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Organizador:
CAMPO GRANDE/MS
AGOSTO/2016
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO - - - - - - - 03
I. ANTROPOLOGIA INDÍGENA - - - - - 05
ANTROPOLOGIA E POVOS INDÍGENAS - - - - 06
ANTROPOLOGIA E PARENTESCO - - - - - 35
OS AUITORES - - - - - - - 460
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APRESENTAÇÃO
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Outro aspecto de especial relevância é a emergência de
uma nova legislação que insere nos currículos da Educação
Básica a proposta de temas referentes à história e cultura
afro-brasileira e, ultimamente (Lei 11.645/2008), à história e
cultura indígena. Trata-se de elementos constitutivos de
nosso substrato cultural, mas, que por motivos históricos,
foi ideologicamente relegado ao quase esquecimento e,
quando trazido à tona, foi feito com um viés etnocêntrico e
repleto de preconceitos.
Educar hoje, para a temática indígena, é tratar dessa
histórica desproporção de participação dos espaços
coletivos para com os grupos historicamente
desfavorecidos, propiciando o debate construtivo através do
acesso às informações relegadas às novas gerações. Quanto
à realidade regional específica do local onde o curso está
sendo oferecido, podemos dizer que Mato Grosso do Sul
caracteriza-se por ser uma região de fronteiras, de acolhida
e, ao mesmo tempo de trânsito. É, na atualidade, o segundo
Estado brasileiro em população indígena. Todos esses
povos com suas particularidades históricas e as
problemáticas atuais de conflitos agrários, subsistência,
preconceitos de todos os tipos, violências, etc.
A partir desse conjunto de elementos que conformam
nosso contexto regional serão conjugados, de forma
dialógica, os conteúdos teórico-práticos propostos pelo
curso.
O livro consta de 7 partes: começa por uma visão da
Antropologia e da História Indígena; os povos indígenas no
Brasil contemporâneo; na sequência trata da temática dos
preconceitos e das relações interétnicas e os povos
indígenas, e depois, entra na temática específica da educação
escolar indígena e acerca do direito indígena e indigenista.
São todos textos escritos com um olhar acadêmico, mas,
sobretudo, com um olhar a partir da prática e experiência
dos/as autores/as com esta temática e a vivência com as
comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul.
Diante de uma sociedade cada vez mais caracterizada
pelas diferenças e seus imensos desafios lançados
cotidianamente aos educadores, desejamos a todos/as que
estes conteúdos sejam úteis para embasar reflexões e
práticas criativas sobre os aspectos da diversidade e a
necessidade da construção de uma sociedade cada vez mais
plural e participativa, a partir dos conhecimentos específicos
acerca das Histórias e das Culturas/Antropologia dos Povos
Indígenas.
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I. ANTROPOLOGIA INDÍGENA
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ANTROPOLOGIA E POVOS
INDÍGENAS
AGUILERA URQUIZA, A. H.1
1 Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul com Doutorado em
Antropologia pela Universidade de Salamanca. Professor da Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS
e das Pós-graduações em Antropologia (UFGD) e de Educação (UCDB). E-mail: hilarioaguilera@gmail.com
2 Atualmente é supervisor do núcleo da UFMS da Ação Saberes Indígenas na Escola MEC/SECADI com
Por isso, segundo Gomes (2003, p. 72), falar sobre a diversidade cultural não diz
respeito apenas ao reconhecimento do outro. Significa pensar a relação entre o eu e o
outro. Aí está o centro da discussão sobre a diversidade. Ao considerarmos o outro, aquele
que é diferente, não deixamos de focar a atenção sobre o nosso grupo, a nossa história, o
nosso povo. Ou seja, quando construímos a ideia de eu, de nós, de nosso grupo ou de
nossa sociedade, sempre fazemos isso a partir de uma equação relacional, comparando os
nossos modos de ser, pensar e compreender o mundo com o do outro grupo. Seja esse
processo para positivar ou negativar os hábitos do(s) outro(s). Portanto, falamos o tempo
inteiro em semelhanças e diferenças.
Isso nos leva a pensar que, ao considerarmos alguém ou alguma coisa diferente,
estamos sempre partindo de uma comparação. E não é qualquer comparação. Geralmente,
comparamos esse outro com algum tipo de padrão ou de norma vigente no nosso grupo
cultural, ou que esteja próximo da nossa visão de mundo. Esse padrão pode ser de
comportamento, de inteligência, de esperteza, de beleza, de cultura, de linguagem, de classe
social, de raça, de gênero, de idade, entre outros (cf. GOMES, 2003, p. 72).
Nesse sentido, a discussão a respeito da diversidade cultural não pode ficar restrita
à análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Ela precisa
incluir e abranger uma discussão política. Por quê? Porque ela diz respeito às relações de
poder presentes no nosso cotidiano. Ela diz respeito aos padrões e valores que regulam
essas relações (cf. GOMES, 2003, p. 72).
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1.2 Antropologia e a alteridade
Etnocentrismo é uma visão de mundo onde nosso próprio grupo é tomado com
centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser
visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimento de
estranheza, medo, hostilidade etc. Pode-se afirmar, também, que no etnocentrismo existe a
busca da compreensão do sentido positivo da diferença com o grupo do "eu" e o grupo do
"outro", onde o "eu" é visto como uma visão única e o "outro" é o engraçado, anormal,
ridículo.
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etnocentrismo, prática comum no Brasil e, ao mesmo tempo, velada e relegada como
inexistente.
Por outro lado, é necessário fazer certa distinção: a diversidade é uma dinâmica
cultural e não deveria ser usada como sinônimo de diferença, que é um conceito que
existe na natureza das coisas vivas, existe em qualquer forma viva, mas não contempla
valores e definições nas relações. Dessa forma, a diversidade não está relacionada somente
a sinais aparentes, características físicas; de fato a diversidade cultural tem uma
conotação cultural e política, isto é, tem um caráter relacional. Pode ter características
observáveis, mas é, sobretudo, fruto de uma construção social e de poder que nos
diferencia por razões históricas. Muitas vezes os grupos humanos tornam o outro
diferente para fazê-lo inimigo, para dominá-lo.
Por isso, falar sobre a diversidade cultural não diz respeito apenas ao
reconhecimento do outro. Significa pensar a relação entre o eu e o outro. Não é só
olhar para o reconhecimento do outro, mas pensar como eu, ao longo da minha
história, me reconheço e construo minhas posturas em relação aos outros.
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(apud LARAIA, 2011) e de outros “evolucionistas”, buscou explicar a diversidade com
base nos postulados darwinistas:
De lá para cá, muita coisa mudou: a Antropologia deixou para trás a perspectiva
evolucionista, ou seja, um ponto de vista tradicional e fechado ao diferente, e passou por
uma fase marcada pela pesquisa de campo, reveladora da diversidade, onde elaborou outros
conceitos e paradigmas, abriu novas áreas de investigação. Nunca abandonou, porém, a
preocupação inicial, fundante, a respeito da diversidade cultural. Só que, deixando de
associar o diferente com o atrasado, desvinculou-se da ideia de que seu objeto era constituído
pelos povos considerados “primitivos”.
