu nd o em 5 0 d e sses alarm es, e p e d iu -se aos v o ­
a q u e e le ch am a “o m on itor” - se lo c a liza a n atom icam en te num a parte
luntários d e sse estu d o que d issesse m , após o toqu e de cada alarm e,
d o cérebro co n h ecid a por h ip ocam p o. C on tu d o, há p o u co s elem en to s
qual o grau d e certeza (n um a esca la de 0 a 5) q u e tinham d e sse alarm e
de prova directa d e q u e essa parte do céreb ro fu n cio n e m al nas p e s­
conter um a v o z de fundo (0= não havia voz nenhum a; 3= não sei;
5= tenho a certeza de que havia um a voz)- S u b m etera m -se as resp ostas so as qu e o u v em v o z e s. O utra p o ssib ilid a d e é q u e as p e sso a s qu e
d os volu n tários a um a an á lise m atem ática bastante co m p lex a , tendo o u v em v o z e s, em com p aração co m as q u e as n ão o u v em , u sem regras
sid o p o ssív e l extrair d o is parâm etros: um d e les in d ica a sen sib ilid a d e, d iferen tes para d istin gu ir acon tecim en to s in teriores d e a co n tecim en ­
ou seja, a cap acid ad e aud itiva dos volu ntários; o outro ind ica a ten­ tos ex teriores. (P or outras palavras, e m an ten d o a an alogia co m os
d ên cia geral para ju lgar que a v o z estava, d e fa cto , presente. O s com p u tad ores, as alu cin a çõ es d e v e m -se m ais ao softw are d o qu e ao
resu ltad os apontam para a aud ição d os p acien tes c o m a lu cin a çõ es ser hardw are.) O facto d e as alu cin a çõ es serem in flu en cia d a s p ela su g es­
tão se n sív e l c o m o a d os q u e não alu cin avam , m as o s p acien tes que tão e p e lo sistem a cultural d e cren ças dá a lg u m a co n sistên cia a esta
tinham a lu cin a çõ es tinham tam bém m ais ten d ên cia para, em co n d i­ ú ltim a h ip ótese.
ç õ e s d e in certeza, acreditar qu e a v o z esta v a p resen te. E stes dados N e ste co n tex to , é interessan te notar qu e as v o z e s d esem p en h am ,
su gerem q u e as p e sso a s que o u v em v o z e s, perante a lg o que tanto m uitas v e z e s , um pap el particular na vid a d e q u em as o u v e, P or v e z e s,
p od e ser um p en sam en to co m o a lg o q u e ela s o u viram , ten dem a rep resen tam um a força m a léfica (ta lv ez a parte m á d o E u, q u e é d ifícil
co n v en cer-se d e que o ouviram realm ente. E cu rio so qu e se tenha d e aceitar), m as p o d em tam bém ser um a com p a n h ia ou um a fo n te de
en contrad o resu ltad os m u ito sem elh an tes na com p aração entre não- co n forto . S eja co m o for, q u ase sem p re é verd ad e qu e as v o z e s se
-p acien tes q u e têm alu cin a çõ es e n ã o-p acien tes q u e n ão alucinam . apoiam num co m p lex o con ju n to d e cren ças e exp ecta tiva s.

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D oença e tratam ento em P sicologia C ognitiva m um co m o s p sic ó lo g o s c o g n itiv ista s q u e p en sam co m o eu e qu e
procuram tom ar m ais c o m p r een sív eis as exp eriên cias alu cin atórias.
E sp ero q u e o q u e atrás fico u d ito tenha dado um a id eia de co m o U m a das van tagen s da P sic o lo g ia C o g n itiv a é levar-n os a prop or
os m ais recen tes p rogressos em P s ic o lo g ia contribuíram para um a teorias q u e se p o ssa m testar. P or e x em p lo , o estu d o q u e atrás d escrev i
m elh or com p reen sã o daq uilo q u e a co n te ce na m en te de quem ou v e fornecia algu ns elem en to s d e p rova em a p o io da teoria seg u n d o a qual
um a v o z ou tem um a v isã o . D o qu e atrás fo i dito p o d er-se-ia pensar as v o z e s seriam p en sa m en to s cu ja p rov en iên cia n ão é correctam en te
qu e a ab ord agem c o g n itiv a estaria d e acordo co m a abordagem p si­ atribuída. U m a outra va n ta g em da in v estig a çã o co g n itiv a sob re as
quiátrica tradicional, que encara as a lu cin a çõ es co m o sin ais seguros a lu cin ações é pod er con d u zir a n o v o s m éto d os d e ajuda aos ou v id o res
d e u m a d o e n ç a su b ja c e n te . É c la r o q u e há m u ito s p s ic ó lo g o s de v o z e s. A ideia d e q u e a q u eles qu e têm a lu cin a çõ es con fu n d em os
co g n itiv ista s, que estu d am v iv ê n c ia s p o u co vu lgares, co m o é o ca so seus próprios p en sa m en to s co m a lg o qu e a co n tece n o m un do real
das a lu cin a çõ es, que p en sam de acord o co m o quadro de referências levanta a qu estão d e sab er se n ão será p o ssív e l ajudar o s qu e alu cin am
d o m o d elo m éd ico e q u e en caram o seu trabalho co m o um m eio de a reap ossar-se das partes d e si m esm o s qu e e le s interpretam co m o
contribuir para o progresso geral do co n h ecim en to psiqu iátrico. M as alh eias. N um a das S e c ç õ e s do C ap ítu lo 10, d e sc rev e-se um a estratégia
eu n ão partilho d essa op in ião. para atingir este o b je ctiv o , ch am ad a “C on cen tração nas V o z e s ”.
Q u er-m e parecer q u e aq u ilo q u e d e cid e o que é d o en ça e sanidade
m en tal é essen cia lm en te um factor d e natureza m oral. P o d em o s im a­
ginar, por ex em p lo , um a so cied a d e m oralm ente triste, na qual a fe li­ Psiquiatria Social
cid ad e seja encarada co m o um a form a de insanidad e m ental. U m
p sic ó lo g o co g n itiv ista q u e trab alh asse em sem elh an te so cied a d e e que M a riu s Romme
p rocurasse com preend er o que se p a ssa va na m en te de algu ém que
fo sse fe liz haveria d e segu ir ex a cta m en te a abord agem e o s m étod os D esd e que apareceu o M o v im en to d e S aú d e M en tal, e x iste um a
exp erim en tais q u e o s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s usam na n o ssa s o c ie ­ e sc o la d e p en sam en to p siq u iátrico co n h ecid a por P siquiatria S o cia l.
dade quando estu dam as p e sso a s que o u v em v o zes. Por ex em p lo , se A P siquiatria S o cia l estu d a a relação entre as c o n d içõ es da S o cied a d e
algu ém q u ise sse com p reen d er a felicid a d e teria de pesq uisar as carac- e o s prob lem as de S aú d e M en tal. Para a P siq uiatria S ocial o s p en sa ­
terísticas d o tratam ento da in form ação resp on sáv eis p ela v isã o opti- m en tos, as e m o ç õ e s, as p e rcep çõ es e o com p ortam en to d os in d ivíd u os
m ista e irrealista d o m undo que as p e sso a s fe liz e s teriam e que não estão relacion ad os c o m as c o n d iç õ e s em qu e as p e sso a s v iv e m e
se encontrariam nas p esso a s in felizes. fu n cion am .
A tarefa da P sic o lo g ia C o g n itiv a é in vestigar o s p r o c esso s m en tais A P siquiatria B io ló g ic a e a P siq uiatria P sico d in â m ica abordam o s
a sso cia d o s a tip os particulares d e ex p eriên cia s e de com portam en tos. problem as de Saú d e M en tal seg u n d o p ersp ectivas diferentes: a P siq u ia ­
A outros caberá determ inar se e ssa s exp eriên cia s e e s s e s com porta­ tria B io ló g ic a o cu p a -se das rela çõ es entre o com p ortam en to hu m an o
m en tos d ev em ser con sid erad os p a to ló g ico s ou não. A m inha e x p e ­ e a fisio lo g ia do cérebro; a P s ic o lo g ia P sico d in â m ica estu d a as rela­
riên cia co m p e sso a s que o u v em v o z e s d iz-m e que q u ase sem pre se ç õ e s entre os p rob lem as d e S aú d e M en tal e a ten tativa d e lidar co m
trata d e gen te m uito in telig en te, se n sív e l, criativa e q u e anda à procura as e m o çõ es.
d e um sen tid o para um m un do q u e m uitas v e z e s é co n fu so e não A s co n d iç õ e s de v id a q u e co n d icio n a m a S aú d e M ental são m ú l­
raram ente am eaçador. N este p on to e ssa s p e sso a s têm m uito em c o ­ tiplas e variadas, d esd e o am b ien te d e trabalho à lib erd ad e (ou co m o

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se queira d izer) de exp rim ir a iden tidad e sexual - e qualquer um a a pouco e pouco, foi sendo arrastada para o papel de criança. Quando sugeri
d elas p od e d esem p en h ar um pap el instrum ental n o d esen cad ear da que podia estar ali a chave do significado das vozes, as três mulheres ficaram
escu ta d e v o z e s. A s in flu ên cia s externas que alteram o eq u ilíb rio entre estupefactas. No entanto, quando aprofundámos um pouco mais essa hipó­
o in d ivíd u o e o m eio en v o lv en te p od em dar origem a sen tim en to s de tese, elas começaram a admitir a existência de uma relação entre o que as
extrem a im p o tên cia e p o d em , m uitas v e z e s, levar a prob lem as p sic o ­ vozes diziam e a maneira como a família tratava aquela mãe.
ló g ic o s. N esta S e c ç ã o irem os exam in ar algu n s e x e m p lo s im portantes Neste exemplo, a relação entre as vozes e o mundo exterior é muito
d essa s in flu ên cia s externas: directa, na medida em que repetem exactamente aquilo que as pessoas do
meio circundante dizem à pessoa que ouve a voz. Essa relação pode ser
- S itu a çõ es in to lerá v eis ou geradoras de insatisfação; bastante menos evidente quando as vozes exprimem metaforicamente as
- T raum a recente; diversas situações por que a pessoa vai passando. Por exemplo, conhecemos
- A sp ira çõ es e m co n flito ; um jovem de 24 anos que ouvia vozes que lhe estabeleciam todo o género
- A m eaças; de regras na sua vida. Ele chamava às suas vozes “forças fascistas”. Na
- T raum as de infância; realidade, as ordens que elas lhe davam eram o reflexo da maneira como ele
- R ep ressão em o cio n a l na infân cia. era tratado no hospital e em casa. Quando passou a viver sozinho tinha
dificuldade em tomar decisões autónomas e começou a servir-se das vozes
para pôr uma ordem na sua vida. Infelizmente, ao fazer isso, tornou-se
dependente delas e, a pouco e pouco, as vozes foram destruindo a sua
Situações in to leráveis ou geradoras de insatisfação autonomia e tornaram-se uma obsessão permanente.
Q u and o as v o z e s sã o desen cad ead as por circu n stân cias intolerá­ A s v o z e s p o d e m esta r ta m b ém a s so c ia d a s a a c o n te c im e n to s
v e is, ten d em a fazer com en tários que traduzem a m aneira co m o o stressantes, c o m o o d iv ó rcio ou a perda d o em p rego. E m geral, essa s
ou vid or d e v o z e s é tratado p elas outras p esso a s. D irecta ou indirec- v o zes exp rim em a crítica d e a co n tecim en to s stressan tes recen tes e de
tam en te, as v o z e s relatam - m uitas v e z e s sob a form a d e m etáforas - alterações às co n d iç õ e s d e vid a d e q u em as o u v e - qu e p o d e acabar
aq u ilo qu e se p a ssa nu m a relação. por se sentir tão im p oten te perante as v o z e s co m o perante os a co n ­
tecim en to s stressan tes extern os. N estes c a so s, a terapia cen trar-se-á,
Conheci uma senhora de 67 anos que ouvia uma voz que ralhava com ela, d esd e in ício , nas form as d e alterar o s elem en to s cau sad ores de stress
tal e qual como os adultos fazem às crianças: “Cuidado, vê lá se cais, abotoa na situ ação con creta.
o casaco”, etc. Quando entrou no meu consultório vinha acompanhada por
duas filhas e notei que uma delas lhe segurava no braço porque a senhora
não era capaz de caminhar sem ajuda. A outra filha, carinhosamente, aju­ Traum a recente
dava-a a sentar-se numa cadeira e começou a desapertar-lhe o casaco.
Entretanto, era notório que a senhora não se sentia nada bem naquela A form a m ais com u m d e traum a recen te grave é a m orte d e um
situação. As filhas começaram a falar-me dos problemas da mãe, como se en te qu erido. N a seq u ên cia directa d essa perda, m u itas p e sso a s c o n ­
ela não fosse capaz de os contar por si mesma, mas pouco depois consegui
que a senhora me contasse a sua própria história. tinuam a ou vir a v o z da p e sso a falecid a. T al c o m o se d escrev e n os
Disse-me que tinha começado a ouvir vozes desde que o marido tinha C apítu los 6 e 8, a escu ta d e v o z e s perdura freq u en tem en te durante
deixado de trabalhar: ele usurpara-lhe todas as funções dentro de casa e ela, m u itos anos e m ais ainda n os ca so s m ais d o lo ro so s, co m o por e x e m ­
p lo, quando um filh o ou o com p an h eiro m orre d e su icíd io.

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T a lv e z m en os b em co n h ecid o seja o fa cto d e as v o z e s p od erem ser lhand o-a sobre a m aneira d e lidar c o m o racism o d e q u e era vítim a.
d esen ca d ea d a s por exp eriên cia s traum áticas m en o s im portantes, co m o O Im perador m an d ou -a escrev er a su a própria h istória, ou seja, con -
a perda d o em p rego. d u ziu -a n o sen tid o d e ela ser ela m esm a. A um n ív el m ais sim p les,
evid en tem en te, as v o z e s p od em ter tam b ém um pap el d e satisfação de
Alexia, de 26 anos de idade, era uma empregada de escritório muito um a n ecessid ad e: por e x e m p lo , p o d em p rop orcionar com p an h ia a
cumpridora que trabalhava há vários anos na mesma empresa e com o algu ém que está só. U m a das n o ssa s p acien tes en con trava-se co m as
mesmo patrão. Nos últimos tempos começara a reparar que as coisas na
empresa não estavam a correr muito bem e dedicou toda a sua energia a suas v o z e s num bar e tom ava ca fé co m ela s. U m a outra, q u e v iv ia
ajudar a empresa a recuperar os seus tempos áureos. Eis senão quando dá sozin h a, procurava o co n selh o d e um a m ig o ín tim o in flu en te, quando
consigo vítima de mexericos maledicentes de colegas, mexericos esses que precisava d e tom ar d e cisõ es.
haveriam de a conduzir à demissão do lugar, ficando a remoer sentimentos D ep arám o-n os ainda co m situ a çõ es m ais co m p lex a s e m ais d ifíceis
de injustiça e de impotência. em q u e as v o z e s ajudavam as p e sso a s a atingir d eterm inado ideal ou
Nos meses seguintes à sua exoneração, tinha a impressão de que as
pessoas falavam dela quando ia ao café. Ficou cada vez mais preocupada a reprim ir im p u lso s ou id en tid a d es se x u a is in d eseja d a s, c o m o o
com isso e passou a ouvir vozes regularmente. Essas vozes diziam mentiras ex ib icio n ism o ou a h o m o ssex u a lid a d e.
maldosas a seu respeito e, pouco a pouco, começaram a manifestar-se tam­
bém noutro tipo de situações, como seja em casa e em reuniões de família.
Â.v vezes tornavam-se absolutamente insuportáveis, mas Alexia só muito mais A m eaças
tarde, passado mais de um ano de tratamento psiquiátrico voluntário, com­
preendeu a relação que havia entre a sua situação e a maneira como reagia
a ela. P erante situ a çõ es d e risco d e vid a , as v o z e s p od em ser parte de
O problema manteve-se durante dois anos, até que ganhou coragem um a estratégia d e so b rev iv ên cia . P or ex em p lo , a A m n istia Interna­
para concorrer a um novo emprego. Conseguiu o emprego que pretendia e cion al recon h ece a tortura co m o um d esen cad ean te p o ssív e l da escu ta
em resultado desta experiência positiva as vozes dissiparam-se progressi­ de v o z e s. A p sic o se p rovocad a por um d ilem a in so lú v el p od e dar o
vamente. m esm o resultado; o livro d e W illia m Styron , A E scolha de Sofia, dá-
-n os um ex em p lo parad igm ático d e ssa situação: um o ficia l alem ão
E m c a so s co m o este, o tratam ento c o n siste não num a declaração obriga S o fia a esco lh er qual d os filh o s p erm an eceria v iv o e qual d eles
d e guerra às v o z e s m as, antes, no d e se n v o lv im en to d e um a p erson a­
iria para a câm ara d e gás.
lid a d e m a is in d ep en d e n te, ca p a z d e e s ta b e le c e r r e la ç õ e s e q u ili­
E ste é um e x em p lo m u ito ex trem o , m as n ós d ep arám o-n os com
bradas.
d ilem as sem elhan tes em bora sob form as m en os dram áticas. N u m d esses
casos, o p a i dum a jo vem estava a m o rrer de cancro e p ed iu à filh a
A spira ções em conflito que lhe desse um a dose m o rta l de com prim idos pa ra p ô r fim ao
sofrim ento. A m ãe m ostrou-se extrem am ente ofendida e p ro ib iu a
D ad a a natureza co m p lex a do m undo em q u e v iv e m o s, não é fácil filh a de satisfa zer o desejo pa tern o , dizendo que isso seria um a ssa s­
para n in gu ém satisfazer o s seus d ese jo s. Q uando as asp irações dum a sínio. P erante os fa cto s, a quem é que a filh a deveria obedecer: ao
d eterm in ad a p e sso a não são cum pridas, p o d em surgir v o z e s, que ser­ p a i ou à m ãe?
v em para ajudar qu em as o u v e a encontrar o seu cam in h o. N um outro caso ainda, um a m oça subm etia-se às investidas sexuais
N o C ap ítu lo 8 d este livro, en con tram os a história d e um a m ulher do p a i p a ra que este não cum prisse, caso ela não colaborasse, a
negra q u e tinha fica d o órfã e o u v ia a v o z d e H ailé S e la ssié a co n se­ am eaça de fa z e r à irm ã m ais no va o que lhe fa zia a ela.

262 263
E m tod os o s ca so s atrás d escritos um dos prob lem as prin cipais é “Se alguém é criado numa relação hipercrítica e hipercontroladora,
a p esso a q u e é apanhada n o d ilem a sen tir-se p esso a lm en te resp on sável então, quase por definição, não irá ter oportunidade de se ser a si mesmo.
p ela s co n seq u ên cia s da e sc o lh a d e qualquer das alternativas. S e p u ­ Não se permitiu a esse jovem que tomasse as suas próprias decisões de
d erm os levar essa p e sso a a p erceb er q u e as suas a cçõ es lhe foram acordo com os seus sentimentos. Não lhe toleraram que exprimisse os seus
im p ostas d e fora por a lg u ém , ta lv ez seja p o ssív e l libertá-la das c o n ­ sentimentos a respeito das coisas... Tudo o que os pais dele pretendem é um
seq u ên cia s em o cio n a is. conformismo bem comportado. A revolta, o medo e talvez mesmo a alegria,
sentimentos com que a criança necessita de aprender a lidar e dos quais
precisa para responder ao meio e para fazer as suas próprias escolhas, nada
Traum as de infância disso é permitido. Exprimir raiva ou revolta, por exemplo, pode ser visto pela
autoridade paterna como uma afronta intolerável, descrita como malcriadice
A s v o z e s n em sem p re estã o em co n so n ân cia co m a n o ssa n o çã o e malvadez. No entanto, sejam de que natureza forem, os sentimentos são
co n v en cio n a l de tem p o e d e esp a ço . E n contrám os p e sso a s que o u v ia m
inevitáveis na vida. Mesmo que o ódio seja percebido como um sentimento
inaceitável, ninguém está livre de se deparar com esse sentimento no dia-a-
v o z e s a ssociad as a traum as so frid o s na infância; essa s v o z e s rep resen ­ -dia. Uma das formas de reprimir esse ódio é tentar expulsar essa parte
tavam fragm en tos de ex p eriên cia s v iv id a s na infân cia, m as a in form a­ odienta da personalidade da corrente interior da consciência definida por
ção n e les contid a era tão d istorcida q u e nem sem pre era fá cil ao Eu. Esse ódio, em lugar de ser integrado, será experimentado... como uma
o u vid or com p reen d er q u e se tratava de e c o s de exp eriên cias p assadas. interferência exterior.”
C om o sab em os da literatura, a terapia d este tipo de prob lem as c o m ­
p lica -se quando a p e sso a n ão tem um a n o çã o clara da relação entre O s psiquiatras e as p e sso a s em geral qu e teim am q u e as v o z e s não
as v o z e s e a situ ação traum ática. A v o z p o d e fu ncionar co m o d e fesa ex istem não estã o a ver b em o prob lem a. E um erro n e g á -la s ou tentar
contra m em órias am eaçad oras, p od en d o assim su ced er que n em o eclip sá -la s através d e au scu ltad ores, d e m ú sica e d e v íd e o s. C o m o já
o u vid or n em as próprias v o z e s sejam recep tiv o s à terapia: p o d em d em on strám os, e ssa s v o z e s rep resen tam in flu ên cia s reais e têm algo
am b os recear p erd er-se uns aos outros e perder a co n fian ça que c o n ­ a dizer; por v e z e s , a m en sa g em p od e n ão ser b em -v in d a n em agradá­
segu iram criar entre si. E sta situ ação en co n tra -se e x celen tem en te v el, outras v e z e s p o d e ser sábia e instrutiva. A abord agem terap êutica
retratada no film e Shattered (E stilh a ço s), basead o na ex p eriên cia de correcta não é n egar a sua v alid ad e m as, an tes, procurar descob rir
T rudy C hase. N u m a das cen a s d o film e, T rudy está apavorada co m a m ais co isa s a resp eito d e ssa m en sa g em e estudar a o rig em d o s pro­
id eia d e q u e o terapeuta lh e p o ssa destruir as d efesa s ao tentar inte­ b lem as con creto s su b jacen tes.
grar-lhe as v o zes; T rudy pergu n ta-lh e: “Q uem é que você vai m a ta r
p rim eiro ? ” Para ela, a integração das v o z e s no e g o era o m esm o que
m atá-las. A prioridade em qualquer terapia d ev e ser, p o is, a co m p reen ­ C onclusão
são do con teú d o e da fu n çã o das v o zes.
A P siquiatria S o cia l estu d a o com p ortam en to e a p ercep çã o do
H o m em na sua rela çã o c o m as c o n d içõ es d e vid a p assad as ou p resen ­
R epressão em ocional tes do ind ivídu o. S ã o d e particular in teresse as relações e as in teracções
so cia is em q u e é d ifíc il ou im p o ssív el ao p acien te ser e le m esm o ou
A s v o z e s p od em ser tam bém um a co n seq u ên cia da repressão ou do continuar a suportar e ssa s rela çõ es e essa s in teracções.
abu so em o cio n a l, tão b em d escritos por B rian D a v ey m ais adiante, A o estudar o q u e as v o z e s d izem , o terapeuta poderá, em colab ora­
n este m esm o C apítulo: ção co m o c lien te, ajudar a id en tificar as rela çõ es e as circu n stân cias

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qu e deram o rigem aos prob lem as. A escu ta d e v o z e s não é em si cham aram E m o çã o E xp ressa, através d o qual p od iam avaliar a qu an ­
m esm a p rov o ca d a p ela situ ação so cia l corresp on d en te, m as aq u ilo q u e tidade d e stress ex isten te num a d eterm inada fam ília.
as v o z e s d izem é o retrato m etafórico d essa situ ação. A ssim , as abor­ A E m o çã o E xp ressa, ou E E co m o é freq u en tem en te d esign ad a,
d agen s d e tip o ca u sa -efeito são m en os ú teis do q u e o escla recim en to a v a lia -se através d e um a en trevista co m a lg u ém qu e co n h eça b em o
d os co n teú d o s das m en sa g en s em relação co m a situ ação d e v id a de p acien te. H ab itu alm en te é um fam iliar c h eg a d o , m as u ltim am en te
q u em as o u v e. o teste tem v in d o a ser ap licad o tam bém ao p esso a l d e en ferm agem e
aos próprios p acien tes. E p o ssív e l avaliar o tip o e o grau d e con teú d o
em o cio n a l ex ib id o p elo en trevistad o, em term os d os seu s e x c e sso s de
Interacções familiares e psicose crítica, da sua a g ressivid ad e, d o seu e n v o lv im e n to e x c e s s iv o , d o seu
en tu sia sm o e d o s com en tários p o sitiv o s q u e fa z. A partir das p on tu a­
Nick Tarríer ç õ e s ob tid as nas várias categorias, é p o ssív e l avaliar se um d eterm i­
nado am b ien te fam iliar tem um a E E b aixa o u elev a d a . A ctu alm en te,
T o d o s n ó s so m o s sen sív eis às in flu ên cia s d o n o sso m eio , m as
estã o já co n clu íd a s p elo m en os 2 0 in v e stig a ç õ e s em larga esca la , a
durante m uito tem p o p en sou -se que aqueles que sofrem de esq u izofren ia
n ív el m un dial, para estudar a relação entre am b ien tes fam iliares co m
têm , n e sse ca p ítu lo , um a sen sib ilid a d e esp ecia l. C rê-se que os a m b ien ­
E E elev a d a ou b aixa e as recid ivas da esq u izo fren ia . Q u ase tod os estes
tes d em asia d o rico s ou d em asiad o pobres em e stím u lo s são e sp e c ia l­
estu d o s têm m ostrado um a taxa d e recid iv a s m ais alta em p acien tes
m en te stressan tes, p od en d o determ inar o ap arecim en to d e ex p e riê n ­
q u e v iv e m em am b ien tes fam iliares co m E E elev a d a , e a m aioria
cia s q u e im p liq u em a lu cin a çõ es, d elírio s e c o n fu sã o . O lar é um
d e sse s estu d o s rev ela um a d iferen ça esta tística altam ente sig n ifica tiv a .
am b ien te em q u e a m aior parte de nós p assa um a b oa parte d o tem p o
A lg u m a s p e sso a s têm interpretado o c o n c eito d e EE co m o um a
e , por isso , n ão surpreenderá q u e o clim a em o cio n a l d o m éstico p o ssa
a trib u ição d e resp o n sa b ilid a d es ao s fa m ilia res na ca u sa lid a d e da
ter um a im portância esp ecia l no n o sso bem -estar.
esq u izo fren ia , ou co m o um in d ício d e q u e e s s e s fam iliares são um
p o u co anorm ais - m as tudo isso é claram en te incorrecto. A E E repre­
E m o ções expressas senta o n ív el d e ten são em o cio n a l p resen te n o am b ien te d o m éstico ,
m as n ão tem d e ser, de m o d o algu m , n ecessaria m en te anorm al: s ig ­
N o s an os 5 0 , um grupo de s o c ió lo g o s e psiquiatras so cia is de n ifica apen as q u e aq u eles qu e sofrem d e esq u izo fren ia sã o sen sív eis
L on dres c o m e ç o u a interessar-se p elo que a co n tecia às p e sso a s quando a n ív e is m esm o m u ito b a ix o s d e ten são em o cio n a l. T am b ém não n os
tinham alta do hosp ital psiqu iátrico. Para sua surpresa, verificaram p arece q u e o s a m b ien tes fam iliares co m b a ix a E E , em virtude d os seu s
q u e, entre as p e sso a s que tinham o d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia , as b a ix o s n ív e is d e ten são em o cio n a l, se p o ssa m con sid erar anorm ais.
qu e iam v iv er co m a fa m ília p assavam pior d o q u e aqu elas que v iv ia m
so zin h as ou hospedadas: as p e sso a s qu e volta v a m para a fam ília eram
rein tem ad as m u ito m ais v e z e s do que as q u e v iv ia m noutro lad o D esen volvim en to s terapêuticos
qualquer. E ste facto deu a zo a um a série de in v estig a ç õ e s para a v e ­
riguar o s e fe ito s d o m eio na ev o lu çã o d os ch am ad os esq u izo frén ico s. A in v estig ação na área da EE tem sid o extrem am en te útil por
O s in v estig ad o res, n om ead am en te a p sic ó lo g a so cia l C hristine V aughn sugerir ao s p a cien tes, aos seu s fam iliares e ao s p ro fissio n a is d e Saú de
e o psiqu iatra so cia l Julian L eff, d esen v o lv eram um parâm etro a que M ental form as m ais efic a z e s d e trabalhar em con ju n to, n o sen tid o de

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aprenderem a v iv er co m as d ificu ld a d es e o m al-estar provocad o pela O utros in d ício s n este sen tid o p rovêm d o estu d o d e M an ch ester, q u e
perturbação m en tal, e m esm o a su p erá-los. inostra que o s p articip an tes n o program a exp erim en tam m a is a co n te­
A ctu alm en te, sobretudo n os E stad os U n id os da A m érica e no R eino cim en tos stressan tes d o q u e a q u eles q u e n ão se en contram in tegrad os
U n id o , v e m sen d o d e se n v o lv id o um certo núm ero d e estu d os em cm program as d e in terven ção fam iliar. E ste facto é im portante, na
grand e e sca la para analisar e testar o s n o v o s m éto d os b asead os na m edida em que tinha sid o d em on strad o, an tes, q u e a ex p eriên cia d e sse
in v estig a çã o da E E . E sses m éto d o s têm m erecid o n o m es d iv erso s, por (ipo de a co n tecim en to s - por e x em p lo , tornar-se algu ém qu e está a
parte d e d iferen tes in vestigad ores: in terven ção p sic o -so c ia l (L on dres), m ais, ou ser um a d o en ça na fa m ília - p o d e ser fon te d e ten são e m o ­
o rien tação fam iliar (C a lifó rn ia , E U A ), p sic o e d u c a ç ã o (P ittsburgh, cional aguda q u e, para o p a cien te esq u izo frén ico , resu lta freq u en te­
E U A ), e in terven ção fam iliar (M an ch ester, R ein o U n id o). R esu m id a­ m ente em recid iva e in tern am en to. O fa cto d e os p acien tes e n v o lv id o s
m en te, estes estu d o s têm -se in teressad o p ela ajuda esp ecia liza d a que n esses program as d e in terven çã o exp erim en tarem situ a çõ es p o te n cia l­
é p o ssív e l proporcionar às fa m ília s, in clu in d o inform ação sobre a m ente m ais stressan tes, m as bastante p o u ca s recid iv a s, in d ica qu e
esq u izo fren ia e o seu tratam ento; p e lo a co n selh am en to centrado no adquiriram as ap tid ões q u e o s ajudam a lidar co m qualquer stress do
problem a; e p elo en sin o de ap tid ões para lidar co m situ a çõ es d ifíceis, seu m eio próxim o.
d e ten são e de con fron tação. E ste tipo d e recursos in terven tivos tem - E claro q u e co m o as p e sso a s se to m a m m ais in d ep en d en tes têm
-se m ostrado m uito m ais van tajoso d o q u e o s trad icion ais serv iço s de tam bém m ais p rob ab ilid ad es d e se deparar co m m ais stress, sim p le s­
S aú d e M ental. E stes program as d e in terven ção fam iliar (para utilizar m ente e apenas porq ue se tom aram m ais activas e autón om as. O p erigo
a term in ologia de M anch ester) têm d eterm inado um a redução radical aqui é claro: n ív eis m a is e le v a d o s d e fu n cion am en to a com p an h am -se
das taxas de recid iva e de internam ento hospitalar; e sse s program as da ex p o siçã o a n ív eis m a is e le v a d o s d e stress - qu e p o d em d e se m ­
têm con trib uíd o tam bém para m elhorar o s n ív eis de fu n cion am en to bocar num a recid iva. P arece, con tu d o, q u e as in terven ções fam iliares
d os p acien tes, p erm itin d o-lh es tornar-se m ais in d ep en d en tes. A lém perm item um fu n cio n a m en to d e n ív el m ais elev a d o por dotarem o
d isso , há in d ício s de que o s próp rios fam iliares v êm b en eficia n d o p acien te das ap tid ões n ecessá ria s para lidar co m qualquer au m en to de
d essa abordagem e de que a fa m ília em geral fu n cio n a m elhor, quer stress.
em term os d e lidar co m a ten são e m o cio n a l quer n o tocan te à reso ­ A p ren d em os tam b ém a lg u m a c o isa a resp eito d o s tip os d e progra­
lu ção d os prob lem as que tem d e enfrentar; a an álise eco n ó m ica tem m as que não sã o e fic a z e s, já q u e tem h avid o estu d os na A lem a n h a e
d em on strado, além d isso , que e ste tipo de intervenção contribui para na A ustrália q u e n ão têm rev ela d o resu ltad os p o sitiv o s. E stes progra­
um a red ução de d esp esa s n os serv iço s de saúde. m as de interven ção d iferem nu m con ju n to d e p on tos d os program as
P or adoptarem um a abord agem centrada na reso lu çã o de p rob le­ bem su ced id o s d e q u e atrás fa lá m o s, to m a n d o -se assim p o ssív e l id en ­
m as, estes program as têm sid o b em receb id o s tanto p e lo s p acien tes tificar o qu e dá resu ltad o e o q u e n ão dá. O s program as m en os b em
co m o p elo s seu s fam iliares - qu e recon h ecem os seu s b e n efício s. N ão su ced id o s foram o s que:
é verd ad e que o s program as d e in terven ção fam iliar m antenham os
utentes fora d o hosp ital à cu sta ap en as do aum en to das d o ses da - adoptaram um a ab ord agem p sicod in âm ica;
m ed icação; p e lo contrário, o estu d o da C alifórn ia v em dando algum as - separaram o s p a cien tes d o s fam iliares durante a sessã o terap êu­
in d ica çõ es n o sen tid o d e que o s p a cien tes que participam em progra­ tica, ou d eixaram o p a cien te co m p leta m en te d e fora do p rocesso;
m as d e orien tação fam iliar têm , na verd ad e, d o ses m ais b aixas de - tiveram curta duração (h ab itu alm en te m en os d e 3 m eses);
m ed ica çã o . Isto d e v e -se , p ro v a v elm en te, ao facto de quer o s p acien tes - não con segu iram a adeq uad a articulação co m os prin cip ais ser­
quer as suas fam ília s se tom arem m ais cap azes d e lidar co m o stress. v iç o s de S aú d e M ental;

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- não adoptaram um a abordagem de colab oração centrada no pro­ D este m o d o , para com p reen d er a p sic o se é p reciso criar um a es-
blem a. Irutura teórica qu e ex p liq u e o pap el d os n o sso s sen tim en to s e das
nossas e m o ç õ e s e d e q u e form a e sse s sen tim en to s e e ssa s em o ç õ e s
O s a sp ectos m a is cru ciais para o su ce sso dos program as d e inter­ n ecessitam de ser com p reen d id os separadam ente d o n o sso p en sam en to,
v en ção fam iliar serão, en tão, a colab oração entre p a cien tes, fam iliares o qual, por sua v e z , tam bém n ão é o m esm o q u e as n o ssa s a cçõ es. A s
e p rofissio n a is na id en tificação e d escob erta das n e cessid a d es e o nossas resp ostas em o cio n a is às situ a çõ es, a m aneira co m o p en sa m os
d esem p en h o de um pap el a ctivo por parte d o p a cien te e da sua fam ília essa s situ a çõ es e as resp ostas activas qu e lh es d am os são as três
na reso lu çã o das su as d ificu ld ad es. d im en sões da n o ssa person alid ad e q u e em erg em das n o ssa s prim eiras
exp eriên cias e rela çõ es.
A um n ív el m ais prim ário, en qu an to e sp é c ie , a fu n çã o d os n o sso s
Psicose sen tim en tos é m otivar-n os para a cçõ es qu e n os d efen d a m e su sten tem .
B ria n D avey O ca n sa ço m o tiva o d escan so, a fo m e m o tiva o co m er, a sed e m otiva
o beber. O s sen tim en to s e as e m o ç õ e s, en q u an to esta d o s físic o s qu e
A últim a v e z qu e e stiv e p sicó tico tinha a ex p eriên cia q u e p od eria ex p e rim e n ta m o s n o n o sso co rp o, têm ta m b ém fu n ç õ e s so c ia is e
caracterizar c o m o ou v ir v o z e s de fu nd o. R etro sp ectiva m en te, diria in terp essoais. O afecto e o am or m otivam e su sten tam um com p orta­
agora qu e esta v a a o u v ir o ruído de fu nd o que hab itu alm en te filtram os m ento de co m p ro m isso e co o p eração m útua, a raiva e o m ed o deter­
da n o ssa c o n sc iê n c ia v íg il e projectava as m inhas próprias preocup a­ m inam e d ão en ergia às n o ssa s resp ostas d e d e fesa . M uitas e m o çõ es
ç õ e s interiores sob re e s s e ruído. A s m inhas p reo cu p a çõ es interiores são d e facto co m b in a çõ es o u m isturas d e outras e m o ç õ e s. Por e x e m ­
davam a e s s e ru íd o u m a estrutura aparente, de form a q u e m e soava plo, a in veja é um sen tim en to d e d esejo m isturado co m raiva ou ó d io
co m o se e stiv e sse a ou v ir co n versas sig n ifica n tes para m im . d evid o ao b lo q u eio da sa tisfa çã o d e sse d esejo .
Q uando se está p sic ó tic o , as p reo cu p a çõ es interiores sã o tão d o m i­ A s e m o ç õ e s m otivam -n os para agir. S e retirarm os o e, a em o çã o
nantes que estruturam a interpretação das percep ções que vão ch egan do. fica m oção, isto é , m o v im en to . O s sen tim en tos p razen teiros m o v em -
A relação entre o m u n d o interior dos p en sam en tos e d o s sen tim en tos -n os para q u e ten tem o s recriar fo n tes d e prazer o u para irm os à pro­
e o m u n d o exterior é dom inad a p elo m undo interior. E ste m undo cura d ela s. P or assim dizer, ela s m o v em -n o s para situ a çõ es p o sitiv a s,
interior d e sen tim en to s e p en sam en tos estranhos parece co m p leta ­ asso cia d a s à criativid ad e e à alegria. O s sen tim en to s d o lo ro so s, e sse s,
m en te bizarro e d esfa sa d o da realidade externa. C reio, p orém , que é d eseja m o s e v itá -lo s e não recriá-los, q u erem os fu gir-lh es ou resistir-
p o ssív e l esta b elecer o sen tid o d e sse m undo interior estranho. A form a -lh es. C h a m a m o s-lh es n eg a tiv o s.
de o tom ar p o ssív e l é en cararm o-nos a n ós m esm o s c o m o estan d o a A ssim , o s sen tim en to s, sejam eles p o sitiv o s ou n e g a tiv o s, m o v em -
reviver as p reo cu p a çõ es, rea cções e sen tim en tos das prim eiras fa ses -n os para a acçã o . N o en tanto, co m o b eb és ou crian ças p eq u en as, não
da n o ssa vid a - quando éram os ainda b eb és, m en in os ou rapazin hos so m o s ca p a zes d e agir d e outro m o d o qu e n ão seja dar sin ais directos
n ovos; d izen d o de outro m o d o , encarando tudo isso c o m o um a regres­ d os n o sso s sen tim en to s a q u em p od e agir por n ó s e em relação a q u em
são: um retom o às p reo cu p a çõ es, sen tim en tos e rea cçõ es qu e se tev e, esta m o s d ep en d en tes. M u ito antes d e serm os ca p a zes d e pensar por
em co n d içõ es de m ed o e im p otên cia, n e ssa fa se lon g ín q u a da vid a, a palavras (o u por outros sím b o lo s d e co m u n ica çã o ) e m u ito antes de
sen tim en tos de horror ou, co m o exp licarei m ais adiante, aos n o sso s serm os ca p a zes d e agir por n ós m esm o s, esta m o s d irectam en te d ep en ­
“ sen tim en tos d e escra v id ã o ”. d en tes d e encontrar n os sen tim en tos da n o ssa m ãe, d o n o sso pai e d os

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n o sso s irm ãos m a is v e lh o s um a resp osta corresp on d en te à ex p ressão restaurarm os a lgu m a a u to-estim a, irem os insistir con tin u am en te nesta
d irecta d os n o sso s sen tim en tos. O qu e aco n teceria se o s outros não via, um a v e z q u e a n o ssa au to -estim a está m inada d esd e q u e na n o ssa
corresp o n d essem ? O q u e acon teceria se e le s ign o ra ssem a exp ressão infância ignoraram os n o sso s sen tim en to s ou abusaram d e n ós.
d o s n o sso s sen tim en tos ou resp on d essem ao n o sso grito d e desam paro S e form os am ad os por aq u ilo q u e so m o s, tod os o s n o sso s sen ti­
c o m o lh o s q u e ex p rim issem sen tim en to s d e ó d io ? M ais ainda, o que m entos serão resp eitad os, rec o n h ec id o s e tom ad os em con sid eração
aco n teceria se e le s ab u sassem d o seu en orm e p od er e gera ssem n o v o s ou co rresp o n d id os. E n tão co n tin u a rem o s ab ertos ao s sen tim en to s
sen tim en to s de m ed o? p o sitivo s e n eg a tiv o s. Isto é im portante porq ue n os irem os sentir
A o p rin cíp io, a resp osta da criança é sentir horror e terror, o terror seguros ao fazer esco lh a s. Irem os em b u sca das situ a çõ es q u e n os dão
e o horror sub jacentes aos horrores da regressão. M ais tarde, o bebé prazer e a fecto e fu girem o s ou resistirem os às situ a çõ es qu e n os
ou crian ça p equ ena d esen v o lv erá um d esin teresse, um en torp ecim en to perturbam ou am eaçam . E m resu m o, d e se n v o lv er em o s a n o ssa própria
em o c io n a l extrem o, um a e sp é c ie d e zo m b ific a ç ã o , a que o s p siq u ia­ p essoa, serem os d o n o s e sen h ores da n o ssa própria vid a. N o s p rim ei­
tras ch am am “em botam ento a fectivo ”. O s esta d o s d e terror im ob ili- ros tem p os da n o ssa vid a, o am or, en qu an to con ju n to d e resp ostas de
za n tes, o s estad os de horror e a ex p eriên cia d e si próprio co m o algu ém protecção e d e a fecto adeq uad as ao s n o sso s sen tim en to s, é o pré-re-
q u e e ste v e sem pre à m ercê da c o n v en iên cia d os ou tros, q u e fo i sem pre quisito da n o ssa in d ep en d ên cia futura. S e o não en con trarm os, d e se n ­
u tiliza d o p e lo s outros, são o s esta d o s em o cio n a is da p sico se. E u cha- v o lv erem os, perante as situ a çõ es, resp ostas d efen siv a s e d e auto-pro-
m o-lhes “sen tim en to s de escra vid ã o ” , porq ue estã o a sso cia d o s à tecção d isso cia d as d os n o sso s sen tim en to s, ficarem os d ep en d en tes
im p o tên cia sentid a p elo b eb é ou criança p eq u en a quando não encontra dos outros para fazerm os as n o ssa s e sc o lh a s, and arem os sem p re em
a adeq uad a resp osta eq u iv alen te à ex p r essã o d o s seu s sen tim en tos, ou luta por m anter a n o ssa au to-estim a e ficarem os vu ln eráveis ao co lap so
q u an d o acha qu e, in d ep en d en tem en te d o s seu s próprios sen tim en tos, nervoso.
terá d e fazer sem pre o qu e as p e sso a s grandes querem . A s n o ssa s estruturas d e p en sa m en to v ã o reflectir a natureza das
E stas ex p eriên cia s p reco ces de im p o tên cia irão form ar as b ases da n ossas prim eiras ex p eriên cia s. A e ste p rop ósito, o p en sam en to é o u so
de sím b o lo s d e co m u n ica çã o hu m ana, sobretudo palavras, para form ar
p erson alid ad e e v ã o dar form a, m ais tarde, às n o ssa s resp ostas funda­
um a representação interior d o m u n d o e do lugar q u e n e le ocu p am os,
m en tais às situ a çõ es da vida. T o m a m -se parte das n o ssa s resp ostas
representação essa qu e irá servir d e g u ia às n o ssa s resp ostas e inter­
aprend id as. N ão se trata d e um a ap ren d izagem d o tipo da que fa zem o s
pretações. E stam os su jeitos a crescer n o m eio d e sistem a s d e interpre­
na e sc o la , m as de um a aprend izagem m a is fu nd am en tal, a ssociad a à tação que reflectem ou , p e lo contrário, rep elem o p en sam en to d os
n o ssa m aneira d e resp on der em co n d iç õ e s altam en te carregadas do n o sso s pais. S e crescerm os sem am or e procurarm os um a ex p lica çã o
p on to d e v ista em o cio n a l. para e sse fa cto , acabarem os ta lv e z por aceitar co m o b oa a versão d os
U m a c o isa ab solu tam en te fu nd am en tal qu e aprend em os nesta fa se n o sso s p ais, seg u n d o a qual so m o s m aus. E les d izem isso porque
é se con tam os ou não para algu m a co isa . S e o s n o sso s pais não ign oram os ou rejeitam os as e x ig ê n c ia s qu e e le s n o s fa zem . Por m eio
resp on d em à ex p ressã o directa d os n o sso s sen tim en to s, aprendem os do n o sso p en sam en to, con stru ím os estratégias qu e n os h ab ilitam a
q u e o s n o sso s sen tim en tos não contam para nada e que, por isso , não sobreviver.
tem o s qualquer im portância. S e o n o sso m al-estar nunca é confortado O co la p so n e rv o so é a fa lên cia das n o ssa s d e fesa s, é o retorno do
e só n o s d ão im portância quando tem o s ê x ito , en tão terem os ten d ên cia sen tim en to q u e ap ren d em os a d isso cia r ou esqu ecer: é um retorno ao
a andar sem pre à procura de a ten çõ es, sem p re em bu sca da con fia n ça ponto de partida, isto é , ao s horrores, aos m ed os e à im p o tên cia qu e
q u e n u n ca n o s deram , ex ib in d o as n o ssa s variadas h ab ilid ad es. Para sen tim os n os p rim eiros tem p os.

