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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


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ÁGORA TEATRO

coordenação:
Celso Frateschi
Marlene Salgado
Roberto Lage
Sylvia Moreira

ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

organização: Celso Frateschi


coordenação editorial: Marlene Salgado
tratamento de textos e revisão: Confraria de Textos
projeto gráfico: Pedro Becker
editoração eletrônica: Werner Schulz
impressão: Cromosete Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ágor a liv re dr amaturg ias / [org anização Celso
Fr ateschi]. — São Paulo : Ágor a Teat ro, 2006.

Vár ios autores.

1. Crítica teat r al 2. Dr amaturg ia 3. Teat ro


br asileiro - Histór ia e crítica I. Fr ateschi,
Celso.
06-6059 CDD-809.2

Índices par a catálogo sistemát ico:

1. Peças teat r ais : Histór ia e crítica 809.2


2. Teat ro : Histór ia e crítica 809.2

1ª edição – 2006

todos os direitos desta edição


reservados ao Ágora CDT

Rua Rui Barbosa, 672 - Bela Vista - São Paulo - CEP 01326-010
telefone: (11) 3284 0290
fax: (11) 3141 2772
e-mail: agora@agorateatro.com.br
www.agorateatro.com.br
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – Celso Frateschi 7

EU NÃO SOU CACHORRO! – Fernando Bonassi 11

PAI – Izaías Almada 23

SÓ MAIS UM INSTANTE – Marta Góes 43

SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFES – Hugo Possolo 95

A CABEÇA – Alcides Nogueira 115

ILMO. “SENHOR” – Naum Alves de Souza 129

E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDS – Mário Bortolotto 145

COR DE CHÁ – Noemi Marinho 193

O MUNDO É UM MOINHO – Fauzi Arap 205

NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ – Bosco Brasil 289

ATO SEM HISTÓRIA – Luís Alberto de Abreu 321

O CÉU DA PÁTRIA – Jandira Martini e Marcos Caruso 333

a ordem de apresentação dos textos corresponde ao cronograma


de realização do projeto Ágora Livre Dramaturgias, realizado em 2001
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APRESENTAÇÃO

Em meados do século passado, Friedrich Dürrenmatt formulou


durante uma palestra a seguinte questão: “Poderá o mundo de hoje ser
reproduzido pelo teatro?” Bertolt Brecht interessou-se pelo debate e
escreveu um pequeno artigo sobre o tema – afinal, essa questão estava na
origem e na meta do teatro épico que professava. Segundo Brecht, “para o
homem do século XX, o valor das perguntas residia nas respostas, uma vez
que se interessava por situações que poderia enfrentar ativamente. Que,
numa época cuja ciência de tal forma consegue modificar a natureza que o
mundo nos parece já habitável, o homem não pode ser apresentado como
vítima, como objeto passivo de um ambiente desconhecido, imutável”.
Contudo, registrava o espanto: “a natureza da sociedade humana - em con-
traposição à natureza em geral – ainda não esclareceu a possibilidade de
um aniquilamento total do planeta, que ainda mal conseguimos tornar
habitável.”
Mais de meio século depois, acreditamos que a pergunta de Dürrenmatt
ganha cada vez mais pertinência, neste período, em que os avanços tecno-
lógicos se aceleraram e influíram de maneira decisiva na produção artísti-
ca, principalmente em sua reprodutibilidade nas formas dramáticas de
expressão. Com as novas tecnologias, resta algum sentido para a arte
teatral? O teatro ainda tem alguma contribuição a dar, como construção e
expressão específica de prazer e conhecimento? Certamente, o lugar que
ocupou ao longo de sua história foi pelo menos em grande parte tomado
por outras formas de expressão, principalmente a partir do final do século
XIX. Todavia, no início do século XXI, se faz mais teatro do que nunca.
Nós, do Ágora Teatro, estamos ocupados em entender e praticar um
teatro que fale ao contemporâneo. Realizamos montagens, estudos e semi-
nários para desenvolver a linguagem teatral no que a distingue das demais
artes. Nosso primeiro seminário, Odisséia do Teatro Brasileiro, apontou a
necessidade do aprofundamento da discussão sobre a dramaturgia con-
temporânea. A história do teatro moderno brasileiro é bastante acidentada.
Quando, nos anos 1950 e 60, começava a se estruturar um pensamento
teatral consistente (que, de um lado, refletia numa dramaturgia ainda
incipiente, mas, de outro, revelava características do modo brasileiro de ser
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e de se relacionar), fomos atropelados pelos 20 anos de ditadura que se


seguiram ao golpe militar de 1964. Nesse período, a ação truculenta da cen-
sura, se não chegou a criar um vazio absoluto de pensamento, limitou-o a
uma ação de resistência. Foi nesse processo que se implantaram, com
enorme sucesso, os meios de comunicação de massa, processo que acom-
panhou e incorporou as inovações tecnológicas e hoje se configura irrever-
sível. Com o fim da ditadura, nosso teatro revelou que talvez sua ferida
mais profunda tenha sido na nossa dramaturgia. A construção coletiva de
um pensamento teatral cedeu lugar a tentativas dispersas de nossos dra-
maturgos, que pouco dialogam entre si por meio de seu trabalho. Prevalece
a sensação de vitória cultural dos militares e de seus sucessores, que ainda
nos mantêm num nocaute técnico, do qual não sabemos bem como acor-
dar. Algo desesperadamente, tentamos reagir e nos manter acordados, mas
sem conseguir pensar direito nem construir qualquer estratégia.
Esta publicação é o registro de uma tentativa de aproximação do pro-
blema ainda não claramente formulado: quais são as amarras que hoje
impedem nossa dramaturgia de içar velas? Procuramos contribuir para a
discussão dessa questão.
Nos últimos anos, percebemos um aumento significativo de autores
novos, cuja produção convive com a de dramaturgos que estão na ativa
desde os tempos da ditadura. É uma produção de qualidade, mas não se
caracteriza como um movimento. São processos criativos diferentes entre
si e não se vinculam a preceitos estéticos comuns. Os autores seguem tra-
jetórias próprias e independentes. Ao Ágora Teatro interessa entender como
esses artistas traduzem o homem contemporâneo em suas peças e, ao
mesmo tempo, como se relacionam com algumas questões que nos coloca
a tradição teatral.
Convidamos 13 autores contemporâneos, visando abranger várias for-
mas, estilos e abordagens dramatúrgicas, e propusemos que respon-
dessem, através de pequenas peças, algumas questões já levantadas pela
história do teatro e que, segundo entendemos, ainda dialogam com o
nosso contemporâneo. Fernando Bonassi, Izaías Almada, Marta Góes,
Hugo Possolo, Alcides Nogueira, Naum Alves de Souza, Mário Bortolotto,
Noemi Marinho, Fauzi Arap, Bosco Brasil, Luís Alberto de Abreu e Jandira
Martini e Marcos Caruso escreveram suas peças motivados pelas seguintes
provocações:
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• Poderá o mundo de hoje ser reproduzido no teatro?


• Escreva sobre sua aldeia e falará do Universo.
• Podemos ainda falar em dramaturgia nacional?
• Permanece no teatro de hoje algum resquício do sagrado?
• O dramaturgo é um pensador?
• Seu personagem está no palco ou na platéia?
Durante os meses de setembro a novembro de 2001, essas peças foram
montadas, apresentadas e discutidas com o público, tendo como debatedo-
res Silvana Garcia, Chico de Assis, Fauzi Arap, Luís Alberto de Abreu, Ai-
mar Labaki, Jefferson Del Rios, Sebastião Milaré, Francisco Medeiros,
Gianni Ratto e Ilka Marinho Zanotto.
O resultado desse projeto foi extremamente rico, principalmente pela
qualidade dos textos apresentados. Alguns deles seguiram vida própria,
com muito sucesso junto ao público e à crítica. Com a colaboração de to-
dos os envolvidos, temos a satisfação de publicar esse conjunto de textos,
certos de estarmos contribuindo para o desenvolvimento de nossa drama-
turgia, além de proporcionar aos leitores o prazer que só o teatro pode nos
proporcionar.

Celso Frateschi
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EU NÃO SOU CACHORRO!


dramaturgo: Fernando Bonassi
debatedora: Silvana Garcia

MONTAGEM

direção: Elias Andreato


interpretação: Celso Frateschi
cenário e figurino: Sylvia Moreira
luz: Elias Andreato
trilha sonora: Aline Meyer
direção técnica: Rodrigo Guimarães
fotos: Jade Stickel
produção executiva: Jerusa Franco
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EU NÃO SOU CACHORRO!


Fernando Bonassi

PERSONAGEM
UM ATOR

ADEREÇOS (sugeridos)
Casa de cachorro acorrentada ao pé (calçado com coturno militar) do
Ator. Uma tigela plástica para comida e outra de água. Panos, ossos resseca-
dos, jornais velhos.

CENA ÚNICA
No centro de atenção, uma casa de cachorro. Ao terceiro sinal, o Ator sai
de dentro dela. Ele tem um pé – que calça coturno militar – acorrentado a um
dos pilares da pequena casa.
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ATOR
Eu não sou um cachorro. Isso não.
Mas... supondo, apenas por especulação – a pura especulação mesmo –,
que eu fosse um cachorro... bem, então eu teria nascido numa ninhada
úmida e pegajosa. Seria expelido com meia dúzia de irmãos. Rolaria num
cobertor posto especialmente para a ocasião de a minha mãe parir. Seria
um cobertor novo, recobrindo uma caixa de papelão onde ainda poderia
farejar o perfume do sabão em pó. Haveria jornais do dia cuidadosamente
espalhados por baixo de tudo.
Jornais do dia nos protegem da frieza desses tempos...
Poderia estar cercado por pessoas tensas e preocupadas. Humanos
cheios de afeto e habilidades científicas. Se, numa desventura, minha mãe
não desse conta de sua tarefa biológica, eles bem poderiam, mesmo que
com algum nojo, meter as mãos entre as suas pernas e me trazer, num pu-
xão, para esta vida.
Só que eu não sou cachorro.
Trata-se de especular...
Se fosse um cachorro, deveria considerar muita sorte ser desmamado e
logo escolhido por alguma menina mimada, que fizesse de mim o que bem
entendesse. Este não é um mundo onde espécies inferiores possam dar-se
ao luxo de sobreviver entre os maiorais sem que sejam pisoteadas, transfor-
madas em sabão ou mandadas para a África da Morte ou a América Latri-
na. Mas, de todo modo, não sou de permitir que garotas mimadas façam de
mim o que entendem ser o melhor, no fundo, para elas mesmas. Ainda
mais em questões tão íntimas como a separação entre cães, quero dizer,
entre “mães” e filhos.
Não, cachorro, não.
Supondo, no entanto, que essa suposta sorte não me tivesse acontecido,
que a minha melhor chance não se tivesse me apresentado, que nenhuma
garota mimada surgisse para me esmagar contra os seus peitinhos, então,
nesse caso, muito cedo teria de revirar algumas latas de lixo. É disso que é
feita a vida desses animais infelizes. Eles não se incomodam com pernas de
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faisão cobertas de vermes, camarões passados, ossos limbosos, a História,


invertebrados de qualquer espécie, juízes de direito, cerveja choca ou água
parada. Servem-se de suas guloseimas imorais na frente de todo mundo.
Os mendigos os invejam...
Tais seres podem mesmo, se e quando necessário, ingerir fezes.
Ora, além dos problemas de saúde inerentes a quem se dá a certas liber-
dades com a higiene do que leva à boca, como um moto-contínuo de mer-
da, há que se considerar os aspectos evolutivos desse tipo de atitude. Eu
pergunto: quantos séculos de civilização não nos foram necessários para
separarmos a boca do cu, dando a cada um a função específica que têm ho-
je?! Trata-se de mais uma dessas dúvidas que justamente provam a minha
humanidade...
Por exemplo: o que um cachorro pensa de um lençol limpo?
Não sei. Não sou um cachorro.
Eu mesmo não abro mão de lençóis limpos, com aquele perfume ine-
briante do sabão em pó esmagado a ferro.
Há equilíbrio entre os meus sentidos e sei muito bem onde meto o meu...
(cheira prolongadamente o ar)
E, de mais a mais, meu nariz não funciona. Todos sabemos, hoje, a im-
portância que a troca de cheiros tem para os cachorros. Por qual outro mo-
tivo, então, dedicam-se a esfregar-se e lambiscarem-se as partes traseiras
tão despojados de malícia que chega a dar inveja a todas as armadilhas
mentais que utilizamos?
Sociabilidade, compromissos, negociações, pactos, contratos... temo
que a confiança tenha algo a ver com gostar do fedorzinho destas ou da-
quelas bochechinhas molegatas encravadas de um rubicó em forma de ro-
sácea enlameada...
Não posso negar que há tramas sociais complexas em gestos vulgares,
trocas de bactérias e fluidos.
Mas, de todo modo, não sou cachorro.
Não... se eu fosse um vira-lata de lixo desses, então teria estampada no
rosto a desolação trágica e a indiferença características desse modo de vida
que em nada combina comigo.
Quando lamentamos nossa própria natureza, o fazemos num nível mais
elevado: estabelecemos relações de causa e efeito na linha do tempo. Pro-
duzimos... conhecimento.
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Se estamos infelizes, criamos confusões; se criamos confusões, partimos


para a guerra; se partimos para a guerra, temos milhões de mortos; se te-
mos milhões de mortos, outros milhões podem morrer de moléstias infec-
ciosas galopantes.
A penicilina, por exemplo, foi inventada para transformar os mortos
duma guerra em aleijados doutra.
Isto poderia ser um outro espetáculo; mas também é uma prova: eu não
sou cachorro.
Se eu fosse um cachorro, nem controlaria minha morte.
Além de dormir, comer, cagar, mijar, foder rapidamente e aos pulinhos,
poderia, no máximo, roer a corda e ser atropelado. Estou convencido de
que a caminhada vagarosa e às cegas por auto-estradas muito rápidas é a
única forma de suicídio que os danados conhecem. Em algum lugar de suas
cabecinhas cheias de ossos, eles sabem que aqueles monstros de lata que
vêm de lá, ao chocarem-se com seus corpos, o fazem como se acertassem
um saco de batatas inglesas úmidas. Questão de comportamento reflexo.
Se me comportasse assim, no máximo, ficaria exposto à visitação das
moscas a céu aberto.
Uma vergonha.
Mas eu não faço parte dessa elite de cachorros suicidas, capazes de lan-
çar gerações e mais gerações na pista de lixo asfaltada com gosma verme-
lha da História, apenas pra que tenham um equipamento que, uma vez
acionado, faz vibrar uma certa nota arrepiante no cóccix de quem o possui
num bolso mais atrás.
Não.
Se eu fosse um cachorro suicida, só teria esses asfaltos quentes onde cair
morto. Nem uma lápide que me lembrasse de que o melhor de pisar na gra-
ma é quando sabemos que há alguém lá embaixo... Como um cemitério ju-
daico proibido.
Questão de comportamento reflexo.
No último fim, duraria apenas o tempo da minha mancha de sangue
gosmenta e o sol e a evaporação e pronto.
Sem rituais.
Uma obscenidade.
(cheira prolongadamente o ar)
Um nada obscuro como um buraco de nariz.
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Se eu fosse um cachorro e estivesse sonolento, deitaria em qualquer lu-


gar. Meu quarto, do tamanho da cidade...
Estaria submetido apenas a certos ciclos da natureza: cem sóis, uma en-
xurrada, uma eleição de presidente, os fundos de uma churrascaria, uma
desavença, um governo de intelectuais privatistas e balas perdidas.
O que vem de baixo não me atinge na cabeça de cima, que é a mais im-
portante.
Ela me faz o que sou.
Não um cachorro.
Que sejamos 65% água deveria nos ensinar alguma coisa...
Se eu me conheço bem, se sei que não sou cachorro, é porque certamen-
te eu seria capaz de atitudes de péssimo feitio, se o fosse: saltaria cercas, pu-
laria muros, me meteria em buracos e tarefas sórdidas, enfrentaria feras
ainda mais insanas do que eu, tudo por uma bocetinha no cio.
Mas eu não sou um cachorro e não é do meu feitio perseguir bocetinhas
no cio pela ruas ou casas de família.
A isto chamamos... cultura.
Se eu fosse um cachorro, poderia vir a morder a mão que me acaricia.
Já está provado que cérebros, quanto menores, mais entusiasticamente pul-
sam. Quando se encontram em caixas cranianas reduzidas, o espaço de
transição entre o que é a mera projeção de seus encagaçamentos e o que de
fato se dá no mundo dos negócios praticamente inexiste. Assim se criam,
solidificam-se mitos, financiam-se campanhas de saúde pública e pagam-
se esses constantes convites que os artistas recebem para explicar o inexpli-
cável em outra língua, em que são ainda menos fluentes que na sua própria,
de origem.
(cheira prolongadamente o ar)
Puxa! Isso é quase outro espetáculo!
Em suma: perde-se a paciência com facilidade, fica-se rabugento com a
polícia, engole-se qualquer coisa, quebram-se copos de cristal, fazem-se ju-
ras de amor desesperado, leva-se desaforo para casa e fica-se constante-
mente inseguro.
Mas eu não sou de tratar mal quem me trata bem e eu não sou um ca-
chorro com o terror constante de perder as poucas migalhas que lhe jogam.
Gente! É muito pouco! É ou não é?!
(cantando) Migalhas, migalhas, migalhas jogadas por mãos carinhosas...
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A memória de um cachorro, que não é a de um elefante, consegue reter


pouco mais que um instante. Um instante de satisfação por mil anos de
memória fraca. A idéia de que tudo pode acabar já, agora, neste exato ins-
tante, assola os pobres coitados. Haja osso, haja dente, haja músculo...
(cantando) Migalhas, migalhas, migalhas jogadas por mãos carinhosas...
Se eu fosse um cachorro, não usaria roupas. E eu tenho roupas que fa-
zem milagres por mim. Uma calça negra, uma camisa branca, um chapéu
de bico chato, alguns fru-frus nas mangas, uma joelheira, um anel de osso,
uma corrente de prata, uma roupa de baixo em forma de V da vitória e
muito mais, para o meu conforto e exposição.
Por exemplo: sempre que vou seduzir uma prostituta, para que me
preste seus serviços com descontos e faça coisas que, digamos, estejam fo-
ra de seu menu básico, ou quando, ainda por exemplo, reúno toda a mi-
nha coragem profissional para finalmente não mijar nas calças ao pedir
um verdadeiro, polpudo e justo aumento de salário, uso meu coturno 74.
Meu coturno 74 impõe respeito em qualquer situação. Tem classe e fir-
meza entrelaçados como um economista bem fornido na Escola de Chi-
ca Bom e um general de saco roxo que compra radares como quem vai à
Disneylândia.
Obviamente, nada de ruim pode me acontecer quando eu o utilizo. Ca-
minho, digno, sobre os dois calçados rijos, certo de que a dignidade de
meus passos se transfere, ato contínuo, às minhas atitudes e palavras.
Esses meus panos malcosturados estão constantemente dizendo coisas
a meu respeito... posso combinar feito um bombeiro sueco ao lado de um
hidrante niquelado.
Os cachorros andam nus em pêlo...
Por essas e outras, não sou um cachorro.
Se eu fosse um cachorro, não teria direito a voto. Não elegeria meus re-
presentantes. Não poderia controlar meus valores na rédea curta, com es-
sas correntes feitas de lingüiça fresca, que são ainda mais fáceis de quebrar
quando se amarra o bicho com elas. No máximo, torceria por alguém que
tivesse compromissos com a proteção das criaturas irracionais.
Há gente assim, tidas como as melhores cabeças de cima do vasto pai-
nel de nossa sabedoria...
Mas nem eu tenho compromisso com criaturas irracionais, nem sou ca-
chorro.
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Se eu fosse cachorro, não trabalharia. O trabalho não dignifica o cachorro,


como dignifica o homem.
Aliás, o humilha...
Um cachorro sem trabalho está no seu elemento e eu, sem trabalho... bem,
não poderia fazer crediário; não constituiria uma família dos infernos; não
compraria um carro pra me esmagar num poste, nem pílulas de erguer cara-
lho; não usaria cotonetes hidrofilizados; não teria uma pistola desse tamanho
pra me defender de todos os que querem apenas se defender. Não poderia ti-
rar documentos militares de trânsito, ter títulos acadêmicos nem bolsas de
estudos.
Mas eu também não sou um cachorro vagabundo, ainda que não tenha ou
não saiba exatamente o que fazer, uma vez ou outra.
Questão de hábito, no meu caso.
Se eu fosse um cachorro, só teria meu rabo para expressar os meus senti-
mentos. Sentimentos exigem enorme sutileza para sua expressão e eu tenho
uma infinidade de recursos para me expressar. Há tantas partes moles e tantas
conexões possíveis entre elas. São necessários centenas de metros por segundo
de impulsos elétricos e mais de umas dezenas de músculos para fazer um reles
sorriso amarelo.
Cinco sentidos, 65% de água.
Também por isso, eu não sou um cachorro.
Se eu fosse cachorro, coçaria o pescoço com os pés.
Pés pelas mãos, se é que vocês me entendem.
Um cachorro também não é um macaco, mas este, sem dúvida, seria um
outro espetáculo... eu, pelo menos, nem sou um cachorro.
Porque se o fosse, não veria com precisão os eventos da tv. Ou melhor, ve-
ria muito mais além deles. Dizem que os cachorros são capazes de perceber os
mecanismos por trás das coisas, de forma que, ao verem televisão, podem ape-
nas apreciar a dança caótica dos elétrons que são disparados ao longo do tubo,
até a tela. Quando conseguem enxergar mais que essa dança maluca, vêem a
ausência de cor.
Estaria eu condenado ao preto e branco do fundo dos meus olhos? Teria al-
guma chance de ver de uma outra maneira as eternas mesmas coisas, de forma
que os outros ligassem tanto para mim, que simplesmente me esquecessem?
Nada de cores, de luzes, de comprimentos de onda... é como querer
fazer do Brasil um país sem guerra e, para isso, é necessário mais que o
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aperfeiçoamento da raça amulatada... seria preciso murchar o pneu da


crueldade com a agulha da devoção... mas isso é mais um segmento de
um determinado tipo de teatro alemão, logo: um outro espetáculo.
Minha vida é feita de cor e eu, por saber e, eventualmente, querer, que
todas as cores recebam o mesmo tratamento no arco-íris, por uma simples
questão de consciência, não sou cachorro.
Se eu fosse um cachorro, necessariamente me angustiaria com meus
semelhantes, procurando neles e em mim sinais de... uma certa... “fero-
cidade defensiva”. É o que podemos observar em praças púbicas, onde
senhoras levam seus poodles molegatos para masturbar-lhes a clitônia e
o tênis.
Mas eu não sou cachorro e posso me dar meus próprios prazeres.
Tenho a liberdade de ir e vir. O que, se fosse mais pensado, seria ainda
menos excitante.
Numa situação canina, minha atividade física seria reduzida a apanhar
um pedaço de madeira arremessado a distância, o qual deveria abocanhar
e levar a seu lugar de origem. Que alguém jogue algo inexpressivo num lu-
gar distante e que outro, menos esperto, se encarregue de ir buscar... a isso
chamamos entendimento.
Sísifo, o eterno retorno, a idéia de que devemos deixar o bolo crescer
pra só depois repartir... enfim: muitos espetáculos num só...
Mas eu não sou cachorro.
Se eu fosse cachorro, não teria direito à justiça e nós sabemos o quanto
o direito civiliza o homem e o quanto a justa reparação dos danos e perdas
adensa nossa nacionalidade e o respeito às instituições.
(cantando) Pátria amada, salve, salve-se!
Não. Eu não sou cachorro.
Eu sei que a pátria congrega diversas expressões da mesma coisa, de
forma que se há uma guerra, todos devem ir para defender os demais
iguais de tudo o que é diferente. Os cachorros, por sua vez, são vistos em
terras de ninguém e são capazes de cruzar campos de batalha com o
maior descaramento. Tudo por uma lingüiça frita numa trincheira, de lá
ou de cá. Tanto faz.
Tanto é que os soviéticos condicionavam vira-latas da Baviera para que
carregassem minas anti-tanque e se aproximassem furtivamente dos ar-
mamentos fascistas, mandando tudo pelos ares. Claro que eles não sabiam
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disso. Um cachorro é capaz de carregar sua morte presa às costas e cumprir


diligentemente seu destino ideológico.
Eu não sou cachorro.
Mas, se fosse, estaria em mim toda a capacidade de reparação.
Não teria culpa nem desculpa.
Do mesmo modo, se fosse um cachorro, estaria ainda mais à mercê de
Deus. Não teria que fazer valer a minha fé, nem faria trabalhos.
Estaria, sem saber, destinado ao Paraíso.
Mas eu não sou cachorro e conquisto o que quer que seja com meus pró-
prios méritos. Ainda que seja um lugar no maldito paraíso dos homens. Aliás,
com licença: eu mereço. Aliás, como qualquer tolo, ou homicida, ou escritor,
ou ator, ou madame de recados que pega putos no meio das pernas frias.
Se eu fosse um cachorro, eu abanaria meu rabo para algum sacana me jo-
gar um pedaço de carne engordurada no chão. Eu poderia saltar para pegá-la
da ponta de seus dedos, se fosse o caso...
Nós apreciamos manifestações de generosidade semelhantes.
Claro que eu teria medo de ter a mão auto-abocanhada por mim mesmo.
A fome cega qualquer um e faz do cachorro esse animal servil que é.
Se eu fosse cachorro, comeria também, se assim a providência provesse,
rações balanceadas: legumes ressecados, carne de carneiro morto e aquele pó
salgado com aspecto de fezes secas que têm esses tais produtos com que só
mesmo um cachorro pode matar sua fome.
Não sou cachorro.
Se eu fosse um cachorro, teria apenas uma coleira me prendendo às coisas
de interesse do meu dono. Sonhar não ter escapatória. Usufruir dos meandros
da prisão. Enriquecer à custa da miséria alheia, imaginando que é possível go-
zar sozinho no eterno da felicidade...
Seu eu fosse um cachorro e me conhecesse bem como me conheço, mal
posso imaginar o que faria ou não faria pela simples oportunidade de dormir
sobre uma pilha de jornais. O calor úmido e pegajoso dos papéis cheios de
urina, numa caixa... lembranças antigas... minha mãezinha me cagando com
meus irmãos... esse frio...
Não, cachorro, não... porque, se o fosse, não teria tempo. Não entenderia
os relógios.
Poderia me contentar com o que consigo, como se fosse um pernil bem
temperado numa lata de lixo coberta de vômito.
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(pausa)
(cheira prolongadamente o ar)
Um nada obscuro como um buraco de nariz.
Mas não...
Tudo isso não passa de especulação, a pura especulação mesmo... eu sei
muito bem a diferença entre um homem e um cachorro. Ainda bem que eu
não sou um cachorro. Cachorro, não. É sério. Eu não sou um cachorro. Ah,
não... isso não. Não sou, não é mesmo?

O Ator volta para a casa do cachorro.


Ouve-se uma canção do grupo e período conhecidos como “Bossa Nova”.

FIM
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22 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

FERNANDO BONASSI
nasceu em São Paulo, em 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, ci-
neasta e escritor de diversas obras, entre elas Um Céu de Estrelas (Siciliano);
Subúrbio, Crimes Conjugais e 100 Histórias Colhidas na Rua (Scritta); O
Amor é Uma Dor Feliz (Moderna); Uma Carta Para Deus e Vida da Gente
(Formato); O Céu e o Fundo do Mar (Geração Editorial); 100 Coisas (An-
gra); Declaração Universal do Moleque Invocado (Cosac & Naify) e São Pau-
lo/Brasil (Dimensão), ambos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de
lançamento. Em 2003 é publicada a novela Prova Contrária e em 2005 o ro-
mance O Menino que se Trancou na Geladeira, ambos pela Editora Objeti-
va. É co-roteirista de filmes como Os Matadores (de Beto Brant); Através da
Janela (de Tata Amaral); Castelo Rá Tim Bum (de Cao Hamburguer); Ca-
randiru (de Hector Babenco – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro para o
melhor roteiro adaptado de 2003); Garotas do ABC (de Carlos Reichen-
bach), Cazuza (de Sandra Werneck – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro
para o melhor roteiro adaptado de 2004). No teatro, destacam-se as mon-
tagens de Preso Entre Ferragens (dirigida por Eliana Fonseca); Apocalipse
1,11 (em colaboração com o Teatro da Vertigem); Três Cigarros e a Última
Lasanha (com Renato Borghi e direção de Débora Dubois); Souvenirs (di-
rigida por Márcio Aurélio); Arena Conta Danton (com a Cia. Livre de Tea-
tro) e a encenação do fragmento Estilhaços de São Paulo, no espetáculo Me-
galopolis (do Theater der Klaenge – Sttutgart, Alemanha). Possui diversos
prêmios como roteirista no Brasil e no exterior, além de obras literárias
adaptadas para o cinema e textos em antologias na França, Estados Unidos
e Alemanha. O romance Subúrbio teve os direitos comprados pelo Deuts-
ches Schauspielhaus de Hamburgo. A adaptação teatral estreou no dia 04
de abril de 1998. Nesse mesmo ano, foi vencedor da bolsa do Kunstlerpro-
gramm do DAAD – Deutscher Akademischer Austauschdienst. Desde 1997
é colunista do jornal Folha de São Paulo.
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PAI
dramaturgo: Izaías Almada
debatedor: Chico de Assis

MONTAGEM

direção: Roberto Lage


elenco: Selma Pelizzon e Vanessa Bruno
cenário e figurino: Daniela Carmona
luz: Roberto Lage
música original: Júlia Grassetti
direção técnica: Rodrigo Guimarães
produção executiva: Nádia De Lion
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24 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PAI
Izaías Almada

Sala de um apartamento de classe média. Decoração simples: um sofá de


dois lugares, uma poltrona, uma mesinha de centro, um abajur de pé, um tele-
fone sem fio, um porta-retratos e outros adereços de uma sala de visitas.

O telefone da sala toca algumas vezes. Mariana, 52, entra apressada e


atende. Veste-se com alguma elegância, usa pouca pintura e tem gestos recata-
dos. Uma mulher que não gosta de chamar a atenção sobre si.
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25

MARIANA (enquanto caminha)


Já vai, já vai... (atende e fala ainda de pé) Alô... Bom dia!... É ela mesma...
Olha, se for para pedir algum tipo de auxílio... Não? Então, tá bem... Exato,
Mariana Toledo de Alfieri... Como?... Sou viúva, sou... Meu marido... Isso,
Jorge Alfieri... Há mais de vinte anos... Se eu vejo televisão?... Claro, vejo tele-
visão, leio os jornais, não todos os dias, mas leio... O senhor é de algum insti-
tuto de pesquisa?... Não... Hum, hum... Se eu ouvi falar do...? Sim... Sim...
Também li nos jornais... (senta-se, denotando uma ligeira alteração na voz)
Claro, claro, um cemitério clandestino... Aqui para os lados de Perus?... Des-
culpe, mas quem é que está falando? Homero... da Comissão... de Direitos Hu-
manos... Secretaria de Justiça... Ah, pois não, seu Homero... É verdade, eu te-
nho acompanhado essa questão do cemitério clandestino... Das ossadas des-
cobertas... Certo... Os senhores querem falar comigo?... Pessoalmente? Algum
motivo especial?... Se eu lembro a data do meu casamento?... (desconfiada)
Olha, isso não é trote, é?... Tá bem, tá bem, o senhor compreende... a pergun-
ta me pareceu... Se o senhor pode dizer uma data? Claro, claro... hum, hum...
13 de julho de 1968... É isso mesmo, mas...? Encontraram uma aliança numa
das covas... com o meu nome inscrito e a data de 13 de julho?...

A mão de Mariana que segura o telefone, ligeiramente trêmula, vai caindo


lentamente sobre o colo até as pernas. Ela fica absorta, distante e, sem perceber,
repõe o telefone no gancho. Pega um porta-retratos que está sobre a mesinha da
sala e contempla por instantes a fotografia do marido.

MARIANA (emocionada)
Santo Deus... Não acredito... Isso não pode ser verdade... Assim, sem mais
nem menos, depois de tantos anos, meu querido? Estou tremendo... As mãos
frias... Será você mesmo? E voltar assim, dessa maneira? Não, não, não... Não
foi isso que nós combinamos, lembra-se?... Você ficou de mandar um aviso
antes... Um recado... Deve haver algum engano... (o telefone recomeça a tocar;
Mariana olha para o telefone, em dúvida; repõe o porta-retratos na mesinha; por
fim, atende) Alô... Sim... O senhor me desculpe, sr. Homero... Claro, claro...
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26 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Estou bem, sim... Estou bem... Eu entendo... Não se preocupe... Foi a emo-
ção... Querem que eu ajude na identificação?... Mas... não são apenas uns os-
sos?... Como é que eu?... Ah, sim, a aliança, é verdade... Tá bem... Então o se-
nhor me deixa o seu telefone e eu ligo marcando o dia... Amanhã?... Já?!!...
Amanhã seria um bom dia? Acho que não estou preparada... Eu sei, eu sei, não
se preocupe, pode ficar descansado... (anotando) Pode dizer... 33...um, um,
dois, zero, zero... Ligo sim, pode ficar tranqüilo... Obrigada... Bom dia.

Mariana desliga o telefone. Está interiormente agitada. Olha para a fotografia.

MARIANA
Ah, Jorge, Jorge! Por essa eu não esperava, juro!... Assim não, meu queri-
do... O coração quase me sai pela boca! (põe a cabeça entre as mãos) Será mes-
mo verdade, meu Deus? E essa aliança... O aviso... Seria esse o aviso? Depois
de todos esses anos? Eu não queria que fosse assim... Eu não queria que fosse
assim... E ainda me pedirem para ir ver os ossos?

Júlia, 23, aparece na sala de shortinho e camiseta. Ágil, às vezes arrogante,


não esconde um jeito de ser rebelde.

JÚLIA
Falando sozinha outra vez, mãe? Qualquer dia ainda vão internar a
senhora...

Mariana procura dissimular a emoção que sente.

MARIANA
Quem é que vai me internar, menina?... Não diga bobagens... Só se for vo-
cê... Isso lá são horas de levantar?... Esqueceu que hoje é o dia do casamento
da Amelinha?

JÚLIA
Eu já tinha me esquecido da merda desse casamento...

MARIANA
Olha essa boca...
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27

JÚLIA
Aposto que a Amelinha vai casar virgem...

MARIANA
E daí, qual é o problema?... Você está é com inveja...

JÚLIA (rindo)
Inveja? Eu?!! De me casar com um gerente de banco? Inveja do quê?!...

MARIANA
O que é que tem o moço ser bancário? Uma profissão como outra qual-
quer... E ele nem está assim tão mal de vida quanto você pensa... Que roupa
você vai usar na igreja?...

JÚLIA
Que tal ir com aquele jeans rasgado na bunda, só para encher o saco da
sua família, hem?... Nunca fui com os cornos da Amelinha, nem daquele
pai dela...

MARIANA
Não diga tanta besteira, minha filha...

JÚLIA
Besteira, é? Quando a gente tava na maior merda a sua irmã e o besta do
marido dela nunca nos ajudaram...

MARIANA
Você não esquece isso, hem? Já não vale a pena tocar nesse assunto... E
depois a Amelinha não tem culpa de ter os pais que tem...

JÚLIA
E além de não ajudar, o cafajeste ainda andou te dando umas cantadas...
Pensa que eu não sei?... Sem-vergonha...

MARIANA
A minha irmã também não tem culpa de ter casado com aquele imbecil...
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28 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA
Eu também não tenho culpa de ter um pai que sumiu...

MARIANA (reage com violência)


Não fale assim do seu pai!!...

JÚLIA (espantada)
Eu não estou falando mal do meu pai, dona Mariana, fique calma. Não co-
meça a agredir... Eu só quis dizer que a sua irmã e o maridinho dela não pre-
cisavam arranjar tantas desculpas pra não terem sido solidários com a gente...
(pequena pausa) Eu não entendi essa sua reação agora!... (fica olhando para
Mariana, desconfiada) Acho que a senhora tá mesmo ficando pinel... Fica con-
versando com quem aqui na sala? Com as paredes?

MARIANA (encabulada)
Comigo mesma e... (indica a fotografia) Às vezes aqui com o seu pai...

JÚLIA
Não acredito... É caso pra internação mesmo... Depois de tantos anos...

MARIANA (interrompe)
É isso mesmo... com o seu pai... Qual é o problema? Ele sempre esteve pre-
sente nesta casa...

JÚLIA
Pára com isso, mãe. Já não basta fazer há tanto tempo o número da viúva
incompreendida e agora ainda vai dar uma de espírita?

MARIANA
Veja lá como é que fala... Que história é essa agora de viúva incompreen-
dida?... (Mariana torna a pegar o porta-retratos e mostra a fotografia para a fi-
lha) Você... Você é que nunca teve coragem de encarar a situação...

JÚLIA (num início de irritação)


Qual situação? Qual situação? Não começa, mãe... Nós já discutimos de-
mais sobre isso...
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29

MARIANA (emocionada)
Viúva incompreendida!... Você fala como se soubesse das coisas... Fala
como se vivesse dentro de mim... como se soubesse alguma coisa da vida... Vai
procurar um emprego... Metidinha é o que você é... (brava) Você não tem a
menor idéia do que está falando, menina!...

JÚLIA
Viu? Depois diz que sou eu que implico... Que começo as discussões... Fiz
uma brincadeira e a senhora já vem atropelando...

MARIANA
Brincadeira?!!... Eu conheço essas suas brincadeiras...

Júlia retira o porta-retratos da mão da mãe e torna a colocá-lo sobre a


mesinha.

JÚLIA
Nós temos um trato, dona Mariana, ou a senhora já se esqueceu?

MARIANA
Não, não me esqueci...

JÚLIA
Então não vamos começar mais uma discussão estúpida...

MARIANA
Pois eu vou romper o trato... Agora... Queira você ou não...

JÚLIA
Sabe das conseqüências...

Mariana olha a filha por instantes.

MARIANA
Não acredito que você vá sair de casa por causa disto... Nunca acreditei...
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30 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA
Não tenha tanta certeza assim... E se eu não estiver disposta a falar do meu
pai?

MARIANA
Vamos falar, sim... Agora... Você tem que encarar essa realidade, Júlia...
Não adianta fingir que o problema não existe...

JÚLIA (mais irritada)


Não enche o saco... Isso é problema meu... Eu escolho o dia pra encarar a
realidade, tá?... (faz menção de sair) Eu não devia ter posto os pés nesta sala...

MARIANA
Acabei de receber um telefonema...

JÚLIA
E daí?

MARIANA
Um tal de Sr. Homero da Comissão de Direitos Humanos...

Júlia faz um gesto para a mãe como que a dizer: e eu com isto?.

MARIANA
Acharam um cemitério clandestino na periferia da cidade... Tudo indica
que um dos corpos... uma das ossadas...

JÚLIA (tensa e em voz alta)


Não quero falar disso... Será que eu falo chinês?

MARIANA
Você... já ouviu sobre o cemitério?

JÚLIA (irritada)
Não quero falar desse assunto, porra!
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31

MARIANA
É preciso, filha... É o seu pai...

JÚLIA (gritando)
O meu pai o quê?!! O meu pai não morreu!... Pra que falar de cemitério
clandestino?

MARIANA
Encontraram uma aliança... Uma aliança com o meu nome e a data do
nosso casamento...

JÚLIA
Você está rompendo o nosso acordo, eu avisei... Você me deu a sua pa-
lavra... Você jurou sobre a Bíblia... Eu não quero falar do meu pai... E
depois, que besteira é essa de cemitério clandestino?... Ele não morreu, qual
é?... Ele não morreu... (tenta ir em direção à porta e é contida pela mãe)...
Quero ir embora... Dá licença?... Me deixa ir embora... Não é o meu pai...
Não é o meu pai... Ele nos abandonou por uns tempos... Não foi o que a se-
nhora sempre disse?

MARIANA
Ele não faria isso...

JÚLIA
Como é que agora você pode ter essa certeza?

MARIANA
Você era a filha que ele sempre quis ter... Ele não te abandonaria...

JÚLIA (já meio histérica)


Chega!... Você está falando dele, você está falando dele! Você quebrou a
promessa... (chora abraçada à mãe; os sentimentos confusos) Eu queria conhe-
cer o meu pai... Eu queria ter conhecido o meu pai...

Mãe e filha vão se deixando ajoelhar pelo peso dos próprios corpos e da dor
momentânea que sentem.
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32 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARIANA
Eu também ainda não havia perdido a esperança, filha... Não havia...

JÚLIA
Depois de todos esses anos, mãe? Eu não acredito... Alguém está querendo
fazer uma maldade com a gente...

MARIANA
Não, filha, não... (põe a mão sobre o peito) Estou sentindo aqui dentro de
mim...

JÚLIA
Essa aliança?... Pode ser uma coincidência...

MARIANA
O homem disse o dia, o mês e o ano... (Mariana levanta-se e vai ajudando
a filha a levantar-se também) Fiquei de telefonar amanhã... Vamos ter que ir
até onde estão os ossos... Eu prometi...

JÚLIA
Para quê?!...

MARIANA
As famílias têm que ajudar na identificação...

JÚLIA (com alguma aflição)


Eu... Mas... Como é que eu posso ajudar nessas coisas?... Eu... Eu não vou
ter coragem...

MARIANA
Precisamos dar-lhe um enterro digno...

JÚLIA
Vamos ter que fazer um enterro?

Júlia olha para Mariana, que confirma com a cabeça. Em seguida, pega o
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33

porta-retratos, olha para a fotografia por instantes, beija-a e a recoloca sobre a


mesinha. Tenta se recompor.

JÚLIA
Então é assim a vida?

MARIANA
Assim como, minha querida?

JÚLIA (ainda nervosa)


Assim... Sei lá... Assim!, merda... Um belo dia nos tiram o pai com vida
e vinte anos depois nos devolvem uma aliança e alguns ossos embrulhadi-
nhos em papel para presente e dizem: “desculpem, mas ainda bem que en-
contramos alguns desses desaparecidos... Olha, que bom... Vão poder dar-
lhes sepultura”...

MARIANA
É exatamente isso que vai acontecer, Júlia... Ou você esperava que fosse
de outra maneira? Quem é que nos dias de hoje vai se preocupar com uns
desgraçados que pensaram que poderiam mudar o Brasil?

JÚLIA
Eu... Eu me preocupo. Eu!... É o meu pai, porra, o sangue dele corre aqui
nestas veias... A senhora entende isso, mãe? Hem? Já pensou nisso? Sou a
única pessoa que carrega o sangue dele... Aqui, nestas veias... A única... A
senhora é capaz de entender isso? Alguém é capaz de entender isso? En-
quanto eu viver ele continua vivo em mim... Quem é que o matou? Hem?
Onde estão os filhos da puta que mataram o meu pai? Eu queria encontrar
um deles, um só que fosse... Encarar o desgraçado de frente... Olho no
olho... Fazer um corte na mão e deixar o sangue escorrer... e dizer: olha
aqui, seu filha da puta... Isso é sangue do meu pai, do meu pai, seu corno...
Ele continua vivo e muito vivo...

MARIANA
Júlia... Júlia, minha filha!...
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34 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA
Gostaria muito de saber por que fazem desaparecer um homem só por ele
ter uma maneira diferente de pensar. E os que deram sumiço nele?... Onde é
que andam? Os que mandaram torturar e matar? O que é que eles consegui-
ram com isso? Conseguiram mudar o país? Melhoraram o Brasil, por acaso?
Se eles acham que conseguiram mudar alguma coisa, então o Brasil de trin-
ta anos atrás devia ser bem melhor, porque este de agora é uma merda... Ou
não é?

MARIANA
Júlia!!! Eu não sabia que você se preocupava com essas questões...

JÚLIA
Claro que me preocupo, mãe! A senhora é que nunca se deu uma oportu-
nidade para me conhecer melhor...

MARIANA
Não me dei uma oportunidade?... Quantas vezes eu tentei ter conversas as-
sim com você, minha filha! Abrir o meu coração... Falar do seu pai, das idéias
que ele tinha, das coisas em que ele acreditava...

JÚLIA
Mas sempre com pedras na mão, com resposta pronta pra tudo... Sempre
querendo ter a última palavra... Me agredindo, como acabou de fazer ainda
agora... Me tratando como se eu tivesse cinco anos de idade... Eu já deixei de
ser criança há alguns anos, mãe, e se quer saber... Nunca me acostumei à idéia
de não ter conhecido meu pai... Nunca...

MARIANA
E só agora você vem me dizer isso?

JÚLIA
Se você não estivesse o tempo todo preocupada só com o seu próprio so-
frimento, já teria percebido isso... Quantas vezes eu tive que dissimular e até
mentir por causa disso...
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35

MARIANA
Mentir?!...

JÚLIA
É, mentir... Quantas vezes eu disse, com o coração apertado, que o meu
pai tinha morrido só para não ser olhada com aquela falsa piedade com que
algumas pessoas olham pra nós nessas situações... No curso primário...
Lembra-se das minhas crises de choro na escola primária?... Eu via os pais
irem buscar as outras crianças e ficava esperando que um dia o meu pai
aparecesse na porta da escola também, me beijasse e abraçasse, me pusesse
no colo, como os outros faziam... Mas ele nunca aparecia. Você dizia que
ele estava vivo... Mas lá, no meio das outras crianças, eu tinha vergonha de
não ter o meu pai... Eu dizia que ele tinha morrido numa viagem... E a cul-
pa era sua...

MARIANA
Minha?!!

JÚLIA
Sua!, sim, senhora... De quem mais seria? Sempre me escondendo a
verdade... Sempre evitando dizer que ele tinha ido embora para sempre,
que tivesse morrido... “Não chore, filhinha, o papai foi fazer uma longa
viagem, mas qualquer hora dessas ele volta pra casa e vai lhe trazer uma
linda boneca...” Uma longa viagem! Parece que essa longa viagem chegou
ao fim...

MARIANA
E o que é que você queria que eu dissesse?... Como é que eu podia dei-
xar de dizer essas coisas, se eu não sabia o que tinha acontecido... Descon-
fiava da morte dele, é verdade, mas não tinha a certeza. Eu não queria acei-
tar ou descobrir que isso podia ter acontecido... Falavam de pessoas que
morriam na tortura...

JÚLIA
É engraçado, mãe... Sabia? Você me enganou, você mentiu durante
anos da minha infância... Mas sabe que com as suas mentiras você acabou
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36 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

impedindo que ele morresse para mim durante todos esses anos?... (com
um sorriso nervoso) Eu até te agradeceria por isso... Mas, e agora?...

MARIANA
Naquela situação eu me agarrei à menor das esperanças, Júlia... Quan-
tas e quantas noites acordei com o ruído da porta do elevador... À espera
de ouvir alguns toques na porta... Quantas vezes esperei por um recado, um
aviso!... As tardes solitárias no Ibirapuera, com a esperança de que ele apa-
recesse de repente... Correndo o risco de ser assaltada ou levando cantadas
de desocupados... Eu desejava do mais fundo do meu coração que o seu pai
estivesse vivo, vivo, entendeu? Eu precisava acreditar que isso era verdade!
Eu me agarrava a essa única e abençoada esperança, Júlia! Tinha que ser as-
sim para eu não enlouquecer... Eu não podia admitir a morte do homem
que eu amava... (com a voz cansada) Carreguei essa esperança comigo to-
dos esses anos, cada hora, cada minuto... Era a minha maneira de torná-lo
vivo... O meu jeito de sobreviver...

JÚLIA
É por isso! Taí... Coisa de quem foi perdendo o juízo... Foi essa sua espe-
rança estúpida de que ele ainda pudesse estar vivo que confundiu muito as
coisas aqui em casa. Isso sempre me fez muita confusão na cabeça...

MARIANA
E que mal pode existir no fato de eu ter desejado todo esse tempo que ele
estivesse vivo? Me responda... Qual o pecado de tentar fazer com que você
acreditasse nisso também?

JÚLIA
O que sempre me revoltou, mãe, foi a sua obsessão... Ver uma pessoa como
a senhora se dividir entre um sofrimento estéril e uma esperança quase doen-
tia, à espera de um milagre, ou de um fantasma que entrasse por aquela por-
ta adentro...

MARIANA (num grande desabafo)


De um jeito ou de outro, ele voltou... ou não voltou? É, ele voltou... E nin-
guém, ninguém, ouviu?, vai fazer o meu coração esquecê-lo...
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37

Faz-se novamente um instante de silêncio. Mariana e filha se entreolham.

JÚLIA
É verdade que o pai foi o único homem na sua vida?

MARIANA
Sempre fui mulher de um homem só...

JÚLIA
Que pena! Isso já não se usa, ó... Faz tempo...

MARIANA
Que bobagem! Por que é que todo jovem sempre pensa que é moderno
nas suas atitudes?... O amor não é coisa que entre ou saia de moda... Nem se
mede pelo número de parceiros na cama, ouviu?...

JÚLIA
Tá bem, não precisa agredir... Com quantos anos ele estaria agora?

MARIANA
O Jorge era oito anos mais velho que eu, portanto, faria sessenta anos...

JÚLIA
Juro, mãe, não sei se vou ter coragem... Olhar alguns ossos e pensar que é
tudo o que restou do meu pai...

MARIANA
Vai, Júlia, você vai ter coragem sim. Eu preciso de toda a coragem que vo-
cê puder juntar... Eu não quero ir sozinha...

JÚLIA
O que é que eu vou dizer para ele? Eu nem o conheci...

MARIANA
Oh, minha querida, você não tem que dizer nada...
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38 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JÚLIA
Será que ele vai me achar bonita?

MARIANA
Você está falando sério?

JÚLIA
Vou vestir a minha melhor roupa...

MARIANA
O jeans rasgado na bunda? (as duas riem)

JÚLIA
Como é que ele era?... Pode falar... Agora eu quero que você fale...

Júlia acaricia os cabelos de Mariana e faz com que ela se sente no sofá.

JÚLIA
Em que é que o papai acreditava?

MARIANA
Ele... Bom, ele acreditava num mundo mais justo, na igualdade entre os
homens...

JÚLIA
Um sonhador, um Dom Quixote?

MARIANA
Talvez, mas tinha os pés no chão. Enfrentava as situações mais difíceis com
ironia e bom humor... Era meio ranzinza, é verdade... Exigente... A disciplina
tinha que estar acima de tudo... Meio machista, como quase todos os comu-
nistas que eu conheci...

JÚLIA
Sonhador, chato e machista...
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39

MARIANA
Era duro quando precisava... Lá isso era... Mas tratava com muito carinho
as pessoas de quem gostava...

JÚLIA
Você acha que ele vai gostar de mim?

MARIANA
Enquanto viveu, deu provas disso o tempo inteiro... Sofria com a vida
clandestina que era obrigado a levar... A última vez que esteve com você ficou
horas brincando, te paparicando... Era mais criança do que você...

JÚLIA
Do que é que ele gostava?

MARIANA
Do que é que ele gostava?... Hum, depende... De uma boa macarronada
com frutos do mar... De uma caipirinha de vez em quando... Filmes do Felli-
ni... Sei lá... De rock’n’roll, dá para acreditar? Rock’n’roll! Daquele rock pesa-
do dos anos 50... Gostava de ópera também...

JÚLIA
Ópera? Música mais chata...

MARIANA
Olha quem diz... Quantas e quantas vezes você dormiu embalada por
uma, minha filha!!... (em tom de lembrança) A sua preferida era do Pucci-
ni... Lembro-me perfeitamente... Ele andava com você pela casa... E ia can-
tando bem baixinho para não acordá-la... (canta) “Nessun dorma, nessun
dorma...”

Nesse momento, deve entrar a ária na interpretação de Andréa Boccelli em


bg, subindo à medida que for chegando o final da peça.

JÚLIA
Então é por isso que eu não consigo gostar de ópera...
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40 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARIANA
Sabe qual era um dos sonhos dele?

JÚLIA
Qual?

MARIANA
Ele gostaria que nós três conhecêssemos a Itália, vivia falando em ir
visitar a cidadezinha onde nasceu o seu avô, perto de Nápoles... Já não
me lembro o nome... Queria que fôssemos lá botar umas flores no túmu-
lo da avó e do avô, que tinha o seu mesmo nome... Júlia... Júlia e Gior-
gio Alfieri!

JÚLIA
Nós ainda podemos fazer isso por ele... Não podemos?

MARIANA
Quem sabe? Ele também queria conhecer Cuba... Nem uma coisa, nem
outra, coitado... Nunca saiu do Brasil...

JÚLIA
E se nós o enterrássemos lá?

MARIANA
Não sei se permitiriam uma coisa dessas... Mas é uma idéia... (enxuga os
olhos) Vamos, vá se aprontar, senão chegamos atrasadas ao religioso...

JÚLIA
Fale um pouco mais... Fale mais um pouco do meu pai... Ele tinha os
olhos claros como os meus?

MARIANA (sorri)
Os olhos dele eram mais bonitos...
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41

A música vai cobrindo as duas ou três últimas falas das duas mulheres
enquanto a luz cai sobre elas. À esquerda da cena, uma inscrição aparece len-
tamente numa bandeira que se desenrola: “aos que lutaram por um Brasil
mais digno, a nossa gratidão”.