Essa mudança chega a seu termo induzida pela aguda consciência do processo de
extinção de nações indígenas e também pela recusa de antigos povos colonizados, agora
independentes, a serem considerados objetos de estudos antropológicos. Esses foram os
fatores que levaram Claude Lévi-Strauss a se perguntar, na década de sessenta, se “a
Antropologia não corre o risco de tornar-se uma ciência sem objeto” (LÉVI-STRAUSS,
1962, p. 21).
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II. AS ORIGENS DA ANTROPOLOGIA4
A antropologia é a ciência que estuda a diversidade sociocultural humana. É um
termo de origem grega, formado por “anthropos” (ser humano) e “logos” (conhecimento).
Trata-se de uma ciência moderna, muito recente, mas cujas raízes remontam à antiguidade
greco-romana.
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Este item teve como base o texto Laplantine, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 2003.
5 É óbvio que este e outros conceitos antigos da antropologia (como o do quadro acima), não são mais
aceitos na atualidade, pois eles demonstram uma atitude, no mínimo etnocêntrica (eurocêntrica) e colonialista,
ao propor características negativas para a sociedade do “outro” (frias, pouco desenvolvidas, primitivas, etc.),
em comparação com a “nossa sociedade”, dita civilizada, quente, complexa, etc.
6 Já tratamos anteriormente, que os termos selvagem ou não civilizado se constituem como uma forma de marcar
pejorativamente – pela negação do status de sociedades completas – as sociedades humanas de tradição não
ocidental, que se conformavam, basicamente nas sociedades e grupos ameríndios, africanos e aborígenes.
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No momento de seu surgimento a Antropologia tinha como finalidade responder
à indagação referente à aparente contradição, entre a unidade genética (biológica) dos
seres humanos e sua imensa diversidade (cultural). A solução proposta pelos
primeiros teóricos, os evolucionistas, é que a diversidade entre os povos advém das
diferentes etapas evolutivas das culturas. Daí a imensa tentativa dos primeiros antropólogos
em compreender a evolução das sociedades humanas com o objetivo de compreender e
reconstituir a história do desenvolvimento da humanidade, e particularmente, da própria
civilização europeia, até aquele momento pensada como o último estágio da evolução
humana.
Um dos primeiros
antropólogos, Spencer (1820- SOCIEDADES SIMPLES X SOCIEDADES
1903), alguns anos antes de COMPLEXAS
Charles Darwin (1809-1882), Simples: chamadas de primitivas, arcaicas ou “frias”;
já defendia a ideia de que a são pouco desenvolvidas tecnologicamente (agricultura
rudimentar), afastadas da sociedade ocidental, de
cultura evolui. Certamente dimensões populacionais restritas, divisão social do
que após a publicação da obra trabalho simplificada entre seus membros, menor
tendência às mudanças (estáticas), etc.
A Origens das Espécies
(DARWIN, 1859), a teoria Complexas: chamadas de civilizadas, modernas ou
“quentes”; seriam as sociedades ocidentais
evolucionista da biologia contemporâneas: desenvolvidas, industrializadas,
exerce enorme influência em interligadas pela comunicação, em transformação.
todas as ciências naturais e
também sociais, como a
Antropologia.
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Fonte: https://www.google.com.br/search?q=charles+darwin+a+origem+das+especies
Fonte: http://pt.slideshare.net/YagoLisboa/lewis-henry-morgan-31728675
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principalmente) eram as classificadas como sendo as selvagens. Não é difícil de constatar
que as sociedades civilizadas eram as europeias, onde se originou essa teoria.
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esse campo de investigação modificasse profundamente os seus paradigmas de observação
e construísse novas perspectivas em relação aos povos que pretendia estudar. Constituiu-se
assim uma abordagem epistemológica própria para a investigação antropológica, que, com
o tempo, abandona a perspectiva de haver um espaço geográfico ideal para os estudos
antropológicos ou mesmo uma cultura ou história particular que seja própria para a sua
investigação.
Nesse sentido, já nos anos trinta do século XX, a antropologia chega à grande
crise quanto ao seu objeto de pesquisa – inicialmente os nativos das regiões distantes e sem
contato com a chamada sociedade ocidental. Rapidamente os antropólogos se dão conta de
que este tipo de personagem estava “fadado à desaparição”. O próprio Malinowski, na
primeira frase que abre a introdução da sua principal obra (Argonautas do Pacífico
Ocidental – 1922) fala de forma pessimista que no momento em que a Antropologia define
e aperfeiçoa seus métodos de pesquisa, o objeto (os nativos) está com os dias contados7.
Esta crise faz a antropologia repensar seu objeto enquanto ciência e chega à conclusão de
que aquilo que define a antropologia como ciência não é o que ela pesquisa, mas
como pesquisa (metodologia).
7 Logicamente que Malinowski estava equivocado em sua análise, afinal continua a existir nos dias
contemporâneos uma gama imensa de povos e culturas (principalmente nas terras colonizadas pelas
sociedades europeias) distintas que se transformaram com o contato, porém sem deixar de se reconhecerem
como diferentes e únicas em relação a outros grupos humanos.
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Com estes dois pesquisadores (Boas e Malinowski), surge, no início do século XX,
a prática da etnografia, ou seja, a produção de trabalhos científicos que têm por
finalidade registrar, descrever e formular análises compreensivas sobre alguma
sociedade ou grupo. Isso só foi possível quando se percebeu que o pesquisador deve, ele
mesmo, efetuar no campo a sua própria pesquisa, tornando assim o trabalho de observação
direta como parte integrante da pesquisa antropológica.
O pesquisador compreende, nesse novo momento, que ele deve deixar o gabinete
de trabalho na universidade para ir compartilhar com aqueles que não mais devem ser
interpretados como simples informantes, e sim como mestres que abrirão as portas de sua
cultura, que ensinarão todas as coisas sobre as suas próprias vidas. Desse modo, o
pesquisador deixa a sua posição de autoridade incontestável que advinha das torres da
universidade e se coloca na posição de um aprendiz, junto ao povo ao qual quer estudar.
Inicialmente essa busca de aprendizado por parte do pesquisador tinha como finalidade
não apenas viver entre o grupo pesquisado, mas viver como eles, pensar e falar como eles
chegando até mesmo ao extremo, como bem tentou Malinowski, de pretender sentir as
próprias emoções do grupo dentro de si.
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É inegável a grande contribuição que todos esses pesquisadores tiveram na
elaboração da etnografia e da etnologia contemporânea, no entanto deteremos nossa
atenção para dois entre eles, considerados como os mais importantes: Franz Boas, nascido
na Alemanha e migrado para os Estados Unidos onde desenvolveu sua carreira como
antropólogo pioneiro no país; Bronislaw Malinowski, polonês naturalizado inglês e
responsável por grande parte das mudanças metodológicas da Antropologia moderna.
a) Franz Boas
Esse argumento é importante para todos e todas, em especial para quem está no
contexto da educação: significa que por mais exótico que possa parecer determinado
costume ou prática cultural que tenhamos tido notícia (p.ex. o costume de comer carne de
cachorro em alguns países asiáticos, ou não comer carne de vaca em algumas regiões da
Índia, ou comer insetos grelhados em restaurantes cinco estrelas da Europa na atualidade),
sempre terá um significado para aquele povo/sociedade que o pratica. Este princípio nos
ajuda a relativizar e evitar preconceitos etnocêntricos.