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E m P sicoterapia da E squ izofrenia , K aron e van den B o s assin alam não d o m in á v a m o s, p o d ia estar, d e fa cto , a falar ex p ressa m en te para
qu e qualquer sold ad o co lo c a d o em situação de m orte q u ase certa, nós. A q u elas v o z e s d e fu n d o q u e n os acom p an h am ao lo n g o da vid a,
ja zen d o m uito tem p o n o m esm o sítio , a urinar e a d efecar sob re si os n o sso s p ais, irm ãos, irm ãs, p od iam m u ito b em estar a falar para n ós
m esm o , ao ser sa lv o d e ssa situ ação p o d e entrar em co lap so n erv oso , noutras d iv isõ e s da casa. S ó sab íam os q u e e ssa s v o z e s eram m u ito
seg u n d o o s sin tom as c lá ss ic o s da esq u izo fren ia . P orém , na m aior im portantes. P restávam os um a esp e cia l aten ção ao seu tom e m o c io ­
parte d os c a so s, esta form a esq u izo frén ica de p sic o se é rev ersív el. Eu nal, sem term os em con ta o seu sig n ifica d o im ed iato. C on so a n te a
creio q u e aq u ilo q u e v a i contar para essa recuperação é se as prim eiras nossa própria ex p eriên cia , essa s v o z e s d e fu n d o p od iam ser augú rios
ex p eriên cia s da p erson alid ad e foram su ficien tem en te p o sitiva s ou não. de prazer ou d e terror.
S e esta m o s há m u ito tem p o so b o e fe ito d e sen tim en tos n e g a tiv o s, o A cim a d e tu d o, a e x p e riê n cia p sic ó tic a é um a ex p e r iê n c ia de
co la p so n erv oso é in ev itá v el. A fu n ção dos n o sso s sen tim en to s é im potência. O trabalho d e L e ff e V au gh n d á-n os algu m as in d ica çõ es
m otivar-n os para m udar as n o ssa s circu n stân cias, para m udar as n o s­ sobre o tipo d e p r o c esso s qu e p o d em estar em jo g o n e ssa ex p eriên cia .
sas vid as e para n o s afastar da fo n te d o n o sso m al-estar ou para a C om o sa b em o s, e s s e s autores encontraram in d ício s em p írico s d e que,
rem over. S e não fo rm o s ca p a zes d isso , o co la p so é in ev itá v el. N a se um a p e sso a ap ós um co la p so esq u izo frén ico retom a rela çõ es co m
lou cu ra, v o lta m o s às ex p e riê n cia s d e im p otên cia d os p rim eiros tem ­ uma “E levad a E m o çã o E x p ressa ” {EE elev a d a ), a h ip ó tese d e recaíd a
p o s. S e nestas ex p eriên cia s n ão havia n in gu ém para nos apoiar e é m uito p rovável. A lé m d isso , a E E elev a d a p o d e ex p lica r tam bém o
confortar, não en con trarem os en tão m ais nada d o que um a c o n sc iê n ­ próprio co la p so esq u izo frén ico in icial.
cia in coeren te d e horror e terror sem fim . E ssa exp eriên cia p arece N a m inha m aneira d e ver, as rela çõ es em qu e há um a elev a d a E E
in term in ável, um a v e z q u e a criança ainda não tem a n oção d e tem p o são aquelas em q u e as e m o ç õ e s das p e sso a s (h ab itu alm en te o s pais)
n em sabe que e x iste um futuro na vid a adulta. que v iv em co m o p a cien te são tu m u ltu osas. T en h a essa e fer v e sc ên cia
N o s estad os da m en te d o s prim eiros tem p os d e vid a, as fronteiras em ocion al a form a d e crítica a g ressiva, tenha ela a form a d e e x c e s ­
do e g o são p o u co n ítid as e a lg o d ifu sas. U m a das pim eiras d istin çõ es siv o s e lo g io s ou d e exagerad as m a n ifesta çõ es d e am or, lig a d o s ao
qu e esta b e lec em o s é a d iferen ça entre n ós e o resto do m un do. D e com portam en to d eseja d o e esp erad o, o qu e a co n tece é q u e o p acien te
in ício , esta d iferen ça é p o u co clara. A m aior parte d os sin to m a s tem a sua vid a e as su as d e c isõ e s sob o con trole d e outrem . A relação
p sicó tico s p od e ser en ten d id a co m o form as ex cên tricas de co n ceb er é d em asiad o e n v o lv e n te e d em asiad o controladora.
a in ter-relação entre o E u e o resto do m un do físic o e so cia l. N a O co la p so típ ico do jo v e m esq u izo frén ico e x p lic a -se bastante b em
p sic o se grave, na regressão profunda, a p esso a irá reviver um esta d o através da a n á lise q u e v im o s fa zen d o . S e alg u ém é criad o n u m a re­
d e esp írito anterior à d iferen cia çã o entre o Eu e o não-E u. lação hipercrítica e hip ercontroladora, en tão, q u ase por d e fin içã o , não
C riancinhas p eq u en as, o berço b a lo içav a c o n n o sco quando n os irá ter oportu n id ad e d e se ser a si m esm o . N ã o se perm itiu a e sse
em b alavam ; quando m ex ía m o s as pernas, v ía m o s m exer o s co b erto ­ jo v em que to m a sse as suas próprias d e c isõ e s d e acordo c o m o s seu s
res; se está v a m o s m u ito tem p o deitad os e n os tiravam do berço e do sen tim en tos. N ã o lh e toleraram qu e ex p rim isse o s seu s sen tim en to s a
m eio d os cobertores, p o d ía m o s sentir estran heza, co m o se e stiv e sse m resp eito das c o is a s ... T u d o o qu e o s p ais d e le p reten d em é um c o n ­
a separar-nos de qualquer c o isa que ju lg á v a m o s parte de nós próprios, form ism o bem com p ortad o. A revolta, o m ed o e ta lv e z m esm o a
m as qu e p a ssávam os a v er c o m o um a realidade separada. N e ssa fa se alegria, sen tim en to s c o m qu e a criança n ecessita d e aprender a lidar
n ão tính am os qualquer m aneira de saber o que esta v a ou não rela cio ­ e d os quais p recisa para resp on der ao m eio e para fazer as suas
nad o co n n o sco en qu an to in d iv íd u o s. T anto quanto n os era dado saber, próprias e sco lh a s, nada d isso é p erm itid o. E xp rim ir raiva ou revolta,
aq u ele rosto que aparecia na T V , usando um vocab u lário que ainda por ex em p lo , p o d e ser v isto p ela autoridade paterna co m o um a afronta

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in tolerável, d escrita co m o m alcriad ice e m a lv a d ez. N o entanto, sejam voltar a aceitar quando se dá con ta d o esta d o d e d ep en d ên cia em que
d e q u e natureza forem , o s sen tim en tos são in ev itá v eis na vid a. M esm o se encontra. E le g o stav a d e ser m ais so c iá v e l, m as não sabe c o m o o
qu e o ó d io seja p erceb id o co m o um sen tim en to in a ceitá v el, nin gu ém con segu ir. O João v iv e num a resid ên cia un iversitária, sabe cu id ar do
está liv re d e se deparar co m e le n o d ia-a-d ia. U m a das form as de seu quarto e das suas co isa s, m as, in ca p az d e esta b elecer relações
reprim ir e s s e ó d io é tentar expu lsar essa parte od ien ta da p erson ali­ em o cio n a is autênticas e solid árias, n ão fa z m a is nada sen ão estudar.
dade da corrente interior da co n sciên cia d efin id a por Eu. E sse ód io, Para co n seg u ir esb ater a an sied ad e, a su a m en te en con tra-se q u ase
em lugar de ser integrado, será ex p e rim e n ta d o ... c o m o um a interfe­ ex clu siv am en te concentrad a na preparação para o s ex a m es do prim eiro
rên cia exterior. ano. N o fu n d o, era isso qu e o s seu s p ais q u eriam q u e fiz e sse . P rom e-
N esta s fa m ília s, a lém d isso , o jo v em tam b ém n ão usufrui das leram -lhe o em p rego n ecessário à sua tran sição para a vid a adulta.
van tagen s de ob servar as in teracções e m o cio n a is entre o s seu s m o d e­ A gora que está p ela prim eira v e z en tregu e a si próprio, v iv e n o terror
lo s parentais e de se fam iliarizar co m ela s. Para se m anter um a relação de falhar o m aior d e tod os o s ex a m es - e ssa im portante transição
autoritária é n ecessário que se cu ltiv e a in d iferen ça e o distanciam en to sim b ó lica para a vid a adulta: o qu e e le m a is g o sta v a era d e tirar um
em o cio n a l. E m situ a çõ es d este tipo, a relação entre o s p ais é um livro curso de lidar co m as m iúdas.
fech a d o , qu alq uer c o isa que não é da con ta da criança. A ssim , sem S em p re qu e surgir a gota q u e fa z transbordar o co p o (a rep rovação
qualq uer m o d elo de relação em o cio n a l, a crian ça fica m al preparada no ex a m e, por e x e m p lo ), o jo v em p od erá even tu a lm en te m ergulhar
para a vid a. A criança não poderá to m ar-se in d ep en d en te se o s sen ­ num a crise ex isten cia l que, in ev ita v elm en te, fará irrom per e m o çõ es
tim en tos a n ão guiarem nas suas próprias c o isa s. E co m o se lhe com cu ja força e in ten sid ad e nu nca fora con fron tad o an tes, d esd e a
tiv esse m quebrado as asas em o cio n a is. T orn a-se in cap az de voar para infância pré-verb al, ou seja, d esd e q u e aprend eu a v iv er n o c o le te de
fora d o n in h o fam iliar. E n em o jo v em n em a sua fa m ília con segu irão forças em o cio n a l im p osto p e lo s p ais. E ssa s p od erosas em o ç õ e s p o ­
com p reen d er co m clareza o que é que terá corrido m al. dem já estar esq u ecid a s. E ssas e m o ç õ e s, v iv id a s nas prim eiras fase:,
A m b as as partes v ã o ter d ificu ld a d e em achar um a m aneira de da in fân cia, foram , d e algu m m od o, co n o ta d a s co m id eias d e vergon h a
exp rim ir o qu e a con teceu . E m uito com u m , m esm o na literatura p si­ e de fraqueza. O jo v e m esq u izo frén ico p o d e ser só cap az d e pensar
quiátrica, quando se pretende arranjar um a ex p lica çã o para o su ced id o, dentro de um a gam a con cep tu al lim itad a p ela ex p ecta tiva d os p ais,
p ergun tar-se sim p lesm en te: “Q uem é que teve a cu lp a ? ”; “A quem que desejam a con form id ad e co m a segu ran ça, a resp eitab ilid ad e e as
vam os atribu ir responsabilidades p o r isso ?” E ste tip o d e perguntas é boas m aneiras. E stas referên cias d os p ais rep ressores é qu e vão servir
q u ase eq u iv alen te a um a outra: “Q uem é que vai ser pu n id o ? " E ste para ajuizar da valid a d e ou n ão d e um a série d e em o ç õ e s p o sitiva s ou
tip o d e m en talid ad e está por detrás de todas as rela çõ es so cia is auto­ n egativas e, d e sse m od o, servir d e g u ia ao jo v e m para a acção.
ritárias; é a m aneira de pensar, o tipo de lin g u a g em , que se encontra O s sen tim en tos p sicó tico s são d e tal m o d o d escon certan tes q u e é
em estruturas d e com an d o v erticais, do g én ero “F a z o que te m a n ­ a própria fa m ília qu e autom aticam en te o s d esau toriza. E sses sen ti­
d a m ” ... m en tos ora p arecem surgir sem m ais n em m en o s, ora são atribuídos
A fa m ília p o d e pensar qualquer co isa com o: “Q ue pen a o João à “ru in dad e” da p e sso a , ora se atribui “e s s a lou cu ra” a um a avaria
estar a com portar-se desta m aneira tão bizarra, era um. m oço tão q u ím ica ou a um g en e d e fam ília.
estudioso e tão certinho; é certo que sem pre fo i bastante tím ido, m as N u m a regressão em larga esca la , o jo v e m c o m e ç a a reviver id eias
tinha sido sem pre até agora o orgulho da fa m ília .. D e facto, a crise e m ed os d e in fân cia, p od en d o retroceder até às fan tasias d efen siv a s
qu e o João atravessa co n siste e m n ão passar d e u m p e so m orto, um a m ais infantis para lidar co m o reavivar d e sen tim en to s e m ed os ina­
vergon h a para a fam ília, cu jos dogm as internos rejeita para d ep ois ceitá v eis. Q uando n os referim os aos estad os d e p erp lexid ad e, em m inha

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op in iã o esta m o s a referir-nos a um a ten tativa d e interpretar o m undo brir o sig n ifica d o d e ssa s id eias estranhas, im agin an d o a co rresp on ­
através d os esq u em a s m en tais da prim eira in fân cia, v a g o s e p o v o a d o s dente situação em o cio n a l na in fân cia. D e v e -s e tentar recon stitu ir a
d e m ed os. O s d elírios m ais sistem a tiza d o s, p elo contrário, corresp on­ situação m ental interior d e um a criança, qu e ainda n ão p o d e fazer
d em , m u itas v e z e s, a p ro cesso s m a is flu en tes de p en sam en to. ideia nenhum a d aq u ilo q u e a vid a lh e reserva em term os d e ap ren d i­
P en so qu e o s p sicoterap eu tas q u e d esen v o lv eram um a esp ecia l zagem . A activid ad e interpretativa d e um a criança terá d e ser c o n c e ­
aptid ão para lidar co m p e sso a s p sicó tica s poderão ta lvez aprender a bida no co n tex to da m u ltid ã o d e co isa s do m u n d o físic o e so cia l q u e,
lidar m ais de perto co m a interpretação destes estranhos estad os m entais enquanto p ercep çõ es ex terio res, são tó p ico s e estím u lo s q u e actu am
reg ressiv os. N a an á lise retrosp ectiva d estas ex p eriên cia s, o m étod o nessa m en te infan til. A m en te p sicó tica regredida é a m en te d e um
terap êu tico m ais rápido ta lv e z seja o d e exp licar ao p acien te, através adulto-criança.
d e vários e x em p lo s e num a lin g u a g em sim p les, co m o é q u e e sse s
esta d o s m en tais se p rocessam ; e procurar de seg u id a em penhar o
p acien te na sua própria interpretação das ex p eriên cia s d e sses estad os Cari Jung e a percepção extra-sensorial
m en tais p assad os. N ou tros escrito s m eu s sobre p sic o se s tenho pro­
curado dar um certo núm ero d e e x e m p lo s d essa terapia.
R. J. van Helsdingen
U m ex em p lo de r e v iv e sc ê n c ia d e sse p en sam en to infantil era a Perto do fim da v id a , Jun g falava m ais à von tad e das suas o p in iõ es
m inh a fan tasia seg u n d o a qual o fo g o era o a sp ecto nuclear de um a
e exp eriên cias p e sso a is sob re as a lu cin a çõ es. D e acordo co m a sua
e sp é c ie d e ritual preparatório das rela çõ es sex u a is. V en d o as co isa s
autobiografia, M em ó ria s, Sonhos e R eflexões, este assu nto era ob jecto
retrosp ectivam en te, esto u certo d e q u e essa bizarria surgiu co m o um a
das suas p reo cu p a çõ es d e sd e o s seu s p rim eiros escrito s cie n tífic o s.
interpretação, na prim eira in fân cia, d o traum a de m e castigarem por
D iz ele:
brincar co m fó sfo ro s. N a m inh a m en te da prim eira infân cia, é p o ssív e l
qu e os fó sfo ro s e o fo g o se ten ham a ssu m id o co m o um sím b o lo de “O primeiro livro, de 1905, tratou da psicologia da dementia praecox
ser crescid o e adu lto, isto é , p o d ero so . A este p rop ósito, d e v o acres­ [esquizofrenia]. O meu objectivo era demonstrar que os delírios e as aluci­
cen tar qu e qu em dava tais ca stig o s era o m eu pai, que era tam bém o nações não eram, de modo nenhum, sintomas específicos de doença mental,
m eu co m p etid or e rival p ela a feiçã o e aten çõ es da m inha m ã e ... antes tinham, acima de tudo, um significado humano."
L em b ro-m e nitidam en te de c o m o a v isã o de um a ca ix a d e fó sfo ro s
grande, co m um barco d esen h ad o , d esen ca d ea va palavras na m inha S en d o a ssim , o q u e v em a ser um a alu cin ação? U m a a lu cin ação é
cab eça qu e iam e vinham sem cessar: “E le há-de aprender, ele há- um a percep ção sen sorial q u e n ão é corroborada por nen h u m a outra
-de ap rend er.” A m inha m en te aterrorizada queria saber que diabo p essoa. N o en tan to, por si só , esta d efin içã o n ão é su ficien te: se por
teria eu para aprender e por qu e m o tiv o essa id eia se repetia con stan ­ acaso eu vir ou ou vir a lg o d e q u e m ais n enh um a p esso a seja testem u ­
tem en te. V en d o as co isa s agora, p arece ó b v io que e sse s fó sfo ro s d e­ nha, isso não quer d izer q u e a m inha p ercep ção não seja correcta.
sen cad eavam , n o m eu estad o d e reg ressã o , as m em órias d o m eu pai M ais p rob lem ática ain d a é a d ificu ld a d e d e d efin ir n orm alidade. U m a
d izen d o q u e o q u e eu tinha era d e aprender a deixar d e brincar co m p esso a q u e d iga q u e o u v e v o z e s n ão é n ecessariam en te anorm al n em
fó s fo r o s ... A an sied ad e, tão in ten sa, era a m em ória do m ed o que eu perturbada m ental: Joana d ’A rc, por ex em p lo , ou viu a v o z d e D eu s
tinha d e sse ca stigo . ch am an do-a a salvar a França - qu e fo i p recisam en te o qu e e la fez.
H oje já não ach o assim tão d ifícil interpretar as m inhas próprias C hegaram até n ós in ú m eros d ocu m en tos d essa ép oca, in clu in d o o s
ex p eriên cia s, por m ais bizarras q u e sejam . O segred o é tentar d e sc o ­ interrogatórios do tribunal q u e a con d en ou . O s interrogatórios reve-

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Iam qu e tudo o q u e ela d isse era absolutam en te lú cid o e razoável, “A partir da minha experiência no baptistério de Ravena, fiquei a saber
ex cep to o facto d e teim ar em que D eu s falava p e sso a lm en te co m ela. com toda a convicção que algo interior a nós poderá parecer-nos exterior.
É cu rio so q u e a m aioria dos fran ceses de hoje ten de a acreditar n essa Antes de mais nada, o que ali mais me impressionou foi aquela luz
história. azulada que inundava a sala; não fazia ainda ideia nenhuma do que se estava
a passar. Não procurava sequer explicar de onde vinha aquilo nem me
Q u ando tem o s um a determ inada p ercep ção, acred itam os q u e essa interrogava por que é que semelhante luz, sem qualquer origem aparente, me
p ercep ção tem a v er co m a lg o exterior a n ó s, apesar d e a p ercep ção não perturbava. Estava um pouco surpreendido por, em lugar das janelas
em si ser interior a n ó s próprios. A n tes que a p ercep ção em si seja que me recordava de ter visto da primeira vez que lá fui, estarem agora
con su m ad a, é n ecessá rio que a im p ressão sensorial corresp ond ente quatro grandes painéis de uma incrível beleza, dos quais não me tinha
seja incorporada n u m a c o m p lex a rede de m em órias: q u and o se v ê ou apercebido da primeira vez. Sentia-me humilhado por ter uma memória tão
se o u v e algu m a c o isa p ela prim eira v e z , essa v isã o ou e ssa im pressão fraca. O painel do lado sul representava o baptismo de Cristo no rio Jordão; o
au d itiva só se to m a um a percep ção quando é situada n e ssa rede de segundo painel, do lado norte, representava a travessia do mar Vermelho pe­
los Filhos de Israel; o painel leste esvaiu-se rapidamente da minha memória.
m em órias. P or e x e m p lo , tenho por adquirido q u e a esfero g rá fica que Quando regressei ao meu país, pedi a um amigo meu que ia a Ravena
segu ro na m ão tem determ inada form a e determ inada linha, q u e ex iste que me trouxesse reproduções daqueles painéis. Ele não os encontrou; pelo
n o esp a ço e q u e m e esto u agora a servir dela. A m inha esfero g rá fica contrário, descobriu que os painéis de que eu lhe falara pura e simplesmente
está p resente n o m u n d o exterior d o esp a ço e do tem p o (n o agora), m as não existiam.”
é graças apenas ao m eu próprio m undo interior, à m inh a c o n sciên cia
d o esp a ço e d o tem p o , q u e m e é p o ssív e l fazer essa o b serv a çã o . É e sse O s p a in éis d e Jung foram v isto s apen as p e lo s o lh o s da sua m en te.
m eu m u n do interior q u e m e p erm ite ter p ercep ções; qualquer percep ­ A p red isp o sição relig io sa fê -lo ver quadros o n d e e le s n ão existiam :
çã o do m un do exterio r im p lica o en v o lv im en to d e um a grande parte por outras palavras, tev e a lu cin a çõ es v isu a is. E m várias o ca siõ es,
d o n o sso m un do interior. Q uando p erceb em os a lgu m a co isa , co m a esp ecia lm en te em p eríod os d e introversão m ais in ten sa, Jung teve
v ista ou co m o s o u v id o s por ex em p lo , p arece-n os qu e se trata d e algo tam bém a lu cin a çõ es aud itivas na form a d e v o z e s. V o lta e m eia, Jung
qu e está co m p leta m en te separado de n ó s, m as a verd ad e é que o n o sso refu g ia v a -se n u m a casa d e cam p o qu e e le p róp rio construíra, num
m un do interior está co m p leta m en te e n v o lv id o n o p r o c esso da per­ lugar recôn d ito do lag o d e Z u riqu e, on d e, em p rofu n d o iso la m en to ,
cep ção. ou via v o z e s em redor da ca sa durante a n oite. L ev a n ta v a -se da cam a
e ia ver se h avia alg u ém por ali; n ão v ia n in gu ém e volta v a para a
Sem p re q u e o n o sso n ív el de co n sciên cia afrouxa, o s asp ectos
cam a. E stas exp eriên cia s rep etiram -se d iversas v e z e s. Jung sentiu ,
p e sso a is, su b jectiv o s, to m a m -se m ais p roem in en tes. Q uando son h o
m ais tarde, um a c o n v icçã o q u ase ab solu ta d e q u e se tratava das v o z e s
acordad o, o n ív el da m inha c o n sciên cia exterior é inversam en te pro­
das S a lig L ut, isto é, das alm as d os m ortos q u e in corp oravam o ex ér­
p orcion al ao m eu em p en h am en to no m un do su b jectiv o da p ercep ção; cito do deus germ ân ico W otan; n aq u ela reg iã o, a cren ça em W otan
o b serv o co m m en o s n itid ez o m undo que m e rod eia e o s factores não esta v a ainda totalm en te extinta.
em o cio n a is, e o m un do das m inh as record ações c o m e ç a a entrar em Jung atravessou um p eríod o m u ito d ifícil da vid a , em qu e a sua
cen a. N as p e sso a s m u ito introvertidas, para quem o m un do interior saúde m ental estava bastante abalada. D uran te e s s e p eríod o, por d i­
das e m o çõ es e d o s p en sam en tos tem m ais sig n ifica d o d o q u e aqu ilo versas o c a siõ e s, o u v iu a v o z d e um a m ulh er q u e lh e d izia ser e le um
qu e se p assa n o m un do exterior, as im agen s e as v o z e s interiores são, artista e q u e d everia d ed icar-se à pintura. D uran te algu m tem p o Jung
m uitas v e z e s, m ais nítidas d o que o s estím u lo s ex teriores que lh es segu iu o c o n selh o d essa v o z , até se dar con ta d e q u e ela n ão estava
são paralelos. E scr ev e Jung: de b o a fé e q u e o queria enganar. E screv e Jung:

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“Na verdade, a paciente cuja voz falava dentro de mim exercia uma por mim, mas que, em sua opinião, os pensamentos são como animais na
influência nefasta sobre os homens. Chegou mesmo a falar a um colega meu, floresta ou como pessoas dentro de uma sala ou, ainda, como pássaros no
tentando convencê-lo de que ele era um artista pouco dotado. Ele acreditou ar - e comentava: ‘Se vires pessoas numa sala, não concluis que essas
e abandonou a arte. E porquê? Ele não tinha uma auto-estima por aí além, pessoas foram criadas por ti ou que és responsável por elas. ’ Foi ele que me
mas sempre ia ganhando alguma com a opinião das outras pessoas sobre o ensinou a objectividade psíquica, a realidade da mente. Por ele fiquei a
seu talento. No entanto, a ocasionalidade destas opiniões reforçava-lhe a conhecer a distinção entre mim e o objecto do meu pensamento. Ele confron-
insegurança e abria caminho às insinuações da anima; aquilo que a voz dizia tava-me de maneira objectiva e percebi que há qualquer coisa em mim que
tinha muitas vezes um poder sedutor, uma insondável astúcia. é capaz de exprimir coisas que desconheço, que não fazia tenção de dizer
Especialmente durante o tempo em que trabalhei sobre as fantasias, tinha e que podem até ser contrárias a mim.
necessidade de um ponto de apoio neste mundo e devo confessar que a minha No entanto, era evidente desde a primeira hora que eu seria capaz de
família e o meu trabalho eram esse ponto de apoio. Acima de tudo, era para descobrir uma relação com as pessoas e o mundo que me rodeia, assim
mim essencial ter uma vida vulgar no mundo real, fazendo contraponto a esse conseguisse demonstrar que os conteúdos da vida mental são reais; e não
estranho mundo interior. A minha família e a minha profissão continuaram apenas por serem experiências pessoais minhas, mas por constituírem expe­
a ser a base à qual podia regressar sempre e em qualquer altura, assegu­ riências colectivas que podem acontecer também às outras pessoas. Foi o
rando-me de que continuava a ser uma pessoa real e vulgar.” que procurei demonstrar na minha obra científica posterior.”
D ep o is d e lib ertar-se d estes apuros, Jung entrou em con tacto co m D eterm in ad o con ju n to d e sen tim en to s - o ch am ad o c o m p le x o
um sáb io que e le id en tificava co m o sen d o o F ilém o n da M ito lo g ia em o cio n a l - p od e dom inar p or co m p leto , a p on to d e d estacar-se da
G rega. E ssa v o z era para Jung um a in flu ên cia b en éfica , que lh e dava psiq u e e assu m ir a form a d e um a p esso a . E por isso que, seg u n d o
co n se lh o s sá b io s e resp on dia às suas q u estõ es. Jung, as v o z e s q u e as p e sso a s o u v em são sem p re p e rso n ifica çõ es d e
N a M ito lo g ia , F ilém o n era um pobre h o m em que co m a sua esp o sa parte da sua própria alm a; é p recisa m en te por se darem essa s p erso ­
B a u cis oferecera um a calorosa h osp italid ad e ao D eu s Su prem o, Z eu s, n ifica çõ es q u e o s o u vid ores d e v o z e s n ão as recon h ecem co m o parte
qu and o este o s v isito u disfarçado de m en d ig o . T od as as outras p esso a s integrante de si m esm o s - e le s ju lg a m q u e as v o z e s p rovêm d e outras
da região tinham escorraçad o o d iv in o Z eu s, quando este se lhes p esso a s. A liá s, essa era um a p o ssib ilid a d e qu e o próprio Jung não
apresentara sob aq u ele disfarce. E m p aga, Z eu s ca stig o u -o s co m um a punha d e parte. S egu n d o e le , cad a um d e n ós, ao n ív el m ais profun do
terrível inu nd ação, da qual apenas se salvaram F ilém o n e B au cis. da p siq u e, está em con tacto c o m a vid a espiritu al in co n scien te d e toda
Para Jung, F ilém o n era um v elh o sá b io q u e o ilu m in ou em m uitos a gente; e sse con tacto p od e até abranger n ão apen as as p esso a s qu e
a sp ecto s. N a realidade, a obra g n ó stica m ais profunda de Jung, Os já m orreram c o m o in clu siv e aq u elas q u e ainda estão para nascer.
Sete Serm ões aos M ortos (Septem Serm ones a d M ortuos), fo i-lh e A esta partilha d o reino esp iritu al ch am ou Jung o inconsciente colec-
ditada por F ilém on . E screv e Jung: tivo, d im en são qu e en glo b a tod a a H u m anidad e e perm ite qu e as
p e sso a s estejam em con tacto u m as co m as outras sem ser através da
“Filémon, assim como outras personagens da minha fantasia fez-me ver percep ção sen sorial*. E sta teoria co n tem p la a p o ssib ilid a d e d e se ou vir
que há coisas na minha psique que não são produzidas por mim, antes se v o z e s d e p esso a s q u e n ão esta m o s a v er ou q u e já m orreram há m uito.
originam a si mesmas e possuem vida própria. Filémon representava uma
força que não fazia parte de mim. Na minha fantasia mantive conversas com
ele, nas quais me dizia coisas em que eu nunca tinha pensado consciente­
mente. Por isso, vi nitidamente que era ele que falava e não eu. Dizia-me ele * Os aborígenes australianos entendem que a verdadeira comunicação é a tele­
que eu encarava os meus pensamentos como se fossem realmente produzidos pática. O Povo Verdadeiro não entende que a voz tenha sido feita para falar. Segundo
eles, a voz foi feita para cantar, para festejar e para sarar (ver Morgan, M., 1996).

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À lu z de tudo isto, é perfeitam en te co n c eb ív el que o s co m p le x o s A n tes d o m a is, Jayn es an alisa o c o n c eito d e c o n sciên cia , dan do a
em o cio n a is rep resen tem um a parte d o in co n scien te c o le c tiv o , o q u e sua própria d e fin içã o , partindo d aq u ilo q u e a c o n sc iê n c ia n ão é:
m e tom aria p o ssív e l aceitar a realidade da escu ta d e v o z e s de p e sso a s
m esm o que ela s n ão estejam p resen tes. A p o ssib ilid a d e d e um tal - A aparente con tin u id ad e da exp eriên cia é um a ilu sã o q u e deriva
fen ó m en o ocorrer é p oten cia d a , em grande m edida, por factores co m o da d iv isã o artificial do tem p o. N ão esta m o s co n scien tes tanto
a introversão extrem a, o afrouxam en to d o estad o d e c o n sciên cia e tem p o c o m o ju lg a m o s, dad o q u e n ão p o d em o s ter c o n sc iê n c ia do
um a lig a çã o m uito forte à p e sso a cuja v o z se o u v e. P or e x em p lo , um a tem p o durante o qual n ão esta m o s co n scien tes.
viúva que m uito am ara o seu m arido ouvia a voz dele sem pre que - A c o n sc iê n c ia n ão é um a m era rep rodu ção da ex p eriên cia . A m e­
tinha necessidade de to m a r decisões difíceis. N um outro exem plo, m ória c o n scien te n ão é um arqu ivo d e im agen s sen so ria is, m as
um a jo vem que tinha um a fo rte ligação ao p a i ia de vez em quando um a reelab oração d e qualquer c o isa de qu e p reviam en te tiv em o s
à cam pa dele p a ra com ele fa la r e se aconselhar. N en h u m a destas co n sciên cia .
situ a çõ es é , por si só , in d íc io d e perturbação m ental. - A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el à co n cep tu a liza çã o . N u n ca
O s q u e são v u ln erá v eis ao s sen tim en tos d e cu lp a o u v em , por v e z e s , n in gu ém tem c o n sciên cia d e um a árvore. P erante a ex p eriên cia
v o z e s críticas, acusad oras e o fen siv a s. E acreditam , m uitas v e z e s , q u e de um a árvore, a fu n ção da lin g u a g em é perm itir q u e d eterm i­
ela s p rovêm do exterior, sem reparar n o papel d esem p en h ad o p e lo seu nada palavra sub stitu a um co n ceito .
m un do interior na g é n e se d o fen ó m en o . - A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el à aprend izagem : o c o n d ic io ­
nam en to n ão e x ig e a m ed ia çã o da co n sciên cia . A a q u isição de
determ in ad os traços com p ortam en tais a co n tece au tom aticam en te.
Jaynes e a consciência A c o n sc iê n c ia d esem p en h a o seu p ap el quando eq u a cio n a deter­
m inado p rob lem a d e d eterm inada m aneira, m as n ão é essen cia l
Patsy Hage para lhe dar so lu çã o .
- A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el ao p en sam en to. P ensar em
N o livro T he O rig in o f C o n scio u sn ess in the B rea kd o w n o f algu m a c o isa nu n ca é co n scien te. P en sa m o s antes d e saberm os
B ica m era l M ind*, Julian Jayn es prop õe um a teoria sobre a relação o que v a m o s pensar. U m a parte im portante d este p r o c esso é a
entre a ev o lu çã o h istórica da c o n sciên cia e o fen ó m en o da escu ta de inform ação in icial, qu e p erm ite q u e tudo a con teça au tom atica­
v o z e s. N ã o d isp o n h o aqui d e esp a ço para m ais do que um m uito breve m ente.
com en tário às id eias d este autor m as, no esse n c ia l, o im portante é a - A co n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el ao racio cín io . O racio cín io
sua n otável afirm ação d e q u e, até cerca do ano 1300 da n o ssa era, co n siste n u m a vasta gam a d e p r o c esso s naturais d e p en sam en to
a escu ta, de v o z e s era vu lgar e norm al entre o s seres hum anos e que na vid a d o d ia-a-d ia. T em o s n ecessid a d e da ló g ic a porq ue a
essa exp eriên cia era b em integrada por aqu ilo a q u e h oje ch am am os m aior parte d o ra cio cín io n ão é co n scien te.
co n sciên cia . S eg u n d o Jayn es, as p e sso a s q u e h oje o u v em v o z e s seriam
os v e stíg io s v iv o s d e sse s tem p os antigos. T em os ten d ên cia a lo caliza r a c o n sciên cia no interior da n o ssa
cab eça, on d e in v en tá m o s um esp a ço para ela , em b ora sa ib a m os que
* A Origem da Consciência a partir do Colapso da Mente a Duas instâncias.
Esta “mente a duas instâncias” foi também admitida por Freud, com o seu Consciente sem elh an te esp a ço n ão ex iste. A ristóteles lo ca liza v a a c o n sciên cia
e Inconsciente. Porém, para Jaynes, ambas as instâncias são inconscientes. algu res na parte sup erior d o coração. M as tam bém a p od eríam os

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loca liza r p erfeitam en te n o quarto d o lad o , um a v e z que não ex iste que cada p e sso a d e per si n ão é cap az d e co n ceb er co n scien tem en te
n en h u m a lo c a liza çã o , n o sen tid o que é co stu m e im aginar. o que há-de fazer. T od a a Ilíada ilustra, a ssim , n ão o carácter m as os
C o m b a se nas suas o b serv a çõ es, Jayn es co n c lu i q u e é perfeitam ente feitos d os h u m an os realizad os ao serv iço d o s d eu ses. N ad a há na
p la u sív el um a civ iliz a ç ã o on d e não ex ista a c o n sciên cia . E Jaynes Ilíada que su gira a p o ssib ilid a d e d e um d eb ate d e um ser hu m ano
tam b ém d isse qu e n ão n os é p o ssív e l com p reen d er a c o n sciên cia c o n sig o próprio ou qualquer tip o d e resp on sab ilid a d e p e sso a l. E sses
porq ue n ão tem os m etáforas para ela, e sem m etáforas não há co m ­ sin ais id en tificativ o s da co n sciên cia só h averiam d e surgir m ais tarde
p reen são p o ssív e l. S erv im o -n os d o esp a ço c o m o um a cessó rio da na H istória, co m o produto d e cultura - q u an d o o H o m em , por assim
co n sciên cia : por ex em p lo , co n ceb em o s o tem p o em fu n ção de um dizer, se to m o u o d eu s d e si m esm o . L o g o q u e a m en te a duas in s­
m o v im en to da esqu erd a para a direita, seg u n d o o s p on teiros do reló ­ tâncias entrou em d eca d ên cia, em ergiu a co n sciên cia .
g io . T o m a m o s co n sciên cia das partes de um tod o da m esm a m aneira H á um a sem elh a n ça n otá v el entre a m an eira c o m o o s d eu ses falam
q u e m a is fa cilm en te tem o s co n sciên cia de um p a lh a ço d o que d o circo na Ilíada e o m o d o co m o m u itos d e n ó s exp erim en tam a escu ta de
todo. U tiliza m o s a m etáfora “E u ” para tudo o qu e a co n tece na n o ssa v o z e s. O s d eu ses falam uns co m o s ou tros, am eaçam , am ald içoam ,
im a g in a çã o , na v e z d e utilizarm os m etáforas a u m n ív e l co n scien te. criticam , delib eram , avisa m , co n so la m , troçam , dão ord en s, v a tici­
A c o n sc iê n c ia é um a m etáfora d o n o sso com p ortam en to real. N a nam . G ritam , lam u riam -se e escarn ecem . P assam , sem m o tivo aparente,
essê n c ia , p o is, a co n sciên cia fu n cio n a co m a ajuda da an alogia e d o do m urm úrio à gritaria. M uitas v e z e s, e x ib e m certas particularidades
esp a ço con stru íd o, co m um “E u ” a n álogo, qu e é ca p az de observar e sp e cífica s, co m o seja falar m u ito d evagar ou m u ito ritm icam ente.
e sse e sp a ço e d e se m ovim en tar m etaforicam en te dentro d ele. Na Ilíada, o s d eu ses eram sem p re o b ed ecid o s. D e igu al m od o,
E stes sã o, em sum a, o s principais fu n d am en tos da tese de Jaynes. m uitos de n ós o b ed ecem o s às v o z e s q u e o u v im o s, e Jayn es sugere
O a sp ecto central é a n o çã o d e que é p erfeitam en te p la u sív el que um a algu m as ex p lic a ç õ e s p la u sív eis para esta o b ed iên cia às v o z e s e aos
so cied a d e fu n cio n e em p len o e ond e a c o n sc iê n c ia n ão exista. S egu n d o d eu ses. Q uando preten dem os entender algu ém que fala co n n o sco , tem os
Jayn es, e ssa so cied a d e está m u ito b em e x em p lifica d a na Ilía d a , livro de ir m en talm en te ao en con tro da sua m an eira d e ser e p orm o-n os no
escrito por H om ero m uito antes de ex istir a co n sc iê n c ia tal co m o a seu lugar. Q u and o aqu ilo q u e n os d irig em é um a ordem , essa id en ­
co n h ecem o s: ou seja, n o tem p o em que toda a g en te ou v ia v o z e s. tifica çã o to m a -se o b ed iên cia . S ó p o d em o s evitar essa o b ed iên cia se
A parentem ente, na Ilíada não se en contram qu aisq uer term os rela­ ex istir um d istan ciam en to e fe c tiv o entre n ó s e a p e sso a qu e fala ou
cio n a d o s c o m a c o n sciên cia ou co m p ro cesso s m en tais; na relig iã o d os se estiv erm o s p red isp ostos a d iscord ar d as su as ordens e das suas
an tigos G reg os o s d eu ses estavam no lugar da co n sc iê n c ia . C om o d izia in ten ções. O s d eu ses qu e falam na Ilía da esta v a m em con tacto m ais
A gam ém n on : “O s deuses fa ze m sem pre o que lhes a p ra z.” A. Ilíada ín tim o co m o s h u m an os do qu e estes co m o seu próprio “E u ”. O s
rep resen ta aqu ilo a que Jaynes ch am ou a “m en te a duas in stân cias”, d eu ses eram o b ed ecid o s porq ue os h u m an os n ão estavam p red isp ostos
isto é , o fu n cio n a m en to d o esp írito hu m ano a d o is esp a ço s ou co m ­ a discordar das ordens d eles: o s d eu ses eram sem p re o m n iscien tes e
partim en tos, d ig a m o s, duas câm aras, am bas in co n scien tes. A câm ara o m n ip oten tes e não p od iam ser d esau torizad os.
m aior é ocu p ad a p e lo s d eu ses, q u e falam c o m o s hu m anos, e p elas M ais adiante, Jayn es d á-n os no seu livro um a d escrição m uito
suas v o z e s. O in d ivíd u o - o crente - ocu p a a outra câm ara e ex ecu ta técn ica das fu n çõ es d os d o is h em isfério s cereb rais. O q u e é n ecessário
a ctos cerim o n ia is. O p od er d e von tad e, p la n eam en to e in iciativ a não aqui referir é a sua n o çã o seg u n d o a qual é o h em isfério d ireito aqu ele
ex iste a um n ív el co n scien te; as a cçõ es e as d e c isõ e s são da alçada q u e tem cap acid ad e d e ou vir v o z e s, e q u e o s d o is h em isfério s p od em
d os d e u ses e o in d ivíd u o lim ita -se a o b ed ecer às ordens d e les, um a v e z fu n cion ar separad am ente - tal e qual co m o a relação d eu ses-h o m en s