Ouve-se ainda um pouco de Puccini. A luz volta sobre as atrizes para os agra-
decimentos.

FIM

Izaías Almada
julho/2001
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42 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

IZAÍAS ALMADA
faz o curso de interpretação teatral do Teatro Universitário de Minas Gerais
(1961/1962); estuda por dois anos na Escola de Arte Dramática de São Paulo
(1963/1964); atua na peça Arena Conta Zumbi, de A. Boal e G. Guarnieri
(1965); atua na peça O Inspetor Geral, de Gogol, encenação de A. Boal (1966);
atua em Cândido, de Voltaire, no Studio São Pedro, encenação de Miriam Mu-
niz (1971); com Paulo Autran, participa das montagens de Cosi e Si Vi Pari, de
Pirandello, direção de Flávio Rangel e Les Femmes Savantes, de Molière, dire-
ção de Silney Siqueira e atua, ainda, no musical O Homem de La Mancha, de
Dale Wassermann, com encenação de Flávio Rangel (1971/1972); participa da
montagem de Cemitério de Automóveis de Arrabal, em Lisboa, com encenação
de Victor Garcia (1973); trabalha como criador e realizador de filmes publici-
tários (1975/1990); publica os romances A Metade Arrancada de Mim (1989 –
Prêmio APCA de Revelação Literária) e O Medo por Trás das Janelas (1991);
publica o romance Florão da América (1994); ganha o Prêmio Vladimir Her-
zog de Jornalismo com a peça Uma Questão de Imagem (1995), encenada em
2001; lança o livro de contos Memórias Emotivas (1996); é co-autor da peça
Lembrar É Resistir, encenada no antigo DEOPS de São Paulo (1999/2000); es-
creve a peça Pai, apresentada no projeto Ágora Livre Dramaturgias do Ágora
Teatro, em São Paulo e lança o livro de contos eróticos O Vidente da Rua 46
(2001); publica o livro Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência, auto-bio-
grafia de memórias sobre o Teatro de Arena de São Paulo (2004).
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SÓ MAIS UM INSTANTE
dramaturga: Marta Góes
debatedor: Fauzi Arap

MONTAGEM

direção: Aline Meyer e Juca Rodrigues


elenco: Carlos Baldim, Thais Aguiar e
Vany Alves
cenário e figurino: Leopoldo Pacheco
trilha sonora: Tunica Teixeira
luz: Juca Rodrigues e
Rodrigo Guimarães
produção executiva: Aline Meyer

Só Mais Um Instante é uma versão do texto Quem Conta!, escrito em agosto de 2001
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44 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SÓ MAIS UM INSTANTE
Marta Góes
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45

CENA 1

o presente
Atrás de uma mesa tosca, Lena arranja cuidadosamente flores num vaso.
Escolhe no maço sobre a mesa cada flor, corta calculadamente as hastes com
tesoura de jardineiro e vai espetando no vaso. Cantarola.

Cao entra correndo pelo lado oposto e perde o impulso subitamente, ao vê-
la. Hesita, recua, faz meia volta e sai pelo mesmo lugar por onde entrou.

CENA 2

10 anos antes
Isa entra, com os sapatos na mão, fecha cuidadosamente a porta e cruza a
sala na ponta dos pés. Pára ao ver Cao.

ISA
Ah, Cao, ainda bem que você está acordado. Eu precisava falar com
alguém, eu não ia conseguir dormir sem contar pra alguém. Cao, você
nem sabe com quem eu estava até agora, você nem sabe quem veio me
trazer em casa. Eu estou namorando o Alexandre, Cao. O Alexandre me
ama, está apaixonado por mim. Escutou o que eu falei? Cao, você está
passando mal?

CAO
Péssimo, Isa, péssimo. A sala está rondando, a cadeira está rodando...
Manda parar, Isa, por favor, manda parar.

ISA
Você está bêbado, Cao. O que foi que você tomou?
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46 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO
Tudo, Isa, tudo. A gente foi no Samambar, eu tomei cerveja. Depois a
gente foi na festa daquela garota, tinha champagne. Aí, depois, a gente
começou a tomar vodka. Isa, acho que eu não vou agüentar. Acho que eu
vou morrer.

ISA
Você vomitou?

CAO
Vomitei, na festa.

ISA
Ai, que horror! Alguém viu?

CAO
Todo mundo viu. Na frente de todo mundo. A mãe da Ângela viu. Ai,
pelo amor de deus, Isa: eu quero esquecer...

ISA
Você vai ter que enfiar o dedo na garganta e vomitar mais, Cao, pra is-
so passar mais depressa. Eu tenho prática, pode confiar. Senão, pode demo-
rar horas e horas. Senão, a mamãe vai acordar e vai te encontrar aqui.

CAO
Não, pelo amor de deus! Dedo na garganta, não. É muito ruim, Isa, é
muito ruim.

ISA
É ruim, mas passa logo, Cao. Enfia o dedo na garganta e acaba com is-
so de uma vez, vai. Aí, você vai dormir em paz. Amanhã é domingo, você
pode dormir até tarde.

CAO
A mãe da Ângela vai ligar prá mamãe. Ela vai contar tudo.
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47

ISA
Ah, vai, ô, se vai. O único jeito é contar você mesmo. Conta tudo. Não
é nenhum crime. Assim, se a mãe da Ângela ligar, a mamãe já sabe tudo.

CAO
Você acha que eu posso contar tudo prá mamãe?

ISA
Claro que pode. A mamãe não é nenhuma idiota.

CAO
Mas não foi só cerveja e champagne e vodka.

ISA
Não foi só cerveja, champagne e vodka?

CAO
Não. A gente estava queimando fumo no banheiro.

ISA
Queimando fumo no banheiro? E você ainda vomitou?

CAO
Eu vomitei. Aí, ela foi olhar no banheiro e descobriu.

ISA
Puta que o pariu! Agora só falta você ser viado e traficante de drogas.

CAO
Não, Isa, juro que não.

ISA
Você tem que contar prá mamãe antes que a mãe da Ângela conte.
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48 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 3

manhã seguinte; cozinha


Isa entra a tempo de ouvir Cao dizer a Lena:

CAO
Ela falou: você sabia que eu conheci você desse tamanhinho, mas você
não sabia é que eu conheci sua mãe desse tamanhinho, também. Nós duas
fomos colegas de classe.

LENA
Ela adora contar isso.

CAO
Toda vez que ela me vê, ela conta. Aí, eu tirei ela pra dançar, ela adorou.

LENA
Você tirou a Olga pra dançar o quê?

CAO
Roque, mãe. Eu não sei dançar outra coisa.

LENA
E ela dançou?

CAO
Claro, mãe. Por quê? É tão esquisito assim? (imita a amiga da mãe dan-
çando, antiquada; canta: pata pata?; Lena morre de rir)

LENA
Pára com isso, Cao, vai entornar tudo. Foi bom ontem, Isa?

ISA
Foi ótimo, mãe. (Lena liga a batedeira e vira de costas para Cao) Que his-
tória é essa que você está contando pra mamãe, Cao?
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49

CAO
O resto eu vou falar depois, depois.

ISA
Eu acho melhor você falar de uma vez, antes que...

CAO
Não enche, Isa. Eu sei a hora.

LENA
(desligando a batedeira) A Olga era chiquérrima. Desde o jardim de in-
fância. Nós morríamos de inveja dela, porque ela tinha uma lancheira toda
de estrelas e porque ela levava guaraná de lanche. Na adolescência, a gente
ia muito pra fazenda dela. Depois, ficamos anos sem nos ver. Mas, quando
seu pai morreu, ela me mandou um cartãozinho muito carinhoso. Ela é
meio chata, às vezes, mas é uma pessoa boa.

Liga a batedeira, vira de costas, continua falando e os dois saem.

CENA 4

na varanda

ISA
Volta lá já e fala com ela. Conta tudo pra ela. Pelo menos, ela já não vai ter
que engolir tudo o que a Olga vai meter nos ouvidos dela. Porque tudo o que
a Olga deve estar querendo, a essa altura, é que alguém -que não seja a filha
dela – seja o culpado por essa encrenca toda. Volta lá já e fala com ela!

CAO
Não posso, Isa. Não, eu não agüento.

ISA
Sabendo por você, a mamãe vai ficar em pânico, mas pelo menos não
vai ter que fazer aquele número da mãe em pânico para impressionar a
outra, entende? Ela vai se atracar com você, vai perguntar “onde foi que eu
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50 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

errei?” Vai fazer tudo. Mas você vai explicar que você não é um viciado em
drogas, eu vou dizer que eu também experimentei, que não vai acontecer
mais nada. E não vai acontecer mais nada mesmo, está entendendo?

CAO
(emburrado) Tô entendendo, tô entendendo.

ISA
Então vai falar com ela agora.

Som de telefone. Duas vezes. Lena atendeu lá dentro.

ISA
Olhaí. Tá vendo? Não falei? Você é um idiota, Cao, eu estou com ódio
de você. Ódio.

CAO
Chega, Isa! Você quer que eu faça o quê? Que eu me suicide? Já fiz a caga-
da. Está feita. Eu já estou me sentindo o cara mais delinqüente do mundo, o ca-
ra mais cagão do mundo, se te consola. Mas o que que eu posso fazer, porra?

ISA
Podia ter falado.

CAO
Não podia. Eu não sei, eu não consigo.

LENA
(off) Antonio Carlos! Faz favor de vir aqui, Antonio Carlos!

Lena aparece na porta. Cao entra, a porta se fecha. A luz cai.

CENA 5

LENA
(para Isa) Ele fez tudo, exatamente tudo o que me deixa desesperada.
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51

Tive que ouvir da Olga aquele velho show de como é que se educam os fi-
lhos, que ela adora fazer pra cima de mim. "Onde é que eles estão estudan-
do, Leninha? No Colégio Equipe? Mas não é um caos? Ouvi dizer que não
dão o menor limite... A gente prefere uma linha mais tradicional" "A Isa
volta de táxi? Ah, não, lá em casa, eu e o Zeca fazemos questão de pegar na
festa. Pode ser a hora que for, mas a gente vai buscar". Aí, eu fico me achan-
do um lixo, um horror de mãe. Ela faz o maior show pra cima de mim, me
dá conselhos, num tom meio piedoso, detestável, porque ela acha que é as-
sim que se fala com viúva. E já estou até vendo a cena do Nelson, que é "bo-
níssimo" pra nós e só quer ouvir boas notícias: primeiros lugares, notas
sensacionais. Se ele souber disso, eu mato o Cao.

CENA 6

CAO
Falar com a mamãe é a coisa que eu acho mais difícil no mundo, Isa. Vo-
cê não entende?

ISA
Não. Não entendo. O que é que ela pode fazer? Te bater? Te matar?

CAO
Não, Isa. Ela pode ficar triste. É isso que ela pode fazer. E isso é a coisa
que eu tenho mais medo no mundo: ver a minha mãe triste.

ISA
Mas, Cao, todas as mães ficam tristes alguma hora. Não existe um ser
humano que fique alegre 24 horas por dia. Como é que...?

CAO
Mas as outras mães, Isa, elas têm tristezas pequenas, entende? Elas ficam
tristes porque a torradeira quebrou, porque o cara não veio consertar a pia,
porque a festa foi ruim, e a mamãe...

ISA
E a mamãe o quê?
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52 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO
A mamãe, ela lembra do dia em que o papai morreu, Isa.

ISA
(doce) Ela lembra, é claro que ela lembra. Que nem você, que nem eu,
Cao. Mas não é mais igual ao dia em que ele morreu, Cao. Aquilo já pas-
sou, ela já criou um calo, entende? Ela tocou a vida dela, a gente, a nossa. A
gente tem uma vida. Pode não ser a perfeição, mas cada família tem lá os
seus bodes, mesmo quem tem pai.

CAO
Eu fico desarvorado, se a mamãe não está bem. Eu passei a vida checando
se a mamãe estava bem. A voz da mamãe, a cara da mamãe de manhã. Quan-
do ela sorri e eu vejo que está tudo normal, ah!, que alívio. Aí, eu relaxo e co-
meço o meu dia. Se a voz está estranha, a cara ruim, eu entro em pânico.

ISA
Mas, Cao, é impossível fazer isso que você queria: ficar permanente-
mente feliz...

CAO
Eu sei que é loucura, Isa. Claro que é loucura. Ninguém pode ficar feliz
o tempo inteiro. E até, depois que ela me explica: "ah, foi aquele seu Heral-
do, do Itaú, que devolveu um cheque meu", ou então: "você acredita que
aquela maldita ignição quebrou outra vez?" Depois que ela me explica on-
de que tá pegando, eu fico aliviado. Mas aquele instante em que eu olho
para a mamãe é crucial. Pra mim, a hora que eu olho para ela pode ser, ou-
tra vez, a hora em que ela contou pra gente que o papai tinha morrido. A
gente chegando da escola, a casa cheia, aquelas pessoas olhando esquisito
prá gente, a gente procurando a mamãe, tentando entender, a mamãe de
costas, naquela janela que dá pro quintal dos fundos. E de repente ela se vi-
rou para para nós e o rosto dela estava daquele jeito, daquele jeito que eu
tenho pavor de ver outra vez. Não era mais a mãe que eu tinha quando eu
saí de manhã prá escola. Ela abaixou pra nos abraçar, ela apertou forte, eu
não entendia o que ela dizia. Papai não vai mais voltar. Mas, pra mim, a
única coisa que eu pensava era: será que mamãe vai ficar assim prá sempre?
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53

Será que ela nunca mais vai ser daquele outro jeito, do jeito que ela era até
hoje de manhã?

CENA 7

Lena pendura roupas no varal. Acha, secando, um sutiã de renda preta.


Examina-o demoradamente. Isa entra, procurando alguma coisa entre as
roupas penduradas. Acha o sutiã de renda na mão de Lena. Fica meio des-
concertada.

LENA
(largando o sutiã) Vai sair?

ISA
Vou.

LENA
Vai na casa da Cam?

ISA
Talvez. Não sei ainda.

LENA
Tem festa ou...

ISA
Não. Vou sair com uns amigos.

LENA
Seus amigos da escola?

ISA
Não, uns amigos novos.

LENA
Ah. O que é que eles fazem?
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54 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
Eles fazem artes plásticas.

LENA
Ah, que legal! Na Escola de Belas Artes?

ISA
Não, não. Eles já se formaram.

LENA
Ah! São artistas!

ISA
É. Já são artistas.

LENA
Alguém conhecido?

ISA
Ainda não.

LENA
Traz eles aqui um dia, pra eu conhecer.

ISA
Eu estava pensando mesmo em trazer. Eu não sabia se... Eu pensei que...

LENA
Você pensou que...?

ISA
Tem um deles, em especial, que eu queria que você conhecesse, mãe,
porque a gente está namorando.

LENA
Ah, é? Você está contente?
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55

ISA
Muito, mãe. Eu estou muito apaixonada.

LENA
Filha...

ISA
Eu não sei se você vai achar muito boa idéia, sabe, mãe?

LENA
Eu não vou achar boa idéia?

ISA
Ele é separado, mãe.

LENA
Ele é separado?

ISA
É.

LENA
Quantos anos ele tem, filha?

ISA
Ele tem 32, mãe.

LENA
32, filhinha!? Mas você só tem 18!

ISA
E ele tem um filho.

LENA
(sentando) Meu deus, Maria Luisa, eu nem acredito no que eu estou ou-
vindo. Você está namorando o pai de um filho?
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56 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
Estou, mãe.

LENA
Mas não é nada assim muito sério, é?

ISA
Bom, mãe, eu estou apaixonada por ele. Isso é sério, não?

LENA
Um homem separado, Isa, com filho? Não podia ser nada mais simples,
não?

ISA
Mãe, não é uma falha de caráter ter um filho, é?

LENA
Não começa, Maria Luísa, não começa a me tratar desse jeito. Como se eu
fosse uma carola, uma idiota. Eu estou surpresa, tenho direito de ficar. Eu fico
preocupada, eu fico confusa. Você é uma garota, devia namorar os garotos da
sua idade e não um senhor de 32 anos. Não é legal, não é saudável, entende? Eu
não vou aceitar esse namoro. Você está proibida de namorar esse sujeito.

Cao sai de repente de trás de um varal, assoviando, para disfarçar que ou-
viu a conversa.

ISA
(irritada) O que é, Cao, está procurando alguma coisa?

CAO
Nossa! Que que deu na boneca? Tá nervosa! (sai)

Silêncio pesado entre as duas.

ISA
Saudável, pra você, é o quê, mãe? É namorar uns pirralhos, dar uns
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amassos nas festinhas e telefonar pras amigas no dia seguinte, pra contar?
Eu já passei dessa idade, você não notou?

LENA
Eu notei, sim. Eu não sou tão idiota quanto você pensa. Eu sei que você
dorme com seus namorados, se é isso que você quer me dizer.

ISA
Não, não era isso que eu queria dizer.

LENA
Bom, de todo modo, você deu um jeito de eu saber, esquecendo suas
pílulas no meu banheiro, jogando teste de gravidez no lixo do seu banheiro.

ISA
Você preferia não saber, né, mãe? Não saber e não contar. Que nem você
faz.

LENA
Posso saber de quê que você está falando?

ISA
Estou falando que você também sai, de vez em quando, e chega de
madrugada, mas é segredo. Todo mundo finge que não viu.

LENA
Eu não tenho que dar satisfação da minha vida pra uma pirralha desres-
peitosa. Você às vezes é ruim comigo, Isa. Me espanta ver a raiva de mim
que de vez em quando você bota pra fora.

ISA
É porque você é tão fechada e dá tão pouca brecha pra falar de mim ou
pra falar de você, que eu só boto pra fora na hora que explode.

LENA
Eu tenho as minhas dificuldades, como todo mundo, Maria Luísa. Só
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58 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

que eu não fico falando nelas porque eu acho que a vida de vocês já foi bem
difícil, pra ainda ter que agüentar mãe lamurienta. (sai)

ISA
(com pena) Mãe...

CENA 8

casa
Cao entra, Lena está esperando ansiosamente.

LENA
Como foi, filho?

CAO
Oitentinha, mãe.

LENA
Como assim, oitentinha?

CAO
Pelo gabarito do cursinho, eu acertei oitenta por cento das questões.

LENA
E quanto precisa pra entrar?

CAO
Ah, vai depender da nota de corte. Se for igual ao ano passado, com
setenta, eu já estou dentro.

LENA
Mas então foi ótimo! Que bom, filho! Parabéns.

ISA
(entrando) Foi boa a prova?
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59

LENA
Ele acertou oitenta por cento, Isa!

ISA
Nossa, Cao! Oitenta por cento no vestibular da GV? Você é um caso
raríssimo.

LENA
Eu estou achando que logo logo nós vamos ter um calouro em casa...

CAO
Me aguardem.

Lena sai.

ISA
Cao, pára. Pára com isso. Você sabe que foi uma merda, que a prova foi
dificílima, que você não acertou quase nada.

CAO
Imagina, Isa. Tá Louca? Quem te falou? Como é que você sabe?

ISA
Eu encontrei aqueles seus dois amigos cdf no metrô. Eles estavam sain-
do da prova, conferindo gabarito. Eles estavam arrasados, Cao, e eles são
dois maníacos. Se matam de estudar desde que aprenderam a andar. Pára
de criar essa expectativa. Vai ficar mais difícil ainda, depois.

CAO
Isa, eu sou uma merda, mesmo.

ISA
Bom, Cao, qualquer pessoa que precise ser o maior espetáculo da terra
24 horas por dia acaba se sentindo uma merda, mesmo.
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60 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO
Nossa, Isa, eu vou ter que contar prá mamãe que eu vou dançar. É me-
lhor contar antes, não é? Preparar terreno.

ISA
E por que é que você não aproveita e conta pra você mesmo que você
odeia administração de empresas, que não tem nada a ver com você?

CAO
Como assim, nada a ver comigo?

ISA
Tem a ver, Cao? Estou dizendo algum absurdo?

CAO
Não sei por que eu não poderia estudar administração.

ISA
Você não acha estranho, Cao? Você gosta é de trabalhar com imagem,
você gosta de cinema. Vive enfiado em mostra de cinema, em vez de ir ao
cursinho.

CAO
Eu...!?

ISA
Cao, pelo amor de deus: comigo você não tem que fazer o bonzinho, né?
Por que é que você não assume o que você gosta?

CAO
Cinema é uma aventura, Lena. Eu preciso de uma carreira segura.

ISA
Quer parar de ser babaca, Cao? Você parece que tem 80 anos. Me recu-
so a continuar essa conversa.
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CENA 9

Lena está na sala. Cao entra.

CAO
Mãe?

LENA
Hmm?

CAO
Mãe, eu preciso te falar uma coisa.

LENA
Hmm.

CAO
Mãe, eu acho que...

LENA
Acha que...?

CAO
Eu acho que eu entrei.

LENA
Você acha que você entrou na faculdade? É isso que você está me contando?

CAO
É. Não. Calma, mãe, deixa eu explicar.

LENA
Explica de uma vez, eu estou ficando nervosa. Entrou ou não entrou?

CAO
Entrei, mãe.
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62 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
Entrou, meu filho! Você vai estudar na GV, igual a seu pai, igual a seus tios!

CAO
Não, mãe, não. Não foi na GV.

LENA
Ah, não? Foi onde, então?

CAO
Foi num curso técnico de contabilidade na Fundação Armando Álvares
Penteado.

CENA 10

ISA
Mãe, eu tenho uma coisa importante pra falar com você. Pra falar com vocês
dois.

LENA
Ai, meu deus, coisa importante da Isa é um perigo. Fala logo.

CAO
Que coisa?

ISA
Mãe, Cao, sabe... o Alê... Eu e o Alê, a gente vai casar.

LENA
Casar?

ISA
Mais ou menos. Não casar no papel, dar festa, essas coisas. Mas a gente está
pensando em morar juntos.
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63

LENA
Mas, Isa, vocês se conheceram ontem! Não pode ir decidindo as coisas
assim, tão depressa.

ISA
Ontem, mãe? Já faz seis meses!

LENA
Seis meses não é nada. (um fio de voz) Onde, minha filha?

ISA
No começo, até a gente arranjar uma grana pra procurar uma casa legal, no
apartamento dele, mesmo.

LENA
Você vai se mudar prá casa do Alê, filha?

ISA
Eu vou, mãe.

LENA
E você está pensando em se mudar quando?

ISA
Bom, mãe, na verdade... amanhã.

LENA
Ai, Isa, pelo amor de deus, Isa, não faz assim desse jeito, Isa. Eu preciso de
um tempo pra me acostumar com a idéia, eu fico tão insegura... O que é que o
seu pai ia dizer de uma coisa dessas, Isa? A filhinha linda dele morando num
apartamento infecto da praça da República, com um artista plástico desco-
nhecido.

ISA
Falando assim, parece uma tragédia, mesmo.
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64 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
Mas, filha, não é verdade o que eu estou dizendo?

ISA
Pra mim, mãe, a história é assim: a filhinha linda dele fez 19 anos e foi morar
com o cara por quem ela se apaixonou. O cara também está apaixonado e quer
loucamente dormir e acordar com ela todos os dias. Não é uma coisa boa da
vida, isso?

CENA 11

a mudança de Isa; um caos de roupas, caixas abertas, malas


Isa joga fora um monte de pastas de papel.

ISA
Quer ficar com esses discos de vinil? Não vou poder levar e os armários
daqui já estão entulhados de coisas que não vão caber lá.

CAO
(pegando a pilha) Deixa eu olhar.

ISA
Não. A condição é levar o pacote fechado. Você depois olha um por um e
joga tudo fora, se quiser. Agora, tem que tirar daqui.

CAO
Fechado. (sai com a pilha de discos)

Isa arrasta umas caixas, vê alguma coisa que lhe chama a atenção. Tira uma
fita de vídeo e fica olhando.

CAO
(entrando) E isso, é o quê?

ISA
Aniversário de 7 anos.
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65

CAO
(avançando e tomando da mão dela) Deixa eu ver? Deixa eu ver?

ISA
Não, Cao, se eu for parar para olhar álbum de foto, eu não vou acabar isso
nunca e eu quero acabar antes de a mamãe chegar. Evita ela se emocionar.

CAO
Evita você ver ela se emocionar.

ISA
Pode ser. O Alê vai passar às cinco e meia, com uma kombi que o tio dele
emprestou. Em duas viagens, dá pra levar tudo.

CAO
Você, espertalhona, se mudou primeiro. Agora eu fiquei por último. Vou ser
o último a sair e vou ter que deixar a mamãe sozinha.

ISA
Até parece que você está pronto para sair de casa. Ainda vai demorar anos,
Cao. Pra que se preocupar desde já?

CAO
Já estou até vendo a cena que a mamãe vai fazer na minha saída. Conheço a
mamãe. (abre um álbum de fotos e fica vendo, enquanto Isa arruma) Foi a sua
festa de Branca de Neve. Olha a Belzinha de fada! Olha o Miguel de He Man!

ISA
Cao, pelo amor de deus, vai ver foto agora!? Em vez de me ajudar, você fica
vendo foto.

CAO
Só um pouquinho, só um pouquinho. Olha a dona Geni, quando ela se
mudou pra casa do lado. E o Giancarlo, da vila, Isa. Olha a mamãe com o bolo.
A mamãe acendendo as velas. Olha: o papai.
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66 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Isa larga as caixas e senta ao lado de Cao.

ISA
Olha o papai, Cao, que contente que ele estava.

CAO
Olha a mamãe...

ISA
Que linda, ela...

CAO
Que novinhos. Que idade eles tinham nesse dia?

ISA
No dia em que eu fiz sete anos? A mamãe tinha vinte e oito. O papai tinha 31.

CAO
Eu tinha cinco.

ISA
E nós só íamos viver todos juntos mais um ano. Mas a gente nem sabia.

CAO
Ainda bem.

Luz cai. Fica só a luz do vídeo nos rostos deles e o som da festa de aniversário.
Lena entra. Cao quer fechar o álbum. Isa o impede.

ISA
Vem ver, mãe, a minha festa de 7 anos.

Os três parados diante do vídeo e o som distante da festa.


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67

CENA 12

memória de Isa e Cao


O álbum agora é um livrinho.

LENA
Olha que livrinho lindinho que a mamãe arranjou pra contar pra vocês.

ISA
(meio que arrancando das mãos da mãe) Deixa eu ver! Deixa.. Ah, já sei. É
aquela história da florzinha, da abelhinha, do golfinho e do homem gorducho
que põe o pinto na barriga da mulher dele!

LENA
(desconcertada) Ah, você já conhece o livrinho?

ISA
Ih, mãe, faz tempo. Tem na casa de todas as minhas amigas.

LENA
(aliviadíssima) Ah, então você já sabe a história!

CAO
Mas eu não sei. Homem gorducho que põe o pinto na barriga da mulher
dele?

LENA
Ah, você não leu, Cao?

CAO
Não, não li. Quero ver, quero ver!

LENA
Pois então, Cao. Olha só que bonita que a natureza é. Quando uma florzi-
nha está madura, ela...
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68 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
Mais pra frente, mãe. Mais pra frente!

LENA
Calma, Isa! Espera. Você já sabe, mas seu irmão, não. Deixa eu contar com
calma.

CAO
(ávido) Então conta com calma.

LENA
Pois então, a flor tem uma sementinha que as abelhinhas...

CAO
Não, mãe. Eu quero ver o homem gorducho que põe o pinto na...

LENA
(histérica) Já vai, já vai, espera um pouquinho!

Cao avança e vira as páginas.

CAO
Olha, tá aqui o homem, mãe. Por que ele está sem calça?

LENA
O homem é diferente da florzinha e da abelhinha.

ISA
Ah, é!? Não acredito. Conta, mãe!

LENA
O homem e a mulher, quando eles querem fazer um bebezinho, eles têm
uma sementinha também. Ele, dentro dessas bolinhas aqui, a mulher, dentro da
barriga. Então, quando eles querem ter um bebezinho, a sementinha dele tem
que encontrar a sementinha dela.
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CAO
Mãe, isso tá parecendo mais uma plantação.

LENA
Não é. Você vai ver. A mulher tem um buraquinho, olha só no desenho o
buraquinho.

CAO
Mãe! Cê tá por fora, hein? Esse buraquinho aí é a boceta!

LENA
Cao! Precisa falar assim, desse jeito tão feio? O nome desse buraquinho é
vagina. E o homem põe o pênis.

CAO
Pênis, mãe?! (ele e Isa seguram o riso)

LENA
Ok. Pode chamar de pinto, se você quiser. O homem põe o pinto...

CAO
No umbigo dela!

LENA
Não, meu filho. No umbigo, não. Na vagina.

CAO
Ih, mãe, isso tá ficando com uma cara de trepada...

LENA
Cao! (fecha o livro) Ah, desisto. É impossível falar com essas crianças. Eu
tento, mas é impossível!

CENA 13

quarto de Cao; noite


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70 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
O Alê vai morar em Barcelona, Cao. Ele arrumou uma bolsa lá, pra passar
um ano estudando, e eu vou com ele.

CAO
Você vai morar em Barcelona, Isa? Mas como é que você vai viver em
Barcelona? Você não tem dinheiro.

ISA
O Alê tem um pouco, pra começar. Depois, eu vou me descolar por lá.

CAO
Mas você não vai falar com a mamãe hoje, vai?

ISA
Não sei, ainda não decidi. Estou pensando qual é o melhor momento. Talvez
seja melhor esperar um pouco mais, pra quando eu souber mais detalhes, pra
ela ficar mais tranqüila.

CAO
Ela vai achar um absurdo você largar a faculdade.

ISA
Já sei, já sei, já estou até vendo ela falar.

CAO
Mas você acha mesmo uma boa pra você? Largar tudo, só pra ir atrás do
Alê?

ISA
Como assim, só pra ir atrás do Alê? Eu amo o Alê. A vida sem ele não tem a
menor graça, pra mim.

CAO
Bom, só me avisa o dia que você for falar, por que eu não quero estarem casa.
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71

ISA
Não quer estar em casa por quê? O que é que você tem com isso?

CAO
Não gosto dessas situações. Fico nervoso.

ISA
Você, nervoso? Imagina eu.

CAO
Isa, que dia você vai?

ISA
(hesita) Semana que vem.

CAO
Isa! Você é louca? (Isa vai saindo) Você vai matar a mamãe do coração!
Odeio a Isa.

CENA 14

sala de Lena
Os dois lêem em silêncio. Cao espreita Lena.

LENA
Sabe, Cao? Quando a Isa saiu, eu fiz um drama, achei que era uma tragédia,
mas outro dia eu percebi que eu estou suportando muito bem. E até, sem morar
junto, estou me entendendo muito melhor com a Isa.

CAO
Olha só: tá vendo? A gente acostuma com tudo.

LENA
Estava pensando até em alugar uma casa na praia, esse verão, em vez de ir
viajar com a Elza. Custa quase a mesma coisa e a gente ia poder passar um
tempo gostoso juntos. O que você acha?
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72 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO
Casa na praia? Onde?

LENA
No Sahy. Tem uma pra alugar, do lado da casa do Nelson.

CAO
Ah, é?

LENA
Só que tem que tem que dar a resposta amanhã, por que tem mais alguém
interessado. Você não acha que a Isa ia gostar?

CAO
É. Acho que ia.

LENA
Sabe o quê? Acho que eu vou ligar pro Nelson e pedir pra ela reservar a casa
pra mim.

CAO
Não, mãe, espera. Fala com a Isa, primeiro. Vê se ela já não tem algum plano
para o verão.

LENA
Será que ela tem, Cao? Ela te falou alguma coisa?

CAO
Não, nada. Só que... Sei lá. Pergunta pra ela. (sai apressado; deixa Lena com a
pulga atrás da orelha)

CENA 15

Isa entra, Cao e Lena estão acabando de jantar.


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73

LENA
Isa, meu bem! Eu estava precisando falar com você.

ISA
Ah, é? O quê?

LENA
Eu estou tramando umas coisas aqui, pro verão.

CAO
Dá licença, mãe, dá licença, Isa. Marquei de estudar na casa de um amigo.
(chispa para fora de cena)

ISA
Mãe, tenho que te falar uma coisa.

LENA
Uma coisa? O quê, Isa? Você não está grávida, está?

ISA
Mãe, o Alê ganhou uma bolsa pra estudar em Barcelona.

LENA
Uma bolsa pra Barcelona? Que maravilha!

ISA
Então, mãe. Eu acho que eu vou com ele.

Lena senta devagarzinho. Luz cai.

CENA 16

um ano depois; sala de Lena

CAO
(entrando) Hmmm... que cheiro bom de jantar!
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74 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
(indo beijá-lo) Fiz empadão. Muito trânsito?
CAO
Médio. Algum recado?

LENA
O Álvaro ligou, radiante. Entrou na Eca.

CAO
O Álvaro entrou na Eca? Cinema na Eca?

LENA
Ele não me falou se era cinema. Só falou que era na Eca.

CAO
Desgraçado! Fez a maior onda, falou que não tinha a menor chance. Entrou.
O Pedro entrou, o Chico. Acho que só eu não entrei na Eca!

LENA
Ligou também o tio Nelson. Pediu pra você ligar quando chegar. Eu acho
que ele tem uma notícia boa de trabalho pra te dar.

CAO
A Isa?

LENA
Ligou depois do almoço. Arranjou bolsa, inscrição, tudo. Até creche para
Marina. Eu estou tão em paz. Saber que a minha filha está estudando fora, e não
perdendo o tempo dela com um sujeito complicado...

CAO
Mãe, ela gosta dele, mãe. É o pai da filha dela!

LENA
Eu sei, meu filho. Mas ela tem 21 anos. Eu gostaria que ela cuidasse um
pouquinho do futuro dela, também, não?
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75

CAO
Tudo bem com ela?

LENA
Me pareceu que sim. Está gostando do trabalho, achou a creche simpática.
Diz que a Marina deu uma choradinha, mas logo acostumou.

CAO
Figuraça.

LENA
Cao, última vez, prometo: você não vai mesmo ligar pro tio Nelson?

CAO
Porra, mãe! Você é minha mãe ou mãe do tio Nelson?

LENA
Sabe o que é, filho? Eu fico aflita. Eu acho que pode parecer descaso, e ele
presta tanta atenção em você, tem tanto interesse... Ele ficou anos esperando
você ir trabalhar com ele. Ficou radiante o dia que você aceitou o lugar que ele
te ofereceu. E às vezes você é tão... frio, tão... Não trata o seu futuro assim, a pon-
tapés, Cao.

CAO
Ok, mãe. Fica tranqüila, fica. Eu vou cuidar direitinho do tio Nelson. Eu só
não quero que ele ache que eu sou aquela fantasia dele a meu respeito: um
menino muito bom, que ele ajudou a criar, pagou os cursos de línguas, a viagem
à Europa, e que é perfeito pra ajudar ele no escritório. Você entende, mãe?

LENA
Mas é ruim ser alguém perfeito pra ajudar ele no escritório? Isso não te dá
um lugar que um monte de rapazes gostariam de ter?

CAO
Não sei, mãe. Eu ainda não sei direito. E cada vez mais parece que eu não
vou ter o direito de escolher.
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76 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
Ninguém está te obrigando a nada, Cao. Se não é isso que você quer, é só...

CAO
Mãe, que tal se a gente jantasse?

CENA 17

música: There's a kind of rush


Lena, arrumadíssima, se olha no espelho. Tira um estojinho da bolsa, inspe-
ciona rigorosamente os olhos e a boca e retoca o batom. Guarda o estojo e vai sain-
do. Entra Cao, vindo da rua.

CAO
Hmm! Que linda!

LENA
(sem graça) Você acha?

CAO
(avaliando aprovadoramente) Lindona. Vai prá balada?

LENA
Tenho um jantar. Um jantar com o pessoal do...

Toca o interfone. Cao atende.

CAO
Ela já vai. (desligando) Mãe, tem um tal de Eugênio pedindo pra você descer.

LENA
(sem graça) Ah! o Eugênio. Deixa eu ir, que já estamos em cima da hora.
Tchau, meu filho.

CAO
Tchau, mãe. Divirta-se.
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77

LENA
(off) Obrigada!

Cao vai espiar pela janela. Fica agradavelmente intrigado.

CENA 18

LENA
Cao, eu encontrei uma pessoa.

CAO
Pessoa ou homem? Esse negócio de “conheci uma pessoa” é coisa de homos-
sexual.

LENA
Um homem, Cao. O que mais haveria de ser?

CAO
Mãe, você está namorando! Ela está namorando! Tenho que ligar pra Isa, já,
imediatamente.

LENA
Não, calma, Cao. Espera.

CAO
Quem é, mãe?

LENA
Ah, não sei se você vai lembrar dele. Ele era amigo do seu tio, ia pra fazenda
da Maria Augusta, há muitos anos, mas, naquela época, ele era casado com a
Miriam.

CAO
Como é que ele chama?
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78 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
Eugênio.

CAO
Eugênio... Eugênio. Não estou lembrando. Pera aí, mãe, não é o Eugênio?
Não é o Eugênio que você namorou?

LENA
É ele mesmo. Então.

CAO
Ué, mãe, mas você namorou ele há anos, ele sumiu, nunca mais deu as caras,
achei que tinha dançado totalmente.

LENA
Naquela época, não deu certo.

CAO
Por que não deu certo?

LENA
Era complicado pra mim, Cao. Era tanto conflito. Eu pensava no seu pai e...

CAO
Pensava no papai e...

LENA
Eu achava que a presença de um homem junto de mim marcava demais
a ausência de seu pai junto de vocês. Eu me sentia mal, me sentia culpada.

CAO
Como se, ficando bem quietinha, a gente nem fosse reparar que ele estava
faltando, né, mãe?

LENA
É, meu filho. Por mais absurdo que pareça, foi assim que eu vivi durante anos.
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79

CAO
Que absurdo, mãe.

LENA
Hoje eu também acho. Mas era complicado pra mim. Seu pai foi meu
primeiro namorado. Eu sentia muita culpa de querer outro homem. Quando
eu percebi que eu ainda era capaz de sentir desejo por alguém, foi uma nova
crise. Até ali, foi como se eu tivesse morrido também. Eu também estava meio
morta, estava triste, mas não tinha conflito. Mas, quando você se apaixona,
sente tesão, não dá pra disfarçar que você está viva, mesmo. Eu não agüenta-
va de culpa. E eu namorava escondido. Me sentia ainda mais culpada e escon-
dia ainda mais.

CAO
Você namorou escondido muitas vezes, mãe?

LENA
Algumas vezes, meu filho.

CAO
Você teve muitos namorados?

LENA
Alguns.

CAO
Quantos?

LENA
Que importa, Cao, que diferença faz isso?

CAO
Mas quanto tempo depois que o papai morreu que você...

LENA
Que eu tive o primeiro namorado?
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80 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CAO
É.

LENA
Dois anos depois.

CAO
Então, quando a gente era pequeno, você tinha namorado?

LENA
Tinha, meu filho. Às vezes, eu tinha.

CAO
Ah, que bom, mãe. (ela ri, aliviada) E quanto tempo faz que você reencon-
trou o Eugênio?

LENA
Ah, foi na praia, na Bahia.

CAO
Na Bahia?

LENA
Isso. Isso mesmo.

CAO
Mas, mãe, você foi à Bahia há seis meses!

LENA
Faz tudo isso? Meu deus!

CAO
Faz seis meses que você está namorando e não contou pra gente?

LENA
Eu sei que vocês devem estar me achando ridícula, mas...
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81

CAO
Estou te achando ridícula, sim. Namorar escondido dos filhos. Mãe, não
me conformo. Ridículo!

CENA 19

casa de Lena

CAO
Mas o que foi que ela falou, mãe?

LENA
Ela falou que eles vão se separar, que estão se separando, e ela vai voltar para
o Brasil com a Marina, na semana que vem. Mas ela chorava tanto, Cao, ela
chorava tanto, que até eu entender o que estava acontecendo... Fiquei até
aliviada quando ela disse o que era. Pensei que um deles tinha sofrido um aci-
dente, ou ... ou que alguém tinha morrido.

CAO
Ela explicou por que? Contou alguma coisa?

LENA
Ela disse que o Alê se apaixonou por outra mulher.

CAO
Filho-da-puta!

LENA
Eu também fiquei com muita raiva. Mas não quero pensar assim. Essas
coisas acontecem. Podia ter sido ela a se apaixonar por outro. É da vida.

CAO
Mas logo agora, que eles têm a Marina. Não podia ser antes? Encana que tem
que ser pai, que não pode nem esperar a Isa se formar, e, depois que a filha nasce,
ele se apaixona por outra?
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82 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LENA
Ai, minha filha querida, em outro país, passando por isso. Eu queria pegar
um avião agora e ir lá botar ela no colo, fazer uma canja, sei lá.

CAO
Por que você não vai?

LENA
Eu ofereci, mas ela me pediu pelo amor de deus pra não fazer isso, que ia ser
insuportável alguém no meio daquele clima horroroso de separação e que na
semana que vem ela já vai estar aqui.

CAO
Ela vai ficar aqui com você?

LENA
Ah, claro, meu filho. Onde é que ela ia se meter, sozinha, com um bebê,
assim, de repente?

CENA 20

Cao e Isa; na sala de Lena, acolchoado com brinquedinhos de bebê, no chão, um


voador; um carrinho de bengalinha

CAO
Marina estranhou muito?

ISA
Nunca mais dormiu uma noite inteira. Acorda pelo menos três vezes,
chorando. As crianças percebem. Ela percebeu que eu não estava bem, primeiro.
Depois percebeu a falta do Alê, que nos últimos dias ele quase não apareceu em
casa, e depois a mudança, a despedida no aeroporto, outras pessoas, outra casa...
O mundo dela virou de pernas pro ar. Tadinha. Não está entendendo nada.

CAO
E você?
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83

ISA
Bom, eu estou dormindo, o que já é uma grande conquista. Dr. Navarro
me deu uma receita de dormonid, eu tomo meio e caio dura. A mamãe
socorre a Marina, quando ela chora. Aí, dormindo, eu já me sinto melhor fisi-
camente, fico mais legal com a Marina e ela se acalma um pouco. Eu estava
uma morta-viva. Exausta.

CAO
Faz tempo, Isa? Quando foi que ele...?

ISA
Bom, a decisão mesmo, a conversa final, foi na semana passada. No dia que
eu liguei prá mamãe. Mas a história vinha se arrastando há meses.

CAO
Ele te falou ou você descobriu?

ISA
Primeiro, eu tive uma intuição. Mas eu não podia afirmar que era alguma
coisa, mesmo, ou se era a minha insegurança. Um dia eu fui retirar um livro na
biblioteca e vi o Alê conversando com uma moça. Não estava agarrando ela, não
estava beijando, nada. Só conversando. Mas ele estava numa felicidade tão
grande, que me chocou. A felicidade do Alê conversando com aquela moça foi
um soco no meu peito. Porque me caiu a ficha de que há muito tempo ele não
sorria mais pra mim daquela maneira.

CAO
Mas podia ser uma má impressão, uma encanação.

ISA
Podia. Mas eu não queria perguntar pra ele, me expor no papel da mulher inse-
gura, entende? Se a coisa está frágil, o cara ainda fica se sentindo mais sufocado.

CAO
É. E, sei lá, todo casal tem suas crises. Podia ser apenas um momento.
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84 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
Eu me dizia isso a toda hora: é uma fantasia, uma bobagem, isso já vai passar e
eu vou encontrar de novo aquele canal com o Alê. Eu, o Alê e a Marina, a nossa
casa, a nossa vida. Eu fiquei meses nessa dúvida. Às vezes, parecia bem, às vezes,
parecia péssimo. Eu perguntava pra ele se estava tudo certo, ele dizia que estava só
meio cansado, muito assoberbado, que nas férias... Mas, aí, um dia, vi o Alê beijan-
do a Jean, ela chama Jean, dentro do nosso carro, no estacionamento da faculdade.

CAO
Merda, Isa.

ISA
Merda, uma merda. Pensei que eu ia morrer.

CAO
E ele? Ele falou o quê?

ISA
Nada. Eu esperei ele em casa, acordada, até as 2 da manhã, aquela noite, pra per-
guntar pra ele: Alê, o que é que está acontecendo? Ele chegou, rodou a chave na
porta, virou direto pro quarto e nem foi falar comigo. Se enfiou na cama. Quando
eu desisti de esperar e entrei no quarto, ele estava dormindo, coberto até as orelhas.
E foi assim no dia seguinte, e no seguinte, até que eu tive um ataque histérico, que-
brei uma sopeira linda que a gente tinha comprado em Nova York.

CAO
Aí ele falou...

ISA
É. Médio. Ele falou que não sabia se era o fim ou se era passageiro, que ainda
gostava de mim, mas que não era feliz mais, há algum tempo, desde que a
Marina nasceu, que estava numa puta crise.

CAO
Pode ser que seja isso, mesmo, Isa. Uma puta crise. Ou então ele não queria
mais, mas não teve coragem de te falar uma coisa que ia te ferir tanto.
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85

ISA
Ele não teve, mesmo, nenhuma coragem. Preferiu que eu descobrisse, que eu
tivesse esperança, que eu perdesse a esperança, que eu entrasse em desespero e,
finalmente, sozinha, assumisse a responsabilidade de dizer: Alê, eu quero me
separar. Gozado, se era pra não me ferir, ele escolheu o modo mais torturante.

CAO
Eu sei perfeitamente do que você está falando, Isa. Mas agora me fala: o que
é que eu posso fazer pra você já, hoje, imediatamente? Isa, eu não agüento ver
você sofrer desse jeito. Eu queria poder te proteger, Isa. Você me protegeu tanto,
na vida.

ISA
Não fiz nada, Cao.

CAO
Só de você estar lá, o tempo todo, decidida, fazendo o que tinha vontade,
sem ficar com medo da mamãe, sem ficar com medo de ninguém, isso pra mim
já foi uma enormidade. Eu achava você muito mais forte que a mamãe, juro.

ISA
Pra você ver como eu também sou fraca. Toda aquela pose, aquela coragem
era só com a mamãe. Com o Alê, eu fui de uma passividade que eu não acredi-
to. Eu fui atrás dele, fazendo tudo o que ele queria. Não me impus, não dis-
cordei, mesmo quando lá por dentro eu discordava... Eu pareço forte, Cao. Mas
eu descobri que eu não sou.

CAO
Espera até a semana que vem, pra você ver...Você vai levantar, Isa. Escuta o
que eu estou te falando. Você é linda, um mulherão. Os caras vão se jogar na sua
frente.

ISA
Irmão é bom porque é realista. Não é nem um pouco parcial.
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86 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 21

Isa e Cao na mesa do café

ISA
Você vai chegar pra ele e vai dizer: "Tio Nelson, preciso conversar com você.
Eu adoro você, mas eu não gosto do que eu faço aqui, do meu trabalho, e eu
quero experimentar outra coisa. Eu não sou casado, não tenho filho, posso pas-
sar uns tempo sem ganhar muito. Quero me dar essa chance, tenho certeza que
você vai entender."

CAO
Tenho certeza que você não vai entender, você quer dizer, não?

ISA
Ah, Cao, mas você não fala isso pra ele, claro que não. Você dá uma chance
pra ele ter um mínimo de cumplicidade com você.

CAO
Mas ele não vai entender, Isa, vai ficar puto. Escuta o que eu estou te dizen-
do.Vai falar: "Porra, por que é que não falou logo? Investi um dinheirão no cara,
viagens, treinamento, o diabo, e agora ele vem me falar: ah, eu não estava
gostando, tio."

ISA
Mas é a verdade, Cao. Você não está gostando! Como é que você quer que
ele descubra, se você não contar a ele?

CAO
Mas eu acabei de ganhar um aumento, Isa.

ISA
E daí? Vai passar o resto da vida infeliz, porque ganhou um aumento? Agora
ele vai poder pegar esse dinheiro e pagar a alguém que goste desse trabalho,
entende?
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87

CAO
(pausa) E também eu nem sei se vai rolar esse negócio de produtora com o
Álvaro e o Pedro. Eu não sei se eu tenho o menor jeito pra cinema. Às vezes, eu
acho que eu inventei essa história.

ISA
Não muda nada. Você não sabe ainda se quer trabalhar com cinema. Você já
sabe que você não gosta de ser administrador de empresa. Uma coisa não muda
a outra.

CAO
(sem a menor convicção) É. Não muda.

CENA 22

noite
Isa está na sala. Cao entra.

CAO
Oi.

ISA
Oi. (observa-o cruzar a sala em direção a seu quarto)

ISA
Ei!

CAO
Hmm?

ISA
Você não vai me contar?

CAO
Contar o quê?
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88 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ISA
(indignada) Contar o quê!?

CAO
Não tenho nada pra contar.

ISA
Ah, é? Me pendura o dia todo na maior curiosidade, me envolve no seu proble-
ma, me pergunta o que é que eu acho e depois fica lacônico, como se eu estivesse
invadindo a sua privacidade? Vai se foder, Cao. E não me enche mais o saco!

CAO
Desculpa, Isa. Você tem razão. Mas não aconteceu nada, mesmo. Eu não
falei. O tio Nelson foi viajar.

ISA
Foi viajar, mas volta. Ou não?

CAO
Volta. Mas o problema é que... Eu não estou conseguindo tomar essa
decisão, mesmo. Desencana, tá?

CENA 23

Cao entra. Lena está na sala.

CAO
Ela já foi?

LENA
Foi. Hoje à tarde, a kombi levou tudo. Era tão pouca coisa. Praticamente a
roupa. Isa vai ter que montar tudo do zero.

CAO
Ela não quis mesmo esperar.
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89

LENA
Você conhece a Isa. Uma impaciência, uma urgência. Fica parecendo que
morar na casa da mãe uns meses era um sacrifício insuportável...

CAO
Não, mãe, não é isso. Você sabe.

LENA
Eu sei que não é, mas é uma pressa de sair que magoa. Eu sei que ela precisa
ter a casa dela, que a Marina precisa ter a casa dela, mas, meu deus, aqui tam-
bém é um pouco a casa dela, não?

CAO
(abraçando Lena) Claro que é, mãe. Não encana, vai.

LENA
Você também está se sentindo sufocado aqui?

CAO
Você quer saber se eu tenho planos de me mudar?

LENA
Quero. Porque você também tem direito de tomar seu rumo. Só queria que
me avisasse com um tempinho, pra eu me acostumar com a idéia.

CAO
Fica tranqüila, mãe. (derrotado) Eu costumo demorar muito pra tomar
coragem...

luz indica passagem de tempo

CAO
(recordando) Naquele dia, eu ainda acreditava que era possível adiar
infinitamente todas as decisões. Eu tinha todo o tempo do mundo, e meus
sonhos podiam esperar. Logo logo eu ia aprender que é a vida quem estabelece
os prazos e que nós não somos os donos do tempo.
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90 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 24

o presente
Atriz que faz Lena e Atriz arruma as flores, como na cena 1. Ator que faz Cao
e Ator chega correndo.

CAO
(off) Corta! Corta!

Entrando com figurino de diretor. Toda a sua atitude indica que ele não é mais
um menino medroso.

CAO
Vem cá, Rosa, vamos rever a cena.

ATRIZ
Não era isso? Eu achei tão legal dessa vez...

CAO
Foi legal, mas não foi isso que eu pedi, não é isso que o roteiro pede, entende?
O que eu preciso é o seguinte: uma mulher completamente zen. Daqui a pouco,
vai chegar a filha, vai chegar a neta, que ela adora, vai chegar o filho, que está no
trabalho. Tem um empadão no forno e eles vão almoçar juntos. Depois que
tudo se acalmar, ela também vai sair com o namorado e mais um casal de ami-
gos. Vão a um concerto e depois vão jantar. A vida ficou boa de novo e ela está
celebrando tudo isso, em cada uma daquelas flores, você me entende?

ATRIZ
Entendo.

CAO
Então, dá um tempo, dá uma relaxada, depois a gente retoma a seqüência.
(no walk talk) Rogério, segura o Murilo, que eu quero falar com ele antes de
refazer a cena.
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91

ROGÉRIO
(off, no walk talk) Cao, você não vai fazer ele repetir tudo, pelo amor de deus.

CAO
Vou fazer ele repetir quantas vezes for preciso para ficar bom. Um pedido
normal dos diretores normais.

ROGÉRIO
Ele tá ficando inseguro.

CAO
Ela vai ter que encarar a insegurança dele. Se ele quer fazer o papel, o míni-
mo que se espera é que ele dê conta da insegurança dele, certo? Eu tenho que
dar conta de o filme passar o que tem que passar. Bota ele na linha.

ROGÉRIO
Yes, sir!

CAO
Murilo? Está me ouvindo bem? Hmm. Murilo, seguinte: essa cena é difí-
cil pra caralho. E tem que ficar evidente na interpretação que ela é difícil
pra caralho. Nesses poucos segundos que você vai estar em cena, você vai
ter que romper essa película fina que separa a rotina e a tragédia, você vai
ter que rasgar a sua própria casca, sair daquele lugar onde você se escondeu
a vida inteira, me entende? O Cao nunca disse as verdades que poderiam
frustrar a mãe. Ele sempre encontrou um disfarce, um escape, um subter-
fúgio. Agora, ele não tem saída. É com ele mesmo, é terrível, e ele não tem
mais nenhuma ajuda, você está me entendendo? Você entende tudo o que
está na cabeça dele nesse momento? (ouve) Então, quer tentar de novo?
Então, vamos lá.