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Etnocentrismo: No seu primeiro sentido, etnocentrismo é uma
cegueira para diferenças culturais, a tendência de pensar e agir como se
elas não existissem. No segundo sentido, refere-se aos julgamentos
negativos que membros de uma cultura tendem a fazer sobre todas as
demais (JOHNSON, 1997, p. 101).
Outro ponto interessante do caminho apontado por Franz Boas durante sua vida
é a de que não existem objetos mais ou menos nobres para a ciência. Durante o trabalho de
campo, o pesquisador deve dar atenção a tudo, em especial à maneira pela qual as
sociedades tradicionais interpretam e classificam as suas atividades mentais e sociais. Boas
anuncia assim a constituição do que hoje é conhecido na antropologia como
“etnociências”, ou seja, a importância da valorização dos conhecimentos acumulados sobre
o mundo pelos povos tradicionais.
b) B. Malinowski
21
atuação, que pensavam as sociedades humanas através do difusionismo cultural ou da
geografia especulativa, que partia da perspectiva da existência de centros de difusão da
cultura, difundidas, apenas e simplesmente, por empréstimos.
22
compreendia a sociedade estudada em um contexto mais amplo de relações e de contatos
que extrapolam a cultura em si.
Por sua vez, o conceito de cultura como linguagem, em sentido amplo, é a base
do estruturalismo antropológico. A abordagem estruturalista focaliza os códigos culturais,
os princípios conceituais, os sistemas simbólicos; procura entender as regras. Quer buscar
nos processos mentais a fonte de seus códigos, a lógica da mente humana. Em outras
palavras, o estruturalismo pretende explicar como a mente opera, ou seja, o modo
como a mente se organiza para possibilitar a vida em sociedade. Isso só é possível a partir
da análise dos sistemas por ela criados: de parentesco, alimentar, pintura corporal, entre
outros.
Críticas ao estruturalismo:
Não é possível ter acesso à estrutura inconsciente da cultura;
Caráter sincrônico das análises, não valorizando a história;
Perigosa proximidade com a tecnocracia (simulação do real).
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Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo
essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental
em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado (GEERTZ, 1978).
Críticas ao Interpretativismo:
Não faz a discussão dos critérios para o julgamento das
interpretações, nem especifica com clareza e precisão os
procedimentos hermenêuticos de desvendamento das metáforas
e dos símbolos dos textos culturais.
A visão de cultura de GEERTZ seria idealista, e nela, parte do
mundo desaparece, pois reduz a cultura ao sujeito conhecedor.
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III. ANTROPOLOGIA NO BRASIL E OS POVOS INDÍGENAS8
A Antropologia no Brasil, desde suas origens manteve uma forte relação com os
povos indígenas, desde o período em que chamamos de pré-antropologia, ou dos cronistas,
quando o centro dos relatos era exatamente acerca destes povos ameríndios. Podemos
afirmar que apenas nas últimas décadas a Antropologia Indígena deixou de ser hegemônica
no Brasil, diversificando-se, na atualidade em várias áreas temáticas.
Trata-se das atividades registradas desde os primeiros contatos dos europeus com
as populações ameríndias. Foram autores que deixaram relatos em que registram suas
experiências com a população de determinados locais ou regiões do Brasil e suas
observações a respeito dela. A conhecida carta de Pero Vaz de Caminha teria sido a
primeira dessas “crônicas”.
8
Este item tem por base o texto: A Antropologia no Brasil: um roteiro. Júlio C. Melatti. 1983.
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3.2 A Antropologia entre os séculos XIX e XX
Ainda no final do século XIX, devido à orientação teórica da época, vários autores
vivem um conflito entre a simpatia que devotavam às minorias que estudavam e a situação
de inferioridade em que as colocavam. Antônio Gonçalves Dias, famoso poeta indianista,
participou da “Comissão das Borboletas” (1859) como etnógrafo. José Vieira Couto de
Magalhães – presidente das províncias de Goiás e de Mato Grosso defende a ideia de
assimilar os índios, aprendendo-lhes a língua para se puder ensinar-lhes o português, de
modo a evitar seu extermínio futuro. Visconde de Taunay na região Centro-Oeste.
O que mais é marcante, no entanto, na transição do século XIX para o século XX,
para a Antropologia no Brasil, é a predominância Alemã na Etnologia Indígena. Nesse primeiro
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período, os etnólogos estrangeiros que procuravam o Brasil eram principalmente alemães e
estavam mais voltados para as culturas indígenas. Havia os que organizaram grandes
expedições de pesquisa (O mais famoso deles foi Karl von den Steinen, que fez sua
primeira expedição ao Brasil em 1884 descobrindo os grupos indígenas do atual Parque
Nacional do Xingu). Com formação evolucionista, Steinen procurava desvendar no estudo
dos xinguanos a origem de uma série de técnicas e costumes dos povos indígenas do Brasil
Central.
Nas décadas de 1920 e 1930, as pesquisas mudam pouco a pouco o foco teórico:
as preocupações evolucionistas e difusionistas vão sendo abandonadas aos poucos, para darem
vez a outras atrizes teóricas. Talvez o mais notável pesquisador das sociedades indígenas,
neste período, tenha sido Curt Nimuendajú. Além de suas obras mais extensas sobre o
povo Guarani (de quem recebeu o nome), os Xerente, os Canela, os Apinayé e os Tukúna,
ele deixou inúmeros trabalhos menores sobre língua, mitologia, história, de diversos grupos
indígenas, e ainda um mapa etno-histórico dos índios do Brasil acompanhado de uma
enorme bibliografia.
Evolucionismo:
Aplicação da teoria geral da evolução ao
fenômeno cultural. “Os fenômenos culturais são
sistematicamente organizados sofrendo
mudanças, uma forma ou estágio sucedendo o
outro”. Principais representantes: Spencer
(1820-1903), Tylor (1832-1917), Frazer (1854-
1941), Morgan (1818-1881).
Difusionismo:
Corrente da antropologia que procurava explicar
o desenvolvimento cultural através do processo
de difusão de elementos culturais de uma
cultura para outra, enfatizando a relativa
raridade de novas invenções e a importância dos
constantes empréstimos culturais na história da
humanidade. (Franz Boas e L. Kroeber).
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Nesse período ainda pode ser incluído o valioso trabalho etnográfico dos
missionários salesianos, que teve início com Antonio Colbacchini e depois César Albiseti e
Ângelo Venturelli junto ao povo Bororo, com destaque para a Enciclopédia Bororo, em vários
volumes, caracterizando uma das
maiores etnografias da América do
Sul. O trabalho desses salesianos tem Aculturação: Estudo das mudanças culturais
com ênfase na adaptação entre culturas,
alguns pontos em comum com o de prevalecendo a cultura dominante.
Nimuendajú: descrição cuidadosa;
atenção para a organização social.