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n os tem p os da m en te a duas in stân cias. O cérebro p o d e ser in flu en ­ d eu ses. A H u m an id ad e d ep arou -se co m m ú ltip los e variad os d eu ses
cia d o por aqu ilo que o rod eia e, sen d o a ssim , a cultura p od e fa zê-lo cm co n flito uns co m o s outros; e no p eríod o entre 2 1 0 0 e 1 3 00 a.C .
passar d o registo a duas in stân cias para aqu ilo a que ch am am os estad o esses sistem as so cia is foram d eixan d o com p leta m en te d e fu n cio n a r à
d e co n sciên cia . custa da escu ta d e v o zes: a c o n sciên cia co m eço u en tão a d e se n v o lv er -
Jayn es fa z o historial da escu ta de v o z e s ao lo n g o da ev o lu çã o -se e a tom ar co n ta d o p ap el d o s d eu ses. D o fim d e sse p eríod o até aos
hum ana. S egu n d o e le, a lin g u a g em teria in icialm en te surgido na form a dias de h oje já só um a p ercen tagem red uzid a d e p esso a s co n tin u a a
d e gritos em reacção a a m eaças, gritos que lo g o seriam u tilizad os ouvir v o z e s - por e x e m p lo , aq u elas qu e visita v a m o s orácu los g reg o s
p e lo s líd eres no interior do seu resp ectiv o grupo, co m o a v iso de um e os profetas da B íb lia .
p erigo esp ecia l. D ep o is teriam ap arecid o palavras em b lem áticas que A m inha própria co n c lu sã o da leitura da obra d e Jayn es é qu e
o líd er usaria para atribuir tarefas aos vários m em b ros d o grupo. a origem da c o n sc iê n c ia radica p recisam en te no co la p so da m en te a
A m ed id a que essa s tarefas se tornavam cada v e z m ais co m p lex a s, duas instâncias: isto é , n o d esap arecim en to da escu ta d e v o z e s e n ­
d e se n v o lv ia -se tam bém o s e lf in d ivid u al e as p e sso a s com eçaram a ter quanto fen ó m en o g en era liza d o e un iversal. A q u eles d e n ós qu e c o n ­
a lu cin a çõ es da v o z d o líd er a dar ordens. tinuam a ouvir v o z e s estã o p o is, a b em dizer, a v iv er n o sé cu lo
C om o d e se n v o lv im en to d e co m u n id a d es d e m uitas cen ten as ou errado.
m esm o m ilh ares de p esso a s, surgiu o rei - cuja v o z era ou vid a por
toda a com u n id ad e. Q uando o rei m orria, o seu p o v o con tin u ava a
ou vir a sua v o z e e le era e le v a d o ao estatuto d e d eus. D este m od o,
a hu m an idad e fo i criando o s seu s d eu ses. E rigiram -se tem p los e está ­
tuas para fazerem as v e z e s d o s tú m u los d os reis fa lecid o s. A s cid ad es
foram crescen d o e to m o u -se en tão n ecessária um a m en te a duas in s­
tân cias - co m a sua cap acid ad e d e ou vir v o z e s - para assegurar a
m an u ten ção do con trole so cia l. O s E g íp c io s tratavam o s seu s m ortos
m ais ilu stres c o m o se ainda co n tin u a ssem v iv o s, porque a com u n id ad e
ainda o u v ia as v o z e s d eles. E n contraram -se tem p los e lugares sagra­
d os para os d eu ses cuja idade a tin ge o s 7 0 0 0 anos. E ncontraram -se na
T urquia im agen s de 1250 a.C . rep resen tando vários d eu ses alin hados
uns ao lado d os outros, o q u e testem u n h a graficam en te o quanto o s
d eu ses eram p róxim os entre si.
Jaynes p assa em revista várias culturas antigas, tentando dem onstrar
qu e m uitas socied ad es eram govern ad as por interm édio dos seus d eu ses,
escu ta d o s na form a de v o z e s. M as, d ad o que estas so cied a d es estavam
em p erm anente exp an são, torn an d o -se cada v e z m ais co m p lex a s, e
dad o q u e as suas p o p u la çõ es se co m eça v a m a dedicar ao co m ércio
(através do qual entravam em co n tacto co m outras culturas e outros
d e u ses), torn ava-se cada v e z m ais d ifícil preservar a c o esã o entre os
ASSUMIR O CONTROLE DA SITUAÇÃO

Vivem em nós inúmeros,


Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais alma que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos,
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
(Fernando Pessoa,
Odes de Ricardo Reis )
Introdução -E s c r e v e r um diá rio - n esta S e cçã o reu nirem os o s relatos de
Marius Romme quatro p e sso a s q u e o u v em v o z e s e qu e n os ex p lica m p or qu e
com eçaram a escrev er o seu diário e d e qu e form a essa estratégia
N e ste C ap ítu lo v a m o s passar em rev ista algu m as das técn icas o s ajudou.
seg u id a s p e lo s o u vid ores d e v o z e s e /o u p e lo s seu s terapeutas para - Interajuda e ajuda m útua - n esta S e cçã o an alisarem os o s p o ssí­
co n seg u ir obter um m aior con trole n a sua relação co m as v o zes. v e is b e n efício s d e fazer parte d e grupos d e ajuda m útua. U m a das
É b om qu e se n ote q u e não se trata d e curar p e sso a s das v o z e s que organizadoras, e la m esm a ou vid ora d e v o z e s, ex p lica -n o s co m o
o u v em . “C ura” é um a palavra qu e tem o s ev ita d o deliberadam ente ao fu n cion am e ste s gru p os, por qu e razão as p esso a s p articip am
lo n g o d e tod o este livro: n ós d e fen d em o s q u e ou vir v o z e s é um a n e les, que tip o d e o b je ctiv o s têm , etc.
ex p eriên cia hum ana q u e p od e estar carregada d e sig n ifica d o no c o n ­ - C oncentrar-se nas vozes - d o is p sic ó lo g o s d escrev em o m éto d o
tex to da vid a p esso a l e qu e, por c o n seg u in te, não d everá ser encarada q u e e le s m e sm o s d esen v o lv era m e aplicaram em p e sso a s qu e
sim p lesm en te co m o um a m era m a n ifesta çã o de um a d oen ça. o u v em v o z e s. E ste m éto d o preten de d esen v o lv er um a co m p reen ­
É claro que toda a regra tem as su as ex cep çõ es: n o ca so das v o z e s, são cada v e z m aior das p ercep çõ es e sua interpretação.
e ssa s e x c e p ç õ e s p o d em incluir as v o z e s o u v id a s n o âm bito de um a
- Técnicas d e con tro le da ansiedade - um psiquiatra d escrev e
e p ilep sia ou durante qualquer das fa se s p olares da p sic o se m an íaco-
algu m as técn ica s q u e u tiliza em ou v id o res d e v o z e s. E ssa s té c ­
-d ep ressiv a. N o entanto, as v o z e s q u e su rgem n o co n tex to do d ia g n ó s­
tico d e esq u izofren ia são freq u en tem en te um prob lem a m uito diverso. n icas foram c o n c eb id a s para esbater o s n ív eis d e an sied a d e, de
form a a p o ssib ilita r o assu m ir d o con trole da situ ação.
N e ste s ca so s, as v o z e s são sig n ifica n tes e dão, m uitas v e z e s, sen tid o
e orien tação à vid a de q u em as o u v e . O term o “cura” não se p od e - P rovocar o d iálogo entre vozes - esta S e cçã o dá con ta, em p or­
aplicar co m propriedade a essa s v o zes; é m ais um a qu estão de apren­ m enor, da ex p e riê n cia d e um a p sic ó lo g a em provocar o d iá lo g o
der a lidar co m ela s, d e lh es dar um lugar e um tem p o e sp e c ífic o s no entre v o z e s o u v id a s p or um a sua clien te, no intuito d e lh e d e se n ­
co n tex to da vid a co m o um todo. A fim de m in im izar a ruptura do v o lv er um grau m a is elev a d o d e con trole sobre elas.
fu n cion am en to qu otidiano to m a -se esse n c ia l alcançar o m áxim o de - R eabilitação - o o u v id o r d e v o z e s é, em larga m ed id a, in flu en ­
con trole p esso a l p o ssív e l. A este p rop ó sito , as estratégias descritas ciad o p ela natu reza d o seu m eio circu nd an te. A so cied a d e reage,
n este C apítu lo pod erão ser de grande utilidade. m uitas v e z e s, n eg a tiv a m en te ante a q u eles qu e c o n fessa m ou vir
F iz em o s um a lista g em d essa s estratégias por ordem d ecrescen te do v o z e s e, por e ssa razão, há q u e ter em d evid a con ta a n e cessid a d e
en v o lv im en to p esso a l que requerem por parte do ou vid or d e v o z e s. d e um program a d e reab ilitação. N esta S e cçã o , um psiqu iatra
A ssim , a S ecçã o E screver Um D iário aparece em prim eiro lugar, na su gere-n os a lgu m as form as d e abordar a qu estão.
m ed id a em q u e e x ig e um a p articip ação da p e sso a de qu ase 100% ; o
-M e d ic a ç ã o - aos o u v id o res d e v o z e s su b m etid os a tratam ento
C apítu lo term ina com a S ecçã o M edicação, na qual o contributo p essoal
p siq u iátrico sã o p rescrito s v ários tip os d e m ed ica çã o . N esta
d o ou vid or de v o z e s é m uito d im in u to, d ep en d en d o ainda assim do
S e cçã o , um p siqu iatra d á-n os con ta d os vários tip os d e fárm acos
en v o lv im en to p esso a l que o s outros lh e perm itirem .
h a b itu a lm en te u tiliz a d o s e d as circu n stâ n cia s em q u e e s s e s
P assarem os em revista as seg u in tes estratégias:
fárm acos são receita d o s.

292 293
Escrever um diário* Iransm itir um a situ ação d e natu reza tão p essoal: isto é, form ular aq u ilo
que as v o z e s d izem , com o são d esp oletad as p elas e m o çõ es e po rq u ê.
Sandra Escher O diário p od e con stitu ir um instru m ento m u ito útil n este p ro cesso .
U m d os seu s m aiores m éritos co m o instru m ento d e ajuda é a sua
O u vir v o z e s é um fen ó m en o c o m p le x o , m as, para m im , um dos infinita p a ciên cia e a su a total tolerância!
a sp ectos m ais im portantes é o da reflex ã o q u e p o d e suscitar aos A fim d e esb oçar as p o ssív e is fu n çõ es e o s p o ssív e is b e n e fíc io s de
o u vid ores de v o z e s a form a co m o e le s tentam lidar co m as suas escrever um diário, en trev istei quatro m u lh eres, todas ela s ou vid oras
em o ç õ e s e as d os outros. L idar c o m este prob lem a p o d e revelar-se um de v o z e s e ex -p a cien tes p siq u iátricas. P ed i-lh es um a in form ação p or­
in sid io so dram a em o cio n a l m as, n o fu n d o, é a lg o sem elh an te a ouvir m enorizada acerca da su a ex p eriên cia co m o diário, particu larm ente
um a p eça de teatro rad io fó n ico e p o d e con stitu ir para a p e sso a um a no que resp eita aos seg u in tes pontos:
p reciosa oportunidade de se com p reen d er a si m esm a. C ontu do, essa
- em que circu n stân cias co m eçaram o diário;
e x p e riê n cia p o d e tam bém d e se n ca d ea r sen tim en to s ex trem am en te - co m o reagiram as v o z e s ao diário;
n eg a tiv o s, red uzin do o ou vid or de v o z e s ao pân ico e à im potên cia. - saber se escrev er o diário ajudou a introduzir ordem n o ca o s e
C om u n ican d o co m o s outros acerca das v o z e s e suas rep ercu ssõ es, o a reforçar o sen tid o d o selfi
ou vid or d e v o z e s poderá, m uitas v e z e s , encontrar form as de obter um - saber se elas eram ca p a zes d e m ostrar o seu diário ao s a m ig o s
con trole m ais e fe c tiv o sobre a situ a çã o . E m m uitas das n o ssa s entre­ e fam iliares ín tim os;
vistas e d ebates c o m ou v id o res d e v o z e s d escob rim os que a d iscu ssã o - que sig n ifica d o tinh a o d iário para ela s.
desta p rob lem ática era um a das form as m ais im portantes e efic a z e s de
introduzir algu m a ordem num a ex p eriên cia caótica. O s que c o n se ­ O s resu ltad os d este p eq u en o inquérito vieram fazer a lgu m a lu z
gu em lidar co m este prob lem a adquirem um a m aior co n fia n ça em si sobre o p o ssív e l sig n ifica d o e u tilid ad e d e escrev er um d iário, c o isa
m esm o s e esta b elecem um a p rox im id a d e m aior co m o m eio so cia l que variava m u ito entre as quatro m ulh eres.
circundante.
C ontu do, algu m as p e sso a s sen tem certa d ificu ld a d e e algu m m al-
-estar em falar abertam ente sob re e ste s assuntos; n estes ca so s, em Senhora A
particular, p od e ser m uito útil escrev er um diário. É p reciso ser-se
cap az d e d escrever e exp licar as ex p eriên cia s e id eias próprias antes A senhora A , actu alm en te co m 3 4 an os d e idade, co m eço u a e s ­
d e poder partilhar de form a útil o s prob lem as e p en sam en tos e de crever um diário a resp eito das su as v o z e s d ep o is d e ter esc o lh id o um
n ovo terapeuta. N as prim eiras con su ltas fora-lh e m u ito d ifíc il abrir-
-se co m e le, e en tão d ecid iu , por sua própria in iciativa, co m eça r a
escrever um diário, para tentar exp ressar co m m ais clareza tudo o qu e
* Tudo o que a seguir é dito sobre a função catárctica e organizadora do diário pretendia dizer.
não é uma característica específica da escuta de vozes e dos ouvidores de vozes mas,
antes, uma característica comum a todos os diários e a quem os escreve. Seria uma
pena que estas funções normais dos diários nas pessoas que os escrevem fossem “Queria falar mas ficava-me tudo preso na garganta; por isso, comecei
reduzidas a uma tecnologia psicoterapêutica. O que se pretende aqui é estimular as a mostrar-lhe o meu diário assim que chegava. Então ele fazia-me perguntas
pessoas (normais ou “doentes”) a procurar formas de organizar as suas ideias ou as sobre o que eu tinha escrito, e dei conta de que era capaz de responder-lhe.
suas emoções pelos mecanismos de que toda a gente se pode servir nas mais diversas A princípio escrevia sobre as coisas depois de elas terem acontecido, mas
situações da vida. a dada altura comecei a escrever no preciso momento em que as vozes

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estavam a incomodar-me. A partir de então, o diário passou a tomar-se um Senhora B
relato muito confuso, embora isso não me provocasse qualquer ansiedade
suplementar e as vozes não me proibissem de escrever o diário. Nunca A senh ora B tem actu alm en te 2 6 an os d e id ad e. Q u and o co m eço u
escrevi o que as vozes me diziam concretamente; em vez disso, escrevia a sua terapia tinha von tad e d e con fiar n o seu terapeuta, m as n ão se
habitualmente acerca da minha sensação de impotência perante elas."
sentia ca p az d e se abrir co m e le . A co n selh o d e le c o m e ç o u a escrev er
A senhora A fa lav a da sua sen sa çã o d e im p o tên cia ao terapeuta, um diário e agora d iz q u e esta é a ún ica m an eira d e esta b elecer
e o s d o is em con ju n to procuravam so lu çõ es para as situ a çõ es em que contacto c o m o seu terapeuta. D isse -m e ela:
essa sen sação d e im p o tên cia surgia. U m dos e x em p lo s qu e ela deu “Durante a terapia era difícil submeter-me a uma hora de emoções
era ir a um a festa co m o seu nam orado: m uitas v e z e s tinha d e sair da obrigatórias. ”
festa a m eio por ca u sa das v o z e s, o que lh e trazia p rob lem as co m o
nam orado. E m d iá lo g o co m o terapeuta, su rgiu -lh e a id eia d e q u e se P or outro lad o, ach ava m u ito m ais fácil exp rim ir livrem en te as
ch eg a sse p reviam en te a um acordo sério co m o nam orado, para e v e n ­ suas e m o ç õ e s n o diário, on d e, in clu siv e p o d ia d escarregar toda a sua
tu alm en te pod er ter d e sair a m eio da festa , ta lv ez e s s e problem a raiva contra o terapeuta. A senh ora B ainda h o je co n tin u a a escrev er
d esap a recesse. F o i o q u e efectiv a m en te v e io a acontecer: as v o z e s não o seu diário c o m o form a d e desabafar:
a in com od avam qu and o o acordo era cum prido.
Q uando lh e p ergu n tei se escrev er um diário lh e tinh a fortalecid o “Quando escrevo tenho de me concentrar, e então tudo flui espontanea­
o self, resp on deu-m e: mente. Também é muito importante para mim ser capaz de descarregar os
meus sentimentos desta maneira.”
“E muito difícil responder a essa pergunta. Tenho a nítida sensação de
que quando escrevo não sou capaz de distinguir as minhas emoções do meu Q u and o lh e p ergu n tei co m o reagiram as v o z e s ao seu diário, res­
próprio self. Acha isso estranho? Nunca voltei a ler aquilo que escrevi. pondeu-m e:
O melhor é não mexer mais nisso.”
“Era conforme. A princípio, quando eu estava a escrever, as vozes não
H á 3 anos, ela serv iu -se do diário para pôr a m ãe ao corrente do se metiam, e eu julgava que elas se iam manter de fora sempre que eu
qu e se passara e d o q u e se passava ainda co n sig o . (T ratan d o-se de um
escrevesse o meu diário. Mas, depois, à medida que aprofundava a minha
reflexão sobre as coisas, as vozes começaram a interferir cada vez mais. Às
d ocu m en to tão carregad o de e m o çõ es, é b om avisar do seu con teú d o vezes eram extremamente difíceis de aturar e proibiam-me de escrever. Nas
tod o o p o ssív e l leitor e co n fid en te.) A m ãe fico u extrem a m en te c h o ­ primeiras vezes obedecia-lhes e parava. Mais tarde, porém, comecei a não
cad a e d esatou a chorar - c o isa raríssim a nela - , m as acabou por lhes ligar. Agora, quando as vozes me incomodam, continuo a escrever na
resp on der q u e agora já com p reen d ia m uito m elhor o com p ortam en to mesma.”
da filh a. A partir daí, a relação entre am bas to m o u -se m u ito m ais
íntim a. A senh ora A tin h a-m e d ito qu e se co stu m a v a perder quando se
A senh ora A já n ão escrev e diário nenhum . A partir da co n v ersa punha a escrev er. P ergun tand o à senh ora B se a co n tecia o m esm o co m
qu e tiv e co m ela , em qu e v erifiq u ei co m o se m o v im en ta tão b em ela, resp on deu -m e:
so cia lm en te, d u v id o q u e ela to m e a precisar d o seu diário; agora é “Sim, às vezes acontece. Acontecia-me mais nos primeiros tempos. Houve
cap az d e exp ressar e d e exp licar co m m uita clareza as su as d ificu l­ uma altura em que punha a caneta em cima do papel e deixava correr, sem
dades. fazer ideia nenhuma do que estava a escrever. Escrevo do interior das mi-

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nhas emoções. Não me parece perigoso, mas prefiro não voltar a ler aquilo D eu um n o m e próprio a cad a um a d ela s e n o seu diário d eix a v a -a s
que escrevo. Deixo isso para o meu terapeuta." falar um as co m as outras e fa zia -lh es p ergu n tas, do género: “P or qu e
estás tão triste?”
A senh ora B d escob riu n o diário um a fo n te d e en ergia e d e se n v o l­
v im en to p e sso a is. E xplica: “Através desses diálogos voltei a encontrar-me.”
“Acabei há pouco de compreender o que as vozes significam, e o meu
diário desempenhou um papel importante nessa descoberta." Para a senh ora C , escrev er um diário é um a e sp é c ie d e catarse.
N essa arena, é cap az d e exp ressar e m o ç õ e s v io len ta s, qu e recon h ece
co m o suas, m as q u e p od iam ser d esagrad áveis e disru ptivas se fo sse m
S en h ora C com u n icad as d irectam en te aos ou tros. Q uando se sen te na im in ên cia
da p sico se, c o m eça a escrev er e sen te q u e isso a ajuda. D iz qu e agora
A senh ora C , de 43 an os de idade, e screv e o seu diário d esd e os já só escrev e durante p eríod os lim ita d o s qu e nu nca ultrapassam um a
12 an os. C o m eço u a esc r e v ê -lo em m o m en to s d e so lid ã o , quando hora de cada v ez.
o s p ais a m eteram num c o lé g io interno. U m ano antes, tinha p assado
por um a terrível provação e qu ase fora violada: um grupo de jo v en s
“Tive que manter-me dentro dos limites de tempo que estabeleci; não sei
se compreendem o que quero dizer.”
d eito u -a ao ch ão , na frente da irm ã m ais n o v a , e d esp iu -a. E la nunca
te v e cora g em para falar n isso em casa.
Q u and o co m eço u a escrev er o d iário, in ven tava a m ig o s im agin á­ A senhora C reparou, ainda, q u e co n seg u ia m anter as v o z e s per­
rio s, c o m o m uitas crianças fazem . U m p o u co m ais tarde, co m eço u a turbadoras em resp eito se se m a n tiv esse dentro d e sse lim ite d e tem p o
o u vir v o z e s e a id en tificar-se co m e s s e s a m ig o s im agin ários. Por quando escrevia.
e x e m p lo , quando escrev ia a um a ou acerca de um a d essa s am igas que
se ch am ava A nn , ela própria p assava a ser a A nn . Para ela, escrev er
torn ou -se um v íc io , qualquer c o isa co m q u e se p o d ia entreter durante Senhora D
horas e horas a fio . D e in ício não v ia qu alq uer prob lem a n isso e não
p a ssa va sem escrever. A gora co m 3 0 an os d e id ad e, a senh ora D fo i internada p ela pri­
m eira v e z num h osp ital p siq u iátrico há cerca d e 10 anos. C o m eço u a
“Escrevo para descarregar as minhas emoções. Abandono-me completa­ ouvir v o zes 2 4 horas d ep o is d e ser internada. P assad os m ais ou m en os
mente à minha escrita e isso revigora-me. Deixo que os meus sentimentos 6 m eses, já se sen tia su ficien tem en te m elh or para ter alta e o seu
saiam cá para fora; se o não fizer, sinto-me a explodir. É certo que a gente terapeuta en carregou -a d e escrev er assid u am en te um diário acerca do
se pode perder, deixando de estar no aqui e no agora, mas também é certo que lhe ia acon tecen d o e da m aneira co m o se estava a sentir. A inten ção
que nos podemos encontrar quando estamos a escrever." era ajudá-la a esta b elecer um p o u co d e ordem n o seu ca o s em o cio n a l.
A senhora D é um a p erfeccio n ista . P reocu p a-se em cum prir tão
H á três a n o s, a sen h ora C freq u en to u um cu rso in ten siv o de escru p u losam en te qu anto p o ssív e l a tarefa q u e o terapeuta lh e co n fio u
h ip n oterap ia, q u e a ajudou a d escob rir em si várias person alid ad es, e, quando n ão fica sa tisfeita co m o q u e escrev e, rasga e torna a
cad a um a d elas c o m o s seu s próprios traços d istin tiv o s d e carácter. escrever. P or isso , d esd e in ício , procura ex p or co m toda a p erfeição
P or e x em p lo , h avia a m alvada, a am orosa, a d esesp erad a e a m agoada. p o ssív e l o que d eseja exp rim ir. E sta sen h ora esta b elece um flagrante

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con traste co m as três m u lh eres anteriores: é a ú n ica q u e só c o m eça C onstituin do o diário um in stru m en to d e com u n ica çã o co m os
a escrev er quando já p e n so u tudo acerca d o q u e vai dizer. outros, é im portante q u e a p e sso a a q u em se co n fia o con teú d o p o ssa
satisfazer um certo nú m ero d e req u isitos. E m particular, essa p esso a
“Quando estou demasiado emotiva, não sou capaz de pensar nem de deverá ser de total co n fia n ça e m ostrar-se se n sív e l às e m o ç õ e s d o seu
escrever.” sem elh an te.
N o s ca so s em q u e a p esso a q u e e sc r e v e o diário n ão se sen te capaz
N u m lo n g o p r o c esso d e ten tativas e erros, a senhora D fo i d o m i­ de o partilhar co m a lgu ém , fica em aberto o p rob lem a d e se saber
nan do a arte d e ex p or c o m ex a ctid ã o o s seu s sen tim en tos.
co m o p od e ela ajudar-se a si própria serv in d o -se d e sse instru m ento a
“Ao pegar na caneta e no papel, alguma coisa acontece comigo. Tudo n ível estritam ente p e sso a l. N ã o há um a resp osta fácil para esta q u es­
o que vivo e tudo aquilo com que tenho de lidar fica gravado para sempre. tão, em bora m e pareçam im portantes o s seg u in tes pontos:
Desse modo, posso lidar muito melhor com as minhas emoções e distanciar-
-me delas." - Arranjar um a form a d e guardar o d iário qu e p reserve a sua pri­
vacidade;
T a lv ez por isso m esm o , a senhora D n ão se sente perturbada quando - U sar a im agin ação para assegu rar as c o n d içõ es id eais d e escrita;
vo lta a ler aqu ilo que e sc r e v e n o diário. D isse -m e qu e as v o z e s nu nca - D efin ir claram ente a d isp o n ib ilid a d e e o tem p o q u e se está em
interferiram co m aqu ilo q u e escrev e. Para ela, escrev er o diário tem c o n d içõ es d e lh e dedicar;
sid o um a oportunidade m u ito p o sitiv a d e crescim en to p esso a l. - M anter ex p ecta tiva s realistas. S e o diário n ão resu lta, é p o ssív e l
q u e se esteja a pedir d em asiad o d e le n o m om en to. O m elhor
“Ao escrever o meu diário aprendi que, de uma maneira ou de outra, as ta lvez seja fazer n o v a ten tativa noutra oca siã o .
minhas vozes se relacionam com as situações por que vou passando.”

C onclusão Interajuda e ajuda mútua


Re si M alecki e M onique Pennings
D as en trevistas e d eb a tes q u e m an tive co m as quatro ou vid oras de
v o z e s acerca d os seu s d iários, pude co n clu ir que essa prática p arece
con stitu ir um a ex p eriên cia m u ito p o sitiva . D e um m od o geral, p arece
Organizações de utentes
con stitu ir um p ro cesso b astante m en os am eaçador e perturbador do
qu e eu própria supunha à partida. A s 4 senhoras p arecem -m e m u ito A partir d o s an os 7 0 , tem v id o a surgir tod o o gén ero d e in iciativas
cap azes d e controlar toda a in form ação am eaçadora que surge e de, de cu id ad os d e saú d e da resp on sab ilid a d e d os próprios p acien tes.
sem p re q u e n ecessá rio , criar in tervalos livres de v o z e s. O o b jectivo é estim u lá -lo s, p ela s m a is d iversas form as, a assu m ir um a
O diário é um p r o c esso surpreendente de p rom over a co m u n ica çã o m aior resp on sab iliza çã o por si p róp rios, a com u n icar uns co m os
sobre as v o z e s. A m ed id a q u e o tem p o vai p assan d o, e d e acordo co m outros e forn ecer in fo rm a çõ es e a ssistên cia m útua e a m elhorar a sua
o tem p eram ento da p e sso a , o diário p o d e constitu ir um estím u lo para situ ação. M uitas d essa s in iciativ a s têm co n d u zid o à criação d e orga­
encontrar um a p ersp ectiva clara das em o ç õ e s e d os seu s reflex o s em n iza çõ es de p acien tes, h ab itu alm en te p e sso a s co m d oen ças ou p rob le­
diversas situ ações, c o isa q u e pod erá cond uzir, por sua v e z , a um m aior m as sem elh an tes. E stão tod os n o m esm o b arco, p od en d o utilizar o
grau d e com p reen são da natureza e do sig n ifica d o das v o zes. co n h ecim en to adquirido co m as su as próprias ex p eriên cia s p esso a is

300 301
em ap oio e b e n efício d os sofred ores seu s a sso cia d o s. E stas organ iza­ A R esson â n cia abran ge um leq u e bastante m ais va sto e co m p lex o
ç õ e s p od em contribuir para facilitar a tarefa de aprender a v iv er co m de crenças e atitud es d o q u e outros gru p os even tu a lm en te m a is p reo­
um a d o en ça ou co m um a d ificu ld a d e e sp e cífica . O s cu id ad os p ro fis­ cu pados co m pertu rb ações d e tipo so m ático m ais evid en te. P or e x e m ­
sion ais n ão v ã o geralm en te m u ito lo n g e n este cam po; os serv iço s plo, algu n s m em b ros da R esso n â n cia en caram a escu ta d e v o z e s co m o
prestadores d e cu id ad os d e saú d e ten d em a prestar m ais aten ção aos algo d e en riq u eced or, en q u an to outros ach am qu e as v o z e s sã o sin to ­
factores m éd ico s e b io ló g ic o s, dan do m ais valor à d o en ça do qu e à m as de um a doen ça; algu n s o u vid ores d e v o z e s acham a ex p eriên cia
p e sso a p or ela afectad a. P or outras palavras, a ajuda q u e prestam não m uito d ifícil, en q u an to ou tros se sen tem p erfeitam en te à v o n ta d e co m
relacion a a ex p eriên cia d o p a cien te co m a sua percep ção. ela. E stas d iscrep ân cias en tre a sso cia d o s fa zem da R esso n â n cia um a
O estím u lo à form ação d e grup os d e p acien tes é, m uitas v e z e s, a sso cia çã o plen a d e vitalid a d e. E ev id en te q u e tem d e ex istir um traço
p rop orcion ado p ela in sa tisfa çã o q u e sen tem perante o s serv iço s pro­ de un ião m uito sig n ific a tiv o para ligar elem en to s tão díspares: o tabu
fissio n a is e a resp ectiva carên cia d e resp ostas. T am b ém é verdade que que contin ua a rodear o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s p erm a n ece um
n os ú ltim os 2 0 anos se deu um co n sid erá vel progresso n o ca m p o da problem a com u m a to d o s, seja qual for a ex p eriên cia e a p ersp ectiv a
d em ocratização e da em an cip ação; cad a v e z m ais, as p e sso a s a ssu ­ p essoal de cada um . Isto sig n ifica q u e to d o s o s m em b ros da R e s s o ­
m em e e x ig e m um grau cre sce n te d e resp on sab iliza çã o p esso a l p ela nância têm de m anter a tolerân cia uns para co m o s outros e contin uar
sua própria saúde e d oen ça. D eixaram de estar com p letam en te à m ercê, abertos às ex p eriên cia s e id eia s d e cad a um ; recon h ecer q u e cad a um
apen as, da cap acid ad e técn ica d o s p rofissio n a is esp ecia liza d o s. tem a sua própria p ersp ectiv a p esso a l acerca d o fen ó m en o e q u e, por
A s diversas o rg a n iza çõ es d e utentes qu e h oje ex istem têm , ev id e n ­ co n seg u in te, cada in d iv íd u o d everá encontrar a sua própria estratégia
tem en te, o s seu s próprios o b je ctiv o s e sp e c ífic o s, e as a ctivid ad es q u e para lidar co m a situ ação.
d esen v o lv em variam em fu n ção d e sses m esm o s ob jectivo s. N o entanto, A F undação R esso n â n cia esfo rça -se por p rom over a a ceita çã o e a
todas ela s têm em com u m algu n s o b je ctiv o s im portantes: pôr as p es­ em an cip ação das p e sso a s q u e o u v em v o z e s, por lutar contra o sen ti­
soas em con tacto um as co m as outras, facilitar o ap oio m útuo, d iv u l­ m en to de iso la m en to q u e, m uitas v e z e s, se v em juntar a tod as as
gar in form ação e defen d er o s in teresses d os seu s a sso cia d o s. d ificu ld ad es d os o u v id o res d e v o z e s, e aju d á-los a lidar efica zm en te
co m a exp eriên cia. A F u n d ação p rom ove tod o o tip o d e activ id a d es
que v ise m e sse s o b je c tiv o s. O rgan izou um a red e d e co n tacto e de
A Fundação Ressonância (W eerk lan k ) ap oio m útuo através d e u m a lin h a telefó n ica e d isp o n ib iliza gru p os de
ajuda m útua a to d o s o s m em b ros in teressad os n este tipo d e ap oio.
H á 5 an os atrás, surgiu na H olan d a um a organ ização de âm bito D ivu lga in form ação e o rien ta çõ es sobre o fen ó m en o da escu ta de
v o z e s, através d e u m a rev ista trim estral, d e en trevistas na telev isã o ,
n acion al a q u e fo i dado o n o m e d e R esson â n cia . E ssa F un dação d e­
na rádio e na im pren sa escrita e , ainda, da p u b licação d e fo lh e to s e
d ica -se à d efesa d os in teresses co m u n s das p esso a s q u e o u v em v o z e s,
brochuras; distribui tam b ém in form ação p e lo s h osp itais p siq u iátricos
in d ep en d en tem en te de sofrerem ou não de d o en ça psiquiátrica. H oje
e p e lo s cen tros d e saú d e m en tal com u n itários. N o intuito d e estreitar
em dia con ta co m cerca d e um m ilhar de a sso cia d o s, m u itos dos q u ais
os la ç o s entre o s seu s m em b ros, a F un dação lev a a e fe ito reu n iões
são a m ig o s ou fam iliares d e p e sso a s q u e o u v em v o zes; inclui tam bém so cia is de c o n v ív io . P resen tem en te, a F u n d ação está a m ontar um a
outras partes interessad as, c o m o sejam prestadores de cu id ad os de n ova rede d e ajuda a o u v id o res d e v o z e s e tom a parte em tod o o tipo
saúde. E p o is um a a sso cia çã o fran cam ente m ista. de c o m issõ e s e o rg a n ism o s co n su ltiv o s, co m o o b jectivo d e p rom over

302 303
o s in teresses d o s seu s m em b ros n o se io dos serv iço s prestadores de Motivações
cu id ad os d e saúde.
O s grup os d e ajuda m útua p o d em dar um im portante contributo É igu alm en te im portante qu e cada m em b ro seja claro quanto às
para o p r o c esso d e aprender a lidar co m as v o zes. P or isso , esta S ecçã o suas in ten çõ es ao fazer parte d e um grupo d e ajuda m útua. E ssas
tratará da d escriçã o porm enorizada d este tipo d e gru p os, sobretudo inten ções são m u ito variad as, m as em geral a p articip ação assen ta em
co m b ase na ex p eriên cia de R esi M a leck i, a qual tem esta d o e n v o l­ m o tiva çõ es d o género:
vid a, há m ais de três anos, na co n d u ção de grupos d e ajuda m útua,
tirando partido das co m p etên cia s e da com p reen são q u e adquiriu co m - G anhar confian ça:
a sua própria ex p eriên cia p esso a l. - Q uebrar o isolam en to;
- F avorecer a cam aradagem co m outras p e sso a s qu e com p reen d em
a experiên cia;
Grupos de ajuda mútua - A prender co m o s outros;
- Encontrar apoio;
E u, R esi M a leck i, c o m e c e i por fazer form ação co m o líd er d e gru­ - A prender a lidar co m as v o zes;
p os d e d iscu ssã o num a organ ização d ed icad a aos p rin cíp ios da ajuda - A prender a co n h ecer-se a si m esm o co m a ajuda d os outros;
m útua, quer para d o en ça s fisio ló g ic a s quer para d o en ça s p sic o ló g ic a s.
- T om ar co n h ecim en to da grande varied ad e d e exp eriên cia s in d i­
P resen tem en te, esto u a liderar três grup os de ajuda m útua n o Sul da
viduais;
H oland a. C om a m inh a ex p eriên cia n este tipo de trabalhos, aprendi
qu e há um b o m nú m ero d e a sp ectos que é im portante ter em con ta na - A prender a falar d os seu s p rob lem as co m a fa m ília e o s am ig o s.
criação e co n d u çã o d e um grupo de d iscu ssã o . N esta S e c ç ã o gostaria
d e analisar algu n s d o s a sp ectos que m e parecem m a is sig n ifica tiv o s.
Grau de abertura do grupo

Objectivos A lg u n s gru p os d e d iscu ssã o sã o reservad os a ou v id o res d e v o zes.


P orém , n o grupo d e L im b u rgo qu e eu lid ero, o p to u -se por aceitar a
A o fundar qualquer grupo é im portante ser claro acerca das m o ­ participação d e fam iliares e am ig o s. T rata-se d e um grupo aberto;
tiv a ç õ e s e d o s o b je ctiv o s. O s m eu s o b jectivo s p e sso a is eram e são: p o r o u tr a s p a la v r a s , q u a lq u e r p e s s o a p o d e p a r tic ip a r e m
qualquer m o m en to , e o grupo seg u e a su a m archa. A quantidade de
- S er escu tad a, con sid erad a e lev ad a a sério; m em b ros varia: há um n ú cleo duro d e p articip an tes a ssíd u os d e lo n ­
- Partilhar ex p eriên cia s co m p esso a s na m esm a situ ação e , a ssim , ga data, surgem n o v a s a d m issõ es d e v e z em qu an d o, e algu n s m em ­
escla recer o sig n ifica d o das v o zes; bros, aqui e além , d eix a m o grupo. N o grup o e x iste um a grande
- E sbater o m ed o q u e rodeia a escu ta de v o zes; d iversid ad e d e p ersp ectivas e d e exp eriên cias por parte d os ou vid ores
- E ncontrar m aneiras de v iv er em paz co m a exp eriên cia; de v o z e s. N o en tanto, ach o q u e as p e sso a s se id en tificam facilm en te
- T razer a fa m ília e o s a m ig o s de encontro aos o u v id o res de v o z e s um as co m as outras e q u e, acim a d e tudo, o s resu ltad os d esta abor­
e aos seu s p rob lem as. dagem têm sid o m u ito p o sitiv o s.

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Como conduzir uma reunião - A escu ta d e v o z e s e a ca p a cid ad e d e con cen tração;
- A escu ta d e v o z e s e o s o b stá cu lo s à a scen sã o so cio p ro fissio n a l;
N a con d u ção das reu n iões de gru p os d e d iscu sã o há vários asp ectos - A ex p eriên cia p e sso a l d e escu ta d e v o zes;
a considerar. N as reu n iões que d irijo, sem pre que um n o v o m em bro - V iver co m um a p e sso a q u e o u v e v o zes.
está p resente, cada um d os p articip an tes fa z a sua própria apresenta­
çã o e d iz qualquer c o isa sobre a sua ex p eriên cia p assada e presente
d e escu ta de v ozes: Q uando e c o m o co m eço u ? O q u e é que se estava Trabalho de casa
a passar n e ssa altura? C om o é q u e as co isa s evolu íram ; co m o é que
ela s m elhoraram ou se agravaram ? F o i seg u id a algu m a m ed icação? N u m a reunião d e grup o n e m sem p re é p o ssív e l tratar d e tudo o qu e
P ed iu ou receb eu algu m a form a d e ajuda? Q ual a situação neste há a tratar. M uitas v e z e s , é n ecessá rio q u e o s m em b ros do grupo
m om en to? d esen v o lv a m em ca sa d eterm in ad as tarefas, q u e serão tratadas p e lo
É p reciso ter em conta, ainda, as n e cessid a d es e ex p ecta tiva s d es­ grupo posteriorm en te. E x em p lo s d e algu m as d essa s tarefas:
ses n o v o s m em b ros, o que im p lica q u e, quando estão presentes na
- F azer a recolh a b ib lio g rá fica d e cita çõ es, p oem as e ca n çõ es qu e
reu nião m u itos n o v o s m em b ros, e ste tem p o d ed icad o à partilha de
cada um ach e p articu larm ente sig n ifica tiv a s para si próprio e q u e
ex p eriên cia s tem de ser n ecessaria m en te abreviado. N estes ca so s, os
p ossam ser um a fo n te d e in sp iração e d e ajuda para outras p e s­
m em b ros m ais an tigos fa zem um apan hado geral do que a con teceu no
soas;
grupo n os m eses m ais recentes. U m a das vantagen s d este procedim ento
- U m a prova d e avaliação: exp rim ir a sua ex p eriên cia d e p artici­
é dar oportunidade ao s m em b ros m a is an tigos d e se exprim ir e de
p ação n o grupo através d e um p rojecto ou plano;
debater quaisquer q u estõ es que o s esteja m a preocupar. R eserv a -se
- F azer um a rev isão crítica d e um livro ou de um film e;
sem p re algu m tem p o para reflectir sob re a situação do grupo e para
- Inventariar as suas q u alid ad es p esso a is;
analisar a m aneira co m o as co isa s estã o a correr, por form a a perm itir
- T en são e relaxam ento: q u e sig n ifica m para si e qu e sen tim en tos
q u e as p esso a s discu tam co m m a is p rofun didade as frustrações e
lhe p rovocam ?
d ificu ld a d es que estão a atravessar e sugiram o que é n ecessário fazer
para as integrar m ais fa cilm en te n o grupo.
Conclusão das reuniões
Temas das reuniões A s reu niões encerram h ab itu alm en te co m um b reve pon to da agend a
dedicado:
A lgu n s ex em p lo s de tó p ico s qu e p o d em ser discu tid os:
- M ed icam en tos e seu s efe ito s secu nd ários; - ao plan eam en to - D e c is õ e s c o le c tiv a s sob re o s assu n tos a tratar
- A escu ta de v o z e s e a a ctiv id a d e profission al; na próxim a reu n ião, o q u e im p lica determ inadas o p çõ es e o
esta b elecim en to d e prioridades;
- A escu ta d e v o z e s e a vid a so cia l diária;
- A escu ta de v o z e s e o rela cion a m en to íntim o; - à a valiação - O q u e é q u e o s particip an tes ganharam c o m o
- A escu ta de v o z e s e as a ctiv id a d es de lazer; debate? O qu e é q u e e le s ach am d aq u ilo q u e se passou?