CENA 25

rua
Cao vem andando com a raquete no ombro. Som de freada, batida de carro.
Luzes de carro de emergência girando. Vozes de transeuntes, entrecortadas.
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92 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VOZ 1
O caminhão perdeu o freio lá em cima e veio arrastando tudo.

VOZ 2
Ela tentou jogar o carro, mas não deu tempo.

VOZ 3
Meu deus! Olha o que virou esse carro!

Cao digita nervosamente um celular.

CAO
(respirando fundo) Mãe, você precisa de alguma coisa? Tá bom, tá bom. A
Isa por acaso já chegou? (desliga, disca outra vez) Dona Geni, é o Cao. Eu já sei,
dona Geni. Eu estou na rua, no lugar do acidente, eu já sei. Era a Isa, dona Geni.
A Marina está na creche. Não, dona Geni, eu consigo chegar em casa, não pre-
cisa me buscar. Mas, pelo amor de deus, dona Geni, fica na porta e não deixa
ninguém tocar a campainha, não deixa ninguém falar com a minha mãe até eu
chegar aí, a senhora está me entendendo? Pelo amor de deus, dona Geni, não
deixa ninguém contar pra minha mãe. (desliga) Deixa, que quem vai contar
sou eu.

Luz cai.

CENA 26

presente
Lena arrumando as flores concentradamente, como na cena 1. Entra Cao, com
a bolsa de tênis, silenciosamente, a contempla por alguns segundos.

CAO
Mãe?

LENA
Filho, vai tomar uma chuveirada, sua irmã já vai chegar.
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93

Ele fica imóvel, olhando. Lena olha para ele, estranhando.


Luz em Isa, com o vestido da cena 1, sorridente, feliz.

ISA
Cao?

CAO
Que estranho, Isa, querida. Eu finalmente entendi como eu tenho força. E
você não está mais aqui pra me ver. Você ia ficar orgulhosa de mim, Isa.

ISA
Cao, você não vai contar...?

CAO
Só mais um pouquinho, Isa. Deixa ela aproveitar só mais um pouquinho.
Uns segundos. (respira fundo, avança) Mãe, segura em mim. Segura com força
em mim.

Isa sorri para eles e cruza o palco com os sapatos na mão, pisando na
pontinha dos pés, até desaparecer. A luz cai.

Marta Góes
março de 2002
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94 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MARTA GÓES
jornalista e escritora. No teatro, destacam-se os trabalhos: Turistas e Refugiados,
dramaturgia para criação coletiva, direção de Renata Melo (2004); Só Mais um
Instante, direção de Elias Andreato (2002); Um Porto para Elizabeth Bishop, com
Regina Braga, direção de José Possi Neto (2001); A Safe Harbor for Elizabeth
Bishop, com Amy Irving, New York Stage and Film Festival (2004), com estréia
prevista em 2006 no Teatro Primary Stages, Nova York; A Moça que Falou Assim,
direção de Maria Lúcia Pereira (1997); Prepare seus Pés para o Verão, com
Marisa Orth e Grace Gianoukas, Teatro Off (1987). Para a televisão, escreveu
Marinalva, episódio para a série Retrato de Mulher, TV Globo (1994); É Proibido
Voar e Pequenas Autoridades, episódios para a série Joana, SBT (1986-1985);
Filhos, Melhor Não Tê-los, episódio para a série Malu Mulher, TV Globo (1982).
Traduziu Jantar entre Amigos, de Donald Margulies (2003); À Margem da Vida,
de Tennessee Williams (1998); Our Town, de Thornton Wilder (1996); As
Avestruzes, de Micheline Bourday (1979). No jornalismo, trabalhou no Jornal da
Tarde, como editora do Caderno Variedades (2001 a 2002); revista Isto É, como
editora de Comportamento (1977 a 2000), repórter de Artes e Espetáculo e críti-
ca teatral (1982 a 1985); revista Claudia, redatora-chefe (1994 a1997); O Estado
de S.Paulo, editora do Caderno 2 e crítica teatral (1988 a 1993); revista Veja, sub-
editora de Geral (1985 a 1986); Última Hora, repórter e crítica teatral (1972 a
1975); fez entrevistas para o livro Por uma Razão de Viver (Ed. Record, 1985),
biografia do jornalista e empresário Samuel Wainer. É autora do livro A Menina
que se Apaixonava (Companhia das Letrinhas, 2003).
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SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFES


dramaturgo: Hugo Possolo
debatedor: Luís Alberto de Abreu

MONTAGEM

direção: Jairo Matos


elenco: Ana Paula Aquino,
Edson Montenegro,
Javert Monteiro e Ricardo Rathsam
cenário e adereços: Delermi Produções Artísticas
figurinos: Cris Bonna
trilha sonora: Claudinei Brandão
edição de trilha sonora: Sérvulo Augusto
luz: Marcos Loureiro
produção executiva: Cris Bonna e Elza Santos
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96 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SOBRE A ARTE DE CORTAR BIFES


Hugo Possolo

Sentir é pensar sem ter idéias.


Fernando Pessoa

PERSONAGEM
AÇOUGUEIRO 1
AÇOUGUEIRO 2
AÇOUGUEIRO 3
TÁLIA

CENÁRIO
Sala de um frigorífico. Uma imensa mesa sobre a qual os personagens cor-
tam bifes com grandes facões e cutelos. O ambiente é tétrico. Ganchos por
todos os lados. Carnes penduradas.
Uma porta. Uma lata de lixo grande.

ATO ÚNICO, NU E CRU


Os três Açougueiros estão cortando carne, em silêncio. Ouvem-se apenas as
pancadas de seus cutelos sobre a carne e a mesa. Entra Tália.
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97

TÁLIA
Dionísio deixou recado para você ligar depois.

AÇOUGUEIRO 2
Depois, quando?

TÁLIA
De noite. Quando vocês tiverem terminado.

AÇOUGUEIRO 1
Parece que não vai terminar nunca.

TÁLIA
Parece mesmo. Mas não deixa de ligar...

AÇOUGUEIRO 2
Claro que não.

Tália sai. Voltam a cortar com os cutelos, pouco depois, se entreolham.

AÇOUGUEIRO 1
Acho que só vim parar aqui por causa da Tália.

AÇOUGUEIRO 2
Mentiroso! Você veio aqui por causa da grana...

AÇOUGUEIRO 1
Será que existe alguma razão para estarmos fazendo isto?

AÇOUGUEIRO 2
Se não fizéssemos, alguém faria.
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98 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1
Não com tanto prazer.

AÇOUGUEIRO 2
Não seja presunçoso.

AÇOUGUEIRO 1
Realista, meu caro. Realista.

AÇOUGUEIRO 2
Sempre me pergunto como é que vim parar neste negócio?

AÇOUGUEIRO 1
Ofício, meu caro. Ofício.

AÇOUGUEIRO 2
Sei lá, se tenho talento...

AÇOUGUEIRO 1
Vocação, meu caro. Vo-ca-ção.

AÇOUGUEIRO 2
Para cortar bifes?

AÇOUGUEIRO 3
Eu tive vontade. Trabalhava como lixeiro, aqui ao lado. Quando vinha
buscar esta lata, ficava observando os caras que trabalhavam aqui.
Fantasiava na minha cabeça que um dia estaria aqui, cortando bifes de todas
as maneiras. Só não imaginava que faria isto ao lado de idiotas como vocês.

AÇOUGUEIRO 2
Não se abale, você é só mais um.

AÇOUGUEIRO 3
E Tália?
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99

AÇOUGUEIRO 1
Nunca vai olhar para nós.

AÇOUGUEIRO 3
Certeza?

AÇOUGUEIRO 1
Esperan...

AÇOUGUEIRO 2
Já sei. (imitando o 1) Esperança, mau caro. Es-pe-ran-ça.

AÇOUGUEIRO 3
Acho que você devia trabalhar como telegrafista. Mania de reduzir
tudo. Até seus bifes são menores...

AÇOUGUEIRO 1
Menores e mais saborosos.

AÇOUGUEIRO 3
Acho que era melhor ter seguido o destino. Continuava a vir aqui só
para pegar o lixo. Seria mais simples.

Voltam a cortar os bifes, em silêncio.

AÇOUGUEIRO 2
Olha só... Segure o bife com dois dedos. (mostra) Assim. Não lembra nada?

AÇOUGUEIRO 3
Só de olhar, me dá tesão.

AÇOUGUEIRO 2
Boceta! O que interessa é a boceta. Só faço isto aqui porque este trabal-
ho me lembra boceta. Boceta é bom. É gostoso. E é sonoro: BOCETA. É boa
até para falar.
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100 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1
Vocês estão loucos. Tanto tempo aqui, cortando estas carnes, que vocês
perderam a sensibilidade. Comparando bifes com bocetas.

AÇOUGUEIRO 2
Tá certo. (mostrando os bifes) Se eu tivesse este tanto de bocetas...

AÇOUGUEIRO 3
Meu amigo, boceta tem sobrando. Por que você acha que tem tantos
veados no mundo?

AÇOUGUEIRO 2
Para sobrarem mais bocetas para gente!....

AÇOUGUEIRO 1
Prefiro xoxota. Acho mais delicado.

AÇOUGUEIRO 2
Te peguei! Também está aqui por causa de bocetas... Ou melhor, de xo-
xotas.

AÇOUGUEIRO 1
Não. Faço porque me dá prazer.

AÇOUGUEIRO 2
Que babaca! Cortar bifes te dá prazer?

AÇOUGUEIRO 1
É. Eu gosto. E daí?

AÇOUGUEIRO 3
Gosto não se discute.

AÇOUGUEIRO 2
Aí é que está. Eu acho que se discute, sim...
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101

AÇOUGUEIRO 1
Tem gente que prefere xoxota, tem gente gosta de boceta...

AÇOUGUEIRO 2
E tem aqueles que dão o cu.

AÇOUGUEIRO 3
E o que que você têm a ver com isso? O cara tá dando o cu dele, não é o seu.

AÇOUGUEIRO 2
Tá bom! Gosto e cu não se discutem. Mas que caralho leva alguém a
ficar dias e dias cortando bifes?

AÇOUGUEIRO 1
Sabe que eu nunca me perguntei isso?

AÇOUGUEIRO 2
Sério?

AÇOUGUEIRO 1
Meu avô já trabalhava nisso. Ele ensinou meu pai, meu pai me ensi-
nou... Pra falar a verdade, não me importo que seja assim. Faço porque
faço, e pronto. Tenho o que comer, onde morar. Jogo minha bolinha no
fim-de-semana, e beleza. O que mais eu vou querer?

AÇOUGUEIRO 3
Ninguém é obrigado a ter ambições.

AÇOUGUEIRO 1
Mas eu tenho ambições. Quero cortar o bife mais perfeito do mundo.
Um bife com corte desenhado. Um filé sem traços, de tal maneira requin-
tado, como se ali nunca tivesse passado uma mão humana.

AÇOUGUEIRO 2
Um bife dos deuses.
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102 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1
É. Minha vontade era encher de orgulho meu pai, meu avô, por ter con-
seguido cortar um bife divino, que os homens todos na face da terra ima-
ginassem que foi cortado por Deus.

AÇOUGUEIRO 3
E os homens na face da terra estão lá interessados em bifes? E muito
menos em quem os corta.

AÇOUGUEIRO 1
Ainda tenho a ilusão de que todos possam saber dos bifes que corto.

AÇOUGUEIRO 3
Todos? Cara, ninguém se interessa pelo que fazemos, a não ser nós mesmos.

AÇOUGUEIRO 2
Acho que você está viajando na maionese. Pra que se apurar na técnica
de cortar os bifes? Pra que um bife divino? Olha, eles são tão modificados
até serem servidos, que nem mesmo nós os reconheceríamos no prato.
Quantas vezes, diante do prato, na hora do almoço, você já não ficou em
dúvida sobre quem cortou aquele bife? E acontece assim porque você tra-
balha com isto. É um profissional. Você tem sempre essa preocupação. Tem
gente que come sem nem sequer olhar para a comida. Não está nem aí para
quem preparou a comida. Não vai se preocupar, nem fodendo, com quem
cortou o bife.

AÇOUGUEIRO 1
Tem gente que nem percebe que o bife veio da vaca.

AÇOUGUEIRO 2
E se a gente cortasse um bife humano? Será que alguém perceberia?

AÇOUGUEIRO 1
Ê, sai pra lá! Não olha pra mim, não.
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103

AÇOUGUEIRO 3
Você tá pensando o quê?

AÇOUGUEIRO 2
Não é o mesmo que eu?

AÇOUGUEIRO 3
Não. Acho que não.

AÇOUGUEIRO 1
Tô fora.

AÇOUGUEIRO 2
Não. Não seria nenhum de nós três. Não teria graça.

AÇOUGUEIRO 1
É verdade. Um tem que ser testemunha do outro.

AÇOUGUEIRO 2
Exato. Só isso justificaria a teoria de cada um.

AÇOUGUEIRO 1
E de que adianta saber quem tem razão?

AÇOUGUEIRO 2
Não vai me dizer que estamos aqui há horas discutindo para não que-
rer saber de quem é a razão.

AÇOUGUEIRO 1
Eu é que não quero ficar com a razão. Odeio ficar com a pior parte.

AÇOUGUEIRO 2
Não entendi.

AÇOUGUEIRO 1
A pior parte. Quem fica com a razão fica com a pior parte...
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104 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2
(para o 3) Acho que ele está se sentindo superior. O fracasso subiu-lhe
à cabeça.

AÇOUGUEIRO 3
Desculpe, mas não estou interessado nisso. Aliás, nem ouço vocês
falarem. Só fico esperando a minha vez de falar.

AÇOUGUEIRO 2
E o que você diria? Qual de nós daria o melhor bife?

AÇOUGUEIRO 1
Eu faria um bife seu. Mas colocaria uma Cibalena em cima.

AÇOUGUEIRO 2
Que porra de Cibalena é essa?

AÇOUGUEIRO 1
Vocês nunca ouviram falar disso?... (para o 2) Sabe o que é Cibalena?

AÇOUGUEIRO 3
Sei. Um comprimido pra dor de cabeça, não é?

AÇOUGUEIRO 1
É. Pois então, rapaz, eu já fiz a experiência. Você deixa uma Cibalena em
cima de um bife... Eu fiz com um bife alto, bem gordo. Você deixa o com-
primido em cima do bife, de um dia pro outro. No dia seguinte, meu velho,
dá nojo. Parece que deram um tiro no bife. Fica um furo no lugar do com-
primido e tudo meio preto, em volta. Tudo podre.

AÇOUGUEIRO 2
Porra, se faz isso no bife, imagina o que não faz no estômago.

AÇOUGUEIRO 1
E pensar que essa porra é feita para curar dor de cabeça...
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105

AÇOUGUEIRO 3
Pode ter certeza que de mim os bifes já sairiam mais podres que essa
merda de Cibalena aí. Puta papo chato! (se afasta dos dois)

AÇOUGUEIRO 2
Fugindo da raia, né? Fique tranqüilo, que, se eu fosse fazer um bife de
carne humana, você estaria no fim da última fila.

AÇOUGUEIRO 1
(para o 2) Se você descarta ele e eu já pulei, só falta você.

AÇOUGUEIRO 2
Tudo bem. Se eu topasse, que tipo de bife você faria? Qual é o seu estilo?

AÇOUGUEIRO 1
Meu estilo? (pensa) Meu estilo?... Meu? Próprio?... Estilo é foda. Bem...
Eu gosto de cortar em fatias finas. Com delicadeza. É melhor para o paladar
de quem vai comer. Os pedaços pequenos podem ser mais fáceis de se des-
mancharem na boca.

AÇOUGUEIRO 2
Mas nem sempre são os mais saborosos.

AÇOUGUEIRO 1
Porra, não tem nada mais saboroso numa picanha do que aquela gor-
durona escorrendo. Aliás, só vou em churrasco porque tem a gordurona.

AÇOUGUEIRO 2
É. Mas você mesmo corta esse bifes secos...

AÇOUGUEIRO 1
Secos, mas altos. Excelentes para jantares finos. Um simples pedaço de
alcatra pode ser servido como molho madeira e champignon, que o idiota
que o devorar vai ter certeza de que estará comendo um filé mignon.
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106 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2
Gostei! Nosso ofício é criar ilusões.

AÇOUGUEIRO 3
Que papo mais bicha. Para mim, vocês dois não passam de auxiliares de
cozinha se fazendo passar por açougueiros.

AÇOUGUEIRO 1
Quem sabe esse não é o meu sonho de vida?

AÇOUGUEIRO 2
O que é isso, senhor macho man? Então seus bifes são mais saborosos,
mais bonitos, mais interessantes, porque quem faz o corte adora coçar o saco?

AÇOUGUEIRO 1
Ah! É sabor do saco que dá o tempero.

AÇOUGUEIRO 3
Vão se fodê, suas bichinhas. Vocês acham que sensibilidade é ficar
vendo o tempo passar, contemplativos. Meu nego, cada bife que eu corto
é sangue puro. É o meu sangue escorrendo, que vou limpando para ofe-
recer a quem degustar. Caguei pra o que vão pensar sobre quem cortou
esse ou aquele bife. Quero mais é enfiar goela abaixo cada gota de sangue,
cada naco da carne, pra que eles compreendam que existem outras
carnes. Só com o gosto amargo na boca é que esses imbecis vão perceber
que existem outros animais em torno deles. Eles têm que se tocar que
outros animais vivem. Que o mundo não se resume ao que eles pensam
sobre eles mesmos.

AÇOUGUEIRO 1
E depois nós é que somos bichinhas.

AÇOUGUEIRO 2
Você está certo. Com gordura ou sem gordura, frescos, podres, pas-
sados, finos ou grossos, serão sempre bifes. Pedaços mortos de carne.
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107

AÇOUGUEIRO 3
Que bosta! Tu é açougueiro ou filósofo de boteco?

AÇOUGUEIRO 2
A gente corta os bifes porque as pessoas precisam do que comer.

AÇOUGUEIRO 1
As pessoas precisam viver. A carne alimenta. Ela mantém acesa a chama.
Eleva a alma. Isso! Transcendência, meu caro. Transcendência. As pessoas
comem para engrandecer suas almas.

AÇOUGUEIRO 3
Comem pra cagar depois.

AÇOUGUEIRO 2
Nada! É porque as pessoas precisam de bifes no estômago. Se não come,
morre.

AÇOUGUEIRO 1
Sei. E os vegetarianos?

AÇOUGUEIRO 2
Caralho! Nem fala nisso, que me dá nojo! Aquele bando de gente anêmi-
ca se achando superior só porque não se submete ao fato de que os seres
humanos são carnívoros vorazes. Só porque nos satisfazemos em deixar que
um bicho morto termine de apodrecer mergulhado em nossos sucos gástri-
cos. Sim. Porque os vegetarianos não entendem que a nossa natureza dispõe
de mecanismos que rapidamente consomem a carne morta. Ela mesma, a
natureza, sozinha, demora muito mais tempo para fazer a carne sucumbir. E
isso se contarmos com a ajuda de vermes e outras formas de vida inferior,
que lentamente lutam para triunfar.

AÇOUGUEIRO 1
É. Mas não dá pra negar que os vegetarianos têm uma pele ótima.
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108 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 2
Taí! Podíamos pegar um filha-da-puta de um vegetariano e fatiá-lo to-
dinho!

AÇOUGUEIRO 3
Um idiota desses não merece ser cortado por mãos habilidosas.

AÇOUGUEIRO 2
Merece. E digo mais: seria um gesto quase revolucionário. Estaríamos
mostrando ao mundo nossa supremacia: “A Incrível Arte de Cortar Bifes”.

AÇOUGUEIRO 3
Sempre fico em dúvida com o seu entusiasmo. Nunca sei se é porque você
acredita no que faz ou porque gostaria de ser primeira página de jornal.

AÇOUGUEIRO 2
Já que estamos nesta condição, posso falar sem culpa. Faço pelas duas
razões.

AÇOUGUEIRO 3
Honesto, mas não resolve o problema.

AÇOUGUEIRO 2
E quem está querendo ser honesto? Quem é que vai querer resolver
algum tipo de problema? Ser primeira página de jornal e acreditar no que
faço têm o mesmo objetivo: que o mundo saiba do significado de cortar
bifes. É tão simples.

AÇOUGUEIRO 1
Nós cortamos bifes. Só isso. Tem quem os embala. Tem quem os tem-
pera. Tem quem os vende. Nossa função se resume a cortar bifes. De que
adianta ficar horas discutindo o que será feito deles? Tudo bem, a gente
sabe que serão mastigados, digeridos etc. Mas não controlamos isso. O me-
lhor que temos a fazer é aperfeiçoar nossa maneira de cortar bifes. Esse é
ponto. Temos que ser perfeitos no corte.
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109

AÇOUGUEIRO 3
E chegaremos a ser tão prefeitos, que os bifes perderão o sabor!

AÇOUGUEIRO 2
Isso é verdade. De que vale fazer bifes perfeitinhos, redondinhos? Vão
achar que são hambúrgueres.

AÇOUGUEIRO 1
Vai ter gente falando que trabalhamos no McDonald’s.

AÇOUGUEIRO 2
Olha aí, pela primeira vez no dia, estamos concordando. Não queremos
que nossos bifes sejam tratados como meros hambúrgueres do
McDonald’s.

AÇOUGUEIRO 3
Mas temos uma porção de colegas que sonham que seus bifes sejam
confundidos com um "mac"!

AÇOUGUEIRO 2
(ri) Alguns até fazem uns bifinhos bem "mac-bifes"!

AÇOUGUEIRO 3
(ri) E pior é que nem percebem!

AÇOUGUEIRO 1
Sacanagem! Rir de caras assim é chutar cachorro morto.

AÇOUGUEIRO 2
Tem trouxa que enfeita o bife de tal maneira que tem gente que come e
nem percebe que aquilo é um "mac". Um "mac-bife"!

AÇOUGUEIRO 1
Isso tem de montão.
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110 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

AÇOUGUEIRO 1
Isso tem de montão.

AÇOUGUEIRO 2
Tem cara que enfeita a coisa pra ela ser comprada como outra.

AÇOUGUEIRO 3
É pra conseguir ou mesmo garantir o empreguinho no "Mac".

AÇOUGUEIRO 1
E qual é o problema de o cara querer um emprego assim?

AÇOUGUEIRO 2
É. Ele só quer manter sua sobrevivência.

AÇOUGUEIRO 3
Manter a sobrevivência ou garantir o dele?

AÇOUGUEIRO 2
Ainda assim. Você não acha que o cara tem que cortar o bife como qui-
ser? Então, ele não tem a liberdade de querer se garantir?

AÇOUGUEIRO 3
Toda. Que seja feliz. Mas o que me incomoda é a fachada. O puto diz
que faz uma coisa porque no fundo quer fazer outra? E ainda tira espaço de
quem quer fazer só aquilo. Eu gosto de cortar de bifes. Ponto. Se alguém
quiser cortar também, ótimo. Agora, o cara usar o meu ofício para ser va-
lorizado em outro, aí é foda.

AÇOUGUEIRO 2
É foda, não. É falta de caráter.

AÇOUGUEIRO 1
E é preciso ter caráter para cortar bifes?
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111

AÇOUGUEIRO 2
(para o 3) Vai dizer que você nunca cortou o próprio dedo?

AÇOUGUEIRO 1
É capaz até de ter transformado a mãe em bife e nem ter percebido.

AÇOUGUEIRO 3
Se transformou em bife, ainda vá lá! Se justifica. Duro é se jogou no lixo
com as gorduras que vão virar sabão.

AÇOUGUEIRO 2
(ri) Aí é divertido! A mãe virando bolhas! Burf! Burf! Mamãe é bolha de
sabã-ão! Mamãe é bolha de sabã-ão! Mamãe é bolha de sabã-ão!

AÇOUGUEIRO 1
Cada um usa a mãe pro que bem entender.

AÇOUGUEIRO 3
Afinal, a única coisa que você pode dizer que é sua mesmo, de verdade,
é a sua mãe.

Riem juntos. Silenciam. Voltam a cortar carne, fazendo forte ritmo com os
cutelos na mesa. Um tempo depois...

AÇOUGUEIRO 2
O que nos falta é coragem.

AÇOUGUEIRO 1
Pra quê?

AÇOUGUEIRO 2
Pra fazer um bife de carne humana.

AÇOUGUEIRO 1
Competência, meu caro. O que nos falta é competência.
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112 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Silenciam novamente. Voltam a cortar carne. Um tempo depois...

AÇOUGUEIRO 3
Acho que ainda não temos o que precisamos. Só isso.

AÇOUGUEIRO 2
Não sei... Não sei.

Voltam a cortar carne, com gestos mais rápidos e violentos.

AÇOUGUEIRO 1
Essas conversas me cansam...

AÇOUGUEIRO 2
Sempre achei que aqui era o Olimpo...

AÇOUGUEIRO 3
Demora para descobrir que é o Inferno.

Tália entra na sala. Os três se assustam.

TÁLIA
Eu já estou indo. Vê se não esquece de ligar pro Dionísio?

AÇOUGUEIRO 2
Não, Tália. Não.

TÁLIA
Que jeito mais esquisito de falar “não”... Você não vai ligar pro...

AÇOUGUEIRO 2
Não. Não é isso. Você é que não vai embora.

TÁLIA
Como?
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113

AÇOUGUEIRO 3
Acho que já temos o que precisamos...

AÇOUGUEIRO 2
É. Só falta coragem.

Os três seguram Tália suavemente, ameaçando-a com os cutelos. Luz cai


lentamente.

FIM?
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114 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

HUGO POSSOLO
Palhaço, dramaturgo, cenógrafo, figurinista, ator e diretor teatral, é fun-
dador do grupo Parlapatões. Participou dos principais festivais brasileiros:
FIAC (SP); FILO (PR); FIT (MG); Porto Alegre em Cena (RS) e Festival de
Curitiba (PR). Suas montagens já estiveram na Espanha, Portugal, E.U.A.,
Escócia, Colômbia e Uruguai. Em dramaturgia destacam-se: Sardanapalo
(1993); Zèrói (1994); U Fabuliô (1996), representante oficial do Brasil, na
Expo 98, em Lisboa; Não Escrevi Isto (1998), Prêmio Shell (melhor
cenografia); Farsa Quixotesca (1999), com a Pia Fraus, Prêmio Panamco
(autor e melhor espetáculo) e APCA (melhor espetáculo); Pantagruel
(2001). Recebeu o Grande Prêmio da Crítica APCA pelo evento Vamos
Comer o Piolin. Em circo, roteirizou e dirigiu Urbes (2003), com Fractons,
e Stapafúrdyo (2006), Circo Roda Brasil. Foi Coordenador Nacional de
Circo da Funarte, Ministério da Cultura (2004/2005).
Em ópera dirigiu A Flauta Mágica (96); Gianni Schicchi (98); Il Campanello
Di Notte (2005), todos sob regência de Abel Rocha e Infidelidade Fracassada
(2005), de Haydn, com regência de Roberto Minczuc.
Trabalhos mais recentes: O Bricabraque (2004), direção e a dramaturgia, e
Prego Na Testa (2005), de Eric Bogosian, direção de Aimar Labaki, indica-
do ao Prêmio Shell (melhor ator).
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A CABEÇA
dramaturgo: Alcides Nogueira
debatedor: Aimar Labaki

MONTAGEM

direção: Márcia Abujamra


elenco: Débora Duboc, Leopoldo Pacheco e
Marcelo Várzea
cenário: Márcia de Barros
figurino: Leopoldo Pacheco e Sylvia Moreira
trilha sonora: Alcides Nogueira
luz: Negra e Pepe
produção executiva: Jerusa Franco
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116 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

A CABEÇA
Alcides Nogueira
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117

CENA 1

RUBRICA
Um espaço qualquer. É o escritório do Dramaturgo. Uma mesa está ali,
com um computador. Uma luminária. Há um velho tapete caucasiano. É
também uma estação de metrô. Uma praça. Há uma janela que dá para o
mundo. Ou o mundo dá para esse espaço. Luz de serviço. O Dramaturgo
olha pela janela. A Personagem está em um canto, olhando. A Rubrica está
sendo uma rubrica. O Dramaturgo vem para sua mesa. Estende as mãos em
silêncio. Olha para os seus dedos.

DRAMATURGO
Como se eu fosse tocar um Prelúdio de Scriabin.

RUBRICA
Ouve-se um Prelúdio de Scriabin, que ecoa por todo o espaço, furioso,
agitado. A luz cai, ficando apenas focos: sobre o Dramaturgo, que digita;
sobre a Rubrica; sobre a Personagem, que se levanta. Cessa o Prelúdio de
Scriabin.

DRAMATURGO
Acabei de chegar do hospital, aonde fui visitar um amigo doente. Ele vai
morrer dentro de poucas horas. O câncer já tomou conta de tudo. Ele foi
tirado da UTI e levado para o quarto. Não vai viver mesmo... A UTI é para
aqueles que têm chance, e o quase-morto não pode ocupar um leito. Abri
a porta do quarto e fiquei parado. Ele me olhou com ódio. Como se eu es-
tivesse tirando a vida dele. Não senti nada. É um amigo muito querido. Um
amigo da adolescência. Mas não senti nada quando ele disparou aquele
ódio contra mim, como uma bala de revólver. Não nos falamos. O que po-
deria ser dito? Ele nem tem mais pulmão, mas deixei um maço de cigarros
na mesinha ao lado da cama e saí.
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118 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBRICA
O Dramaturgo segue para uma estação de metrô. O trem chega, ele
consegue um lugar e começa a ler. É uma matéria dobre Guy Debord. Cai
toda a luz e entra uma projeção na parede dos fundos.

projeção: A Sociedade do Espetáculo

RUBRICA
Foco sobre o Dramaturgo digitando furiosamente.

PERSONAGEM
“Os arabescos formados no ar por esses insetos, traças, notoriamente
cegos, circulando em torno de uma luz de vela à noite...”

DRAMATURGO
Sidonius Appolinarius...

RUBRICA
O Dramaturgo pára de digitar. Sai de sua mesa, agitado.

DRAMATURGO
Eu não sou bom! Por que eu deveria olhar para ele e chorar? Por que eu
deveria passar as mãos em sua cabeça já sem os cabelos derrubados pela
quimioterapia? Eu não sou um inseto cego e ele não é uma luz. Esse instan-
te... Esse pequeno instante que me paralisa... Quando eu não sei o que fa-
zer com a vida, com a morte, com nada... Quando eu não me entendo e
nem entendo o que existe... Quando eu me reduzo a um fio de metal já to-
mado pelo azinhavre... Quando eu me percebo a criança que gira e gira e
gira, olhando para o céu, e parando subitamente, zonza, sem saber onde es-
tá seu apoio. Eu poderia ter sido um inseto cego, uma traça, e ter ido até
ele... Meu amigo era a vela se apagando, mas eu poderia ter inventado a
luz... somente naquele momento... somente para que eu tocasse sua mão...
e, sem palavra alguma, me despedisse dele.

RUBRICA
O telefone toca. O Dramaturgo atende.
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119

DRAMATURGO
Como? Não, você não pode estar falando sério... Como foi isso? Ele não
tinha força para nada...

PERSONAGEM
Pensei que não conseguiria... Quando a enfermeira passou, eu vi como
ela regulava o oxigênio. Foi difícil, mas estendi o braço e fechei o ar.

RUBRICA
Ouve-se novamente o Prelúdio de Scriabin, muito alto e violento,
enquanto a Personagem se deita sobre o pequeno tapete caucasiano, e o
Dramaturgo se aproxima. A Personagem está de olhos fechados, e o Dra-
maturgo segura as mãos dela. Um longo tempo de espera. Cessa a música.

DRAMATURGO
Por que eu te matei? Não era essa a história.

PERSONAGEM
Obrigado pelos cigarros. Não fumo há quinze dias. Como é que meu
câncer pode sobreviver desse jeito?

RUBRICA
Vou até a Personagem, entrego a ela um cigarro, acendo. A Personagem
dá uma baforada.

PERSONAGEM
Em quê você está pensando?

DRAMATURGO
Não sei...

PERSONAGEM
Mas você é um pensador. Todo dramaturgo é.

DRAMATURGO
Toda pessoa é... E eu não dei essa fala a você.
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120 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PERSONAGEM
Deita aqui e fuma comigo.

RUBRICA
O Dramaturgo hesita um pouco. Acaba se deitando ao lado da Persona-
gem. Pega o cigarro dele e dá uma tragada. Ficam lado a lado. Luz cai e en-
tra projeção.

projeção: Desafiar o Mundo

PERSONAGEM
Você sempre pensa nisso?

DRAMATURGO
Estou pensando no artigo sobre Debord, que li depois que saí do hospital.

PERSONAGEM
Enquanto eu estava morrendo...

DRAMATURGO
Por que eu te matei?

PERSONAGEM
Quem faz as perguntas e sonega as respostas é você. Sou só o seu por-
ta-voz. Talvez fosse melhor se interrogar... Interrogar o mundo... Aí pode-
ria desafiá-lo.

DRAMATURGO
Ou entendê-lo...

PERSONAGEM
A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça.

DRAMATURGO
Pára!! Eu sou uma enxaqueca literária!
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121

PERSONAGEM
Eu sonhei... Você sonhou... Tantos sonharam... E, hoje, a sociedade ca-
pitalista está em seu mais alto grau de alienação. A relação do homem com
a vida, e consigo mesmo, foi transformada num espetáculo de imagens.

DRAMATURGO
Não estou pensando mais em Guy Debord!

PERSONAGEM
Sua cabeça virou uma máquina complexa, uma engrenagem perfeita,
que produz pensamentos sem que possa escolher. Você quer ser bom. Você
quer escrever o monólogo final de Sonia, do “Tio Vanya”. Escrever só isso,
o tempo todo o tempo todo o tempo todo... Acreditar na generosidade hu-
mana e em um tempo melhor. Mas você está seco.

RUBRICA
O Dramaturgo levanta-se rapidamente. Encara a Personagem com ódio.

PERSONAGEM
Agora quem está expelindo ódio pelos olhos é você.

DRAMATURGO
E nem preciso de câncer para isso!

RUBRICA
O Dramaturgo volta para sua mesa. A Personagem continua fumando
calmamente. Eu acendo uma lanterna, porque o black-out encerra a cena.
(black-out!)

CENA 2

RUBRICA
Foco somente sobre o Dramaturgo olhando por uma janela.

DRAMATURGO
Conheço aquela praça!
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122 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PERSONAGEM
Paris! Você ficava horas nela, em 68. Eu ficava horas nela, em 68. O mundo
era Paris em 68. Talvez o último momento em que o homem conseguiu pensar
a liberdade e só a liberdade, sem nenhum adjetivo. Ou um: a liberdade livre.

RUBRICA
Cai a luz e entra uma projeção.

projeção: A Imaginação no Poder

PERSONAGEM
Como criador, você poderia pleitear qualquer cargo no governo imaginário.

DRAMATURGO
Guardei uma pedra que tirei de uma das barricadas. Uso como peso de pa-
pel.

PERSONAGEM
Romântico idiota!

DRAMATURGO
Você não morreu ainda?

PERSONAGEM
De acordo com a Rubrica

RUBRICA
O Dramaturgo reescreveu a cena e a Personagem não tem mais câncer.

PERSONAGEM
Um alívio! Todas as suas personagens morrem. Cansei disso... Mas entendo.
É a única maneira de você continuar vivo. Um expediente vagabundo que você
criou para se safar.

DRAMATURGO
Ele destilava a maldade...
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123

PERSONAGEM
Eu me recuso a ser uma Personagem de Lautréamont!... Prefiro conti-
nuar sendo sua.

DRAMATURGO
Morreu com 24 anos...

PERSONAGEM
De novo a morte...

DRAMATURGO
“Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de
nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos ini-
migos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucum-
bir, o combate será belo; eu, sozinho contra a humanidade.”

PERSONAGEM
Devo aplaudir?

DRAMATURGO
Cultivo a maldade, como ele.

PERSONAGEM
Inventa a maldade. É diferente.

DRAMATURGO
Será?

PERSONAGEM
Entendi o meu papel.

RUBRICA
A Personagem vai até outro ponto, de onde, olhando como se fosse a
estátua da maldade, fala friamente.
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124 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PERSONAGEM
“Se a terra tivesse sido recoberta por piolhos, como pelos grãos de areia
à beira-mar, a raça humana seria aniquilada em meio a dores terríveis.
Que espetáculo! E eu, com asas de anjo, imóvel nos ares para contemplá-
lo!”

DRAMATURGO
Entendeu? Somos o resumo desse embate...

PERSONAGEM
Você pode virar o jogo. Eu não.

DRAMATURGO
Eu também não... Penso, logo não existo!... O que eu faria sem você,
por exemplo?

PERSONAGEM
Não poderia inventar um amigo morrendo.

DRAMATURGO
Não saberia o que é a morte. E, não sabendo o que é a morte, não en-
tenderia a vida. Existe um vão em minha cabeça, por onde correm rios fu-
riosos. Tento atravessá-los, mas a água sempre me joga para as margens...
A certeza de que o cais é de pedra e de saudade. Brumas sebastianistas que
me envolvem. Caos feito de lembranças que se apagam. A foto polaroid
que perde a cor aos poucos. Resta um contorno. Já não consigo saber
como eu era e como serei... A criança cruel que cresceu e destilou seus ve-
nenos íntimos. O adolescente enlouquecido que imaginou enfrentar o
mundo, sem saber que armas possuía. O homem que não tem mais a bús-
sola... Restou o mapa do medo. Conheço cada um dos riscados... Decorei
cada um dos limites desse mapa do mundo que invento. Onde me perco,
sem saber mais qual a palavra exata. A palavra é o veneno que tomo dia-
riamente... esperando que o efeito seja devastador. E nunca é! A palavra é
a criança que eu desejo ser, e essa criança foge, assustada, como se eu fos-
se um monstro... Muitas vezes eu sou um monstro... Mas tantas outras eu
sou aquele que colhe o trigo para fazer o antigo pão. Minhas lavouras in-
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125

teriores... Não tenho mais arados... Você é o corvo que eu crio, e que dila-
cera minha colheita... E eu sou o meu próprio espantalho!

RUBRICA
O Dramaturgo se abate. A Personagem já sabe o que lhe cabe. A luz cai.

projeção: Potlatch

RUBRICA
Luz muito fraca. O Dramaturgo volta à sua mesa. Começa a digitar.
Lentamente. A Personagem se senta ao pé dele.

DRAMATURGO
Você sabe o que significa?

PERSONAGEM
Não.

DRAMATURGO
Um presente que não pode ser retribuído.

PERSONAGEM
Potlatch.

DRAMATURGO
Um presente raro...

PERSONAGEM
A minha morte! Você deve sobreviver.

DRAMATURGO
Senta aqui!

PERSONAGEM
Na sua mesa? Não!!! Isso é impossível.
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126 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

DRAMATURGO
Nada é impossível! Não sonhamos todos com isso também? Senta e di-
gita... Você sabe qual é o texto. Não esquece que tem de escrever também a
rubrica. Ou nada acontece...

RUBRICA
A Personagem senta-se à mesa do Dramaturgo. Este se deita sobre o ta-
pete. A Personagem começa a digitar.

DRAMATURGO
Eles me tiraram da UTI porque eu estou ocupando o lugar de alguém
que ainda pode viver... Entendeu?... Ou preciso pensar por você?... Minha
cabeça já não agüenta mais... Por que você está parado aí na porta do quar-
to? Por que não vem até a minha cama e passa a mão na minha cabeça?
Porque eu já perdi os cabelos? Perdi os cabelos mas os pensamentos estão
todos lá dentro... Talvez enrolados como fios... Torcidos... Nós dados como
em um tapete caucasiano... Mas estão lá... E você fica aí, parado... Não, meu
olhar não é de ódio! Não entenda assim... Meu olhar é um silêncio. Qual a
resposta? Você não sabe?... Então, qual a pergunta?... A vida e a arte... Elas
formam o mesmo desenho... O presente que não pode ser retribuído. Es-
tou esperando por ele. Você é o portador. Vem!

RUBRICA
A Personagem sai da mesa. Vai até o Dramaturgo, que está deitado so-
bre o tapete. Passa a mão na cabeça dele. Faz um carinho em seu rosto. Ten-
ta fechar seus olhos.

DRAMATURGO
Não! Eu quero Luz!... Até o final... Luz!

PERSONAGEM
Quando tudo estiver acabado, você perceberá que o presente foi uma
invenção sua. Como eu sou uma invenção sua, não posso mudar as falas,
nem os gestos, nem as intenções... Sua cabeça! Sua cabeça é a caldeira que
move as palavras... Sua cabeça é uma usina... Você entende o mundo...
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127

DRAMATURGO
Algo precisa mudar! Sei disso! Tire o ar, para que os meus pulmões ar-
rebentem de vez!... Mesmo que o preço seja esse, algo precisa mudar!

RUBRICA
A Personagem estende o braço e fecha o oxigênio. Ao som de Scriabin,
black-out e FIM.

projeção: Transformar a Realidade

São Paulo, setembro de 2001


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128 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ALCIDES NOGUEIRA
nasceu em Botucatu, em 1949. Cursou a Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco (USP). Estreou profissionalmente com a A Farsa da Noiva
Bombardeada (direção de Marcio Aurelio), logo proibida pela Ditadura. O
primeiro sucesso nos palcos aconteceu com Lua de Cetim, novamente diri-
gida por Marcio Aurelio, em 1981. Recebeu os principais prêmios do teatro
brasileiro (Molière, Shell, Governador do Estado, APETESP, APCA, Troféu
INACEN), com peças como Feliz Ano Velho (direção de Paulo Betti), Lem-
branças da China (direção de Jorge Takla), Florbela (direção de Cibele For-
jaz), Traças da Paixão, Ópera Joyce, Pólvora e Poesia (direções de Marcio Au-
relio) e Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso (direção de Antonio
Abujamra e Marcio Aurelio). A Cabeça (direção de Márcia Abujamra),
depois do projeto Ágora Livre Dramaturgias, entrou em carreira.
Para a televisão, além de novelas, escreveu em parceria com Maria Ade-
laide Amaral as minisséries Um Só Coração e JK, ambas para a TV Globo.
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ILMO. “SENHOR”
dramaturgo: Naum Alves de Souza
debatedor: Jefferson Del Rios

MONTAGEM

direção: Celso Frateschi


elenco: Antonio Petrin e Valter Breda
cenário e figurino: Sylvia Moreira
trilha sonora: Aline Meyer
luz: Roberto Lage
produção executiva: Aline Meyer
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130 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ILMO. “SENHOR”
Naum Alves de Souza

Luz em parte do palco. Carmelo tem nas mãos um envelope. Começa a


abri-lo, mas pára. Olha longamente para vários lados do apartamento, para
baixo, para cima. Parece estar vendo nada, só pensando.

Luz em outra parte do palco, outro apartamento. Cesário, mais ou menos


da mesma idade de Carmelo, digita um número no telefone.

Carmelo lê o que está escrito no envelope.


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131

CARMELO
“Ilmo. Sr.”

Toca o telefone no apartamento de Carmelo. Ele se assusta e quase amas-


sa o envelope. Hesita, mas acaba atendendo.

CARMELO
Quantos? Sessenta, Cesário, o último dos céticos, a velha fortaleza da
Baixada do Glicério já completou sessenta anos.

CESÁRIO
Carmelo, fazer sessenta é diferente de fazer cinqüenta e nove, Carmelo?

CARMELO
Sabe que é? Quando acordei, me olhei no espelho e vi que já estava com
sessenta anos.

CESÁRIO
Acha que vai ter que trocar as lentes dos óculos?

CARMELO
Acho, não, tenho certeza.

CESÁRIO
E os cabelos?

CARMELO
Não contei quantos, mas sei que tem muitos fios brancos novos que eu
nunca tinha visto, juro.

CESÁRIO
E o resto?
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132 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO
Se é que eu entendi o que você está perguntando, apesar do fios bran-
cos na região, ainda desempenho com dignidade.

CESÁRIO
Outro dia olhei para a minha perna e vi um monte de veias azuis.

CARMELO
Grandes, saltadas?

CESÁRIO
Não. Azuis, fininhas, principalmente na canela, perto do pé. E eu notei
que tem menos pêlo na canela. Já reparou alguma coisa diferente na sua?

CARMELO
Você não me dá parabéns, não me deseja felicidade, muitos anos de
vida, nada disso?

CESÁRIO
É o seu aniversário, se você não falasse ia passar batido. Vamos comemorar?

CARMELO
Precisamos comemorar para você me desejar muitos anos de vida?

CESÁRIO
Não adianta eu desejar. E se eu desejar e a sua vida for longa e uma merda?

CARMELO
Você acha que eu ainda estou bonito?

CESÁRIO
Qual é? Você é homem, Carmelo... Ou será que depois de velho resolveu
mudar de time?

CARMELO
Você não acha que nós dois já estamos velhos para esse tipo de brincadeira?
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133

CESÁRIO
Por que você não pinta os cabelos? Hoje em dia...

CARMELO
Você pinta, não engana ninguém.

CESÁRIO
Ninguém percebe.

CARMELO
Ninguém fala na sua frente. Sabe como fica a sua cabeça quando tem
muita luz em cima?

CESÁRIO
Ninguém nunca falou nada.

CARMELO
Dá para ver os fios do transplante, as raízes brancas. E é um vermelhão
esquisito...

CESÁRIO
O rapaz do salão diz que tinge natural, da mesma cor, como eu era
antigamente.

CARMELO
É só bater luz que fica vermelho. Muita tinta. Dizem que derruba cabelo.

CESÁRIO
Vá tomar no seu cu antes que eu me esqueça.

Bate o telefone e fica ruminando, arrancando fios do cabelo e olhando.


Chora. Carmelo ri, desliga e liga de novo para o amigo. Cesário atende.

CARMELO
Cesário...
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134 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CESÁRIO
Ligou para ofender mais?

CARMELO
Amanhã eu vou me internar no Hospital da Beneficência.

CESÁRIO
Que é que você tem, Carmelo?

CARMELO
Nada.

CESÁRIO
Você está escondendo alguma coisa. É grave? Quer que eu passe aí para
ir junto?

CARMELO
Pode deixar que eu vou sozinho.

CESÁRIO
Não sei como você consegue viver sozinho.

CARMELO
Antes só do que mal acompanhado.

CESÁRIO
Está sugerindo alguma coisa? É alguma indireta?

CARMELO
Vou ser operado de varizes. Faz tempo que estou precisando.

CESÁRIO
Se quiser companhia, é só pedir, faço qualquer negócio para sair de
casa.
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135

CARMELO
Depois você vai me visitar com a sua sogra.
(Cesário fica em silêncio, atrapalhado)
Cesário?

CESÁRIO
Eu preciso lhe contar uma coisa.

CARMELO
Ué, conta.

CESÁRIO
Você nunca teve vontade de se casar, ter filhos?

CARMELO
Não.

CESÁRIO
Como não?

CARMELO
Não mesmo. Você ia me contar alguma coisa ou está querendo saber da
minha vida, Cesário?

CESÁRIO
A Guiomar continua do mesmo jeito, Carmelo.

CARMELO
Há quanto tempo?

CESÁRIO
Oito anos. Toda vez que eu vou ao hospital o médico sempre diz que
nunca sabe quanto tempo ela ainda vai durar.

CARMELO
O coração...
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136 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CESÁRIO
O médico diz que nunca viu coração tão forte.

CARMELO
Nenhuma esperança, então?

CESÁRIO
Nenhuma.

CARMELO
Ia ser melhor se descansasse.

CESÁRIO
Isso é coisa que se fale?

CARMELO
Eu falei. E a sua filha?

CESÁRIO
Está no Afeganistão com o marido, ele é engenheiro e arrumou trabalho
numa construtora brasileira. Ela escreveu que só pode sair na rua coberta
com um véu, só pode ver pelos furinhos do pano. Aqueles dois não voltam
mais. Escreveram tudo errado, contaram que as crianças agora falam só
aquela língua, acho que é turco, sei lá...

CARMELO
E a sua sogra, Cesário?

CESÁRIO
(embaraçado) Outra hora eu falo disso com você. Chegou visita.

CARMELO
Como chegou visita se não escutei ninguém tocar a campainha? Que
está acontecendo, Cesário?
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137

CESÁRIO
Nada.

CARMELO
Como assim nada? Depois de velho deu de ficar mentiroso, Cesário?

CESÁRIO
Não sei se eu conto. Tenho medo de você sair por aí contando para todo
mundo. Me promete que vai ouvir tudo sem fazer gozação.

CARMELO
Xiiii. Se não quiser falar, não fale.

CESÁRIO
É que uma noite, ela já tinha ido se deitar... a minha sogra, você
sabe... Pensei que a Dona Zélia estivesse dormindo... sei lá, fazia tempo
que eu...

CARMELO
Não enrola, Cesário.

CESÁRIO
Calma! Pensa que é fácil? Eu pus um filme pornô para assistir.

CARMELO
No televisor da sala?

CESÁRIO
O do meu quarto estava queimado.

CARMELO
E daí?

CESÁRIO
Ela entrou na sala e...
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138 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO
Te pegou em flagrante.

CESÁRIO
Mais que isso. (pausa)

CARMELO
Agora, conta.

CESÁRIO
Nem sei como, aconteceu!

CARMELO
Aconteceu?

CESÁRIO
Que é que você acha? Eu estava no maior atraso.

CARMELO
Nunca ouvi uma história dessas. Foi só essa vez?

CESÁRIO
Não.

CARMELO
Não como?

CESÁRIO
Não, a gente continua...

CARMELO
Entendi. E você não fica com problemas?

CESÁRIO
Fico antes e fico depois.
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139

CARMELO
Como assim? Explica direito.

CESÁRIO
Explicar o quê? É isso, fico perturbado antes e depois também. Pouca
coisa. Depois, nenhum dos dois toca no assunto, a gente finge que não
aconteceu nada. Na hora, a única coisa ruim é que eu continuo chamando
ela de Dona Zélia.

CARMELO
E ela?

CESÁRIO
Me chama de “meu filho”.

CARMELO
“Meu filho” na cama não dá.

CESÁRIO
Pois é. Daí eu me lembro da minha mãe e você pode imaginar o que
acontece.

CARMELO
Nunca imaginei que a sua sogra ainda...

CESÁRIO
E me deixa num estado de cansaço...

CARMELO
Com aquela cara de beata?

CESÁRIO
Família é uma merda, Carmelo, bem fez você que ficou solteiro. Vou
rezar por você.
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140 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO
Sem exagero.

CESÁRIO
Posso ir te visitar com a Dona Zélia?

CARMELO
Sem problemas, eu finjo que não sei de nada, pode ficar tranqüilo. Reze
por mim.

CESÁRIO
Você está com medo, Carmelo. Que foi que aconteceu com o herege ateu?

CARMELO
Não sei se existe alguém que goste de hospital. Preciso de um calmante.
Um abraço, Cesário.

(desliga o telefone; apaga a luz de Cesário)

Eu é que devia rezar, pedir alguma coisa a Deus não é fácil para mim,
nem sei como chegar a Ele.

(procura e acha uma grande Bíblia e começa a folheá-la; pára numa pági-
na e lê)

“Lembre-se do seu Criador nos dias da sua mocidade antes que venham
os maus dias e neles não encontre alegria.”

(ajoelha-se mas sente dor)

Rezar ajoelhado, sem condições. Deus gosta que as pessoas rezem de


joelhos. Quem procura a Deus tem que ficar em posição de sofrimento,
humilhação.

(fecha os olhos e tenta falar com Deus)


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141

Ilustríssimo Senhor...

Não, parece introdução de carta, jeito antigo de sobrescritar envelope...


Na hora de rezar devo dizer Você ou Senhor? Quando escrevo Deus e Senhor,
é sempre com letra maiúscula, o Senhor deve ter notado a vida inteira.

(hesita e desiste)

Amém.

(pára um tempo, folheia a Bíblia e encontra uma flor seca há muitos anos
e uma foto velha da mãe, à qual se dirige)

Mãe, nem pedi nada a Deus e já fui dizendo Amém. Vou tentar de novo.

(fecha os olhos)

“Senhor Deus, me ajude? O Senhor é poderoso e vingador, não é


mesmo? Mas também está escrito que o Senhor é bom e cheio de bondade.
Nunca entendi essas coisas...

(interrompe e abre os olhos)

Mãe, não consigo continuar. Mãe, a senhora e o meu pai estão aonde?
Estão perto de Deus? Dá para ver ou sentir como Ele é? Eu não devia ficar
falando com a senhora, incomodando quem já está descansando. É que
Deus pode interpretar mal minha oração sem fé. Deus não escuta pessoas
sem fé. É o meu caso. Mãe, vou desistir de falar diretamente com Ele. Se for
possível, olha por mim. Se Deus é grande como a senhora dizia, que Ele
cuide de mim.”

Toca o telefone de Carmelo. Acende a luz de Cesário.

CESÁRIO
Carmelo, desculpe incomodar mas eu conversei com a Dona Zélia e ela
mandou eu lhe dizer que você precisa aceitar Cristo.
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142 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CARMELO
Posso falar com ela, Cesário?