Destaca-se, também, entre eles, a ausência de orientação teórica definida, embora o evitar
os antigos esquemas evolucionistas e difusionistas já constitua uma orientação. Mas, diferem em
outros aspectos: Nimuendajú estudou vários grupos indígenas, enquanto os salesianos se
concentraram no estudo dos Bororo.
Após publicar seu clássico, Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire, ex-aluno de
Franz Boas, vem para o Rio de Janeiro e assume em 1935 a cátedra, como primeiro
professor, de Antropologia Social e Cultural. É nessa época que os primeiros estudantes
brasileiros, interessados em Ciências Sociais, fazem seus cursos de pós-graduação.
Podemos dizer que é deste momento as principais tentativas de Interpretações Gerais do Brasil,
sendo a mais famosa obra de interpretação do Brasil, sem dúvida, a de Gilberto Freyre
(Casa Grande & Senzala; Sobrados & Mocambos). Outro texto importante é o livro de
Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil).
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talvez tenha sido o primeiro a tratar dos estudos de contato interétnico, e que iriam gerar mais
tarde os estudos de etnicidade.
Funcionalismo:
Predomina no Brasil a partir da década de 1930. Ao estudar a cultura, a preocupação não
era mais com as origens ou história, mas com a lógica do sistema focalizado, ou seja, a
visão sincrônica (um momento dado – fotografia) e a visão sistêmica, que é a relação da
sociedade com um organismo, um todo organizado. Qualquer traço cultural tem funções
específicas e mantém relações com cada um dos outros aspectos da cultura para a
manutenção do seu modo de vida total.
Representantes: B. Malinowski (1884-1942), Radcliffe-Brown (1881-1955).
Nos anos de 1960, a Antropologia começa a passar, no Brasil, sob vários aspectos,
por significativas modificações. Iniciam-se vários cursos de aperfeiçoamento e de pós-
graduação, com professores de renome (Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, etc.),
os quais formaram vários dos antropólogos brasileiros atuais. As orientações teóricas se
modificam. Os estudos de contato interétnico, antes voltados para as modificações culturais,
atentam agora mais para o conflito entre interesses, regras e valores das sociedades em
confronto. Preocupações de caráter estruturalista e etnocientífico substituem as
interpretações funcionalistas.
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Estruturalismo: Desenvolveu-se paralelamente ao funcionalismo e
teve seu apogeu nas décadas de 40 e 50. Tem pontos em comum
com o “funcionalismo”: visão sincrônica da cultura; visão sistêmica
e globalizante do fenômeno cultural; adoção do termo estrutura;
influências da escola francesa. Claude Lévi-Strauss (1908-2009) é
considerado o mentor da teoria estruturalista. Sua preocupação
básica consiste em estabelecer fatos que sejam verdadeiros a
respeito da “mente humana”.
É nesse período que entra em cena Roberto Cardoso de Oliveira, talvez o maior
antropólogo brasileiro. Quando ainda jovem, recém-formado, funcionário do SPI (Serviço
de Proteção ao Índio), faz seu primeiro trabalho de campo entre o povo terena de Mato
Grosso do Sul, em meados dos anos de 1950, fixando-se especialmente em Cachoeirinha.
Não contente com as interpretações funcionalistas acerca do contato interétnico, propõe
uma nova leitura da realidade, teoria que será conhecida a partir dos anos de 1970, como
Fricção Interétnica.
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Os anos de 1970 foram marcados pelo esforço, que continua a vigorar, de alguns
etnólogos em colaborarem com os povos indígenas pelos quais se interessam
academicamente na obtenção de soluções para seus problemas mais urgentes, como
demarcação de terras, assistência médica, instrução, administração direta pelos índios de
sua produção, etc.
A. A expressão fricção interétnica indica uma das linhas primordiais de investigação existentes na
etnologia brasileira. Os pesquisadores enfatizam a necessidade de se entender os grupos indígenas em sua
relação de incorporação à sociedade brasileira. Esta conceituação surge como uma abordagem alternativa
aos estudos de aculturação, na tentativa de um modelo analítico mais adequado ao estudo da realidade
indígena brasileira.
B. Dois aspectos são enfatizados por Roberto Cardoso de Oliveira como cruciais na definição de fricção
interétnica, permitindo contrastar essa análise com a abordagem em termos de aculturação. 1. A própria
palavra fricção sugere que as relações entre os grupos étnicos não podem ser pensadas unicamente como
uma transmissão consensual de elementos de cultura, mas como um processo primordialmente
conflitivo, que envolve muitas vezes interesses e valores contraditórios; 2. Substitui a ênfase excessiva na
cultura por uma visão mais sociológica e observa que em sua perspectiva “o fulcro da análise não deve
ser o aludido patrimônio cultural, mas relações que tem lugar entre as populações ou sociedades em
causa” (Cardoso de Oliveira, 1972).
C. Da noção de fricção interétnica o autor passa à definição do sistema interétnico como formado pelas
relações entre “duas populações dialeticamente ‘unificadas’ através de interesses diametralmente opostos,
ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça” (Cardoso de Oliveira, 1962:84-5).
D. Mais recentemente, Cardoso de Oliveira (1976) procura associar à noção de fricção interétnica uma
problemática nova, derivada principalmente de pesquisas atuais sobre o fenômeno de construção das
identidades étnicas, como um capítulo do estabelecimento de identidades sociais em geral. Para isso
utiliza-se das contribuições de autores como F. BARTH.
E. Surgiram sobre este conceito algumas avaliações críticas, como a de J. Pacheco de Oliveira, que procura
explicitar as diferentes posturas teóricas que sustentam as teorias de Darcy Ribeiro e R. Cardoso de
Oliveira sobre o contato interétnico, adotando uma posição metodológica processualista, pondo em
destaque o conceito de “situação histórica”. Concluindo: mais do que um conjunto de conceitos e teorias,
a fricção interétnica e constituiu em uma das linhas fundamentais de pesquisa na etnologia brasileira, aquela
que orientou de forma integrada um vasto conjunto de pesquisas sobre grupos tribais brasileiros.
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Neste período, contemporâneo às pesquisas de Roberto Cardoso de Oliveira,
surge uma tendência nos estudos da Antropologia no Brasil, de buscar a compreensão das
Sociedades Indígenas como Totalidades Socioculturais. Nessa fase ganharam impulso os estudos
sobre a estrutura social das sociedades indígenas: Maybury-Lewis (Xavante), Crocker
(Bororo), Roberto da Matta (Apinayé), Melatti (Krahó), etc. Os estudos de totalidades
socioculturais indígenas mostram, nessa época, uma tendência a passar do funcionalismo
ou do estrutural-funcionalismo para uma abordagem mais estruturalista dando importância
às classificações mantidas, conscientemente ou não, pelos próprios índios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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efeitos e perspectivas. São Paulo: Escrituras Editora: Instituto Pensarte, 2005, p.73
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Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002). http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm
COSTA, Marisa Vorraber. Currículo e pedagogia em tempo de proliferação da diferença:
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GOMES, Nilma Lino. Educação e Diversidade Étnico-cultural. In. MEC. Diversidade na
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LARAIA, Roque de B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2011.