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N a m inha ex p eriên cia de d o is an os e m eio c o m o líd er de d iscu ssã o , Ser um líder d e d iscu ssã o b em preparado é a lg o qu e ultrap assa em
tiv e o ca siã o de constatar alg u m a p erfeiçoam en to num certo núm ero m uito a m era co n d u çã o d o s d eb ates, por m ais fundam ental q u e essa
d e ap tid ões que tinha adquirido na fa se de form ação. O m ais im por­ tarefa seja. C o n clu o da m in h a própria exp eriên cia que sã o tam b ém
tante fo i a m elhoria da m inh a aptidão para: im portantes as seg u in tes tarefas:

- escu tar o próxim o; - O rganizar o grupo: p o d e in clu ir-se n esta q u estão o p rob lem a do
esp a ço para as reu n iões;
- p rom over o debate, por ex e m p lo fazen d o as perguntas m ais ade­
-R e c r u ta m e n to d e n o v o s m em b ros;
quadas;
- Preparar as reu n iões; m arcar a agenda; d efin ir a ordem d e traba­
-a p e r c e b e r -m e se um particip an te com p reen d eu correctam ente lh os e o s tem as a d iscu tir, quando n ão tenham fica d o co m p leta ­
aq u ilo que outro disse; m en te d efin id o s n a reu n ião anterior;
-o b s e r v a r o b jectivam en te o fu n cion am en to d o grupo; - C ond uzir o d eb ate durante a reunião;
- analisar sen tim en tos sem p re q u e necessário; - O rganizar as actas, etc.;
- d iscip lin ar o debate; - E stim ular e p rom over a d iscu ssão;
- prestar aten ção ao s sin a is n ão verb ais que o grupo vai em itindo; - A presentar as d iv ersa s estratégias d e lidar co m as v o zes;
- avaliar a situação d o grupo. - D iscu tir as p o ten cia lid a d es de cad a um a delas;
- A nalisar e reflectir sob re os resu ltad os ob tid os p elo s d iv erso s
E stas aptid ões e cap acid ad es são ú teis em qualquer grupo d e d is­ participantes co m as d iferen tes estratégias;
cu ssã o . N o ca so de um grupo esp e cifica m en te v o ltad o para o debate - O bservar o fu n cio n a m en to d o grupo;
da p rob lem ática da escu ta d e v o z e s , esto u em crer q u e se tom ará - P ôr as p e sso a s à v o n ta d e e , co m su a au torização, com u n icar aos
tam bém n ecessário que o líd er seja a lg u ém que o u v e ou o u v ia v o z e s seus terapeutas as ten sõ e s particularm ente graves qu e esteja m a
e qu e tenha aprendido a aceitar a exp eriên cia e a v iv er co m ela. atravessar;
E v id en tem en te, é tam bém im portante ter um co n h ecim en to vasto e - P roporcionar um e sp a ç o d e debate sereno; por e x e m p lo , n ão
co m p leto do fen ó m en o glo b a l da escu ta de v o z e s. E m esp ecia l, é p erm itin do a d isc u ssã o d e assu n tos q u e d esp ertem a n sied ad e,
p reciso estar fam iliarizado co m a literatura ex isten te sobre o tem a, n om ead am en te falar d e su icíd io;
quer seja a d e autores lig a d o s ao sistem a ortod oxo de cu id ad os de - F azer g ra v ações d o s debates;
saúde quer seja a de autores q u e p rop õem alternativas a e sse sistem a. - M anter co n tacto s c o m outros líd eres d e d iscu ssã o e resp ectiv as
organ iza çõ es.
E essen cia l estar co m p leta m en te fa m iliarizad o quer co m as ex p eriên ­
c ia s d o s co m p a n h eiro s so fred o res qu er co m as e x p e cta tiv a s d o s
E m resu m o e para co n clu ir, a m inh a exp eriên cia co m gru p os d e
prestadores de cu id ad os. E p r eciso , ainda, estar recep tivo a participar ajuda m útua fo i d e gran d e u tilid ad e para o s esfo rço s qu e tiv e de
em jornadas e co n g resso s d e d ica d o s à escu ta d e v o z e s. E m sum a, o em preender para c o n seg u ir aceitar a escu ta d e v o z e s. A ssim , aprendi
n o sso co n h ecim en to do fen ó m en o da escu ta de v o z e s d ev e expandir- a lidar co m essa outra realid ad e d e um m o d o m ais agradável, con d u -
-se m u ito para lá da n o ssa própria ex p eriên cia p esso a l. zin d o -m e a um a rela çã o h arm on iosa co m as m inh as v o zes.

308 309
N ão se d e ix em atrapalhar. P restem m uita aten ção ao qu e v o s diz livas têm um sig n ifica d o ou sen tid o e sp e c ífic o qualquer para aq u ele
a v o ssa ca b eça , m as nu nca d escu id em o qu e v o s d iz o v o sso coração! que o u v e v o zes; d este p on to d e vista , só as técn ica s q u e se dirigem
exp ressam en te aos sig n ifica d o s das v o z e s têm p o ssib ilid a d e de cap a­
citar o ou vid or para ganhar d om ín io sob re a ex p eriên cia enquanto
Concentrar-se nas vozes parte de si m esm o .
T u do isto p on derad o, d e se n v o lv e m o s um a técn ica terap êutica ba­
Gill Haddock e Richard Bentall seada na con cen tração nas v o z e s, técn ica através da qual o p acien te
é ajudado a exp lorar o con teú d o, o d e se n v o lv im en to e o sig n ifica d o
A in v estig a çã o v em sugerin do que e x iste um a vasta gam a d e abor­ das suas v o z e s no con tex to da relação terap êutica. Isto co n se g u e -se
d agen s p sic o ló g ic a s q u e p od em ser ú teis às p e sso a s qu e sofrem de por m eio d e e x erc ício s graduais e p ro g ressiv o s, c o n c eb id o s d e form a
a lu cin a çõ es au d itivas. U m a rev isão ex a u stiv a d e tod as e ssa s aborda­ a tom ar o p ro cesso o m en os am eaçad or p o ssív e l para o p acien te. O s
g en s, feita em 1988 por S lad e e B en tall, dem on strou qu e ela s tendem prim eiros e x erc ício s co n sistem em o p a cien te prestar aten ção às v o zes
a d istribuir-se por três categorias principais: e d escrever as características física s d ela s, co m o o v o lu m e, a lo c a li­
- T écn ica s d e d istracção das v o zes; zação, o tom e gén ero. P osteriorm en te, p e d e -se ao p acien te q u e relate
- T écn ica s d e con cen tração nas v o zes; com ex a ctid ã o aq u ilo qu e as v o z e s lh e d izem e q u e d ê esp ecia l aten­
- T écn ica s d e co n tro le da ansiedad e. ção a to d o s o s p en sam en tos ou id eias q u e lh es co stu m a m estar a sso ­
ciad os, o s q u ais pod erão ind icar o sig n ifica d o q u e as v o z e s têm para
A s té c n ic a s d e d istra cçã o das v o z e s in clu e m a u tiliz a ç ã o de ele. O o b jectiv o geral d esta abord agem , co m a ajuda d e um a p orm e­
w alkm ans estéreo, a ex ecu çã o de jo g o s d e qu eb ra-cab eças, o e n v o l­ norizada d iscu ssã o , é habilitar a p e sso a a lidar m elh or co m as v o z e s,
v im en to em a ctiv id a d es so cia is - em resu m o, qualquer tipo d e co m ­ iden tificar a sua verd ad eira o rigem e atingir u m p r o c esso d e con trole
portam ento q u e sirva para afastar o p en sam en to d o o u v id o r d e v o zes p essoal sobre ela s. S e o d o m ín io das v o z e s é perturbador para a
das v o z e s q u e o u v e. P or outro lad o, as técn icas d e co n cen tração nas p e sso a , é im p ortan te an alisar o seu sig n ific a d o , c o m o fa zem os
v o z e s im p licam , d e algu m m o d o , u m p roced im en to in v erso , isto é, terapeutas co g n itiv ista s qu e trabalham co m o s p en sa m en to s n ega tiv o s.
prestar o m á x im o de aten ção às v o z e s q u e se o u v em e registar m eto ­ O b reve estu d o d e ca so q u e se seg u e (extraíd o d o n o sso próprio
d icam en te tudo o q u e e n v o lv e a sua escu ta , n om ead am en te aqu ilo que projecto de in v estig ação sob re o tratam ento das a lu cin a çõ es, su b si­
ela s d izem . diado pelo M edicai R esearch C ouncil d o R ein o U n id o ) ilustra as
T o d o s estes m éto d o s parecem ca p a zes de ajudar as p e sso a s a lidar estratégias gerais en v o lv id a s.
m elh or co m as v o z e s que o u v em , m as o s m eca n ism o s da sua actuação
p erm an ecem o b scu ros. E stam os em crer que as técn ica s de distracção
Senhor A
das v o z e s (b asead as n o p ressu p osto d e q u e as v o z e s tenderão a d esa ­
parecer por co m p leto se forem evitad as durante o tem p o su ficien te), O senhor A tinha 44 anos de idade e sofria de alucinações auditivas há
em b ora p o ssa m ser efic a z e s n o curto prazo, acabam por deixar de lado mais de dez anos. Estava empregado e vivia num lar dirigido pelo Exército
o con teú d o sub jacente às v o z e s e , por isso , é im p rovável q u e ofereçam de Salvação. Embora fizesse medicação neuroléptica há muitos anos, a in­
q u alq u er s o lu ç ã o du radou ra para as d ific u ld a d e s sen tid a s p e lo s tensidade e a frequência das vozes mantinham-se praticamente constantes;
ou vid ores. A in v estig a çã o su gere qu e, em geral, as a lu cin a çõ es audi- quando o observámos pela primeira vez, ouvia vozes todos os dias. Expe-

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rimentava as vozes como provindo do exterior de si próprio, vozes que Técnicas de controle da ansiedade
podiam surgir nas mais diversas circunstâncias. O senhor A descrevia o
conteúdo das vozes - que falavam na terceira pessoa gramatical - como Jack Jenner
sendo muitas vezes hostil e desagradável (por exemplo, “Vamos fodê-lo”; “O
gajo não presta”). Uma voz particularmente frequente era a de um amigo Princípios gerais
íntimo; ocasionalmente, ouvia outras vozes que provinham do aparelho de
televisão. In felizm en te, n ão há regras claras sob re a m aneira d e lidar co m as
O senhor A foi tratado com técnicas de distracção durante seis sessões,
mas isso só serviu para agravar as alucinações e a ansiedade associada. v o zes n em sob re o qu e fazer às p e sso a s q u e as ou v em . C on tu d o, há
Tentou-se então a técnica de concentração nas vozes, nos termos atrás des­ alguns p rin cíp ios gerais q u e p o d em ser ú teis se en carad os co m a
critos. Esta técnica revelou que o conteúdo das vozes do senhor A era d evid a aten ção. D e acord o co m as lin h as gerais d esta S e cçã o , v am os
bastante inócuo e não se dirigia necessariamente a ele (por exemplo, “O gajo cham ar-lhes:
não presta" pode muito bem referir-se a qualquer pessoa); no entanto, os
pensamentos e reacções do senhor A convenciam-no de que era dele que as - A titude;
vozes estavam a falar. Ora, há determinadas circunstâncias em que isso é - Penetrar n o m u n d o do O utro;
mais provável. Por exemplo, os quartos do lar onde estava hospedado esta­ - C on tra-estim u lação p ositiva;
vam longe de ser à prova de som e, muitas vezes, acontecia-lhe ouvir ruídos - M otivação;
provenientes do hóspede do quarto ao lado, que resmungava e falava quando - R eg isto sistem ático;
estava a dormir; o senhor A interpretava esses ruídos como sendo o seu - E xp o siçã o .
vizinho a falar dele. Neste exemplo, parecia interpretar como vozes os seus
próprios pensamentos e desconfianças, transformando-os num processo audi­
tivo real. Não seria inverosímil se as vozes oriundas do aparelho de televisão
resultassem dum processo semelhante. O senhor A via sempre televisão à Atitude
noite, quando estava deitado na cama, e muitas vezes deixava-se adormecer
com a televisão ligada; assim, é provável que pelo menos algumas das suas A d e fin içã o d estas p e r c e p ç õ e s c o m o fe n ó m e n o s sobren aturais
experiências fossem hipnagógicas ou hipnopômpicas. Ao reconhecer que as im p lica praticam en te qu e as p e sso a s q u e as exp erim en tam se sin tam
vozes eram fruto dos seus próprios processos de pensamento, o isolad as. O tabu qu e rodeia esta s ex p eriên cia s (a lu cin a çõ es ou o qu e
senhor A começou a sentir que era capaz de aprender a identificar e a con­ q u iserm os ch am ar-lh es) d esen co ra ja a sua d iscu ssã o aberta. P or m ais
trolar as vozes concentrando-se nelas. E assim consegue agora aceitar as
suas experiências alucinatórias, embora saiba que nem sempre conseguirá d ifícil que seja, a criação d u m a atm osfera e dum cen ário cap azes de
ter um controle absoluto sobre os seus pensamentos (e, já agora, quem é que elim in ar essa barreira é e sse n c ia l a qualquer ten tativa d e prop orcionar
consegue?). co m p reen são e ap oio.
A pouco e pouco, a frequência com que o senhor A relata as suas expe­
riências em termos de vozes baixou praticamente a zero, embora, quando
está sob tensão, tenha, aqui e ali, momentos em que se interroga sobre a Penetrar no mundo do Outro
origem de algumas das suas percepções. Compreende-se que a abordagem
de distracção das vozes tivesse dado pouco resultado no senhor A: ao fim
ao cabo, só se conseguiram resultados quando se passou a prestar uma P or m ais d elirantes qu e a ch em o s o s o u vid ores d e v o z e s, a verd ad e
cuidada atenção às vozes que ele percebia como oriundas de fora e às é q u e as exp eriên cia s em ca u sa sã o para e le s um a realid ad e c o n sis­
crenças que proporcionavam aquilo a que ele chamava vozes. tente. A ssim , ao lid arm os c o m e s s e fen ó m en o , andarem os b em se

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aceitarm os que essa realid ad e ex iste, o que e x ig e da n o ssa parte um a considerasse a hipótese de estar enganada, mas que, sempre que estivesse
pronta d isp o n ib ilid a d e para aceitarm os que o ou vid or é, de p len o realmente convencida de que estava a ouvir o seu namorado e tivesse uma
direito, o senhor da su a própria ex p eriên cia e que estejam os c o m p le ­ urgente necessidade de o procurar, podia fazê-lo. Com o auxílio da medica­
tam en te abertos ao p r o c esso de aprend izagem da natureza da sua ção, que aceitou tomar, recuperou ao fim de 15 dias.
realid ad e e d o seu sofrim en to. A q u eles que não têm ex p eriên cia de
ou vir v o z e s só p o d em fazer ju íz o s indirectos: para obter a in form ação
q u e se p retende é n e cessá r io recorrer aos próprios o u vid ores d e v o z e s. C ontra-estim ulação po sitiva
A s p esso a s em d ificu ld a d e p od em tentar resp on sab ilizar em parte
os outros p ela sua situação; n o ca so d os ou vid ores de v o z e s , essa P or v e z e s a au to-estim a p o d e estar tão em b a ix o e o s p en sa m en to s
ten d ên cia agrava-se q u an d o as p e sso a s que o s rodeiam o s con sid eram n ega tiv o s p od em ser tão g raves e tão d om in an tes q u e é n ecessário
anorm ais, isto é, em certa m ed id a irresp on sáveis p e lo com p ortam en to preparar o terreno para a a p licação d e técn icas d e con tra-estim u lação
q u e têm . N a n o ssa própria ex p eriên cia d escob rim os que a m aior parte positiva.
d os o u vid ores d e v o z e s é perfeitam en te cap az de assu m ir a resp on sa ­ A n tes de o fazer é e ssen c ia l ter a certeza ab solu ta d e q u e a técn ica
b ilid ad e d os seu s a cto s. É m esm o n o ssa c o n v icçã o que serão tanto proposta é a ceite por todas as p e sso a s en v o lv id a s, isto é , o ou vid or de
m ais cap azes de lidar b em co m as v o z e s quanto m ais forem estim u ­ v o zes e a sua fam ília: todas as p e sso a s em cau sa sã o con v id a d a s a
lad os a assu m ir essa resp on sab ilid ad e. m od ificar o seu com p ortam en to, a fim d e ajudar na a d esão à técn ica
e à sua op tim iza çã o .

Exemplos
Exemplo
A senhora Pelupessy, de 30 anos de idade, ouve, várias vezes por semana,
a campainha da porta tocar a meio da noite. Nunca ninguém ouviu esse A senhora Wing era uma mulher gravemente deprimida que ouvia vozes
toque, mas a verdade é que a senhora se assustava e estava sempre a pedir que a acusavam de ser um fardo para a sua família. Ela não reagia às
ao companheiro que fosse ver o que era. Ele nunca viu ninguém, mas ela observações positivas nem às tentativas de empatia que lhe eram dirigidas
queixava-se de que ele não teria visto bem e mandava-o lá outra vez, para e não encontrava nada de positivo para dizer a respeito de si mesma; os
ter a certeza. O terapeuta confrontou-a com a inutilidade desse procedimento esforços no sentido de encorajar a sua auto-estima apenas serviam para lhe
e pediu-lhe que, de futuro, quando ouvisse a campainha, fosse lá ela. Disse- agravar os sentimentos de auto-recriminação. Na preparação para a contra-
-Ihe, ainda, que o companheiro poderia acompanhá-la, se ela tivesse muito -estimulação positiva, foi-lhe perguntado se ela albergava no seu íntimo
medo de ir sozinha, mas aconselhou o companheiro a nunca aceitar ir à alguma má intenção, o que, como era de esperar, a senhora Wing negou.
porta sem ela. A senhora acabou por fazer o que o terapeuta lhe indicou e E foi esta negação que lhe deu a oportunidade de aceitar a técnica: “Não
os barulhos desapareceram ao fim de uma semana. tenho quaisquer más intenções.” E desse modo aceitou uma lista de frases
do género “Não tenho...”, “Não sou...”
Annloes, uma moça de 16 anos, ouve a voz de um namorado secreto e
pede aos pais que procurem o rapaz nas redondezas. Quando os pais se P o d em o s incorporar frases co m o estas num a in terven ção terapêu­
recusam a fazê-lo, ela acusa-os de não gostarem dela e torna-se agressiva. tica com portam en tal a qu e cham aria con tra-estim u lação p o sitiva . C ada
O terapeuta fez-lhe ver que ela era a única pessoa que ouvia o rapaz, pelo um a d essa s frases é escrita nu m cartão esp ecia l. S em p re q u e o pa­
que deveria reconhecer que esse era, antes de mais nada, um problema seu cien te o u v e um a v o z n egativa, baralha o s cartões e lê em v o z alta as
e que, por isso mesmo, lhe caberia proceder a essa busca. Pediu-lhe que frases p o sitiva s q u e n e les con stam a seu resp eito.

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Motivação de uma senhora que ouvia vozes, mas apenas em certas divisões da sua casa,
pedimos-lhe que escolhesse a divisão que achasse melhor para iniciar o
O s sen tim en tos de desam p aro e d esesp ero p od em levar à inércia registo sistemático.
e à apatia, e aq u ele q u e cair nu m estado d e sses precisa d e um a n o v a
m otiva çã o para qualquer a cçã o . U m a m aneira sig n ifica tiv a de dar um a
m otiva çã o directa e ad eq uad a é forn ecer in form ação concreta sobre a
Registo sistemático e inquérito pormenorizado
escu ta d e v o z e s, isto é , sob re as d iversas form as d e aparecim en to, as M u itos ou v id o res d e v o z e s, e em geral a m aior parte d os p acien tes
d iversas teorias ex p lica tiv a s e as p o ssív e is via s de m anejo e trata­ com a lu cin a çõ es, g o sta m d e ser inq uiridos em porm enor sob re as suas
m en to. exp eriên cias. N a realid ad e, o s o u vid ores d e v o z e s p arecem m uito
Q ualquer tentativa d e m o tiva çã o e x ig e um a d efin içã o p recisa dos ávid os de falar d as su as p e rcep çõ es, d esd e qu e o en trevistad or ev ite
o b jectivos; quando este s n ão são claros é m uito fá cil qu e, em c o n se ­ tudo o que p o ssa sugerir um interrogatório e na co n d içã o d e serem
q u ên cia d e co n selh o s con trad itórios, a situ ação se torne con fu sa. U m a seguidas as regras n orm ais da co n v ersa çã o (por e x em p lo , iniciar a
das p o ssív e is m aneiras d e criar m o tiva çã o é esclarecer o s o b je ctiv o s con versa co m tem as q u e fa cilitem um a interacção d escon traíd a e p ros­
do tratam ento, através d a d iv isã o das v o z e s em duas categorias, p o ­ seg u i-la co m tó p ico s q u e escla reça m os p on tos qu e v ã o fica n d o m en os
sitivas e n egativas. F a zen d o isto, d e fin e-se im ediatam ente um a estra­ claros). O s o u v id o res d e v o z e s referem , m uitas v e z e s, q u e o fa cto de
tégia d e p riv ilég io das v o z e s p o sitiva s e de m in im ização d o im p acto lhes ser pedida um a d escrição detalh ada da sua ex p eriên cia o s faz
das v o z e s negativas. sentir que estão a ser lev a d o s a sério. P or outro lad o , isso fá -lo s
V a le a pena ter p resen te q u e quando um a p esso a está m uito a n sio sa desejar colaborar m u ito m ais co m o interlocu tor no reg isto sistem á tico
ou m u ito paranóide ten d e a sen tir-se am eaçada por determ inadas fra­ da natureza, freq u ên cia e duração das v o z e s, das circu n stân cias em
ses ou in ten ções. N estes c a so s, é p referível incu tir-se a m o tiva çã o por que elas ocorrem , da m aneira co m o eles (e o s outros) reagem a elas.
m eio s in d irectos - por e x e m p lo , fazer perguntas em v e z de afirm a­ E ste tipo d e reg isto sistem á tico por parte d o o u vid or e tam bém ,
ç õ es. E ssas perguntas terão de ser feita s co m o n ecessário tacto, para idealm ente, por outras p e sso a s, p od e proporcionar in form ação d e cisiv a
se evitar qualquer p o ssib ilid a d e de fuga. para a esco lh a da in terven ção terap êutica m ais adeq uad a. O registo
sistem ático sim u ltân eo por parte d o ou vid or (isto é , fe ito sem p re que
Exemplo e quando escu ta as v o z e s ) é d e particular im portância; d e fa cto , para
alguns autores, e ssa é a ú n ica m od alid ad e d e registo q u e se m ostrou
No caso do registo sistemático (tratado a seguir), que dá reconhecida­ efica z na d im in u ição da freq u ên cia d as ex p eriên cia s alu cin atórias.
mente bons resultados na diminuição da frequência da experiência de ouvir Para m uitos autores, o reg isto retrosp ectivo d iferid o p arece ser in efi­
vozes, é melhor não se perguntar se a pessoa gostaria ou não de fazer os caz e p od e até agravar o s sin tom as. A d iv isã o das v o z e s nas categorias
registos; isso poderia dar azo a uma recusa imediata, o que poderia ser insultuosas, neutrais e am istosas p o d e con stitu ir um a referên cia útil
prejudicial para o seu bem-estar psicológico. Esta situação pode evitar-se e pod e ter um e fe ito m otivad or q u e aum enta a e fic á c ia d o p rocesso
centrando a conversa na negociação da melhor ocasião de dar início ao de registo sistem á tico e fa cilita a aceitação d e outros tip o s d e inter­
registo sistemático, de estabelecer o seu calendário e de saber em que medida ven ção.
é aplicável a todos os aspectos da experiência do ouvidor de vozes, etc. E O registo sistem á tico p o d e con stitu ir um a fon te extrem am en te útil
de notar que, neste tipo de abordagem, a escolha não se pode fazer entre o de inform ação relevan te; igu a lm en te v álid a é a a ssistên cia q u e p od e
sim e o não mas, simplesmente, entre o mais e o menos. Por exemplo, no caso

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prop orcionar ao s esfo rço s dos o u vid ores de v o z e s n o sen tid o d e ga­ A form a e a o ca siã o d os p ro cesso s d e a u to-registo têm um a im por­
nharem alg u m sen tim en to d e d om ín io e co n tro le da sua situação. tância fundam ental; c o m o já se d isse, só é realm en te e fic a z o registo
Exemplo sim u ltân eo à escu ta das v o z e s. S e o in tervalo entre a ex p eriên cia e o
registo é d em asiad o lo n g o , e s s e registo p o d e agravar até as alu cin a­
John é um rapaz de 24 anos de idade que começou a ouvir vozes há 8 çõ es.
anos. Aí vozes eram de tal modo terríveis que ele, mesmo no hospital, dava A lgu n s o u vid ores d e v o z e s p od em ser contrários ao reg isto siste­
murros na cabeça, partia coisas e ameaçava o pessoal e os outros pacientes. m ático por terem m ed o d e perder as v o z e s p o sitiv a s e o s seu s (b on s)
Uma das vozes ordenava-lhe que se auto-agredisse arremessando-se contra co n selh o s. P essoa lm en te, esto u firm em en te c o n v icto d e qu e cab e ao
uma porta de vidro, saltando da janela, etc. Estes problemas persistiram ou vid or d e v o z e s d ecid ir se se quer v er liv re das v o z e s e d e quais.
apesar dos vários internamentos (um deles compulsivo) no hospital psiqui­
átrico e das várias abordagens terapêuticas tentadas. Não é de estranhar que Q ualquer ten tativa prem atura d e persuadir um a p e sso a a silen ciar
as pessoas tivessem medo dele, incluindo os médicos e os enfermeiros. v o z e s qu e, em seu en tend er, lh e dão a p o io com p orta o risco d e um a
Depois de um pormenorizado inquérito acerca da natureza e da frequên­ ruptura da relação terapêutica. M as, s e garantirm os q u e n ão haverá
cia das vozes, da sua reacção e da reacção dos outros a elas, pedimos-lhe nenh um a e sp é c ie d e p ressão, a m aior parte d os p acien tes n ão porá
que registasse todos esses factores ao longo da semana seguinte. Verificou- o b je cçõ es ao registo.
s e que as vozes apareciam ao pôr do Sol; por isso, dissemos-lhe que meia
hora antes do pôr do Sol se rodeasse de todas as precauções possíveis face O s resu ltad os p o sitiv o s do registo sistem á tico , referid os na litera­
a eventuais complicações e que dirigisse a sua agressividade contra o tra­ tura, fa v o recem a relação terap êutica e d e se n v o lv e m o s p ro cesso s
vesseiro em lugar de a dirigir contra si mesmo, contra as outras pessoas ou c o g n itiv o s. T anto o reg isto sistem á tico c o m o o q u estion ário p orm en o­
contra as instalações. Demos instruções ao pessoal de enfermagem para que, rizado que lh e está a sso cia d o fa zem co m q u e as p e sso a s an alisem ,
meia hora antes do pôr do Sol, o lembrasse disso, para o caso de ele poder av aliem e p on d erem , su b jectivam en te, m as dentro d e u m a m atriz de
esquecer-se do que tinha a fazer. referên cia, o sig n ifica d o q u e atribuem ao s a co n tecim en to s e às e x p e ­
Passada uma semana, o comportamento destruidor de John abrandara
drasticamente e a partir daí nunca mais teve comportamentos explosivos. riências im portantes (ver a S ecçã o C oncentrar-se nas vozes, d este
Resta saber até que ponto essa mudança de comportamento se ficou a dever C apítu lo).
apenas e só à intervenção terapêutica, mas o certo é que houve uma mudança O auto-registo sistem á tico p od e en carar-se co m o um a in terven ção
radical. co g n itiv a qu e e x ig e a con cen tração da a ten ção e que, por isso e in-
directam ente, força o con fron to co m a realid ad e. D este m o d o , o pro­
Técnicas de registo sistemático c e s s o de registo sistem á tico im p lica a e x p o siç ã o in ten siv a às ex p eriên ­
cia s a que d iz resp eito e p od e, por isso , torn ar-se n ecessário utilizar
D e sd e q u e as instru ções a segu ir sejam adequadas às circu nstân­ técn ica s de con trole da an sied ad e.
cia s, até o s p acien tes p sicó tico s graves p arecem ca p a zes de fazer
reg isto s sistem á tico s. Por ex em p lo , é p o u co prático pretender que um a
p e sso a q u e o u v e v o z e s q u ase todo o dia as reg iste d etalh adam ente. P or Exposição
outro lad o, já pod erá fazer um registo dos p erío d o s em que não as
ou v e. A té o s an alfab etos, serv in d o-se de um re ló g io d e xadrez, p od em A eficá cia das técn ica s d e ex p o siç ã o e sa cia çã o no tratam ento de
registar o s p eríod o s em que o u v em v o z e s e o s p eríod o s em que não vários transtornos a n sio so s tem sid o d em on strad a con v in cen tem en te.
as o u v em . Q uando o terapeuta p rescreve o sin tom a e in cita o ou vid or d e v o z e s

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a co n v o cá -la s d elib erad am en te*, e s s e p roced im en to p o d e encarar-se alguém q u e am am , q u e é p erseg u id o p ela s v o z e s e está transtornado
co m o um a técn ica de e x p o siçã o . N esta abordagem so licita -se ao pa­ pelo d esesp ero , d eb a tem -se tam b ém co m sen tim en tos d e raiva e d e­
c ie n te q u e c o n v o q u e c o n s c ie n te m e n te as v o z e s e m m o m e n to s sam paro quando e ssa s v o z e s resvalam para a a g ressivid ad e, a n e g li­
p reesta b elecid os e que tente in ten sificá -la s sem pre qu e elas ocorre­ gência p esso a l ou a a lien a çã o . A s suas atitudes o scila m am p lam en te
rem . O resu ltad o d estes e x e r c íc io s de co n v o ca çã o das v o z e s é , co m o entre a aceitação e a revolta. O m ais p eq u en o v islu m b re d e esp eran ça
v em sen d o referido na literatura, a red u ção ou m esm o a elim in ação d esfalece rapid am ente e m u ltip lica m -se o s sen tim en tos d e culpa; e ste s
d as a lu cin a çõ es v isu a is e au d itivas. sentim entos são p articu larm en te p ern icio so s e há qu e fazer tu d o para
A prim eira tentativa de co n v o c a ç ã o das v o z e s p e lo p acien te d eve os neutralizar. N u n ca é d e m a is afirm ar qu e o s fam iliares têm um a
ter sem p re lugar na p resen ça d o terapeuta, já q u e as rea cções d este grande n ecessid a d e d e a p o io , d e co m p reen são e d e segu ran ça d e q u e
irão ser d e cisiv a s para tranquilizar o p acien te e o s seu s fam iliares. não serão cen su rad os.
Q u and o as v o z e s são co n v o ca d a s co m êx ito , isso é geralm ente inter­ A té o s terapeutas, q u e têm um a aptidão p rofissio n a l para com b in ar
pretado co m o o prim eiro sinal d e co n tro le p essoal; se a tentativa é m al o co m p ad ecim en to e a em p atia co m um a o b jectivid ad e d istan ciad a,
su ced id a, há qu em sugira q u e iss o seria um a form a de criar d e lib e­ têm d ificu ld ad e em reagir ad eq u ad am en te e em dar ajuda q u an d o são
radam ente intervalos livres d e v o z e s. D e qualquer m o d o , o s ex erc ício s confrontados co m o s fen ó m en o s p sicó tico s; en tão, co m o é q u e p o d e­
d e co n v o ca çã o das v o z e s são ca p a zes de induzir sen tim en tos p o sitiv o s m os estar à esp era d e q u e o s fam iliares se com p ortem co m o d e v e ser,
d e con trole p esso a l sobre ela s. no m eio d e todas e ssa s e m o ç õ e s e sen tim en tos angu stiantes? S erá essa
uma ex ig ê n cia realista ou m esm o hum ana? N a au sên cia d e u m a s o ­
lução fá cil, apen as p o d erem o s resp on d er “S im ”. A co m b in ação de
Apoio aos familiares com p ad ecim en to e razão p arece con stitu ir a resp osta qu e m elh or ajuda
oferece àq u eles q u e o u v e m v o z e s e estes são, acim a d e tudo, a n o ssa
Inform ação, instrução e a p o io são elem en to s e sse n c ia is no cu id ad o m aior preocup ação.
ao s fa m ilia res. T em sid o d em on stra d o q u e a red u ção d o s n ív e is
d e a g ressivid ad e, de crítica e d e e x c e s s iv a p reocu p ação na fa m ília de
p acien tes d ep rim id os e e sq u izo frén ico s p od e dar um sig n ifica tiv o Provocar o Diálogo entre Vozes
contrib uto para a redução das taxas d e recid iva. A ajuda esp ecia liza d a
aos fam iliares d e v e in clu ir in form ação sobre a d oen ça , a co n selh a m en ­ Jurrien Koolbergen (terap eu ta)
to cen trado n o problem a e en sin o de ap tid ões para lidar co m situ a çõ es A. P. (clien te)
d e ten são (ver C apítu lo 9, S e c ç ã o Intera cção fa m ilia r).
N ão d e v e m o s sub estim ar a d ificu ld a d e das tarefas que cabem aos A s técn ica s d e co n cen tração nas v o z e s e d e m an ejo da an sied a d e
fam iliares d os ou v id o res de v o z e s . E les estão ex p o sto s a em o ç õ e s têm -se m ostrado particularm ente úteis para proporcionar aos ou vid ores
contraditórias e extrem am en te p en osas: em bora co m p a d ecid o s perante de v o z e s um m aior co n tro le sob re as su as v o z e s no aqui e n o agora.
A s abordagens ligad as ao m an ejo da an sied ad e são co n ceb id a s, a ci­
ma d e tudo, para reforçar o p od er d e ex p ressã o p esso a l do in d iv íd u o
* Se as vozes tivessem um enquadramento somático inquestionável, esta técnica
seria o equivalente a pedir ao paciente que, por um acto de vontade, provocasse a na presen ça das su as v o z e s. A con cen tração nas v o z e s procura, por
febre ou a dor. outro lad o, criar um a c o n sc iê n c ia m ais n ítid a da natureza d as res-

320 321
p ectivas p e rcep çõ es e m od ificar ou transform ar, d e sse m o d o , a sua ralm ente u tilizad o num sen tid o sim b ó lico para d esign ar agregad os de
interpretação. m ó d u lo s fu n c io n a is. P or o u tro la d o , ao lo n g o d e m u ito s an o s
N este p r o c esso de m elh oria do con trole, ex iste um outro cen ário de ex p eriên cia , S ton e e W in k elm an foram gan h an d o a co n v icçã o de
im portante q u e im p lica o alargam en to d o a u to co n h ecim en to , parti­ que e ssa s person alid ad es fragm en tárias estã o realm en te p resen tes nas
cu larm en te da c o n sc iê n c ia d e cad a um e d os seu s e fe ito s. A este p esso a s, ten d o cad a um a das su b p erson alid ad es um a d otação própria
prop ósito, tem sid o u ltim am en te d e se n v o lv id o um m éto d o co n h ecid o de atributos p sic o ló g ic o s. Para im aginarem o m o d elo d e co n sciên cia
por D iálogo entre V ozes. Q u isem o s analisar os efe ito s b e n é fic o s desta em que o D iálogo entre V ozes se b aseia, S ton e e W in k elm an in sp i­
técn ica e com p rovar se o s d iá lo g o s entre v o z e s, q u e ela pretende raram -se na sua própria exp eriên cia.
sondar, terão e fec tiv a m en te um a larga utilidade. N o s an os de 1991 e E ste m o d elo está a sso cia d o à ch am ad a P sic o lo g ia da T ran sform a­
1992 e sta b e lec em o s con tacto co m vários ou v id o res d e v o z e s e com ção, e sc o la d e p en sam en to cu ja origem rem on ta ao s anos 60. T en d o
terapeutas in teressad os em ensaiar esta abordagem terapêutica. surgido co m o reacção à P sica n á lise por um lad o e ao B eh aviou rism o
por outro, a ch am ad a terceira aven id a da P sic o lo g ia H u m an ista c o n ­
quistou um co n sid erá vel terreno n os an os 6 0 , sen d o M a slo w um d os
O m étodo seus m ais n o tá v eis p rop on en tes. T em a e sq u ecid o durante m u itos anos,
a c o n sciên cia v o lto u à prim eira lin h a da in v estig a çã o co m a P sic o lo ­
O D iálogo entre V ozes é um m étod o de au to co n h ecim en to e de gia H u m anista, a par da q u estão da u n idade m en te-co rp o. E m parti­
m o d ifica çã o da c o n sc iê n c ia q u e se b a seia num m o d elo da m en te cular, esta ten d ên cia realça o crescim en to p e sso a l e a au to-realização,
d e se n v o lv id o p e lo s p sic ó lo g o s H al S ton e e Sidra W in k elm an . O diá­ e em resu ltad o d este n o v o v ig o r con cep tu al n asceram m uitas terapias
lo g o em qu estão co n d u z -se co m a v o z ou v o z e s interiores q u e em er­ dirigidas para exp eriên cia s corp o-en ergia.
g em das p erson alid ad es fragm entares; essa s (d iferen tes) p erson alid a­ A co n sc iê n c ia , porém , está estruturada por cam ad as, p elo qu e p o ­
d es p od em ter von ta d e, vid a em o cio n a l, p en sam en tos e v o z próprios. dem ser exp erim en tad os vários n ív e is d e co n sc iê n c ia . E ste m o d elo
T o d o s n ós n o ta m o s, quando param os para reparar n isso , q u e ex iste tom a tam bém em lin h a d e con ta as ex p eriên cia s tran scend entais ou
dentro de nós m esm o s um a e sp é c ie de d iá lo g o co n tín u o , que c o n si­ espiritu ais, reflectin d o a in flu ên cia d e trad ições o rien tais, co m o o yoga,
d eram os p erfeita m en te natural. A m en te c o n scien te vu lgar, a que segun do as q u ais as p esso a s irradiam c o n sciên cia em form a d e en ergia.
ch am am os ego, qu e regu la o s n o sso s assu n tos e d e c isõ e s do dia-a-d ia, A P sic o lo g ia da tran sform ação d e se n v o lv e u -se n os an os 80 na
p o u co ou nada é afectad a por e sse d iá lo g o interno; n o en tan to, por C alifórnia e d eu -n o s um a n o v a sín tese das ten d ên cia s in icia is, co m o
vezes, o ego p o d e id en tificar-se tão fortem ente co m determ inadas intuito de integrar as en ergias terrestres e esp iritu ais na co n sciên cia
partes da person alid ad e que as v o z e s que representam outras partes hum ana. O ex p r essiv o título do prim eiro livro d e S ton e, E m bracing
im portantes de n ó s m esm o s não se p od em exprim ir. O m éto d o do H eaven a n d E arth (U nir o C éu e a Terra), é p recisa m en te o fu lcro da
D iálogo entre V ozes (que in icialm en te não fo i d e se n v o lv id o co m o co n sciên cia d e tran sform ação. A o d efin ir co n sc iê n c ia , d iz Stone:
um a terapia, m as que tem , claram ente, um grande potencial terapêutico)
perm ite um d iá lo g o p ergu n ta-e-resp osta entre o líd er d e d iscu ssã o “As vossas percepções dizem respeito a vários Eus que existem dentro de
- co n h ecid o por au xiliar - e as d iversas su b d iv isõ es da p erson alid ad e vós e que experimentam as suas próprias energias.”
do clien te.
E m P sic o lo g ia H u m anista e T ran sp essoal é b em c o n h ecid o o c o n ­ Para e le , a c o n sciên cia n ão é só um a q u estão d e co n h ecim en to,
ceito d e p erson alid ad e fragm entária, m as o term o fragm en to é g e ­ co m b in an d o -se tam bém co m um a ex p eriên cia física .