CESÁRIO
Sem condições, ela está vendo o programa do pastor.

CARMELO
Diga a ela o seguinte: que eu não estou preocupado em aceitar Cristo
por uma razão muito simples: eu nunca o rejeitei. Velha safada!

CESÁRIO
Que história é essa de ofender a minha mulher?

CARMELO
Sua mulher está em coma, Cesário!

(bate o telefone e tira-o do gancho, evitando nova chamada; Cesário ainda


fica tentando discar e a luz dele morre; Carmelo reconhece no envelope a letra
do irmão)

Esta carta é do caçulinha. Deve estar querendo dinheiro emprestado, só


pode ser isso. A gente não se fala desde 68, desde aquele Dia das Mães.

(pega de novo o retrato da mãe)

Mãe, eu não agüentei quando ele defendeu o golpe militar. Teve a cora-
gem de dizer que aquilo era a solução para os males do país. A senhora deve
se lembrar porque mandou a gente parar de brigar na sua frente. E justo o
filho dele foi preso e assassinado, sabe Deus por quê, aquele moço não
tinha nada a ver. O pai e a senhora não estavam mais aqui. No enterro do
rapaz só nos olhamos de longe, nenhuma palavra.

(põe de novo o retrato da mãe no meio da Bíblia)

Como será que está esse meu irmão depois de tantos anos sem a gente
se ver? Rompi com todos, um em cada data festiva. Não perdoei ninguém
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143

e acho que também não fui perdoado. Perdão é osso duro de roer.

(lê a carta)
“Estou convidando você para almoçar conosco daqui a dois domingos.
Resolvi reunir todos os irmãos. A gente não pode ficar desse jeito para o
resto da vida. Por favor, venha e traga a mulher, os filhos...”

Eu nunca tive família. Será alguma despedida? Será que ele está doente?
Houve um tempo em que a gente se gostava, sem fazer cobranças. Depois,
cada um foi ficando mais chato que o outro e rolou muita mesquinharia!

(pensa e fecha os olhos, à procura de Deus)

Não consigo encontrá-lo, Senhor Deus.


Ilmo. Sr. do céu e da terra: já vou avisando: eu não vou nesse almoço.

(lê de novo a carta; abre a Bíblia e pega a foto da mãe)

Mãe, a senhora sempre teve mais intimidade com Ele, lá em cima.


Avise Deus. Sabe o almoço?
Eu vou.

FIM
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144 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NAUM ALVES DE SOUZA


diretor, dramaturgo, cenógrafo, figurinista e artista plástico. Começou profis-
sionalmente no teatro como cenógrafo e figurinista na peça El Grande de Coca-
Cola (1974), dirigida por Luís Sérgio Person. É autor dos premiados No Natal a
Gente Vem Te Buscar (1979); A Aurora da Minha Vida (1981); Um Beijo, um
Abraço, um Aperto de Mão (1984) – textos traduzidos para diversos idiomas,
publicados e encenados internacionalmente. Dirigiu atores como Marieta
Severo, em No Natal a Gente Vem te Busca, A Aurora da Minha Vida, Um Beijo,
um Abraço, um Aperto de Mão e Cenas de Outono, de Yukio Mishima (1987);
Fernanda Montenegro, em Dona Doida, sobre poemas de Adélia Prado (1990)
e Suburbano Coração, de sua autoria; Sérgio Britto e Cleyde Yáconis, em Longa
Jornada de Um Dia Noite Adentro, de Eugene O’Neill (2002). Foi o criador dos
cenários e figurinos da consagrada montagem de Macunaíma, direção de
Antunes Filho (1978), e de Falso Brilhante, show de Elis Regina dirigido por
Myriam Muniz. Em cinema, fez o argumento, roteiro e diálogos de Romance da
Empregada (1986), de Bruno Barreto. Na dança, roteirizou O Grande Circo
Místico, espetáculo com trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo, dirigido
por Emílio Di Biasi(1983) e criou diversos espetáculos para J. C. Violla, entre os
quais Senhores das Sombras, Valsa para Vinte Veias, Flippersports, Petruchka,
Salão de Baile e Doze Movimentos para um Homem Só. Criou e apresentou no
Teatro Municipal de São Paulo a Ópera do 500, com música de Nelson Ayres e
Rodolfo Stroeter; Os Pescadores de Pérolas, com música de Georges Bizet; King
Arthur, de Henry Purcell; Jenufa, de Leos Janácek; além das versões compactas
para Carmen e Madame Butterfly e da direção cênica de inúmeros Concertos.
Teve a peça Suburbano Coração adaptada para a televisão e integrou a equipe de
escritores que adaptaram diversas obras da literatura brasileira para o programa
Casos Especiais, direção de Guel Arraes, ambos pela Rede Globo. Criou e con-
feccionou os bonecos brasileiros da série Vila Sésamo, assim como inúmeros
outros mostrados em exposições, estando muitos deles em coleções particu-
lares. Em 2005 suas obras completas para o teatro foram publicadas em
Coimbra, Portugal, pela Fundação Cena Lusófona.
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E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDS


dramaturgo: Mário Bortolotto
debatedor: Sebastião Milaré

MONTAGEM

direção: Mário Bortolotto


elenco: Aline Abovsky, Fernanda D’Umbra,
João Fábio Cabral, Joeli Pimentel,
Mário Bortolotto e Wilton Andrade
cenário e figurino: Cemitério de Automóveis
trilha sonora e luz: Mário Bortolotto
produção executiva: Nádia De Lion

E Éramos Todos Thunderbirds é uma versão do texto Velhas Variações Sobre o Mesmo
Tema, também escrito em 2001
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146 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

E ÉRAMOS TODOS THUNDERBIRDS


Mário Bortolotto
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147

E éramos todos invencíveis. Com nossas coleções de figurinhas. O tênis


Kichute. As balas apache e os desenhos do Zé Buscapé. Éramos orgulhosos
de nossas cicatrizes. Da Nádia Lippi. Da Rose di Primo. Do pai bebum. De
nossas bravatas adolescentes. Do Rivelino, do Clodoaldo e do Tostão. A
gente queria era bandido na seleção. A gente queria o troféu abacaxi. A
gente queria Rita Cadilac na televisão. A gente queria panqueca no café da
manhã e vinho Sangue de Boi. Boquete da Lurdinha no Fusquinha. Nosso
ideal de vida era um salão de sinuca. Ninguém queria ser publicitário.
Ninguém queria lavar pratos em Nova York. Ninguém queria comer sashi-
mi nem tomar santo daime. A gente queria era ver a Linda Blair dar um 180
na responsa. Cult, pra gente, era Jane Russel, malandro.
Éramos punheteiros – jamais onanistas. Éramos consumidores de penicili-
na. Amantes de estrias. Nossos troféus eram bandagens amarelas. A gente
ia tirar a Penélope das garras do Tião Gavião.
Éramos iconoclastas. A gente queria pôr no rabo dos Gurus, das socialites
e dos corredores de Fórmula 1. Era um tempo em que o mundo se dividia
em fodões e cusões.
A gente não usava boca de sino. Não dançava em discotecas e nossos
heróis não morriam de overdose. A gente morria da dor de existir.
Éramos todos Mirisolas. Éramos todos Beavis & Butt Head. Éramos amar-
gos, ressentidos e cheios de raiva. Éramos cínicos e orgulhosos. Éramos de
um tempo em que todo mundo queria ser centroavante.
Estamos velhos e nostálgicos. Estamos chapados e nocauteados. Detonados
no sofá encarquilhado. O babaca de branco já contou até 10. Então, foda-
se. Isso a gente ainda pode falar. Baixinho, mas pode. Foda-se.
Mas ainda vamos chutar alguns traseiros.
Éramos o caralho!

Paula, jogada na parede por Zero. No outro lado, Wellington chuta Jacaré e
joga ele contra a parede.
Paula está sentada em um canto do quarto. Zero entra, vindo do banheiro, e vê
Paula. A princípio, ele não fala nada. Senta na cama e fica enxugando o cabelo.
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148 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Há quanto tempo você tá aí?

PAULA
Você não lembra?

ZERO
Eu lembro de bem pouca coisa.

PAULA
Você não foi gentil.

ZERO
Conta uma novidade.

PAULA
Você é do tipo que bebe demais e esquece tudo.

ZERO
Eu não bebo pra esquecer. Mas tenho que admitir que esqueço de um boca-
do de coisas quando bebo.

PAULA
Você parecia um louco.

ZERO
E agora? Pareço normal?

PAULA
Quase.

ZERO
Ok, tá legal. Eu trouxe você pra cá e não te tratei bem. Grande coisa. Eu não
quero saber quem você é e o que pensa de mim. Coloca uma roupa e cai fora.
Eu tô a fim de ficar sozinho.
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149

PAULA
(pausa de incredulidade) Eu moro aqui.

ZERO
(pausa) Ah. Certo. Então eu é que vou.

Zero sai e passa por Jacaré, que está no chão, levando porrada de Wellington.
Aproveita e também dá uns chutes em Jacaré.

Madonna entra no quarto de Paula. Está vestida de maneira extravagante,


com peruca e botas de salto alto.

PAULA
Não é um bom momento.

MADONNA
Você sempre diz isso.

PAULA
Eu tô falando sério.

MADONNA
Você parece meio puta.

PAULA
Eu pareço meio puta? Eu já nasci puta... em todos os sentidos. Que porra de
roupa é essa?

MADONNA
Você gostou? Eu não tô demais?

PAULA
Cê tá parecendo um travesti.

MADONNA
Eu vou fazer uma performance.
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150 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PAULA
É? Do que? De Marilyn Manson?

MADONNA
Porra, Paula. É uma performance de alto nível. Intelectual.

PAULA
Tô vendo.

MADONNA
Cadê o seu marido? Eu quase nunca encontro ele aqui.

PAULA
E eu vou lá saber daquele corno? Deve tá por aí, com aqueles amigos inúteis
dele, se entupindo de maconha e assistindo desenho animado.

MADONNA
Por que você trai tanto o coitado, Paula?

PAULA
Eu sou da seguinte opinião. Se o homem tem pau pequeno, tem que ser pelo
menos bom de cama, né, caralho? E, além do mais, eu me fodi, casei errado, sabe
como é?

MADONNA
Como é que eu vou saber? Eu nunca casei.

PAULA
Eu merecia um cara melhor. Podia ser assim, um publicitário, um personal
trainer, um corredor de Fórmula 1. Sei lá, alguém com uma profissão decente,
promissora. Meu marido é um merda dum traficante de maconha, inútil, que
nem consegue traficar porra nenhuma, porque ele e seus amigos inúteis fumam
todo o produto que deviam comercializar. Depois enchem a cara de cerveja
vagabunda e ficam esparramados num sofá nojento, vendo MTV e desenho
animado. Uns bostas sem futuro. A pior escória. Fracassados já no útero mater-
no. Por isso que eu dou mesmo pra todo mundo, inclusive pros amigos dele. E
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151

eu vou te dizer. Nunca conheci sujeitinhos piores. Totalmente desprovidos de


ambição. Dá pra eles uma lata de cerveja e um disco do AC/DC, e pronto. Os
merdas abrem um sorriso majestoso, se refestelam no sofá e ficam se achando
os melhores do mundo. Passam o tempo inteiro falando mal de todos os caras
bem sucedidos e bonitões, porque, como se não bastasse, eles ainda são feios,
mas são feios pra caralho, e ficam lá, lamentando a ausência de clipes de rock na
MTV. Você consegue acreditar numa coisa dessas? Parasitas como esses existem.

MADONNA
Eles parecem superlegais. Onde é que eu posso encontrar esses caras?

Gambá e Zero sentados no sofá em frente à tv.

GAMBÁ
Aí, Zero, tô vivendo a mó expectativa de te contar uma parada aí, mas tô
achando que não vale a pena, porque você não vai acreditar, sacou? Eu tô liga-
do que você é o mó São Tomé, mó maconheiro de pouca fé.

ZERO
Fala de uma vez.

GAMBÁ
Você quer mesmo saber?

ZERO
Porra, Gambá.

GAMBÁ
Seguinte. Tava de rolê, ali na Frei Caneca, quando de repente passa por mim,
na maior languidez, adivinha quem?

ZERO
Quem?

GAMBÁ
Dona Ciccone.
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152 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Dona Ciccone?

GAMBÁ
É, porra. Cê não tá ligado na Dona Ciccone? Aí, ó. Isso que dá ficar conver-
sando com prego. Vou traduzir pra você, então. Dona Ciccone é nada mais,
nada menos que... que... a Madonna. Sacou? A Madonna passou por mim, na
Frei Caneca.

ZERO
A Madonna?

GAMBÁ
Aí, não falei que tu não ia acreditar? Eu vi ela passando e fui atrás.

ZERO
Ah, não começa com essa merda, Gambá, eu tô precisando da chave do
carro. Passa pra cá.

GAMBÁ
Era a Madonna, Zero. Tô te falando. Era ela. Aí, eu pensei: essa é a minha
chance. É chegada a hora da “revenge”. Vou dar uns tapa nessa vaca. Vou encher
essa vaca de porrada.

ZERO
Tá bom.

GAMBÁ
Tá bom? Tá bom? Te conto uma parada monstro dessa e é isso que você fala
pra mim? Tá bom?

ZERO
Me dá a chave.

GAMBÁ
Eu fui atrás dela. Ela entrou no shopping Artplex.
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153

ZERO
No shopping?

GAMBÁ
É. Artplex. Na porra do shopping. A vaca entrou no shopping. Acho que ela
pensou que ia conseguir me despistar, a vaca.

ZERO
Não era a Madonna. O que a Madonna ia tá fazendo na Frei Caneca?

GAMBÁ
Cê tava lá?

ZERO
Não.

GAMBÁ
Cê tava lá, maluco?

ZERO
Não, porra.

GAMBÁ
Então, cê não tava, que merda cê tá falando?

ZERO
Quem tá falando merda é você. Me dá a chave.

GAMBÁ
Ela tava falando com um cara grande, no final da escada rolante. Um puta
guarda-roupa. Devia ser um segurança dela. Cê tá ligado que a vaca é cheia dos
seguranças, né?

ZERO
Cê tá chapado.
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154 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

GAMBÁ
Eu falei, vou dar um tempo. Deixa o cara distrair, e eu chego junto. Vou dar
uns tapa nessa vaca.

ZERO
Que merda você andou fumando?

GAMBÁ
Você sabe, ela é um agente infiltrado no coração das mulheres, uma espiã da
CIA, ela veio pra causar tumulto em corações e mentes femininos.

ZERO
Eu não sei porque eu não te dou uma porrada.

GAMBÁ
E aí eu incluo as bichas também, sabe? Elas também ficam gritando:
Madonna, Madonna. Todas umas porras-loucas. Bando de bicha louca do car-
alho.

ZERO
Gambá, cê tá muito doido. Eu já falei pra você parar de usar toda a merda
da droga.A gente tem que comercializar, não consumir. O que foi que eu te falei?

GAMBÁ
Não usa a porra da droga.

ZERO
Não usa a porra da droga. Não usa a porra da droga. Vivo te falando essa
merda. Não usa.

GAMBÁ
No que o cara deu uma distraída, eu chapuletei ela.

ZERO
Você tá me dizendo que cê deu uma porrada na mulher?
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155

GAMBÁ
Na Madonna, cara. Eu dei um tapão na idéia da Madonna. Tu sacou, meu?
Um puta tapão na idéia.

ZERO
Meu, tu é um doido filho-da-puta.

GAMBÁ
Pode crer, sou meio doido, mesmo, mas alguém tinha que ir lá e tomar uma
providência. A gente não pode deixar essa mulher andando por aí, como se não tivesse
aprontado nenhuma. Ela aprontou várias, entendeu? Várias. Porra, Zero, cê tá ligado.

ZERO
Eu preciso da porra da chave do carro.

GAMBÁ
(joga a chave para ele) Porra, tu é o mó incrédulo. (Zero levanta e vai saindo)
Cara, escrevi um negócio muito louco ontem. Da hora. Cê precisava ver.

ZERO
Cadê?

GAMBÁ
O que, maluco?

ZERO
O troço que cê escreveu.

GAMBÁ
Cara, como é que cê tá sabendo?

ZERO
Não foi você que falou?

GAMBÁ
Cara, tu é o mó vidente. Tu saca tudo. Cê é muito louco. Ah, cara. Cê nem sabe.
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156 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Num sei.

GAMBÁ
Que merda, cara, que merda.

ZERO
Filho-da-puta. Maluco filho-da-puta.

GAMBÁ
Que merda, meu camarada, que merda.

Zero sai fora. Gambá fica sozinho, sentado no sofá.

Wellington e Jacaré

WELLINGTON
Eu já disse pra você não se meter com minha esposa.

JACARÉ
Mas ela me ama.

WELLINGTON
Quem te falou?

JACARÉ
Ela disse. Disse com todas as letras. Eu te amo. Eu te amo muito. Você é o
amor da minha vida. Eu não posso viver sem você.

WELLINGTON
Ela disse isso pra mim.

JACARÉ
Ah, mas deve ter sido há muito tempo, não foi?
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157

WELLINGTON
É. Foi há muito tempo. E daí?

JACARÉ
Pois é. Ela não sente mais nada por você.

WELLINGTON
Quem te falou?

JACARÉ
Ela, Wellington. Ela me falou. Ela falou assim. Eu não sinto mais nada por
aquele porco do Wellington. Mais nada.

WELLINGTON
Ela me chamou de porco?

JACARÉ
Foi. Eu disse a ela que não era certo chamar o marido de porco. Mas ela con-
tinuou falando. Porco. Porco. Porco.

WELLINGTON
E se eu te der um tiro agora? Um tiro na sua cabeça?

JACARÉ
Isso não vai ser bom.

WELLINGTON
É mesmo? E por quê?

JACARÉ
Você vai fazer ela sofrer. Ela não consegue mais viver sem mim. Foi o que ela disse.
Ela vai sofrer muito. Você ama a sua esposa. Você não quer fazer ela sofrer, quer?

WELLINGTON
E se eu der um tiro na minha cabeça?
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158 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JACARÉ
Vai ser inútil. Ela não vai nem se importar.

WELLINGTON
Não?

JACARÉ
Claro que não. Ela não gosta mais de você, Wellington. Não sente mais nada
por você.Você sabe, quando uma mulher pára de gostar, ela não dá mais a míni-
ma pro cara. Você sabe como elas conseguem ser frias e insensíveis. Você não
significa mais nada. Tanto faz se você está vivo ou morto. Ela não sente mais
nada. Acabou, acabou.

WELLINGTON
E se eu der um tiro nela?

JACARÉ
Bem, me parece ser a melhor solução.

Jacaré e Gambá chegam na casa de Paula.

JACARÉ
E aí, Paulinha, meu anjo?

PAULA
Você tinha que trazer o maluco junto?

GAMBÁ
Aí, ó. O maluco é eu.

JACARÉ
Ele quis vir. O que eu podia fazer?

PAULA
Você podia ter explicado pra ele a situação.
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159

JACARÉ
Que situação?

PAULA
A nossa situação. Que a gente ia fazer algo íntimo.

JACARÉ
Desde quando o que a gente faz é íntimo? Ah, Paula, parou, né?

GAMBÁ
E aí?

PAULA
E aí o que, retardado?

GAMBÁ
Vocês não vão começar?

PAULA
Que merda ele tá pensando?

JACARÉ
Ele só quer bater uma punhetinha enquanto a gente faz.

GAMBÁ
É. Coisa pouca. Não faço questão de participar do bagulho aí, não.

JACARÉ
Cê não vai regular, né, Paula?

PAULA
Eu não vou transar com esse punheteiro olhando.

GAMBÁ
Iiiiih, olha aí, Jacaré. A mulher tá folgando. Não deixa, não. Vai queimar seu
filme na área. Desce a chinela nela.
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160 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JACARÉ
Olha, Paula, eu não queria te dizer, tava evitando. Mas agora eu vou falar.

GAMBÁ
Fala pra ela.

PAULA
Falar o quê?

GAMBÁ
Fala pra ela.

JACARÉ
(para Gambá) Você acha que eu devo mesmo?

GAMBÁ
Ela tá precisando ouvir.

PAULA
Fala de uma vez.

JACARÉ
Eu tava relutando.

GAMBÁ
Não reluta, não.

PAULA
Fala de uma vez.

JACARÉ
Você tá ficando... chaaaata.

PAULA
É mesmo?
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161

GAMBÁ
Pra caralho.

PAULA
Só porque eu não quero foder, com esse punheteiro retardado me olhando?

JACARÉ
Entre outras coisas. A rapaziada anda reclamando. Daqui a pouco, ninguém
mais vai querer foder com você.

GAMBÁ
É. Vai secar a fonte aí, maluca.

PAULA
Vem cá, esse punheteiro já comeu alguma mulher na merda de vida dele?

GAMBÁ
Ah, qual é, ô? Tá maluca? Tá me tirando, é? Aí, Jacaré.

JACARÉ
Conta pra ela, Gambá.

GAMBÁ
(para Paula) Você me provocou. Eu não gosto que me provoquem. Você me
provocou. Agora fodeu. Contarei pra vocês, então, um pouco da minha tórrida
vida sexual. Se alguém tiver problemas cardíacos, retire-se do recinto, narrarei
aqui cenas pornô trash hardcore. Comi uma mulher. Comi mesmo. Comi.
Tinha 22 anos. Fui lá, paguei e comi. Na catega. Tava de saco cheio de ser cabaço.
Num agüentava mais de curiosidade pra saber como é que era.

JACARÉ
E como é que foi?

GAMBÁ
Foram os melhores quinze segundos da minha vida. Aí, fiquei mais oito
anos na punheta. Quando eu completei trinta anos, uma doidona fugida do
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162 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Pinel tesou na minha fachada.

JACARÉ
Ele até namorou.

GAMBÁ
Pra você ver. Andei de mão dada. (para Paula) Morra de inveja.

PAULA
Noooossa.

GAMBÁ
E saca só o meu itinerário romântico com a mina. Saca só o meu itinerário
romântico. Levei ela no mesmo dia no Play Center, no Hopi Hari e no Beto
Carrero.

PAULA
E ela ainda continuou com você?

GAMBÁ
Não falei que a mulher era doida?

JACARÉ
Era muito amor.

GAMBÁ
Até que um dia aconteceu a grande tragédia. A grande tragédia aconteceu na
minha vida. A mina me trocou. Como é que pode? Ela teve a manha de me tro-
car. Me trocou por um psiquiatra. Um psiquiatra carioca. Aí, não tinha como,
né? Chegava a ser desleal a disputa.

PAULA
E por quê?

GAMBÁ
O psiquiatra carioca, mina. Não tá ligada no psiquiatra carioca? Psiquiatra cari-
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163

oca é foda. Porra, o filho-da-puta fornecia Prozac de montão pra ela. Quer dizer, ele
satisfazia as necessidades primordiais dela. Ele falava assim: (com sotaque carioca e
imitando o jeito calmo do psiquiatra canastrão) “pra você, todo o Prozac do mundo,
meu amor. Todo o Prozac que você quiser.” Vocês precisavam ver os olhinhos dela
como brilhavam. Não dá pra competir com alguém assim.
PAULA
Sabe, faz tempo que eu quero perguntar uma coisa pra vocês.

JACARÉ
E que porra é?

PAULA
Como é que vocês conseguem?

JACARÉ
O quê?

PAULA
Ser assim...

JACARÉ
Assim?

PAULA
É... assim... tão fodidos, tão inúteis, tão fracassados...

GAMBÁ
Aí, Jacaré. Ela tá falando de nós?

JACARÉ
Parece.

GAMBÁ
Tu tá muita doida, hein, mina? O bagulho que tu fumou era do bom,
hein?
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164 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

PAULA
Eu não uso drogas.

GAMBÁ
Cê tá chamando o Jacaré e eu de fracassados? A gente é vitorioso pra cara-
lho. Não devia, porque você não merece, mas mesmo assim vou explicar.
Sintoniza no meu raciocínio. Se liga no meu dial. A gente já tá chegando nos
quarenta anos e não conseguiu porra nenhuma na vida. A gente não tem nada.
Não tem imóvel, não tem filho, não tem profissão, não tem um emprego
decente, não tem futuro, nenhuma perspectiva de vida, não plantamos a porra
da árvore, cê tá sacando?

JACARÉ
É. A gente é demais.

GAMBÁ
Tenho a maior admiração por mim mesmo.

JACARÉ
Eu também. Eu sou o cara que mais curte eu.

GAMBÁ
Se liga, mina. A gente vive numa porra duma sociedade que faz um moleque
de 20 anos se sentir um merda se não tiver um carro do ano. A gente é fodão. A
gente já tá nos quarentinha e não tem merda nenhuma.

JACARÉ
Vou te falar, Paula. Além de chata, tu tá ficando burra pra caralho. Vem cá,
Paula, você bebe?

PAULA
Você sabe que não.

GAMBÁ
Nossa, Jacaré. Já tô ficando com vontade de vomitar.
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165

JACARÉ
Tá na hora de começar. Vamo sair daqui, Gambá. Se tem uma coisa que eu
não agüento é mulher burra.

GAMBÁ
Que porra o Wellington viu nessa vaca?

JACARÉ
Ah, ela até que é gostosinha, né, Gambá?

GAMBÁ
É. (olhando a bunda dela) Admirando assim por esse ângulo, até que dá pra
comer. (para Paula) Mas não se entusiasma, não, hein? Não se entusiasma, não,
que cê tá com a bundinha meio caída.

JACARÉ
E o Wellington ainda paga academia pra uma vaca dessa.

GAMBÁ
Meu, fico injuriado.

Os dois saem indignados.


Wellington chega em casa. Paula não dá a mínima pra ele.

WELLINGTON
O que é que eu vivo dizendo pra você?

PAULA
Cê fala um monte de coisa.

WELLINGTON
Mas o que é que eu vivo dizendo pra você? Me diz.

PAULA
Pra eu não ficar dando pra todo mundo?
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166 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

WELLINGTON
Por quem você me toma? Eu jamais pediria algo assim. Com quem você
pensa que casou? Com um marido ególatra, machista, conservador, do tipo que
quer a mulher apenas para satisfazer o seu banal prazer pessoal? Você acha que
eu seria capaz de privá-la de sua liberdade? Eu seria um sacrílego sem alma se a
obrigasse a tal procedimento retrógrado.

PAULA
Você nunca me pediu isso porque sabe que não adianta nada. Eu dou pra
todo mundo mesmo e quero mais é que você se foda.

WELLINGTON
Já que você não é capaz de constatar minha abnegação, meu jeito moderno
de ser, então pelo menos podia lembrar do que eu vivo pedindo pra você.

PAULA
Eu não consigo lembrar. Eu não costumo prestar muita atenção em você.

WELLINGTON
Não deixa nenhum outro cara usar meu aparelho de barbear.

PAULA
É isso?

WELLINGTON
É isso. Não deixa nenhum outro cara usar meu aparelho de barbear.
Pode usar você, eu não me importo, mas não pode usar meu aparelho de
barbear.

PAULA
Mas ninguém usou o seu aparelho.

WELLINGTON
Você tá querendo me dizer que eu não consigo saber quando um outro cara
usou o meu aparelho de barbear?
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167

PAULA
Como é que eu vou saber que o aparelho é seu?

WELLINGTON
Porque sou o único que deixa aparelhos de barbear aqui. Seus amantes não
costumam deixar aparelhos de barbear aqui em casa.

PAULA
Por que você tem que deixar aparelhos aí?

WELLINGTON
Porque eu moro aqui. Porque essa é a minha casa e porque eu odeio a idéia
de querer fazer a barba e não ter um aparelho à disposição. Além de tudo, o
aparelho me dá uma sensação de intimidade doméstica, se é que você me
entende.

PAULA
Não.

WELLINGTON
Eu me sinto em casa, confortável e totalmente seguro, se eu souber que no
armarinho do banheiro está o meu aparelho de barbear, esperando paciente-
mente que eu o coloque em ação.

PAULA
Então esconde ele.

WELLINGTON
Como é que é?

PAULA
É isso. Esconde o aparelho. Atrás da saboneteira, da pasta de dente, do deso-
dorante, sei lá. Esconde o treco.

WELLINGTON
Eu não vou esconder o meu próprio aparelho de barbear na minha própria
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168 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

casa, apenas com a finalidade de evitar que um de seus amantes escrotos e anti-
higiênicos venha a usá-lo sem nenhuma consideração ou uma mísera cama-
radagem masculina, que seja.

PAULA
Como você é egoísta. Porco chauvinista. Só interessado nas suas coisinhas.

WELLINGTON
Você acha mesmo?

PAULA
Eu não sei por que eu ainda perco o meu tempo conversando com você. Por
que você não se mata?

WELLINGTON
Eu tenho pensado nisso.

PAULA
Você pensa demais.

Zero está sozinho em casa. Gambá entra.

GAMBÁ
Zero, cê não vai acreditar.

ZERO
O que, maluco?

GAMBÁ
Eu peguei ela.

ZERO
Ela? Pegou quem? Quem é ela?

GAMBÁ
A tal. A bandida. A sacana.
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169

ZERO
De quem merda cê tá falando?

GAMBÁ
A Madonna. (mostra Madonna, que está amarrada e amordaçada e é con-
duzida por Jacaré)

ZERO
Gambá, seu filho-da-puta, que merda que cê fez?

JACARÉ
Ele pegou a Madonna.

GAMBÁ
Eu peguei ela, cara. A Madonna. A gente vai foder com ela.

ZERO
Porra, que foi que eu te falei?

GAMBÁ e JACARÉ
Não usa a porra da droga.

ZERO
Não usa a porra da droga, não usa a porra da droga.

GAMBÁ
Eu tava doidão, mesmo, e aí eu vi ela dando a mó sopa, a sacana, na maior
impunidade. Aí eu já barbarizei, né, mano? Capotei a vagaba no soco e empa-
cotei. Agora tá aí. Não pode fazer mais mal nenhum pra ninguém.

ZERO
Pra ninguém?

GAMBÁ
É. Pra ninguém. Cê sabe, pro Sean Penn, pro Warren Beatty, pro Guy
Ritchie, essa vaca fodeu todo mundo. Agora, a gente vai pôr no rabo dela.
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170 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Ela nem parece a Madonna. Não tem nada a ver com ela.

GAMBÁ
Essa vaca é cheia dos artifícios, dos subterfúgios, ela se disfarça, vive mudan-
do de cara. Esse é o new look dela.

ZERO
Que merda.

GAMBÁ
Quer ver só? (tira a mordaça dela) Vai, mostra pra ele.

MADONNA
Mostrar o que, pelo amor de Deus? (para Zero) Moço, esse maluco tá doidão.

ZERO
E eu num sei?

GAMBÁ
Mostra pra ele.

MADONNA
Mas o que que eu vou mostrar, moço?

GAMBÁ
Mostra que cê é a Madonna.

MADONNA
Mas eu num sou.

GAMBÁ
Como, não é? Como, não é? Tá me tirando de maluco, é? Mostra já.

MADONNA
(para Zero) Moço, fala pra ele parar.
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171

GAMBÁ
Canta aí.

MADONNA
Cantar, eu? Mas cantar o quê?
GAMBÁ
(fala baixinho) Like a Virgin.

MADONNA
Como?

GAMBÁ
(constrangido quase sem conseguir falar) Like a Virgin.

ZERO
Mas logo essa?

GAMBÁ
Canta aí.

MADONNA
Ah, eu adoro essa música.

JACARÉ
Essa é do caralho.

Zero e Gambá olham perplexos para Jacaré, que cai na real, percebendo a
merda que falou.

ZERO
Canta logo e acaba com isso.

Madonna canta, desafinada pra caralho.

ZERO
Puta que pariu. Mas é horrível. Vai cantar mal assim lá no Raul Gil.
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172 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

GAMBÁ
Caralho.

JACARÉ
Que bosta, hein? Madonna é o caralho. Ela tá parecendo mais é a Smurfete.

MADONNA
Cês não gostaram? Eu achei que ficou tão bonitinho.

GAMBÁ
Filha-da-puta. Tá desafinando de propósito.

MADONNA
Eu juro que não, moço. Eu não consigo fazer melhor que isso.

ZERO
Vai, Gambá, reconhece que você se enganou e solta a coitadinha.

MADONNA
É, moço, solta eu. Eu tô me mijando de medo do senhor. Meu, cê é muito
louco.

ZERO
Mas o que é que tá acontecendo com você, Gambá?

GAMBÁ
Mas é a Madonna.

ZERO
Claro que é. E eu sou o Chico César.

Gambá e Jacaré ficam olhando de maneira significativa para Zero.

ZERO
Ah, qual é?
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173

JACARÉ
Não é uma hipótese absurda.

ZERO
Que é que tá acontecendo com vocês?

JACARÉ
Crise de abstinência de videoclipe.

ZERO
Como é que é?

JACARÉ
É. Desde que a MTV parou de exibir videoclipe, vem acontecendo isso com
a gente. Nós não conseguimos mais reconhecer nossos ídolos pop.

GAMBÁ
É. Agora eles só ficam passando aqueles programinhas de namoradinho, um
monte de mulher falando ao mesmo tempo, consultoria sexual. Uma bosta.
Nunca mais vi o clipe do AC/DC.

MADONNA
Ah, mas agora tá muito mais legal.

Os três olham feio pra ela.

MADONNA
Porra, mas eu nem posso ter minha opinião? Eu aprendi com a Marina Per-
son que esse é um direito meu.

ZERO
É mesmo?

MADONNA
É. Nós, Meninas-Veneno, conquistamos esse direito.
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174 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Jacaré, coloca a mordaça nela.

Quando Jacaré vai colocar, entra Wellington.

WELLINGTON
Eu não acredito. Vocês pegaram uma das Spice Girls?

MADONNA
Ah, não. Spice Girls, não.

ZERO
Onde é que cê tava, Wellington?

JACARÉ
Onde é que cê acha que ele tava? Numa pornoshop. Ele não sai de lá. Tava
comprando um consolo tamanho XXG.

WELLINGTON
Só se for pra enfiar no seu cu.

ZERO
Porra, Wellington, não é porque sua mulher anda dando pra todo mundo
que você vai ter que apelar.

WELLINGTON
Que história é essa de todo mundo? Ela se apaixona pelos caras. Nunca é só sexo.

ZERO
É. Eu fiquei sabendo que ela se apaixonou por toda a Mancha Verde.

MADONNA
Não brinca. Eu conheço essa aí. É uma lenda viva. Mas vem cá. Por que que
sua mulher te trai tanto?
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175

WELLINGTON
É porque eu sou muito voraz.

JACARÉ
Voraz, Wellington? Você?

WELLINGTON
Eu quero toda hora. Sou insaciável. Sou igual ao Michael Douglas.

GAMBÁ
É o maior punheteiro, esse aí. Quando não tá no pornoshop, testando
os consolos, fica de plantão no banheiro dos cinema pornô. Dia desses, eu
estava afins de um programa cultural. Aí, então eu fui assistir o Loira Ar-
rombada 5. Uma puta atriz. Grande interpretação. Determinado momen-
to, me senti na necessidade de me dirigir ao Vespasiano. Lá entrando, me
deparei com o Wellington, que tava lá. Ele não viu que era eu e tentou pe-
gar no meu pau, né, maluco?

ZERO
Porra, Wellington.

WELLINGTON
Qual Spice ela é?

JACARÉ
Não faço a menor idéia.

GAMBÁ
É a Madonna, sua anta.

WELLINGTON
A Madonna agora entrou pras Spices?

JACARÉ
Os clipes realmente fazem muita falta.
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176 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

WELLINGTON
Primeiro, tiraram nossa esperança, vieram e foderam nossas mulheres, tira-
ram qualquer perspectiva de vida, de um emprego decente, de uma vida alvis-
sareira. Agora, eles tiraram nossos videoclipes.

JACARÉ
Corja.

MADONNA
Mas vocês têm que entender que a MTV agora tá com uma proposta edu-
cacional.

ZERO
Como é que é?

MADONNA
É. Além de estar assim, mais auditório, mais show mesmo, com mais parti-
cipação da galera, entendem? Acho que a MTV devia recontratar a Adriane Ga-
listeu e não esquecer de levar o Zé Pedro, é claro. Imprescindível.

ZERO
Jacaré, o que foi que eu falei?

JACARÉ
Porra, Zero, deixa a garota falar. Ela tem direito a se expressar.

WELLINGTON
Ele anda vendo muita MTV.

GAMBÁ
Eu passava tardes inteiras com uma garrafa de Black Jack vendo ininterrup-
tos clipes na MTV. Agora, eu ligo e tá lá o Marcos Mion. É foda.

JACARÉ
A gente tá perdendo o pé da realidade.
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177

WELLINGTON
Pode crer. Já tem gente confundindo qualquer Spice Bosta com a Madonna.

GAMBÁ
Vai me dizer que você gosta da Madonna?

JACARÉ
Toda bicha gosta. Toda bicha é chegada numa lesbo-feminista.

WELLINGTON
Bicha é o caralho. Sou corno. Mas bicha, não. Além de tudo, a Madonna é a
mó ninfomaníaca.

GAMBÁ
Só porque tu é corno, não precisa ficar pegando no pau dos amigos.

WELLINGTON
Eu tava muito louco.

ZERO
Que é que eu digo pra vocês?

WELLINGTON, GAMBÁ, JACARÉ e MADONNA


Não usa a porra da droga.

Os três olham feio para Madonna.

MADONNA
É que aquela hora ele falou. Aí eu achei que... ah, eu não falo mais nada, deixa.

ZERO
Não usa a porra da droga. Mas ninguém me ouve.

WELLINGTON
(para Gambá) Mas, afinal, o que é você tem contra as bichas? Isso é descri-
minação, hein?
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178 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

GAMBÁ
Eu não tenho nada contra as bichas, desde que elas não fiquem pegando no
meu pau.

ZERO
Mas foi só uma vez. Esse fato isolado não transforma o Wellington num vea-
dão sem nenhuma classe.

JACARÉ
Eu ouvi direito?

GAMBÁ
E como é que você chama um puto que fica pegando no pau dos amigos
dentro do banheiro do cinema?

ZERO
Ele tava só experimentando uma nova possibilidade.

WELLINGTON
Eu tava era muito louco.

ZERO
A gente tá um bando de véio saudosista.

JACARÉ
A gente é véio pra cacete. A gente é do tempo que passava clipe na MTV.

MADONNA
Vocês estão sendo atropelados pela modernidade implacável.

Os quatro não ligam a mínima para o comentário dela.

WELLINGTON
Que horas são?
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179

JACARÉ
Mais de meia-noite. Por quê?

WELLINGTON
Tá na hora do Al Dente.

MADONNA
Você também gosta, Wellington?

WELLINGTON
Sou amarradão. Ontem, passou um clipe do George Michael.

JACARÉ
Quer coisa mais Al Dente?

ZERO
Ok, Gambá, libera a mulher aí, que a gente tem muito o que fazer.

GAMBÁ
Ninguém toca na Madonna. Daqui ela não sai. Ela é minha. Eu a capturei. E
ela vai ter que pagar por tudo.

MADONNA
Ai, moço, que obsessão.

ZERO
Ela não é a Madonna.

JACARÉ
Como é que você pode ter tanta certeza?

ZERO
Bom... a Madonna é mais...

MADONNA
Vê lá o que cê vai dizer. Eu tô num péssimo dia.
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180 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Mais... baixinha.

MADONNA
Isso é, mesmo.

WELLINGTON
Silêncio, porra.

JACARÉ
Cê vai mesmo ver essa merda?

WELLINGTON
Eu não perco um Al Dente.

ZERO
Wellington, a gente tem que trabalhar. Ei, pera aí, não é o Depeche Mode?

WELLINGTON
Pode crer.

JACARÉ
Eu gostava quando passava Beavis e Butt Head.

GAMBÁ
South Park, maluco.

JACARÉ
Hoje em dia, neguinho se contenta vendo Depeche Mode.

WELLINGTON
Eu vi no site da MTV que vai passar um clipe dos Pet Shop Boys.

ZERO
Cê tá brincando?
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181

WELLINGTON
Te juro. Não é demais? E vi também que vão gravar um MTV ao vivo da Ive-
te Sangalo.

ZERO
Caralho. Onde é que cê achou a Madonna, Gambá?

GAMBÁ
Ah, eu peguei ela num sarau.

MADONNA
Eu tava fazendo uma performance.

GAMBÁ
Tinha um bando de xarope no lugar. Abri caminho na cabeçada. Acertei uns
quatro clowns e uns cinco multimerda.

ZERO
Como é que você sabia que eles eram multimídia?

GAMBÁ
Eles falaram. Eles diziam. Eles falam pra caralho. Eles têm o maior orgulho
de ser o que eles são. Os caras são os mó prego. Eles falavam assim: “você não
vai passar. Nós somos multimídia. Nós cantamos, dançamos, atuamos, nos bei-
jamos, nos abraçamos, nos amamos, fazemos uh-uh e participamos de reality
show na tv.” Eu não tive dúvida. Desci a porrada.

ZERO
Mas, afinal, era uma performance da Madonna?

MADONNA
Porra nenhuma. Eu tava declamando um poema do Olavo Bilac.

GAMBÁ
Tá vendo só? Eu não disse que a vaca era cheia dos subterfúgios. Olha só a
que ponto ela chegou.
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182 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

WELLINGTON
Na hora que passar os Pet Shop Boys, eu exijo silencio.

ZERO, JACARÉ, GAMBÁ e MADONNA


Huuuummmmm!!!

JACARÉ
Wellington, eu vou no banheiro. Tô indo, hein?

WELLINGTON
Pega uma cerveja pra mim.

ZERO
Duas.

GAMBÁ
Três.

MADONNA
Quatro.

GAMBÁ, WELLINGTON e ZERO


Êêêêêê.

MADONNA
Mas ele disse que ia ao banheiro.

ZERO
Onde você acha que a gente deixa o nosso frigobar?

WELLINGTON
Não tem coisa melhor.

MADONNA
O quê?
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183

WELLINGTON
Cagar tomando cerveja.

ZERO
Rapaziada, não é por nada, não, mas a clientela tá esperando.

WELLINGTON
Zero, como é que você se sente comercializando drogas para uma juventu-
de inocente?

ZERO
É um trabalho como qualquer outro.

WELLINGTON
Eu vi uma campanha antidrogas na MTV. Confesso que fiquei muito
tocado. Minha vida mudou. De agora em diante, eu não vendo mais drogas.

ZERO
Era só o que faltava. Esses corno, em vez de passar videoclipe, ficam queren-
do fazer utilidade pública.

JACARÉ
(entrando com algumas cervejas) Eu comi a mulher do Wellington.

GAMBÁ
Comeu mesmo.

ZERO
E o que é que você achou dela?

JACARÉ
Ah, nada de mais.

WELLINGTON
Nada de mais? A gente tá falando da mesma mulher?
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184 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

JACARÉ
É um pouco espalhafatosa. É do tipo que solta gritos primais, esmurra sua
cara, dá chave de boceta e o escambau. Aí, quando acaba o negócio todo, ela per-
gunta, fazendo cara de envergonhada: “eu não fiz muito escândalo, fiz?”

ZERO
Caralho. Será que eu já não comi essa vagabunda? Vem cá, Wellington, como
é que é a sua mulher, assim, fisicamente?

WELLINGTON
Excepcional. Ei, Jacaré, você viu a campanha antidrogas da MTV?

JACARÉ
Eu vi. Desde o dia que eu vi aquilo, eu só tô tomando Sukita. Eles são mui-
to persuasivos.

WELLINGTON
Acho importante esse alerta.

ZERO
Wellington, quer parar de viadagem? A gente vende maconha, esse é o nos-
so trabalho.

JACARÉ
A gente nunca consegue vender nada. A gente fuma tudo.

WELLINGTON
Não é mais o meu trabalho. E, no que depender de mim, também não será
mais o de ninguém aqui.

ZERO
Como é que é?

MADONNA
Muito bem. Gostei de ver. O Napão aí é um sujeito decidido.
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185

GAMBÁ
(para Madonna) Quer calar a boca? Ei, Wellington, eu vou te dar umas por-
rada, pra você parar de ser tão frescão.

JACARÉ
Vai começar o clipe dos Pet Shop Boys (canta um trechinho).

WELLINGTON
Agora eu quero silêncio no recinto.

ZERO
Olha a contradição. Eles fazem campanha antidrogas e passam clipe dos Pet
Shop Boys. (para Jacaré) Jacaré, me ajuda aqui. Gambá, solta essa mulher e vem
me dar uma força.

GAMBÁ
Te contei que eu escrevi um troço muito louco ontem? Cê tá ligado, né?

ZERO
Tô sabendo. Como é que é, rapaziada? A gente vai deixar a clientela na secu-
ra e ficar aqui vendo esses clipes de boiolagem?

WELLINGTON
Zero, me diga uma coisa. Em suas peripécias sexuais, você tem se protegido
de maneira adequada?

ZERO
(para os outros) Que porra ele tá falando?

JACARÉ
Ele tá querendo saber se você usa camisinha quando trepa.

ZERO
Que merda você tem a ver com isso?
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186 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

WELLINGTON
Eu, como cidadão cônscio do perigo que nossa geração está vivendo,
não só uso como também indago e procuro convencer os que me cercam
da necessidade do uso do preservativo.

ZERO
Caralho!!! Foi a MTV que fez isso com você também?

WELLINGTON
Sou fã da Penélope Nova. Antes dela, eu era apenas um animal sexual.
Agia apenas de acordo com meu instinto. Era selvagem e voraz. Hoje, sou
apenas voraz.

GAMBÁ
Rapaziada, é o seguinte. Eu não sei quanto a vocês, mas eu vou encher o
Wellington de porrada.

Wellington sai de perto de Gambá.

ZERO
Porra. A gente tem que trabalhar.

JACARÉ
Acho que eu vou comer a mulher do Wellington de novo.

WELLINGTON
Vê se não usa o meu aparelho de barbear.

JACARÉ
O que cê tá falando?

WELLINGTON
Você usou, que eu sei. Acho isso uma puta sacanagem. O sujeito co-
mer a mulher do outro e ainda usar o aparelho de barbear do coitado do
corno.
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187

ZERO
Isso é desumano, Jacaré.

GAMBÁ
Você fez mesmo isso?

JACARÉ
Ah, qual o problema?

Enquanto eles estão discutindo, Madonna sentou na poltrona em frente à tv e


está com o controle na mão.

ZERO
(gritando) A gente tem que trabalhar.

Madonna muda de canal. Todos olham pra ela.

MADONNA
Às vezes, na vida, a melhor alternativa é mudar de canal. (pausa; todos ficam
olhando) Se necessário for, deve-se tomar até uma atitude ainda mais drástica
como... desligar a tv.

Ela desliga. Silêncio. Alguns segundos.

GAMBÁ
(para Zero) Olha o que eu escrevi ontem. Aí, ó. Lê pra rapaziada.
Compartilha aí minha sabedoria com os demais. (para Madonna) Aí, mina, se
liga aí que é papo cabeça. (para Wellington, que tenta ler o que está escrito no papel
na mão de Zero) Porra, Wellington, sai fora. Deixa o Zero ler o bagulho aí. Não
estrova. (Wellington se afasta um pouco) Vai, Zero, deschava. Deschava.

ZERO
(lendo) “Éramos todos Thunderbirds. Com nossa honestidade vagabunda.
Com nossa santidade amaldiçoada. Com o nosso firme e desprezível propósito
de não chegar a lugar nenhum. Nós, que não acreditamos em nada, com nos-
sos despertadores quebrados, nossas rotas de fuga interdidatas. Nós, que não
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188 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

queremos ser notícia, nós, que não merecemos crédito e não entramos na cor-
rida dos ratos. Nós, que alimentamos nossas panças precoces e proeminentes.
Vamos queimar em algum sol de alguma praia vagabunda. Nós e nossas ereções
secretas e silenciosas.
Estamos à procura de uma nova identidade.” (silêncio)

GAMBÁ
Demais, hein? E aí, mina? Cê sacou?

MADONNA
Mais ou menos.

GAMBÁ
Do caralho. E aí, rapaziada?

ZERO
Acho que é melhor a gente tomar uma cerveja.

JACARÉ
Pode crer. Depois a gente podia ir todo mundo comer a mulher do
Wellington.

ZERO
É. Pode ser.

WELLINGTON
Eu também?

JACARÉ
Você não, né, Wellington? Deixa de ser depravado. Quer comer a
própria mulher? Coisa mais nojenta.

GAMBÁ
(dando um tapão em Wellington) Seu tarado.
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189

JACARÉ
E a Madonna?

GAMBÁ
Ela não é a Madonna.

JACARÉ
Como é que cê pode ter tanta certeza?

GAMBÁ
Ah. A Madonna é mais...

ZERO
Baixinha.

GAMBÁ
É isso aí. A Madonna é a mó pigméia.

Vão saindo.

JACARÉ
Pode crer. Você comia, Gambá?

GAMBÁ
Quem?

JACARÉ
A Madonna.

GAMBÁ
Ah, sei lá. Acho que eu dava uns tapa naquela boceta.

WELLINGTON
Ela não faz muito o meu tipo, mas, como eu sou muito voraz, acho que até
encarava, é claro que com todos os cuidados necessários. Afinal, a Madonna é uma
mulher muito volúvel, dizem até que ela é promiscua, não sei se vocês sabem.
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190 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ZERO
Wellington, cala a boca.

GAMBÁ
Eu vou te dar umas porrada.

Madonna fica sozinha segurando o controle remoto. Liga a tv. Está passan-
do o clipe de Like a Virgin. Ela assiste um pouquinho e até canta timidamente
um trecho. Depois levanta e vai até a porta. Vira-se para a tv. Assiste mais um
pouquinho. Aponta o controle remoto e muda de canal. Está passando o clipe
do Kiss de Rock and Roll All night. Ela sorri e assiste um pouquinho. Depois
se vira e vai embora dançando. Música fica tocando em volume alto.

Mário Bortolotto
manhã de ressaca de cerveja & churrasco (2001)
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191

MÁRIO BORTOLOTTO
escritor, dramaturgo, diretor de teatro e ator. Nascido em Londrina (PR),
tem dois romances publicados: Bagana na chuva e Mamãe não Voltou do
Supermercado, um livro de poesias (Para os Inocentes que Ficaram em Casa),
um livro de textos de jornal (Gutemberg Blues) e quatro volumes com seus
textos de teatro. Ganhou o Prêmio Shell de Teatro como “melhor autor de
2000” pelo texto Nossa Vida não Vale um Chevrolet, e Prêmio APCA de
2000 pelo “conjunto da obra”. É diretor do Grupo de Teatro Cemitério de
Automóveis.
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COR DE CHÁ
dramaturga: Noemi Marinho
debatedor: Francisco Medeiros

MONTAGEM

direção: Márcia Abujamra


interpretação: Noemi Marinho
cenário e figurino: Leopoldo Pacheco
trilha sonora: Aline Meyer
luz: Augusto Tiburtius
produção executiva: Cris Bonna
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194 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

COR DE CHÁ
Noemi Marinho

Uma mulher, por volta de seus quarenta anos, urbana, espera em casa e se
prepara enquanto espera.

Urbana põe a mesa para um chá para dois.


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195

URBANA
(pegando a alça do bule)
Arre! Tem dia que até coisa que não é elétrica me dá choque!
É, tá bom assim. Um chá. Chá é neutro. Café é muito informalzinho. Fica pro-
saico demais aquele negócio que não termina: “aceita um cafezinho?”, “traba-
lho nenhum”, “só se já estiver feito”, “acabei de passar”, “acabei de tomar”, “é só
pôr uma água pra ferver”, “se não for incomodar...”, “eu já ia passar mesmo”. Já
vai me dando vontade de botar umas moedas na mão da criatura que não me
ajuda e despachar ela para um café numa padaria bem longe. Chá é melhor. A
garrafa térmica com água pelando de quente até a boca, o bule, a louça... tudo
à mão. Nenhum trabalho.
Talvez eu não devesse ter posto tudo na mesa com antecedência. Parece que
eu estou recebendo para um chá. E para receber para um chá está muito mi-
xuruca. Garrafa térmica, esses biscoitinhos maizena... Eu vou tirar os biscoitos.

(tira o pratinho de biscoitos e contempla a composição)

Acho que vou tirar também a outra xícara. Essa xícara vazia, sozinha,
ao lado da outra com chá fica uma coisa muito triste. Se fosse um quadro
iria se chamar “A Ausência”. Ou “Tarde de Solidão”. Péssimo, a xícara sai.

(tira a xícara)

Deixo só a minha.