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33
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In. MAGNANI, José G. C. & TORRES, Lilian de L. (Orgs.). Na Metrópole - Textos de
Antropologia Urbana. São Paulo: EDUSP, 1996.
MELATTI, Júlio Cezar. A Antropologia no Brasil – um roteiro. Série Antropologia:
Brasília. 1983.
34
ANTROPOLOGIA E
PARENTESCO
Introdução
Os Kaiowá
36
domínio” [t. do a.] (Meliá, 1990, p. 5). Brand afirma que “Não são mais os limites naturais a
indicar os limites do tekoha10, mas são as outras propriedades” (Brand, 1993, p. 212). A
área ocupada por um conjunto de parentelas torna-se uma ilha num mar de fazendas e os
Kaiowá mobilizam suas categorias de pensamento para compreender essa situação, que, a
despeito da profundidade com que alterou o ambiente físico e social, remonta há apenas
poucas décadas.
Os módulos organizacionais
10Tekoha é a forma como os Guarani denominam o lugar em que vivem segundo seus costumes.
Grosseiramente pode ser traduzido por aldeia.
37
para a produção e articulação de diferenciações, algumas delas exploradas no presente
texto.
Assim, a descrição dos módulos ligados ao parentesco e outros campos da vida social
não serve apenas para identificar as características de um modelo ideal, lógico ou estrutural.
Permite também construir uma compreensão razoável dos mecanismos institucionais
através dos quais as pessoas ocupam posições distintas nas configurações produzidas por
seus coletivos, sejam as parentelas ou os tekoha.
Che ypyky kuera11 é como o Kaiowá se refere ao grupo de parentes próximos, reunidos
em torno de um fogo doméstico, onde são preparadas as refeições consumidas pelos seus
integrantes. Numa primeira acepção, ypy significa “proximidade”, “estar ao lado”,
ressaltando o fato da convivência íntima e continuada. O termo pode significar ainda
“princípio” ou “origem”. Assim, a expressão che ypyky kuera retém os dois sentidos do
termo ypy, referindo-se aos meus ascendentes diretos, com os quais compartilho os
alimentos, a residência e os afazeres do dia a dia; enfim, denota proximidade, intimidade e
fraternidade, ponto focal da descendência e da ascendência. É uma instituição próxima
daquela descrita pelos antropólogos como família nuclear, mas é necessário que ela seja
apreendida dentro do contexto das instituições sociais kaiowá, motivo pelo qual é preferível
utilizar o termo na língua guarani ou traduzi-lo como “fogo doméstico”. Esse módulo
organizacional enfoca a comensalidade e a força atrativa do calor do fogo que aquece as
pessoas em sua convivência íntima e contínua. O fogo não existe de modo isolado,
constitui-se como módulo organizacional articulado a um número variável de outros fogos,
cuja interligação em rede configura outro módulo organizacional, qual seja, o grupo familiar
extenso ou parentela. A rede de fogos de uma parentela é interligada por relações de
consanguinidade, afinidade ou aliança política.
11A língua kaiowá nos obriga a colocar um pronome como che (meu, minha) ou nde (teu, tua) antes da
expressão, quando se quer referir ao fogo doméstico.
38
No fogo culinário as pessoas se associam para preparar os alimentos, se protegerem contra
o frio e em torno dele costumam se reunir para tomar mate ao amanhecer e ao anoitecer.
O fogo doméstico reúne idealmente um homem, seus filhos e filhas solteiros e sua
esposa. Empiricamente, esse modelo, apresentado como ideal, pode se complexificar
através de significativas variações. É comum encontrar parentes consanguíneos do esposo
ou da esposa agregados ao fogo, ou ainda guachos (como podem ser denominados os filhos
adotivos), que podem ou não ser parentes (consanguíneo ou afim). O guacho12 é sempre um
solteiro, órfão ou filho de casais separados. Outra variação na composição do fogo
doméstico ocorre quando o genro vem residir com o sogro, pela aplicação da regra de
uxorilocalidade temporária, sendo que nesse caso é comum a mãe e a filha dividirem um
único fogo culinário, que então reúne mais de uma relação de conjugalidade –
ordinariamente cada fogo doméstico dispõe de seu próprio fogo culinário. Acontece
também, de casais de idosos, cujos filhos estão todos casados, adotarem netos ou
sobrinhos como corresidentes: “é para ajudar os velhos”, justificam os Kaiowá. Assim, o
fogo doméstico pode reunir pessoas ligadas por três tipos de relações: descendência,
aliança, e uma relação de pseudoparentesco, através da instituição da adoção de crianças.
Pode acontecer ainda de afilhados, tanto pelo batismo indígena como pelo batismo cristão,
residirem com os seus padrinhos.
Os Kaiowá parecem não ter uma visão substancialista do fogo doméstico, em termos
de vínculos de sangue, embora a tendência é de concentração de sangue entre os membros
do fogo. A circulação das pessoas entre fogos imprime grande dinamismo ao módulo
organizacional, que está sempre passando por transformação na sua forma e composição.
Sua importância está ligada diretamente à existência de procedimentos de cooperação
mútua, que devem existir entre pessoas que se consideram consanguíneos próximos. A
definição de quem serão essas pessoas passa por arranjos políticos entre um conjunto de
fogos, e, em nível mais geral, articula-se com os princípios que formam a parentela. A
dinâmica de composição do fogo segue o ritmo das alterações nas redes de alianças que
vinculam o fogo em questão com determinados fogos pertencentes à parentela do marido e
da esposa. Por outro lado, a relativa instabilidade nas uniões conjugais contribui também
para o grande dinamismo na composição dos fogos domésticos.
Jehuvy
40
A dinâmica desses módulos não será detalhada aqui por falta de espaço. Também
não descreverei outras formas intermediárias como realizei em Pereira (2004 cap. 2), mas
suas principais características estão registradas na tabela que aparece ao final do texto. O
leitor interessado por recorrer ao texto da tese em que se encontrará uma descrição
detalhada. Aqui importa registrar que muitas vezes esses módulos intermediários entre o
fogo e a parentela dão origem a facções políticas no interior da própria parentela, podendo
evoluir para a ruptura e a constituição de uma nova parentela. Isso gera uma constante
dinâmica interna às próprias parentelas, sempre em equilíbrio instável em sua configuração.
A parentela-te’yi
Che ñemoñá, che jehuvy ou che re'yi kuera é como um determinado ego pode se referir a
sua parentela13. Os Kaiowá podem utilizar alternativamente qualquer uma das três
expressões, mas a mais comum é che re'yi. Em conjunto, elas expressam aspectos de uma
mesma instituição: che ñemoñá expressa o fato natural da consanguinidade (fecundidade,
procriação, descendência), podendo, em certos contextos, ser entendida como fogo
doméstico (acepção mínima); che jehuvy, como vimos, expressa a ideia da convivência e
autoajuda (jehu=ajuda), ressaltando os laços de solidariedade presentes no interior dessa
instituição; che re'yi kuera, além da parentela bilateral, designa também uma das formas de
autodenominação kaiowá, o que demonstra que a parentela constitui-se como um núcleo
de identidade social. Che re’yi remete ainda à ideia de companheirismo e compromisso no
trato das questões consideradas de interesse coletivo da parentela. Por cobrir um leque
semântico mais amplo, a expressão te'yi (forma não flexionada de re'yi), será utilizada como
categoria kaiowá para a parentela14.