322 323
C om o a m inh a ju ven tu d e n em sem p re correu m u ito b em , o m eu
O q u e se seg u e é um excerto d e um a co m u n ica çã o apresentada controlador n ão tinha a adeq uad a en ergia e p recisava d e se d e se n v o l­
p ela s autoras desta S e cçã o num C o n g resso sob re E scu ta de V o z e s que ver co m m ais força e eficá cia . U m controlador é um a en ergia qu e
tev e lugar em M arço d e 19 92 na cid a d e h o la n d esa de D en B o sch . E ssa superintende a tudo, qu e p erm ite o u im p ed e outras en ergias. E le c o n ­
co m u n ica çã o co n sistiu na d escrição d e 10 se ssõ e s terapêuticas, cu jos trola todo o ser. S e o controlador n ão co n seg u e d e se n v o lv er um a
p rop ósitos eram m u ito sem elh an tes aos o b je ctiv o s d o D iálogo entre su ficien te cap acid ad e d e co m p reen sã o , d e se n v o lv e -se , em co m p en sa ­
V ozes, ou seja: ção, um a outra energia: trata-se d e um a en ergia m ascu lin a, qu e ex iste
- O ou vid or d e v o z e s aprende a co n h ecer o s seu s eus ou v o z e s e para estruturar e regular. D e v e z em qu and o, esta en ergia m ascu lin a
a participar das suas en ergias (m o d e lo d e co n sciên cia); assum e a fu n ção do controlador, qu and o este n ão está a fu n cion ar
- D á -se um a transform ação das v o z e s ou eus que d ificu ltam o correctam ente. Isso perm ite q u e haja sem p re um a p rotecção e fica z
contra outras en ergias qu e p o ssa m ev en tu alm en te entrar n o m eu e s ­
b em -estar ou o crescim en to p essoal;
pírito e m an ifestar-se sob a form a d e v o z e s. E ssas en ergias têm , m uitas
- O ego - a fu n ção ex ecu tiv a - to m a -se m ais co n scien te, perm i­
v ezes, o rigem noutras p e sso a s (p erson alid ad es fragm en tares).
tind o que o in d ivíd u o se to m e um a gen te m ais livre e dispon ha
d e um a m ais am pla gam a de e sco lh a s. Terapeuta:
C lien te: N a prim eira sessã o , a m in h a clien te p arecia surpreendida co m a
en ergia das várias su b p erson alid ad es in terven ien tes. N o en tanto, o
D a d o que a m inha vid a tinha adquirido a licerces só lid o s, sen tia-m e
controlador tinha m uita d ificu ld a d e em perm itir q u e algu m as das
su ficien tem en te forte para m e sub m eter a este p ro cesso . T inha a m igos v o zes m ais n ega tiv a s c o n c lu ísse m o q u e tinh am para dizer; d izia e le
a q u em recorrer, um em p rego que m e dava o s m eio s de su b sistên cia que d eix á -la s contin uar a falar era dar-lh es d em asiad a aten ção. E m
e a p len a co n fia n ça de qu e, co m a D r.a K o o lb ergen , esta v a em boas sessõ es p osteriores, entraram em cen a in term ediários, q u e exp rim iam
m ãos. T u do isso m e fa zia sentir segura d e q u e a p sic o se não voltaria os sen tim en tos n ega tiv o s das v o z e s origin ais, fican d o as v o z e s n e g a ­
a p recip itar-se. C om o se verá, a m inha n e cessid a d e d essa segurança tivas a falar um as co m as outras o resto do tem p o. A clien te d istin gu ia
v e io d e n o v o ao d e cim a durante a terapia. claram ente entre v o z e s n ega tiv a s oriundas do interior d e si m esm a das
v o zes n egativas oriundas d o exterior (em term os d e D iálogo entre
Terapeuta: Vozes, as prim eiras pod erão derivar da crítica interna, en qu an to qu e
A n tes de partirm os para a prim eira sessã o , a m inha clien te e eu as segun das pod erão representar um s e lf ren egad o, um a person alid ad e
rejeitada, se b em q u e n o D iálogo entre Vozes nu nca p o ssa m o s ex clu ir
co m b in ám o s co m eça r e encerrar sem p re as s e ssõ e s co n v o ca n d o o
a p o ssib ilid a d e d e estas v o z e s v irem realm en te do exterior).
controlador-protector, um a das su b p erson alid ad es m ais im portantes
no D iálogo entre V ozes. C om b in ám os ainda que o con tro lad or-pro­
tector p od eria intervir em qualquer altura das se ssõ e s, se algu m a c o isa C liente:
n ão e stiv e sse a correr a seu g o sto . D e fa cto , isso viria a acon tecer D urante a prim eira sessã o fa lám o s tam bém co m p erson alid ad es
várias v ezes. fragm entares d e outras p e sso a s, q u e se tinham d iv id id o em co n se-

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q u ên cia d e terem sid o p o sta s de lado ou rejeitadas. Isso iria ajudar- constante para con tin u ar a ser eu m esm a, apesar do acord o q u e fizera
-m e a confirm ar q u e as m in h as v o z e s não provinham só de dentro de com as m inh as várias en ergias para qu e qualquer d elas d e sse um a
m im , m as tam bém de fora. E fo i tam bém m o tiv o d e grandes co n flito s ajuda quando su rg isse um en fraq u ecim en to d em asiad o. P or ex em p lo ,
entre m im e o s operad ores so cia is qu e lid avam co m ig o . quando a en ergia sen sitiv a e stiv e sse a passar um p eríod o d ifíc il e não
andasse a fu n cion ar b em , a en ergia d e ju stiça assu m iria as suas fu n ­
Terapeuta: çõ es, p rotegen d o a en ergia sen sitiva . E ste p ro cesso d e co o p eração era
im portante para um a p rotecção adequada.
N a segu n d a se ssã o , a m in h a clien te d escrev eu a m aneira co m o A s en ergias d iv id id a s ex teriores a m im tinham o háb ito d e aparecer
certas en ergias sup eriores a ajudavam a resistir às v o z e s n ega tiv a s. E la sem avisar e p o d ia m esgo ta r as m inh as forças. Sem p re q u e a m inh a
via n essa s en ergias um a e s p é c ie d e gu ia espiritual e o seu controlador protecção - e au top rotecção co n scien te - m elh orava, tinha in ício um a
a ceito u -a s de b om grado durante as n o ssa s se ssõ e s. E ssa s en ergias luta encarniçada. O con trib u to qu e eu m esm a d ei para a m inh a pro­
sup eriores d en otavam u m a b oa d o se de sen sa tez e m an ifestaram -se tecção fo i c o n se g u id o através do encerram en to d elib erad o da m inh a
m uitas v e z e s em s e ssõ e s p osterio res, para exp licar ou corrigir deter­ aura, c o isa q u e tinha aprend id o a fazer nu m cu rso q u e frequentara
m in ad os asp ectos. E ntre outras co isa s, ela s d iziam q u e n em sem pre com um a m ulh er d e d o tes paranorm ais. A aura é um ca m p o d e en er­
p od eriam ajudar a c lien te, na m ed id a em que ela se d everia tom ar gias que e n v o lv e as p e sso a s e qu e p od e ser aberto ou en cerrad o v o ­
m ais forte por si m esm a. luntariam ente p or m eio d e e x erc ício s d e con cen tração. C o stu m o re­
E x istem provas de um a certa polaridade - n este ca so , entre en er­ correr, por e x e m p lo , a im agin ar um m uro em v o lta d e m im ou um
g ia s inferiores e sup eriores - q u e o controlador u tiliza para criar um a gradeam ento en tre m im e outra p esso a . Q uanto m ais o fa ço , m ais
abertura para um a terceira v o z , que surge en tão, em geral, esp o n ta ­ efica z se torna.
n eam en te. H ab itu alm en te é um a en ergia m u ito b em -d isp o sta , que A o co n scien cia liza r tod as as en ergias, adquiri tam b ém um a pers-
exp rim e a sua sa tisfa çã o por lh e darem um a oportunidade, ainda que pectiva do q u e esta v a a acon tecer, sobretudo d e algo q u e e stiv e sse
b reve, d e aparecer. próxim o. S en tia u m a ten são crescen te dentro d e m im e fica v a um
N a terceira sessã o , a v o z falou tam bém de m ed o, sobretudo do pouco co n fu sa e atordoad a, co m a m inh a c o n sciên cia a esv a ir-se
m ed o d e se precipitar um a n o v a p sico se. N este ponto, o controlador um p ou co. N e ssa s alturas, u tiliza va co n scien tem en te a m in h a p rotec­
d irigiu -se ao m eu próprio controlad or para se certificar da seguran ça ção: há m uito tem p o q u e n ão era cap az d e o fazer por m im própria.
da situ ação e d izer q u e a v o z n ega tiv a exterior à clien te tinha sid o N o in ício d esta n o v a fa se d e inten sa p rotecção era para m im um a
terrivelm en te d ifícil d e suportar naquela sem ana. Propus que d e ix á s­ guerra trem enda tom ar ab solu tam en te claro qu e quando eu d izia “N ã o ”
sem o s a v o z n egativa participar em p len o nas se ssõ e s, na co n d içã o de era m esm o N ã o , já q u e as en ergias faziam tudo para pôr à prova a
perm anecer in activa o resto da sem ana. E xp liq u ei, um a v e z m ais, m inha so lid e z. N o en tan to, fa zen d o m ais e m elh or u so das m inhas
qu e o m elhor para um a en erg ia c o m o ela seria receber a aten ção que armas e co m a ajuda d o m eu controlad or, e doutras en ergias q u e m e
procura (um dos p rin cíp io s do D iálogo entre V ozes é perm itir q u e um a en viam p en sam en tos p o sitiv o s, co n seg u i ven cer. Por isso , n ão p od en d o
en ergia se so lte até sair toda a ten são que con tém ). já entrar à von ta d e p ela brecha e ficar o tem p o que lh es ap etece, as
energias fragm en tárias acabam por d esin teressar-se. O u v ia -a s m uitas
C liente: v ezes dizer: “A lu z não, vam os em b o ra ". Eram duas en erg ia s que
M uitas v e z e s as c o isa s corriam b em entre as se ssõ e s, m as quando actuavam ju ntas. V en d o as co isa s retrosp ectivam en te, eu v iv ia no fio
ch eg av a a casa e fica v a so zin h a era tudo m uito diferente. Era um a luta da navalha; h a v ia o c a siõ e s em qu e acred itava ser cap az d e ultrapassar

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as d ificu ld a d es, m as havia outras em que a m inha co n fia n ça fraquejava. À oitava sessã o - q u e fo i adiada um a sem an a por d o en ça m i­
P or fim , porém , acabei por v en cer e bater o p é às en ergias. O m eu nha - , en con trávam o-n os am bas num im passe: a clien te queria aban­
“ N ã o ” era fin alm en te N ão. donar as se ssõ e s. A p rov eitá m o s a situ ação para analisar as d iferen tes
m o tiv a çõ es da clien te e e la adm itiu ter r ec eio d e qu e as s e ssõ e s aca­
T erapeuta: b assem . T inha bastante von tad e d e lutar, m as, co m o esta v a a a co n te­
cer tanta c o isa ao m esm o tem p o, p reo cu p a va -se co m o qu e pod eria
N a quarta sessão , o controlador afirm a qu e a v o z negativa ador­ su ced er se tod o este trabalho term in asse b ru scam en te. A lém d isso ,
m ecera co n form e co m b in ad o , m as apenas por m era co n v en iên cia . esta v a tam bém a exp erim en tar um sen tim en to d e aban dono (q ue lhe
O con trolad or aceita p len am en te que não se dê qu alq uer liberdade de era fam iliar). P or outro lad o, tinha co n su ltad o entretanto outras p e s­
m o v im en to s a essa v o z e qu e, em v e z d isso , se d e ix e falar à vontade soas que a acon selh aram a parar co m as se ssõ e s - agora q u e as co isa s
a v o z am orosa - co m o a m inha clien te lhe ch am ava. Isso radicava em estavam m ais ou m en os sob con trole. M as a v o z n egativa exterior,
a sp ectos fu nd am en tais para ela, co m o a a feiçã o e o aban dono e aquilo em bora m an ejável durante as se ssõ e s, co n tin u ava a fa zer-lh e a vid a
q u e eram as suas n ecessid a d es e carên cias. negra em casa e isso era cau sa d e p reo cu p a çõ es para ela. “A con sciên­
N a quinta sessã o , tem lugar a prim eira tran sform ação. U m a v o z cia d ó i” - d isse.
in icialm en te negativa e arrogante apareceu d izen d o q u e era tristem ente D ep o is de eu lh e ter ter garantido q u e as se ssõ e s contin uariam um
in com p reen d id a. M as no fim da d iscu ssã o fo i-lh e feito sentir que não p o u co para lá das d ez in icia is, por form a a d eixar as co isa s adeq ua­
só era com p reen d id a co m o a va lid a d e das su as o p in iõ es era aceite. dam en te reso lvid as, d ecid iu continuar.
E ssa v o z au to-ap elid ava-se O Justo. A n on a sessã o , as co isa s co m eçaram a ficar m ais claras acerca da
N a sex ta sessã o , O Ju sto regressa para o ferec er-se co m o cavaleiro en ergia negativa exterior. S egu n d o a c lien te, a v o z fic o u m u ito pior
d efen so r da en ergia sen sitiva da clien te, b em co m o de outras. C o n fessa e con tin u a a tentar in flu en ciá -la n egativam en te; essa v o z está a sso ­
m esm o q u e é vu ln erável e q u e sem pre se sentiu um a vítim a, em ciada ao ó d io , aos erros, aos sen tim en to s d e cu lp a e ao ca stig o e
virtude d e o controlador não ser su ficien tem en te afirm ativo. esp alh a a co n fu sã o qu and o a clien te se recu sa a ceder.
A p resen to u -se ainda a segun da v o z n ega tiv a d e crítica interna, A d écim a sessã o , o controlador ap areceu e d isse-lh e q u e, ao lon g o
d izen d o q u e se sentia agora m en os vin gativa; q u e a partir daí se ia da sem ana, tam bém se tinha sen tid o so b in flu ên cia d e um a co n fu sã o
com portar co m m ais d elica d eza e bom -h um or. É o in ício de um a que fora incap az d e dom inar.
segu n d a transform ação. A s d ez se ssõ e s ch egaram ao seu term o. É ev id en te q u e a v o z
N a d iscu ssã o prelim inar da sétim a sessã o , a c lien te d iz que se sen te n ega tiv a exterior, sen tid a p ela c lie n te c o m o um a v o z ditatorial e
m elh or, m en os solitária, m ais acom panhada. Já c o n se g u e voltar a ler. geradora de co n fu sã o , ainda n ão d esap areceu , m an tém -se p len a de
A s v o z e s n ega tiv a s interiores tornaram -se am bas p o sitiv a s e as v o zes v ig o r e ainda não fo i p o ssív e l transform á-la.
n egativas exteriores passaram para seg u n d o p lan o. P orém , a en ergia
paranorm al con tin u a a m anifestar-se; seg u n d o a clien te, essa en ergia C o n clu sõ es da terapeuta:
rep resen ta um a fragm en tação da sua en ergia sen sitiva . Isto é um tanto
p rob lem ático, já que essa en ergia ronda in cessa n tem en te recolh en d o D esta série d e s e ssõ e s co n c lu o , p rovisoriam en te, qu e um p roced i­
in form ação. F elizm en te, porém , o controlador da clien te tem agora m en to exp erim en tal d este tip o fa z tod o o sen tid o , sem deixar d e conter
um m aior d o m ín io na situação. o s seu s riscos.

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C o n seq u en tem en te, lod o o gén ero d e saíd as criativas para essa v o z , co m o escrev er e
- o terapeuta d e v e ser a lg u ém co m treino clín ic o e co m treino de pintar, m as a clien te p arecia recear as co n seq u ên cia s n egativas d isso .
D iálogo entre Vozes; A p ó s a terceira se ssã o , a clien te apareceu, su b itam en te, co m um a
- d e v e prop orcionar-se ao c lien te um b om ap oio p rofission al na táctica da sua própria lavra: sem p re qu e a en erg ia /v o z n e ga tiv a sur­
sua situação d om éstica; g isse, ela o u v ia -a e d a v a -lh e réd ea solta até esv a zia r o saco. P areceu
- as se ssõ e s d ev em ter um lim ite tem poral com p a tív el co m a ad e­ um ex celen te truque: seg u n d o a clien te, a en ergia entrou em c o la p so
quada reso lu çã o d o s prob lem as. e fico u desarm ada. O ê x ito d esta ab ord agem fê -la sen tir-se su fic ie n ­
tem ente forte para p rosseg u ir sozin h a, sem qualquer ajuda, ap ós a
C o n clu sõ es da cliente: sexta sessã o sup lem entar.
A elim in ação d e u m a en erg ia /v o z refractária p od e ex ig ir um ritual
C om o já sou capaz de d izer claram en te “N ã o ”, já sou m ais capaz esp ecia l, do tipo d os q u e s e u tilizam n o luto; n este ca so , e le a co n te­
tam bém d e traçar lim ites na m inh a vid a. Q uero esta b elecer fronteiras cerá esp on tan eam en te. D e m o m en to , n ão há resu ltad os d e seg u im en to
claras às p e sso a s que m e rodeiam ; n o passad o sem pre tinha evita d o a relatar m as, para m im , esta fo i um a ex p eriên cia q u e m e alargou os
isso , porque não era capaz de lidar co m a m inha agressiv id a d e quando horizontes.
ten tava esta b elecer lim ites. Isso pu n h a-m e d oen te, m ental e fisic a ­
m en te - e fa zia -m e sentir reles. C o m o aprendi a fech ar-m e adeq ua­
dam en te, agora lid o m elh or co m isso . P or causa d e sses n o v o s lim ites, Reabilitação
algu n s d os ch am ad os “a m ig o s” afastaram -se.
Outra m udança p o sitiv a é que h oje sou m elhor a resolver e a Marius Romme
assim ilar v elh o s traum as e b lo q u eio s, e isso sig n ifica que estou m en os
co n fu sa e q u e sou cap az d e v er c o m m ais clareza on d e pon h o o s p és. O uvir v o z e s n ão é um fen ó m en o m eram en te pessoal: está in fim a­
C ontinuo en vo lv id a no D iálogo entre V ozes e esp ero ir ainda m ais m ente lig a d o ao m eio so c ia l d o ou vid or. O lugar qu e o ou v id o r o cu p a
lo n g e na m inha cam inh ad a para explorar o m undo das v o zes. no seu m eio so cia l d e p erten ça é, m uitas v e z e s, afectad o p ela e x p e ­
riência de ou vir v o z e s , o q u e sig n ifica q u e é n ecessário prestar a
devid a aten ção ao p r o c esso d e reab ilitação. E sta e outras in terven çõ es
P ostscriptum da terapeuta: so cia is são e sse n c ia is para q u e p o ssa flo rescer o am b ien te o n d e d e ­
A o fim das 10 se ssõ e s, a c lie n te e eu con cord ám os em realizar correm as estratégias e as activ id a d es d escritas n este livro. O o b jec-
algu m as se ssõ e s m ais, até ela atingir o eq u ilíb rio. N esta s se ssõ e s tivo da reab ilitação é assegu rar as m elh ores circu n stân cias p o ssív e is
sup lem entares, con cen trám o-n os n o controlador, na en ergia vu ln erá­ para o d e se n v o lv im en to d o in d ivíd u o e perm itir que as terap êuticas
v el (a vítim a) e na v o z n e ga tiv a exterior. O n o sso prop ósito era trans­ possam dar o resu ltad o p reten dido.
m itir à clien te a cap acid ad e d e lidar m elh or co m as suas perturbações O s in gred ien tes e sse n c ia is a este p rocesso são:
e, a lém d isso , provocar um a transform ação na v o z negativa. - R ela çõ es d e q u alid ad e (p or ex em p lo , co m o operador so cia l);
N as prim eiras 3 se ssõ e s su p lem en tares, o controlador fartou -se de - Inform ação d e qu alid ad e;
gritar vio len ta m en te co m a en ergia n egativa, ord en an d o-lh e que se - R ecep tiv id ad e às em o çõ es;
fo sse em b ora. E ste p roced im en to n ão deu qualquer resultado e a v o z - A u ton om ia social;
n egativa con tin u ou a in com od ar a clien te. T en tám os am bas descob rir - R ela çõ es d e c o n fia n ça (p esso a s sig n ifica tiv a s).

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R ela ções de qualida de - ser honesto sobre a motivação e as razões para intervir;
- estabelecer regras de base à partida;
C om o já v im o s - e co m o se com preend erá o s o u v id o res de - garantir e preservar uma atmosfera de segurança;
v o z e s são a v e sso s às interpretações técn icas que n egu em as suas e x ­ - não forçar a agenda - garantir um espaço para respirar, de modo a
p eriên cias e p e rcep çõ es. Para e le s é im portante que o s outros o s oiçam que a pessoa possa decidir o que dizer ou não dizer;
co m aten ção e c o m in teresse sin cero, em v e z de p roced erem a um a - deixar que a pessoa decida quais devem ser os objectivos a atingir e
m era co lh eita d e d a d o s paternalista. A relação d e v e ser de co n fia n ça se pretende a mudança ou não.”
m útua e d e v e b asear-se na igu ald ad e*.
Para ex em p lifica r a im portância fundam ental d estas atitudes num a Inform ação de qualidade
b oa relação terap êutica, gostaria d e citar um ex -p a c ien te (v er 12.°
C ontributo, C ap ítu lo 8): Para se com p reen d er e ajudar a lgu ém , e saber o q u e e sse algu ém
"Em 15 anos de intervenção psiquiátrica, só uma vez - tinha eu 36 anos pretende, é e ssen c ia l q u e am bas as partes d isp on h am d e toda a in for­
de idade - encontrei alguém disposto a ouvir-me. Isso viria a constituir para m ação. A ssim , é b oa id eia co m eça r por um a in ven tariação p orm en o­
mim um ponto de viragem e, a partir daí, deixei de ser uma vítima e comecei rizada d o n ú m ero d e v o z e s, seu gén ero, sua id ad e e características, de
a tornar-me senhor da minha própria experiência. Esse alguém foi uma quem p rovêm , co m o estã o organ izad as, q u e in flu ên cia têm sob re o
enfermeira, que, na verdade, arranjou tempo disponível para me ouvir falar ouvidor, o qu e d izem , c o m o é q u e o ou v id o r reage, qu e acon teceu
da minha experiência e dos meus sentimentos. Ela fez-me sentir sempre bem- desd e o dia em qu e com eçaram , etc. Isto dá ao ou v id o r e ao operador
-vindo e arranjava maneira de nunca sermos incomodados. Desligava o bip socia l um assu n to d e qu e falar e este p r o c esso d e reflex ã o é um
e punha o telefone fora do descanso e, às vezes, como havia sempre gente
no corredor, corria as cortinas do gabinete. Tudo isso me fazia sentir mais preced ente in d isp en sá v el à elab oração d e u m a ab ord agem às v o z e s.
à vontade. Em vez de se pôr atrás de uma secretaria, sentava-se ao pé de D á im en so trabalho a am bas as partes ch eg ar a um a p o siçã o
mim. Dizia-me que tudo o que fosse conversado entre nós era confidencial, co n sen su al sob re a natureza e o s o b je ctiv o s da relação qu e m antêm
excepto se e quando eu decidisse o contrário. A pouco e pouco, à medida que nesta abord agem . M as isso n ão ob sta à fo rm u lação d e o b je ctiv o s de
aumentava a confiança entre nós, tornei-me capaz de lhe falar dos abusos curto prazo, qu e estã o , regra geral, rela cion a d o s co m o m anejo da
que sofri e das vozes. Às vezes, quando eu descrevia o que tinha acontecido ansiedad e. E sbater a an sied ad e e co n seg u ir um certo grau d e con trole,
comigo, ela dizia-me que essas coisas buliam com ela e que, por isso, pre­ ainda que p eq u en o, fa z certam en te co m q u e se torne co n sid era v el­
cisava de parar por momentos. Finalmente, eu encontrava alguém que dava m en te m ais fá cil pensar. O utras ajudas no sen tid o d e tom ar o p en sa ­
valor à dor que eu sentia. Ela ajudou-me a perceber que as vozes eram parte m ento m ais fá cil p od em tam bém ser u tilizad as, c o m o , por ex em p lo ,
integrante de mim mesmo e tinham um sentido e uma validade próprios.
Passado um período de 6 meses, consegui desenvolver uma estratégia de escrev er tarefas a cum prir, escrev er um d iário e fazer e x erc ício s de
base para lidar com as minhas vozes. O mais importante nessa enfermeira c o n c en tr a ç ã o n as v o z e s (para m a is in fo r m a ç õ e s so b re e ste tip o
foi a honestidade das suas motivações e as respostas que me deu ao que eu de técn ica s, ver as resp ectiv as S e c ç õ e s n este C ap ítu lo).
lhe dizia. L enta m as segu ram en te, este p ro cesso d e p en sa m en to e d e reflex ã o
Gostaria aqui de afirmar que talvez outros profissionais de Saúde Mental v a i-se orien tan d o n o sen tid o d e m elhorar a cap a cid ad e d e apreensão
ou de Intervenção Social possam aprender com a abordagem seguida por do sig n ifica d o das v o z e s na v id a do ou vid or. N e ste co n tex to , é im por­
essa enfermeira - que pode resumir-se como segue: tante id en tificar as situ a çõ es, as em o ç õ e s e as p e sso a s asso cia d a s à
ocorrência ou à in ten sificação das v o zes - os ch am ad os desen cad ean tes.
* Ver conceito de “Parceria” na Apresentação à Edição Portuguesa deste livro. O s d esen ca d ea n tes rep resen tam circu n stân cias q u e parem as v o z e s

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q u e trazem dentro d e si. A s v o z e s p arecem reagir a a lg o q u e é e estar preparados para recon h ecer as suas próprias e m o ç õ e s e as
id e n tific á v e l: p o d e m e v o c a r e x p e r iê n c ia s tra u m ática s (la m p ejo s form as de lidar co m um as e co m outras. E sta recep tivid ad e requer
m n é sico s), interferir num a dada situação (ord ens) ou proteger o ouvidor um a sen sib ilid a d e esp ecia l para o s seg u in tes aspectos:
(p ro ib ições). O s d esen cad ean tes p o d em ser, m uitas v e z e s, d ifíceis de
id en tificar. M u itos ou v id o res con sid eram útil escrev er um a au tob io­
grafia, em q u e as v o z e s figuram co m o p erson agen s principais (eg o - E m patia
d o cu m en tos).
É particularm ente im portante n esta an á lise iden tificar o s sentid os A em p atia p ressu p õe a cap a cid ad e d e ou vir co m a adeq uad a e m o ­
m eta fó rico s e sim b ó lico s. V eja m o s, por e x em p lo , o ca so da v o z que ção, de m aneira a dem on strar q u e o m ed o das v o z e s é sen tid o e tido
fala co m o um robô. O robô sugere fo rça sem e m o ç õ e s, força a q u e é em con sid eração, m as qu e n ão é razão para fu gir ao prob lem a. Isto
d ifíc il resistir e ven cer, e q u e p od e, por isso , sim b olizar um a p esso a não quer d izer qu e aq u ele q u e presta ajuda d eva encorajar a an sied ad e,
sem m ed os. O robô to m a -se um a m etáfora d e lidar co m as em o çõ es; m as tam bém n ão sig n ific a q u e e v ite m an ifestar qualq uer em o çã o
se o rob ô é um a figura am eaçadora para o ou vid or, a verdade é que quando lh e relatam ex p eriên cia s extrem am en te d esagrad áveis. R eac-
tam b ém p od e ser um a m etáfora para lidar c o m as em o çõ es. çõ es hum anas adeq uad as, da parte d e q u em presta ajuda, perm item ao
N e ste s ca so s, é fundam ental qu e seja d iscu tid o o m ed o de ter m ed o ouvidor de v o zes adm itir co m m ais facilid ad e a intensidade das em o çõ es
e q u e se en sin e o ou v id o r a lidar co m o m ed o. O utro e x em p lo poderia em causa e sentir qu e a su a tem p estad e em o cio n a l é p erfeitam en te
ser a v o z de um a criança: ela p o d e sig n ifica r q u e se está a ser tratado com p reen sív el ten d o em co n ta as circu n stân cias qu e está a atravessar.
c o m o um a criança ou p od e sugerir um a in fân cia traum ática. N o pri­ Q uando as v o z e s são m u ito am eaçad oras, aq u ele q u e presta ajuda
m eiro ca so , a v o z poderá, ev en tu alm en te, m andar fazer co isa s próprias d eve ainda tentar form ular um a d escrição da exp eriên cia. Falar co m
d e criança, enquanto que no seg u n d o ca so p o d e aparecer relacion ada seriedade sob re as co isa s p o d e ajudar a d efin ir qu ais o s asp ectos do
co m algu m a ex p eriên cia d ifícil q u e o o u v id o r tenha atravessad o em fen óm en o q u e assen tam na realid ad e e qu ais o s qu e são fruto da
d eterm inada idade. im aginação; ficar calad o só p o d e contribuir para reforçar a id eia d e
A s m etáforas são, m uitas v e z e s, d e tal natureza que o seu sig n i­ que o prob lem a é apenas d o o u v id o r e d e m ais n in gu ém . U m a d isc u s­
fica d o só por m ero acaso se poderá atingir. N ã o e x iste nenhum d ic io ­ são apropriada p od e ajudar o o u v id o r a apreender a estrutura d e p od er
nário d e m etáforas que nos ajude a enfrentar o prob lem a, m as ex istem das v ozes; este p od er só e x iste n a m ed id a em qu e o ou vid or o atribua
in ú m eros ex em p lo s b em d o cu m en tad os, q u e se pod erão encontrar em às v o z e s e in sista n o p od er ilim ita d o d elas, apesar d e todas as tenta­
v ários livros, co m o é o ca so das p erson alid ad es m últiplas. A técn ica tivas de o persuadir d o contrário.
d e con cen tração nas v o z e s con stitu i um b om auxiliar nesta ex p ed içã o
através do m un do das m etáforas e d o s d esen cad ean tes. C onfrontação

A s v o z e s p o d em servir para p roteger q u em as o u v e d e certas


R eceptivid ad e às em oções em o çõ es q u e inspiram fu ga o u evitam en to; em tais circu n stân cias, é
im p o ssív el ao ou vid or aprender a lidar co m essa s em o çõ es. O prestador
A o lidar co m o s o u vid ores de v o z e s, a fa m ília , o s a m ig o s e tod os de ajuda d e v e por isso ter em co n ta q u e, para q u e se registem p rogres­
o s q u e prestam ajuda d ev em estar rec ep tiv o s às em o ç õ e s d o p acien te so s, pod e ser essen c ia l a con fro n ta çã o co m essa s e m o çõ es. N ã o d ev e

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ser e v a siv o , ainda q u e pareça correr o risco de precipitar um a reacção lento, cuja record ação é d em asiad o d olorosa (n estes c a so s, p o d e ser
vio len ta . E v id en tem en te, é n ecessário ter à m ão as n ecessária s m ed i­ dem asiado ten tador perm itir a n ega çã o e a rep ressão d essa s m em órias,
das d e em erg ên cia para o ca so de essa crise acontecer. P or e x em p lo , dada a im p rev isib ilid a d e das rea cções in d ivid u ais à rep esca g em de
um a estudante com eçou a ou vir vozes p ela prim eira vez aos 23 anos. m aterial d o lo ro so , m as, c o m o tem os verifica d o , e ssa atitud e n ão é
N o ano anterior tinha sido subm etida ao cerim onial de iniciação dos m uito sensata).
caloiros (na H olanda, algum as organizações de estudantes têm o In felizm en te, o s a co n tecim en to s d o lo ro sos n ão resid em apen as no
costum e de tentar esca n d a liza r os caloiros em m atéria de sexo, d u ­ passado; às v e z e s p ersistem n o presente e n e sse ca so sã o até m ais
rante o períod o de recepçã o aos novos alunos). E la tinha sido lançada d ifíceis de perscrutar e sondar. A o ex p lo rá -lo s, aq u ele q u e presta
na confusão com as con fro nta ções p ró pria s desse ritual e a p a rtir d a í ajuda irá deparar, aqui e além , co m o ou vid or d e v o z e s em b renh ado
pa sso u a evitar a sexualidade. M esm o depois de vários anos de ajuda, a con tragosto n u m território d e sc o n h e cid o e, por isso , d e v e estar
em que se incluem algu ns anos de seguim ento na nossa consulta preparado para tod as as ev en tu alid ad es quando se aventura a partilhar
externa, ela p erm an eceu sexualm ente evasiva. as em o ç õ e s d o o u v id o r d e v o z e s e a su jeitar-se às suas próprias reac­
D esde o início do seu p ro blem a, assum iu o p a p el de doente, vendo çõ es a essa s e m o ç õ e s.
nesse p a p el o seu fu tu ro . N ã o se via a encontrar um com panheiro, a P od e ser tentador esq u iva r-se a estes d e sa fio s, m as a cim a d e tudo
ter filh o s ou a arra nja r um em prego. E sta lim itação era de tal ordem está o co m p leto reco n h ecim en to da exp eriên cia do o u vid or. Q uando
que a confrontám os com o estilo de vida que tinha adoptado e com se evita encarar a situ ação d e fren te, a em o çã o am eaçad ora p od e
aquilo que sentíam os con stituir o seu pro blem a de fu n d o : o m edo da desaparecer da c o n sc iê n c ia m as con tin u a a m an ifestar-se através de
sua sexualidade. E sta confrontação fe z desencadear um a enorm e g ri­ v o zes de gran d e carga em o cio n a l.
taria p o r pa rte das suas vozes; a m oça fic o u psicótica e refugiou-se C o n h ecem o s, por e x e m p lo , um a senh ora cu jo filh o se tinh a en for­
em casa dos pa is, on de se achava de algum m odo pro teg ida das suas cado. D ep o is d e m orrer, o filh o ch am ava por ela freq u en tem en te,
p ró p ria s em oções. E sta reacção espontânea confirm ou as nossas su s­ pedindo-lhe q u e fo s s e para ju n to d ele. N esta situ ação, se aq u ele que
p eita s da existência de um pro blem a sexual subjacente. presta ajuda n ão recon h ecer com p leta m en te o con teú d o da m en sa g em
U m a reacção v io len ta d este tipo requer um a p o io e um a orien tação daquela v o z, haverá um alto risco d e aqu ela m ãe fazer um a even tu al
esp e cia is. É claro q u e esta s co n fro n ta çõ es não d evem ser em p reen d i­ tentativa de su icíd io . C on seq u en tem en te, antes d e m eter m ãos ao
das sem um a cu id a d o sa preparação, m as é de vital im portância qu e processo de lu to, estu d ám os a natureza d essa m en sa g em .
o s prestadores de ajuda n ão sejam , co m m ed o da p sico se, co n iv en tes
co m a fu ga d os seu s p acien tes a um problem a. N a verd ad e, um a
reacção p sicó tica p o d e ser extrem am en te instrutiva tanto para o pa­ A utonom ia social
cien te co m o para q u em lhe presta ajuda.
O uvir v o z e s é um a ex p eriên cia m u ito in v a siv a e requer da parte
R eco n h ecim en to dos o u vid ores m u ita en ergia e m uita resistên cia para m anter o c o n ­
trole sobre a su a con d u ta. A p o u ca co m p reen são e falta d e tolerân cia
A s v o z e s p od em referir-se directam ente a situ a çõ es e ex p eriên cia s, da so cied a d e para co m esta ex p eriên cia to m a d ifícil a ajuda e fa v o rece
p assad as ou p resen tes, q u e p rovocam sen tim en tos de vergon h a, m ed o o isolam en to d a q u ele q u e o u v e v o z e s. A m an u ten ção e o d e se n v o lv i­
ou horror; p od em , por e x e m p lo , estar a ssociad as a abu so sex u a l v io ­ m ento do p od er p e sso a l e x ig e um a adequada au ton om ia social: por

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outras p alavras, a ob ten çã o d e um lugar na so cie d a d e que ajude a m ental q u e o ou vid or d e v o z e s esta b e leç a rela çõ es, m antenha con tacto
d e se n v o lv er a id en tid ad e e a auton om ia. O q u e p ressu p õ e, entre outras co m o s outros e se en v o lv a em a ctiv id a d es so cia is. A q u ilo d e que
c o isa s, um a vasta d isp o n ib iliza çã o de serv iço s so c ia is, co m o habita­ esta m o s a falar é da cap acid ad e d e se ser senh or d o seu próprio
çã o própria, um qualquer tipo d e ocu p a çã o e u m certo grau de in d e­ esp a ço , lo n g e da in terferên cia d os ou tros. Será tod avia prud ente, n este
p e n d ê n c ia e c o n ó m ic a . E ste s sã o a sp e c to s q u e p ro p o rcio n a m às ca so , evitar qualquer risco d e iso la m en to . Para algu n s, isso p od e sig ­
p e sso a s a oportu nidad e d e estruturar a sua vid a qu otidiana e d e se n v o l­ n ificar o treino d e ap tid ões so cia is, en q u an to outros pod erão precisar
ver rela çõ es so cia is e a fectiv a s e que co n stitu em a b a se da identidade de d esen v o lv er um in teresse por activid ad es exp ressiv a s, co m o a dança,
so cia l. T o d o s o s ou v id o res d e v o z e s q u e contaram a sua h istória no a m ú sica , o d esen h o , etc. ou d e se e n v o lv e r num trabalho d e ín d ole
C ap ítu lo 8 con segu iram alcançar e ste s o b jectiv o s; tod os e le s c o n se ­ literária ou cien tífica .
guiram obter a ajuda e o a p o io d o s a m ig o s, d o s fam iliares e dos D ada a m aneira co m o a n o ssa so cie d a d e está organ izad a, o sen tid o
p restad ores d e ajuda, e to d o s e le s acabaram tam b ém por assu m ir a de auton om ia está m u ito d ep en d en te d e se ter um tip o d e em p rego
resp on sab ilid ad e por si próprios. qualquer; isso fa z co m q u e seja esp ecia lm en te im portante qu e o ou vid or
N o p ro cesso d o d e se n v o lv im en to da id en tid ad e so cia l p od em sur­ de v o z e s c o n sig a m anter o seu em p reg o o u arranjar um a outra ocu p a­
gir p rob lem as in esp erad os, co m o n o ca so d e um a ou vid ora de v o z e s ção adequada (v er algu n s b on s e x e m p lo s n o C apítu lo 8). O s d ad os de
q u e c o n h eci. Q uando v e io p ela prim eira v e z à m inh a con su lta, v iv ia que se d isp õ e apon tam para qu e o trabalho, ou a ctivid ad e eq u iv alen te,
em casa própria na com p an h ia de d o is en orm es c ã es, rodeada por um a pod e proporcionar a o ca siã o para o d e se n v o lv im en to da resp on sab i­
v izin h a n ça cujas norm as e v a lo res so cia is lh e eram estran hos. E x p li­ lidade ind ivid u al, d e acord o co m o tem p eram en to d e cad a um . O u vir
q u ei à fa m ília o prob lem a d ela e , co m o a p o io d os fam iliares, a v o zes p od e ser d eb ilitan te, ao p on to d e roubar ao o u vid or as en ergias
sen h ora m u d ou -se para um a zo n a m ais de acord o c o m a sua idade, de q u e n e cessita para ap roveitar e ssa s o c a siõ e s. C o m o v im o s no
form ação e cultura. E sta m udança rev elo u -se extrem am en te b en éfica C apítulo 8, se lh es d erem as co n d iç õ e s n ecessá ria s, m u itos o u vid ores
para estim u lar o seu d e se n v o lv im en to e iden tidade. de v o z e s m ostram von tad e e cap acid ad e para se adaptar às c o n d içõ es
U m outro o b stácu lo à ob ten çã o da auton om ia so cia l p od e observar- de trabalho, quando estas sã o fle x ív e is e d ão m argem d e m anobra à
-se nas p e sso a s que v iv e m d em asiad o tem p o em ca sa d os pais. Isto sua criativid ad e.
é tão verd ad e para o s ou v id o res de v o z e s co m o para qualquer outra
p essoa; quando a d ep en d ên cia de alg u ém em rela çã o a outrem se tom a
d em asiad a, é d ifícil aprender a tom ar d e c isõ e s so zin h o , a assu m ir R elações de confiança
rela çõ es p e sso a is e a con q u istar um a id en tid ad e própria. A s v e z e s
o u v im o s o s pais dizer que a falta d e sen tid o d e resp on sab ilid ad e d os Q u ase tod os o s ou v id o res d e v o z e s q u e aprenderam a v iv er com
seu s filh o s o u vid ores de v o z e s se d e v e ao fa cto d e e le s serem in ca­ a sua ex p eriên cia co n fessa m quanto fo i im portante para e le s ter um
p a zes d e ser in d ep en d en tes, m as a n o ssa ex p eriên cia ind ica qu e eles am igo, um com p an h eiro ou um fam iliar q u e o s o u v isse , o s a ceita sse
são, m uito freq uentem en te, cap azes de levar um a vid a bastante nor­ e o s fiz e sse sen tir em seguran ça. O q u e im porta aqui n ão é a quan­
m al e in d ep en d en te, m esm o durante os ch am ad os e p isó d io s p sicó tico s. tidade d essa s rela çõ es m as a sua qualidade: um a apen as p o d e bastar
A privacidad e que proporciona o facto d e se ter casa própria pod e para proporcionar um verd ad eiro sen tid o d e segu ran ça n os p eríod os
con stitu ir, a lém d isso , um im portante a sp ecto para o d e se n v o lv im en to em que as v o z e s são particularm ente o p ressiv as.
d e um sen tid o de au ton om ia so cia l, se bem q u e haja que distinguir E ncontrar o ap oio adeq uad o n os p eríod o s d ifíc e is é q u ase um a arte.
privacidad e de isolam en to. C o m o a co n tece c o m tod os n ó s, é fu nd a­ M esm o o s ou v id o res d e v o z e s qu e fa zem q u estão d e evitar qualquer

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tip o d e tratam ento p siq u iátrico referem que há o ca siõ e s em q u e as - D ep o is d e q u alq u er fa se op ressiv a, analisar em con ju n to aq u ilo
v o z e s o s oprim em d em asia d o , o q u e o s leva a aceitar, en tão, o risco que o ou vid or d e v o z e s v iv en cio u c o m o rea cções agrad áveis ou
d e internam ento hospitalar e fazer um tratam ento p rolon gad o. T o d o s desagrad áveis d o m eio so cio fa m ilia r e a fectiv o , por form a a qu e
o s qu e d escreveram as suas ex p eriên cia s n o C apítu lo 8 se resguarda­ to d o s p o ssa m aprender co m a ex p eriên cia v iv id a (ver S e c ç ã o
ram d e recorrer aos p réstim os das autoridades m éd icas. E m L on dres, Interacções fa m ilia res e psicose n o C apítu lo 9);
por e x e m p lo , a o rg a n iza çã o L am b eth L ink p õ e à d isp o siçã o d o s - R egistar o s e fe ito s b e n é fic o s d e determ inadas rea cções d o m eio
o u vid ores d e v o z e s um apartam ento alu gad o, o n d e p o d em passar um a na m elh oria d o co n tro le sob re o com p ortam en to, tom an d o assim
n o ite ou algu n s dias e b e n eficia r d o ap oio de outros m em b ros que m ais fácil o m an ejo e fic a z d e qualquer ep isó d io su b seq u en te (ver
tam bém são o u vid ores de v o z e s. S ecção Interacções fa m ilia res e p sico se no C apítu lo 9 ).
P orém , n em toda a gen te tem a sorte de ter um a rede d essa s à sua
d isp o siçã o; seja co m o for, ta lv e z im porte ainda encontrar form as de D e v e escla recer-se q u e tod as as m ed id as d e reab ilitação aqui d is­
se sentir segu ro no seu próprio am b ien te. Por isso , qualquer e sfo rço cutidas se b aseiam n o s p rin cíp io s da igu ald ad e e da p articip ação das
d e reab ilitação d e v e incluir um a adequada inform ação ao s fam iliares, próprias ex p eriên cia s d o ou v id o r d e v o z e s no p rocesso d e ajuda. D este
com p an h eiros, a m ig o s e co n h ecid o s d os o u vid ores de v o z e s e, ainda, m odo, tod o o a p o io q u e se puder o ferecer terá d e ser co n c eb id o por
a qualquer p esso a qu e co m e le s ten ha um con tacto sig n ifica tiv o . E ssa form a a evitar fa v o recer a d ep en d ên cia e a fom en tar a p o ssib ilid a d e
partilha de inform ação d e v e in clu ir o s seg u in tes pontos: de um crescim en to d o au tod om ín io e da autod eterm inação.
O u vir v o z e s rep resen ta um en orm e d esafio: um d e sa fio q u e tanto
- D eb ater o m ed o e o p reco n ce ito que p ossam ex istir no se io da pode ser en carado co m o u m a am eaça q u e to m a a p e sso a in cap az,
fa m ília ou n o círcu lo d e a m ig o s a resp eito das v o zes; com o p od e con stitu ir u m a e sc o la q u e prepara a p e sso a para enfrentar
- O bter da fa m ília um reg isto da duração d os p eríod os em q u e as os d e sa fio s da vid a. C on tu d o, o d e se n v o lv im en to d o p od er p e sso a l só
v o z e s são m ais o p ressiv a s, de m aneira a qu e ela com p rov e que poderá ter lugar se o m eio so cio fa m ilia r e a fectiv o p rop orcionar o
o s ch am ad os e p isó d io s p sic ó tic o s não têm , efec tiv a m e n te , a adequado estím u lo e as reais op ortu n id ad es n o seio da so cie d a d e em
duração que se pensa. U m a v e z q u e as e m o ç õ e s m uito extrem as geral. O o b jectivo fin al é o d e se n v o lv im en to integral da id en tid ad e d e
p o d em fazer lem brar ep isó d io s p sic ó tic o s, é fundam ental estar um a p e sso a a q u em a co n te ce ou vir v o zes.
cien te da natureza tem porária d essa s fases;
- D iscu tir o s o b jectiv o s d e qualquer p o ssív e l tratam ento, por form a
a assegurar a co o p eração d e to d o s (ver S e cçã o T écnicas de co n ­ Medicação e escuta de vozes
trole da ansiedade, n o p resen te C apítulo); Adríaan Honig
- R eco n h ecer q u e a realid ad e qu otidiana não é a ún ica c o isa que
im porta e que o ou v id o r d e v o z e s n ecessita (m uitas v e z e s no Introdução
sen tid o literal) de tem p o e de esp a ço para se ocupar delas;
- Incutir co n fia n ça ao o u v id o r d e v o z e s e , sim u ltan eam en te, pro­ A ch ám o s por b em in clu ir esta S e cçã o , por ser m u ito freq u en te
curar so lu ç õ e s adaptadas à sua exp eriên cia. Isso ajudará a evitar receitar-se m ed ica m en to s q u an d o o s ou v id o res d e v o z e s recorrem à
co n flito s e p od e, a lém d isso , ter um e fe ito b e n éfico sobre a Psiquiatria. A freq u ên cia d esta resp osta d o s psiquiatras é a co n seq u ê n ­
duração d os p eríod os d e su jeiçã o ao d om ín io das v o z e s (ver cia natural da interpretação q u e a m aioria d e les fa z d o fen ó m en o da
S e cçã o Interacções fa m ilia res e psicose n o C apítu lo 9); escu ta d e v o z e s. Para e le s, o u vir v o z e s p o d e ser um sin al ou um