(analisa)

Ficou bom, muito bom. E se fosse um quadro já iria se chamar “Chá”. Não
esconde nem revela nada, só significa. Uma coisa substantiva. Como eu.
Ainda tem tempo. Parece que eu estou aflita, mas não estou, não. Es-
tou respirando, ó! E estou respirando até embaixo que eu não sou besta.
Se ficar respirando só aqui em cima é a maior bandeira de ansiedade.
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196 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Estou sentindo o diafragma subir e descer, subir e descer. Prefiro essa


barriga dilatada àqueles ombrinhos travados de gente ansiosa. Ansiosa
e desinformada.
Eu falava para soltar aqueles ombros, para não respirar só em cima. Vo-
cê acha que me ouvia? Claro que ninguém acha que alguém fosse me ou-
vir. Eles acham que têm a vida inteira para escangalhar que não tem pro-
blema. Eu tenho pra mim que isso piorou muito com aqueles joguinhos.
Chega a me subir um calafrio quando ouço, em qualquer lugar, criança
gritando “Perdi uma vida! Só tenho mais quatro!”, “Perdi outra vida! Mer-
da! Só tenho mais duas vidas!”. É uma coisa muito edificante mesmo! To-
da aquela educação construtivista, aquela papagaiada de criança “enquan-
to indivíduo”, de “texturas” e a criança se desenvolvendo e sendo avaliada.
E sem a elementar noção de que a vida é uma só!
Se eu lembrar, quando eu morrer, minhas últimas palavras serão: “Mer-
da! Perdi uma vida!”. Fica aquela impressão de que eu saí jogando lá do ou-
tro lado. Tomara que eu me lembre. Se bem que, se eu não sair desta vida
dizendo “Ufa!”, já posso considerar que foi uma saída bem elegante.
Não é verdade que eu fique pensando na morte. Não acho que ela es-
teja tão perto. Nem acredito que esteja tão longe que não possa me ver de
lá. E essa distância respeitosa tem construído uma convivência de boa vi-
zinhança, sem muita intimidade e com bastante cerimônia.
Eu não tenho nem cinqüenta anos e tenho, já há muito tempo, umas coi-
sas de gente velha. Não digo manias que mania é coisa para quem pode
manter ou pra quem mantém quem ature. Coisa de velho que eu digo que
eu tenho é, por exemplo, pensar que secretária durante muito tempo não
era a eletrônica. Secretária era uma escrivaninha. Quantas vezes, quando pe-
quena, eu não ouvi: “pega na secretária”, “guarda na secretária”, “deixa na se-
cretária”. E não eram recados numa memória, eram objetos num móvel. A
secretária ainda existe. Está comigo. Ela fica no escritório e só eu a chamo
de secretária. Mais por teimosia, para não deixar ela se degenerar em escri-
vaninha, mesa de trabalho, mesinha, armário, estante, troço. Traste. Essa vo-
lúpia de quem chega de querer mudar o nome das coisas e das ações eu pos-
so até entender, um pouco. É um modo, um pouco selvagem, de dizer que
aquilo é deles. Não só deles, mas mais deles agora que eles rebatizaram.
Quando a coisa velha ganha com mais cor, com mais brilho, com mais hu-
mor, seu nome novo automaticamente resiste e fica. Geladeira! Geladeira é
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197

ótimo. Muito melhor do que refrigerador. A língua tem que apanhar para
aprender quem é que manda. Manda quem fala, claro. Se bem que ela an-
dou apanhando tanto que nem quem batia estava se entendendo mais.
Quem bate agora, diga-se de passagem, não fala. Ao menos comigo, não fa-
la. É uma coisa absolutamente “tipo-assim”. Esses nossos novos estrangeiros
parece que estão procurando uma palavra para completar um raciocínio.
Completar é exagero – para começar um raciocínio. Mas não estão. Já en-
contraram: “tipo-assim”. E por aí ficam, como se tivessem inventado uma
nova língua do pê. “Eu queria-tipo-assim, comprar-tipo-assim, uma sandá-
lia-tipo-assim ? atenção para a regra: “tipo-assim” vem sempre antes de ver-
bo no infinitivo! ? pra tipo-assim-sair.” Eu fico pensando se ele quer mesmo
que eu entenda ou, como na língua do pê, ele está falando em código justa-
mente para eu não manjar. Mas, considerando que estamos só os dois, eu sei
que ele deve ter intenção de se comunicar. Mais do que isso, ele tem o pro-
pósito de se profissionalizar, já que todos vão tipo-assim-fazer faculdade de
tipo-assim-Comunicações. Não consigo imaginar os jornais, as tevês, as rá-
dios, os teatros... Não consigo. Nem tento.
Eu, por acaso, fiz Comunicações. Mas, no meu tempo... Merda! Falei!

(começa a fazer abdominais)

Vai pagar dez abdominais, burra!

(paga as dez)

Eles podem até me levar para um asilo, eu vou. A barriga pode estar
solta, desarranjada, mas o abdome vai estar definido.
Eu não sei precisar quando, mas o fato é que aconteceu. Na régua do
tempo da história, nasceu um grosso risco vermelho. Depois disso passou
a haver o tempo deles e o meu tempo. Eu sei que não devo falar no meu...
Não falei! Não falei! Mas continuo a imaginar esse traço vermelho. Até
aqui, daqui pra lá.
A primeira vez que um deles me chamou de histérica eu tive gana de
abrir um atlas de anatomia, um livro de história natural, quis dissecar um
cadáver e mostrar onde fica a histeria! Histeria nasce no útero! E eles es-
tiveram lá. Que a única função deste aqui foi salvá-los, foi guardá-los. E
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198 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

que se agora está causando distúrbios é porque alguma merda eles fize-
ram por lá!
Mas eles são eles e eu sou eu.

(bate com os olhos na mesa e avalia)

Estou achando que está faltando xícara. Vou pôr mais uma. Ou duas.

(põe três xícaras)

Eles estão gostando mais de português. Da língua portuguesa. Talvez


seja moda. Já ouvi anúncio de hambúrguer ensinando concordância no-
minal. Caguei.
Ai! Esta merda de garrafa térmica está dando choque, mesmo!
Útero... eles não gostam de pensar nisso – eu também não gostava –, mas
a única coisa que justificou a sua existência foram eles. Para que útero,
ovários, trompas de Falópio, anos de menstruação antes e depois deles?
Parece tão claro, tão cristalino...

(olhando o relógio de pulso)

Será que meu relógio parou? Que coisa mais antiga relógio parar,
relógio atrasar, adiantar... Eles nem imaginam que a gente tinha que
dar corda no relógio todo dia. Relógio bom tinha que ter uma coisa
que eu nunca soube o que era: 17 rubis. Eles hoje têm que ter uma
bateria. Só. São de plástico, de aço e, agora sim, trabalham de graça e
por conta própria.
A Rita Lee é mais velha do que eu. E continua sendo. Todas as outras
que eram mais velhas, hoje, não sei como, são mais novas do que eu. Ba-
teram nos quarenta e não conseguiram ultrapassar. Ficam batendo e vol-
tando. Batendo e voltando. Não passam dos quarenta.
A natureza não dá ponto sem nó. Não foi à toa que ela escolheu a
frente da cabeça para colocar os olhos. Porque assim a gente só vê a pró-
pria imagem por um ato de vontade. Se os olhos não fossem só dois? E
se ficassem, por exemplo, nas mãos? Seríamos todos obrigados a nos ver
o tempo todo e por todos os ângulos. Com o passar dos anos, eu posso
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199

garantir que isso não seria bom. Eu acho muito mais saudável e ameno
ter uma vaga noção do próprio rosto do que uma memória fiel e cons-
tantemente atualizada. Prefiro o choque esporádico de entrar num da-
queles elevadores com luz fria e branca, que vem de cima distribuindo
sombras, e que reflete no espelho aquela figura assustada e travada que,
há quem acredite, sou eu. Não é só na vida da Blanche du Bois que os es-
pelhos se tornaram menores, as luzes, indiretas, os filtros, difusos. Isso
não é feng shui, não. Automaticamente vai acontecendo. Os próprios
olhos começam a pedir mais distância deles mesmos para poderem se
encarar em um reflexo. É natural.
A imagem que eu tenho de mim mesma ninguém pode dizer que se-
ja uma memória. Auto-imagem nunca foi auto-retrato. É muito mais
uma combinação feliz de fragmentos que me agradam. Ou que me agra-
daram um dia. E essa minha composição cubista só é contrariada nesses
malditos elevadores ou em algum inóspito provador de roupa.
Com a memória também é assim. A memória não trai. Simplesmen-
te a memória nunca teve nenhum compromisso com a realidade. Não se
armazena realidade na memória. Na memória a gente só guarda o que é
capaz de reconhecer. Não posso guardar um diálogo em latim, não pos-
so guardar lances de uma partida de beisebol. A minha memória é um
órgão de digestão de realidades. Uma vez a minha irmã me disse que se
eu resolvesse escrever as minhas memórias seria o primeiro caso de uma
autobiografia não autorizada. Fomos criadas na mesma casa, na mesma
época, pelas mesmas pessoas e não temos nem a mesma história e mui-
to menos a mesma memória do que foram aqueles tempos. Comemos a
mesma comida e o meu sangue e o dela contam duas vidas diversas.
Além de tudo somos mulheres. Homens usam os olhos como arremessa-
dores de setas, têm o olhar focado. Eles olham o centro das coisas. Nós,
não. Nosso olhar é solto. Nossos olhos passeiam por tudo, lambem os
cantinhos, passam sugando impressões. A gente não elimina o que não é
foco, como os homens. Em nós, tudo o que não é foco significa o foco.
Eu sei que sou bem assim e vivo com medo de me perder. O mundo é
cheio de focos que têm que ser bem focadinhos para que ele funcione. Te-
nho medo de perder o tal foco. Tenho medo, às vezes, de nem saber qual
é o tal do foco. É para me ancorar que eu escrevo, eu anoto, eu faço tan-
tas listas, tantos bilhetes. E nunca jogo fora. Quem sabe alguém, algum
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200 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

dia, me peça um comprovante material da minha realidade? E vou ter lá,


bem guardado na secretária, um papelinho velho qualquer provando
que é tudo real.
Não é prático ser mulher. Sei que é necessário, não discuto, é bonito.
E também é tarde demais para trocar um dos dois X que recebi por um
determinante cromossoma Y. Mas prático, definitivamente, não é. Ter que
viver com a minha memória aleatória, com meu olhar sem foco, com
meus alucinógenos hormônios e ter todo ano que fazer declaração para o
imposto de renda? Quem pode acreditar nesse personagem? O leão? A
Receita Federal?
Eu não acredito que eles tenham esse tipo de conflito. Ser homem,
ser mulher... eles são eles! Ser eles é mais que tudo. Tem sido assim e de-
ve ser bom que seja assim. Eles se sabem imortais. Sabem que nós so-
mos os mortais, e que muito provavelmente eles vão ter que nos ver
morrer. Natural que eles tenham que se acreditar imortais para que a
roda gire.
Eu já começo a poder ter medo de ser alcançada por alguma doença
degenerativa. A Terra, que é a Terra, nunca antes hospedou tantos micró-
bios quanto agora. Nem ela se acostumou à idéia de nos carregar por tan-
to tempo. Eu me coloco no lugar dela e fico pensando: “Os que já viveram
não vão mais parar de viver? Vão ficar vivendo mais e mais, cada vez
mais?” Vamos, sim! Ah, dona Terra, aqui na superfície tudo se renova, se
recicla. Não estou falando de papel, de vidro, de latinhas – que isso eu me
cansei de separar para depois saber que eles juntavam tudo de novo e jo-
gavam no lixão. O que se recicla aqui são as relações. Os maridos, as mu-
lheres, as mulheres dos maridos, os maridos das mulheres dos maridos.
Pois eu não tenho um sobrinho que tem irmãs que não são minhas sobri-
nhas e que, por sua vez, têm irmãs que não são nem meias-irmãs do meu
sobrinho? Parece mais uma daquelas charadas “quem sou eu?”, daquelas
bem antigas.
No fundo a gente sabia que esta rede estava se armando. Já saber se é
bom ou se é ruim eu não preciso saber agora. Talvez eu nem vá saber ao
certo. Mas sei que dei minha contribuição involuntária e agora não há
mais nada a fazer. Se bem que a esta altura meus recentes relacionamen-
tos e eu mesma já somos puro reaproveitamento de material orgânico.
Todos já tivemos um casamento aqui, outro ali, um filho aqui, outro lá.
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201

Não foi a gente que inventou a produção, a reprodução independente?


Esse modelo novo era para ser uma coisa simplesinha e acabou sobrando
mãe, sobrando filho, sobrando pai, sobrando irmão. Tudo assim meio
solto e com um pouquinho de raiva. Raiva de se chamar Brisa do Brasil,
raiva de a filha querer casar virgem e morar em Miami com a família do
pai que nunca deu bola para ela, raiva da mulher do pai que não contava
com uma enteada mais velha do que ela. Raivas variadas.
Essas raivas, pelo menos, nós não vamos mais provocar. São raivas fi-
sicamente improváveis de se repetirem.
Eu não sei o que eles queriam, mas estou certa de que decepcionamos a to-
dos. Com boa intenção? Tenho certeza de que eram as melhores. Eles, por
acaso, nos seguem, nos têm como modelos? Que esperança! Eles nos ne-
gam não com um novo modelo ativo, mas com um traço. Com uma tarja
onde se pode ler bem claro: EXPERIÊNCIA REPROVADA - NÃO RE-
PRODUZIR.
Será que algum de nós entende perfeitamente o que se passa conosco?
Nós deveríamos ser como aqueles macacos da experiência em que todos
tentam resolver um problema e, no instante em que um deles consegue,
automaticamente, todos os outros aprendem a mesma solução.
Nós, humanos maduros, ficamos cada um em sua célula tentando tirar os
véus desse mistério que é o que se passou, o que é o que está se passando.
Eu me pergunto se é assim mesmo. Se, de fato, existe mais alguém emba-
tucado nessas tramas.
Eu fui vivendo e fui tecendo uma trama que eu não via. Nesse tecido,
que eu ainda não vejo, fui puxando um pouco a trama, um pouco a urdi-
dura sem um desenho conhecido para reproduzir. Essa tapeçaria tem pon-
tos irregulares. Regiões de pontos apertados, regiões tão esgarçadas que se
pode ver o outro lado. Tapete e tapeceira são uma e a mesma coisa: eu
mesma, minha vida e minha obra. Não há distância suficiente para poder
contemplar o resultado. Não posso me afastar porque não há mais fio que
nos una e jamais nos reencontraríamos. Eu poderia cometer o erro fatal de
acreditar que qualquer outra tapeçaria fosse a minha, e então a minha ver-
dadeira vida e o meu trabalho em vivê-la estariam perdidos. E talvez eu
nunca viesse a descobrir esse engano.
Passei a vida então apalpando, retorcendo, alisando, querendo adivi-
nhar o sentido do que foi feito. Não o da época em que foi feito. Procuro
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202 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

sentido hoje naquilo que foi feito há tanto tempo com tanta intenção e
que eu não lembro.
Reconheço em mim no mínimo duas: a que preparou este futuro e a
que se intriga com o presente que recebe.
Enquanto eu ainda me encantar com os pontos, enquanto eu ainda sus-
peitar de algum desenho que possa se completar, eu saberei: está confir-
mado, eu estou viva.
E é indispensável estar viva e com boa aparência para poder entrar
em um shopping e numa só manhã poder tocar toda a infinidade de
texturas que existe no meu planeta. E quem sabe, com sorte, pressentir
mais um pequeno trecho de desenho.
Eles, é claro, figuram no meu tapete. Eu não cheguei a desejar arden-
temente ser o grande medalhão central no deles, mas, bem lá dentro, eu
tenho muita vontade de ter um destaque, sei lá. Estar numa cena engra-
çada, ser uma cor que briga, ser uma pincelada de cor de chá num fun-
do escuro. Como eu também tenho vontade de que eles descubram lo-
go que a vida é uma e só uma tapeçaria.
Mas esses são desejos muito secretos. E, como é próprio da natureza
dos desejos nunca se saciarem, não há nada que eu possa fazer.

(som de campainha de telefone; Urbana responde sem usar nenhum


aparelho)

Pronto!
...
Ela não vai subir?
...
Eles estão com pressa, é?
...
É, a esta hora não tem mesmo como parar.
...
Já estou indo.

(som de telefone desligando; Urbana se ajeita, “confere” a ordem da casa,


da mesa)
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203

URBANA
(para a platéia) Eles têm pressa.

(Urbana pega a garrafa térmica e fica com ela junto ao corpo; vai saindo
do palco em direção à saída para a rua)

É a minha carona... a última... É.

B.O. PANO

Noemi Marinho
inverno de 2001
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204 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NOEMI MARINHO
atriz, dramaturga e diretora teatral. Estão entre suas mais recentes atuações
em teatro, cinema e televisão: Cor de Chá, de sua autoria, direção de Már-
cia Abujamra (2001); Quanto Vale ou é Por Quilo?, de Sergio Bianchi; Caiu
o Ministério, de França Júnior, adaptação de Atílio Bari, direção de Emílio
de Biasi, programa Senta que Lá Vem Comédia, da TV Cultura (2005).
Recebeu os prêmios APCA, categoria atriz revelação (1978), espetáculo O
Segredo do Velho Mundo, direção de Iacov Hillel; e Mambembe, categoria
melhor atriz (1988), espetáculo Risco e Paixão, direção de Francisco Medei-
ros. Dirigiu os espetáculos Apareceu a Margarida, monólogo de Roberto
Athayde (2000); Os Reis do Improviso, comédia musical de Jandira Martini
e Marcos Caruso (1997); Corte Fatal, de Paul Portener, temporada no Au-
ditorium Casino Estoril - Cascais, Portugal (1995), entre outros. Em televi-
são, realizou diversos trabalhos como dramaturga: Seus Olhos, telenovela
em co-autoria com Ecila Pedrosa, direção geral de Henrique Martins, SBT
(2004); os programas semanais de humor Balacobaco, direção de Rodrigo
Riccó, Rede Record (2001), Brava Gente, direção de Roberto Talma, SBT
(1996); Sai de Baixo, direção de Daniel Filho, Rede Globo (1996); Dorothy
Veiga, colaboração nos quadros para Regina Duarte, programa Fantástico,
Rede Globo (1995); Era Uma Vez Zil, adaptação para a televisão de Home-
less, episódio da série Retratos de Mulher, direção de Del Rangel, Rede Glo-
bo (1994); Revistinha, programa juvenil diário, TV Cultura (1989). É auto-
ra de textos teatrais como Almanaque Brasil, cujo espetáculo contou com
sua direção (1993); Solteira, Casada, Viúva, Divorciada, episódio Solteira, di-
reção de Marcelo Saback (1992) e Marcelo Araújo (1995); Homeless, direção
de Francisco Medeiros (1989), vencedora do prêmio Shell de melhor autor
(1991); Fulaninha & Dona Coisa (1988), prêmio APETESP de autor revelação.
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O MUNDO É UM MOINHO
dramaturgo: Fauzi Arap
debatedores: Aimar Labaki e Gianni Ratto

LEITURA DRAMÁTICA

direção: Tunica Teixeira


atores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,
Nilton Bicudo, Rita Elmôr e
Valter Portela
trilha sonora: Aline Meyer
luz: Laura Figueredo
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206 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O MUNDO É UM MOINHO
um ato de Arap

...o mundo é um moinho


vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,
vai reduzir as ilusões a pó.
Cartola

PERSONAGEM
RUBENS velho autor beirando os setenta anos de idade
LUÍS jovem aspirante a ator, recém-formado
VERA atriz batalhadora, do grupo de Luís
LILINHA atriz sonhadora e mística
RODOLFO ator bonitão, também do grupo

CENÁRIOS
Sala do pequeno apartamento de Rubens, no centro velho de São Paulo.
Muitos papéis e pastas espalhados revelam que ali mora um homem só. No
canto direito, o escritório da casa de Vera, onde os atores do grupo se reúnem.
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207

CENA 1

LUÍS
(de pé, junto da porta) O senhor não vai me testar?

RUBENS
Não, não precisa. Pode começar amanhã, se puder.

LUÍS
Posso, claro. Se bem que eu achei... Disseram que o senhor queria me co-
nhecer.

RUBENS
Eles entenderam mal. Eu só queria dar uma olhada, ver a cara de quem vai
mexer nos meus papéis. Está muito bem, está tudo bem. Amanhã.

LUÍS
E eu começo por onde?

RUBENS
(impaciente) Qualquer coisa, qualquer coisa está bom. Pergunta lá na Se-
cretaria. Não são eles que vão te pagar?

LUÍS
Mas eles disseram que depende do senhor. Não explicaram nada.

RUBENS
Esse negócio de “memórias” e organizar meus arquivos não passa de pre-
texto! Eles só precisam de uma desculpa pra justificar os gastos comigo! Qual-
quer coisa serve! A verdade é que estão com medo que eu morra e resolveram
me ajudar. São velhos amigos e devem achar que eu não vou durar muito. Que-
ro só ver a cara deles, se demorar mais do que eles pensam.
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208 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
O senhor está enganado, ninguém está pensando nisso, de jeito nenhum!
Ninguém falou nada de morte, imagina! O senhor está ótimo, não está? (o ou-
tro não responde) E o interesse existe porque o senhor faz parte da história da
cultura, da cidade, do país. E é pra isso que servem as Secretarias de Cultura!

RUBENS
Papo furado. Eles sabem que essas anotações são pessoais e, mesmo que te-
nham servido pra mim, no passado, não são úteis pra mais ninguém! E eu só
aceitei porque preciso do dinheiro.

LUÍS
Bom, claro. Ninguém trabalha de graça.

RUBENS
Você acha que é trabalho? Deixar alguém vir aqui fuçar meus papéis, você
acha que isso é algum tipo de trabalho?

LUÍS
Bom, quer dizer... O trabalho já está feito.

RUBENS
Responde, o que é que você acha disso?

LUÍS
Não sei. Disso, o quê?

RUBENS
Mesmo que fosse trabalho, disso! Do dinheiro, trabalhar por dinheiro.

LUÍS
Não sei, não tou entendendo. Todo mundo não trabalha por dinheiro?

RUBENS
O que é que você faz na vida? Sua profissão? Qual é?
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209

LUÍS
Eu sou ator.

RUBENS
(surpreso) Ator, como? E o que é que você veio fazer aqui?

LUÍS
Por que a surpresa?

RUBENS
Porque, pra mim, ator representa, ensaia e participa de espetáculos. Pelo
menos, no meu tempo, era assim. Você está desempregado?

LUÍS
Não. Quer dizer, eu tenho esse emprego. Seja como for, é um privilégio po-
der estar aqui, com o senhor!

RUBENS
Privilégio, ora! Privilégio por quê? Quantos anos o senhor tem? Eu tenho
certeza de que o senhor não sabe coisa nenhuma sobre nada do que eu fiz!

LUÍS
Como não?

RUBENS
O senhor não era nem nascido quando eu comecei.

LUÍS
Mas o que é que tem? Eu adoro teatro, é tudo que eu mais gosto e eu sei que
o senhor tem muito pra ensinar. É claro que nunca vi um espetáculo seu, mas
eu vi as fotos, li artigos.

RUBENS
Então, não conhece!
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210 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
É a primeira vez que eu vou fazer um trabalho assim, mas eu aprendo
rápido.

RUBENS
A primeira vez? Então, também não tem experiência?

LUÍS
Se o senhor me ajudar a levantar o material, eu tenho certeza de dou con-
ta do recado. É claro que eu estou contando com o senhor!

RUBENS
Pode tirar o cavalo da chuva. Contando comigo, por quê? Você está aqui
pra organizar um arquivo, certo? E vai lidar com papéis. Eu espero que o nos-
so convívio seja o mínimo possível. Se você não sabe como fazer, vai ter que
se virar.

LUÍS
Mas por que tudo isso?

RUBENS
Ora, por quê. Eu não quero ser incomodado, eu disse pra eles! E só aceitei
porque me garantiram que eu não teria nem que olhar pra quem viesse aqui.

LUÍS
Mas eu tenho um prazo.

RUBENS
E eu com isso?

LUÍS
O senhor não pode ao menos me dar uma dica?

RUBENS
Dica? Que tipo de dica?
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211

LUÍS
Sei lá. Por onde começar?

RUBENS
Eu tenho muita coisa escrita e solta, não vai faltar material! Isto aqui está
um caos, você não está vendo? Começa com qualquer coisa. Aquele monte de
pastas, que tal? Espero que não seja enfadonho, para um candidato a ator. (o
rapaz começa a fuçar) Ah, nessas gavetas, não! Só tem coisa pessoal.

LUÍS
Então, está vendo? É melhor o senhor me mostrar.

RUBENS
Desculpa, mas eu não suporto nem a idéia de ter que olhar pra isso de
novo. Pra mim, é tudo matéria morta. Eu prefiro que você faça como qui-
ser. É só não mexer nas gavetas. É a eles que o senhor vai ter que prestar
contas, não a mim.

LUÍS
(surpreso) O senhor não tem computador, certo?!

RUBENS
E o que é que tem?

LUÍS
Posso levar o material pra digitar?

RUBENS
Digitar? Aqui em baixo tem uma papelaria, que tal xerocar?

LUÍS
E fotos, o senhor tem?

RUBENS
Poucas. Você não vai precisar vir todos os dias, vai?
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212 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Não, acho que não. A que horas é mais confortável pro senhor? Eu vou ten-
tar incomodar o mínimo possível.

RUBENS
Você não acha que, pruma primeira visita, já está bom? Esses papéis não
servem pra nada, não queira se enganar. (aponta os papéis) Eles não têm mais
nada a ver! E eu só aceitei pelo dinheiro, como você. E, por hoje, não quero per-
der mais tempo. Tudo bem. Pelo dinheiro. Uma vez por semana. Tá bem?

CENA 2

RUBENS
Pensei que tivesse desistido. Você sumiu.

LUÍS
Não, de jeito nenhum. Foi uma gripe.

RUBENS
Você não é bom mentiroso.

LUÍS
Imagina! Pra que que eu ia...? (confessa) Foi um teste que eu tive que fazer,
não deu pra avisar. Eu até pensei em ligar, mas não quis incomodar.

RUBENS
Teste? Que tipo de teste?

LUÍS
Comercial.

RUBENS
(com cara de nojo) Comercial? De televisão? E eles pagam por isso?

LUÍS
Quase nada, é um bico. Mas, pra quem vive duro...
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213

RUBENS
Bico? Mais um? Hoje em dia, ator só vive de bico?

LUÍS
Acho que a coisa é mais complicada do que no seu tempo. Eu fiz escola de tea-
tro, direitinho, me formei, mas não tem emprego pra todo mundo. Então, a maio-
ria vive de dublagem, dá aula, faz comercial, todo mundo se vira. E o sujeito deixa
um book na agência, na esperança de ser escolhido pra alguma coisa. Se tiver sor-
te, arranja um comercial e sobrevive um pouco melhor, algumas semanas. (pausa)
Por que o senhor não valoriza a pesquisa que vou fazer aqui, com o senhor?

RUBENS
(hesita) Porque é uma mentira, ninguém precisa dela.

LUÍS
Como não? E se o senhor tivesse morrido?

RUBENS
(rápido) Não disse que eles estão esperando que eu morra?

LUÍS
Não é isso, todo mundo morre um dia... E se alguém quisesse estudar sua
obra!?

RUBENS
Você acha que alguém ainda tem tempo pra ler? Com essa correria desata-
da atrás de dinheiro? Inda mais uma pesquisa!? E essa coisa de “obra”, eu não
entendo o que é. (sai para a cozinha)

LUÍS
(enquanto examina o que já digitou, grita) Alguns papéis estão datados e
outros, não.

RUBENS
(responde de fora) O destino deles era a lata de lixo. (volta pra cena) E as
idéias, as boas idéias, independem do contexto histórico. Pra que datar?
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214 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Mas claro que é importante! As datas situam o leitor.

RUBENS
As melhores idéias vêm sempre do nada, de repente, num raio! O dia e a
hora não têm importância nenhuma. Talvez a única coisa que importe seja a
verdade.

LUÍS
Que verdade?

RUBENS
Verdade. Só existe um tipo de verdade. Quando você se entrega e confia no
outro e fala a verdade. Você, desde que chegou, está tentando me enrolar.

LUÍS
Eu?

RUBENS
O que é que você está querendo?

LUÍS
Nada. Só fazer meu trabalho. Eles querem um depoimento ordenado, que
sirva de base para o livro.

RUBENS
Depoimento, que depoimento? Deixa ver se eu entendi, eles querem publi-
car? Como se fosse um depoimento?

LUÍS
Mas, e se publicarem, que é que tem?

RUBENS
Você não acha que é muita pretensão sua achar que pode escrever minhas
memórias, um ator que nem empregado está? Ora, ora!
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215

LUÍS
As memórias são suas, eu não vou ter nada a ver com isso.

RUBENS
Faz tempo que eu perdi a memória. Eu vou telefonar já pro Secretário e sus-
pender esse negócio.

LUÍS
Mas o que é que tem de mais? (hesita) Eu não estava enrolando, eu só esta-
va aguardando o momento certo pra falar. Eles pediram que eu perguntasse se
o senhor não teria interesse em...

RUBENS
Não tenho. Nenhum interesse, em nada. Há muito tempo que eu não
tenho interesse em coisa nenhuma. Mas eu vou ligar já e acabar com essa
palhaçada.

LUÍS
Por favor, não! (pausa) Tudo bem. A idéia foi minha. Eles não tocaram nes-
se assunto, de jeito nenhum. A idéia foi minha!

RUBENS
Eu acho melhor o senhor procurar outro emprego, outro “bico”. Eu não
posso conviver com alguém que mente desse jeito, pra se aproveitar.

LUÍS
Não, por favor! O senhor compreendeu mal. Eu estou encantado com o
que li, e acho um desperdício que as pessoas não possam ter acesso a isso
tudo. (pausa) Eu preciso deste emprego. (pausa) O senhor não acha impor-
tante deixar, quem sabe, uma herança, um testamento?

RUBENS
Eu não entendo sua cara-de-pau. Testamento, por quê? Eu ainda não estou
morto, e nem pretendo morrer tão já. Esse é o ponto: todos me tratam como
se eu já tivesse morrido.
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216 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Desculpa, eu não quis dizer que...

RUBENS
(enquanto disca) Eu sabia que não ia funcionar. Eu nunca soube conviver
com esse tipo de trabalho corrupto, onde as coisas são acertadas na base do fa-
vor, pra favorecer um amigo. Não podia mesmo dar certo.

LUÍS
Corrupto, por quê?

RUBENS
Tudo o que se faz hoje em dia é em nome do dinheiro ou em nome do pas-
sado. Eu não vejo ninguém fazer nada em nome do futuro. (termina a ligação)
Está ocupado. O que é que eles fazem naquela Secretaria, que não largam do
telefone, o dia inteiro?

LUÍS
Eu já me desculpei, será que é tão difícil entender? Não foi por mal. (o ou-
tro vai e abre a porta) Tudo bem, eu também não vou morrer por causa disso.
O senhor faça como quiser. Desiste, pega todos estes papéis e enfia!

RUBENS
Que bom, desistiu do papel de bonzinho? Já é um começo.

LUÍS
Quem o senhor pensa que é? Eu nunca vi tamanha arrogância. Enfiado
aqui, neste apartamento, trancado e tratando todos e tudo com um mau hu-
mor e uma condescendência, como se fosse o dono da verdade! Tudo tem um
limite. Não me interessa se foram seus amigos que resolveram bancar esse es-
tudo. O senhor deveria agradecer!

RUBENS
Então, estamos conversados. Pode ir, eu não estou interessado na sua
opinião!
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217

LUÍS
O senhor pensa que é fácil não ter trabalho e ser obrigado a viver de “bico”?

RUBENS
(irônico) Por que é que o senhor não faz televisão? Novelas? Vai fundo.

LUÍS
Quem me dera! Mas não é fácil. O senhor acha que eu não faria, se fosse
convidado? E o senhor devia dar graças a Deus por ter amigos e não precisar ir
prum asilo! De onde vem essa pretensão? E o senhor, por que não trabalha? Se
tá tão lúcido, não tá doente, e nem vai morrer, por quê? Vá à luta, então! Tra-
balha. Por que o senhor não tenta?

RUBENS
Ah, confessou? Agora você confessou! É por dinheiro, é apenas por dinhei-
ro que você está aqui. Não respeita meu trabalho coisa nenhuma! Nem conhe-
ce, nem respeita!

LUÍS
Respeito, claro que respeito! O senhor é quem não respeita o meu! Isso aqui
é um serviço digno, importante, que pode ajudar muita gente! Ninguém tem
a obrigação de conhecer o que o senhor deixa escondido a sete chaves! O se-
nhor vive escondido, como um ermitão, e há quinze anos não produz, não se
manifesta. Eu até pensei que o senhor fosse mais velho do que é. Por que o se-
nhor nunca mais escreveu coisa alguma, se despreza tanto o que já fez?

RUBENS
Quem disse que eu nunca mais escrevi? E quem disse que eu desprezo...?
Ninguém está interessado! Por isso. Ninguém!

LUÍS
Eu estou. Eu não estou aqui!

RUBENS
O teatro de hoje é uma mentira! Não existe, não existe mais teatro. Nin-
guém sabe mais o que está fazendo. Não existe mais ideal, nem pesquisa.
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218 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Como é que se pode fazer teatro, sem nem conhecer quem está do seu lado? O
teatro profissional não passa de putaria, se você quer saber. Um bando de gen-
te que se reúne pra fazer uma peça porque dá prestígio, pra ocupar o tempo,
enquanto a televisão não chama de novo! Isso que se faz nunca foi teatro. Não
existem mais grupos.

LUÍS
Como não? Existem vários! O senhor é que está por fora. Há quanto tempo
o senhor não sai, não vai ver um espetáculo? O senhor vive aqui, fechado nu-
ma ilha de preconceito, e imagina estar acima de tudo e de todos. Qual é? Isso
é uma doença, a pior doença. O senhor parou no tempo. (ameaça sair)

RUBENS
Talvez, talvez eu tenha parado. Mas o que o senhor chama de grupo com
certeza depende do governo, ou da Secretaria, pra sobreviver! Duvido que eles
não vivam correndo atrás de patrocínio, esmolando apoios, pra poder fazer a
arte “idealista” que escolheram fazer. Mas, pra fazer teatro hoje em dia, é preci-
so se vender! Isso não é ser livre. Não existe mais ideologia nenhuma a não ser
o dinheiro.

LUÍS
O senhor está por fora. Existem grupos que são criticados porque até pare-
cem aqueles dos anos sessenta. E o senhor não conhece.

RUBENS
Conheço, sim, são os piores. Porque acreditam nessa conversa mole que
chamam de História! Na mentira da História! Será que eles não percebem que
a História que é contada é mentirosa? Eles só copiam a forma do que foi feito,
não existe vida no que eles fazem. Parece um prato requentado, não existe vi-
da, não! Até os grupos começam seus projetos com alguém fazendo contas
para ver se é lucrativo, se é viável, e tomando todo tipo de compromisso com
a realidade, pra não correr risco nenhum! Mas isso tira a liberdade de alma pra
pensar. Ninguém mais pensa, essa é que é a verdade. As pessoas querem con-
sumir, consumir tudo: margarina, sexo, até a história, o passado, a “cultura”
embalsamada do passado, mas pensar, que é bom, é indigesto.
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219

LUÍS
Eu quero que o senhor saiba que eu não vim só pelo dinheiro, não! Eles in-
ventaram esse projeto por sua causa, é o senhor quem está precisando! Por
mim, eu poderia fazer outro trabalho qualquer! Mas o senhor é quem manda.
Tudo bem, eu vou andando. (vai até a porta) Desculpa qualquer coisa.

RUBENS
(chocado) Quem disse que eu tou precisando?

LUÍS
Desculpa, eu não deveria ter... ter dito uma coisa dessas.

RUBENS
Essas esmolas que dão à cultura são pra simular que está tudo bem. Eu
tenho vergonha, o senhor está me entendendo? Eu tenho vergonha de de-
pender desse dinheiro! Durante anos, me deixaram à margem, definhando,
sem resposta, sem apoio, sem coisa nenhuma, e de repente me redescobri-
ram. Por quê?

LUÍS
Mas é assim que o mundo funciona!

RUBENS
Eu sei, mas eu tenho vergonha de fazer parte disso! No meu tempo, eu ti-
nha a ilusão de que meu trabalho importava. Mas acabou, meu tempo passou
e eu perdi todas as batalhas! Porque o mundo não mudou, nada mudou, nem
vai mudar! E não foi a ditadura, nem a falta de dinheiro que acabou comigo. É
que eu mesmo não acredito. Eu não consigo mais acreditar em nada. Meus
amigos morreram, e eu não tenho mais com quem falar, e eu também morri
um pouco, com cada um deles. Acho que eu não passo de um morto-vivo, se
o senhor quer saber!

LUÍS
O secretário é seu amigo; só quer ajudar. E a idéia de fazer um livro eu só
tive porque eu estou encantado com o que eu li. Sinceramente.
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220 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
Não é amigo, nunca foi. Sempre foi meu adversário, se é que o senhor me
entende! Nossas idéias nunca bateram. E agora eu aprendi com ele a palavra
mágica - visibilidade. “Eu quero te ajudar, mas você precisa dar umas entrevis-
tas, pra que eu possa...” Talvez o senhor não tenha consciência, mas até mesmo
o senhor só se lembrou de mim por causa dos jornais. A matéria que saiu, foi
ele que arrumou. E foi só por isso que, de repente, eu renasci. O artifício colou.
Capa do segundo caderno, fotos e... milagre! Funcionou! Adoraram porque fa-
lei mal de tudo. Eles adoram quem fala mal. Quando alguém esculhamba com
o que existe, está prestando um favor a quem não quer se comprometer.

LUÍS
Mas ele quer ajudar. Não sei se é seu amigo, mas é como se fosse.

RUBENS
Não é amigo, sempre político, sempre viveu pro sucesso e nunca mediu as
conseqüências para ter as rédeas na mão. E, agora que tudo passou e ele ven-
ceu, quer mostrar que o poder é magnânimo. Nós dois já estamos velhos, e é
só por isso que ele pode ter a elegância de querer me ajudar. Existem verdades
impronunciáveis, que só os mais velhos conhecem. Ele deve sentir pena da mi-
nha teimosia, só isso. É caridade, não amizade. Porque eu não conto mais. Fi-
ca subentendido que eu sempre estive errado.

LUÍS
Não pode ser! Eu sei que ele admira o senhor!

RUBENS
Tanto faz, não tem mais importância. Está tudo podre! Eu estou podre, vo-
cê também está! Você não vê? Não sou eu quem está morrendo, é um tempo
que está acabando. Eu sou o último estertor. Ele resolveu homenagear a agonia
de tudo em que ele também um dia acreditou. Nós sonhávamos com um tea-
tro para o povo. Engraçado. Para o povo! Nunca conseguimos chegar nem na
classe média, quanto mais no povo. E quem pode ir ao teatro, hoje em dia?
Com tanta gente nas ruas, pedindo, bebendo, morando, morrendo nas ruas,
que importância pode ter o teatro pra essa gente? Com sorte, o que eles podem
é ver televisão, e olhe lá! O teatro sempre foi feito pra uma elite, pra burguesia,
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221

e fazer um teatro popular nunca passou de um sonho. Uma ilusão, como as ou-
tras. (pausa) Pode ficar à vontade, pode ir, não liga pro que eu disse. Eu sei que
deve ser difícil sobreviver no mundo do jeito que está. Eu não quero te cansar.

LUÍS
O senhor não quer mesmo, então? (o outro não responde) Tá bem, eu vou
andando.

CENA 3

RUBENS
De novo? Eu pensei que nós tínhamos resolvido. O que foi agora?

LUÍS
Eles vão mandar outra pessoa, eu só vim me despedir. Eu me demiti, tou
fora da Secretaria.

RUBENS
Não sei por que essa mania de mentir e fantasiar. Deve ter sido porque eu
liguei e disse que não queria. É claro que foram eles...

LUÍS
Não, fui eu que pedi pra sair. O senhor tem fama de difícil, eles nem liga-
ram. Me ofereceram um outro serviço. Mas eu não aceitei. (o outro hesita) Pos-
so entrar?

RUBENS
Eu estou ocupado.

LUÍS
Eu trouxe o material que ficou comigo. Um pouco só. Não custa me rece-
ber. Eu não vou ganhar nada com esta visita. Eu só quero falar com o senhor.
(o outro abre)

RUBENS
Quer um café?
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222 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Não, obrigado. (Rubens sai, Luís fica) É o senhor mesmo quem faz?

RUBENS
E o almoço, também. É bom mexer na cozinha e trabalhar com as mãos,
me ajuda a descansar. Só tem uma faxineira, que vem duas vezes por semana.

LUÍS
Tem um texto onde o senhor diz que a vida verdadeira não cabe nos
arquivos de um computador e que o que importa realmente só é transfe-
rível pelo convívio vivo entre as pessoas. Mais ou menos isso! Depois da
última visita, eu não consegui parar de pensar nisso. (Rubens volta com
uma bandeja e café) O senhor sempre viveu sozinho? Me disseram que o
senhor foi casado.

RUBENS
Há muitos anos.

LUÍS
Uma atriz?

RUBENS
Era. Uma atriz. Especial.

LUÍS
Disseram que ela...

RUBENS
Desapareceu.

LUÍS
Morreu?

RUBENS
Pra mim, continua viva.
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223

LUÍS
Na sua memória ou...?

RUBENS
Açúcar?

LUÍS
Adoçante.

RUBENS
Adoçante não tem.

LUÍS
Açúcar, tudo bem. Eu... Eu posso...? Eu gostaria de poder continuar a vir
aqui.

RUBENS
Pra quê?

LUÍS
Não sei. Pra aprender.

RUBENS
Mas e seus compromissos, seus testes? Você não tem tempo, tem que ga-
nhar a vida.

LUÍS
Não, de jeito nenhum, não é problema. Eu descobri que ando fazendo tu-
do errado. Não foi pra isso que eu quis estudar teatro. O senhor está coberto
de razão, eu acho que eu entendi. Pra sobreviver, eu andei sacrificando o es-
sencial, e eu quero começar tudo de novo.

RUBENS
O senhor está querendo me agradar?
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224 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Não, quer dizer... Eu nem sei. Eu quero crescer e acho que o senhor, aqui, à
margem, parece que o senhor não está contaminado por uma espécie de febre,
de correria... Pelo espírito desse tempo. Por mais difícil que seja, eu quero ten-
tar. (pequena pausa) O senhor aceita?

RUBENS
Eu não sei o que pensar. O que é que o senhor quer de mim?

LUÍS
Eu faço parte de um grupo, e a gente anda em crise. Eu contei pro pessoal
do senhor, e os olhos deles brilharam. Eles pediram pra ver se o senhor aceita
uma turma de alunos.

RUBENS
Eu não suporto dar aula, menino. (hesita) Quantos são?

LUÍS
São quatro, comigo. O núcleo mesmo são quatro.

RUBENS
(ri) Quer saber? Eu não vou abrir mão do dinheiro da Secretaria. Eu conti-
nuo duro e não foi nada fácil conseguir. Tive até que me internar. Eles devem ter
te contado. Antes, eu cansava de ligar e ninguém me atendia. Aí, eu tive essa
idéia. Tomei os últimos comprimidos que eu tinha e me internei. Eles falaram
em suicídio, mas não foi nada disso. Foi puro teatro! Fiquei no hospital uma se-
mana. Pra repousar. E eu precisava comer. Eu sabia que algum jornalista bobo
ia descobrir e dar uma notinha, nem que fosse na página policial! É melhor eu
ligar pra eles, antes que me mandem outro chato. Vou dizer que fico com você!

LUÍS
Mas eu não quero mais o emprego, eles já deram baixa, eu não posso mais
voltar. Vão ficar loucos comigo.

RUBENS
Que nada, vão achar normal, deixa comigo. Burocracia é a praia deles, é
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225

tudo o que eles têm. E vão me achar louco do mesmo jeito. Você continua. Não
custa ajudar o governo a patrocinar uma pesquisa verdadeira. Só que aqui é
muito pequeno, não vai caber todo mundo.

CENA 4

VERA
O projeto não era esse, Luís. Você pirou!? A gente gastou um tempo enor-
me se preparando, e agora você quer jogar tudo fora?

LUÍS
Você não está entendendo.

VERA
Nós prometemos um nome famoso, alguém com prestígio, eles não vão
aceitar. É uma multinacional, Luís! Não foi fácil arranjar a grana e, pra mudar
tudo agora, só se fosse um outro nome forte. Eles ainda não fecharam com a
gente, e não vão querer, de jeito nenhum.

LUÍS
Mas o velho é uma lenda! Ele tem história, ele fez a história do teatro, o que
é que eles podem querer mais? Vai ser a grande volta de João Rubens Pessoa! O
homem é um gênio, você vai ver!

VERA
Que lenda, o quê! Ninguém mais sabe quem ele é. É louco, isso sim! Todo
mundo fala. Um velho caquético, que consegue ficar tanto tempo longe, sem
fazer coisa nenhuma, não tem nada a ver! Ninguém vai querer investir, ele es-
tá mais pra lá do que pra cá.

LUÍS
Não é nada caquético. Quando se anima, parece um menino, mais ágil do que
eu. Você não conhece, por isso tá falando. Nós podemos aprender um monte.

VERA
Cai na real, Luís, esse cara te enfeitiçou. O tempo dele já era, ele já era.
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226 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Deve estar dando graças a Deus por ter arranjado um trouxa pra aturar suas
histórias, e ainda levar uma grana. (vai pro computador)

LUÍS
Não é assim, me deixa falar. Calma. Presta atenção. Não tem nada a ver com
feitiço. Eu estou com o material todo, ele tem meia dúzia de textos inéditos, eu
tenho certeza que você vai se apaixonar! Ele não parou de trabalhar esse tempo
todo. Antes de mais nada, eu quero que você leia parte do material...

VERA
E nem eu tou a fim de guru. Chega! Já pastei um monte de tempo no An-
tunes e depois no Oficina. Agora, eu quero liberdade. Eu larguei todos meus
empregos pra tocar nosso projeto. (pequena pausa) Foi ou não foi? Agora você
não pode me deixar na mão!

LUÍS
Ele é um autor. Não custa ler, não vai te tirar um pedaço. E o Secretário es-
tá disposto a investir nele. Acho que é culpa, sei lá. Os dois eram rivais, ou coi-
sa parecida, e agora resolveu ajudar o outro. Talvez a gente nem precise mais
correr atrás de patrocínio, o Secretário banca, você vai ver! Eles são da mesma
geração, vai rolar, eu tenho certeza. E ainda é capaz de a gente ficar com algu-
ma sala do Estado.

VERA
Ah, nem vem, não é nada disso! O Júlio, que é o braço direito do Secretário,
é que é apaixonado por você e é claro que é capaz de fazer o que você quiser.

LUÍS
Não fica repetindo uma coisa dessas. Ele só me indicou pra pesquisa por-
que eu sou bom, não teve nada de pessoal.

VERA
Pra cima de mim, Luís? Você anda dormindo com ele, não anda?

LUÍS
Não!
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227

VERA
Você é o maior mentiroso que eu já vi. E mente até pra você mesmo. Foi só
depois que você topou namorar com ele que ele te arranjou esse bico. Foi ou
não foi? Tou falando mentira?

LUÍS
Foi coincidência.

VERA
E esse patrocínio você tinha mesmo ficado de arranjar, desde o início.
Mas pro nosso projeto, que está pronto, escrito, aqui! Eu já te falei: é minha
última tentativa. Se não der certo, eu mudo de profissão. Você sabe quantas
noites eu varei fazendo as contas e montando tudo direitinho, de acordo com
a lei? Eu não vou jogar tudo fora, agora. Eles iam achar que nós piramos. O
projeto não era em torno de um clássico manjado, conhecido, consagrado?
Nós discutimos isso muito bem. Eles não querem saber de texto inédito. Pon-
to. Pra eles, não interessa. Texto nacional, só se fosse de um nome muito co-
nhecido, e que estivesse na moda. Não tem cabimento essa mudança. Eu que-
ro resolver minha vida já. Eu não sou bonitinha, a Globo não vai me chamar
nunca! E não sou filhinha de papai, pra ficar enrolando.

LUÍS
Me dá uma chance. Vamos fazer uma leitura. Se você não balançar, eu pro-
meto entrar na tua. Uma tentativa. Que tal?

CENA 5

Luís e Vera lêem trechos de escritos de Rubens, iluminados em contraluz.

LUÍS
(em tom de segredo) Palco iluminado: o mergulho é tão solitário e
particular, único, que chega a ser um mistério mesmo para o ator-agen-
te do processo. Mesmo público, só. Criação não é nunca do ego. É neces-
sário o sacrifício da consciência pessoal, para o acesso ao espaço real-
mente criador.
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228 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA
E, por isso, a imagem pública do artista é anti-arte, pela própria contradi-
ção em que mergulha o envolvido. Prêmios e dinheiro, e mesmo uma plena
aceitação social, obrigam o ator a abandonar a solidão original implícita à cria-
ção e à convivência com o Absoluto. Toda solicitação mundana que se segue ao
sucesso é a antítese da pobreza, do não saber, do vazio e da humildade interio-
res e da nudez que possibilitam o contato. (a luz clareia o ambiente) Mas nem
uma peça é! São notas esparsas, não servem para nada. Não existe diálogo, his-
tória, nada. Não é teatro.

LUÍS
Não é uma peça, eu sei, mas é só um ponto de partida. Ele acha que só
havendo um compromisso em torno de uma idéia é que pode acontecer o
teatro verdadeiro. Justamente por isso, não é só mais uma peça. Ele tem tex-
tos prontos, também, não se preocupe! Eu só estou querendo te mostrar o
sentido da coisa. O que ele busca, a ideologia dele. Pra ver se bate.

VERA
Eu acho bonito, mas eu não estou interessada, pra dizer a verdade! Eu can-
sei. Eu quero existir, quero virar uma profissional. Isso ele não vai poder me dar
nunca! Ele também não sabe como conviver com a realidade, ele está pior que
nós. Não sabe, como ela existe, ele também não sabe!

LUÍS
Ele acha que, pra romper esse circulo vicioso em que transformaram a
vida, só arriscando. Ele acha que a verdade tem uma força única. Não a ver-
dade particular de um sujeito qualquer, mas a verdade mesmo, inteira. E
que existe uma catarse quando se fotografa no palco o avesso das coisas, da
vida, das pessoas. E que, quando isso acontece, ninguém consegue resistir.
E só assim se vai poder transformar o mundo. A partir de cada um.

VERA
Mas ele não era comunista, esse homem? Como é que agora ele vem
com essa conversa mística, de transformar as pessoas? Isso não combina.
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229

LUÍS
Não sei se era. Ele pode ter mudado. Quer dizer, parece que a mulher mor-
reu torturada, presa, não sei... Ele não gosta de falar nisso.

VERA
Como era o nome dela?

LUÍS
Acho que... Nina, sei lá. Nina Pessoa, deve ser.

VERA
Nina, como Nina? Quem disse que ela morreu? Aquela mulher meio louca
do Secretário também não chamava Nina?!

LUÍS
Não sei. Que mulher?

VERA
Aquela, de quando ele estava no Centro Cultural, dez anos atrás. Era o bra-
ço direito dele, uma mulher linda. E diziam que ela tinha pirado na prisão.

LUIS
Não pode ser a mesma!

VERA
Como não? Teve toda uma história. Foi um escândalo, o Rubens apareceu
e armou o maior barraco e precisou até de polícia pra separar. Ele não é casa-
do, o Secretário?

LUÍS
Não sei.

VERA
É a mesma, claro. Não morreu coisa nenhuma. Por isso, eles não se su-
portam.
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230 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Se fosse, ele não aceitaria a ajuda, de jeito nenhum. O problema dele com o
Secretário é outro. Ele sabe muito bem o que está fazendo. A separação pode
ter acontecido, mas daí a pensar que... O que eu sei é que talvez ele seja uma es-
pécie de guardião de uma verdade preciosa!

VERA
Que guardião, guardião de quê?

LUÍS
Guardião, sim, ele não guardou nos livros nem nas idéias, sei lá, mas guar-
dou com a própria vida. Mesmo que ele esteja errado, ele tentou manter uma
ética, um compromisso. E ele precisou desse tempo pra tentar entender. Ele an-
dou quebrando a cabeça, pra tentar retomar um fio da meada da história, re-
cuperar a essência do teatro que eles chegaram a praticar, um teatro de grupo,
unido em torno de uma idéia!

VERA
Pra mim, isso tá com cara de desculpa. Só se foi por amor. E, se não foi por
amor, pior! É muito utópico, muito fora do chão, Luís. Hoje não tem mais es-
paço pruma coisa assim.

LUÍS
Tem, sim, claro que tem. A questão é descobrir algum atalho que rompa es-
se circulo vicioso na relação com o público. Não existe mais um espectador pu-
ro. Ele é formado e contaminado pela televisão, cinema, internet, publicidade,
tudo! E o pior é que isso é feito com muito glamour e com muita grana. Difícil
resistir. No passado, eles tinham uma platéia que eles mesmos formaram – es-
tudantes, idealistas e intelectuais. E havia um diálogo, um rumo: o caminho foi
sendo construído a partir disso. Ele quer encontrar uma saída pra retomar essa
troca de idéias, fora do jogo de cartas marcadas em que se transformou a mídia.

VERA
Mas o público não tá interessado. As pessoas vivem massacradas, fazendo
contas e sobrevivendo. A gente tem que se colocar no lugar delas. E, no fim de
semana, têm mais é que se divertir. Tá certo. Parece adolescente.
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231

LUÍS
Eu sei que é um achado. Nós não podemos jogar isso fora. Você tem que
conhecer a figura. Se fosse um autor morto, você prestaria atenção. Ele tem
razão, as pessoas não enxergam quem está vivo. Pra fazer parte da cultura,
precisa morrer. Ou sumir. Se não, ninguém leva a sério, ninguém respeita.
(lê outro trecho) Olha aqui. “Oração e fé criam o que acontece. Por oração,
entenda-se tudo o que se fala e, por fé, até mesmo a ausência radical de
qualquer tipo de crença.”