A parentela -te’yi tem como núcleo central um grupo de parentes cognáticos. Watson
(1952, p. 33) afirma que “a família extensa estava intimamente relacionada com outros aspectos da
cultura kaiowá, notadamente com o sistema de parentesco, a organização econômica e a arquitetura
indígena e a típica unidade de residência, o tapyi”. [t. do .a]. Constitui-se como um aglomerado
não linear organizado em torno de um casal que conta com um/a líder de expressão que,
como cabeça de parentela, reúne em torno de si seus parentes próximos e aliados. A
13 Na literatura antropológica de língua inglesa, instituições semelhantes ao te’yi são descritas como o grupo
local, a extended family (formada a partir de kinship e alliance), o kinship group, a extended consanguine family e o
grupo doméstico (household ou domestic group). Utilizo parentela para facilitar a leitura, entretanto é importante
delimitar as características desta instituição dentro do sistema social kaiowá.
14 Watson (1952), Schaden (1974) e Brand (1993, 1997), utilizam o termo “família extensa” para o que
denomino parentela.
41
parentela tem um caráter de grupo relativamente estável no tempo, muito atuante na vida
política, o que se torna visível nos momentos de crise (conflitos, ameaças sobrenaturais),
quando se mobiliza para a defesa de seus membros.
42
carisma, podendo representá-los e por eles falar nas reuniões gerais (aty), que congrega os
representantes dos outros te’yi que dividem um mesmo tekoha (ou, na situação atual, uma
reserva), devendo defender os interesses do seu grupo doméstico acima de qualquer outro
interesse.
O te’yi e o tekoha
43
A noção de tekoha é adotada pela maioria dos trabalhos recentes sobre os Kaiowá.
Em sua definição considerada mais clássica, tekoha “é a comunidade semiautônoma dos
Pãi”[t. do a .] (Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976, p. 218). Etimologicamente a palavra é
composta pela fusão de teko -sistema de valores éticos e morais que orientam a conduta
social, ou seja, tudo o que se refere à natureza, condição, temperamento e caráter do ser e
proceder kaiowá -, e ha, que, como sufixo nominador, indica local ou a ação que se realiza.
Assim, tekoha, numa acepção mais restrita, pode ser entendido como o lugar (território), no
qual uma comunidade kaiowá (grupo social composto por certo número de parentelas
relacionadas) vive de acordo com sua organização social e seu sistema cultural (cultura).
44
marcadas por dilemas irreconciliáveis entre exclusividade x mutualidade, entendimento x
hostilidade, aproximação x repulsa. Fica evidente as constantes querelas e falatórios, com
raros momentos de concórdia (eventos políticos, rituais ou festivos). Fora desses
momentos efêmeros, a discórdia parece voltar sempre reciclada, trazendo novo
combustível à máquina política, que nunca para de funcionar. Esse dinamismo não é
apenas uma fonte inesgotável de problemas, desencadeia processos e atualiza
procedimentos fundamentais para a continuidade da vida social. A constante instabilidade
política aparece como uma exigência para a própria existência e reprodução da sociedade,
sendo um ingrediente básico, inerente à própria dinâmica social. Isso faz com que as
disposições e ânimos para a participação coletiva oscilem no tempo, às vezes em curto
espaço de tempo.
Oreva é o termo usado pelos Kaiowá para a primeira pessoa do plural e significa ‘nós
exclusivo’, diferente de ñandeva, ‘nós inclusivo’, que também significa gente, como categoria
genérica que inclui todos os interlocutores. Oreva e ñandeva são categorias relacionais,
baseadas em pronomes identificadores de duas categorias incluídas na primeira pessoa do
plural, mas que podem servir como metáforas para delinear fronteiras entre grupos sociais.
As duas metáforas são úteis para construção do entendimento da lógica segmentária,
articuladora do modelo de organização social kaiowá. Por exemplo: os membros de uma
parentela podem dizer oreva se referindo aos seus integrantes em contraposição (excluindo)
outras parentelas do mesmo tekoha, mas num conflito de terra que ameaça o tekoha, podem
dizer oreva, incluindo propositalmente as outras parentelas que aí residem e que, nessa
situação específica, formam um grupo unitário em relação ao fazendeiro. Pode-se ouvir
também a expressão oreva - ‘os nossos’ ou ore reko - ‘o nosso sistema’, para se referir ao
conjunto da população guarani em oposição aos valores da sociedade nacional (karai reko).
A formulação que proponho dos princípios ore e pavêm se inspiram na descrição dos
dois tipos de cooperação, realizada por Grünberg (1975). Chamo atenção para o fato do
autor utilizar os termos oreva e ñandeva, para o que aqui expresso como ore e pavêm. O
princípio ore está voltado para o interior da parentela e o pavêm voltado para o
estabelecimento das relações entre as parentelas que formam um tekoha, ampliando-se
potencialmente para todos os Kaiowá. O princípio ore se refere a uma força centrífuga,
enfatizando e intensificando as relações entre pessoas próximas, em detrimento das
relações com pessoas mais distantes. O princípio ore teria como característica principal a
forte ênfase na exclusividade das relações entre pessoas que se consideram parentes
próximas. O resultado da ação do princípio ore é compor módulos com profunda
identidade social, cuja expressão máxima seria o fogo doméstico. A sobrevalorização das
relações sociais próximas tem como implicação direta o afrouxamento das relações mais
distantes, diluindo o sentimento de coletivo ampliado.
Atundo como força centrífuga, princípio ore intensifica o distanciamento social dos
outros módulos organizacionais. Desse modo, enfatiza ou condensa a interioridade,
46
expressa nas formas de convivência livre das disputas e tensões sociais que caracterizam a
vida social fora do círculo de mutualidade, cuja forma mais pura é representada pelo fogo.
Evidentemente, é impossível viver exclusivamente no fogo e sua abertura para a
exterioridade é forçada pela ação de uma força centrípeta, que aqui se denomina princípio
pavêm.
Para explicar o significado do adjetivo pavêm o xamã aproveitou que no dia anterior
havíamos postulado uma situação fictícia, mas perfeitamente realizável de acordo com os
padrões de organização social kaiowá. A situação postulada procurava esclarecer problemas
colocados pela terminologia de parentesco. A questão terminológica era a seguinte: os
47
Kaiowá englobam em uma única categoria terminológica irmão e primos paralelos, mas
aplicam termos distintos para identificar a senerioridade entre eles, ou seja, ryke’y para mais
velho e ryvy para mais moço15. Questionei o xamã sobre a possibilidade de irmãos (filhos de
mães diferentes já que praticam a poliginia) ou primos paralelos (já que são designados pelo
mesmo termo), nascerem ao mesmo tempo, situação em que seria impossível aplicar a
distinção de senioridade entre eles. O xamã então explicou que nesse caso não se aplicaria
entre eles os termos distintos ryke’y e ryvy, já que como possuem a mesma idade seriam
pavêm um em relação ao outro. Usando os dedos indicadores das duas mãos justapostos,
mostrou que são indistintos, já que possuem o mesmo formato, comprimento e espessura,
e que, portanto, da mesma forma que pessoas englobadas nas categorias de irmãos e que
tenham a mesma idade, devem receber um tratamento de igualdade, daí a aplicação do
termo pavêm. Em outros contextos, o termo pavêm tem também o sentido de algo geral,
indistinto ou universal. A sociedade organizada a partir do princípio pavêm seria,
metaforicamente, um grande fogo doméstico, já que combinaria a seguridade que o
caracteriza, com a efervescência da vida religiosa.