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sin tom a d e várias d o en ça s psiqu iátricas, cada um a das q u ais integra sintom as: um a perturbação d o p en sam en to ord en ad o (d esag rega çã o
outros sin ais ou sin to m a s m ais ou m en os e sp e c ífic o s. S e algu ém vai do p en sam en to); um a perturbação da p ercep çã o (escu ta d e v o z e s); e
ao psiquiatra, e ste irá indagar da presen ça d e sses sin a is, acabando por um a perturbação da v o liç ã o (in cap acid ad e d e ex ercer a von tad e pró­
id en tificar a d o en ça m ais p rovável n o ca so . E, c o m b a se n e sse d iag­ pria). Q u and o um a p e sso a está p sicó tica , as v o z e s ab sorvem -n a d e tal
n ó stico , acon selh ará d e seg u id a a m ed ica çã o q u e ach a m ais indicada. m aneira q u e d om in am toda a sua vid a e tu do o m ais decorre em
E sta S e cçã o procura situar o leitor na p o siçã o do psiquiatra, para o fu nção delas: só a realid ad e das v o z e s e x iste . O m u n d o exterior, qu e
ajudar a p erceb er por q u e razão, quando algu ém d iz q u e o u v e v o z e s, para o s outros é o ú n ico m undo real, en con tra-se ob scu recid o. O m un do
o psiquiatra fa z determ inadas perguntas e receita d eterm in ad os m ed i­ do p sicó tico m ud ou rad icalm en te e, em co n seq u ê n cia , o com p orta­
cam en tos. O n o sso o b jectiv o é tornar m ais co m p r een sív el e m ais m ento m ud ou tam bém . É um m u n d o em q u e as v o z e s tom aram o
p rev isív el o com p ortam en to d o psiquiatra e, porventura, dar um co n ­ poder.
tributo para o d e se n v o lv im en to d e um a relação m a is co n fia n te e de N ã o há an á lise ao san gu e n em raios X esp e c ia is q u e ajudem a fazer
um tratam ento m elhor. o d ia g n ó stico d e p sico se; o m éd ico d ep en d e q u ase por co m p leto da
D o p on to d e v ista p siq u iátrico, há d o is tipos de prob lem as que se inform ação dada p e lo p acien te e seu s fa m ilia res e a m ig o s. A s p ergu n ­
p od em resp on sab iliza r p ela escu ta d e v ozes: a p s ic o s e ou a neurose. tas q u e é co stu m e fazer qu and o se su sp eita d e p sic o se são, n om ead a­
N a p sic o se , a escu ta d e v o z e s acom p an h a-se, m u itas v e z e s, de m ente:
p en sam en to c o n fu so e m ed o - m ed o q u e p od e ser d e tal m o d o op res­
siv o qu e o p a cien te fic a co m p leta m en te petrificad o ou inten sam ente - A lg u m a v e z se sen tiu d om in ad o por certas forças exteriores, que
inq uieto. A s v o z e s p o d em ser tão p od erosas que as su as ordens, por o levaram a pensar ou a fazer co isa s contra su a von tad e?
m ais bizarras e p reju d iciais q u e sejam , têm de ser o b ed ecid a s, tal é - A lgu m a v e z sen tiu q u e a rádio ou a te le v isã o transm itiam m en ­
o d om ín io q u e ex erc em sobre o ouvidor. sa g en s e sp e cia is dirigid as a si, ou qu e um d eterm in ad o program a
N a n eu rose, e m geral, a p e sso a con tin u a em c o n d iç õ e s d e m anter d e rádio ou d e telev isã o era feito d e p rop ó sito para si?
as v o z e s sob co n tro le, ainda que por v e z e s à cu sta d e um esfo rço - A lg u m a v e z sentiu qu e alg u ém lh e lia o u roub ava o s p en sa m en ­
con sid erá vel. O p a cien te não se sen te esp e cia lm en te c o n fu so n em tos?
com p letam en te à m ercê das v o z e s, e a exp eriên cia, por v ia de regra,
não o im p ed e d e p rosseg u ir as a ctivid ad es qu otid ian as norm ais. A té agora n ão ex iste co n sen so sobre um a cau sa e sp e cífica da p sico se
P assarem os a analisar o s vários tipos d e m ed ica çã o u tilizad a quer m as, seja co m o for, n o en ten d er d os psiq u iatras, p arece q u e terá de
na p sic o se quer na n eu rose, b em co m o o s seu s e fe ito s secu n d ários, e existir, à partida, um a vu ln erab ilid ad e qualquer.
dar algu m as su g e stõ e s d e estratégias que se p od em seg u ir quando essa A p sic o se p o d e tam bém estar relacion ad a ou d esen ca d ea r-se co m
m ed icação é prescrita. co isa s co m o a p red isp o sição g en ética (a esq u izo fren ia ? ) e outros fac-
tores de vu ln erab ilid ad e (ver F ig. 1).
U m a ex p lica çã o corrente d o q u e se p assa na p sic o se é a ch am ad a
A escuta de vozes e a psico se T eoria d o F iltro. E m co n d iç õ e s n orm ais, to d o s tem o s um a certa n oção
de tudo o que se p a ssa dentro d e n ós e à n o ssa v o lta , m as só tem os
S e b em q u e a p sic o se p o ssa por v e z e s persistir por um largo p e­ um a verdadeira p ercep ção das im p ressõ es e im p u lso s q u e con sid era ­
ríod o, m uitas v e z e s é um estad o tem porário ou m esm o transitório. m os im portantes ou n ecessário s; in co n scien tem en te, filtram os o b o m ­
O estad o de p sic o se p od e caracterizar-se por qualquer d e três tipos de bardeam ento diário por toda a in form ação em o cio n a lm en te carregada

342 343
T raços P rob lem as É p o ssív e l q u e um a p e sso a vu ln erá vel, q u e entra em p sic o se por
de e traum as acção de um d eterm inado factor p recipitante, seja portadora d e um a
person alid ad e im portantes d isfu n ção cerebral. O céreb ro é um con ju n to organ izad o e m u ito

i i
co m p lex o de célu la s e circu ito s n ervosos; entre o s circu itos n e rv o so s
d á-se um a con stan te troca d e su b stân cias q u ím icas ch am ad as neuro-
tran sm issores, e o eq u ilíb rio n orm al entre e s s e s n eu rotran sm issores
E x p eriên cias Isolam en to estaria alterado na p sic o se . D aq u i resultaria o ap arecim en to d e a lu ci­
d e in fân cia so cia l n ações, alterações do p en sa m en to e m ed o. A lg u n s fárm acos sã o ca ­
pazes de restaurar o eq u ilíb rio entre o s n eu rotran sm issores, esb aten d o
assim os sin tom as p sic ó tic o s, c o m o é o ca so da escu ta d e v o zes; e sse s
t t fárm acos ch am am -se n eu ro lép tico s ou tranquilizantes m ajor.
C on stela çã o D o en ça
g en é tic a físic a
M edicação na p sicose
Fig. 1 - Psicose: Factores de vulnerabilidade E xistem m ais d e 3 0 n eu ro lép tico s d iferen tes. O prim eiro d e le s, a
clorprom azina (L arga ctil® ), fo i d escob erto há m ais d e 4 0 anos e ainda
q u e n o s é dirigida. E sta cap acid ad e d e filtrar in form ação encontrar- hoje é largam ente utilizad o. O s n eu rolép ticos n ão p rovocam habituação
-se -ia en fraqu ecida durante a p sic o se . P or isso , não será de estranhar nem d ep en d ên cia. M uitas v e z e s , a sua acçã o d eterm ina o d esap areci­
q u e esta perturbação se fa ça tantas v e z e s acom pan har de m ed o. m ento co m p leto d os sin tom as p sic ó tic o s, ainda q u e, por v e z e s , só ao
U m a co n seq u ên cia da avaria d este filtro seria o in d ivíd u o deixar- fim de algu n s dias ou m esm o sem an as. E m algu n s c a so s, o ú n ico
-se invadir por um a en orm e quantidade d e im p u lso s qu e lhe tom am efeito do n eu rolép tico é p rovocar um m aior d istan ciam en to (e m o c io ­
m u ito d ifícil pensar co m clareza. N esta s circu n stân cias, a p e sso a é, nal) em relação ao s sin tom as p sic ó tic o s, fa zen d o co m q u e as alu cin a ­
m u itas v e z e s, apontada por dizer p a rv o íces contar histórias sem p és çõ es e o s d elírios se d esv a n eça m , em b ora se m antenham p resen tes em
n em cab eça, ter um discu rso sem n e x o , e assim por diante. O utro dos fundo.
sin a is d e perturbação d os p ro cesso s d e p en sa m en to é a p esso a poder O s n eu rolép ticos p rovocam um a “reparação” parcial ou m esm o
ser incapaz d e form ular ou exp rim ir p en sa m en to s - ta lvez durante total do filtro avariado. O s estím u lo s vo lta m a ser filtrad os, m as,
horas ou m esm o dias a fio . A lém d isso , o p acien te p od e d esen v o lv er agora, co m a d iferen ça d e ch eg arem , total o u p arcialm en te, d esp ro v i­
id eias fix as, que não são partilhadas por m ais n in gu ém , e persistir dos da carga em o cio n a l própria (ver F ig. 2 ). O s n eu ro lép tico s têm ,
n ela s apesar de toda a ev id ên cia em contrário - o s ch am ad os d elírios. além d isso , um a acção p o sitiv a sob re as id eias fix a s e as c o n v ic ç õ e s
P o d e haver ainda alterações da p ercep çã o (ou vir, ver, cheirar e sentir), erróneas (d elírio s), b em c o m o sob re as ex p eriên cia s d e se estar a ser
co m o , por ex em p lo , a escu ta de v o z e s. E m P siquiatria, estes fen ó m en o s esp iad o, roubado d o s p en sa m en to s ou su jeito à d ifu são d os p en sa m en ­
d e fin em -se c o m o p ercep çõ es q u e surgem na a u sên cia de um estím u lo tos através da rádio e da tele v isã o . O e feito am orteced or sob re as
extern o; para q u e esta d esig n a çã o se p o ssa aplicar, as v o z e s terão de e m o çõ es fa z co m q u e o s n eu ro lép tico s p rovoq u em um sen tim en to de
ser p erceb id as co m o eg o -d istó n ica s (isto é, n ão serem geradas dentro d istan ciação e x c e ssiv a em rela çã o ao m u n d o exterior, d e in sen sib ili­
d o ou vid or), terão de ser claras e lo c a liza r-se n o m un do exterior. dade, de in cap acid ad e d e in icia tiv a ou até d e co m p leta apatia. N o

344 345
en tan to, sen tim en tos d e ste tip o p od em ser tam bém , por outro lad o, um a d oen ça. T a m b ém é co n v en ien te debater co m o m é d ic o assisten te
sin a l d a d o e n ç a p ara a q u al o n e u r o lé p tic o fo i r e c e ita d o . N a os tipos de m ed ica çã o q u e anteriorm ente m ostraram m a is u tilidade.
esq u izofren ia, por e x e m p lo , a apatia e a falta de in iciativa con stitu em N em sem pre é n ecessário tom ar n eu rolép ticos co n tin u am en te durante
sin ais (n eg a tiv o s) n u cleares. lon gos p eríod o s, m u ito em b ora, n o ca so da esq u izo fren ia , p o ssa ser
útil fazer u m a d o se d e m an u ten ção. E m geral, a p rescrição d e um a
m ed icação a um p acien te in d ivid u al con tin u a a ser um trabalho por
m edida.
A lgu n s d o s n eu ro lép tico s q u e é m ais co stu m e receitar são:

N om e co m ercial N om e quím ico O b serv açõ es

L arg actil C lo rp ro m azin a C o m p rim id os e injecções


H aldol, S erenelfi H alop erid ol C om p rim id os, gotas,
in jecções
H aldol D ecan oato D ecan oato de H aloperidol Injecções retard
N o rm a l N e u ro se P sic o se O rap F orte P im o zid a C om p rim id os
C en ilen e F lu fenazin a D rageias
-*• E stím u lo sem c a rg a e m o c io n a l. A natensol D ecan oato D ecan oato de F lu fenazin a Injecções retard
-**■ E stím u lo co m c a rg a e m o c io n a l. (não com ercializado P en iflurid ol C om prim idos de longa acção
em P ortugal)
F ig . 2 D rageias
F luanxol F lu pentix ol
F luanxol R etard D eacanoato de F lupentixoi Injecções retard
E stes efe ito s fa z e m co m q u e, por v e z e s, as p esso a s d e ix e m de
tom ar a m ed ica çã o , m as n em tod os o s n eu rolép ticos têm o s m esm o s
e fe ito s, quer o s p o sitiv o s quer o s ad versos. E stes ú ltim os sã o variá­ M anejo dos efeitos secundários
v e is, são qu ase sem p re rev ersív eis e variam de um a p esso a para outra.
M as, se algu m d estes e fe ito s desagrad áveis surgir, é im portante tentar E feitos secu n d ários são efe ito s n ão p rocurad os, q u an d o se p res­
encontrar um n eu ro lép tico e sp e c ífic o num a d o se esp e c ífic a q u e red uza creve determ in ad o m ed icam en to, e qu e se m ostram in d esejá v eis por
tanto quanto p o ssív e l e s s e s efe ito s sem prejudicar a acção an tip sicótica. tra zer em m a io r o u m e n o r d e s c o n fo r to ao p a c ie n t e . C o m o s
S em p re q u e um a p s ic o s e rem ite (ou se interrom pe) p o d e haver o n eu rolép ticos, e s s e s efe ito s d im in u em geralm en te ap ós um a ou duas
risco d e reap arecim ento d o s sin tom as e, por isso , é im portante d etec- sem anas de tratam ento. O s efe ito s secu n d ários m a is freq u en tes d os
tar os sin ais p r eco ces da aproxim ação de um n o v o ep isó d io - sin ais neurolépticos são: trem or grosseiro , rig id ez d o s m em b ros, in són ia,
e sse s qu e p od em in clu ir a lterações d o so n o , aum ento da irritabilidade, incapacidade d e estar q u ieto , m o v im en to s anorm ais d o corp o e ver­
d ificu ld ad e de con cen tração , ten d ên cia para o isolam en to so c ia l, e s ­ tigens. E ainda, em b ora m ais raram ente, v isã o turva, b o ca seca , au­
cuta d e v o z e s m a is in ten sa e im in en te perda de con trole. Q u and o estes m ento do ap etite e perturbações sex u a is.
sin ais aparecem , é co n v en ien te recom eçar a tom ar o n eu ro lép tico e Q uando su rgem efe ito s secu n d ários, p od e seg u ir-se um a das se ­
iden tificar o s precipitantes q u e p o ssa m even tu alm en te estar a reacender guintes estratégias:

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-E s p e r a r e ver: o s e fe ito s secu n d ários, m u itas v e z e s, dim inu em da realidade. O teste da realid ad e sig n ific a q u e se é cap az d e recon h e­
d e p o is da prim eira sem ana de tratam ento; cer que aqu ilo qu e se o u v e ou se p en sa n a sce d e dentro e só o próprio
- D im in u ir a d o se do n eu rolép tico ou m udar para outro; o o u v e ou o pensa. P or outras p alavras, a p e sso a in terroga-se a si
- A d icio n a r um com p rim id o e s p e c ífic o para o s efe ito s secu n d á­ m esm a, e não ao m u n d o exterior, a resp eito da natureza d aq u ilo que
rios: prociclidina (não com ercializad a em P ortugal) ou orfenadrina percebe. A lém d isso , a p esso a p o d e n ão se sentir co m p letam en te
(N o r fle x ® ). E m P o rtu g a l e stã o c o m e r c ia liz a d o s ta m b ém o subjugada por estas p ercep ções n ovas. C om o atrás d issem o s (ver S ecçã o
b ip eriden o (A k in eto n ® ) e o trih exifen id il (A rtan e® ). A personalidade dissociada, C ap ítu lo 9 ), o s factores cau sais das n eu ­
roses p od em resid ir m ais em co n flito s e m o cio n a is do q u e, propria­
E stes ú ltim os fárm acos dim in u em algu n s d o s e fe ito s secu nd ários m ente, num a d isfu n ção cerebral.
d os n eu ro lép tico s, co m o a rig id ez dos m em b ros e a incap acid ade de A lgu m a s a fe c ç õ e s p siq u iátricas ch am ad as P erturbações dissociati-
estar q u ieto; m as p o d em agravar outro tipo de e fe ito s secu nd ários, vas tam bém in clu em a lu cin a çõ es. D isso c ia ç ã o sig n ifica , à letra, “ se ­
co m o a v isã o turva ou a secura da b oca. O utra d esv a n tag em é qu e, de paração”, “d iv isã o ”; n esta situ ação, o in co n scien te afasta ou recalca
algu m m o d o , d im in u em a acçã o a n tip sicó tica d o n eu rolép tico. Por algum a c o isa (m u itas v e z e s um traum a p sic o ló g ic o grave), d e m aneira
isso , é co n v en ien te tom ar o m ín im o d e co m p rim id o s p o ssív e l para os que o sen tim en to ou a record ação a sso cia d o s n ão sã o p erceb id o s p elo
efe ito s secu n d ários d o s n eu rolép ticos. Eu. E ste recalcam en to é um m eca n ism o d e d e fesa natural, m as, a certa
T o m a d os por p eríod os d e 6 m eses ou m a is, o s n eu rolép ticos p o ­ altura, se c o m eça a ter vid a própria, acab a por ser m ais p reju d icial do
d em p ro v o ca r um e fe ito a d v erso a q u e o s p siq u iatras ch am a m que protector.
“d iscin ésia tardia” . E sta situação co n siste e m m o v im en to s in volu n tá­ A s perturbações d isso cia tiv a s in icia m -se m uitas v e z e s em factos
rios, esp e cia lm en te da lín gu a e d os m ú scu lo s da fa ce, p od en d o atingir am eaçadores graves d o p assad o, c o m o um acid en te d e a u tom óvel,
tam bém outras partes do corp o. O risco d e d isc in é sia tardia aum enta um a v io la çã o , etc. (ver S e cçã o A p erso n a lid a d e dissociada, C apítu lo
quando a tom a p rolon gad a d e m ed ica çã o n eu rolép tica se a sso cia a 9), em que a p esso a se d efen d e d e um a situ a çã o tão in tolerável co m o
m ed ica m en to s co m o a p rociclid in a e a orfenadrina. In felizm en te, não im p ossível de contornar d estacan d o parte d o seu próprio E u. A parte
e x iste n en h um tratam ento e fic a z para estes e fe ito s secu n d ários tardios do Eu (Ego) qu e se d estaca p o d e ser um a parte qu e n ão esteja sob
d os n eu rolép ticos. am eaça nem a ser atacada d e m om en to; p assad o o a con tecim en to
traum ático, a parte d estacad a p o d e reu n ir-se d e n o v o ao E go ou p ros­
seguir um a vid a própria (ver F ig. 3 ). S e e ssa separação con tin u a (Ideia
A escuta de vozes e a neurose fixa), a parte destacad a p o d e ser id en tificad a p elas outras partes do
Ego co m o um a v o z , qu e p od e reaparecer p osteriorm en te em o ca siõ es
C o m o já referim os, o s ou v id o res de v o z e s qu e p erten cem ao grupo de stress ou em qualquer n o v a co n fron tação c o m o traum a am eaçador
das n eu roses são geralm en te cap azes d e m anter d istân cia em relação original. E stas situ a çõ es p od em fa zer-se acom pan har das m esm as em o ­
às su as v o z e s e são, por v e z e s, até, ca p a zes de m anter as suas acti- çõ es qu e foram exp erim en tad as durante o traum a in icial.-
vid a d es q u otid ian as, co m m aior ou m en or su ce sso . Q uando se su sp eita d e um estad o d isso cia tiv o , p o d e fa zer-se as
P or n eu rose en ten d em o s um estado em q u e há sin ais de d o en ça segu in tes perguntas:
p siq u iátrica m as sem perturbação d os p r o c esso s d e p en sam en to n em - A lgu m a v e z tev e a ex p eriên cia d e n ão ser cap az d e se lem brar
do co n tacto co m a realidade, m an ten d o-se portanto em vig o r o teste d o que fe z durante horas ou dias?

348 349
- A lg u m a v e z deu c o n sig o num lugar sem fazer a m ín im a id eia de neurolépticos. N e ste s c a so s, p orém , n ão é por cau sa d os seu s e fe ito s
c o m o lá ch eg o u ou d o qu e lá esta v a a fazer? an tip sicóticos m as p e lo s seu s efe ito s sed a tiv o s. A prin cipal v a n tagem
-i A lg u m a v e z sentiu q u e esta v a a ob servar-se a si m esm o fora do 6 que o seu u so , m esm o p rolon gad o, n ão p rovoca hab itu ação.
seu corp o, co m o se e s tiv e s se a ob servar-se de lo n g e ou a assistir O s m ed ica m en to s receita d o s na n eu rose p od em incluir:
a um film e sobre a sua p esso a ?
N om e com ercial N om e quím ico T ip o de acção

S erenai O xazepam S ed ativ o


L orenin, L orsedal L orazepam S ed ativ o
(não com ercializado em P ortu gal) O pipram ol A n tid ep re sso r
M elleril T io rid azin a N eu ro lé p tico
N eu leptil P ericiaz in a N eu ro lé p tico
(não com ercializado em P ortu gal) P ro m azin a N eu ro lé p tico

O s efe ito s secu n d ários h ab ituais d os sed a tiv o s in clu em so n o lên cia ,
reacções lentas, em b otam en to d o a fecto e, o ca sio n alm en te, d e sin ib iç ã o
paradoxal. T al co m o na p sic o se , o m ed ica m en to d e e sc o lh a d ep en d e
m uito da situ ação d o in d iv íd u o e requer um a cu id ad osa n e g o cia çã o
entre o m éd ico e o p acien te.

C onclusão
M edicação e neurose
A escu ta d e v o z e s tanto p o d e acon tecer na p sic o se c o m o na n eu ­
A o contrário da p sic o se , a n eu ro se requer apenas um a m ed ica çã o rose e, por isso , é im p ortan te q u e o psiquiatra a v alie qual das situ a çõ es
d e a p o io , para reduzir o s sen tim en to s d e m ed o e algu m as sen sa çõ es está em jo g o , antes d e form u lar qualq uer acon selh a m en to sob re a
física s q u e o costu m am acom pan har (falta de ar, p alp ita çõ es, etc.). O s m ed icação a tom ar. O s n eu ro lép tico s são p referíveis n os c a so s em qu e
m ed icam en tos m ais u tiliza d o s n estas circu n stân cias sã o o s sed a tiv o s, a escu ta d e v o z e s se fa z acom pan har doutros sin tom as p siq u iátrico s,
qu e em geral só são receita d o s por curtos p eríod os (n o m áxim o 14 co m o perturbações d o p en sam en to e alterações d o com p ortam en to d e
dias seg u id o s), d ev id o à p o ssib ilid a d e d e habituação. S ã o p referíveis certa gravid ad e. P or outro lad o, na n eu rose - isto é, na a u sên cia de
o s sed a tiv o s d e curta duração d e a cçã o , porque o s fárm acos sed a tiv o s perturbações ev id en tes d o p en sa m en to e d e alterações d o teste da
d e a cçã o lon g a ten d em a acu m u lar-se no organ ism o e a acentuar realidade - é p referív el u tilizar o s sed a tiv o s co m o co m p lem en to das
p rogressivam en te o s e fe ito s sed a tiv o s. restantes m ed id as terap êu ticas.
A lém dos vários tipos de b en zod iazep in as (por ex em p lo , V a liu m ® ), E sta d iv isã o da escu ta d e v o z e s em duas categorias, p s ic o s e e
r e c e ita -s e , p o r v e z e s , o u tr o tip o d e m e d ic a m e n to s , c o m o o s neurose, é um b o ca d o sim p lista; co m o a co n tece co m a m aioria d os

350 351
sistem a s d e c la ssific a ç ã o , na prática há um a grande interpenetração
entre as duas ca teg o ria s.
Im porta ter em aten ção que m uitas v e z e s a m ed ica çã o , só por si,
n ão é su ficien te para aliviar o s sin tom as e perm itir a retom a de um a
vid a norm al: em regra, a m ed ica çã o não p assa d e um a ajuda ao
resta b elecim en to. E m co o p eração co m o m éd ico prescritor, o pacien te
qu e o u v e v o z e s p o d e ser cap az de descob rir o tipo de m ed ica çã o m ais
útil para aliviar o s seu s sin tom as e facilitar o ê x ito doutros tipos de
tratam ento.

11
COMPREENDER AS VOZES
M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r
“ S e rá q u e s e m p re h o u v e e s e m p re h á -d e h a v e r
u m a te n sã o n a tu ra l e n tre v e r e o u v ir, e n q u a n to v ias do
sa b e r? O u e la é m ais um re fle x o d a te n sã o q u e ex iste
e n tre o m o d o c ie n tífic o d e o b te r in fo rm a ç ã o e o m o d o
h u m a n ístic o d e c o n h e c e r o s s o fre d o re s ? ”
(S ta n le y W . Ja c k s o n , 1992,
American Journal of Psychiatry)

Para que é precisa uma linguagem?


A P siquiatria criou um a lin gu agem sim p les q u e perm ite ao p siq u ia ­
tra fazer o d ia g n ó stico d e um a p e sso a co m b ase em con ju n tos de
sin tom as, ou sín d rom es, q u e p o d em in clu ir a escu ta d e v o z e s. E ssa
lin guagem é su ficien te para fin s d ia g n ó stico s, m as reflecte um in te­
resse m u ito lim itad o p elas ex p eriên cia s d e escu ta d e v o z e s propria­
m ente ditas. Q uando se quer falar d essa s ex p eriên cia s, há m u itos
a sp ectos q u e in teressam , por ex em p lo se se quer com p reen d er, em
terapia, o q u e se p assa na ex p eriên cia d e o u vir v o z e s ou d e aprender
a lidar co m ela s. A P siq uiatria trad icional n ão está interessad a, d esig -

352 353
n ad am en te, n o con teú d o daquilo q u e as v o z e s d izem à p e sso a que as com os m uitos e variados sistem as de referência que os ou vidores de
ou v e. Para fin s d iagn ósticos, o con teú d o tem p ou co interesse, na m edida vozes utilizam p a ra explicar a sua experiência (ver C ap ítu lo 7 ). C o m o
em qu e essa s diferen ças d e con teú d o não con stitu em um critério de psiquiatra, só estaria in teressad o na q u estão d o teste da realid ad e, e
d ia g n ó stico . E , no en tanto, aq u ilo q u e as v o z e s d izem ao pacien te perguntaria sim p lesm en te: “V o c ê acredita m esm o qu e D eu s p o d e falar
e n v o lv e -o m uito inten sam ente e fá -lo sen tir-se im p ression ad o, já que co n sig o ? ”. E , n e sse ca so , a co n v ersa pod eria ficar su b itam en te inter­
é a lg o qu e tem a ver co m a sua p e sso a , o s seu s v a lores, sen tim en tos rom pida ou acabar num a d isp u ta sem saída.
e p assad o b io g rá fico , e se reflecte nas suas em o ç õ e s e no seu co m ­ C o m a ab ord agem aberta q u e en sa iá m o s, ap ren d em os c o m o s
portam ento. ou vid ores d e v o z e s por qu e é q u e p en sam qu e D eu s fala co m e le s, por
Para criarm os um a lin gu agem q u e n o s perm ita falar da exp eriên cia causa de qu ê e d e qu e m an eira fala. A ssim , ficá m o s a saber q u e a
d e ou vir v o z e s, d e se n v o lv em o s um a en trevista plan ificad a. Para e sse
interpretação é p o ssív e l m as n ão é o asp ecto essen c ia l. S a b em o s agora
efe ito , partim os da inform ação forn ecid a p elo s próprios ou vid ores de
que o essen cia l é o co n teú d o , as características e, em m u itos ca so s
v o z e s, na seq u ên cia d o program a te le v isiv o de que fa lám o s na S ecçã o
tam bém , a iden tid ad e v iv en cia d a das v o zes.
Os p rim ó rd io s , do C apítu lo 2. E sse p a sso rev elo u -se verdadeiram ente
d e c isiv o , in flu en cian d o, n om ead am en te, a n o ssa m aneira d e fazer N ós não pa ssá m o s a a cred ita r que D eus p o ssa fa la r connosco no
pergun tas. S e tiv é sse m o s partido d o s n o sso s próprios sistem a s de m esm o sentido em que nós fa la m o s uns com os outros. M as ficá m o s,
cren ças p sico ló g ica s e psiqu iátricas, as perguntas q u e faríam os seriam sem dúvida, a sab er que cap ta r a fa la de D eus p o d e estar, de m uitas
m uito diferentes das que agora fa zem o s na n o ssa E ntrevista Estruturada. m aneiras, em relação com a história biográfica de quem a escuta.
P or ex em p lo , d ep o is do program a te le v isiv o , ao telefo n e, cada qual P ode representar, por e x e m p lo , a afirm ação d e d eterm in ad os id ea is,
d isse de sua ju stiça a resp eito das v o z e s q u e o u v ia , dando relevo com o na relig iã o , ou representar a figura d e ed u cad ores q u e, durante
particular a este ou àq u ele asp ecto. U m d os telesp ectad ores d isse que a n o ssa in fân cia, se com p ortavam c o m o d eu ses em relação aos q u ais
o u v ia 10 v o zes; por isso , pergun tam os agora na n o ssa E ntrevista: nos sen tíam os im p oten tes e ob rigad os a ob ed ecer, etc.
“Q uantas vozes é que você o u ve? ”. O ra, co m o psiquiatra, eu apenas P ara p o d erm o s com preen der o O utro, tem os que fa ze r a tra n sp o ­
perguntaria: “V ocê ouve vozes?”. U m outro d isse q u e o u v ia a v o z da sição do sistem a de crenças do ouvid or de vozes p a ra o nosso p ró p rio
m ãe, fa lecid a há m uitos anos. T ran sform ám os o ca so num a pergunta: sistem a de crenças. A o con trá rio da P siquiatria tradicional, nós não
“É capaz de reconhecer a identidade da vo z? ”■ C om o psiquiatra, eu negam os lim inarm ente a experiência só p o rq u e a explicação qu e o
apen as perguntaria: “A sua v o z v em d e dentro de si ou é de outra ouvidor de vozes nos dá é in verosím il ou fa lsa aos nossos olhos.
p esso a ? ” e não estaria interessado em saber quem é q u e falava à A inda que essa explicação fo s s e com pletam ente fa lsa no nosso sistem a
p esso a ou que im portância é que tinha para a sua vid a a relação que de crenças, a experiência, essa, está lá e p o d e fa ze r todo o sentido.
m antinha co m a v o z , m as interessar-m e-ia som en te o facto de a v o z
ser interpretada co m o “não sen d o a própria p e sso a ”. M u itos telesp e c­
tadores do program a disseram , ao telefo n e, que o u v ia m v o z e s p rove­ Objectivos e estruturação da Entrevista
n ien tes d os d eu ses ou do contacto telep á tico co m p esso a s v iv a s. N a
n o ssa E n trevista in clu ím o s, en tão, a pergunta: “D o nde é que você A lém da procura de um a lin g u a g em qu e perm ita falar da ex p eriên ­
p en sa que as vozes vêm ?”. cia de ouvir v o z e s, o s o b je ctiv o s da E n trevista preten dem ultrapassar
T al co m o os p rofissio n a is de S aú d e M en tal, o s o u vid ores de v o zes o acanham ento d e falar d aq u ilo q u e se o u v e m as n ão se v ê , estruturar
procuram um sistem a de crenças qu e lhes perm ita com preend er a o d iá log o acerca da ex p eriên cia e prom over a com p reen são da relação
experiência. P o r essa razão, tivem os de estabelecer contacto íntim o entre a escu ta de v o z e s e a h istória b iográfica das p esso a s. U ltrapassar

354 355
o acanh am ento é u m a n e cessid a d e co m u m ao ou vid or de v o z e s e ao Entrevista e resultados
p rofission al de saúd e, já q u e am bos aprenderam , nas suas in teracções
so cia is ou durante o treino p rofissio n a l, que o m elhor é n ão falar T ratarem os em seg u id a das perguntas da E n trevista, ten d o em conta
d essa s ex p eriên cia s. P or isso , é natural que nenh um d e les saib a co m o a sua u tilização n o s C u id ad os d e S aú d e M en tal. A o d escrev erm o s e
falar das v o z e s e q u e am b os tenham n ecessid a d e de um a certa estru­ analisarm os o s resu ltad os da E ntrevista, seleccio n a rem o s o s item s
tura para estar em c o n d iç õ e s d e dialogar. m ais úteis aos p ro fissio n a is para analisar as ex p eriên cia s e com p reen ­
O derradeiro o b je ctiv o , com p reen d er a relação da escu ta d e v o z e s der o s o u v id o res d e v o zes.
co m a história b io g rá fica da p esso a , v e io d os n o sso s e stu d o s-p ilo to e
da in v estig ação da literatura, que to m a m ev id en te que a escu ta de
v o z e s se p od e radicar profun dam ente na biografia da p esso a . A percepção
A estrutura principal da E ntrevista assen ta n o s seg u in tes pontos:
- A sp ecto s da ex p eriên cia em si; A E n trevista c o m eça por fazer perguntas sob re a p ercep ção de
- C aracterísticas das v o z e s, co m o idade, género e carácter; v o zes prop riam ente dita e as características d e ssa p ercep ção. E sta
- O rgan ização das v o z e s na sua relação co m a p essoa; questão in teressa aos p ro fissio n a is, na m ed id a em q u e e le s costu m am
- D esen ca d ea n tes q u e p rovocam ou esbatem as v o zes; querer saber, antes d e m ais nada, se a p e sso a tem ou n ão aq u ilo que
em term os técn ico s se ch am a a lu cin a çõ es aud itivas. É por isso que,
- C ircun stâncias relacion ad as co m o in ício da experiência;
na n ossa E n trevista, fa zem o s perguntas sobre as características prin­
- In flu ên cia das v o z e s n o b em -estar da p e sso a que as ou ve;
cipais dum a alu cin a çã o . U m a das características é “o u vir um a v o z ”
- Identidade das v o zes; que se d irige à p e sso a , co m o se pod eria dirigir um a p e sso a qualquer,
- Interpretação; em bora sem a p resen ça o b serv á v el d e q u em fala. U m a segu n d a carac-
- E stratégias para lidar co m as v o zes; terística prin cipal é qu e a v o z é v iv en cia d a co m o “n ão e u ” , em lugar
- H istória ju v e n il e ex p eriên cia s traum áticas; de ser v iv en cia d a co m o “e u ” - co m o no d iá lo g o interior, quando
- R ed e social; falam os co m o s n o sso s b otõ es.
- H istorial d o s cu id a d o s p esso a is de saúde. O seg u n d o asp ecto da en trevista qu e in teressa aos p r o fissio n a is,
para fin s d ia g n ó stico s, são as características das a lu cin a çõ es aud itivas
N ão é obrigatório segu ir tod o este rol de assu n tos, em b ora o c o n ­ em causa: isto é, referem -se a um a d o en ça e sp e c ífic a ou sig n ifica m ,
sid erem os m uito im portante. M as o que é m esm o im portante, de acordo sim p lesm en te, q u e a p e sso a n ão está bem ?
co m o estu d o -p ilo to , é q u e não se pergunte de chofre: “O que é que N o s instru m en tos d e d ia g n ó stico p siq u iátrico q u e se u tilizam em
as v o z e s lh e d izem ? ” . A n tes de m ais, porque as p esso a s, m uitas v e z e s, todo o m un d o n o estu d o da esq u izo fren ia , co m o é o ca so d o P SE
têm vergon h a d aq u ilo qu e as v o z e s lh es d izem , porque falam de -P r e s e n t State E xam in ation (W in g , 1 9 7 0 ) - p ressu p õ e-se qu e ex iste
m u itos asp ectos da sua vid a nas m ais d iversas circu n stân cias. T a m ­ um a d iferença entre “alu cin a çõ es verdadeiras” e “p seu d o -a lu cin a çõ es”.
b ém não será m u ito fá cil, para as p esso a s, responder à pergunta: A s a lu cin a çõ es au d itivas verd ad eiras estariam relacion ad as co m a
“O qu e é que v o c ê p en sa d isso ? ”. O m elhor será inquirirm os de form a esq u izofren ia, en q u an to qu e as p seu d o -a lu cin ações estariam em rela­
indirecta, procurando a lgu n s ex em p lo s ao divagar p elo s m ais variad os ção co m as ch am ad as perturbações d isso cia tiv a s.
assu n tos. R ela cio n a n d o o con teú d o co m o co n tex to , as p e sso a s falarão A s características das a lu cin a çõ es au d itivas verd ad eiras são:
co m m ais fa cilid a d e e sim p licid ad e do con teú d o das suas v o z e s. - A v o z é escu tad a p e lo s o u v id o s, co m o se v ie ss e d e fora;

356 357
- A v o z é perceb id a co m o “não e u ”; outros não. É im portante ter em con ta q u e n ão ex istem quaisq uer
- A p e sso a não co m u n ica n em m antém d iá lo g o co m a v o z. cracterísticas e sp e c ífic a s qu e in d iq u em a ex istên cia d e d o en ça m ental.
P or isso , o d ia g n ó stico só p o d e ser fe ito co m b a se na ex istên cia
D iz -se q u e as p seu d o -a lu cin ações são d iferen tes, porque: doutros sin tom as, ex clu in d o os q u e são parte da reacção da p e sso a às
- S ão o u vid as dentro da cabeça; v o zes.
- S ão p erceb id as “com o se não fo sse m e u ”;
- A p e sso a é cap az d e com u n icar co m ela s.
Vozes e outras percepções extra-sensoriais
A prim eira secçã o do n o sso Q u estion ário abrange estas caracterís-
ticas (ver Q uadro 5). H á ca so s em qu e as v o z e s são a ú n ica p ercep ção extra-sen sorial
presente, em bora a p e sso a p o ssa exp erim en tar ainda outras m od alid a­
QUADRO 5 d es d e P E S, co m o seja o ca so d e p ercep çõ es v isu a is, o lfa ctiv a s e
tácteis (ver S e cçã o A escuta de vozes e a parap sicologia, C ap ítu lo 7).
C arac terístic as d a p ercep ção e d a com unicação com a(s) voz(es), em três gru po s E razoável que se pergun te por ela s, um a v e z qu e p od em trazer pro­
E sq u iz o fre n ia P e r tu rb a ç ã o N ão b lem as às p e sso a s e fazer parte do c o m p le x o d e rea cções às e m o çõ es
d iss o c ia tiv a p a c ie n te s esm agad oras d esen cad ead as p or m em ó ria s d e a co n tecim en to s traum á­
n-18 n-15 n-15 tico s, etc. N o n o sso estu d o, em 21% d os qu e resp on deram só havia
v o zes; em 52% h avia tam bém im ag en s v isu ais; em 31% ocorriam
Onde são ouvidas as vozes tam bém ch eiros a flo res, a q u eim ad o ou a esperm a; e em 42% havia
N os ouvidos 13 9 7 igu alm en te sen sa çõ es corp orais, d o g én ero sen tir-se to ca d o por al­
N a cabeça 9 11 10 gu ém ou sentir b ich os a subir p e lo corp o. F in alm en te, 51% d os que
responderam d isseram qu e tinham 3 ou m ais tip os d iferen tes d essas
Comunicação com as vozes p ercep ções.
N ão consegue falar com a voz 6 10 5
F ala co m a voz 12 5 10

Características das vozes


N e ste estu d o, os resu ltad os não m ostram qualquer relação e sp e c í­ P ergun tam os p ela s características das v o z e s, co m o o seu núm ero,
fica entre as ch am ad as a lu cin a çõ es verd ad eiras e a esq u izo fren ia , gén ero, idade, m aneira d e falar, a ssu n tos d e qu e falam e aq u ilo que
n em , por outro lad o, entre as p seu d o -a lu cin a çõ es e as perturbações d izem concretam en te. Falar d estes item s tem d o is o b jectivo s. O pri­
d isso cia tiv a s. D e igual m o d o , os grupos “não p a cien tes” e “p a cien tes” m eiro é estim ular o ou vid or d e v o z e s a fam iliarizar-se m ais co m ela s,
não d iferem entre si a este resp eito. A lg u n s p acien tes tanto o u v em co m o na T écn ica d e C oncentração nas V o z e s, d esen v o lv id a por B entall
v o z e s n o s o u v id o s co m o na cab eça. N a n o ssa am ostra, o s p acien tes e H ad dock (ver a resp ectiva S e c ç ã o n o C ap ítu lo anterior). O ou vid or
esq u izo frén ico s até falavam m ais freq u en tem en te co m a v o z do que de v o z e s vai aprend end o a falar d elas p rogressivam en te, do m esm o
o s p acien tes d isso cia tiv o s. O s não p acien tes tam bém ou viam v o z e s m odo que se aprende a falar das p e sso a s. E quanto m ais se fala das
n os o u v id o s e na cab eça e alguns d eles falavam co m ela s, enquanto p esso a s m ais se aprende a c o n h ecê-la s. Falar das v o z e s red u z a an-