VERA
Por que é que ele não publica? Isso é literatura, não é teatro, Luís, claro
que não! Não tem nada a ver, são palavras, Luís, não têm a ver com o
mundo em que a gente vive. Vai lá discutir o projeto com quem vai soltar
a grana. Vão rir na sua cara. Quer saber o que mais? Eu estou interessada é
nessa mulher. Se ele largou tudo por ela, aí, sim. Não tem idealismo, mas
tem uma história de amor. Isso eu até acho bonito. Ele não tem nada escrito
sobre ela?

LUÍS
Que eu saiba, não. Ah, tem uma gaveta em que ele não quer que eu mexa.
Só se estiver lá. Mas pra quê você quer saber dessa mulher? Não interessa a vida
pessoal dele!

VERA
É só o que interessa. Um sujeito que faz uma coisa dessas por amor é
capaz de ter escrito alguma coisa especial. Por que é que você não tenta
descobrir?

LUÍS
Mexer na gaveta? Foi a única coisa que ele proibiu, eu não posso. Não seria
honesto.

VERA
Não seria por quê? Você não está sendo pago para organizar o que ele
escreveu? É uma pesquisa ou não é? Então? Vá à luta!
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232 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 6

LUÍS
(com o livro Psicodrama nas mãos, lê) “E, quando estiveres perto, eu arranca-
rei teus olhos e colocarei no lugar dos meus, e tu arrancarás meus olhos e colo-
carás no lugar dos teus e, aí, eu te olharei com teus olhos, e tu me olharás com
os meus.” Eu não manjo nada de psicodrama. Você acha legal?

RUBENS
(sorri e não responde) Você sonha, Luís?

LUÍS
Sonho. Quer dizer, em que sentido?

RUBENS
De noite, quando tá dormindo.

LUÍS
Não, é raro, é muito raro. Pelo menos, eu não lembro.

RUBENS
E no que é que você acredita?

LUÍS
(hesita) Na vida... Em tudo... No teatro e também... Em tudo.

RUBENS
Você não tem uma religião, uma fé? Fora do teatro?

LUÍS
Minha família é católica, eu fui batizado, mas... Eu não sou muito ligado.
Eu pensei que você não se importasse com isso.

RUBENS
E política? Você é de algum partido? Já militou por alguma causa?
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233

LUÍS
Não, não, nunca! Eu não me ligo nessas coisas. Eu acho política um saco,
pra falar a verdade. Político é tudo igual, acho uma perda de tempo votar. Se eu
pudesse, pulava esse pedaço. Eu gosto de teatro, só ele me apaixona, e toma
muito tempo. Não dá pra... Onde é que você quer chegar?

RUBENS
Não sei. Onde é que VOCÊ quer chegar? Eu quero te conhecer melhor.

LUÍS
Mas você já me conhece. Eu sou assim, desse jeito mesmo. Não tem muito
mais que isso. Até que eu gostaria de ser mais profundo, de ter opiniões, idéias,
sei lá. Mas eu sou assim mesmo.

RUBENS
Você acha que pode aprender comigo, se não se abrir de verdade?

LUÍS
Mas eu não estou escondendo nada, eu não estou entendendo.

RUBENS
Você acha que uma relação pode existir com mão única? Que vai conseguir
aprender alguma coisa comigo, se eu também não aprender com você?

LUÍS
Você, comigo? Essa é boa, imagina!

RUBENS
Eu não tenho nenhuma resposta pra nada.

LUÍS
Tem, claro que tem.

RUBENS
Não tenho, por isso é que eu quero saber de você. Como é que você con-
segue viver assim? Colocando fora de você o teu centro? Claro que, pra crescer,
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234 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

você pode se apoiar em alguém com mais experiência, faz parte. Mas o rumo,
a longo prazo, vai nascer de você mesmo. A gente sempre acaba atraindo aqui-
lo que deseja.

LUÍS
Será? Eu não sei.

RUBENS
É porque, até agora, você nunca quis nada de verdade.

LUÍS
Eu quero ter uma vida legal, trabalhar e ser feliz. Não sei se é pouco, mas é
isso que eu quero.

RUBENS
Mas esse é um projeto pessoal, apenas. E o resto?

LUÍS
Não sei. O que é que existe mais pra se querer?

RUBENS
O fundamental. O que importa. O que faz a diferença. Um ator de verdade
precisa ter a coragem de mergulhar mais fundo que uma pessoa normal. E
descobrir que, lá no fundo, não existe diferença entre ele e os outros. Ele tem
que encontrar aquele ponto neutro, sábio, que existe no fundo de toda pessoa,
e VER o quanto é uno com toda a humanidade, com tudo o que possa existir,
com o bem e com o mal de cada um e de todos os outros.

LUÍS
Eu não sei. Será que precisa disso tudo? Assim é difícil. Eu não sou santo e
nem quero ser. Eu não sei se eu tenho esse tipo de vocação.

RUBENS
Sem isso, você acaba ficando à mercê das marés, das modas e das
opiniões de todos os outros, daqueles que te cercam. Para uma auto-refe-
rência, só tendo essa coragem. É preciso fazer essa escolha por você mesmo.
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235

Ninguém pode fazer isso por você. Professor nenhum, guru de nenhum
tipo, ninguém, por mais sábio que seja, pode dar ao outro aquilo que ele
não pretende.

LUÍS
Eu... É claro que eu quero ser um profissional e poder viver da arte que eu
faço. Isso é errado?

RUBENS
Errado não é. Mas o que eu estou dizendo é que existe uma escolha por
fazer. Não tem como escapar disso. Você tem que tomar partido na batalha que
corre invisível e perene, e da qual você faz parte, mesmo sem querer. É uma
batalha entre o Bem e o Mal.

LUÍS
Mas não fica uma coisa maniqueísta, simplista, dividir as coisas assim, entre
bem e mal, claro e escuro? Eu acho que a gente precisa lidar com os dois lados
ao mesmo tempo, e por isso é difícil.

RUBENS
Você tem razão. Precisa, mesmo, lidar com os dois lados ao mesmo tempo.

LUÍS
E então?Aonde é que você quer chegar?

RUBENS
É porque não é tão fácil. Essa escolha se renova. Mesmo quando alguém faz
sucesso porque escolheu o primeiro caminho, ele acaba tentado pelo poder.
Porque aí ele atrai muitas propostas rentáveis, e a economia das relações acaba
reproduzindo aquilo que existe na economia global. O rico fica mais rico, e o
pobre fica mais pobre. Existe uma lógica perversa para a qual não há saída,
quando o sujeito não escolhe. Pra romper o círculo vicioso, talvez o único
caminho seja o sacrifício. Mas, no mundo de hoje, todo mundo aprendeu a
cuidar das suas coisas e a ficar na sua e a ser cínico com tudo e a ir tocando e a
ir livrando sua cara e assim por diante.
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236 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Mas, desse jeito, é difícil demais. Eu só quero fazer teatro. Eu não sou a
palmatória do mundo.

RUBENS
Aquilo que você projeta em mim tem tudo a ver com isso. Mas você prefe-
re personalizar essa verdade e achar que eu sou assim e ficar me colocando
num pedestal. Mas isso não vai levar a nada. Você tem que olhar pra tua gera-
ção e pro que existe hoje à tua volta. Nas últimas décadas, reduziram tudo ao
filtro da estética. E do sucesso objetivo. O filtro adotado, e que ainda vigora,
com menos força, mas ainda é o mesmo, é o do sucesso material, que é a medi-
da e a prova de que alguma coisa vale a pena. Claro que o sucesso quer dizer
alguma coisa, mas o fracasso também quer. Ficar nessa resposta material da
concreção de um resultado é pouco, muito pouco. Daí o caos espiritual que
rola. Ele veste a máscara da liberdade de criação, mas é uma mentira. Não existe
liberdade sem um compromisso maior que a ambição e o desejo pessoal. E essa
escolha eu não posso fazer por você.

LUÍS
Será que eu entendi? Eu preciso escolher?

RUBENS
Não precisa responder. Aliás, eu acho que você vai ter a vida toda pra pen-
sar. E teus amigos, quando é que eles vêm?

LUÍS
Eles estão viajando, com um espetáculo, por isso eu não marquei ainda.
Mas a coisa tá andando. Eu falei na Secretaria, e eles vão apoiar. Vai ter um
cachê, uma ajuda de custo pra todos, e eu estou preparando o projeto novo.
Leva um tempo.

RUBENS
Projeto? De novo, pra quê?

LUÍS
Claro, o que está aprovado é a pesquisa sobre sua obra e sua vida. É o que
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237

nós estamos fazendo, organizando o material escrito. Mas o projeto de mon-


tagem é outra coisa.

RUBENS
Como é que pode? Viver atrelado assim? A cada passo, a cada idéia, ter que
correr atrás de aprovação? Assim você acaba se sujeitando a quem não entende
coisa nenhuma de teatro. Como é que pode?

LUÍS
Não é bem assim. O assessor do Secretário, o Júlio, é um sujeito muito culto
e já foi ator, tá tudo bem. Ele está dando a maior força. Está interessado mesmo.

RUBENS
Isso é uma camisa de força, por isso vocês não conseguem mais pensar. É
pior que um vício!

LUÍS
Mas é o único jeito. Hoje em dia, é tudo assim. O senhor precisa compreen-
der o outro lado. Claro que precisa de um projeto escrito.

RUBENS
(muda de assunto, abrupto) Eu não acredito nessa história de viagem. Teus
amiguinhos não vieram ainda por quê? O que é que eles tão esperando? Sair a
verba?

LUÍS
Não. Quer dizer, claro que eles querem uma definição mais clara do que é
que a gente pretende...

RUBENS
Ah, claro, está tudo muito vago mesmo. Você não disse que vocês eram um
grupo?

LUÍS
E somos. Mas a gente está tentando um comportamento profissional. Eu
quero muito, de verdade, mais que tudo, que esse negócio saia. Mas está difícil!
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238 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Confia em mim, vai dar tudo certo. É só uma questão de planejamento. Eu vou
marcar uma leitura pra semana que vem, que tal?

RUBENS
Leitura? Que leitura? Leitura de quê? Acho que eu tou velho mesmo, eu
não entendo a vida desse jeito. Sabe como era no meu tempo? Os grupos
tinham um administrador, que ganhava menos que um ator. E olhe lá! UM
administrador. Não existia produtor, captador, nada disso. Hoje, tem esse
monte de gente que você fala: precisa de produtor, captador, assessor de
imprensa... É gente demais. E o pior é ver você, que quer ser ator, mergu-
lhado nesses papéis e pouco se importando com o que eu tenho pra dizer.

LUÍS
Mas é assim que as coisas são. Você não disse que também quer aprender
comigo? Não disse que são dois mundos? Disse, não disse? Então, você está
muito longe de um deles. A gente também precisa ter os pés no chão. Confia
em mim, vai dar tudo certo. (ameaça sair)

RUBENS
Luís, espera.

LUÍS
Que foi, agora?

RUBENS
Você mexeu naquela gaveta? Por que é que ela tá aberta?

LUÍS
Não sei. Que gaveta? Não fui eu. Talvez a faxineira tenha aberto, por
engano. (Rubens vai até a gaveta, desconfiado)

CENA 7

LUÍS
Eu peguei os papéis, e não adiantou. Olha aqui. Tudo em branco.
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239

VERA
Não é possível. Como tudo em branco?

LUÍS
Ele deve ter desconfiado. Eu tenho certeza que eu vi pastas e mais pastas na
gaveta, cheias de papéis.

VERA
E por que é que você escolheu justo essa?

LUÍS
Só sobrou essa. Eu peguei no susto e só abri depois. Lembro que um dia
eu cheguei e a gaveta estava aberta, eu vi, cheia de papéis, acho que tinha
até manuscritos. E agora não tem mais nada, só umas contas e um monte
de papeis soltos. Só se ele arrumou e jogou tudo fora, de medo de eu pegar.
Se ele descobre, é capaz me matar.

VERA
Por que você não pediu abertamente?

LUÍS
Ele me provocou o tempo todo com uma conversa que me deixou pira-
do. Um papo sobre dois mundos e não sei o que mais. Eu não entendi na-
da do que ele estava falando, mas tive que manter a pose.

VERA
Você não tem remédio, Luís. Por que é que você nunca fala a verdade?

LUÍS
Como não falo? Falo, claro que falo. (hesita) Meu Deus, será que foi de pro-
pósito? Não pode ser. Ele deve ter armado pra mim.

VERA
Imagina, ele não ia fazer uma coisa dessas.
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240 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Ah! Ele perguntou por que é que vocês ainda não foram lá comigo.

VERA
Você não disse que os meninos estão viajando, como a gente combinou?

LUÍS
Tá vendo, você manda mentir e depois me cobra. Claro que eu disse, mas
não colou. Parece que ele enxerga através da gente.

VERA
É que você é muito trouxa. Você nunca fala a verdade e o pior é que é o rei da
bandeira. Onde já se viu? Custava perguntar se ele não tem uma peça sobre ela?

LUÍS
Mas foi você que me mandou pegar.

VERA
Olha aqui. Um bilhete.Amarelado, deve ser bem antigo. (ela lê) “Desculpa, eu
tentei avisar, mas ele tá desconfiado, não larga do meu pé. Não sei como é que eu
fui cair nessa cilada. Casar com o Fran, Santo Deus. Onde é que eu estava com a
cabeça? Mas eu não vou me separar, eu não posso.” Fran não é o Secretário?

LUÍS
Não sei, pode ser.

VERA
Claro que é, “Fran” de Francisco. Deve ser dela! Será que ela traiu o marido
com ele? O... o ex-amante?

LUÍS
(continua a leitura) “Você adora dar uma de bonzinho. Mas se esquece que
foi você quem me internou.”

VERA
(interrompe) Ah, então, só pode ser dela. Ela não era louca mesmo!?
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241

LUÍS
Que louca, o quê, espera. Deixa eu acabar. “Você costuma dizer que, quan-
do saí da prisão, não falava coisa com coisa e que estava paranóica com tudo,
até com você. E foi por isso que me internou, que só quis ajudar. Mas desde
quando tomar choque cura alguém? Mas dinheiro ajuda, sim, e pode conser-
tar tudo. Foi a Casa de Repouso que ele arrumou que me ajudou a voltar pros
eixos. E acho que eu aprendi a lição. Agora eu quero conforto, e não quero nun-
ca mais depender de ninguém, é isso que eu quero.”

VERA
Continua!

LUÍS
É só isso, não tem mais nada.

VERA
Procura aí, vê se acha. Deve estar no meio dos papéis.

LUÍS
Não tem nada, Vera, não tá vendo? Tudo em branco. Porque é que você tá
obcecada com essa mulher?

VERA
Que obcecada, o quê! Estou curiosa só. Tenho certeza que deve existir uma
peça.

LUÍS
Duvido. Ele acha que a vida pessoal não tem nada a ver com teatro. Ele não
ia escrever justo sobre isso.

VERA
Como não? Pergunta pra ele.

LUÍS
Imagina, Vera, não tem nada a ver.
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242 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA
Fala que pegou a carta por engano e que ficou curioso. Pergunta sobre ela,
diz que não mostra pra ninguém. Ele já acostumou com você, ele não vai te ne-
gar, eu tenho certeza.

CENA 8

RUBENS
(lê para Luís; revelação) “Manter-se nos limites do possível é respei-
tar as regras cênicas do pequeno drama psicológico embutido em histó-
rias sem grandeza. Só a deposição das máscaras que vestimos por medo
garante a reconquista da verdade e da fé. E é pela entrega que vem a des-
coberta de que nunca tivemos nada a perder. Quem se assiste descobre
que, além de ator, é co-autor da trama.” (pára de ler) E aí, que é que vo-
cê acha?

LUÍS
No palco ou na vida?

RUBENS
Nos dois. Claro que nos dois. Na vida do palco, e fora também. Não é tão
difícil de entender.

LUÍS
Como se cada um fosse um personagem, e não uma pessoa? Mas isso
embaralha tudo. Desse jeito, você não sabe mais onde começa o palco e on-
de começa a vida. Periga enlouquecer, não periga? Misturar tudo?

RUBENS
Quem tem vocação, o ator, o bom ator, tem que lidar com isso. Ele per-
cebe que até na vida as coisas se misturam. Representar é fingir, e o ator
descobre que, quando finge, existe um fundo de verdade, que até a menti-
ra acaba virando verdade. O palco é contíguo a esse espaço indefinido, a es-
se não saber quem se é, a essa coisa que se chama loucura.
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243

LUÍS
No que eu li, não tinha nada sobre isso. Você não tem alguma peça, ou al-
guma coisa escrita...?

RUBENS
Por que é que você tá perguntando?

LUÍS
Porque faz falta. Eu estou organizando o material, e parece que falta uma
peça do quebra-cabeça. Tá tudo redondo, quer dizer, quase. Tá fazendo falta,
sim, alguma coisa, não sei o que é.

RUBENS
Você mexeu na gaveta, Luís? (silêncio) Mexeu, não mexeu?

LUÍS
(tenta fingir) Eu... ?

RUBENS
(conformado) Mexeu.

LUÍS
Desculpa, não foi por querer. É que tinha uma página solta, de uma carta,
caída, que estava no meio dos papéis...

RUBENS
Que página o quê, Luís? Eu tirei tudo da gaveta.

LUÍS
Então, deve ter caído.

RUBENS
Só deixei uma única folha, pra te testar.

LUÍS
Desculpa, eu não sei o que dizer.
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244 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
Eu tinha esperança que você ia saber resistir, mas não. Tudo bem. No fun-
do, eu sabia. Aquilo que se fala vai fabricando o futuro. Quando eu disse pra
você não mexer, eu selei minha sorte. Como se fosse uma peça. A famosa pre-
paração. Você diz – não faça isso. É porque “isso”, mais adiante, vai acontecer,
ou pode acontecer.

LUÍS
Então, eu não tive culpa. Se foi de propósito...

RUBENS
Não tem importância se foi de propósito ou não. Você podia ter respei-
tado minha vontade. A página caiu na hora da arrumação, e eu resolvi cor-
rer o risco.

LUÍS
Posso... perguntar uma coisa? (o outro acede) Eu estou louco pra saber. Ela
ainda está viva ou...?

CENA 9

LILINHA
Espera, gente, eu quero contar pra vocês! Eu estava no meio da sessão e aí
eu vi o Luís, e ele me apontou um senhor que parecia um anjo.

RODOLFO
O quê? O Luís foi lá na sessão com você?

LILINHA
Não, Rodolfo, eu vi dentro da minha cabeça. Tinha aquele senhor e, na ho-
ra, eu não consegui entender o que é que ele estava querendo. Mas agora eu sei,
era o João Rubens, eu tenho certeza. Você não tá vendo, Vera? Foi um sinal.

VERA
Pelo amor de Deus, Lilinha, de novo esse papo, não!
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245

LILINHA
(infantil) Que papo? Mais respeito. Pode tirar o cavalo da chuva, que eu não
vou abrir mão da minha fé.

VERA
Não mistura as coisas, Lilinha. Desde que você se enfiou nessa seita, não fa-
la mais coisa com coisa.

LILINHA
Não é seita, Vera, não é. Não sei por que você teima.

VERA
(corta de novo) É o quê, então?

LILINHA
Você fala de um jeito tão... tão pejorativo. Pode ser seita, mas não desse jei-
to que você fala. Não é uma loucura qualquer, é o “Dai-me”, até o Ney já fre-
qüentou.

VERA
Que Ney?

RODOLFO
Latorraca.

LILINHA
Matogrosso.

RODOLFO
Desculpa, eu pensei...

LILINHA
Não sei por que vocês teimam em não querer ir lá comigo, tirar a prova.

RODOLFO
Eu? Já basta ter sido coroinha, Deus me livre!
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246 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA
Porque, que abre a cabeça da gente, abre mesmo.

VERA
Só faltava você embarcar na canoa do Luís. A lei tá aprovada, e a gente tem
uma reunião, essa semana, vão dar a resposta. Como é que nós podemos che-
gar lá e falar que mudamos de idéia?

LILINHA
Vera, eu já te falei, você tem que ser realista. Quem te garante que eles
vão soltar a grana? Não está vendo a Argentina? O que nós estamos viven-
do é o fim dos tempos, não adianta mentir. Não adianta tentar fingir que
não é com você. Está tudo um caos, e você fica tentando fazer as coisas di-
reitinho, pra quê? Está tudo de pernas pro ar, o fim dos tempos está aí, es-
cuta o que eu tou te dizendo.

VERA
Não começa. Eu não quero discutir o fim dos tempos com você, tá certo?
Eu sou sua sócia. Aqui, pelo menos, tenta ser objetiva.

RODOLFO
Por enquanto, enquanto o mundo não acaba, nós temos que pagar as con-
tas, não temos? Enquanto não acaba de vez?

LILINHA
A coisa que eu mais queria era encontrar alguém assim como o João Ru-
bens, que tivesse uma visão lúcida de tudo. Eu não posso jogar fora essa chan-
ce. Na escola, eu sempre fui apaixonada pelos textos dele.

VERA
Ninguém mais sabe que ele existe!

LILINHA
Mas está tudo lá. Ele escreveu sobre tudo o que está rolando. Ele era adian-
tado demais pra época, por isso ninguém entendeu.
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247

RODOLFO
Lilinha, não leva a mal, mas presta atenção. A gente tem que fechar logo es-
sa porra de contrato, senão não vai ter peça nenhuma. Porque eu vou preso, tá
me entendendo? E a mulherada não quer saber de conversa, elas só querem
saber do dinheiro.

LILINHA
Você tá empregado, fazendo novela, tem mais é que pagar mesmo.

RODOLFO
Grande merda, a novela tá no fim. E, com o salário que eu ganho, você acha
que dá pra manter as duas?

LILINHA
Quem manda sair engravidando a torto e a direito, por aí?

RODOLFO
Aaah, é por isso que você nunca quis sair comigo?

LILINHA
Ah, vai te catar, Rodolfo. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu quero fazer
teatro de verdade. Tou louca pra conhecer o homem. Eu tenho certeza. Ele veio
pra mudar nossas vidas.

RODOLFO
Vera, eu só topei porque você garantiu que desta vez ninguém ia pirar. E
agora esses dois vêm com porra-louquice. Qual é?

VERA
Eu sei. Merda. Que saco, Lilinha! Você é que tem que me ajudar, Rodolfo,
porque eu não tenho mais paciência.

RODOLFO
Cadê o Luís, por que é que ele não veio? Com essa maluca eu não quero
papo, eu vou falar prele parar com enrolação.
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248 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 10

RUBENS
(lê para o outro) “A arte apenas profissional circunscreve e domestica o
artista e, na verdade, o castra naquilo que ele tem de mais autenticamente
criador. O sofrimento do ator advém do atrito entre essência e personali-
dade e das contradições que é obrigado a suportar. Como na prostituição,
a arte exercida como profissão vincula algo de sagrado e potencialmente
transcendente com comércio. O ator comercia com a alma e, se não vende
seu corpo, vende sua face.”

LUÍS
Será que eu entendi? Prostituição? Você compara o ator a uma...?

RUBENS
O ator tem um grande poder – a palavra. A arte tem! A publicidade não usa
esse poder para vender, vender e vender cada vez mais!?

LUÍS
Faz parte. A gente tem que sobreviver.

RUBENS
Claro que tem. Mas, enquanto isso, você acaba esquecendo o poder que
tem nas mãos. São os atores que emprestam suas vozes pra comunicar as men-
sagens dos patrocinadores, dos políticos... O ator é o ponta de lança desse sis-
tema, você não pode esquecer disso. Até nas novelas eles não enfiam men-
sagens no enredo, a torto e a direito, sem respeito nenhum pelo espectador? É
uma espécie de prostituição, sim, senhor!

LUÍS
Eu não sei. Só sei que preciso confessar uma coisa. Às vezes, eu saio daqui
piradinho. Você fala do palco como se fosse uma coisa sagrada e como se o
teatro fosse uma religião. (hesita)

RUBENS
E é. Ou poderia ser.
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249

LUIS
Mas, se fosse, não teria como viver no mundo.

RUBENS
É. O problema é esse.

LUÍS
(muda de assunto) Você deu uma olhada no projeto da peça?

RUBENS
Mais ou menos. Quer dizer, dei, mas não entendi nada.

LUÍS
Não entendeu o quê?

RUBENS
Vai ser uma cooperativa ou não?

LUÍS
Vai, claro que vai. É mais fácil, por causa da burocracia.

RUBENS
Mas os salários que você colocou não batem.

LUÍS
Por quê? Você achou pouco o que eu pus pra você?

RUBENS
Ao contrário, é porque cada um vai ganhar uma coisa. Eu não entendi.
Numa cooperativa, todos não ganham igual?

LUÍS
Nem sempre, Rubens. Não é bem assim. Claro que a Vera e eu, que
cuidamos da produção, merecemos um pró-labore maior, e você, como autor,
também.
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250 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
Claro. Só que, no plano da inspiração, não existe “meu” e “teu”. Não dá pra
saber quem merece ganhar mais. Essa divisão vai contaminar a atitude das pes-
soas. Elas vão achar que não têm responsabilidade igual e nem obrigação de
assumir que a obra em que estão metidas é também delas, uma propriedade
coletiva, comum.

LUÍS
Não mistura as coisas, Rubens, deixa comigo. Você andou afastado e não tá
por dentro. Uma coisa é a criação, do jeito que você tá falando, tá legal. Mas a
parte material é diferente. Ah, eu tinha esquecido, você tem uma firma?

RUBENS
Eu? Firma? Como, firma?

LUÍS
Por causa da lei. Facilita, se você puder dar nota fiscal.

RUBENS
Você tá brincando. Eu não sou uma firma, eu sou um autor. O que é que
vocês querem de mim, Santo Deus? Agora eu vou virar uma firma? Como nota
fiscal? Pra quê?

LUÍS
Calma, por causa da lei. É pra prestação de contas, depois... (hesita) Tudo
bem, não liga pro que eu disse. Esquece.

RUBENS
Não, explica, eu quero saber. Se eu tenho que virar uma firma, eu quero saber.

LUÍS
Todo mundo, hoje em dia, abre uma firma. Todo mundo. É mais fácil. Se
você abre, te ajuda a pagar menos imposto.

RUBENS
Menos imposto, como? Que imposto?
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251

LUÍS
De renda, imposto de renda! Se você guarda as notas das despesas, das com-
pras todas, tudo pode entrar como despesa de produção. Você economiza e
também ajuda o trabalho que a contadora vai ter.

RUBENS
Que contadora? Na equipe tem uma contadora? Na equipe tem também
uma contadora? Vocês estão inteiramente loucos? O que é que é isso, Santo
Deus? Você tem coragem de me falar uma coisa dessas? Quanto tempo vocês
perdem com essa loucura, com essa burocracia sem fim? É impraticável, é me-
lhor parar com tudo. Eu não quero mais. Não quero mais participar dessa coisa
lastimável.

LUÍS
Mas o que é que você quer? Você vive numa cidade, num país, tem que
pagar imposto! E se fizer sucesso, vai pagar mais. É com os impostos que o
governo teoricamente cuida do povo e da cidade e até dos miseráveis que te
comovem tanto. Claro que eles roubam e tem corrupção. Mas você quer fazer
de conta que não vive nesse mundo, Rubens. Qual é? Esquece, eu não falei por
mal. Esquece. Eu prometo que vou te deixar fora disso. Desculpa!

CENA 11

RODOLFO
Espera aí, “péra aí”. Dançou, como? Como, dançou?

LILINHA
Eu não disse que a Argentina podia atrapalhar? Bem que eu tive uma
intuição.

RODOLFO
Dá um tempo, Lilinha.

VERA
É isso mesmo que vocês ouviram. Me chamaram com urgência, me servi-
ram um cafezinho, falaram e falaram, e pronto. Dançou. Por enquanto, pelo
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252 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

menos. Eles têm razão. Acontece que, com essa coisa toda do dólar e essa crise,
estão com medo de investir e acabar ficando no vermelho. Pediram pra
esperar até o fim do ano.

RODOLFO
(grande escândalo) Até o fim do ano? Mas eu não entendo. Não estava tudo
certo? Eles não tinham dado a palavra?

VERA
É, mas não estava assinado.

RODOLFO
Mas quem garante que no fim do ano...?

VERA
Ninguém, ninguém garante. Mas eles disseram que, se conseguirem
equilibrar as contas, talvez seja possível, mas aí vai ter que ficar pro ano que
vem.

RODOLFO
Mas que merda, Vera, não é possível. De novo? Sempre aparece uma bosta
dessas no caminho? Essa crise parece que não acaba. Quando não é uma coisa, é
outra.

VERA
Desculpa, eu tenho hora no analista e não posso demorar. Achei melhor
avisar logo, assim, cada um vai cuidar da sua vida. Eu não consegui encontrar
o Luís, ele que me desculpe. Um de vocês podia dar um toque nele.

LILINHA
Não, Vera, espera. Mas como? Ainda tem o outro projeto. Não é pra hoje a
reunião na casa do João Rubens?

VERA
Ah, meu Deus, pra quê? Não vai dar em nada, Lilinha.
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253

LILINHA
Agora é que nós não podemos dar o cano, de jeito nenhum. Rodolfo, vocês
prometeram que iam. O Luís garantiu que a Secretaria...

VERA
O Luís mente demais.

LILINHA
(apela) Rodolfo!

RODOLFO
Vera, quem sabe? Não custa dar um pulo, ainda mais agora a gente ficou na
mão. Pode ser que quebre nosso galho.

VERA
Você acha que a Secretaria tem dinheiro pra torrar desse jeito? O Luís fan-
tasia demais. Aquele menino que ele namora usa a Secretaria pra segurar o
Luís. Deve ser coisa dele, não deve ter nada a ver com o Secretário.

LILINHA
Vera, não fala uma coisa dessas. O Júlio é apaixonado pelo Luís, e daí? Claro
que ele ajuda. Por isso mesmo, pode dar certo. Não custa, Vera, vamos lá. Nós
podemos fazer agora o projeto do João Rubens e, no fim do ano, se Deus qui-
ser, sai o patrocínio pra outra peça, e pronto.Você vai ver. Combinado? (a outra
vai saindo) É hoje à noite, hein? Vocês estão com o endereço?

CENA 12

RUBENS
Lilinha?

LILINHA
Como é que o senhor adivinhou?

RUBENS
Você. Pode me chamar de você.
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254 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA
Eu tava louca pra vir aqui.

RUBENS
(dirige-se à outra) E você é a Vera.

VERA
Eu mesma.

RUBENS
E ele, o galã, Rodolfo.

RODOLFO
Que galã? Imagina. Quem me dera. Só me dão papel de amigo do galã.

LILINHA
Que aura o senhor tem.

RUBENS
Aura?

VERA
A Lilinha acha que é vidente.

LILINHA
Acho, não, eu sou. Vocês não estão vendo? É incrível! De uma luz, de uma
limpeza rara.

RUBENS
Vamos sentar. Luís, pega as cadeiras da cozinha. Desculpa, aqui é pequeno,
vocês estão vendo. O Luís me disse que vocês são um grupo.

VERA
Bom, nem sei o que nós somos. Nós somos amigos e íamos fazer um tra-
balho, que agora foi adiado.
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255

RUBENS
Foi adiado, como, Luís?

LUÍS
Adiado, o quê? (custa a entender) Não, ela tá falando de outra coisa.

RUBENS
(olhando pro Luís) Quer dizer que não são bem um grupo?

LILINHA
Somos, sim, a Vera é que tem essa mania. Ela é crítica demais.

VERA
Como grupo, Lilinha? Quantos espetáculos a gente já fez? Meio.

LILINHA
Não interessa. Vamos fazer muitos ainda.

RODOLFO
Faz tempo que a gente estava pra marcar, mas não deu pra gente vir antes.
O Luís não teve culpa. Ele tem falado muito do senhor. E que tem um texto seu,
maravilhoso, aliás, mais de um.

VERA
Mas eu acho pouco provável que a Secretaria dê o dinheiro assim, a fundo
perdido.

LUÍS
Mas não é a fundo perdido. Eles já concordaram.

VERA
Concordaram quando, Luís? Deixa de ser mentiroso.

LUÍS
Nós só temos que dar umas oficinas, como forma de pagamento.
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256 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA
Oficinas, Luís, de novo? Até receber, a gente já vai estar duro, e vamos ter o
mesmo problema: “vão” montar de que jeito? Só a verba pra mídia já é uma
pequena fortuna. E eles não bancam montagens, que eu saiba. Eu tou fora. Se
for um projeto alternativo, eu tou fora. Eu cansei. Eu não quero saber de nada
alternativo.

LUÍS
Mas você é uma atriz alternativa.

VERA
Alternativa, vírgula.

LUÍS
Ninguém sabe quem você é.

VERA
Sou uma atriz com oito anos de carreira, com muito orgulho. Todo mundo
me conhece.

LILINHA
Gente, não vamos brigar por causa de bobagem, por favor. Vera, dá um
tempo. Agora responde uma coisa, Luís. Vai ter verba pra montagem, mesmo?
Fala a verdade.

LUÍS
Meu Deus, eu já falei, mas parece que ninguém presta atenção. As oficinas
são só pra facilitar os ensaios, uma ajuda a mais, que o Júlio arrumou. Mas
depois vai ter uma verba de patrocínio, eu já disse.

VERA
Que verba? De onde vão tirar essa verba?

LUÍS
Verba, sim, senhora. Eu já estou com o projeto quase todo formatado. O
Júlio tá me ajudando. Vai sair como um projeto especial. O Secretário está
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257

empenhado. Eu já cataloguei praticamente todo o material aqui, do Rubens, e


eles têm interesse em que se monte uma das peças pra coincidir com o lança-
mento dos arquivos, que vão ficar lá, à disposição, na biblioteca da Secretaria.
Que foi, Vera, por que essa cara? Você não pode chegar e querer jogar tudo pro
alto. Qual é? O teu projeto é que acabou não saindo. Foi ou não foi?

LILINHA
Calma, gente.

VERA
Pois é, eu não comando a economia global, meu caro. O que é que eu posso
fazer, se justo agora a Argentina resolve falir?

LILINHA
Vera, o que interessa é que tem essa possibilidade. O Luís não ia ser louco
de inventar. Não vamos perder tempo discutindo. Eu estou curiosa, eu quero
saber do texto do João, que é o que interessa. (mais baixo, só pro Luís) Luís,
conta, quem sabe a Vera acalma?

LUÍS
Vera, olha isso aqui, nas minhas mãos. Você vai pirar. É um texto ineditís-
simo do João, que ele acabou de escrever pra nós quatro. Tá legal assim, Vera?

VERA
Como, pra nós? É novo mesmo?

LUÍS
E é sobre tudo o que a gente tá querendo falar. Tudo que está aí, essa reali-
dade pirante. Atual, atualíssimo. É ator, teatro, grupo, tudo isso. E como essa
questão da globalização afetou cada um. O João acha que existe um véu, um
muro que impede que a gente enxergue o nó da questão, o essencial. Esse bom-
bardeio de informações que não deixa espaço pra mais nada.

VERA
(irônica) Ah, que maravilha, quero só ver.
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258 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Vera, assim não é possível.

VERA
Eu estou curiosa.

RUBENS
Calma, Luís, não tem problema.

VERA
Eu só estranhei o tema. O Luís disse que o senhor nem computador tem e
faz tempo que vive aqui, à margem. E como é que o senhor se mete agora a falar
sobre o que não sabe?

RUBENS
Por isso mesmo. Porque estou à margem, é que eu acho que fui capaz de
enxergar uma luz. Às vezes, só quem está à margem consegue enxergar o que
está na cara e que ninguém vê. Eu podia estar vivendo no mato e, por isso
mesmo, enxergar a podridão da cidade com mais clareza do que qualquer
um. A senhora precisa ter mais respeito, dona Vera, não só por mim, mas
pelos seus colegas.

VERA
Quem o senhor pensa que é, pra querer me ensinar?

LILINHA
Vera, pára, pelo amor de Deus. Que é isso?

RODOLFO
Segura, Vera, dá um tempo.

LILINHA
Seu Rubens, desculpa, a Vera é desse jeito, não leva a mal.

Todos falam ao mesmo tempo e a coisa vira uma balbúrdia.


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259

LUÍS
Ela ainda deve estar vendo na frente as cifras com que ela anda lidando.

VERA
Claro, vocês sempre largam tudo nas minhas costas.

RUBENS
(dá um esporro) Chega! Aqui não é hora nem lugar pra ficar discutindo
desse jeito. (silêncio, uma pausa) Que coisa mais árida, chata. Pra quê fazer
teatro, se for assim? (pequena pausa) O que eu não entendo é como é que con-
seguiram convencer o mundo de que não há como lutar e nem contra o quê
lutar! (olha pra cada um deles) Tá todo mundo ilhado, engasgado com essa
balela de que essa é a única forma de vida possível... E ninguém mais se comu-
nica, as pessoas só sabem fazer negócios.

VERA
Que conversa mais antiga. E o que é que o senhor pretende? Uma revolução
comunista, por acaso? A esta altura?

RUBENS
Quem sabe? Será que não existe outro jeito pra se viver? Até o comunismo,
apesar de tudo, me parece mais cristão do que isso que está aí. Um dia, no
futuro, ainda vão falar dessa paralisia diante dessa realidade que parece ter
escapado ao nosso controle. E vão rir da nossa estupidez, porque é claro que
existe uma saída. Mas é preciso começar a procurar.

VERA
(cínica) E o senhor não tem computador, por quê?

RUBENS
Quem disse pra senhora que eu não tenho?

VERA
Tem?
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260 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
O Luís me fez o favor de comprar, com a primeira parcela da Secretaria.

VERA
E onde é que ele está?

RUBENS
No quarto, pode ir lá ver. É muito útil. Eu estou fascinado, confesso. Mas
não existe o que possa substituir aquilo que você é capaz de fazer recolhido
com seus botões, de madrugada, em silêncio, numa hora em que estão todos
dormindo. Computador nenhum é capaz de fazer você pensar com originali-
dade e resolver as questões que realmente importam. É preciso encontrar den-
tro de nós por onde caminhar, e essa visão, essa inspiração não está arquivada
em parte alguma do mundo. Ao contrário do que a senhora possa pensar, eu
não tenho preconceito com nada.

VERA
Desculpa, eu... Ando meio estressada e... Me desculpa, mesmo.

LILINHA
Sabe o que eu acho? Eu saquei esse lance no meio de uma sessão... (sem jeito
por causa do Rubens) Quer dizer...

VERA
Lilinha, não.

RUBENS
(divertido) A senhora é espírita ou o quê?

LILINHA
Não, era uma sessão do “Dai-me”, o senhor sabe o que é?

RUBENS
Ouvi falar.
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261

LILINHA
Eu preciso levar o senhor pra ver. É lindo, é lindo. É como se fosse uma
internet na cabeça da gente. Como se fosse a internet dos índios e que eles
deixaram pra nós. O Ayahuasca é um chá que a gente prepara, e ele abre todos
os canais. Com o ritual, ele consegue conectar a gente com tudo, com o astral,
com tudo o que existe. Comparado com ele, essa internet do mundo parece
um circo sem pão. Ou um circo pros que têm pão. Porque essa coisa, do jeito
que está, parece que não tem mais fim. Eu já disse pra Vera que é como se fosse
o fim do mundo, e o anticristo tivesse tomado conta, e ela fica me gozando. Eu
acho que ele está aí, e é como se ele não tivesse cara. Porque todo mundo pen-
sou que era o Hitler, com aquela coisa do nazismo, e depois que era o Sadam
Hussein, coitado. Tomou uma sova dos americanos. O anticristo mesmo eu
acho que é essa coisa que assumiu as rédeas do mundo com a economia. É ou
não é? (olha pra Rubens) O senhor entende o que eu...?

RUBENS
Entendo muito bem.

RODOLFO
Acho que anticristo mesmo são minhas mulheres, que dizem que acredi-
tam em Deus, mas só pensam em dinheiro.

LILINHA
Ah, Rodolfo, você me cortou.

RUBENS
Quantas mulheres o senhor tem?

LILINHA
Muitas.

RODOLFO
Duas. Com filhos, duas. E, depois que inventaram esse negócio de “pensão”,
o homem divorciado virou escravo. E até que a Lilinha tem razão, com essa
história de anticristo. Os bancos enlouquecem o mundo, com esse poder que
eles têm, devem ser eles, mesmo. Não vê os juros? E os economistas também
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262 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

devem estar na jogada. E a gente fica sem saída. Eu estourei todos os meus
cartões pra pagar as contas, mas a culpa é deles, que não dão colher de chá
prum pai de família com três filhos.

LILINHA
Você, pai de família?

RODOLFO
Posso não ser de família, mas sou pai. Eles pegam pesado, e eu jogo sujo
também, fazer o quê? Não vou passar a pão e água, enquanto eles faturam com
a minha desgraça. Pra pagar, só se eu ganhar na loteria. Porque é uma bola de
neve, minha dívida parece a do Brasil, só faz crescer.

LILINHA
Tá bom, Rodolfo, chega.

LUÍS
Vera, uma surpresa que eu tinha preparado pra você, e nem sei se você
merece. Está aqui aquela peça que você queria ler. Está aqui.

A luz muda e todos os atores congelam, menos Lilinha, que vai até Luís e pega
o texto que ele tem nas mãos e o entrega a Vera, enquanto diz o texto que se segue.

CENA 13

LILINHA
(lê um fragmento do que Rubens escreveu) “Desmascaramento. Todos têm,
oculto em si, o ator. Médico e monstro, para ser, o ator NÃO É. Não é, para que
a personagem seja e, em cima dessa contradição, toda a arte teatral se proces-
sa. Quando o ator trabalha apenas com a personalidade, acaba por desprezar
os veios mais profundos do tesouro que a arte pode proporcionar. Pois o teatro
é arte alquímica, que oferece ao adepto a oportunidade de uma transformação
cabal...” Tá vendo, Rodolfo? Televisão não é a mesma coisa, porque você tem
que aparecer e brilhar. Teatro é diferente. É como no “Dai-me”. Lá, de tanto
repetir o hinário, eu acabo me sentindo fora de mim, de um jeito parecido com
o palco.
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263

LUÍS
Dá um tempo, Lilinha. E aí, Vera, leu a peça? O que é que você achou? Ele
escreveu pra você.

VERA
Claro que não foi pra mim.

RODOLFO
(preocupado) Mas não vai dar bode? Você disse que o meu papel é o do
Secretário, mas ele aparece como um belo dum filho-da-puta! Quando ele
descobrir...

LUÍS
Bode nenhum.

RODOLFO
Mas ele já leu? Ele não vai querer patrocinar uma peça que...

LUÍS
Ele não vai ler. Ele não tem tempo pra ler.

LILINHA
Mas não é a vida deles, Rodolfo, é só uma peça, é ficção. Ninguém vai perce-
ber. Pra quê que ele ia ligar?

VERA
É, legal. Mas uma coisa eu não entendi. Você não disse que ela era atriz? Na
história, ela não é.

LUÍS
Como não? Faz teatro de estudantes. Na vida também ela abriu mão do
teatro profissional. Só fez no começo, por paixão.

VERA
Então, é tudo um pouco idealizado demais, eu acho.
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264 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
É porque ela encarna o ideal deles, por isso. Eles conseguiram viver uma
utopia, era um tempo mais feliz. Existia um projeto, uma esperança. Não era só
teatro, não era só mais uma peça, nada disso. O que norteava tudo era a perspec-
tiva de uma mudança radical, política, que não veio. Eles se amaram enquanto
faziam peças em sindicatos e faculdades, pela cidade, sempre pregando.

VERA
Deixa eu te dizer uma coisa, Luís. Você não percebe quando mente? Me diz.

LUÍS
Por que isso agora?

VERA
Porque já é doença. Você não disse que era uma peça sobre ela?

LUÍS
Desculpa, é que, pra ele, não tem importância a história pessoal. Ele
preferiu colocar o amor deles dessa forma, essa paixão em ação, compartilha-
da, na militância artística e política. Foi por isso que ele deu a peça pra gente.
Ele acha que pode ajudar a gente a se encontrar. Porque o que forma um grupo
é uma crença comum, e nós não temos nenhuma.

VERA
(sem entender) Como não?

LILINHA
Tá vendo, Vera, eu não falei?

VERA
(indignada) Falou o quê? Aqui, cada um pensa tão diferente, que só for-
mando quatro grupos. Um pra cada um.

RODOLFO
Mas teatro não é igreja, nem partido, desculpa. Nós não estamos aqui
reunidos, e tudo? O que é que ele quer?
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265

LUÍS
Um grupo não é um bando de gente reunida pra fazer uma peça. Não é.

RODOLFO
É difícil, hoje em dia, o que é que ele tá pensando? A gente não tem nem
onde ficar, nem sede, nem teatro, nem porra nenhuma. Claro que o jeito é se
reunir de vez em quando, conforme der.

LUÍS
Mas, pra fazer, a gente precisa discutir essa questão. Pra ele, sem um proje-
to maior que a peça, não existe um grupo.

RODOLFO
Mas nós já temos dois projetos. Não tem o outro pro fim do ano? Então...

LUÍS
Mas é pouco, Rodolfo, não é isso.

LILINHA
Pouco por quê? O Rodolfo tem razão, no tempo deles, era diferente. Não
dá pra fazer igual.

LUÍS
Lilinha, ninguém tá querendo fazer igual. É só uma questão de compreen-
são do sentido de grupo, como aparece na peça.

VERA
Pelo que eu entendi, eles se sentiam o centro do mundo e achavam que a
História dependia deles. E acabaram acreditando que eram heróis. Mas o que
eles faziam era terrorismo. E muitos morreram por causa disso.

LUÍS
Que terrorismo, o quê. Era uma luta política.

RODOLFO
Eu não quero nem saber. O que interessa é o patrocínio. Quando é que sai?
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266 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Tá tudo certo, só falta a gente ir lá, assinar.

RODOLFO
Aí, garoto! (todos se abraçam e comemoram)

LUÍS
O único problema é que eles querem que a gente leve o Rubens no dia da
assinatura do contrato.

LILINHA
E daí?

LUÍS
Ele disse que não vai, de jeito nenhum.

VERA
Como não?

LUÍS
E o Secretário faz questão, a gente vai ter que dar um jeito.

RODOLFO
A Lilinha pode falar com ele. Ele gostou dela, deu pra ver.

LUÍS
É, mas ele é teimoso. E o pior é que eu acho que o Secretário está mesmo
querendo humilhar ele.

VERA
Como, humilhar? Ele não vai bancar tudo? Claro que ele tem direito de fa-
turar em cima, por que não? Não tem cabimento. Ele é a estrela do evento e
não quer aparecer? Tenha paciência.

LILINHA
Deixa comigo, eu falo com ele. Ele vai aceitar, sim. Ele não diz que o “não”
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267

e o “sim” são mais próximos do que parecem? Deixa comigo.

CENA 14

RUBENS
Pra quê essa roupa nova, menina? Eu já disse que eu vou, não disse? Vou
com as velhas, mesmo, não quero enganar ninguém.

LILINHA
Mas é uma solenidade. O que custa? Olha aqui, essa camisa, que linda!
(mostra uma camisa cor de maravilha)

RUBENS
Essa, como? Eu não posso usar uma coisa dessas.

LILINHA
Não tem nada de mais. Prova, não discute, prova.

RUBENS
Vocês estão querendo me fantasiar de quê? (enquanto se troca) Ah, não, gra-
vata, de jeito nenhum.

VERA
O senhor não vai ficar com ela pra sempre.

LILINHA
Seu Rubens, não custa. É a assinatura do contrato, e os jornais vão estar lá.

RUBENS
Jornais, pra quê?

VERA
É o preço, homem, o que é que o senhor quer? Eles querem bancar, eles vão
mesmo bancar. Custa, um sacrifício?
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268 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
Eu não vou ficar confortável. Parece uma palhaçada.

LILINHA
Seu Rubens, foi uma sorte conseguir. Faz parte cumprir o ritual. Claro que
é política, mas faz parte.

RUBENS
Há mais de quarenta anos que eu não uso uma gravata. (começa a dar o nó)
Quando eu comecei, eu era certinho, eu tinha até esquecido. Até destoava dos
outros, sempre de paletó e gravata. Olha só, que coisa sem pé nem cabeça. (no
espelho) Vão achar que eu enlouqueci. Esse homem aí não sou eu. (começa a
tirar tudo)

VERA
Eu desisto.

RUBENS
Eu odeio provar roupa, me tira do eixo. Eu só resolvi fazer teatro pra poder
não ligar pra coisa nenhuma, muito menos pra roupa. Na hora, eu visto qual-
quer uma, pode deixar.

LILINHA
A gente não é o que veste, mas faz parte, seu Rubens.

RUBENS
Eu sei que é problema meu, mas eu odeio me apresentar como um “autor”.
Porque eu não sou. Quando eu escrevo, eu não sou autor, eu não sou nada.
Nada de nada. Era isso que eu queria. Queria era uma roupa de nada.

LILINHA
Então, que tal essa preta? Vai parecer uma rotunda, não é nada.

RUBENS
O artista só cria nu. Não que seja sem roupas, mas a atitude é de uma
nudez... Assim, de alma. Ele não pode se preocupar com nada.
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269

LILINHA
Mas ele tem que vender seu peixe. Na hora de vender, é outra coisa.

VERA
Eu já vou indo. Não tem o menor cabimento. Eu estou convencida de que
o senhor é completamente louco. A gente não pode perder mais tempo. Deixa
ele ir nu, se ele quiser. A reunião é daqui a quinze minutos.

RUBENS
Como, quinze minutos?

LILINHA
O tempo passou e a gente não se deu conta. Vamos logo, Seu Rubens.

VERA
Eu vou indo, vocês vão chegar atrasados. (sai)

LILINHA
Por favor, seu Rubens, vamos logo. Ela vai jogar isso na nossa cara o resto
da vida. É tão importante a gente conseguir. Por favor.

RUBENS
Pelo menos, sem gravata. Pronto, eu estou pronto. Tá bom assim? Eu sou
isso, assim mesmo, desse jeito, incompleto. E já me conformei com isso.

CENA 15

RODOLFO
Que foi engraçado, foi. O Secretário fazendo o discurso e falando maravi-
lhas, mas ele fingindo que não era com ele, nem olhou pra cara do outro.

LILINHA
Como se não estivesse entendendo nada. Como se fosse gagá. (ri)

RODOLFO
Eu acho uma sacanagem o que ele faz com o Secretário. Ele é até simpático.
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270 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Não sei como ele tem coragem. Aceita o dinheiro do outro e depois xinga o cara
no palco.

LUÍS
Não é o Secretário, Santo Deus! É o personagem, que sabe se arrumar com
o poder, só isso.

RODOLFO
Mas ele puxa a brasa pra sardinha do escritor, o tempo todo.

LILINHA
Se eles não forem diferentes, fica sem colorido. Tem que ter uma con-
tradição.

RODOLFO
Claro que tinha que perder ela pro Secretário. A mulher presa, ele ficou na
dele, lavou as mãos, não quis nem saber.

VERA
Mas o outro também não fez nada.

LUÍS
Eles não eram do mesmo partido. Ela fez a opção lá dela, nenhum dos dois
pôde fazer nada.

RODOLFO
Que panaca! Foi o Rubens que deixou ela ir à luta, sozinha. O Rubens!

LILINHA
Ela nem estava mais com ele.

RODOLFO
Ele tinha que ter pegado em armas, como ela. Tinha que ter morrido!

LILINHA
Que horror! Se tivesse morrido, não tinha peça.
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271

VERA
Mas existe uma culpa, lá no fundo. Como se ele não tivesse se perdoado.

LILINHA
Claro, ele não internou ela?

VERA
Uma coisa que eu não entendo é essa mania dele de dizer que ela está viva.

LUÍS
Mania, por que? Eu não te contei? É porque ela está. Ela está viva, sim, senhora!

VERA
Como, está? E onde é que ela se enfiou?

LUÍS
Ninguém sabe, fugiu. Sumiu no mundo. Deu um golpe no Secretário,
pegou uma grana e caiu na estrada. Ninguém sabe onde foi parar.

LILINHA
Que maravilhosa! Claro, nenhum dos dois merecia ela. Fez ela muito bem.

VERA
Mas, na peça, ela não morre?

LUÍS
É o que eu tou dizendo. A peça é só é inspirada neles. E a “culpa” de que
você fala não é bem essa. Ele só quis refletir sobre a dificuldade dos que não
morreram. Não por causa deles, mas porque ele vê uma ruptura, que fez
com que eles não conseguissem passar o bastão da História pra nossa ge-
ração. Essa é a questão. É como se ele assumisse que eles têm uma dívida
conosco. E daí o cinismo e o besteirol e o teatro desengajado que a gente
pratica. Ele quer pôr o dedo nessa ferida.

RODOLFO
Eu não entendo esse preconceito. Eu adoro besteirol.
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272 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
É sua cara, mesmo.

VERA
Que responsabilidade? Que coisa mais neurótica! Eles não têm nada a ver
com isso!