Maybury-Lewis (1984, p. 365), no final de seu livro sobre a sociedade xavante, afirma
“que pode-se esperar que a maior parte das sociedades humanas deem expressão conceitual
ou institucional a algum tipo de princípio diádico”. Parece que a sociedade kaiowá trabalha
este princípio diádico na relação ore - pavêm. Um dos argumentos do presente texto é que a
identificação destes princípios e a descrição da maneira como eles operam no interior do
modelo de estrutura social pode ajudar a ampliar a compreensão das regras, ideias e ações
que norteiam a convivência social entre os Kaiowá.
Embora não haja correspondência direta entre o modelo de estrutura social proposto
pelo pesquisador e a realidade social, sua composição procura se guiar pelas categorias que
os membros da sociedade empregam para ordenar e significar as relações sociais que
estabelecem. É inevitável que a composição do modelo isole e até exagere deliberadamente
determinados aspectos da vida social como forma de captar seu sentido, que nunca é
autoevidente. O desafio final é ordenar esses dados “sob a forma de um modelo capaz de
demonstrar certas relações cruciais à sociedade” (Maybury-Lewis, 1984, p. 359), e que
15 Estes são os termos vocativos para os gêmeos mitológicos e heróis civilizadores, sol e lua. A distinção
terminológica está assim profundamente radicada na cosmologia do grupo.
48
possa explicitar o que poderíamos identificar como estrutura social da sociedade kaiowá.
Estrutura social, um termo reconhecidamente extemporâneo, é aqui entendida como uma
construção lógica (Leach [1954] 1996, p. 68-69) e não como um dado empírico. Nesse
sentido, a tabela que apresento constitui-se apenas como uma hipótese explanatória, no
sentido atribuído por Maybury-Lewis (1984, p. 351).
50
núc l e o s pare n tela s ao ca m p o p olí t ico -
de relaci o nad reli gi o s o. Sua
resid ê nc i as es pacia li zaç ã o é f luid a
as d e com c on t or n os
pare n te la co ns ta n te me n te
s red efi nid o s, em b ora
oc orr a m a lgu n s ca s o s
d e co n sid erá vel
regul arid ad e n o
tem p o . A co n tece
tam bé m o
d esl oca me nt o d e
pare n tela s e n tre
te koh a .
T ek oha E s pé c ie d e Re li gi ão Jo ’e c h ak ar e , T ek oha Pov o Gru p o d e Ar ticu la - se e m tor n o d e
pav êm par óqu ia for ma -d or d a kai o wá ou pe ss oa s um l íd er re li gi o s o cuj a
ou par óqu ia tetã que, d o com pe tê nci a c om o u m
pr ov í nc ia p o nt o d e gra nd e fa zed or d e pa z -
reli gi o sa vi sta “ peace maker ” , é
reli gi o s o, reco n hecid a po r um
com p art il ha co nju n t o d e t e koh a.
m um a Ac o ntece m d i s pu ta s
id en tid ad e mai s ou me n os
acen tua d a s e n tre j o’ e
c haka re d e esc o la s
d ifere nte s . Atu a à s
veze s c o m o u ma
es pécie d e o rd em
sacerd o tal na qua l o j o ’e
c haka re f orma
d isc íp ul o s que re al iz am
o s ri tua is co t id ia n o s
n os d ive rs o s t e ko ha p or
o nd e se e ste nd e sua
in fluê nci a. A tua lme n te
a d efi niç ão o sc il a e n tre
a p ol í tica e a re li giã o ,
já que o c am p o p ol ít ic o
parece ter ad quir id o
h oje u ma ma i or
pr oem i nê ncia d evid o à
d epe nd ê ncia em r elaçã o
à s ocied ad e naci o na l.
T etã Ter r i t ór i o E t nia De u se s , Paí s, pá tr ia. E s paç o ecú me no
he r ói s d eixad o pe lo s d e use s
mí tic o s e para que o s Kai o wá aí
c ivi li za d ore s viva m . O s a nce s trai s
mí tic o s d ei xara m u ma
série d e ve s tí gi o s d e
sua pa s sa gem pe la
terra , a c o nd u ta d e s ses
ance st rai s , rela tad a no s
mi to s , i n s taura o
com p or ta me nt o
hu ma n o na terra e
d eles o s Ka i o wá
herd ar am seu s
co n he ci me nt o s. Nã o
exi ste ne n hu m a fi gura
hu ma na que ex pre s se
es sa u nid ad e (c o m o o
51
Papa p ara o s ca t óli co s ,
p or e xem p lo )
W in k u er a Nã o Afi n id ad e M o ns tr o s, Afi m vir tua l I ni mi g o Pes s oa s c om q uem
pare n te s , p ote nc ial ou tr os p o vo s n orm al me nte nã o se
in im ig o s / co o pera ne m se ca sa,
h os ti lid ad ma s a pe na s s e gu erreia .
e
Considerações finais
52
Os princípios da organização social, pensados em sua totalidade sistêmica,
evidenciam a existência de um conjunto de módulos organizacionais em integração
dinâmica, com significativa correspondência lógica entre si. Isso autoriza o observador a
pensar a sociedade kaiowá como um conjunto relativamente arbitrário de opções
sociológicas, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista nativo, permite aos indivíduos
pensarem-se em coletividade. Ao final predomina uma espécie de “lógica de conjunto”
(Augé, 1975, p. 96). Essa ‘lógica de conjunto’ dá coerência ao sistema, como um todo
estruturado e interdependente. A organização social aparece ao final como parte de um
dialeto social, uma linguagem que no seu conjunto expressa um determinado modo de ser,
uma maneira de viver e falar da vida como Kaiowá, de viver como parente entre parentes.
Mas o idioma em que se expressa a organização social deve ser visto como uma linguagem
intrinsecamente relacionada a outras linguagens sociais, como a economia, a política, as
práticas rituais, os relatos míticos. A estrutura social kaiowá não é a totalidade do social,
nem o parentesco um espaço privilegiado para pensar a sua totalização: talvez por esse
motivo ele tenha ficado fora da maioria das etnografias. É justamente saindo do campo do
parentesco stricto sensu – mas sem perdê-lo de vista, e detendo-se nas conexões que ele
estabelece com outros sistemas de significação –, que é possível uma maior aproximação da
fisionomia da sociedade e de seus mecanismos de produção e reprodução. Afinal, foi na
terminologia de parentesco que o xamã encontrou o argumento para explicar em que se
constituía o princípio pavêm.