358 359
sied ad e e a freq u ên cia co m q u e ela s aparecem (H ad d ock et al., 1 996) de um a p e sso a q u e d e ix a tod as as d e c isõ e s para as v o zes; u m a p e sso a
e fa z, sim u ltan eam en te, co m q u e o ou v id o r se fa m ilia rize co m a assim irá ter d ificu ld a d e em fazer esco lh a s por si própria sem p re qu e
p resen ça d elas. se ex ig ir d ela um a d e cisã o em situ a çõ es reais.
O seg u n d o o b jectivo d e falar das características das v o z e s é , atra­
v és da an álise da sua m aneira d e com u n icar co m a p esso a , obter m ais N ão é correcto co m eça r um a an álise da ex p ressiv id a d e m etafórica
escla recim en tos sobre o seu sig n ifica d o para a vid a qu otidiana do das v o z e s quando o p a cien te ainda está m u ito ch ocad o c o m a e x p e ­
ou vid or (R o m m e e E sch er, 1 996). riência que atravessa. P rim eiro co m eça m o s por abordar as caracteríticas
A id ad e, por e x em p lo , p o d e ind iciar em que altura da v id a da das v o z e s, seg u in d o d e p o is tod os o s p assos da en trevista, crian d o ao
p e sso a se deu o even tu al a co n tecim en to traum ático. O g én ero (m a s­ m esm o tem p o um am b ien te d e m aior con fia n ça , qu e perm ita falar das
cu lin o ou fem in in o ) e a m aneira de falar (v o lu m e, agressiv id a d e, v o zes. É m elh or falar da ex p ressiv id a d e m etafórica das v o z e s nu m a
in ten ção construtiva ou d estru tiva) p od em dar in d ica çõ es sob re o altura em que a p e sso a já seja cap az d e falar d elas à von tad e - n aq u ela
carácter da p e sso a que as v o z e s representam . P o d em o s ilustrar m elhor fase que d esig n a m o s por “fa s e de org an izaçã o” (ver S e cçã o F a se de
o qu e acab ám os d e ex p o r c o m o segu in te exem p lo: organização, C ap ítu lo 2 ). N u m a p ersp ectiva d e in v estig ação , as carac­
terísticas das v o z e s p o d em ser encaradas co m o parte da sua gravid ad e
Uma senhora de 28 anos de idade começara a ouvir uma voz masculina e , p o s s iv e lm e n t e , c o m o e le m e n t o s d e p r e d ic ç ã o d e u m a
que se identificava como Steve. Steve dominava-a por completo: chegava a
dizer-lhe o que ela havia de comer e de que maneira o devia fazer. Ela tinha d escom p en sa çã o p sicó tica .
lapsos de consciência que a assustavam imenso. Depois desses lapsos de
consciência mais ou menos prolongados, acontecia-lhe dar consigo mesma
toda ensanguentada na casa de banho ou, então, a passear na praia e coisas Organização das vozes
assim. Durante a terapia a que se submeteu, acabaria por reconhecer que
Steve tinha todas as características do seu padrasto, que tinha abusado dela A s perguntas d esta se c ç ã o da E n trevista têm o m esm o p rop ósito
sexualmente. Tanto a voz de Steve como aquilo que dizia eram muito seme­ que as perguntas da se c ç ã o anterior. P o d em dar-nos in d ica çõ es sobre
lhantes à voz do padrasto e àquilo que ele lhe dissera quando abusou dela. o tipo de in teracções q u e se esta b elecem entre o ou vid or d e v o z e s e
Até o nome da voz lhe fazia lembrar o padrasto.
as outras p e sso a s nas situ a çõ es reais da vid a, p resen tes e p assad as.
E sta m aneira de falar d o con teú d o e d o carácter das v o z e s é um a P odem ainda dar-nos a lg u m a in form ação sob re a form a c o m o aq u eles
form a d e analisar a ex p r essiv id a d e m etafórica das v o z e s (ver S e cçã o que as v o z e s rep resen tam co m u n ica m entre si e co m o com p rom etem
R ea b ilita çã o , S u b se c ç ã o Inform ação de qualidade, C ap ítu lo 10). o ouvidor n e ssa co m u n ica çã o . P or exem p lo: d irigin d o-se d irectam en te
A ex p ressiv id a d e m etafórica das v o z e s con tém elem en to s que in d i­ ao ouvidor, na segu n d a p e sso a gram atical; ou falan do d ele p elas co sta s,
cam as su as rela çõ es c o m a biografia da p esso a . P or exem p lo: na terceira p e sso a gram atical; ou , ainda, coch ich a n d o u m as co m as
1 - 0 con teú d o do q u e a v o z d iz à p e sso a p o d e reflectir aq u ilo q u e outras a resp eito d e le , esp ica ça n d o -o , segred an d o um as co m as outras,
p esso a s sig n ifica tiv a s lh e d izem . falando em c ó d ig o , etc.
2 - A interacção entre as v o z e s e a p e sso a que as o u v e p o d e r e fle c ­ U m outro m o tiv o por q u e fa zem o s estas perguntas resid e n o facto
tir a interacção desta co m p e sso a s sig n ifica tiv a s, co m o no ex em p lo de na P siquiatria trad icion al se estar in teressad o em saber se as v o z e s
atrás referid o. P o d e reflectir ainda a m aneira co m o a p esso a co stu m a falam com (isto é , na segu n d a p esso a ) ou do (ou seja, na terceira
resolver o s seu s p rob lem as ou co n flito s. P od e ser o ca so , por ex em p lo , p essoa) ouvidor, m u ito em b ora este critério, usad o co m o critério diag-

360 361
n ó stico fin a l, n ão seja su ficien tem en te d iferen ciad or para constituir p a cien tes e n ão-p a cien tes. E ssa s d iferen ças en con tram -se ilustradas
grup os c la ssific a tiv o s claros entre o s o u vid ores d e v o z e s . Q u ase todos no Q uadro 6.
os ou v id o res de v o z e s (96% ) as o u v em dirigir-se-Ih es na segun da
p essoa. N a P siquiatria tradicional o e q u ív o c o p o d e ter estad o em não QUADRO 6
p erceb er q u e um a p e sso a p o d e ou vir m ais d o que um a v o z e que as
In flu ên cia d as vozes na p essoa q u e as ouve
v o z e s têm características diferen tes um as das outras. E m P siquiatria
não era co stu m e ind agar-se d o núm ero de v o z e s o u v id a s n em inquirir E sq u izofren ia P ertu rb a çã o N ão-
d o seu carácter. N o en tanto, ou vir v o z e s que a g em cada um a à sua d isso ciativa -p a cien tes
m aneira p o d e m u ito b em querer sign ifica r q u e se trata d e m em órias
reflectid as so b a form a d e diferen tes p esso a s, co m as q u ais o in d iv í­ n=18 n=15 n=15
duo interagiu, p o sitiv a ou n egativam en te, das m ais d iv ersa s m aneiras. V ozes positivas 15 (83% ) 10 (67% ) 1 4 (9 3 % )
V ozes negativas 1 8 (1 0 0 % ) 1 4 (9 3 % ) 1 0 (6 7 % )

Influência das vozes e suas consequências P redo m in an tem en te p ositivas


P redo m in an tem en te negativas
2
1 2 (6 7 % )
2
1 0 (6 7 % )
11 (78% )

O s ou v id o res diferem uns dos outros con form e a in flu ên cia que as M edo d as vozes 1 4 (6 8 % ) 11 (78% )
v o z e s têm nas su as e m o ç õ e s e no seu com p ortam en to. E sta in flu ên cia Incom odado pelas vozes 1 6 (8 9 % ) 13 (87% ) 4 (27% )
varia em fu n çã o das várias v o z e s que a p e sso a o u v e. A m aior parte
P ertu rbação d a vida diária 1 9 (1 0 0 % ) 1 4 (9 3 % ) 5 (33% )
das p e sso a s q u e o u v em v o z e s tanto o u v e v o z e s p o sitiv a s co m o n eg a ­
tivas, m as o e fe ito geral e as co n seq u ên cia s p o d em ser diferentes.
É por isso qu e n ós perguntam os: “V o c ê o u v e v o z e s p o sitiv a s? ”; “E elas E ste quadro com p rova, antes d e m ais nada, a sem elh a n ça ex isten te
o qu e d izem ? ”. E ainda: “ V o c ê o u v e v o z e s n ega tiv a s? ” ; “E ela s o que entre o s 3 grup os. E m tod os e le s se v erifica a p resen ça d e v o z e s
d izem ? ”. S eg u id a m en te, in d agam os do seu efeito geral - q u e p od e ser p o sitiv a s, isto é, v o z e s qu e elo g ia m ou d ão a p o io a q u em as o u v e. M as
p red om in an tem en te p o sitiv o , p redom inantem ente n eg a tiv o ou neutro. em tod os e le s, tam bém , se v erifica a p resen ça d e v o z e s n ega tiv a s, isto
D ep o is, in q u irim os das co n seq u ên cia s, co m o ter m ed o das v o zes, é, v o z e s que criticam q u em as o u v e. A gran d e d iferen ça, n o entanto,
sen tir-se b em c o m ela s, sen tir-se in com od ad o por e la s, ter a vid a resid e em qu e o s d ois prim eiros gru p os (p a cien tes) p erceb em as v o zes
diária perturbada p ela s v o z e s , sen tir-se ajudado por ela s, etc. c o m o p redom in an tem en te n egativas (67% ), en qu an to qu e no terceiro
N a P siq uiatria tradicional este tipo de perguntas con cen tra-se na grupo (n ão-p a cien tes) n ão su rge n in gu ém co m v o z e s pred om in an te­
p erigosid ad e: “ V o c ê receb e ordens das v o z e s? ” ou “E las d izem -lh e m en te n egativas; p e lo contrário, aparecem an tes v o z e s pred om in an te­
para v o c ê fazer m al a alg u ém ? ” ou , ainda, “V o c ê é ca p a z d e resistir m en te p o sitiva s (78% ). V erifica -se tam bém qu e a m aioria d os p a cien ­
a essa s ord en s?” . T am b ém fa zem o s perguntas sobre a ex istên cia de tes, isto é, d os in d iv íd u o s qu e integram o s d o is prim eiros grup os, tem
v o zes im p erativas, m as procuram os aprofundar a in flu ên cia que as m ed o das v o z e s, en qu an to qu e no grupo d o s n ão -p a cien tes n in gu ém
v o z e s ex erc em sobre q u em as ou v e. tem m ed o d elas. A m aioria d os p acien tes sen tia -se in com od ad a co m
E stam os sa tisfeito s por term os p roced id o d este m o d o , porque esta as v o z e s (89% no grupo “E sq u izo fren ia ” e 87% n o grupo “Perturba­
inform ação viria a perm itir esta b elecer um a im portante d istin çã o entre ç õ e s d isso cia tiv a s”) e, um a v e z m ais, q u ase n in gu ém d o grupo “ N ão-

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-p acien tes” se sen tia in com od ad o por ela s. F in alm en te, m as não m en os N este estu d o com p arativo fo i-n o s p o ssív e l ser m ais d iscrim in an tes
im portante, v erificá m os que tod os o s p acien tes sofriam perturbações do qu e no prim eiro, na m ed id a em qu e p u d em os analisar os traum as
na su a vid a diária por cau sa das v o z e s , enquanto q u e isso era m en os rela cion a d o s co m o in ício da exp eriên cia d e escu ta d e v o zes e m u itos
freq u en te n o grupo d os n ã o -p a cien tes. A d iferen ça entre o s d ois gru­ outros traum as ex p erim en tad os ao lo n g o da vid a. E sta d iscrim in ação
p os d e p acien tes e o grupo d e n ã o -p a cien tes no que resp eita à in­ parece-n os im portante, na m ed id a em qu e fe z a lgu m a luz sob re d o is
flu ên cia das a lu cin a çõ es au d itivas é já em si m esm a um a razão c o m ­ a sp ectos da escu ta d e v o z e s. E m prim eiro lugar, d efin e aq u ilo qu e
p reen sív el para o facto de um as p e sso a s s e tom arem p a cien tes e outras p rovoca o in ício da ex p eriên cia d e escu ta d e v o zes; em segu n d o lugar,
não. d efin e aq u ilo q u e irá d ecid ir se a p esso a vai ser p acien te o u não. S eja
co m o for, v erificá m os q u e, tanto na história b iográfica d os p acien tes
co m o na d os n ã o -p a cien tes, o in íc io da ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s
História da escuta de vozes e circunstâncias relacionadas está relacion ad o co m aq u ilo a q u e ch am am os traum as ex isten cia is.
com o seu início
E m C u id ad os de Saú de M ental é bastante co m u m perguntar-se Alguns exemplos de acontecimentos traumáticos
p e lo in ício das q u eix as, m as não por esta ou aqu ela circu nstância em
particular. N o n o sso estu d o h avia duas ra zões para o fazer: a prim eira 1. U m a m iúda de 9 anos fo i agredida p elo p a i tão violentam ente
era o n o sso in teresse n o fen ó m en o de escu ta de v o zes; a segun da que teve de ser hospitalizada, com duas vértebras deslocadas. D u a s
resid ia no facto d e, no n o sso p rim eiro estu d o (ver C apítu lo 2 ), term os horas depois do internam ento com eçou a ouvir vozes p ela p rim eira
v erificad o que 70% da p op u lação q u e estu d ám os tinha co m eça d o a vez.
ou vir v o z e s d ep o is da ocorrên cia d e d eterm inado tipo de traum as. Por
isso, um item im portante, na escu ta d e v o z e s, é reunir inform ação 2. U m a senhora de 2 8 anos com eçou a ou vir vozes p ela p rim eira
sobre e sse s traum as, razão por q u e tiv em o s in teresse em averiguar vez durante um p erío d o de gra nd e tensão conjugal. O m arido batia-
co m o as co isa s se passavam n os gru p os de p acien tes e n o grupo de -Ihe cada vez m ais freq u en tem en te, con tro lava -lhe todas as suas
n ão-p acien tes. actividades e só lhe fa z ia ob servações negativas. P ara ela, a situação
A s perguntas sobre este tem a sã o form u ladas de um m od o um tanto não tinha qualquer saída.
esp ecia l. C o m eça m o s por perguntar em que idade a p e sso a ou viu
v o z e s p ela prim eira vez; seg u id a m en te, so licita m o s-lh e que recue na 3. Um hom em de 40 anos com eçou a ouvir vozes p o u co s dias antes
m em ória até essa idade, n os fa le da sua situação d e vid a n e ssa ép oca de fa z e r um exam e decisivo p a ra m anter o em prego. E stava co n ven ­
e n os d iga se a lg o d e esp ecia l teria a co n tecid o en tão. Partindo dum a cido de que ia fa lh a r, dado que achava o grau de dificuldade d em a ­
lista derivada do n o sso prim eiro estu d o, fa zem o s perguntas respeitantes siado para si.
a aco n tecim en to s traum áticos da vida: “A lg u m a destas circunstâncias
está relacionada com o fa c to de ter com eçado a ouvir vozes?”. E m 4. U m a m oça de 12 anos com eçou a ouvir um a voz de m u lh er
segu id a v erifica m os quando e qual das circu nstâncias ocorreu e qual crescida, na altura em que o seu irm ão de 18 anos tinha deixado o
das v o z e s se relacion a co m ela , dado que v o z e s diferen tes se rela cio ­ lar. A p a rtir daí, esta m o ça com eçou a sentir-se com pletam ente iso ­
nam co m d iferen tes p eríod os da v id a e c o m aco n tecim en to s traum á­ lada e desam parada em casa, devido à existência de fa cçõ es no seio
tico s diferentes. da fa m ília e ao fa c to d e já não ter um parceiro.

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5. U m a senhora d e 4 0 anos com eçou a ou vir vozes depois da m orte 1. A m iúda d e 9 an os m altratada p elo pai recuperou totalm en te no
consecutiva, no curto espaço de 3 m eses, de três p esso a s m uito im ­ hosp ital, tendo sid o d ep o is co lo c a d a em ca sa da a v ó, o n d e g o za v a de
po rta ntes na sua vida: o m arido, o p a i e um a cunhada. um am b ien te agrad ável e p rotegid o. A ssim , n os p rim eiros tem p o s, n ão
se verificaram n o v o s efeito s n e g a tiv o s relacion ad os co m o traum a. N o
6. Um rapaz d e 11 anos, hospitalizado com um a d o ença fa ta l, entanto, a a v ó fa leceu 3 an os d ep o is e a m iú d a fo i co lo c a d a num a
encontra-se num a enferm aria cheia de doentes idosos, vários dos instituição. N e ssa in stitu ição, tal c o m o su ced ia em ca sa do pai, d eix o u
quais vão m orrendo sucessivam ente. D urante este período, com eça a de sen tir-se protegid a; d e um m od o m uito a g ressiv o , era ob rigad a a
ouvir um a voz nitidam ente. portar-se b em e n e sse am b ien te p od e ter fica d o m ais sen sív el. Seja
co m o for, fico u d em asiad o vu ln erável para co n seg u ir lidar co m as
E stes ex em p lo s foram extraídos d os três grupos estu d a d o s, d ois v o zes.
por cada grupo. A o s traum as sofrid os d em os a d esig n a çã o d e existen ­ 2. V eja m o s o e x em p lo do h o m em d e 4 0 an os q u e tinha m ed o de
ciais porque: perder o em p reg o e qu e com eçara a ou vir v o z e s a lgu n s dias antes do
1. S ão em si m e sm o s am eaçad ores, co m o era o ca so d o s m aus ex a m e em q u e recea va falhar. N a vid a d ele, e s s e traum a era um a
tratos físic o s e da d o en ça fatal. e sp é cie de sina. E n con trava-se vu ln erável e n ão c o n seg u ia lidar co m
2. S ão am eaçadores porque d estroem as exp ectativas de vid a, co m o a situ ação, p rov a v elm en te porq ue, na sua ju ven tu d e, tinha sid o h u m i­
é o ca so da perda d o em p reg o , da perda d o com pan heiro por d iv ó rcio , lhado p elo pai, q u e deixara a quinta ao filh o m ais n o v o , en qu an to que
da m orte d e um en te qu erido e da circu nstância d e ficar só . S ão o n o sso h o m em tev e d e segu ir a p rofissão d e jard in eiro - qu e agora
am eaçad ores p orque as p e sso a s acreditam que e le s tiveram u m e fe ito estava em risco d e perder.
d isru ptivo na sua vid a. 3. N o ca so da m ulh er d e 4 0 an os que tinha co m eça d o a ou vir
3. S ão am eaçad ores porq ue fa zem d esen cad ear a r e v iv e sc ê n c ia de v o z e s d ep o is da m orte d e três en tes q u eridos n u m curto esp a ço de
um a situ ação em o cio n a l passad a m uito op ressiva. tem p o, tratava-se d e um traum a do p on to d e v ista em o cio n a l, q u e, no
entanto, não trou xe co n seq u ên cia s so cia is n ega tiv a s para a vid a dela:
D esco b rim o s q u e e ste tip o de traum as estava relacion ad o co m o não tev e de alterar a sua vid a fin an ceiram en te, n ão tev e d e m udar de
in ício da escu ta d e v o z e s em 72% do grupo da esq u izo fren ia , em 93% casa n em perdeu o s filh o s. A lém d isso , durante a ju ven tu d e tev e um a
das p essoas do grupo das perturbações d isso cia tiv a s e em 80% das ed u cação em q u e fo i m u ito estim u lad a e ap oiada. D e se n v o lv e u um a
p esso a s do grupo d e n ão-p a cien tes. identidade está v el e, portanto, n ão estava esp e cia lm en te vu ln erável
quando sofreu as perdas.

O que influencia o vir a ser-se paciente ou não E nquanto n o s d o is prim eiros ex em p lo s as p e sso a s se tornaram
p acien tes, a últim a não. M as todas ou viam v o z e s há m u itos anos.
O p róxim o p a sso da E ntrevista, “O que é que influencia o vir a Q uando com p arám os o s p acien tes e o s n ão -p a cien tes v erificá m os
ser-se pa cien te ou n ã o ” , é um a m atéria bastante co m p lex a e d ifíc il de que h avia im portan tes d iferen ça s em relação à a u to co n fia n ça e à
expressar em n ú m eros. S en d o a ssim , com eça rem o s por dar algu n s vulnerabilid ad e. N e m tod os o s traum as têm as m esm a s co n seq u ên cia s
ex em p lo s. N a E n trevista in clu ím o s um a secçã o sobre a H istória Ju­ na vid a de um a p esso a . Q u anto m ais d isru ptivo for o traum a m aior
v en il, qu e d ep o is se m ostrou m uito im portante para se com p reen d er é o risco d e se vir a ser p acien te. N a P siquiatria trad icion al, a teoria
a escu ta d e v o z e s. da vulnerabilid ad e ao stress é altam ente valorizad a, sen d o a v u ln e-

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rabilid ade en tend ida co m o um factor de natureza b io ló g ica . N o entan­ car a m aneira de lidar co m as v o z e s nas situ a çõ es ou e m o ç õ e s qu e as
to, o s resu ltad os d o n o sso estu d o apontam para que essa vu ln erab ili­ fa zem desencad ear. P or isso , p ergu n tam os à p esso a “N o ta que as
dad e n ão seja m eram en te um factor de natureza b io ló g ica , h aven d o, vozes aparecem em determ inada situ a çã o ? ” e d am os e x em p lo s, co m o
p e lo contrário, boas razões para adm itir factores p sic o sso c ia is de v u l­ “quando você está no m eio de outras p esso a s e se sente exclu íd o”,
nerab ilid ad e em p e sso a s que ou v em v o z e s e se tornam p acien tes. etc. E p ergu n tam os-lh e o qu e é q u e a v o z d iz n essa situ ação. E m
A s duas principais diferen ças entre o s q u e se to m a m p acien tes e segu id a, perguntam os qu e tip o d e e m o ç õ e s e ssa s situ a çõ es p rovocam .
o s qu e p erm an ecem n ã o -p a cien tes p arecem ser: Sob re as e m o ç õ e s, perguntam os: “H á algum as em oções que fa ça m
1. A s co n seq u ên cia s para a vid a futura d o traum a a segu ir ao qual desencadear as vozes?" e d am os algu n s ex em p lo s, co m o seja estar
a escu ta d e v o z e s co m e ç o u . N o s p a cien tes e s s e traum a fo i m ais num estad o d e hum or n ega tiv o , estar in segu ro, estar a n sio so , estar
d isru p tivo (para a sua vid a) do que n os n ão-p a cien tes. apaixon ado, sen tir-se a g ressiv o , estar so b in flu ên cia d e im p u lso s se ­
2. A vu ln erab ilid ad e p sic o sso c ia l em q u e se in screv e a ex p eriên cia xu ais, etc.
do traum a. E ncontrám os n os pacientes um a vulnerabilidade p sico sso cia l U m ex em p lo qu e ilustra b em um a situ ação q u e fa z disparar as
qu e o s to m a v a m uito m a is sen sív eis a a co n tecim en to s traum áticos do v o z e s é o da m o ça que, qu and o ia a um a festa co m o nam orad o, ou via
que n os n ão-p acien tes. E sta vulnerabilidade está relacionada co m fortes um a v o z às o n ze horas da n o ite q u e a m and ava ir para casa (ver
sen tim en tos de inseguran ça e co m perturbações do d esen v o lv im en to S ecção E screver um diário, C apítu lo 10). É claro que esta situação
da id en tid ad e durante a infância. não era aceitável p a ra o nam orado. Q uando a m oça fa lo u no assunto
ao seu terapeuta, os dois p en sara m num a solução e acharam p o r bem
N a P siq uiatria trad icional, esta seq u ên cia de a co n tecim en to s é estabelecer um acordo p révio sob re a hora de sa ir da festa . Q uando
geralm en te a ceite co m o a origem da d o en ça neurótica. C aracteristica- ela p ô s isso em prá tica , as vozes deixaram d e a incom odar nas festa s.
m en te, no entanto, não se adm ite o m esm o m eca n ism o para a d o en ça U m segu n d o ex em p lo relacion ad o co m as em o ç õ e s é o d aq u ele
p sicó tica . M as a n o v a lu z que o n o sso estu d o v e io fazer sobre a escu ta senhor que referia que um a das sua s vozes aparecia habitualm ente à
d e v o z e s enquanto “sin tom a p sic ó tic o ” é qu e este sin tom a, tal co m o noite e se tornava activa e do m inan te quando fic a v a escuro. D isse-
o “n eu ró tico ”, é o reflex o de prob lem as p e sso a is. E m bora haja um ou -nos ele: “E sta era a voz que m e m etia m ais m edo, m as agora arranjei
outro ca so em que não co n seg u im o s encontrar um a relação clara, um a m aneira de lidar com ela, deixan do -m e assu star - e isso fa z com
valerá a pena ter em con ta que a d o en ça psiqu iátrica, seja neurótica que a voz se desva n eça .”
ou p sicó tica , p o d e ser seriam en te in flu en cia d a p ela seq u ên cia de A principal co n c lu sã o acerca das d iferen ças entre os p acien tes e os
ex p eriên cia s de vida. não p acien tes é qu e o s p a cien tes têm m ais ten d ên cia a apontar a
presença de determ in ad os esta d o s em o cio n a is antes d o in ício da e s ­
Desencadeantes imediatos cuta de v o zes. N en h u m d os n ão p a cien tes d e se n v o lv eu qualquer an­
siedade prem onitória. A o con sid erarm os cada um d os d o is gru p os de
N em a inten sid ade das v o z e s nem o s tem as de que falam são p acien tes, v erificá m os qu e tod os o s p a cien tes do grupo das perturba­
sem p re o s m esm os; p e lo contrário, variam de acordo co m as situ a çõ es ç õ es d isso cia tiv a s m en cion aram a p resen ça d e esta d o s em o cio n a is
e as e m o çõ es. A relação das v o z e s co m determ inadas situ a çõ es ou precedendo a escu ta d e v o z e s, m as a verd ad e é qu e 89% d os p acien tes
em o ç õ e s p o d e ajudar a com preend er que tipo de situ a çõ es e de e m o ­ do grupo da esq u izo fren ia referiram tam bém a p resen ça d e sses esta ­
ç õ e s perturbam a p esso a . P o d e ainda forn ecer um a p ista para m o d ifi­ dos em o cio n a is. A ssim , um p a cien te o u v id o r d e v o z e s p o d e sentir

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prim eiro um a d eterm inada em o çã o e ou vir um a v o z de segu id a. N ã o A o pergun tar-se p ela id en tid ad e das v o z e s, a in ten ção é facilita r o
en con trám os quaisquer d iferen ça s n os d o is grupos de p acien tes quanto estu d o da relação entre as v o z e s e a h istória b iográfica d e q u em as
ao facto d e a v o z agravar o s sen tim en tos e o s p en sam en tos de qu em ou v e. Q uando um a ou v id o ra d e v o z e s referiu que o u v ia a v o z da m ãe
as o u v e. N o que d iz resp eito às em o ç õ e s que p reced em a escu ta de já falecid a, ora fa zen d o sem p re com en tários n eg a tiv o s, ora d a n d o -lh e
v o z e s, os p acien tes do grupo das perturbações d isso cia tiv a s referiram : bons c o n selh o s, isso p od erá, num ca so e noutro, dar-nos p reciosa s
hum or triste (83% ), an sied a d e (67% ), a g ressivid ad e (53% ) e sen ti­ in form ações sob re a id eia q u e ela fazia da m ãe. N o en tan to, e s s e tipo
m en tos d e in seguran ça (53% ). O s p acien tes do grupo da esq u izo fren ia de relação raram ente é tão im ed iato. P or ex em p lo , um a m u lh er o u v ia
referiram : an sied ad e (69% ), hum or triste (56% ), sen tim en tos de in se­ a v o z da sua fa lecid a m ã e acon selh a n d o -a a d ivorciar-se. E sse c o n se ­
gurança (50% ), e a g ressiv id a d e (44% ). lho era bastante estran h o, porq ue a m ãe, tanto quanto sup un ha, nu nca
lhe diria em vid a tal co isa . O facto d e a fa lecid a m ãe lh e dar um
co n selh o d e sses co n stitu ía para ela um a prova d e qu e o s seu s p rob le­
Identidade das vozes m as con ju g a is ju stifica v a m m esm o o d ivórcio.
U m a razão m a is co m p lica d a , m as n ão m en os im portante, para se
A m aior parte das v e z e s a v o z não é sim plesm ente um a voz. A s perguntar p ela id en tid ad e da v o z é relacion ar o con teú d o d aq u ilo que
v o zes p od em ter um a id en tid ad e. O s o u vid ores p od em ou vir v o z e s a v o z d iz co m a p e sso a -v o z qu e o d iz. Isto é n ecessário para se ter
co m um a id en tidade con creta e está v el. P od em referir, por exem p lo: um a id eia m ais clara da relação entre a v o z e a história b io g rá fica de
“E u oiço cinco vozes, três m asculinas e duas fe m in in a s”. A s d iferen ­ quem a o u v e. E é n e cessá r io tam bém porque um certo n ú m ero de
ças entre essa s v o z e s situ am -se: n o v o lu m e, no tom em que falam , n o ouvidores de v o z e s d isso cia o con teú d o em relação à p esso a ou m od ifica
seu gén ero, no seu co n teú d o ou num a “id entida de” está v el, co m o seja a identidade da p e sso a -v o z - e, por isso , não co m p reen d e p or que,
“o m eu p a i" , “o m eu a filh a d o ”, “o vio la dor”; no fa cto de terem um a nem co m o , a v o z se rela cion a co m a sua história b iográfica.
iden tidade cultural carregada d e sig n ifica d o , co m o “D e u s”, “D ia b o ”,
“K ing-K ong”; ou a iden tidade dum a figura pública co m o “Jim m y
H en d rix”, “K a rl M a rx”, “L in da de M o l” - um a co n h ecid a ap resen ­ A interpretação
tadora da T V h olan d esa. O utras v o z e s têm um a identidade m etafórica,
com o seja a “ voz c o n fid en cia l" , a “voz desesp era d a ” , etc. 80% d o s O s o u vid ores d e v o z e s exp erim en tam -n as c o m o n ão-E u e na sua
que responderam ou viam v o z e s co m um a identidade concreta e está ­ m aioria atribuem à v o z um a id en tid ad e está v el, um a id en tid ad e igu a l­
vel; 23% ou v ia m v o z e s co m um a iden tidade in stável. E stas v o z e s m en te não-E u. P or isso , n ão é de estranhar qu e ten tem d escob rir um a
in stáveis p od iam tom ar a iden tidade de um a v izin h a, de um p a ssageiro razão ou um a interpretação q u e ex p liq u e essa exp eriên cia tão peculiar.
do co m b o io , de um esp írito , etc., m as não ob ed ecia m a nenh um pa­ O s o u vid ores d e v o z e s testam , m uitas v e z e s, a realidade da su a e x ­
drão d efin id o. p eriên cia e, por isso , c e d o d escob rem qu e as v o zes n ão se situ am na
Q uando a v o z tem u m a id en tid ad e concreta e está v el p o d e anu nciá- realidade externa im ed iata. V ários ou v id o res d e v o z e s referiram que,
-la ao ou vid or (23% ) ou , en tão, é o ou vid or que n ela recon h ece um a a p rin cíp io, olh a v am e m vo lta para ver d e on d e vin h am as v o z e s, m as
p e sso a esp e c ífic a (68% ). N o tá v e l é o fa cto de 48% terem referid o q u e, depressa aban don avam e s s e com p ortam en to porq ue v erifica v a m que
p elo m en os, um a das v o z e s tinha a iden tidade dum a figura parental n in gu ém , no m u n d o exterior, tinha falad o para e les. O utros procura­
(p ositiva ou n egativa). vam um a e x p lic a ç ã o n o s p siqu iatras ou n os p sic ó lo g o s, m as não

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obtin ham qualquer resp osta que tiv esse algo q u e ver co m a sua e x ­ em si m as na m aneira d e lidar co m ela s. E n con trám os não p acien tes
periên cia. que ou viam v o z e s e qu e reuniam as m esm as características diagn ósticas
O s o u v id o res de v o z e s ten dem ainda a ler tudo o q u e en contram , que o s p acien tes. A ssim , a p sico p a to lo g ia p o d e n ão ser a co n seq u ên cia
à procura d e um a ex p lica çã o p la u sív el e , ao fa z ê -lo , en contram e x p li­ n em a o rigem da ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s m as, an tes, a c o n ­
ca çõ es em teorias relig io sa s, p a ra p sico ló g ica s e m eta físic a s, teorias seq u ên cia do e stilo d e lidar co m ela s. In icia lm en te, p en sá v am o s que
essa s q u e estã o relacion ad as bastante d e perto co m a sua ex p eriên cia o s p acien tes p od eriam aprender co m os n ão p a cien tes estratégias m ais
(ver C apítu lo 7). E les adoptam essa s teorias porque é m elhor com p reen ­ adequadas de lidar c o m as v o z e s e reso lver, d e sse m od o, o s seu s
der algu m a c o isa acerca da exp eriên cia do que ficar com p letam en te
p rob lem as co m ela s. M as esta ideia n ão resu ltou porque os co n teú d os
à m ercê d ela. O s ou v id o res de v o z e s p od em , por isso , agarrar-se co m
unhas e d en tes à teoria q u e adoptaram . P rocuram os recolh er inform a­ variavam dos n ão p acien tes para o s p a cien tes e rela cion a v am -se com
ç õ e s sob re a interpretação da exp eriên cia porque essa interpretação situ a çõ es de vid a na in fân cia e co m as co n seq u ê n cia s d os traum as
escla rece um a parte d o relacion am en to p esso a l co m a v o z . Indica, em rela cion a d o s co m a irrupção das v o z e s. A s d iferen ça s quanto ao c o n ­
esp e cia l, a estrutura d e p od er entre a p e sso a e as v o z e s. S e a p esso a teú d o e quanto às ex p eriên cia s d e v id a to m a m co m p reen sív eis as
se sen te vitim iza d a p elas v o z e s, as v o z e s arrebatarão tod o o poder; se d iferen ças n o e stilo d e lidar co m as v o z e s , m as tam b ém im p ed em de
a p e sso a se sen te apoiada p elas v o z e s, estará en tão apoiada tam bém reso lv er os prob lem as q u e a p esso a tem co m ela s recorrendo apenas
na sua vid a d o dia-a-d ia. A estrutura de pod er in d ica ainda se a p esso a à aprend izagem , co m não p acien tes, d e e stilo s d e en ten d im en to co m
dom in a as v o z e s, se estas lhe dão b on s co n selh o s ou se, p e lo contrário, as v o z e s.
é v itim iza d a por ela s. A ssim , so m o s forçad os a con clu ir q u e o estilo d e lidar co m as
P orém , quando um a p e sso a quer com p reen d er as v o z e s e o seu v o z e s se relacion a co m o con teú d o d o q u e as v o z e s d izem à p e sso a
sig n ifica d o b io g rá fico , a interpretação é m en os im portante d o que o e co m as ex p eriên cia s d e vid a qu e ela tev e.
con teú d o ou as p e sso a s qu e elas representam . A interpretação pod e até N esta E ntrevista, in d agam os d e um certo n ú m ero d e e stilo s d ife ­
m ascarar as p e sso a s representadas p elas v o z e s, por e x e m p lo se c o n ­ rentes que os ou v id o res d e v o z e s adoptam para se en ten d er co m elas.
ceb e as v o z e s co m o d e u ses to d o -p o d ero so s, em lugar d e n elas reco ­ Parte d os quais n os fo i revelad a p elo s próp rios ou v id o res d e v o z e s na
n h ecer o s p ais. N e ste sen tid o, é co m p reen sív el q u e a P siquiatria tra­ resp osta ao n o sso prim eiro Q u estion ário (ver C ap ítu lo 2 ), en qu an to
d icion al ten ha d ificu ld a d e em aceitar as interpretações, rejeitando-as q u e outra parte fo i extraída da literatura, esp e cia lm en te de um artigo
co m o p erturbações d o “teste da realidade”. P orém , ao proceder desta de F allo o n e T alb ot (1 9 8 1 ) - que d escrev e o s e stilo s d e en ten d im en to
form a, a P siquiatria tradicional ren ega tam bém o seu in teresse p elo
c o m a s v o z e s s e g u id o s p o r p a c ie n t e s d ia g n o s t ic a d o s c o m o
con teú d o, o q u e con stitu i um a d esv a n tag em irreparável para a co m ­
preensão das v o z e s na sua relação co m os p rob lem as da p essoa. esq u izo frén ico s. O principal p rop ósito é esta b elecer se um a p e sso a se
com porta diante das v o z e s co m o sua v ítim a ou co m o seu senhor.
A principal d iferen ça entre p a cien tes e n ão p acien tes é q u e o s não
Lidar com as vozes p a cien tes se com p ortam perante as v o z e s c o m o algu ém q u e escu ta
outra p e sso a m as d ecid e por si o q u e h á -d e fazer, en qu an to qu e os
In teressám o-n os tam bém p elas estratégias que o ou v id o r de v o z e s p a cien tes são m u ito m ais in flu en cia d o s p ela s v o z e s q u e o s am eaçam
adopta para lidar co m ela s, já que está v a m o s c o n v e n c id o s de que a e, por isso , são m ais vítim a s d elas d o qu e seu s com p an h eiros ou
d iferen ça entre p a cien tes e não p acien tes resid e não na escu ta de v o zes sen h ores.

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Conclusão
D urante a E ntrevista é im portante guardarm o-nos de intervir, ainda
qu e a resp osta d o ou vid or de v o z e s p o ssa despertar algu m as id eias ou
r eflex õ es. É d ifícil ign orá-las, m as, se reagirm os no m o m en to em que
a resp osta estim u la a n o ssa m en te, p od erem o s confun dir o ou vid or de
v o z e s e interferir no p ro cesso da E n trevista. E preciso ter em atenção
q u e m uitas outras resp ostas n o s pod eriam levar noutras tantas direc-
ç õ e s - o qu e acabaria por con fu n d ir-n os tam bém .
C on d u zim os toda a E ntrevista d e um a form a sistem ática, interfe­
rindo o m en os p o ssív e l. S eg u id a m en te, fa zem o s um resu m o de cada
um dos item s m en cio n a d o s. S ó a partir d o resu m o final de toda a 12
E n trevista se torna p o ssív e l fazer um a an á lise sistem ática d os p rob le­
m as em cau sa. D isc u tim o s e s s e resu m o fin al co m toda a eq uipa CONSIDERAÇÕES FINAIS
m u ltifu n cion al, debaten do os co n teú d o s, as m etáforas e as p o ssib ili­
M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r
d ad es terapêuticas.
“Embora muitas vezes ignoradas pela literatura
psicanalítica e psicoterapêutica, existem outras tradi­
ções de escola nas quais se dá uma cuidada atenção
a noções afins da empatia como vias de avaliar e
conhecer a vida interior de outra pessoa. Desde os
inícios dos anos 20, a Psicologia Social e a Sociologia
vêm desenvolvendo essas ideias, estudando o seu lugar
nas relações inter-humanas.”
(Stanley W. Jackson, 1992,
American Journal of Psychiatry)

N a n o ssa Introdução (C ap ítu lo 1) ex p u sem o s o s o b je ctiv o s qu e


esp erávam os alcan çar co m este livro. C onvirá en tão passar aqui em
revista o contrib uto d os n o sso s colab orad ores para qu e fo sse m atin ­
g id o s o s o b jectivo s p rop o stos - qu e eram:
1. D ar a p o ssib ilid a d e às p e sso a s qu e o u v em v o z e s d e relacion ar
a sua própria ex p eriên cia co m a ex p eriên cia d os outros;
2. D em onstrar qu e o verd ad eiro prob lem a não reside tanto na escu ta
de v o z e s m as na in cap acid ad e d e lidar co m a exp eriên cia co r­
respondente;

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3. M ostrar a gran d e varied ad e d e exp eriên cia s e suas o rigen s e as rão um padrão d e vid a está v el em qu e o s m o m en to s p iores são c o m ­
m ú ltip las ab ord agen s que se p o d e tentar para lidar c o m elas; p en sad os p e lo s p eríod os m elh ores.
4. P ôr à d isp o siçã o d o s terapeutas e dos fam iliares d o s ou v id o res T o d o s o s q u e aprenderam a lidar co m as su as v o z e s acabaram por
d e v o z e s toda a in form ação que o s ajude a e le s e ao s próprios descob rir a im p ortân cia d e com u n icar co m o s outros a resp eito das
o u vid ores a lidar m elhor co m as v o zes. suas ex p eriên cia s. A co m u n ica çã o é um a form a d e derrubar e transpor
as barreiras do iso la m en to e é essen c ia l para o p r o c esso d e integração
das v o z e s na v id a q u otidiana. N o C apítu lo 5 fiz e m o s referên cia às
Partilha de experiências vantagen s qu e se p od em extrair d esta co m u n ica çã o - e qu e p o d em o s
resum ir c o m o segu e:
P ed im o s a alg u n s o u v id o res d e v o z e s que n os relatassem as e x p e ­ - A o falar e escrev er acerca das v o z e s, c o m e ç a -se a co n h ecer os
riên cias qu e viveram . A s suas histórias fa zem parte d os C ap ítu los 6 seu s jo g o s e truques, m as tam b ém os seu s a sp ecto s m ais p o si­
e 8. tiv o s. A p ren d e-se a id en tificar o s d esen ca d ea n tes e as situ a çõ es
A s d e scriçõ es p e sso a is que aparecem n o C apítulo 6 têm m u itos em q u e as v o z e s estão m ais ou m en os activ as ou p roem in en tes.
p on tos em co m u m . T rata-se das exp eriên cia s de p e sso a s qu e nu nca se - O m ed o p o d e levar ao evitam en to e este ao iso la m en to e à d e­
tornaram p a cien tes p siq u iátricos e que fu n cion am ad eq u ad am en te, na p en d ên cia. A co m u n ica çã o esb ate a an sied a d e e quebra estes
círcu lo s v ic io s o s d isru p tivos.
vida do dia-a-dia, co m o esp osas e donas de casa, professores, terapeutas,
- A troca d e o p in iõ es e d e in form ação tanto p o d e trazer id eias ú teis
etc. S ão p e sso a s co m um a vid a so cia l activa: tod os co n seg u iram e s ­
co m o p reju d iciais. E m term os gerais, as su g e stõ e s m ais p ositivas
tab elecer co n tacto c o m p e sso a s que com preenderam e deram valor às
são as q u e aum en tam a au ton om ia d o o u v id o r d e v o zes: por
suas ex p eriên cia s - e iss o d eu -lh es a capacid ad e n ecessária para evitar e x em p lo , a au to m ed icação ou a estruturação do con tacto co m as
os p erigos d o iso la m en to . E ssa s p e sso a s descobriram m aneiras de v o z e s (ver C ap ítu lo 5 ). A s atitudes para co m as v o z e s, d o tipo
integrar as v o z e s na su a vid a e revelam um a grande ten d ên cia para da cren ça na p o sse ssã o , qu e ten d em a agravar a im p otên cia do
segu ir um a p ersp ectiv a p ara p sico ló g ica ou espirita. ou vid or perante ela s, n ão têm grande h ip ó tese de dar b on s resu l­
In felizm en te, n em tod a a gen te tem a sorte de ter ex p eriên cia s tão tados.
p o sitiv a s. M u itos o u v id o res de v o z e s passam por grandes d ificu ld a d es - Falar da m ed ica çã o p o d e ser m u ito ú til, d esd e q u e a d iscu ssã o
e têm d e recorrer a tratam ento psiqu iátrico. H istórias d estes ou v id o res se b a seie em co n c lu sõ e s eq uilib radas, extraíd as da ex p eriên cia e
são relatadas n o C ap ítu lo 8. E ssas histórias traçam , por v e z e s, um não fund ad as em m eras c o n v ic ç õ e s ou p reco n ceito s d e parte a
quadro d e extrem o iso la m en to durante lo n g o s p eríod os d e tem p o. parte.
A lgu n s d e sses o u v id o res de v o z e s con segu iram , aqui e ali, d escob rir - A a ceita çã o d o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s to m a -se c o n sid e ­
um a saída para este iso la m en to , m as só d ep ois de terem tido a sorte rav elm en te m ais fá cil para tod os se se co n seg u ir reunir (em
bastante para encontrar p e sso a s que o s aceitaram a e le s e às v o zes; C o n g resso , por ex em p lo ) um b om nú m ero d e p e sso a s fam iliari­
isso aju d ou -os a tom ar as rédeas das suas p ercep ções a p o u co e p ou co. zadas co m a ex p eriên cia . Isso p od e ser sim u ltan eam en te m u ito
É b om escla recer q u e e ste desiderato d ev e ser c o n seg u id o antes de o s estim u lan te e p acificad or, contrib uin do tam bém para aum entar a
ou v id o res d e v o z e s p od erem d e se n v o lv er ad eq u ad am en te as suas aceita çã o da ex p eriên cia p elo s ou vid ores e seu s fam iliares. P od e
próprias id en tid ad es, c o m a ajuda do trabalho e de rela çõ es p e sso a is ser ainda m u ito gratifican te d esen v o lv er co n tacto s in d ivid u ais
que acolh am as v o z e s. D e sse m od o, o s o u vid ores d e v o z e s en con tra­ estreitos entre o u vid ores d e v o zes; a igu ald ad e d e status p od e

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p rop orcionar a exp eriên cia de se ser ca p a z de ajudar o s outros, grupos, to m a -se ev id en te q u e, ao aprender a lidar co m as v o z e s, o
em lugar d e se ficar preso ao papel d e v ítim a (ver C apítulo 11). m ais im portante é o d e se n v o lv im en to da p erson alid ad e do ouvidor.
- A partilha da exp eriên cia d e ou vir v o z e s fa cilita a integração e Q uando se d iz “nã o ” às v o z e s, d iz -se “nã o ” a n ós m esm o s, isto é, aos
a cam aradagem . n o sso s d ese jo s, às n o ssa s e m o ç õ e s, ao n o sso p assad o, a tudo aqu ilo
- C om u n icar sobre as v o z e s que se o u v e já sig n ifica aceitar-se a que realm ente a co n teceu - a tu do aq u ilo qu e n o s am eaça e q u e n os
si m esm o . C o m o d isse um a ouvidora: fa z sentir im p oten tes. Q u and o se d iz “sim ”, é n ecessário aceitar um a
série de realidad es d esagrad áveis, interiores e exteriores, m as é essa
“Não é possível varrer para debaixo do tapete algo que existe dentro de atitude que n os p erm ite con tin u ar a crescer.
nós mesmos e se manifesta com tamanha intensidade.”