RODOLFO
Que cara chato!

VERA
Onde já se viu ele assumir uma responsabilidade desse tamanho? Que coisa
mais onipotente!

LILINHA
O Rodolfo só está de bronca por causa do personagem dele.

RODOLFO
Que personagem, o caralho! Esse velho é que é muito enjoado.

LILINHA
(explode, emocionada) Enjoado, nada. Ele é sério, muito sério. Você não sabe
como ele saiu da Secretaria! (culpada por ter omitido) Luís, quando eu deixei ele
em casa, ele estava bem estranho. Não abriu a boca, não falou nada no caminho.

VERA
Devia estar cansado.

LILINHA
(para Luís) Não, não era isso. Ele estava mal. Era bom você ir falar com ele.
Não custa. Dá uma ligada, pelo menos.

CENA 16

LUÍS
Eu fiquei preocupado. Você desligou o telefone por quê?
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273

RUBENS
Não foi nada.

LUÍS
Você tá abatido.

RUBENS
Não é nada, não. Eu estou... Nada mesmo, tá tudo bem.

LUÍS
Pode falar.

RUBENS
Eu tentei, você viu que eu tentei. Levei numa boa a reunião, o encontro,
tudo. Mas foi um erro. Foi um erro. Um erro. Eu fiz mal, não adianta me enga-
nar. Eu tou enojado comigo. Enojado!

LUÍS
Quando a gente vai numa dessas reuniões, bate uma ressaca, faz parte.

RUBENS
Eu queria sumir, como ela. É como se faltasse um pedaço dentro de mim.
Dói, sabe, Luís? Dói! Ele achava que ela era radical, mas, mesmo assim, era
apaixonado por ela, tanto quanto eu. Ela sempre foi melhor do que nós dois
juntos. Ela cobrava. O tempo todo ela cobrava. E obrigava a gente a aprofun-
dar todas as questões. Não era patrulha, era certo. Ela nunca fez média com
coisa nenhuma. Sem isso, não resta nada!

LUÍS
Porque é que você nunca foi atrás dela?

RUBENS
Até nisso ela foi radical: nunca escreveu, sumiu de vez. E acho que foi a
coisa certa. É impossível mudar sem matar o passado. Ontem, na
Secretaria, eu aceitei fazer o papel de mim, como os outros me vêem.
Assumi minha vida, meu passado, e eu não sou isso, claro que não. Era mais
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274 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

confortável o papel de suicida, louco e ausente.

LUÍS
Mas ela deve ter construído outra vida. E você também precisa se cuidar.
Ninguém vive fora do mundo. Você fala como se ela tivesse conseguido preser-
var uma pureza, mas você também!

RUBENS
Ela deve ter encontrado uma nova trincheira, eu tenho certeza. E eu não sei
inventar outra, sem ela. Porque eu fiquei aqui, apatetado, desse jeito, congela-
do, neste apartamento, e não entendo mais o sentido da vida, nem da minha,
nem da dos outros. Depois que você chegou com essa história da pesquisa, eu
andei tentando me enganar. Mas eu não sei. E quer saber? Eu tentei mesmo o
suicídio, não foi nada forjado. Depois, eu fiquei sem graça, e inventei aquela
história toda, menti. Enquanto eu estava lá pra assinatura do contrato, ela não
saía da minha cabeça e eu tenho certeza que o Secretário também não pensa-
va em outra coisa. Ele está pouco se lixando pro projeto. O dinheiro só tem a
ver com ela.

LUÍS
Mas o que importa é que ele deu.

RUBENS
Ninguém cede impunemente. Quando você faz o jogo do sistema, pensan-
do em levar vantagem, você se contamina de alguma forma. E se contagia com
os vícios que quer combater, é impossível passar batido, atravessar ileso.

LUÍS
Mas, pra viver, é preciso jogar, não existe outra forma.

RUBENS
Mas, no campo do inimigo, você já entra em desvantagem. Ele sabe disso
muito bem, ele sempre foi uma das melhores cabeças. E sabe também que, ao
ir lá, eu assinei minha rendição. Ele é pragmático e só acredita nos frutos da
ação objetiva, mas, mesmo assim, eu vi uma tristeza nova nos olhos dele. Ele
sabe que também perdeu com meu fracasso. Não foi uma simples vitória, não
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foi uma vitória verdadeira. Nem ele, nem eu conseguimos ficar com ela, que
era o que contava. E agora eu me rendi ao caos. Lá, enquanto assinava, eu esta-
va me rendendo ao caos.

LUÍS
Você não está exagerando? Foi só um contrato. Todo mundo assina con-
tratos, faz parte.

RUBENS
O caos só existe e cresce cada vez mais, porque todos acham que não vale a
pena resistir nem se indignar com mais nada. E eu não vejo saída. Talvez, se ela
estivesse aqui, eu conseguisse compreender. Claro que pra viver você tem que
sujar as mãos. Mas tem um limite. Eu não sei se vou suportar.

CENA 17

LUÍS
Gente, ele está em crise. Eu não sei se não foi um erro levar ele lá.

VERA
Erro, por quê? Ele é adulto, assumiu um compromisso, agora não pode
voltar atrás.

LUÍS
Eu sei, eu sei...

RODOLFO
Desculpa, eu tenho que ir andando.

LILINHA
Dá um tempo, Rodolfo.

RODOLFO
Não posso, já faltei a duas audiências. O juiz não é mole. É capaz de ele
mandar me prender, dessa vez!
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276 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA
Audiências, que audiências, Rodolfo? De novo?

RODOLFO
As duas se juntaram, agora. Querem acabar comigo.

LILINHA
Vera, você tem toda razão, a gente nunca foi um grupo. Nem sei se a gente
tem condição de fazer uma peça assim, tão... tão...

VERA
Espera aí, só por causa do Rodolfo? Uma coisa não tem nada a ver com
outra.

LILINHA
O Rodolfo nunca tem tempo, e odeia discutir. Assim não dá.

LUÍS
Esquece o Rodolfo, Lilinha. Eu estou preocupado com o Rubens, porque
ele não está nada bem. Não é fingimento. Ele está dilacerado por ter aceito o
patrocínio.

VERA
O QUÊ? Esse homem não regula. Ele quer viver do quê? De brisa?

LUÍS
Ele diz que a ingenuidade e a pureza são a única forma...

VERA
(corta) Pureza, agora? Você sabe mentir muito bem quando te interessa,
quando te convém. (furiosa) A esta altura, com tudo assinado, duvidar? Tenha
paciência.

LUÍS
Mas ele tem razão. Não tem como fingir, Vera. Tem uma coisa, lá den-
tro, que você não consegue trair, sem se violentar. Se você está cheio de
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problemas, torturado, o que é que você vai fazer? Despejar seu lixo sobre
os outros?

VERA
Isso é bonito de falar. Eu quero que os outros se danem. Esse homem é
louco, obcecado, Santo Deus, nunca vi uma coisa igual. Eu não me confor-
mo. Ele já escreveu a peça. Pronto. Ele que fique na dele, não tem nada que
interferir. A única coisa que me deixa segura é que ele não pode mais voltar
atrás.

LUÍS
Pode, sim. Claro que pode.

VERA
Era só o que faltava...

LUÍS
Tem uma cláusula...

VERA
Que cláusula?

LUÍS
Ele se reservou o direito de desistir, se achar que a coisa não...

VERA
Como é que você deixou passar uma coisa assim? Luís, como é que você fez
uma cagada dessas?

RODOLFO
Ele não pode fazer isso com a gente!

VERA
Quer dizer que agora a gente vai depender do humor do homem, para
saber se a coisa sai ou não sai? Ele é louco, não vai dar certo.
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278 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Chega, Vera, nem mais uma palavra, chega. Quer saber? Se a coisa não
sair, a culpa vai ser sua. Você tem que se abrir, será que você não entende?
Tá pensando que vai usar o Rubens, como se ele fosse... sei lá... um idiota?
Ele não é um idiota, e é você que está sendo estúpida, burra e teimosa. Você
não me deixa falar. O projeto só saiu porque eu acreditei. Mas você conti-
nua duvidando, e eu estou de saco cheio. Se manca. Se você não quiser, não
precisa fazer a peça com a gente, tá bem assim?

VERA
Ah, você está querendo me tirar, Luís? Agora que eu entendi. É isso que você
quer?

LUÍS
Não quero tirar ninguém. Só estou dizendo que é justo que a coisa seja feita
com a cara dele, do jeito que ele achar melhor. Ele é o autor, será que você não
entende?

VERA
Ele é o autor, e eu sou uma atriz.

LUÍS
É um sujeito perfeitamente razoável e lúcido, e não vai aprontar. Se ele
desistir, vai ser por uma boa causa.

VERA
Boa causa?

LUÍS
Eu não vou fazer nada que vá contra o que ele acredita e muito
menos contra o que eu acho certo. Eu confio muito mais nele do que em
você.

VERA
Ah, é assim? Então é assim? (pros outros) Vocês ouviram? Vocês ouviram?
Mas que merda! Se você pensa que pode falar comigo desse jeito, está muito
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enganado. Eu não preciso dessa merda, tá sabendo? Fodam-se, você e o seu


autor! Eu estou fora! FO-RA! (sai, batendo a porta)

LILINHA
Calma, gente. Vera, espera!

CENA 18

LUÍS
Desculpa, eu sei que é tarde. Mas eu e a Vera brigamos... e eu achei melhor
vir falar com você. Eu estou precisando.

RUBENS
Entra.

LILINHA
Eu quis vir junto, o senhor se importa?

RUBENS
Não tem problema, claro que não. Vamos entrar.

LUÍS
Desculpa, eu sei que não é problema seu. Mas eu minto demais e nem sei
mais quando tou falando a verdade, porque é tudo tão louco. Só sei que está
tudo errado, continua tudo errado, e não é porque eu minto. Claro que não.
(explode) Eu estou cansado! Cansado! Eu odeio discutir, mas ela não acredita
em nada e só vive me cobrando. Parece que tem prazer! Se, pra fazer teatro, eu
vou ter que brigar assim, o tempo todo, discutir tudo, sem parar, eu não sei se
eu quero. Ela nunca assume o que é feito pelo outro. E agora, ficou louca, quan-
do soube da cláusula que te dá o direito de desistir.

RUBENS
Calma, nós estamos no mesmo barco. Eu não vou desistir.

LUÍS
Não vai, como?
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280 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA
Mas, então, você não precisa sofrer desse jeito, Luís. Eu vou ligar já pra Vera,
e vai ficar tudo bem.

LUÍS
Não vai ligar nada pra ninguém! Espera, Lilinha. Explica melhor, Rubens.
Como, não vai desistir, por quê? Desde o início, a gente conversou direitinho,
e você sabe que tem todo o direito de mudar de idéia.

RUBENS
Eu tenho um compromisso com você, Luís, e vou cumprir. Agora não existe
mais “teu” e “meu”. Minha peça agora já é sua também, por direito. Claro que
é. E o que estamos passando também é problema nosso, não é só seu.

LUÍS
Eu nem sei... Sabe por que é que eu minto? No fundo, é o que as pessoas
esperam. Eu sinto isso. Ninguém quer saber da verdade, porra nenhuma!
Todos só querem ouvir o que escolheram como verdade. E querem a confir-
mação de que estão certos. Mas que verdade? E eu me viro. Ela diz que não tem
preconceito com nada, mas é mentira. Vive pegando no meu pé por causa do
Júlio. Ele me ajuda, mas não tem nada a ver com a nossa relação. No fundo, ela
tem inveja, porque não tem ninguém. E eu não posso sair por aí anunciando
que namoro o rapaz que assessora o Secretário. Ninguém ia entender. Isso não
é mentir!

LILINHA
O Seu Rubens não vai desistir, Luís, não tem mais problema.

LUÍS
Tem, porque sou eu que não quero mais. Eu não suporto mais olhar pra
cara dela, nem ouvir o Rodolfo falar das mulheres dele. Parece que não tem
fim. Parece que ninguém quer saber do que interessa.

RUBENS
Senta, Luís, relaxa. Todo mundo às vezes tem vontade de jogar tudo pro alto
e sumir. Mas não tem pra onde, essa é que é a verdade. Não tem.
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281

LILINHA
Calma, Luisinho, vai ficar tudo bem.

RUBENS
A contradição faz parte da vida. Existe uma responsabilidade de quem está
no comando, e, no caso, você está.

LUÍS
Eu, no comando? Desde quando?

RUBENS
Desde que o projeto saiu. Você não pode querer eliminar a Vera desse
jeito. Ela está em você, não vai adiantar. Desculpa, eu sei que a culpa foi
minha. Ontem, quando você veio, eu desabafei com você como amigo. Mas
eu não posso voltar atrás. A assinatura do contrato mexeu comigo, mas
acabou sendo uma libertação. Esse tempo, todo eu me viciei em culpar o
Secretário pelos meus problemas. Mas, se eu quiser continuar a viver, eu vou
ter que participar de tudo como existe. E essa sua crise tem um lado bom.
Tem um nível de pensamento que a gente só atinge quando entrega os pon-
tos e desiste. Como se fosse uma morte. Mas, se você pára e olha pro proble-
ma que tinha, ou que pensava que tinha, vai ver que... não tem mais
importância.

LILINHA
O Rubens tem razão, nós podemos não ser um grupo, mas nós somos ami-
gos, Luís. No fundo, eu sei que você gosta dela.

LUÍS
Eu acho que nós não estamos à altura da sua peça. Como é que eu posso
defender no palco suas idéias, se, na vida, eu não consigo praticar?

RUBENS
A prova de que você está à altura é duvidar. Você está muito diferente do
menino deslumbrado que apareceu aqui a primeira vez. E, se cada vez que
alguém duvidasse, largasse tudo, o mundo não saía do lugar.
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282 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS
Ela faz análise, mas parece que não adianta. Não acredita em nada. Como
é que vai poder fazer a personagem?

RUBENS
Acredita, sim, e nem sabe que acredita. Às vezes, a vida obriga você a vestir
uma máscara e, depois, você não sabe mais como tirar. E, mesmo quando um
ator não conhece a personagem, nos ensaios, ele pode ir descobrindo as facetas
escondidas que nem imagina que tem. E, com isso, ele cresce e se transforma.
E eu duvido que ela consiga ensaiar o papel da Nina sem se envolver. Ela vai se
contagiar da beleza da personagem, eu tenho certeza. Mas isso só vai ser pos-
sível se vocês confiarem nela.

LILINHA
Ela também não me respeita, Luís, é o jeito dela. Não vê como ela fala
comigo? Eu não posso abrir a boca. Ela quase não dorme, é por isso que
vive tensa. Porque sono também é vida, isso é que ela não sabe. O sono não
é uma bênção, Rubens?! Ele apaga tudo de ruim que a gente passa durante
o dia. Como se fosse um perdão. E é isso que a gente tem que fazer, Luís, a
melhor coisa agora é a gente ir dormir. Amanhã, você acorda outro, você
vai ver.

LUÍS
Mas que é que eu tenho a ver com a loucura dela, me diz?

RUBENS
Porque não é só dela, é sua também. E o único problema é que vocês estão
com medo.

LUÍS
Medo de quê? Ela não tem medo de nada.

LILINHA
Deixa de ser tonto, Luís. Claro, nós todos estamos mexidos. Pra ela, deve ser
ainda mais difícil, porque não acredita em nada.
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283

LUÍS
(para Rubens) Mas não existe uma contradição enorme entre o que você
prega e essa forma pela qual a gente vai fazer a peça? A gente vai, pega o di-
nheiro, toma mil compromissos com tudo e é obrigado a dar o crédito pra
Secretaria, pra todos os apoios? É um inferno, tudo isso. Isso não invalida
tudo?

RUBENS
Não, não invalida, não. Se não for assim, essas idéias não vão sair do papel.
Mesmo que exista uma contradição, é o único jeito. Pode ser que pra alguém,
que a gente nem sabe quem é, elas possam ser um estímulo, provocar uma
descoberta, ser o estopim de uma transformação, quem sabe? E vai ter valido a
pena. E principalmente cada um de vocês também vai se transformar, com
certeza. Uma peça não é uma coisa morta. Eu tenho certeza de que a Vera vai
se transformar, e você e eu também, mesmo a distância, todos nós vamos
mudar, e é isso que importa. (olha pra Lilinha) Vocês são um grupo, sim. Um
grupo do início do milênio, no Brasil, com todas dificuldades que isso possa
ter. Eu quero te agradecer, Luís: você veio até aqui e me tirou de um limbo onde
eu tinha me metido. Minhas idéias não servem pra nada, se não forem passadas
adiante, pra ouvidos jovens, como os de vocês.

LUÍS
Por que é que, na hora H, dá esse frio na barriga, Santo Deus? Eu tou morto
de medo!

RUBENS
Tá tudo certo, Luís.Vamos em frente. (a luz cai, em contraluz, e o iluminador
dá meia platéia)

CENA 19

LUÍS
(se dirige à cabine de luz) Pessoal, vamos dar uma passada na luz da cena
final. (chama pelos outros) Rodolfo, chega aqui. Vera, vem dar uma força. Eu já
volto. (ele sai, a luz passeia pelo cenário)
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284 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RODOLFO
(cantarola) “... assim pungente, não há de ser inutilmente... a esperança”

VERA
(cantarola) “cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar...”

Entra uma música de transição para o final.

LILINHA
Gente, eu nem acredito, passou tão depressa. Eu morro de medo de estréia!

VERA
Rodolfo, suas duas mulheres estão lá fora. No maior papo, juntas. Você
é louco?

RODOLFO
Elas que quiseram, estão amigas, nem se largam mais. Ando até
desconfiado.

VERA
Desconfiado, como?

RODOLFO
Brincadeira, elas me adoram. A Lilinha é que não quer saber de mim. (corre
atrás da atriz)

LUÍS
(entra pela platéia) Pessoal, olha quem chegou!

RUBENS
Eu só vim dar um abraço.

LILINHA
Que flores lindas, Rubens, que maravilha!
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285

VERA
Eu também adorei, obrigada pelas palavras. Meu Deus, a camisa! Lilinha,
não tá vendo? É aquela.

RUBENS
Em sua homenagem. Ah, o cenário está igualzinho ao meu apartamento!?
E aí, tudo pronto?

LUÍS
Eu estou estranhando sua animação. Não tá nem um pingo nervoso?

RUBENS
Eu estou feliz. Pra mim, já foi um sucesso. Ela me mandou um cartão.
Soube da estréia e mandou.

LILINHA
Ela, quem? Não é possível! Depois de tanto tempo? Deixa eu ver. Meu Deus,
veio da Índia? Então ela está lá? (lê) “Agora, eu vivo com Shiva.” Meu Deus!

RODOLFO
Que filha-da-puta. Ela casou com um indiano?

LILINHA
(ri) Que indiano, o quê! É um Deus, Rodolfo. Tá aqui a imagem, no cartão.
Aquele, de muitos braços.

RUBENS
Os adeptos de Shiva acreditam que a melhor forma de devoção a Deus é
mostrar o quanto a própria vida é um teatro. Por isso, largam tudo e vivem sem
nada, pelas ruas, o rosto coberto de cinzas, sem mais nada. Abrem mão até
deles mesmos.

LILINHA
(continua a ler) Vera, olha que lindo! Ela diz: “Força! Nós estamos juntos!
A distância não importa!” Como é que ela adivinhou?
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286 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS
E aí, Luís, não é pra ficar contente?

VERA
Rubens, vem cá. Eu quero falar com você. Obrigada... por tudo. Vai ser um
sucesso. Eu nunca fiz uma peça tão forte. Eu estou apaixonada pela Nina, pela
peça, por você, por tudo. Você vai jantar com a gente, não vai? Eu não aceito
recusa.

RUBENS
Claro, vamos jantar todos juntos e comemorar.

LUÍS
Ela está mesmo apaixonada, Rubens, é melhor você se cuidar!

RODOLFO
Gente, tá na hora! O autor, já pra platéia. Vai começar!

LILINHA
Rubens, espera! Eu quero te dedicar uma frase sua. (vira-se para a platéia)
“Oração e fé criam o que acontece...” (pausa, torturada) Esqueci. (corre e Ru-
bens a abraça)

RUBENS
Por oração, entenda-se tudo o que se fala. (sopra baixinho pra ela) E,
por fé...

VERA
(com ar maroto) ... até mesmo a ausência radical de qualquer tipo de cren-
ça”.

Lilinha sai correndo atrás da outra, e Rubens descobre Luís melancólico, abre
os braços e todos se abraçam.
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287

FAUZI ARAP
ator e diretor. Estreou como diretor profissional na montagem de Navalha na
Carne (1966), de Plinio Marcos, na versão carioca produzida por Tônia Carre-
ro. Na década de 1970, estréia como autor, com Pano de Boca, e passa uma tem-
porada dirigindo apenas seus próprios textos: O Amor do Não, Um Ponto de
Luz, entre outros. No final da década de 1980 cria o projeto Rosa dos Ventos que
ocupa o Teatro Eugênio Kusnet por dois anos e consegue recuperar o espaço
com encenações, leituras e shows de música popular. O projeto mereceu o
Grande Prêmio da APCA, e lançou a autora Noemi Marinho, com Fulaninha
& Dona Coisa, seu texto de estréia. Também na década de 1980, coordenou o
seminário permanente de dramaturgia da APART (Associação Paulista de Au-
tores Teatrais). Seus trabalhos recentes incluem direções de peças de Leilah As-
sumpção, Leo Lama, Juca de Oliveira, José Vicente, Mário Bortolotto, e dos
shows Âmbar, A Força que Nunca Seca, e Maricotinha, todos de Maria Bethâ-
nia. Seus prêmios incluem dois Molière, como autor, (1977 e 1988), mais
inúmeros prêmios Shell, Mambembe, APETESP e APCA, como diretor e au-
tor. Pelas direções de Santidade e Caixa Dois (1997), recebeu os prêmios Shell
e APETESP de melhor direção; os dois espetáculos também foram escolhidos
na categoria melhores do ano. Publicou pela Editora Senac o livro Mare Nos-
trum (1998), relato autobiográfico em torno de suas experiências lisérgicas, vi-
vidas nas décadas de sessenta e setenta. O Mundo é Um Moinho foi produzido
no Rio de Janeiro, pela Casa da Gávea (2003), com direção do autor e tendo no
elenco Caio Blat, Cláudio Cavalcanti, Maria Ribeiro, Cristiana Kalache e Pau-
linho Giardini.
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NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ


dramaturgo: Bosco Brasil
debatedor: Gianni Ratto

MONTAGEM

direção: Ariela Goldman


elenco: Dan Stulbach e Jairo Matos
cenário e figurino: Ariela Goldman
trilha sonora: Aline Meyer
luz: Rodrigo Guimarães
produção executiva: Aline Meyer
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290 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

NOVAS DIRETRIZES EM TEMPOS DE PAZ


uma fábula de Bosco Brasil

PERSONAGEM
CLAUSEWITZ por volta de 40 anos, ator
SEGISMUNDO por volta de 40 anos, interrogador

CENÁRIO
sala na Imigração do Porto do Rio de Janeiro

ÉPOCA
década de 40, séc. XX
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291

Segismundo está limpando as unhas nervosamente. Clausewitz abre a


porta com cuidado. Segismundo sinaliza para que ele entre. Clausewitz entra
e fecha a porta atrás de si. De fora, chega o apito rouco e insistente de um car-
gueiro que se prepara para zarpar.

SEGISMUNDO
Por que isso sempre acontece comigo?... (para Clausewitz) Eu tenho que
ir para casa depressa. Entende? Ordens. De lá de cima. (para si) Justo hoje
esse sujeito me aparece?

Clausewitz reage à palavra “sujeito”.

SEGISMUNDO
Onde está o seu passaporte?... Eu deixei aqui, em algum lugar. Pode sen-
tar. (sinaliza e fala com todas as letras) Sentar. Pode. Na cadeira. (tempo) Só
quero ver como é que eu vou me entender com esse sujeito...

CLAUSEWITZ
(murmura) Sujeito... Predicado... Objeto... (tempo) Objetos.

SEGISMUNDO
Você fala português?

Clausewitz faz um gesto evasivo com a cabeça.

SEGISMUNDO
Sei. Um pouco. Melhor... Deixa eu ver: a gente vai ter que preencher is-
to aqui. (coloca um papel na máquina de escrever) Por que mudaram a fór-
mula do depoimento outra vez?... Esse pessoal não sabe o que quer. (dati-
lografando) Distrito Federal... (para si) Que dia é hoje?

CLAUSEWITZ
Dezoito de abril de 1945.
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292 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
O senhor fala bem português, então?

Clausewitz faz mais um gesto evasivo com a cabeça.

SEGISMUNDO
Vamos ver se acabamos logo com isto...

CLAUSEWITZ
Sua esposa?

SEGISMUNDO
Minha irmã. Vamos ver... Data de hoje, nome do depoente...

CLAUSEWITZ
Seu nome?

SEGISMUNDO
Como?

CLAUSEWITZ
Seu nome.

SEGISMUNDO
Segismundo.

CLAUSEWITZ
Segismundo?

SEGISMUNDO
Meus pais morreram eu ainda era de colo. Nunca vou saber por que ga-
nhei esse nome.

CLAUSEWITZ
Segismundo. (tempo) Sabe, esse nome... Não. O senhor não vai se inte-
ressar. Eu também não me interesso por isso.
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293

SEGISMUNDO
(tempo) O senhor fala mesmo, o português.

CLAUSEWITZ
Eu falo.

SEGISMUNDO
Já esteve no Brasil antes?

CLAUSEWITZ
Nunca antes.

SEGISMUNDO
Sei. E o senhor aprendeu como, o português?

CLAUSEWITZ
Estudei sozinho. Depois de tudo que eu passei... tudo que eu passei na Guer-
ra... estudar uma língua tão estranha foi bom para mim, me fez esquecer... Eu
sou grato ao “x”. Gastei muito tempo estudando os valores do “x” no português.
Como é que vocês usam de tantas maneiras uma letrinha à toa?! Estudando o
“x” eu às vezes quase esquecia da Guerra... Quase esquecia da maldade. (tempo)
Claro, um funcionário do consulado do seu país em Manchester me emprestou
alguns livros. Ele também repetiu “não” muitas vezes. Agora eu falo: “não”.

SEGISMUNDO
Era a obrigação dele.

CLAUSEWITZ
Repetir o “não”?

SEGISMUNDO
Não se pode dar visto de entrada ao primeiro que aparece.

CLAUSEWITZ
Ah... Estava falando da pronúncia. “Não”. É difícil dizer: “não”. Essas
“nasais” da sua língua...
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294 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
Nazistas, o senhor disse?

CLAUSEWITZ
Por favor! Nasais! Nasais... Não. Mão. Verão.

SEGISMUNDO
Então, o senhor aprendeu com esse funcionário do consulado?

CLAUSEWITZ
Eu já tinha estudado um pouco no seminário. Por causa do meu profes-
sor de latim. O Professor Cracowiack... (tempo) Docta ignorantia. O se-
nhor já ouviu isso, não?

SEGISMUNDO
Não. O que é?

CLAUSEWITZ
Latim.

SEGISMUNDO
Não estudei latim.

CLAUSEWITZ
O senhor nunca foi à missa?

SEGISMUNDO
Não.

CLAUSEWITZ
(tempo) O senhor sabe: meu país é um país de católicos como o seu país.

SEGISMUNDO
Fui criado num orfanato luterano.
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295

CLAUSEWITZ
(tempo) Desculpai-me.

SEGISMUNDO
(tempo) Então o senhor aprendeu português no seminário...

CLAUSEWITZ
Não. Latim... Com o professor Cracowiack, como eu disse. (tempo) In-
teressante. Nunca soube como o professor Cracowiack foi acabar dando
aula no seminário. (tempo) O professor Cracowiack amava as línguas neo-
latinas. (tempo) Professor Cracowiack falava dezessete línguas! (tempo) Ele
tinha o exemplar de uma revista com poesia brasileira moderna. (se anima)
O senhor já ouviu falar do senhor Carlos Drummond de Andrade?

SEGISMUNDO
É o sujeito forte do ministro da Educação e da Saúde. Eu sei que escre-
ve num jornal. Parece que é escritor. E o senhor, é escritor?

CLAUSEWITZ
Não, sou agricultor.

SEGISMUNDO
E aprendeu sozinho o português... Não é todo dia que chega um estran-
geiro aqui, falando português.

CLAUSEWITZ
É bom estar no Brasil.

SEGISMUNDO
Deve ser. (tempo) Escute, o senhor chegou num dia um pouco agitado.
Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei ainda es-
tamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o ar-
mistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Esta-
mos esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não che-
gam, continua o mesmo: se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor
precisa de um salvo-conduto. O senhor quer ficar no país, não é?
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296 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ
Eu quero.

SEGISMUNDO
Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu respeito. Se
isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro e seguir
viagem.

CLAUSEWITZ
Eu tenho visto.

SEGISMUNDO
Visto para entrar no país, expedido pelo consulado brasileiro em Man-
chester... É esta folhinha, estou certo? Agora... Está vendo o seu passaporte?
Algum carimbo nesta folha? Então. Quem bate esse carimbo sou eu. O se-
nhor ainda não entrou no Brasil. O senhor não entrou em país algum. O
senhor entrou na minha sala. Eu digo se o senhor fica ou segue viagem.

CLAUSEWITZ
O cargueiro vai para as Ilhas Fauklands... E que eu vou fazer lá?

SEGISMUNDO
E o que o senhor veio fazer aqui?

CLAUSEWITZ
Aqui? No Brasil? Trabalhar.

SEGISMUNDO
No seu passaporte diz que o senhor é agricultor.

CLAUSEWITZ
O seu país precisa de braços para a lavoura...

SEGISMUNDO
O meu país precisa de muita coisa. Posso ver suas mãos?
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297

CLAUSEWITZ
Não entendi.

SEGISMUNDO
(gesticula) Eu quero ver suas mãos.

CLAUSEWITZ
O senhor quer ver minhas mãos...

SEGISMUNDO
Isso mesmo. Agora. Suas mãos.

Clausewitz mostra as mãos.

SEGISMUNDO
A palma da mão, por favor.

Tempo. Clausewitz vira as palmas das suas mão para cima.

SEGISMUNDO
O senhor nunca pegou numa enxada na sua vida. Sabe, senhor...

CLAUSEWITZ
Clausewitz.

SEGISMUNDO
Então. Foi o que mais me chamou a atenção. Mais do que todo o resto.
Um agricultor. Eu fiquei pensando o que um agricultor faz na Europa, nes-
tes dias. O senhor fazia o quê, lá?

CLAUSEWITZ
Nada.

SEGISMUNDO
Sei. E aqui, o senhor quer fazer o quê?
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298 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ
O Brasil precisa de braços para a agricultura.

SEGISMUNDO
O Brasil sempre precisa de alguma coisa. Uma hora, precisa plantar; outra
hora, precisa temperar o aço. Uma hora, o Brasil precisa de nós; outra hora,
não precisa mais de nós... (tempo) O senhor não trouxe nenhuma bagagem?

CLAUSEWITZ
O que eu sou é tudo que eu tenho.

SEGISMUNDO
Não tem bagagem, então.

CLAUSEWITZ
Eu fui deixando os meus objetos pelo caminho, da Po... Polsh...

SEGISMUNDO
(ajuda) Polônia.

CLAUSEWITZ
(assente) Da Polônia até o Brasil. (se esforça) Até aqui...

SEGISMUNDO
O senhor embarcou em Manchester, não foi isso? Não embarcou com nada?

CLAUSEWITZ
Não.

SEGISMUNDO
Isso é muito estranho. Quase todos que têm desembarcado aqui, nos últi-
mos tempos, vêm trazendo móveis, tapetes, pianos... Alguns até trazem carros.

CLAUSEWITZ
Eu sei. Essas pessoas vão vender esses objetos para pagar por uma vida
nova. Me falaram em construir fábricas, em comprar fazendas. E depois
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299

vão comprar outros objetos outra vez. Outros tapetes, outros pianos. Ob-
jetos. Parece que estão se preparando para fugir de novo. E quando isso
acontecer vão precisar de objetos para vender.

SEGISMUNDO
Mas o senhor não trouxe nada.

CLAUSEWITZ
Meus braços.

SEGISMUNDO
Sei. O Brasil precisa de braços para a lavoura.

O cargueiro apita.

SEGISMUNDO
O seu navio já está para partir.

CLAUSEWITZ
Eu não vou ficar?

SEGISMUNDO
Não posso me arriscar. Há muitas contradições no seu depoimento.

CLAUSEWITZ
O senhor fala: contradições. Onde estão as contradições?

SEGISMUNDO
Em todo lugar. O senhor diz que é agricultor, mas não tem um calo na
mão. Nunca veio ao Brasil, mas fala português muito bem.

CLAUSEWITZ
O senhor acha que eu sou um espião?

SEGISMUNDO
Não. Acho que é um nazista tentando entrar no Brasil.
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300 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ
Nazista?! Eu?!

SEGISMUNDO
Por favor... Não tenho nada contra o senhor. Mas agora nós vencemos uma
guerra contra o nazi-fascismo. É o que estão falando. O senhor não imagina a
confusão que foram estes últimos anos... Uma hora diziam para barrar os
judeus, outra hora para barrar os alemães. Enquanto não chegam as novas
diretrizes para tempos de paz, tenho que resolver tudo por mim mesmo.

CLAUSEWITZ
Confusão! Confusão... (respira) Há uma confusão. Eu não sou nazista.
Eu sou... da Polônia!

SEGISMUNDO
Uma passageira do navio disse que conhecia o senhor. É pena que ela
não falava tão bem o português. Não deu para entender muito bem. Parece
que viu o senhor fazendo... fazendo umas maldades... Não sei bem se é essa
a palavra.

CLAUSEWITZ
Maldades?

SEGISMUNDO
O senhor andou cortando a língua de uma moça.

CLAUSEWITZ
(tempo) Ah... Quem disse isso foi uma senhora ruiva, com uma cicatriz
aqui?

SEGISMUNDO
Conhece?

CLAUSEWITZ
Na viagem, eu conheci. Ela me conhecia. Do palco! Do palco... No
Teatro! Está claro? (pausa) Eu era ator.
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301

SEGISMUNDO
O senhor não disse que era agricultor?

CLAUSEWITZ
Eu era ator. Agora sou agricultor.

SEGISMUNDO
(tempo) Desde quando o senhor é agricultor?

CLAUSEWITZ
Faz uns... uns quinze meses. Quando eu desisti de ser ator, tinha que
escolher uma profissão. Agora sou agricultor.

SEGISMUNDO
Mas nunca plantou nada...

CLAUSEWITZ
A Europa estava na guerra. O Brasil precisa de braços para a agricultura.

SEGISMUNDO
O senhor é ator? Ou é agricultor?

CLAUSEWITZ
Eu decidi ser agricultor. Eu não quero mais saber do Teatro. O senhor
acha que tem lugar para o Teatro no mundo, depois desta Guerra?

SEGISMUNDO
Eu nunca fui ao teatro. Ouvi pelo rádio, uma vez. Uma história de uma
mulher que assina umas promissórias, depois vai embora de casa. Não
entendi muito bem. Não tinha a ver com a minha vida.

CLAUSEWITZ
É o que eu estava dizendo. O mundo que eu vi... O Teatro nunca vai
falar do mundo que eu vi. O senhor não imagina o que é uma guerra den-
tro da sua própria casa.
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302 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
(impaciente) É. Todos vocês dizem isso.

CLAUSEWITZ
“Vocês”? Quem?

SEGISMUNDO
Os estrangeiros.

CLAUSEWITZ
Mas eu vi coisas que o senhor nem pode imaginar!

SEGISMUNDO
(impaciente) Escute. Se o senhor tivesse alguma bagagem, alguma coisa
para dar ao rapazes aí da alfândega... Um presente. Assim era muito mais
fácil. Mas o senhor não tem nada.

CLAUSEWITZ
Tenho as minhas lembranças.

SEGISMUNDO
Isso não vai ajudar o senhor. Para mim não quer dizer nada a sua guer-
ra. Todos vocês querem me fazer chorar.

CLAUSEWITZ
“Vocês”? Os estrangeiros? Os estrangeiros querem fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO
Perda de tempo. O que vocês podem me contar que me cause alguma
emoção diferente? É como o Teatro que eu ouvi no rádio...

CLAUSEWITZ
O teatro não pode tocar o senhor. Estou de acordo. Não depois desta
guerra. Mas as lembranças... Eu vivi estas lembranças. Foi... foi um tempo
difícil.
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303

SEGISMUNDO
O Brasil mandou tropas. Fizeram tanto escarcéu nas ruas que o
Presidente mandou. Estamos com as contas em dia.

CLAUSEWITZ
É diferente. Não estou falando da guerra dos soldados. Estou falando da
Guerra que entrou na minha casa! (tempo) O senhor não tem idéia do que
uma pessoa pode fazer com outra pessoa.

SEGISMUNDO
Está bem: vocês mataram, vocês violaram as suas virgens, vocês come-
ram carne dos mortos. Eu sei. Todos vocês me contam a mesma coisa! Eu,
eu digo: e daí? Isso foi lá na Europa. Por que isso deveria me dizer respeito?

CLAUSEWITZ
Porque o senhor também é uma pessoa. É um sujeito!

O navio apita mais uma vez. Pausa. Segismundo pega um salvo-conduto


e o assina.

SEGISMUNDO
Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio zarpar. Eu
já estou atrasado mesmo. (para si) Tanto faz se eu encontrar um daqueles
na rua... (tempo) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez minutos
para me fazer chorar.

CLAUSEWITZ
Fazer o senhor chorar?

SEGISMUNDO
Isso. Me conte suas histórias da Guerra. Se eu não chorar nos próximos
dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se
eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu.

CLAUSEWITZ
Isto está no regulamento?
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304 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
Para o senhor, agora, eu sou o regulamento.

CLAUSEWITZ
(tempo) O senhor chora, eu fico no Brasil?

SEGISMUNDO
Fica.

O navio apita outra vez.

SEGISMUNDO
Está se preparando para zarpar. (tempo) Se quiser desistir.. Pode embar-
car agora.

CLAUSEWITZ
Eu vou contar. Eu vou contar...

Segismundo volta a limpar as unhas, calmamente. Clausewitz parece estar


procurando as palavras.

SEGISMUNDO
Esta papelada... Nunca vi juntar tanta poeira.

CLAUSEWITZ
Por favor, eu preciso pensar.

SEGISMUNDO
Pensar no quê? É só contar o que o senhor viveu.

CLAUSEWITZ
Eu não sei as palavras... Não sei como colocar em... palavras... É difícil
contar essa coisa em português.

SEGISMUNDO
Eu só falo português.
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305

CLAUSEWITZ
É difícil!

SEGISMUNDO
O senhor também fala português.

CLAUSEWITZ
Não é a mesma coisa!

SEGISMUNDO
Eu estou esperando...

CLAUSEWITZ
Está bem! Está bem. Eu vou tentar.

Tempo.

CLAUSEWITZ
(sôfrego) Perto da minha cidade... Perto da minha cidade. Tinha um...
cheiro de carne... de carne humana no fogo... Não! Eu não vou conseguir
contar isso. Não em português.

O navio apita mais uma vez.

SEGISMUNDO
Quer desistir?

CLAUSEWITZ
Outra lembrança. (tempo) Prenderam o professor Cracowiack... Os
alemães prenderam.

SEGISMUNDO
(se interessa) O professor de latim?

CLAUSEWITZ
O professor de latim.
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306 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
Levaram para um interrogatório, o professor?

CLAUSEWITZ
Levaram. Sim. Eu estava lá... na mesma sala...

SEGISMUNDO
E aí?

CLAUSEWITZ
Prenderam o professor numa cadeira... numa cadeira como esta.
(tempo) Aí começaram a bater... bater em professor... no professor... com...
com uma...

SEGISMUNDO
Uma, o quê?

CLAUSEWITZ
Eu não sei. Eu não tenho as palavras.

SEGISMUNDO
Eu vou emprestar algumas ao senhor. Antes de me mandarem para este
posto, eu fazia uns serviços para a Polícia Política...

CLAUSEWITZ
O senhor?

SEGISMUNDO
Quem me arrumou o emprego foi um padrinho. Ele era um dos chefes
lá dentro. Me trouxe do Rio Grande porque confiava só em mim. Sabia que
eu dava conta do recado.

CLAUSEWITZ
(confuso) Não entendi.
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307

SEGISMUNDO
Alguém tinha de fazer o serviço.

CLAUSEWITZ
Que serviço?

SEGISMUNDO
Fazer aquele pessoal falar. Às vezes não queriam nem que aquele pessoal
falasse. Era só dar um susto. Sabe, eu sempre gostei de dar um bom susto.
(tempo) É... Enquanto precisaram de mim eu fiz muita coisa para eles. (sem
qualquer emoção) Cansei de ver o sujeito chegar de cinqüenta dias sem ver o sol,
mijando na mesma bacia esse tempo todo, e ainda ter de ficar mais vinte horas
de joelhos. Os meus rapazes raspavam os pelos do corpo do sujeito, davam uns
beliscões e se divertiam atirando uma lata no topo da cabeça dele. Quando caía
de cara no chão, aí sim, aí era hora de começar. Eu puxava o sujeito pelos cabe-
los e não deixava ele dormir. Queimava o corpo inteiro do sujeito com ponta de
cigarro, até no saco. Depois jogava óleo de rícino em cima. Batia com o cassetete
até não enxergar mais o rosto do detido. Enfiava pimenta no cu dele com um
clister deste tamanho. E o sujeito ainda tinha que limpar toda a bosta do chão.
Ou eu batia mais com o cassetete. Para os mais difíceis eu tinha um expediente:
enfiava no canal do pênis um arame. Depois eu esquentava a ponta que ficava
para fora com um maçarico. O sujeito parecia um leitão na hora da matança.
Quando acordava, pedia para assinar o depoimento. (tempo) No Brasil tudo
tem que terminar num depoimento assinado. Como este aqui.

CLAUSEWITZ
Eu estou... estou espantado.

SEGISMUNDO
Espantado? Mas o senhor veio da guerra!

CLAUSEWITZ
Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essas coisas
pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim, o português era um latim
falado por bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa
gente tivesse dentes, como poderia ter perdido tantas consoantes?
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308 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
Também arrancávamos os dentes do sujeito, é claro.

CLAUSEWITZ
(tempo) Eu que achava que o português era uma língua falada por gente
com dotes de análise e síntese.

O navio apita mais uma vez. Tempo.

CLAUSEWITZ
O que o sujeito fez para o senhor?

SEGISMUNDO
Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me man-
davam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a
idade. Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas
eu servia. Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu
sempre fiz tudo o que me mandaram fazer.

CLAUSEWITZ
(irritado) Por que vocês fazem tudo que mandam?

SEGISMUNDO
“Vocês”?...

CLAUSEWITZ
Homens como o senhor. Homens como o senhor me fizeram odiar o
idioma alemão. Eu amava Goethe! Agora não posso mais ouvir uma linha
do Fausto.

SEGISMUNDO
Quem? Do que o senhor está falando?

CLAUSEWITZ
De teatro!
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309

SEGISMUNDO
Eu tinha entendido que o senhor agora era um agricultor.

CLAUSEWITZ
Eu sou um agricultor! Mas eu sou um agricultor no Brasil. Eu tenho que
falar a língua que se fala aqui! E o senhor está me fazendo odiar o por-
tuguês!

O navio apita. Segismundo olha o relógio.

SEGISMUNDO
No Brasil nós falamos português...

CLAUSEWITZ
(tempo) Meu professor de latim dizia que o português era uma língua
falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...

SEGISMUNDO
(tempo) O senhor nunca recebeu uma ordem em português. Por isso
teve essa idéia. Quando o meu padrinho me dá uma ordem, eu obedeço.
(tempo) O senhor tem suas lembranças. Eu tenho as minhas. Sabe qual foi
o primeiro serviço que eu fiz para o meu padrinho? Desenterrei um defun-
to de um mês e deixei na porta da viúva.

CLAUSEWITZ
(estremece) Titus!

SEGISMUNDO
O quê?!

CLAUSEWITZ
Titus Andrônicus. Não conhece?

SEGISMUNDO
Você e o seu Teatro outra vez...
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310 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ
Mas esse era o monólogo de Aarão! A passageira... A senhora ruiva... Ela
me viu no papel de Aarão! Toda noite eu sugeria que arrancassem a língua
e cortassem as mãos de uma jovem profanada; eu falava de mortes,
estupros, massacres... Atos cometidos nas sombras da noite...

SEGISMUNDO
A viúva era uma estancieira que estava criando problemas para o meu
padrinho. Já tinham mandando matar o marido dela, mas a viúva contin-
uava. Meu padrinho me disse para dar um susto na viúva. Isso aconteceu!

Silêncio.

CLAUSEWITZ
Eu estava no palco quando os alemães cruzaram a fronteira do meu país.
Como todas as noites. A companhia decidiu nem interromper a sessão. Mas no
dia seguinte o teatro estava fechado. Fiquei em casa. Foi a primeira vez em dez
anos que eu passei uma noite fora do palco. Tanta coisa tinha acontecido na
Polônia, tanta coisa tinha acontecido na Europa! E eu, no palco, esse tempo
todo. Por isso eu acho que foi uma espécie de alívio quando não tive que fazer
minha maquiagem naquela noite. Acho... acho cheguei mesmo a pensar que,
afinal, tinha chegado a hora de viver a vida. (tempo) A vida... (tempo) Os dias
foram passando e eu não saí para a rua. Via tudo da janela. Eu não sabia o que
fazer no meio daquela confusão. Eu era um ator! Não sabia carregar um fuzil,
não sabia curar uma ferida... O melhor era ficar em casa. Até o dia em que foram
me buscar. Não tive medo, não. Achei outra vez que, de alguma maneira, eu
estava vivendo. Vivendo enquanto eu presenciava todo o horror. Porque era a
única coisa que eu podia fazer: estar presente. E guardar na memória. (tempo)
Eu estava presente quando mataram professor Cracowiack. Eu estava presente
quando encontraram o corpo do meu pai, que tinha se suicidado com um
arame no pescoço. Eu estava presente quando meus amigos caíram metralha-
dos na fuga pela fronteira. Eu estava presente quando deixei minha mulher no
hospital em Paris, esperando para morrer. Eu não vivi. Eu colecionei lem-
branças.

O navio apita. Segismundo olha o relógio.


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311

SEGISMUNDO
Estão atrasados.

CLAUSEWITZ
(tempo) Eu achava que eu não podia falar das minhas lembranças para
o senhor. Mas agora eu acho que não adianta.

SEGISMUNDO
Está em jogo o seu salvo-conduto. Sua vida nova no Brasil. Desistiu?

CLAUSEWITZ
Eu já desisti de tanta coisa. Já desisti do meu país. Já desisti da minha
família. Já desisti da minha profissão. Já desisti do Teatro.

SEGISMUNDO
Desistiu do Brasil, então?

CLAUSEWITZ
Não imaginava que no Brasil as pessoas também obedeciam ordens.

SEGISMUNDO
É, os brasileiros obedecem ordens.

CLAUSEWITZ
Eu só queria entender por que vocês obedecem ordens!

SEGISMUNDO
“Vocês”? Os brasileiros?

CLAUSEWITZ
Vocês!

SEGISMUNDO
“Vocês”... Os homens como eu... O senhor não obedece ordens, não é?
O senhor acha que é melhor do que eu.
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312 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CLAUSEWITZ
Não. Eu sei que eu sou pior que o senhor. Eu escapei. Eu estou vivo. E
todos estão mortos: meus amigos, meus pais, meu país... minha mulher...
Se eu estou vivo é porque eu errei. É porque eu era pior que eles. Eu sou
pior que o senhor, tenho certeza.

SEGISMUNDO
(tempo) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O senhor pode
aceitar que é pior do que eu. Mas não pode aceitar que nós somos iguais.

CLAUSEWITZ
Eu cometi um crime monstruoso. Eu estive presente. E não fiz nada. Eu
sobrevivi.

SEGISMUNDO
(pausa) Eu também. Por isso meu padrinho me afastou para este posto.
Ele diz que é preciso esperar um pouco as coisas se acalmarem. Logo vem
o armistício. Logo vêm as novas diretrizes para tempos de paz. (tempo) Eu
sei que ninguém quer saber de mim. Eu fiz o que eles mandaram e eles
querem esquecer que mandaram fazer o que eu fiz.

CLAUSEWITZ
E o senhor cumpriu ordens...

SEGISMUNDO
Sem pestanejar. Sem nem cobrir o rosto. (tempo) Só uma vez eu cobri o
rosto. É, uma vez eu cobri o rosto com uma máscara... (tempo) Minha irmã.
Aí na foto... É a minha família, sabe? Um dia eu viajava com ela para o Rio
Grande, quando um caminhão cortou a minha frente. Quando eu acordei
já estava no hospital. Bem. Não aconteceu nada comigo, o carro escapou de
lado com a freada e foi colhido pelo caminhão que vinha na outra direção.
O lado do passageiro. O lado onde estava sentada minha irmã. Ela ficou
entre a vida e a morte. Se não fosse um médico... Um cirurgião... Um rapaz,
um rapaz simpático... Fez de tudo para salvar minha irmã e conseguiu. Uns
anos depois me mandaram quebrar os ossos da mão de um cirurgião que
estava preso conosco. (tempo) E era ele. O médico que salvou minha irmã.
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313

CLAUSEWITZ
O senhor obedeceu?

SEGISMUNDO
Eu disse: foi a única vez em que usei uma máscara. (tempo) Quebrei
osso por osso das mãos do médico que salvou a vida da minha irmã.

CLAUSEWITZ
Por que você fez uma coisa dessas?

SEGISMUNDO
Porque eu sou pior que o senhor.

Silêncio.

Foi a única vez que eu escondi o rosto. Bobagem porque eu acho que o
médico... não sei como... o médico me reconheceu... alguma coisa nos meus
olhos... Não sei o que pode ter sido. Eu estava cumprindo ordens.

Silêncio.

Hoje soltaram todos os presos políticos do Rio. Uma porção deles passou
pelas minhas mãos. Meu padrinho não me ligava fazia meses. E ligou hoje.
Disse para eu voltar mais cedo para casa, para tirar uns dias de férias. Alguém
pode querer acertar as contas comigo... Eu perguntei se era uma ordem. E ele
respondeu que eu podia tomar o que disse como eu bem entender. Ele nunca
tinha me dado uma ordem na vida, foi a última coisa que falou antes de desli-
gar o telefone.

Tempo longo.

De uns tempos para cá eu não posso olhar para minha irmã que eu vejo
nos olhos dela os olhos daquele médico. Que raiva que eu tenho dele, sen-
hor Clausewitiz... Que raiva...
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314 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O navio apita várias vezes. Segismundo se volta para a máquina de


escrever e começa a bater o depoimento de Clausewitz. Tempo.

CLAUSEWITZ
Ainda vale o nosso acerto?

SEGISMUNDO
O seu navio já vai zarpar.

CLAUSEWITZ
Mas eu ainda não contei como morreu o professor Cracowiack.

SEGISMUNDO
Os nazistas bateram nele até a morte, na sua frente.

CLAUSEWITZ
Ele morreu na minha frente, sim. Mas os nazistas não bateram no professor.
O oficial encarregado tinha trabalhado todo o dia. Estava cansado. Sabia que
nenhum daqueles homens torturados tinha alguma coisa para falar. E sabia que
nenhum deles podia resistir. Para simplificar tudo, resolveu dar um tiro no pro-
fessor Cracowiack e acabar com ele de uma vez. Como o oficial tinha batido
muito nos outros prisioneiros, sua mão estava trêmula e ele acabou acertando
o professor Cracowiack num lugar que não o matou imediatamente. Acho que
o oficial estava mesmo muito cansado porque nem deu outro tiro. Mandou
jogar a mim e ao professor em uma cela. O professor Cracowiack sangrou por
quinze horas. Eu fiquei do lado dele até a morte. Pude observar seus olhos
ficarem de louça, senti o calor e a umidade do seu último bafo. Morreu com
uma certa calma, depois de uma noite falando quase sem parar. Repetiu a
primeira aula que ouvi dele; citou a Eneida; corrigiu meu latim. Eu vi aquele
homem morrer na minha frente aos poucos. Eu estava presente. Ele falava
dezessete línguas e o último som que emitiu não foi nem uma palavra. Parecia
mais um móvel sendo arrastado na madrugada. (tempo) Seria bonito se o pro-
fessor Cracowiack tivesse morrido dizendo Docta Ignorantia...

Tempo.
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315

SEGISMUNDO
E aí?..

Tempo.

CLAUSEWITZ
(pausa) Um pouco antes de morrer o professor Cracowiack começou a falar
sem tomar fôlego por um longo período. De repente, virou o rosto para o céu
começou a dizer umas palavras sem sentido... Se eu me lembro bem... (febril; ten-
tando se lembrar e traduzindo ao mesmo tempo) “Ai, pobre de mim! Ai, infeliz! Aqui
estou para entender, ó Deus, já que me tratas assim, que crime, cometi contra vós
nascendo? Mas se nasci já compreendo que crime cometi... Aí está motivo sufi-
ciente para vossa justiça e rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido”

Segismundo estremece. E passa a prestar atenção ao que diz Clausewitz.