Diversidade de origens
O problema de lidar com as vozes
D ep o is de ou vir contar as ex p eriên cia s d os ou v id o res d e v o z e s e
C o m o v im o s, a escu ta de v o z e s p o d e ser um a ex p eriên cia extre­ tom ar co n ta cto co m m u itas d as teo ria s e x iste n te s a resp eito do
m am en te p o sitiv a e gratifican te. V erificá m o s q u e ao lo n g o da H istória fen ó m en o , é -se lev ad o a co n clu ir q u e as v o z e s têm um a grande d iver­
foram surgind o grandes figuras da H u m an id ad e, h om en s e m ulh eres, sid ade de origen s.
qu e eram g u iad os p elas suas v ozes: S ócrates, M o isés, Jesu s, M aom é, Já referim os o s dad os h istó rico s qu e n o s revelam grand es h om en s
E ck h art, T eresa d ’Á v ila , Joana d ’A rc, G io rd an o B ru n o, G ich tel, e grandes m ulheres qu e foram g u ia d o s p elas v o z e s q u e o u viam . Entre
S w ed en b o rg , F ech ner, Jung, etc. (ver C ap ítu los 4 e 7 ). U m m ín im o eles con tam -se líd eres relig io so s, cien tista s e p o lític o s. S a b em o s tam ­
d e co n h ecim en to s h istó rico s tom aria a ex p eriên cia de escu ta de v o z e s bém que há m arinh eiros qu e co m eça m a ou vir v o z e s quando perm a­
m u ito m en os estranha e ta lv ez, qu em sab e, m a is a ceite pela so cied a d e n ecem m uito tem p o so zin h o s no m ar. A A m n istia Internacional refere
em geral. que as v ítim as d e tortura o u v em v o z e s freq u en tem en te, em esp ecia l
V erificá m os tam bém q u e há p esso a s q u e p resentem ente o u v em durante e d ep o is d o ord álio. S a b em o s, p ela literatura m ais relevan te
v o z e s e qu e se m antêm so cia lm en te adequadas, fu n cion an d o em p len o e por algu n s ex em p lo s co n tid o s n este livro (ver C ap ítu lo 9 ), qu e tod os
(ver C ap ítu los 2 e 6 ). S ã o p esso a s q u e aprenderam a en ten d er-se com o s tipos de traum as infan tis e das idades su b seq u en tes p o d em dar
as suas v o z e s e a integrá-las na sua vid a - p e sso a s essa s que “não são origem à escu ta d e v o z e s. A lg u m a s p e sso a s têm ex p eriên cia s telep á ­
santas n em p sicó tica s”, co m o d isse M yrtle H eery (ver C apítu lo 7, ticas q u e in clu em a escu ta d e v o z e s, en qu an to outras a sso cia m o
S e cçã o E xperiências de vozes interiores). fen ó m en o das v o z e s à m ed iu n id ad e ou à p resen ça d e um esp írito G u ia
A n o ssa c o n v icçã o in icial de que as v o z e s n ão são em si o verda­ (ver C apítulo 6 ). S a b em o s qu e as v o z e s p od em aparecer p ela prim eira
d eiro prob lem a saiu reforçada d os resu ltad os d o n o sso Inquérito a 173 v e z na in fân cia e persistir na vid a adulta. S a b em o s tam bém qu e há
o u v id o res d e v o z e s (v er C apítu lo 2); 58 d essa s p esso a s p arecem ter m uitos p acien tes q u e o u v em v o z e s q u e são seg u id o s n os cu id ad os
c o n seg u id o descob rir um a m aneira de se en tend er co m as suas v o z e s. p siq u iátricos.
O a sp ecto com u m m ais sa lien te é que todas con segu iram esta b elecer P assarem os agora em revista as d iferen ças m ais sig n ifica tiv a s entre
um a relação co m as v o z e s em que am bas as partes fica m em pé de as diversas ex p lic a ç õ e s para o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s, quer de
igu ald ad e. E m contrapartida, quem não era ca p az de se entender com dentro quer de fora d o cam p o da P siq uiatria. A s m ais ev id en tes são
as suas v o z e s ten dia a sen tir-se inferior a ela s. C om parando o s d ois as diferen ças entre a tese seg u n d o a qual as v o z e s p od em ser o m estre

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qu e orienta um curriculum in terior (ver C apítu lo 7 ) e a tese seg u n d o 2. U m a seg u n d a p o ssib ilid a d e é a exp eriên cia ind icar um id eal a
a qual essa s m esm a s v o z e s sã o sin tom as d e um a d o en ça (ver C ap í­ seguir, u m sen tid o d ireccion al qu e p od e ser p o sto em prática.
tu lo 10). 3. U m terceiro resu ltad o p o ssív e l é dar-se um a in tegração m ais
N o C ap ítu lo 7, M yrtle H eery d eu -n o s con ta d o seu estu d o d e 30 elev a d a da p erson alid ad e qu e transform a p erm an en tem en te a
ca so s d e p e sso a s co m ex p e riê n cia de v o z e s interiores. E sse estu d o vida do in d iv íd u o .
lev o u -a a d ivid ir e s s e grupo d e 30 ca so s em 3 categorias principais:
1. A q u eles cujas v o z e s eram interpretadas co m o partes fragm en ­ S e a sso c ia r m o s o s a ch a d o s d e H eery às te se s d e A s s a g io li,
tárias do Eu; a p erceb er-n o s-em o s d e q u e a segu n d a e a terceira C ategorias d e H eery
2. A q u eles que referiam q u e as suas ex p eriên cia s de v o z e s lh es sugerem um p r o c esso d e ed u cação interior con tín u a, qu e tem as v o z e s
p rop orcionavam orien tação através de um d iá lo g o criativo; por m estre, en q u an to q u e a prim eira C ategoria in clu i as v o z e s que
3. A q u eles que sen tiam q u e as suas exp eriên cia s d e v o z e s abriam su gerem um refle x o d as co isa s q u e são p erceb id as co m o n eg a tiv a s.
can ais em d irecção e para lá d os n ív e is m ais elev a d o s d o Eu.
Q uadros p siq u iá trico s d e referência
E sta ca teg o riza çã o p o d e ap licar-se aos autores d os C ontributos
P esso a is do C apítulo 6. P or ex em p lo , o autor do 7.° C ontributo pod e P ela natureza das ab ord agen s em cau sa, as ca teg o riza çõ es traçadas
ser con sid erad o um rep resen tante da C ategoria 1, já que as v o z e s
por H eery e A ssa g io li sã o m u ito d iferen tes das qu e são geralm en te
tinham origem num a parte fragm entária d e sse jo v em . E le d e sc rev e as
segu id as na P siq uiatria. E n qu anto n o s d o is p rim eiros c a so s o p acien te
v o z e s co m o se an d assem à procura de a lg o sign ifican te; co m toda a
p rob abilid ade, e le próprio estaria à procura do seu e stilo d e vid a encontra ajuda em resu ltad o d e um p ro cesso d e ap ren d izagem , na
p esso a l, da sua própria id en tid ad e. O s autores do l . ° e 3.° C ontributos P siquiatria a ajuda ten d e a ser dada sob a form a d e tratam ento co m
p od em con sid erar-se e x e m p lo s da C ategoria 2 , na m ed id a em q u e as n e u r o lé p tic o s , e s p e c ia lm e n te q u a n d o é fe ito o d ia g n ó s tic o d e
v o z e s qu e ou viam lh es d avam orientação. P or sua v e z , o s autores do esq u izo fren ia - o q u e n ão estim u la o crescim en to da p esso a .
2.° e 4.° C ontributos p o d em con sid erar-se ex em p lo s da C ategoria 3, E m P siquiatria, as ca teg o riza çõ es fa zem -se em fu n ção d o s tip os de
na qual se abrem can ais para o s n ív e is superiores do Eu. P or outro d o en ça que se p resu m e resp o n sá v eis p ela escu ta d e v o z e s. A s c a te g o ­
lad o, a m aior parte d o s autores dos C ontributos do C apítu lo 8 repre­ rias prin cipais são:
senta a C ategoria 1 e tem bastante m ais prop en são para procurar ajuda -E s q u iz o fr e n ia (ver C ap ítu los 9 e 11).
psiqu iátrica do que o s o u v id o res que integram as outras duas C ate­ -P e r tu r b a ç õ e s d isso cia tiv a s (v er C ap ítu los 5, 9 e 11).
gorias. - P sic o se m a n ía co -d ep ressiva .
H eery relacion a esta s três C ategorias n ão co m a p sico p a to lo g ia - P sic o se sem outra esp e cifica çã o .
m as com o despertar esp iritu al, b a sea n d o -se na obra de A ssa g io li -T r a n sto r n o p sico rg â n ico (d rogas, ep ilep sia , etc.).
- qu e d efin iu três tip os de reacção ao despertar espiritual, q u e são
p aralelos às três C ategorias de exp eriên cia de v o z e s interiores d e que A co n seq u ê n cia d esta ca tegorização p siqu iátrica é a p e sso a qu e
fala H eery. o u v e v o z e s ser tratada co m m ed ica m en to s (ver C ap ítu lo 10), em
A ssa g io li refere que: esp ecia l nos c a so s d e esq u izo fren ia e de p sic o se m a n ía co -d ep ressiva ,
1. U m d os p o ssív e is resu ltad os de um a exp eriên cia extraordinária enquanto a perturbação d isso cia tiv a se trata co m p sicoterap ia (p o ssi­
é ela n ão con d u zir a um n ív el m ais elev a d o de organ ização. velm en te com b in ad a co m m ed icam en tos). T o d o s os ou vid ores d e v o z e s
N este ca so , a ex p eriên cia é, m uitas v e z e s, penosa. que d escreveram as su as ex p eriên cia s n o C apítu lo 8 tinham o d ia g n ó s-

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tico d e esq u izo fren ia . N o entanto, há tam bém im portantes in d ício s da E stes sã o algu n s d os m ais freq u en tes esta d o s em o cio n a is ex p eri­
ex istên cia d e um a relação entre traum as p reco ces e escu ta de v o z e s m en tad os na p sic o se . E m P siquiatria C lín ica interpreta-se a escu ta de
(8.° e 13.° C ontributos); on d e essa relação está p resen te, as p esso a s v o z e s e o “em b otam en to d os a fecto s” c o m o sin tom as d e esq u izofren ia,
pod erão ser igu a lm en te categorizad as co m o tendo um a perturbação sem o s relacion ar co m a história d e vid a da p esso a * . A relação sugerida
d isso cia tiv a . por D a v ey entre a h istória d e vid a e as rea cçõ es em o cio n a is na vid a
E m n o s s a o p in iã o , a c o n e x ã o en tre a e s c u ta d e v o z e s e a adulta é precisam en te o tip o d e q u estõ es v a lorizad as p elas abord agens
esq u izofren ia deverá sem pre estab elecer-se com grande cuidado. M uitas p sico d in â m ica s. D a v ey p ro sseg u e d izen d o q u e e sse s esta d o s e m o c io ­
v e z e s n ão se p en sa na d istin çã o entre esq u izo fren ia e perturbação nais são ev o ca d o s e recriad os na idade adulta em situ a çõ es qu e c o m ­
d isso cia tiv a , n em na p o ssib ilid a d e da sua co ex istên cia , o que faz co m b in am m ed o e sen tim en tos d e desam p aro. A p ersp ectiva da P siquiatria
qu e se p o ssa com eter m u itos erros (8.° e 13.° C ontrib utos). Q ualquer S o cia l cen tra-se p recisam en te n estes a sp ecto s, procurando d escrever
d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia deverá p o is incluir sem p re m eca n ism o s o papel d esem p en h ad o p elas relações e p ela s situ a çõ es am eaçad oras,
d e id en tificação de fen ó m en o s d isso cia tiv o s. U m a seg u n d a razão para q u e p od em ser sim b o liza d a s através d e v o z e s. Q u and o as em o ç õ e s
ter e sse s cu id ad os é a p o ssív e l com b in ação de sin tom as esq u izo frén ico s ev o ca d a s são su ficien tem en te in ten sas, fa zem d esen cad ear um a re­
co m o tip o d e ex p eriên cia s extraordinárias d escritas por A ssa g io li. g ressã o p sicó tica .
O n o sso co n h ecim en to d este terreno é m uito lim itad o. T a lv ez p o ssa ­
m os vir a saber m ais algu m a c o isa se a P siquiatria, a P arap sicologia
e a P s ic o lo g ia T ran sp essoal (ver C apítu lo 7) puderem com partilhar Q uadros de referência não psiqu iátricos
m ais liv rem en te o s resp ectiv o s esfo rço s de in v estig a çã o e seu s resu l­
tados. N a sua m aioria, as p e sso a s q u e o u v em v o z e s - m esm o aqu elas que
A P siq uiatria n em sem pre co n fin a o fen ó m en o da escu ta de v o zes se en ten d em b em co m as su as ex p eriên cia s - con tin u am co n v en cid a s
ao d ia g n ó stico d e esq u izofren ia; há um certo nú m ero d e outros ca so s d e q u e as v o z e s p rovêm do exterior d e si m esm a s. Por isso , tom ám os
de referên cia q u e foram d escritos no C apítu lo 9. C ada um d eles re­ em d evid a con sid era çã o o s quadros d e referên cia qu e d irectam en te se
presenta um a faceta de interpretação d iferente, q u e, por sua v e z , se relacion am co m essa c o n v ic ç ã o e qu e foram d escritos n o C ap ítu lo 7
a sso cia a um a sen sib ilid a d e particular na abord agem da terapia. E de - cu jo s autores interpretam as v o z e s c o m o con stitu in d o a p rova de
notar, ainda, q u e o s p acien tes não se con form am co m estas d iv isõ es um a co m u n ica çã o co m en ergias ex teriores ao n o sso m un do da percep -
sistem áticas: um ú n ico ca so p od e reunir em si to d o s o s asp ectos ç ã o sensorial.
teóricos. D o is d e sses autores d escrev em as su as ex p eriên cia s d e v o z e s de
B rian D a v e y ilustra isso m esm o na sua S e cçã o sobre P sicose, no
um pon to de vista m eta físico , asso cia n d o as v o z e s a espíritos dos
C apítu lo 9, o n d e se refere à sua interpretação d o s ruídos de fundo
co m o sen d o v o z e s qu e falam d ele. E sta ideia p o d e integrar-se n os
m ortos. O utros adop tam um a p ersp ectiv a esp iritu al, qu e atribui às
v o z e s um a natureza m ística ou um a rela çã o co m aq u ilo a q u e a
d o m ín io s da P sic o lo g ia C ogn itiva. D a v ey d iz, ainda, q u e, quando um a
criança é m altratada ou em o cio n a lm en te ignorada p e lo superior poder psicoterap ia espiritu al ch am a o E u m ais elevado ou , ainda, um a rela­
d os ad u ltos, p o d e vir a d ese n v o lv er um a e sp é c ie de çã o co m o n o sso inconsciente colectivo.

“distanciamento ou paralisia emocional extremos, uma espécie de zom-


bificação. Os psiquiatras chamam-lhe ‘embotamento dos afectos’, quando * Sobre esta matéria poderá consultar-se o notável trabalho de A. C. D. Monteiro
esta perda da resposta emocional é revivida na idade adulta."
(1983), The Concepts of Understanding and the Schizophrenia Problem (Tese de
doutoramento apresentada à Universidade de Sheffield).

382 383
N este livro reu nim os um a série d e lin has de p en sam en to d iferen ­ D erru ba r barreiras
tes, num esfo rço por dar sen tid o ao fen ó m en o da escu ta de v o zes.
D a d a a gran d e v a ried a d e d e e x p e r iê n c ia s p e ss o a is e d e teo ria s O s terapeutas, quando procuram ajudar as p esso a s qu e o u v em v o z e s,
ex p lica tiv a s, há um certo nú m ero de q u estõ es pertinentes que nos d efron tam -se co m algu m as d ificu ld a d es im portantes. Entre a e x p e ­
d e v e m o s co lo ca r quando n os d eparam os c o m o u vid ores de v o z e s em riên cia sub jectiva d os ou v id o res d e v o z e s e a abordagem racion alizan te
de m uitas form as d e terapia ex iste um a d istân cia co n sid erá vel q u e é
b u sca d e ap oio e ajuda:
n ecessá rio transpor. N e ste co n tex to , ta lv ez só n os seja p o ssív e l tom ar
- A té qu e p on to as v o z e s in d icam um a sen sitivid ad e às em o çõ es c o n sciên cia das barreiras ex isten te s entre as co n o ta çõ es o b jectiva s d o
das outras p e sso a s ou a determ inadas situ a çõ es q u e se passam terapeuta e a ex p eriên cia su b jectiv a do p acien te. E m n o sso en tend er,
algu res (por ex em p lo , durante a G uerra do G o lfo )? terá de tom ar-se cu id a d o sam en te em lin h a d e con ta o seguinte:
- A té q u e pon to as v o z e s se rela cion a m co m um determ inado
estád io do crescim en to espiritu al, m a n ifesto em term os de e x p e ­ Barreira 1: D iferen ças na percep ção
riên cias extraordinárias? O facto d e, n o co n tex to terap êu tico, haver duas p esso a s q u e falam
- A té q u e pon to as v o z e s são o r eflex o de um a iden tidade instável, sobre v o z e s não sig n ific a q u e ex ista um a igu ald ad e d e p o siç õ e s entre
por e fe ito de um traum a ou d e um d e se n v o lv im en to in com p leto? as partes. N o s ca so s ex trem o s, o terapeuta p od e in clin ar-se para e n ­
- A té qu e pon to as v o z e s reflectem traum as p assad os ou recentes? carar as exp eriên cias d o s o u v id o res d e v o z e s co m o a lg o n ão ex isten te
- A té qu e pon to as v o z e s são o re fle x o de prob lem as em o cio n a is ou para rem etê-las para o rein o da fantasia. S e o ou vid or d e v o z e s se
correntes? apercebe d essa in clin a çã o d o terapeuta poderá ficar co m m ed o d e falar
- A té qu e p on to as v o z e s reflectem rela çõ es correntes ou circu n s­ das suas ex p eriên cia s. N e ste s c a so s, ficará abruptam ente interrom pida
tâncias da vid a d esfav o rá v eis? toda a com u n ica çã o acerca d as v o zes.
- A té qu e p on to as v o z e s reflectem um a interferência co m en ergias
d e natureza m etafísica? Barreira 2: D iferen ças conceptuais
Para com p reen d er o sig n ific a d o das v o z e s , o s terap eutas e o s
- A té qu e p on to as v o z e s são o re fle x o de um a d o en ça , físic a ou ou v id o res de v o z e s serv em -se d e quadros d e referên cia con cep tu al
p sico ló g ica ? d iferen tes, que m uitas v e z e s se ex clu em m utuam ente. O terapeuta
p od e optar, sim p lesm en te, por esco lh er um d ia g n ó stico c lín ic o e s p e ­
A n tes d e p od erm os resp on der a todas estas q u estõ es, terem os nós c ífic o , enquanto o ou v id o r d e v o z e s as p od e atribuir, por e x em p lo , à
próprios q u e p ossu ir um quadro d e referên cia. T a lv ez a d iferen ça m ais ex istên cia de d em ó n io s. P erante p on tos d e v ista tão d ivergen tes, tor­
sig n ifica tiv a que ex iste entre o s v á rios m o d elo s d isp o n ív eis dentro e n a -se n ecessário um co n sid erá v el esfo rço d e com u n ica çã o da parte do
fora da P siquiatria sejam : terapeuta e do p acien te para se com p reen d erem um ao outro. D e
- D en tro da P siquiatria, o tratam ento parte de um a presunção sobre p o u co servirá tentar im p or a um a p esso a seja qu e ex p lica çã o for; d e v e
a origem das v o z e s. U m a v e z d efin id a essa p resu n ção, p od e-se recon h ecer-se qu e n o v o s quadros d e referên cia pod erão oferecer n o ­
tentar interpretar as v o zes; v o s tipos de e x p lic a ç õ e s (ver C ap ítu lo 9 ) e q u e, seja co m o for, p o d em
- Fora da P siquiatria, o tratam ento tom a co m o p on to de partida a ser procurados p elo p a cien te apesar das p ressões p esso a is do terapeuta.
exp eriên cia su b jectiva da p e sso a q u e o u v e v o z e s. N esta base, Q ualquer quadro d e referên cia tem por fu n ção ordenar o p en sam en to
p a ssa -se a d ese n v o lv er um a ex p lica çã o relacion ada, tanto quanto e ten d e a estim u la r o d e se jo d e procurar um a am p la v a ried a d e
p o ssív e l estreitam en te, co m essa exp eriên cia. de ex p lica çõ es. E m v e z d e se insistir ob stin ad am en te nu m quadro de

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referên cia e sp e c ífic o - q u e além do m ais p od e ser in efica z - p od eria m aneira de lidar co m as p e sso a s e os p rob lem as da vid a quotidiana.
ser m ais van tajoso explorar outras ex p lic a ç õ e s p o ssív e is. E m v e z d isso exp erim en tam a escu ta de v o z e s c o m o um fen ó m en o
iso la d o e co n so m em toda a sua en ergia n essa luta. N o en tanto, seria
Barreira 3: Id eia s diferentes acerca do tratam ento bem m ais p r o v eito so co m eça r por aprender a lidar m elh or co m as
O terapeuta e o ou v id o r de v o z e s p od em ter d ificu ld a d e em c o o ­ p e sso a s e co m o s p rob lem as q u e en contram na vid a diária e, d ep o is,
perar no co n tex to d e u m tratam ento unilateral que se restrin ge à p res­ ver o que as v o z e s têm ainda a dizer.
crição d e n eu ro lép tico s. O ou vid or de v o z e s p od e sen tir-se in co m ­
preend ido e sem resp osta, um a v e z que p ou cas ou n en h u m a das suas
p reocu p ações e ex p eriên cia s foram ob jecto de d iscu ssã o . U m a outra Disponibilizar a informação
p o ssib ilid a d e é a m ed ica çã o prescrita não produzir o s resu ltad os pre­
ten d id os; p o d e, por e x e m p lo , ter d em asia d o s e fe ito s secu n d ário s.
O n o sso quarto o b jectiv o era forn ecer aos terapeutas e às fam ília s
S itu a çõ es d estas p o d em surgir quando as interpretações psiqu iátricas
d os p acien tes toda a in form ação qu e ajude as p e sso a s im p licad as no
são d em asiad o e sp e c ífic a s ou in flex ív e is. In felizm en te, iss o p o d e fazer
co m qu e se preste p o u ca aten ção a outros asp ectos im portantes, co m o p ro cesso de aprender a lidar co m as v o z e s. O elem en to m ais im p or­
a p ercep ção, a m aneira de lidar co m o p roblem a e o fu n cio n a m en to tante n este p r o c esso é m elhorar e organizar as rela çõ es entre as v o z e s,
os ou v id o res de v o z e s e as p e sso a s qu e se d ão co m e le s. P od erem os,
so cia l. en tão, considerar três tip os d e relações:
Barreira 4: P ou ca atenção à história biográfica - a relação entre o ou vid or e as v o zes;
U m a aten ção in su ficien te à história d e vid a, esp e cia lm en te a d e­ - a relação entre as d iversas v o z e s, quando há m ais do qu e um a;
term inado tipo de traum as que p o ssa m ter sid o v iv e n c ia d o s, pod e - as rela çõ es entre o o u vid or d e v o zes e as p e sso a s qu e co m ele
levar a co n ced er u m a e x c e ssiv a im portância ao fen ó m en o de escu ta têm co n tacto diário.
d e v o z e s p rop riam ente dito. D uas razões sub jazem a esta atitude:
- O s d ia g n ó stico s p siq u iátricos b a seia m -se, em grand e m ed id a, P assarem os em revista algu m as in form ações im portantes qu e p o ­
n os fen ó m en o s con statad os no m om en to da o b servação. dem ser particularm ente ú teis para a m elh oria d estas rela çõ es. Irem os
- O s traum as d e in fân cia anteriores aos 6 ou 7 an os d e idade analisar, em esp e c ia l, a a sso cia çã o entre as três fa ses d escritas no
p od em estar co m p leta m en te apagados da m em ória, p elo que o C apítulo 2, as estratégias d e lidar co m as v o z e s d escritas n os C ap í­
in d ivíd u o n ão é cap az d e o s rem em orar esp on tan eam en te. N este tulos 6 e 8 e as prop ostas d e in terven ção d escritas n o C ap ítu lo 10.
ca so , o terapeuta d e v e ajudar cu id ad osam en te a rem em orá-los. A s três fa se s são:
S en d o assim , é m u ito p o ssív e l que o d ia g n ó stico p siq u iátrico se - F a s e 1, ou de Surpresa: o sú b ito despertar das v o zes.
b a seie e x clu siv a m e n te n o s sin tom as do m om en to, sem tom ar em linha O sú b ito despertar das v o z e s é h ab itu alm en te d escrito co m o am ea­
d e con ta n enh um a das ex p eriên cia s traum áticas que p o d em ser res­ çador ou , p e lo m en os, estran ho e gerador d e co n fu sã o.
p o n sáv eis por fen ó m en o s d isso cia tiv o s (ver C apítu lo 9). - F a s e 2, ou d e O rganização: é o p ro cesso d e com u n icar co m e
acerca das v o z e s, d e estruturar o con tacto e d e tentar d iversas estra­
Barreira 5: P ou ca atenção às relações entre as vozes e a vida tégias de en ten d im en to co m ela s.
quotidiana - F ase 3, ou de E stabilização: é o p eríod o durante o qual se ch eg a
A s p esso a s q u e o u v em v o z e s n em sem pre têm c o n sc iê n c ia da a um certo tip o d e eq u ilíb rio e se co n so lid a e s s e eq u ilíb rio, tanto em
estreita relação entre a atitude que têm para co m as v o z e s e a sua relação às v o z e s c o m o em relação à so cied a d e. A s v o z e s adquirem um

386 387
lu gar próprio na v id a da p e sso a , a qu al, co m o se v ê n os ex em p lo s do v o z e s e na rela çã o co m ela s. D urante esta fa se, d e v e prestar-se um a
C ap ítu lo 8, pod e encontrar um pap el so c ia l efe c tiv o . m in u cio sa aten ção a asp ectos com o:
- an á lise d o p o ssív e l sig n ifica d o das v o z e s, ten d o em con ta o
p a ssa d o e o presen te (ver C apítu lo 9);
- an á lise da h istória da vid a (ver C ap ítu lo 9);
F a se de surpresa
- an álise d o sig n ifica d o das v o z e s na vid a d o d ia-a -d ia (ver C ap í­
tu los 9 e 10);
D urante esta fa se, a terapêutica d everá cen trar-se prim ordialm ente
nas técn icas de con trole da an sied ad e (v er C apítu lo 10), em bora a - an á lise da in flu ên cia da atitude d os fam iliares perante as v o z e s
(ver C ap ítu lo 9);
m ed ica çã o tam bém p o ssa ser m uito útil n o esb atim en to da ansiedad e
- an á lise d e in d íc io s d e ten d ên cias p a ra p sico ló g ica s ou para e x p e ­
e da p erp lexid ad e ou co n fu sã o in icia is (v er C apítu lo 10). Im porta
riên cias extraordinárias (ver C apítu lo 7);
porém assinalar q u e qualquer d essa s terap êuticas se d e v e basear na
- an á lise de sin tom as con com ita n tes d e d isso c ia ç ã o ou d e repres­
co m p leta aceitação e v a lo riza çã o da ex p e riê n cia real, ainda que p o s­
são em o cio n a l (ver C ap ítu lo 9 ) ou d e q u aisq u er sin tom as que
sam os qu estionar a ex ten sã o do pod erio das v o z e s. O p asso segu in te
sugiram um d e se n v o lv im en to retardado do E u (ver C apítu lo 7)
será procurar as p o ssív e is m aneiras d e m elhorar o con trole sobre as
ou um a m á d efin içã o das fronteiras entre o E u e o s O utros (ver
v o z e s. Para isso , é im portante que o s terapeutas e outras p esso a s C apítu lo 9).
adquiram um sen tim en to d e seguran ça (v er 12.° e 13.° C ontributos, D ed icá m o s tam b ém m uito do n o sso tem p o a assu n to s com o: as
C ap ítu lo 8), dem on strand o, entre outras co isa s, algu m en vo lv im en to circu n stân cias particulares em qu e as v o z e s sã o escu ta d a s, o qu e ela s
em o cio n a l (ver C ap ítu lo 10) e tom and o d ev id a nota d os a co n tecim en ­ têm para d izer, as q u alid ad es física s da ex p eriên cia , a natureza de
tos da vid a e d os m o m en to s em qu e ocorrem . Para o con seg u ir, p o ­ quaisquer d esen cad ean tes e das p ercep çõ es co n com ita n tes. T od as estas
d erem os recorrer, entre outras, às T é cn ica s d e R eg isto S istem á tico e q u estõ es são con tem p lad as na a p licação das técn ica s d e con cen tração
d e C on cen tração nas V o z e s (ver C ap ítu los 5 e 10). nas v o z e s (ver C ap ítu lo 10).
D urante esta fa se, o con tacto co m outros ou v id o res de v o z e s pode O p a sso seg u in te é tentar apresentar um a série d e p ersp ectivas
trazer um a v a lio sa segurança: rom per a so lid ã o . N a altura d evid a, sobre o fen ó m en o , n o sen tid o d e alargar o s lim ita d o s h orizon tes qu e
ten tar-sè-á introduzir um a certa ordem d e fu nd o na rotina quotidiana, cada um a das partes, terapeutas, o u vid ores d e v o z e s e seu s fam iliares,
d e m aneira a arranjar tem p o para as v o z e s e para as outras co isa s do ten de a im por às outras (ver C ap ítu los 7 e 9).
d ia-a-d ia. N o m eio d e tudo isto, é e ssen c ia l q u e a fa m ília se m antenha F in alm en te, p restar-se-á aten ção ao estatu to so c ia l da p e sso a qu e
com p leta m en te inform ada (v er C apítu los 7 , 9 e 10), um a v e z que os o u v e v o z e s, ao seu grau d e d ep en d ên cia, à n e cessid a d e d e p rov id ên ­
fam iliares têm um im portante papel a d esem p en h ar, no sen tid o de dar cia s so cia is e às oportu n id ad es d isp o n ív eis para d e se n v o lv er e apre­
a p o io em lugar d e crítica. sentar um a iden tid ad e assu m id a de ou vid or d e v o z e s (ver C apítu lo 10).

F a se de organização F ase de estabilização

L o g o qu e a an sied ad e e a p erp lexid ad e in icia is se tenham esbatid o N esta fa se, a in terven ção con sistirá, prim ord ialm en te, em expan dir
claram en te, ou p elo m en os lo g o que ten ham sid o tem porariam ente o co n h ecim en to e d e se n v o lv er a p erson alid ad e, através d e d iversos
con trolad as, to m a -se p o ssív e l con cen trarm o-n os na organ ização das tipos de ajuda p sicoterap êu tica, qu e p od em in clu ir o D iá lo g o entre

388 389
V o z e s, O C am in ho, a P sicoterap ia E spiritu al ou aprender a lidar co m
as e m o ç õ e s. P oderão surgir tam bém im portantes contrib utos por parte
d o s serv iço s d e ap oio so cia l, nas áreas do em p reg o , da ed u cação e da
p rom oção d e um a vid a ind epen dente. M a is um a v e z , o ap oio da fa­
m ília ou d o com p an h eiro ou com pan heira é e ssen c ia l para ajudar o
o u v id o r d e v o z e s a d ese n v o lv er um sen tim en to d e con trole e assegurar
um a p o siçã o digna na so cied a d e (ver C ap ítu lo 10).

Conclusão
E ntretanto, já o leitor se deverá ter ap erceb id o de que as H istórias BIBLIOGRAFIA
d e C a so, as T eorias e as T écn ica s T erap êu ticas d escritas n este livro
foram cu id a d o sa e d elib erad am en te se le c c io n a d a s ten d o em vista A chterberg , J. (1985) Imagery in Healing: Shamanism and Modern Medicine,
o b je ctiv o s e sp e c ífic o s. New Science Library, Boston
A n o ssa selecçã o de teorias e p ersp ectivas ex p lica tiv a s fo i deter­ A d R ek (1989) Padwerk en Core-Energetica, School voor Padwerk, Amesterdão
m inada, em parte, p elas esco lh a s ou preferências dos próprios ouvidores A lschuler , A. (1987) The World of The Inner Voice\ não publicado
d e v o z e s e, em parte tam bém , p elo esp ectro das varian tes em v o g a no
A rbman , E. (1963-1970) Ecstasy or Religious Trance, vols. 1-3 Scandinavian
ca m p o da P siquiatria. University Books, Estocolmo
E stávam os tam bém a n sio so s por dem onstrar q u e o fatalism o e a
resig n a çã o estã o lo n g e d e ser as ún icas resp ostas à d isp o siçã o do A rts , H . (1985) Waarom Moeten Mensen Lijden, Edit. Davidson, Lovaina
o u vid or d e v o z e s. P or outro lad o, todas as técn ica s terapêuticas apre­ A ssagioli, R. (1938) “Spiritual Development and its Attendant Maladies”, Hibbert
sentad as n este liv ro foram testadas por p e sso a s q u e ou viam v o zes. Journal, vol. 36; reeditado como Capítulo 2 in Assagioli (1965)
G ostaríam os d e term inar este livro co m as palavras do Senh or A ssagioli (1965) Psychosynthesis, Penguin
In sp ector Su perior d os S erv iço s de S aú d e M ental da H olanda. N o A ssagioli, R. (1986) “Self-Realization and Psychological Disturbances”, Revision
p rim eiro C on gresso jam ais realizad o para p e sso a s que o u v em v o zes Journal n.° 8 (2.a edição), pp. 21-31
(U treq u e, 1987 - ver C apítulo 2 ), disse: A tkinson , J. M. (1985) Schizophrenia: A Guidefor Sufferers and Their Families,
Turnstone Press, Wellingborough
“Arranjar formas adequadas de lidar com as alucinações pode constituir A urobindo (1950) The Riddle ofthis World, Sri Aurobindo Ashram, Pondicheri
um importante instrumento de tratamento e de respostas por parte dos B aker , P. (1988) Interviews with Prof. Marius Romme, notas sobre o Congresso
terapeutas.” de 11 Nov. 1988 (inédito)
B aker , P . (1 9 8 9 ) “ H e a rin g V o ic e s ” , O PEN M IN D , n .° 4 0 , p p . 1 6 -1 7
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Amersfoort
Colaboradores:
Z orab , G. (1953) Proscopie, Edit. H. P. Leopold, Haia

Paul BAKER
Trabalhador na área de iniciativas comunitárias.
Alliance for Community Care
Manchester, Reino Unido
Richard BENTALL
B Sc, M. Clin. Psychology, M. A., Ph. D.
Membro da British Psychologic Sciences Society
Assistente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Liverpool
Liverpool, Reino Unido
Han van BINSBERGEN
Médium
Roermond, Holanda
Douwe BOSGA
Mestre em Parapsicologia
Director do Instituto de Parapsicologia de Utreque
Utreque, Holanda
Gerda de BRUIJN
Doutora em Psicologia
Amesterdão, Holanda

400 401
Marga CROON Professor Onno van der HART
Membro de O Caminho Doutor em Psicologia
Amesterdão, Holanda Centro de Saúde Mental Comunitário de Amesterdão e
Departamento de Psiquiatria da Universidade de Amesterdão
José CUNHA-OLIVEIRA Amesterdão, Holanda
Coordenador da edição portuguesa Myrtle HEERY
Médico, Mestre em Psiquiatria Doutora em Psicologia
Chefe de Serviço Hospitalar Profissional Livre
Hospital Psiquiátrico do Lorvão Petaluma, Califórnia (EUA)
Coimbra, Portugal
R. van HELSDINGER
Brian DAVEY Médico, Doutor, Jubilado
Trabalhador na área de iniciativas comunitárias Hilversum, Holanda
Nottingham Advocacy Group
Nottingham, Reino Unido Adriaan HONIG
Médico, Doutor, Membro do Colégio da Especialidade de Psiquiatria
Sandra ESCHER Consultor de Psiquiatria
Jornalista para a área da Ciência Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht e
Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht e Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo
Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda
Maastricht, Holanda Professor Frederick Alexander JENNER
Médico, Doutor, Psiquiatra, FRC. Psych, Emeritus Head do
Ingrid ELFFERICH Departamento de Psiquiatria da Universidade de Sheffield
Mestre em Psicologia. Gerontologista Sheffield, Reino Unido
Roterdão, Holanda
Jack JENNER
Bemardine ENSINK Médico. Doutor em Psiquiatria, Psiquiatra
Doutora em Psicologia Assistente da Universidade de Groningen
Instituto de Psicologia da Universidade de Amesterdão Director do Serviço de Consulta Externa do Hospital da Universidade de
Amesterdão, Holanda Groningen
Groningen, Holanda
Gill HADDOCK Jurrien KOOLBERGEN
Mestre em Psicologia Clínica Mestre em Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Liverpool Instituto de Psicologia Transpessoal de Amesterdão
Liverpool, Reino Unido Amesterdão, Holanda
Patsy HAGE Jan van LAARHOVEN
Ouvidora de vozes Médico, Consultor de Psiquiatria do Hospital da Rainha Isabel
Goirle, Holanda Tilburgo, Holanda

402 403
Aad van MARRELO
Doutor em Teologia Novos RumoS
Director do Serviço de Reabilitação Psiquiátrica do
Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht
Maastricht, Holanda
Resi MALECKI
Ouvidora de vozes
Líder de Grupos de Ajuda Mútua da Fundação Ressonância (Weerklank)
Geleen, Holanda
Monique PENNINGS
Mestre em Educação para a Saúde Volumes publicados:
Centro de Saúde Comunitário de Maastricht e
Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo
Maastricht, Holanda 1 - LEIS PLANETÁRIAS EM ELEIÇÕES GERAIS / Francisco Limpo
de Faria Queiroz
Professor Marius ROMME 2 - 0 JOGO DA ATENÇÃO / Marly Kuenerz
Médico, Doutor em Psiquiatria
Consultor de Psiquiatria do Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht 3 - OS EXTRATERRESTRES / Manfred Cassirer
e Professor de Psiquiatria Social do Departamento de Psiquiatria Social da
Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda 4 - PROGRAMAÇÃO NEUROLINGUÍSTICA / Gustavo Bertolotto Vallés
Ton van der STAP 5 - A TÉCNICA DO TAI-CHI / Ángel Femández de Castro
Doutor em Teologia 6 - 0 CARISMA / Stephanie Barrat-Godefroy
Maastricht, Holanda
7 - VAMPIROS / Konstantinos
Professor Nick TARRIER
Doutor em Psicologia 8 - NA COMPANHIA DAS VOZES / Marius Romme e Sandra Escher
(organizadores); J. A. Zagalo-Cardoso e J. A. Cunha-Oliveira (coorde­
Professor António ZAGALO-CARDOSO nadores da edição portuguesa)
Coordenador da edição portuguesa 9 - 0 INUMANO / Jean-François Lyotard
Médico, Mestre em Psiquiatria, Doutor em Psicologia
Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universi­
dade de Coimbra, Portugal
E todos os ouvidores de vozes que não foram referidos aqui e que deram o seu
inestimável contributo para os Capítulos 6 e 8. Respeitámos integralmente a
sua vontade de manter o anonimato.

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