CLAUSEWITZ
(toma coragem) “Só queria saber, para apurar meus cuidados – além do crime
de nascer – que outros crimes cometi para me castigares ainda mais? Não nasce-
ram também todos os outros? Pois se os outros nasceram, que privilégios tive-
ram que jamais gozei? Nasce a ave, e, embelezada por seu ricos enfeites, não passa
de flor de plumas, ramalhete alado, quando, cortando veloz os salões aéreos,
recusa piedade ao ninho que abandona em paz. E eu, tendo maior alma, tenho
menos liberdade? Nasce a fera, e, com a pele respingada de belas manchas, lem-
brando as estrelas – graças ao douto pincel – logo, atrevida e feroz, a necessidade
humana lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto. E eu, com melhor
instinto, tenho menos liberdade? Nasce o peixe, que nem respira, aborto de ovas
e lodo, e, feito um barco de escamas sobre as ondas, seu espelho gira por toda
parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá o coração frio; e eu, com mais
escolha, tenho menos liberdade? Nasce o regato, serpente prateada, que dentre
flores surge de repente e de repente entre flores se esconde, onde, músico, celebra
a piedade das flores que lhe dão a majestade do campo aberto à sua fuga. E tendo
eu mais vida, tenho menos liberdade? Assim chegando a esta paixão, um vulcão,
qual o Etna, quisera arrancar do peito pedaços do coração. Que lei, justiça ou
razão pôde recusar aos homens privilégio tão suave, exceção tão única, que Deus
deu a um cristal, a um peixe, a uma fera e a uma ave?”
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316 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Silêncio. Segismundo está chorando. E deixa cair uma lágrima sobre o


salvo-conduto.

SEGISMUNDO
Merda. Borrei seu salvo conduto.

CLAUSEWITZ
(tempo) O “meu” salvo-conduto?

SEGISMUNDO
O pior é que eu não entendi nada o que o sujeito disse... (entrega o salvo-con-
duto) Tome. Eu cumpro minhas promessas. E pode esquecer este depoimento...
Hoje, no Brasil, ninguém vai assinar depoimento algum! Agora pode ir.

CLAUSEWITZ
(tempo) O senhor não vai me levar de volta ao navio?

SEGISMUNDO
O Brasil precisa de braços para a lavoura. Pode ir, eu já disse.

O navio apita várias vezes.

CLAUSEWITZ
O cargueiro vai embora.

O apito do navio vai ficando distante.

CLAUSEWITZ
Eu preciso contar uma coisa...

SEGISMUNDO
Chega das suas lembranças, senhor Clausewitz.

CLAUSEWITZ
É sobre o que eu acabei de contar.
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317

SEGISMUNDO
Fale logo, senhor Clausewitz.

CLAUSEWITZ
(tempo) Nem tudo é verdade...

SEGISMUNDO
(tempo) Como é?

CLAUSEWITZ
Eu vi o professor Cracowiack morrer. Mas ele não disse nada disso que eu
disse que ele disse. O professor Cracowiack passou as últimas horas da sua vida
me explicando com se prepara um mingau que só fazem no vale onde nasceu.

SEGISMUNDO
(tempo) E o que era todo aquele monte de palavras?

CLAUSEWITZ
Teatro.

SEGISMUNDO
Teatro?

CLAUSEWITZ
Um monólogo de uma peça de um autor espanhol. Eu recitei esse
monólogo todas as noites durante um ano...

SEGISMUNDO
Isso não está certo. Eu disse que o senhor tinha que me fazer chorar com
as suas lembranças.

CLAUSEWITZ
Eu forcei a minha memória e só lembrei de trechos de peças nas quais
eu atuei. Eu me lembro dos alemães cruzando a fronteira do meu pais. Mas
me lembro também da primeira vez em que li um autor espanhol.
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318 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

SEGISMUNDO
Isto não está certo, senhor Clausewitz ! Eu não devia deixar o senhor
sair desta sala.

CLAUSEWITZ
Mas eu ganhei a aposta. O senhor chorou. Olhe aqui o salvo-conduto
manchado com as suas lágrimas.

SEGISMUNDO
Foi o seu Teatro que me fez chorar! Foi a merda do seu Teatro que me
fez chorar!

CLAUSEWITZ
(pensa) É... Foi. Foi o Teatro.

SEGISMUNDO
O que o senhor acha que provou para mim?

CLAUSEWITZ
Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim mesmo.
Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator.
Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no mundo
depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer.
Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta fazer.
Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém
precisa saber como se faz esse mingau...

SEGISMUNDO
Saia da minha sala, o senhor, o teatro e o mingau.

Segismundo volta a limpar as unhas. Tempo. Clausewitz assente e vai


saindo.

SEGISMUNDO
Senhor Clausewitz.
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319

CLAUSEWITZ
Sim.

SEGISMUNDO
Como é essa história?

CLAUSEWITZ
Que história?

SEGISMUNDO
Estou falando dessa peça, desse autor espanhol.

CLAUSEWITZ
Ah... (tempo) Certo dia, no reino da Polônia...

SEGISMUNDO
(atalha) Se passa na sua Terra, então...

CLAUSEWITZ
Se passa na minha terra. Como eu dizia... disfarçada em homem,
Rosaura chegava durante a noite à Polônia, acompanhada por Clarin,
decidida a vingar sua honra, quando dá com uma estranha torre. De den-
tro, então, sai um homem envolto em peles e acorrentado. Sabe como se
chama esse homem? Você não vai acreditar. Segismundo.

SEGISMUNDO
Está falando sério?

CLAUSEWITZ
Segismundo olha para o céu... e diz...

Contando com toda a atenção de Segismundo, o senhor Clausewitz segue


a contar a trama de A Vida é Sonho...

E CAI O PANO.
São Paulo, outubro e novembro de 2001
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320 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

BOSCO BRASIL
é formado em Teoria do Teatro (Dramaturgia e Crítica Teatral) pela Escola
de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo.
Autor de teatro, rádio e TV, assume a direção artística do Teatro de Câmara
de São Paulo, em 1994. Em 1995 cria a Caliban Editorial, lançando a coleção
Teatro Brasileiro de Bolso, dedicada à dramaturgia contemporânea brasileira.
Como dramaturgo, teve vários textos encenados como Esquina dos Otários
(1983), Jornal das Sombras (1986), Morto não Assina (1993), Qualquer um
de Nós (1996), entre outros. Recebeu os prêmios Shell e Molière de melhor
texto de 1994, por Budro; indicações para os prêmios Shell e Mambembe,
por Atos & Omissões, em 1995; Os Coveiros, 1997, que fez temporada em
São Paulo e viajou por todo Brasil e Portugal; O Acidente, 1998, indicado
para melhor texto. Novas Diretrizes em Tempos de Paz, prêmio Shell e APCA
como melhor texto de 2001, apresentou-se em São Paulo e Rio de Janeiro,
viajou por todo país e fez temporada em Portugal; sua versão argentina
estréia em Buenos Aires em 2004. Várias de suas peças já tiveram leituras
dramáticas públicas na França, Itália, Grécia e México. Blitz foi editada na
França em 2005 e sua versão radiofônica foi transmitida pela Radio Culture
de Paris no mesmo ano. Atualmente a nova versão de Os Coveiros, com
Marcos Pasquim e André Matos viaja o país, depois de temporada em São
Paulo, no Teatro Folha.
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ATO SEM HISTÓRIA


dramaturgo: Luís Alberto de Abreu
debatedora: Ilka Marinho Zanotto

MONTAGEM

direção: Ednaldo Freire


elenco: Aiman Hammoud, Ale Saleh,
Edgar Campos, Luti Angeleli e
Mirtes Nogueira, da Fraternal
Companhia de Arte e Malas-Artes
produção: Nádia De Lion
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322 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

ATO SEM HISTÓRIA


Luís Alberto de Abreu

PERSONAGEM
MESTRE
PRIMEIRO HOMEM
SEGUNDO HOMEM
MÃE

PRÓLOGO
A área de representação é delimitada por uma corda estendida no chão. É
um retângulo de 4m x 3m que tem em cada um dos quatro ângulos uma flor
artificial. Ao fundo, fora da área de representação, três cadeiras de madeira,
simples. Uma, à direita, está ocupada por uma mulher. Outras duas, à esquer-
da, estão ocupadas por homens. Ao centro, em pé, atrás de uma pequena mesa,
está o velho. Sobre a pequena mesa coberta por uma toalha branca estão
alguns objetos: um velho chapéu de feltro, uma faca de cozinha, uma flor arti-
ficial, um jornal dobrado, um molho de chaves. Ao iniciar-se a representação,
o velho pega o chapéu e entra na área de representação. Anda em direção ao
público.
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323

MESTRE
Boa noite. Houve um tempo em que não se imaginava um homem sem
chapéu. Sou desse tempo. Nesse tempo, tinha-se também, como hoje,
pequenos e grandes medos. Os grandes eram parecidos com os de hoje. Os
pequenos é que eram diferentes, e para se defender de alguns deles usava-
se chapéu: tinha-se medo de insolação do dia e da garoa da noite; de
friagem, que perrengava os quartos da gente; de corrente de ar, que endure-
cia as juntas; do vento encanado, que fazia dor nas cadeiras; de golpe de
vento, que deixava a cara torta e de vento tomado de revestrés, que eu
nunca soube direito o que era, mas, por via das dúvidas, usava chapéu. Dos
medos grandes havia principalmente o pavor de morrer de repente, sem
preparo, sem visita e consolo dos amigos. Sou um velho desse tempo, do
tempo do onça, tempo d’antanho, dos mil-réis, tempo de se comprar tostão
de mel coado. Outro dia minha neta implicou porque não largo desse velho
chapéu. Queria jogar fora e me dar um novo. Ah, mas eu catei meu fiapo
de voz, juntei com um pouco de raiva e um restinho de autoridade que
ainda tenho e trovejei: ninguém põe a mão nesse chapéu! (com orgulho)
Ordem minha saiu alta, de fazer gosto, mandante mesmo! Fez eco nas pare-
des da casa, deve de ter chegado até na rua! Como antigamente! Usar
chapéu faz bem pra memória!, argumentei. (rápido) Explico antes que
pensem que estou caducando como pensou minha neta. Quando o tempo
passa, a lembrança dos acontecimentos e das pessoas fica guardada nas
coisas. Numa velha ferramenta, numa foto, na fachada de uma casa ou
nesse chapéu. Ele me remete ao tempo, aos amigos que já foram. Eles ocu-
pam as ruas da minha lembrança e ouço suas vozes nas tardes daquele
tempo. Não, não era um tempo melhor que o de agora. Melhor é este, em
que além de viver posso lembrar. Mas não é daquele tempo que quero falar.
Conto uma lembrança de poucos anos atrás, uma lembrança guardada
ainda na pele (com a mão direita pega um jornal sobre a mesa) e neste velho
jornal: conto uma história deste tempo de homens sem chapéus. (com um
gesto da outra mão, chama Homem 1 para que entre na área de represen-
tação; Homem 1 obedece)
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324 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Aconteceu nesta mesma rua de asfalto que por baixo tem os trilhos de
bonde; que por baixo tem calçamento de pedra; que por baixo tem a terra
nua. E todas essas camadas têm seu tempo e suas histórias. Como esse
chapéu. Mas diferentemente de todas as coisas, aquele homem não tinha
história. (entrega o jornal para o Homem 1; ele abre o jornal, lê por alguns
instantes com atenção e olha o lugar com interesse; velho afasta-se para o
fundo)

CENA 1 – Um homem sem memória

HOMEM 1
Foi aqui, com certeza! (para o público, como se se explicasse) Coisas trá-
gicas sempre me atraem. É normal, não existe nada de mórbido nisso! A
desgraça e entre todas as desgraças a morte e entre todas as mortes a morte
bruta, súbita, nos atrai. Tem pesquisa, estatística que prova isso! É por isso
que, antigamente, marcava-se o local de um acidente ou assassinato com
uma cruz. Por isso vim aqui. Pode parecer estranho mas é normal! Meu
analista disse que é normal, então é normal! E quem é que, aqui, vai discor-
dar de analista? Então, é normal! É uma coisa que parece um negócio de
resíduo primitivo, coisa assim, que todo mundo tem! Por isso vim. (Mestre
pega o molho de chaves sobre a mesinha e, num gesto expressivo, o estende ao
Homem 2, que permanece absorto, sentado sobre a cadeira; o homem olha a
chave e olha o Mestre sem entender; com um pequeno e incisivo gesto, o Mestre
faz com que o homem pegue a chave; depois, indica-lhe a área de represen-
tação; o homem guarda a chave com um gesto lento e desorientado e levanta-
se para entrar na área de representação; Homem 1 perscruta o ambiente à
procura de indícios) Hoje em dia essas coisas são tão comuns que ninguém
mais se lembra de marcar o lugar. E foi quando procurava indícios do triste
acontecimento que encontrei, ali, pasmado, aquele homem sem história.
Bom dia, senhor!

HOMEM 2
(ainda desorientado, sorri) Bom dia.

HOMEM 1
O senhor podia me informar, por favor, se foi mesmo aqui que aconteceu
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325

essa morte de que todo mundo fala? Faz hoje uma semana. Aquele caso
rumoroso, saiu até no jornal... (para o público) Eu falo demais! Eu sempre
falo demais, puxo conversa com qualquer um, minha finada mulher me
dizia, emendo assunto sem tampa em assunto sem fundo, costuro conver-
sa à toa com prosa fiada... (cai em si) Já sei, estou falando demais, de novo,
mas já vou concluir! Pois, só depois de conversar um tempão com aquele
homem, falando de tudo e de nada, do tempo, do sol forte, bom pra
amadurecer manga no Pará, e da chuva, boa pra plantar arroz no Mato
Grosso, foi que percebi que só eu estava falando. (ao Homem 2) Aquele
homem sem história só sorria como se fosse um tonto.

HOMEM 2
É que eu sou um tonto. Acho que sou. Não sei muito de nada, não!
Lembro de um homem que me disse bom dia e falava coisas que eu não
conseguia entender. (meneia a cabeça e muda, instantaneamente, de tom e
assunto) Tenho muitas vontades. (começa a rir enquanto fala) Umas horas
vem a vontade de rir. Vontade forte, doida, muito, sem juízo... eu rio. (ri
mais; ainda rindo, começa a transitar para a melancolia) Outras horas
começo a ficar triste sem saber e quero rir mas a tristeza vai crescendo,
aumentando, até ficar maior que eu. Agora, por exemplo, estou triste.
Minha cabeça sempre está vazia de passado, mas agora uma imagem me
veio. Acho que é minha mãe. (a um sinal do Mestre, a Mãe se levanta; o
Mestre pega a flor da mesinha e a entrega à Mãe; a Mãe olha para a flor, tem
uma emoção forte mas se contém a um gesto do Mestre; entra na área de re-
presentação)

CENA 2 – A morte brusca

MÃE
Sou mulher pequena, frágil, sempre fui. Penso que é por isso que me
assusto com a grandeza das coisas. E, entre as coisas grandes, as imensas,
está o amor. E a dor é outra coisa entre as maiores. Eu, pequena como sou,
trago essas duas imensidões somadas e unidas dentro de mim.

HOMEM 2
(sorri e aproxima-se, encantado, da mulher; mulher, depois de o olhar
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326 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

fixamente, se afasta) Lembranças eram raras na cabeça daquele homem


sem história. Por isso, ele, agora, preso à recordação dessa mulher que
talvez seja a mãe que ele conheceu na infância, não prestou muita atenção
ao homem que carrega um jornal e lhe disse bom dia. Aquele homem que
fala demais.

HOMEM 1
Sim, eu sei, reconheço que falo demais, mas não disse mais do que duas
frases àquele homem! (Homem 2 tira a chave do bolso e a olha sem ainda
lembrar; afasta-se da mulher) Não tem sentido o que depois aconteceu! Eu
só vim ver o local do crime, do acontecimento rumoroso. É estranho, está
certo, mas é normal!

MÃE
Sou mãe, e dizendo isso vocês já imaginam tanto a razão do meu amor
quanto a da minha dor. Sou mãe comum, dessas que preferem dar o peito
ao filho do que ao marido que, de resto, nunca tive. Um homem me deu
amor por poucas noites de minguado prazer e ao sumir no mundo me
deixou um filho. Desfrutei do amor de meu filho por três anos apenas.

HOMEM 2
(tenso) Que lembrança distante é essa que mal recordo? Que mãe é essa
que talvez seja a minha? (irritado) E que é esse homem que me diz bom
dia? O que quer esse homem que me diz bom dia?

HOMEM 1
Bom dia! Foi só isso que eu disse! E depois perguntei sobre o crime, só! Até
aquele momento minha vida vinha caminhando normal, tinha sentido. Um
sentido pequeno, mas tinha! Eu tinha até alguns sonhos, pequenos também -
pescaria no Mato Grosso, um pequeno sítio - que queria realizar no futuro...
Eu sempre adio as coisas! Sei que falo demais, mas isso não é razão...

MÃE
Por três anos tive meu filho. Tinha cabeça grande, de cabelos cheios e
finos onde eu gostava de perder a mão. No quarto ano ele foi separado de
mim e de todos os muitos anos que eu teria junto dele.
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327

HOMEM 2
(com tensão crescente) Sou uma pessoa normal, tranqüila. Ando pela
cidade, vou a festas, tenho amigos, com certeza, não lembro muito bem. Às
vezes, tenho medo do que não lembro. Essa mulher que talvez seja lem-
brança de minha mãe...

MÃE
(furiosa) Não sou sua mãe! (Homem 2 sente o impacto da revelação;
Mestre pega a faca sobre a mesinha)

MESTRE
Aquele homem sem história tentou vasculhar seu passado para identi-
ficar aquela lembrança: não havia passado.

HOMEM 1
Aquele homem sem história tinha apenas o presente.

MÃE
Um homem sem história não tem registro do que foi, memória, passado.
Tem apenas o corpo presente, a sensação presente. No presente tudo é novo.

HOMEM 2
Um homem sem história é um homem novo, que nasceu agora, já adul-
to. Sem velhos costumes, velhos hábitos, velhos amigos ou inimigos. Um
homem sem história é um homem sem o velho homem que conhecemos.

HOMEM 1
A paixão, a ira, as vontades que se acumularam pouco a pouco no pas-
sado que ele não lembra surgem agora, imensas, novas, urgentes, senhoras
do homem sem história.

HOMEM 2
Às vezes, não sei de onde, vem a vontade de rir. A vontade cresce e eu
rio. Vem a vontade de patinar no parque, de beber, de zoar na noite. Às
vezes crescem outras vontades. (Mestre entrega-lhe a faca; homem pega a
faca, brinca com ela e a guarda) Não sei quem me deu a faca, não lembro.
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328 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MÃE
Deixei meu filho com a vizinha e saí. Vizinha não cuida direito, não é
filho dela, eu sei, mas eu precisava procurar trabalho.

HOMEM 1
Eu só queria ver o local. O crime tinha sido há uma semana. O que tem
isso de mau? De mórbido? Disse “bom dia”, ele respondeu.

HOMEM 2
Bom dia.

HOMEM 1
Aí, só fiz uma pergunta, mostrei o jornal e comecei a falar, eu sempre
falo demais, e a resposta foi fria, foi aço veloz que eu mal percebi...

HOMEM 2
Só lembro de um homem que falava demais. Eu devo ter tentado segu-
rar meu braço, ele deve ter me provocado, talvez ele fosse meu inimigo, não
sei, não lembro!

HOMEM 1
Nem tive tempo de gritar pelo primeiro golpe e ele já desferia o nono,
o décimo, não contei. Lembro que olhei perplexo para aquele homem
desconhecido: eu ainda esperava a resposta para minha pergunta. E mal
entendi por que me cobri de vermelho e mal entendi que já estava morto.
Eu tinha uns pequenos sonhos a realizar. (Homem 1 sai da área de repre-
sentação, devolve o jornal ao Mestre e se senta)

CENA 3 – A mãe separada do filho

HOMEM 2
Não sei, não lembro. (Mãe olha para Mestre, que faz um gesto para que
ela continue a representação)

MÃE
Eu não quero lembrar.
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329

MESTRE
É preciso.

MÃE
Sou gente comum, mãe solteira como tantas. Deixei o menino com a
vizinha e saí para a rua. Sem dinheiro, sem emprego, sem muito futuro, a
gente espera milagre, sorte na loteria, achar dez reais que sejam, perdidos
por quem tem muito. A gente espera, sempre, um homem que goste da
gente, que ajude a gente, porque viver não é fácil. A gente confia em Deus,
na sorte. Confiei naquele homem sem história.

HOMEM 2
Posso, claro que posso, desejo, quero! É boa essa vontade que cresce,
pensou o homem sem história. Na ausência de passado a única coisa con-
creta é o corpo. O corpo pede.

MÃE
Falou que eu tinha rosto de modelo, que conhecia um fotógrafo de
revista, que eu era bonita. Não acreditei, mas existem tantas histórias com
final feliz, tantas moças que do dia pra noite...Fui. Quis acreditar...

HOMEM 2
Tive a impressão de já ter estado naquele lugar outras vezes, mas não
com aquela mulher. Acho que ela estava com medo, não sei. Acho que eu
também tinha medo de que alguém me visse, de que ela gritasse, do que eu
ia fazer porque meu corpo mandava e eu queria, eu podia, eu posso, eu
quero, eu faço. Acho que foi isso, não lembro.

MÃE
Quis acreditar. Que é que a gente vira se não acredita na inocência
humana, na bondade humana? Num milagre, num amor que nasce do
nada? Não me culpem por acreditar!

HOMEM 2
Fizeram retrato falado, vi pendurado numa banca de jornal. Não era eu,
não estive naqueles lugares. É alguém parecido.
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330 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

MÃE
Meu último pensamento foi para o menino. Meu último desejo foi
perder minha mão em sua cabeça grande, farta de cabelos longos e finos.

HOMEM 2
Quem é essa mulher? Que imagem é essa que me vem à cabeça?

MÃE
Dói esse nada, esse mistério em que me encontro. Estou morta, meu
filho vive. Dói a separação, a ausência, e dói tanto que ora desejo o impos-
sível, que é estar com ele, viva; ora sonho a blasfêmia de ele estar aqui,
comigo, morto. (vira-se para Homem 2) Maldito! (afasta-se, soluçando
baixinho; entrega a flor ao Mestre e senta-se)

EPÍLOGO

HOMEM 2
Às vezes, cai de vez, sobre o homem sem história, o peso de uma insu-
portável tristeza e ele vasculha o passado que não lembra em busca de sua
origem. (emocionando-se) Se lembrasse eu poderia olhar o horror e me
assustar com meu rosto no espelho. E me ferir e me cortar e purgar e pagar
e uivar e chorar cada dia por cem anos até que a exposição da minha dor e
do meu sincero pesar comovessem os seus corações. (despe-se de qualquer
emoção) Mas não lembro, não choro nem estou chorando agora. A tristeza
uma hora se desfaz e o homem sem história caminha pelas ruas carregan-
do seu presente sem passado. (olha a faca com estranhamento, guarda-a e
caminha assobiando tranqüilamente; sai da área de representação e do palco;
Mestre coloca o chapéu e caminha para o público)

MESTRE
(lê no jornal) Desculpem a dureza da história e espero poder, numa
outra vez, recebê-los com histórias ternas ou divertidas. Histórias de
amores impossíveis e, no entanto, vividos, que nos façam acreditar – e que
não nos culpem por acreditar – em milagres e na inocência humana. E
histórias de risos inconseqüentes e irrefreáveis. Porque este nosso tempo é
feito também dessas histórias, que são tão reais e importantes como as
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331

histórias duras. Quanto a mim, eu sigo com a cabeça enterrada neste


chapéu, e pouco me importo se me acham ridículo, anacrônico, fora de
moda. Tenho medo de insolação do dia, da garoa da noite, de golpe de ar e
vento tomado de revestrés que eu nem sei o que é. Mas tenho mais medo
de perder minha história. Boa noite, obrigado pela presença.

FIM
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332 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS ALBERTO DE ABREU


dramaturgo. É autor de mais de quarenta peças teatrais encenadas, entre as
quais Bella Ciao; Cala a Boca Já Morreu; A Guerra Santa; O Livro de Jó. Teve
as seguintes peças encenadas no exterior: E Morrem as Florestas
(Dinamarca); Xica da Silva (Japão e Coréia do Sul); Guerra Santa
(Inglaterra); O Livro de Jó (Dinamarca, Austrália e Rússia). Foi menciona-
do como um dos mais importantes dramaturgos da atualidade, na América
Latina, pela publicação espanhola “Escenários de Dos Mundos – Inventário
Teatral de Iberoamérica”, preparado pelo Centro de Documentação Teatral
do Ministério de Cultura da Espanha – Instituto Nacional de Las Artes
Escénicas y de la Música. É roteirista dos filmes Kenoma (1998) e
Narradores de Javé (2000), ambos dirigidos por Eliana Caffé. Organizou os
núcleos de dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) e da
Associação Galpão de Belo Horizonte (MG).
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O CÉU DA PÁTRIA
dramaturgos: Jandira Martini e Marcos Caruso
debatedor: Aimar Labaki

MONTAGEM

direção: Marcos Caruso


direção musical: Dagoberto Feliz
elenco: Antônio de Andrade, Antonio Petrin,
Eduardo Silva, Eliana Rocha,
Francarlos Reis, Jairo Matos e
Sônia Guedes
coro: Ana Paula Aquino, Augusto Jucal,
Carlos Baldim, Carol Novak,
Cris Piratininga, Eliane Batista,
Eliana Ferraz, Flávia Ercoli,
Mari Mazzo, Maurício Inafre,
Vanessa Bruno e Wladimir Candini
cenário e figurino: Sylvia Moreira
luz: Marcos Loureiro
trilha sonora Aline Meyer
montagem: Delermi Produções Artísticas
produção executiva: Cris Bonna

O Céu da Pátria é o único texto que não foi escrito originalmente


para o projeto Ágora Livre Dramaturgias
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


334

O CÉU DA PÁTRIA
Jandira Martini e Marcos Caruso

A Artur Azevedo e a todos os “revisteiros” que tão bem entenderam


este país, os autores dedicam esta “Revista em Quatro Quadros,
um Prólogo e uma Discreta Apoteose”

Por que toda vez eu afundo na eleição?!


Neste céu de opereta há de haver explicação para eu ser sempre o segundão?

CENÁRIO
O do título. Um azul muito azul. Anil. Nuvens muito brancas. Sendo este
céu o nosso, tem, naturalmente, “mais estrelas” e um sol de “raios fúlgidos”.
Algumas bananeiras esparsas dão-lhe um leve toque verde. Quase no
proscênio, uma passarela de nuvens.

PRÓLOGO
Entram correndo, montados num grande cometa-patinete, dona Ordem e
seo Progresso. Personagens alegóricas, vestem-se com as cores da bandeira e
usam faixas com os respectivos nomes.
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335

ORDEM
Mais rápido, Progresso, mais rápido, antes que ele nos alcance!

PROGRESSO
Não falei, Ordem, pra você não ficar dando bandeira?

ORDEM
Eu fiz o que me mandaram. Não mandaram fiscalizar a eleição? Fazer
boca-de-urna? Puxar a brasa pra sardinha do nosso candidato?

PROGRESSO
Sim. E em nosso próprio nome. Em nome da Ordem e do Progresso,
mas você poderia ser mais discreta. Acho que aquele barbudo nos seguiu e
é bem capaz de vir até aqui tirar satisfações...

ORDEM
Ele não é nem louco. Aqui não entra qualquer um, afinal somos nós os
porteiros e... (vira-se e vê a platéia) Meu Deus!!

PROGRESSO
(assustado) É ele?!

ORDEM
Não, são eles. (progresso não entende) O público!

PROGRESSO
(sem jeito) Oh! Os senhores... mil perdões!!

ORDEM
(falando com a platéia) Boa noite, cavalheiros!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


336

PROGRESSO
(idem) Boa noite, senhoras, damas...

ORDEM
Eu sou a Ordem, ele o Progresso...

PROGRESSO
Bem vindos ao céu da Pátria!!
(música)
Deste céu azul anil,
mui amado, varonil,
somos diletos porteiros
e dos deuses mensageiros.
Na terra estivemos rondando,
pesquisando, xeretando
os meandros, os bueiros,
excessos eleitoreiros,
pra não dar nenhum chabu
e não vir um urubu
a mandar lá no Brasil.
Tudo foi tão bem armado,
planejado e vigiado,
sem nem pingo em “i” faltar!
Deu-se, então, o esperado:
nosso belo candidato,
moço fino e de bom trato,
sucedeu a Itamar.

Ao final da música, ouve-se uma grande explosão. O céu treme. Há muita


fumaça.

QUADRO 1
UM RABO DE FOGUETE

ORDEM
(assustada) O que houve?!
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337

PROGRESSO
Que estrondo foi esse?!

Entra correndo, aflito, o Verde-Louro. É, como o nome indica, um papa-


gaio verde, que lembra, vagamente, Zé Carioca.

VERDE-LOURO
Seo Progresso! Seo Progresso! Seo Progresso!

PROGRESSO
Diga logo, Verde-Louro! O que houve?

VERDE-LOURO
Temos problemas, senhor!

PROGRESSO
Problemas de ordem... ou de progresso?

VERDE-LOURO
Problemas de ordem, senhor.

PROGRESSO
Então é com ela! (aponta dona Ordem)

VERDE-LOURO
Dona Ordem, a situação é grave, grave, grave...

ORDEM
Pare de se repetir como um papagaio, diga logo!

VERDE-LOURO
Um intruso acaba de invadir o céu da Pátria, pátria, pátria...

ORDEM
Fechem tudo! Tranquem todas as portas! Intrusos não podem entrar
no céu do Brasil!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


338

Foco de luz sobre Lula, que entra agarrado a um rabo de foguete.

LULA
Desculpe, dona Ordem, mas já entrei!

PROGRESSO
O miserável pegou um rabo de foguete!

VERDE-LOURO
Bem-feito, bem-feito, bem-feito...
(muito surpresos e assustados, dona Ordem, seo Progresso e Verde-Louro
cantam)
Que desplante, que ousadia!
Que coragem, que ironia!
Sai pra lá, volta pra trás
Qu’isto aqui não é bordel!
Vade-retro, Satanás!
Qu’isto aqui é o nosso céu!

LULA
Tô sabendo. O céu do Brasil. Por isso que eu estou aqui.

(os outros três continuando a cantar)


Que acinte! Que ambição!
Que vieste cá fazer?
Se acabaste de perder
outra vez a eleição?

LULA
(cantando conforme a música)
É isso que me traz cá.
Não tenho medo à careta
E nem vou fugir da raia,
Se perdi pela segunda,
Se levei um pé na bunda,
Há de haver uma razão!
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339

Perguntei a meio mundo:


“Por que, raios, eu afundo
Toda vez nessa eleição?!”
Me disseram: “Só Deus sabe!
Sobe lá, ó barbudão!”
Neste céu de opereta
Há de haver explicação.
Quero ver qual a mutreta
Qual é a maracutaia
Pr’eu ser sempre o segundão???

PROGRESSO
Ainda que mal pergunte, meu senhor... companheiro... camarada?!...
Não importa! Quem o senhor acha que vai responder essa sua pergunta?!

LULA
(seco) Deus.

Todos gargalham. As gargalhadas ecoam no céu da Pátria nesse instante.

ORDEM
Deus não recebe encanadores!

PROGRESSO
Que é isso, Ordem? Controle-se! Mas por que o senhor veio procurar
Deus justamente aqui?

LULA
Este não é o céu do Brasil?

(os três, muito compenetrados, cantam)


Muito amado, varonil!
Salve! Salve!
Ave! Ave!
Viva! Viva!
Anauê!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


340

LULA
Pois então! Chamem Deus.

VERDE-LOURO
Como “chamem Deus”?! Pensa que é fácil, fácil, fácil?

LULA
(para Progresso) O senhor nunca ouviu dizer que Deus é brasileiro?

PROGRESSO
Ouvi. Mas, pra ser sincero, nunca acreditei.

LULA
Nem eu. Mas já que tenho que procurar...

VERDE-LOURO
Pra falar a verdade, meu amigo, nós nunca o vimos por aqui, aqui, aqui...

LULA
Vocês têm certeza de que Ele não está aqui?

ORDEM
Isso não podemos afirmar. Dizem que Deus está em toda parte...

LULA
Pois, então, me dêem licença...(e vai saindo)

PROGRESSO
Onde é que o senhor pensa que vai?

LULA
A toda parte. Esse Deus eu vou achar.

ORDEM
Volta aqui, barbudo! Aqui não é assim, não. O que é que o senhor está
pensando? Que o céu é a casa da sogra? O fiofó da Maria Joana? Aqui temos
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regras, estatutos, Constituição!

LULA
Vocês pensam que vão me engabelar, é? Cadê essa Constituição?
(desafiando) Eu quero ver essa Constituição!

QUADRO 2
DONA CONSTITUIÇÃO

A Constituição – papel da primeira vedete da companhia – entra com


roupas adequadas, mas provocantes. É jovem e muito bonita.

CONSTITUIÇÃO
Deixem o companheiro entrar!

PROGRESSO
Companheiro?! Mas, dona Constituição...!

CONSTITUIÇÃO
Não atravanque, ô Progresso!

LULA
(muito surpreso, encantado mesmo) Dona Constituição! Que surpresa!

CONSTITUIÇÃO
(música)
Sou da terra mais garrida
A vedete preferida!
Sou do bosque o sabiá,
Cotovia do terreiro,
Sou o coco do coqueiro,
Caruru e mungunzá!

LULA
(ainda encantado) Pra quem nasceu nos tempos do Império, a senhora
até que é muito... conservada!!!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


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CONSTITUIÇÃO
(música)
São reformas, são emendas,
Já enfrentei muitas contendas,
Já entrei na faca à beça!
São muitos anos de plástica,
De fazer muita ginástica,
Inda querem revisão:
homessa!!

LULA
A senhora é, efetivamente... do cacete!

CONSTITUIÇÃO
(música)
Só Deus sabe a quantas ando,
Venho há anos capengando,
Sem reclamar nem dar pio,
Mas no verde destas matas,
Neste céu azul anil,
Finco pé contra bravatas,
Defendendo o meu Brasil!

TODOS (menos Lula)


Glória, glória! Salve! Salve! Viva! Viva! Anauê!

LULA
Já que a senhora se apresentou, permita que eu me apresente...

CONSTITUIÇÃO
Que é isso? Eu conheço o companheiro de longa data. É um prazer rece-
bê-lo no céu da Pátria!

PROGRESSO
(furioso) Ela vai deixar o cara entrar! Que absurdo! (e sai)
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ORDEM
(não menos furiosa) Que asneira! Ela ensandeceu! (e sai)

VERDE-LOURO
Ensandeceu! Ensandeceu! (vai saindo e repetindo)

LULA
Bom, dona Constituição, eu vou ser curto e grosso...

CONSTITUIÇÃO
Nem precisa, meu filho. Já sei de tudo. Você veio ao lugar certo. Um giro
pelo céu da Pátria vai clarear suas idéias...

LULA
(entra música; falando no ritmo) Não me fala em giro. Chega de girar!
Girei o país inteiro, fiz carreata, botei gravata, tanto showmício, que des-
perdício! Montei em jegue, troquei de vice, comi buchada, não deu em nada!
(cantando)
Procurei não dar tropeço,
Fiz das tripas coração,
Veja só se não mereço
D’Ele um pouco de atenção!

CONSTITUIÇÃO
Dele? Dele quem? Você está falando de quem?

LULA
De Deus. Eu quero falar com Deus.

Entra o General e Silva carregando confetes, serpentinas, cornetinha e lín-


gua-de-sogra.

LULA
(para Constituição) Quem é esse? Acho que já vi esse cara.
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


344

CONSTITUIÇÃO
É o General e Silva.

E SILVA
Ora, quem vejo! Querida Constituição!

CONSTITUIÇÃO
Não seja falso, E Silva! Você nunca me respeitou...

E SILVA
Isso são águas passadas, querida. Estou indo para a concentração. Você
não vai desfilar conosco? (e sai tocando sua cornetinha)

LULA
Hoje é carnaval aqui?

CONSTITUIÇÃO
Aqui sempre é carnaval!

LULA
Estão comemorando alguma coisa?

CONSTITUIÇÃO
A vitória. E se quer um conselho, siga esse homem. (vendo um bloco que
se aproxima) Não precisa mais. Eles estão vindo aí, em bloco.

QUADRO 3
O PATRIÓDROMO

Vem entrando na passarela de nuvens o “Bloco do Poder”. Dona Ordem é a


porta-bandeira, seo Progresso, o mestre-sala. O bloco é composto por alguns
marechais e generais, muitos empresários e uma infinidade de puxa-sacos.
Cada um deles tem uma mamadeira enorme. Todos chupam sofregamente. A
comissão-de-frente, chefiada por Verde-Louro, desenrola uma passarela de
veludo vermelho, sobre a qual o bloco vai passando e cantando.
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O poder é nosso vício,


O poder é nosso pão,
Desde sempre é nosso ofício
Governar esta nação.
Ela é a nossa mamadeira,
Nossa mãe de encantos mil!
Nossa eterna bandalheira,
Somos donos do Brasil!
(breque)
Por isso “nóis”
(estribilho)
mama, mama, mama, mama,
mama ocê, passa pra mim,
mama, mama, mama, mama,
mama tudo, até o fim!

LULA
Por que eles estão falando tudo errado agora?

CONSTITUIÇÃO
Demagogia. Querem ser populares...

O bloco continua desfilando, repetindo a música do início.

LULA
Eu vou falar com eles. Eles devem ser assim (faz gesto) com o Homem!
(indo até um dos componentes do bloco) Ô, companheiro, por favor...

FOLIÃO
Sai pra lá. Não vê que está atrapalhando, não?

LULA
Só uma pergunta...

FOLIÃO
Quer tirar esse pé imundo do nosso tapete?!!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


346

LULA
Calma, companheiro...

FOLIÃO
Calma, porra nenhuma! (e dá um puxão no tapete, obrigando Lula a
pular fora)

A música prossegue e continuará até o bloco desaparecer na coxia.

CONSTITUIÇÃO
Então? Conseguiu alguma coisa?

LULA
Que nada! Me puxaram o tapete!

CONSTITUIÇÃO
Esses não mudam nunca! Conheço essa gente de outros carnavais! Mas
olha lá! Vem vindo outro!

Surge o “Bloco dos Vira-Casacas”. Todos muito bem-vestidos, com


casacas de cores variadas. As casacas são “double-face”, têm cores diferentes
por dentro, e são rapidamente viradas pelos atores, no estribilho da música.
É um bloco de coreografia complicada e movimentação muito rápida. Muito
ágeis, mas sorrateiros, eles cantam.

(estribilho) Oi vira que vira,


É fácil virar,
Oi vira a casaca
E vais te salvar! (repete)
Já foste PB, PPP, PQP,
São siglas avulsas,
De resto, que importa?
Qualquer probleminha,
Tu mesmo te expulsas,
Nem perdes a linha,
E de outro partido
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Já bates à porta.

UM VIRA-CASACA
Sê claro, bandido,
E um preço estipula!

OUTRO
Virar custa tanto!

TODOS
Se frase tão chula,
Tem lá seu encanto
E te querem pagar...
Vira a casaca!
Afinal, não és santo!
Se viras a tempo,
Tu vais te salvar!
(e recomeçam a cantar)

LULA
(indo até um deles) Ô, companheiro... (Vira-Casaca vira-lhe a cara; ele
tenta outro) Companheiro... (comportamento idêntico ao do anterior; Lula
desiste e volta para perto da Constituição)

CONSTITUIÇÃO
Conseguiu alguma coisa?

LULA
Me viraram a cara...

Nem bem o “Bloco dos Vira-Casacas” acaba de desaparecer na coxia e


já pula na passarela um passista-malabarista, que num enorme megafone
grita.

PASSISTA
Olha o voto útil na avenida, gente!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


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Irrompe, magnífica, soberba, gloriosa, a Escola de Samba “Unidos do Voto


Útil”, empolgando com seu samba, que nada mais é do que um plágio descara-
do de “Lata d’Água”, de Luís Antonio e Jota Jr.

Voto útil na cabeça!


Lá vai Maria,
Lá vai co'as outras...
Sobe o moço na pesquisa,
Um pro outro já avisa:
Votamos contra!
Deslancha o candidato, desembesta,
Não tenho opinião, não tenho guia,
O pouco de caráter que me resta
Acaba onde o Ibope principia!
(e repete “da capo”...)

Durante a passagem dessa Escola, Lula tenta se dirigir a alguns de seus


passistas, que, ocupados em suas criativas evoluções, nem ao menos o vêem e
acabam por derrubá-lo. Ele, ainda meio confuso, volta para perto de
Constituição.

CONSTITUIÇÃO
E aí?

LULA
Me derrubaram...

CONSTITUIÇÃO
Essa gente é uma praga!

LULA
A senhora foi muito gentil, mas eu vou indo. Tenho coisa mais impor-
tante pra resolver...

CONSTITUIÇÃO
Espera. Falta só um. O último é sempre o mais rico e mais luxuoso!
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Vem surgindo o “Bloco da Vênus”. É, de fato, luxuosíssimo. Traz uma


enorme alegoria, do alto da qual uma inacreditável loura seminua joga bei-
jos. É um bloco de muita luz, câmeras e muita ação.

BLOCO DA VÊNUS
Raiou dengosa, enluarada
A nossa Vênus iluminada!
Ó Vênus loura, d'amplas madeixas,
De que te queixas?
De que te queixas?

Um dos integrantes do bloco, com uma câmera na mão, se dirige à


Constituição, focalizando-a.

CÂMERA
Então, Dona Constituição, como se sente vendo o nosso desfile?!

LULA
(colocando-se em frente do Câmera) Deixa eu aproveitar, companheiro...

Do alto de sua alegoria a Vênus grita.

VÊNUS
Corta! Corta!

O Câmera volta, rapidamente, a se integrar no bloco, que continua cantando.

BLOCO DA VÊNUS
Vênus formosa, flor d’açucena!
Ordena, pede, sussurra, acena,
Diz logo, ó deusa da perna torta,
O que te serve?
O que te importa?
Porque o resto a gente corta!
Ó Vênus “blonde”, Vênus bendita,
Sossega, ó deusa, a periquita!
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


350

Quem te perturba?
Diz logo, apita!
Porque o resto a gente edita...
(estribilho) Edita e corta, torna a cortar!
És tu a musa desta eleição!
Reinas impune na imensidão,
Oh, minha deusa televisão!
(e, repetindo seu belo estribilho, vão saindo...)

CONSTITUIÇÃO
Bom, meu filho, o que eu tinha pra te mostrar era isso...

LULA
E o povo? Onde é que fica o povo?

CONSTITUIÇÃO
Aqui?? Aqui não tem povo nenhum.

LULA
Como não tem povo?

CONSTITUIÇÃO
Este céu é o céu da elite. E agora, se você dá licença, tenho que fazer
meus curativos. A última plástica me deixou com várias emendas soltas.
(vai saindo e se despedindo) Até a vista, Luís Inácio!

Lula, sozinho e arrasado, canta.

LULA
“Deus, oh Deus, onde estás que não respondes?”
Te procuro e tu te escondes,
Onde é que eu vou te achar?
Deus, oh Deus,
Isto é muita sacanagem!
Ficar só e abandonado!
Até tu vais me faltar?
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Mas será que a um filho teu,


Que lutou tão destemido
pelo povo desvalido,
Não estendes tua mão?
“Deus, oh Deus, onde estás que não respondes?”
Te procuro e tu te escondes,
Para a Terra eu vou voltar!

LULA
Táxi! Táxi!

QUADRO 4
TÁXI ESPECIAL

Entra um “Cúmulus-Táxis-Nimbos”, dirigido por um velho de longas bar-


bas brancas, e breca ruidosamente. O Velho desce do táxi com um bloquinho
de papel e uma caneta na mão.

VELHO
O companheiro poderia me dar um autógrafo?

LULA
Claro, companheiro. Eu estou indo para a Terra. O senhor conhece o
caminho mais curto?

VELHO
Eu sou o caminho!

LULA
(desconfiado) Eh! Que que é, hem? Está pensando que é quem?

VELHO
Deus.

Nesse momento, raios de luz incríveis iluminam o céu da Pátria e ouve-se uma
divina música cantada por um coro de Anjos, Arcanjos, Querubins e Serafins.
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


352

LULA
Não acredito! Não pode ser! Meu Deus! Aliás, Seo Deus! O senhor veio
aqui pra me dar a resposta??

DEUS
(canta) A resposta já tiveste,
Viste tudo lá e cá.
Sempre haverá quem te conteste,
Mas não deixes de lutar!
Se uma idéia tu defendes
Se na alma a tens bem clara
Não deixes que a impaciência,
Te tire toda a prudência,
A coerência é tão rara!
Vai nessa, Luís Inácio,
Se vencer nem sempre é fácil,
Mais vale na vida o lutar!

(discreta apoteose)

Entram Querubins apressados e vão se acercando de Deus.

QUERUBINS APRESSADOS
Oh, Senhor! Oh, Senhor! Estávamos preocupados! Vós sumistes! Deveis
voltar ao Vosso Reino de Glória!!

Apressadamente, colocam Deus sobre uma nuvem que vai subindo.

LULA
(com o bloquinho e a caneta na mão) O Senhor não queria um autógrafo?

DEUS
Que cabeça a minha! Se eu chego lá sem esse autógrafo, ele me mata!

LULA
O autógrafo não é pro Senhor?
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DEUS
Não. É para o meu filho.

Lula assina e entrega o bloquinho para Deus. A nuvem vai subindo,


enquanto os Querubins cantam e Deus acena para Lula, até desaparecer no
mais alto dos céus possível dentro de um teatro.
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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


354

JANDIRA MARTINI
atriz, autora e diretora. É autora de A Vida É Uma Ópera; Sonho de uma
Noite de Outono (que dirigiu em montagem teatral); O Eclipse (sobre
Eleonora Duse, a ser encenado em 2007). Junto com Marcos Caruso,
escreveu os textos Sua Excelência o Candidato; Jogo de Cintura; Porca
Miséria; Os Reis do Improviso; Operação Abafa; e o roteiro dos filmes O
Casamento de Romeu e Julieta e Trair e Coçar é Só Começar. É co-autora, em
parceria com Eliana Rocha, do texto Em defesa do Companheiro Gigi Damiani,
que também dirigiu em teatro. Traduziu, adaptou e dirigiu A Revolução Está
Chegando e Eu Não Sei O Que Vestir, de Lívia Cerrini; e Gato Por Lebre, de
Georges Feydeau. Como atriz, destacam-se seus trabalhos mais recentes
nos espetáculos teatrais Porca Miséria, direção de Gianni Ratto; Os Reis do
Improviso, direção de Noemi Marinho; O Evangelho Segundo Jesus Cristo,
de José Saramago, adaptação de Maria Adelaide Amaral, direção de José
Possi Neto; Operação Abafa, direção de Elias Andreato. Pela Rede Globo,
participou das telenovelas O Clone e América, de Glória Perez, e das minis-
séries Os Maias e A Casa das Sete Mulheres, de Maria Adelaide Amaral.
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355

MARCOS CARUSO
ator, autor e diretor. Estão entre seus mais recentes trabalhos como ator em
teatro, Operação Abafa, de sua autoria e de Jandira Martini; Intimidade
Indecente, de Leilah Assunção (2001 a 2005); Honra, de Joanna Murray-
Smith (1999). Participou de diversos filmes nacionais, como Memórias
Póstumas (1999), de André Klotzel; Depois Daquele Baile (2004), de
Roberto Bontempo; Irma Vap, o Retorno (2004), de Carla Camurati. Na
televisão, atuou na minissérie Presença de Anita (2002), de Manoel Carlos,
e nas novelas Coração de Estudante (2002), de Emanuel Jacobina; Mulheres
Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos; Como Uma Onda (2005), de Walter
Negrão; Páginas da Vida (2006), de Manoel Carlos – todas pela Rede
Globo. Dirigiu os espetáculos teatrais Brasil S/A (1996) e S.O.S. Brasil
(1999), ambos de Antonio Ermírio de Moraes; Estórias Roubadas, de
Donald Margulies, com Beatriz Segall e Rita Elmôr (2000). Para a televisão,
escreveu a novela Braço de Ferro, TV Bandeirantes (1993); A História de
Ana Raio e Zé Trovão, Rede Manchete (1992); Brava Gente, SBT (1996), e
dirigiu Fala Dercy, SBT (2002). Em parceria com Jandira Martini, escreveu
Sua Excelência o Candidato; Jogo de Cintura; Porca Miséria, vencedor dos
prêmios Mambembe, APCA e Shell de melhor autor (1994); Os Reis do
Improviso; Operação Abafa. É autor de Trair e Coçar é Só Começar, espetácu-
lo brasileiro de mais longa temporada.
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357

ÁGORA TEATRO

Associação sem fins lucrativos, criada em 1998 por Celso Frateschi e Ro-
berto Lage, que atualmente a coordenam em parceria com Marlene Salga-
do e Sylvia Moreira. O encontro destes quatro profissionais ocorreu na
montagem de Sonho de um Homem Ridículo, espetáculo teatral baseado no
conto homônimo de Fiódor Dostoievski, sucesso de público e crítica, cu-
ja adaptação e interpretação é de Celso Frateschi (prêmio Qualidade Brasil
2005, como melhor ator), direção de Roberto Lage, cenários e figurinos de
Sylvia Moreira e direção de produção de Marlene Salgado. A montagem
mais recente, envolvendo estes profissionais, é Ricardo III, adaptação de
Celso Frateschi ao texto de William Shakespeare, que marca a abertura do
espaço Ágora Teatro totalmente reformado e preparado para abrigar uma
intensa e diversificada programação.
Ao longo de sua existência o Ágora Teatro, se destacou no cenário teatral
paulistano pelo diálogo reflexivo sobre o fazer teatral e a sua relação com a
sociedade. Nesta perspectiva, desde o início, elaborou e realizou seminá-
rios, mostras de dramaturgia e montagens de espetáculos. Manteve cons-
tantemente cursos de aperfeiçoamento para o trabalho do ator e um núcleo
de investigação. Dentre as atividades realizadas destacam-se:
• Odisséia do Teatro Brasileiro (2000), seminário, posteriormente pu-
blicado pela editora Senac, que abordou as formas de evolução do
teatro brasileiro, visando colaborar com a construção de um pensa-
mento teatral contemporâneo. Esta atividade reuniu profissionais
como: Aderbal Freire Filho, Aimar Labaki, Antunes Filho, Antônio
Araújo, Augusto Boal, Enrique Diaz, Eduardo Tolentino, Fauzi Arap,
Fernando Peixoto, Gianfrancesco Guarnieri, Gianni Ratto, João das
Neves, José Celso Martinez Corrêa, Márcio de Sousa, Paulo Autran,
Sábato Magaldi e Sérgio de Carvalho;
• Ágora Livre Dramaturgias (2001), ciclo de debates, onde questões
presentes na história do teatro ocidental, formuladas a 13 autores
contemporâneos, foram respondidas na forma de textos e monta-
gens: Eu Não Sou Cachorro!, de Fernando Bonassi, direção Elias An-
dreato; Pai, de Izaias Almada, direção Roberto Lage; Só mais um
Instante, de Marta Góes, direção Aline Meyer e Juca Rodrigues,
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358 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Sobre a Arte de Cortar Bifes, de Hugo Possolo, direção Jairo Matos, A


Cabeça, de Alcides Nogueira, direção Márcia Abujamra, Ilmo.
“Senhor”, de Naum Alves de Souza, direção Celso Frateschi, Velhas
Variações Sobre o Mesmo Tema, texto e direção Mário Bortolotto,
Cor de Chá, de Noemi Marinho, direção Márcia Abujamra, O Mun-
do é Moinho, de Fauzi Arap, direção Tunica Teixeira, Novas Diretri-
zes em Tempo de Paz, de Bosco Brasil, direção Ariela Goldman, O
Céu da Pátria, de Jandira Martini e Marcos Caruso, direção Marcos
Caruso. Este projeto recebeu o Prêmio Shell 2001 na categoria espe-
cial;
• Ágora Metrópolis XXI (2002): surgiu da demanda de estender-se a
prospecção na área da dramaturgia, focando desta vez questões per-
tinentes à vida na metrópole;
• Ágora Livre Atores (2001): diálogos públicos com jovens atores e
artistas consagrados, como: Raul Cortez, Lineu Dias, Marco Ricca,
Leona Cavalli, Renato Borghi, Alexandre Borges, Eva Wilma, José
Moreira (ator português), Nicete Bruno, Miriam Rinaldi e Brian
Stirner (professor, ator e diretor inglês);
• Ágora Livre Grupos (2001): visando o desenvolvimento de um pen-
samento teatral, grupos com reconhecido trabalho de pesquisa via-
bilizaram discussões, a partir das suas experiências;
• Ágora Livre Diretores (2003), diálogos com diretores conhecidos por
linguagens e metodologia distintas;
• Albert Camus (2003), seminário abordando a obra e a trajetória de
Camus;
• Diana, de Celso Frateschi (2000), Tio Vânia, de A.Tchekov (2000) e
Os Justos, de A. Camus (2003), são alguns dos espetáculos teatrais
produzidos.
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