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54
II
HISTÓRIA INDÍGENA
55
A HISTÓRIA DOS POVOS
INDÍGENAS
MUSSI, Vanderléia P. L.16
[...] As estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como o
não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são
historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais,
discursivas) que constroem as suas figuras. [...] Por outro lado, esta
história deve ser entendida como estudo dos processos com os quais se
constrói um sentido (CHARTIER, 1990. p. 27).
Narrar uma História dos povos indígenas é uma tarefa quase impossível, visto a
grande diversidade cultural representada pelo mosaico étnico brasileiro. Da mesma forma
que não há como estabelecer uma linha cronológica, temporal para registrar a história de
contato de cada etnia. A epígrafe nos aponta, a partir das concepções teóricas do autor, que
a história cultural tem por principal objeto “identificar o modo como em diferentes lugares
e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”
(CHARTIER, 1990 apud MUSSI, 2006, p. 48).
E mais ainda conviria sublinhar, para o autor, a história é o estudo dos processos
com os quais se constrói um sentido. Desse modo, “Uma tarefa desse tipo supõe vários
caminhos: o primeiro (representações do mundo social) diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias
fundamentais de percepção e de apreciação do real” (CHARTIER, 1990, p. 17). O
segundo, diz respeito ao conceito de representação num sentido mais particular e
historicamente mais determinado. E por último, trata da distinção fundamental entre
representação e representado, entre signo e significado, o que na perspectiva de narrar a
56
história dos povos indígenas torna-se, como já observado, uma tarefa desafiadora, porém,
quase impossível.
57
resultar em um sistema que mantém uma diacronia interna que pode ser temporal e
mutante.
Dessa perspectiva compreensiva, é possível compreender porque o conhecimento
histórico não depende da relação “memória e história, passado e presente”, pois como
afirma Le Goff “a história é a ciência do tempo”. Isso não significa que podemos
enquadrar as diferentes culturas, ou mesmo diferentes ordens sociais, em um mesmo nível,
pois dessa forma estaríamos homogeneizando todas as sociedades (LE GOFF apud
MUSSI, 2006, p 48).
Assim, o que se pretende neste estudo é trazer algumas reflexões ora mais
genéricas, ora mais pontuais, de elementos que nos permitam entender a história de
contato de alguns grupos étnicos, no sentido de repensar conceitos e trajetórias históricas,
além de uma tentativa revisional de pensar a função que a historiografia brasileira ocupa no
registro da história ou histórias dos povos indígenas brasileiros.
59
foram se espalhando por diferentes regiões, até chegar à América do Sul. A sua entrada,
por meio do continente americano, pelos vestígios encontrados, teria acontecido por volta
de 11 a 12,5 mil anos atrás. Conviria observar que as datas são pouco precisas, daí a
necessidade de revisão sistemática dessa informação, já que as investigações mais recentes
continuam indicando datações muito mais antigas.
Ao chegar nessa parte do globo terrestre, o homem já era da espécie Sapiens e
encontrou na América do Sul um terreno fértil, amplo e rico em vegetações distintas para
se espalhar e seguir povoando o novo continente. O norte do continente é quase todo
tomado pela densa e úmida floresta amazônica; e, mais para o sul, estendem-se as planícies
de cerrados. Em vista dessa diversidade ecológica, é natural que houvesse tantas diferenças
culturais e sociopolíticas entre os povos que aqui viviam. E mais ainda é possível dizer: as
diferenças históricas do processo de formação desses povos pioneiros são perceptíveis nas
diferentes formas de adaptação e de organização de suas sociedades e diversidade cultural
Melatti, no livro Índios do Brasil, aponta o que há de mais ou menos seguro sobre
o povoamento da América. Apesar de os estudiosos não terem uma opinião comum a
respeito da origem do homem americano e a forma pela qual ocupou o continente, pode-se
dizer que há algum consenso entre eles, ou seja, em determinados pontos eles estão de
acordo: primeiro, "o homem não surgiu na América, veio de fora, sendo muito mais
recente no Novo do que no Velho Mundo"; segundo, "a migração mais importante para o
povoamento da América, mas não provavelmente a única, foi a de contingentes asiáticos
que vieram em levas sucessivas através do Estreito de Bering"; terceiro ponto, "os
primeiros contingentes humanos chegaram à América na última idade glacial, denominada
Wisconsin, em um período que se pode situar há 40 mil anos"; o quarto, "os primeiros
migrantes estavam no nível cultural de caçadores, não dispondo, de conhecimentos e
técnicas de agricultura, já que, quando o homem chegou à América, o Velho Mundo não
tinha passado do Paleolítico Superior"; E por fim, "os últimos grupos migratórios foram os
dos esquimós, que se radicaram na região mais setentrional do continente americano"
(MELATTI, 1970, p 22).
60
Disponível In: http://crv.educacao.mg.gov.br
61
Disponível In: http://crv.educacao.mg.gov.br
Seguindo ainda nas concepções desses estudiosos, foi a partir desse quadro que
surgiu em diferentes pontos do continente americano, que também colaboraram para a
formação de que os paleoíndios norte-americanos, não seriam os verdadeiros
representantes dos pioneiros povoadores das Américas. Afirmam também, baseando-se em
datações bem mais antigas que os doze mil anos e as problematizações de Clóvis que
O importante a frisar aqui é a transitoriedade dos dados e das afirmações, pois são
aproximações, fruto de pesquisas acadêmicas, ainda não definitivas e, portanto, conjecturas
62
que nos ajudam a compreender este passado remoto da povoação do continente
americano.
http://pibmirim.socioambiental.org
64
Há outros Estados da região do Brasil Central em que também foram encontrados
sítios com datações próximas aos doze mil anos. Na região mais ao Sul, no estado do Rio
do Sul, os arqueólogos Schmitz e Ribeiro escavaram diversos sítios referentes ao Holoceno
arcaico. Em Mato Grosso do sul, já na porção setentrional da Bacia Platina, existem
datações seguras com mais de doze mil anos no sítio Casa da Pedra, um abrigo sob a rocha
com pinturas. Neste há também hipóteses sobre roteiros migratórios que levaram ao
povoamento do sul do Brasil e mesmo no continente sul-americano (MARTINS;
KASHIMOTO, 2012, p. 28-29).
Diante do exposto, Martins e Kashimoto fazem ainda algumas reflexões e
questionamentos, como a de que se a antiguidade do homem no Brasil for comprovada
como sendo originária do Plestoceno, isto é, que remonte a cinquenta mil anos, como
propõem alguns estudiosos para a Serra da Capivara, fica difícil explicar como que, por
mais de trinta e cinco mil anos, não tenha ocorrido manifestações simbólicas expressivas,
caracterizadas como fenômenos pela antropologia e passíveis de serem recuperadas por
meio de vestígios arqueológicos como o que aconteceu em outros lugares do mundo. E
segue perguntando, será que no Brasil a chamada Revolução Cultural do Paleolítico
Superior só ocorreu com a chegada dos antepassados dos atuais índios, já mongolizados?
(MARTINS; KASHIMOTO, 2012, p. 30).
Nesse sentido, para esses autores, as evidências sobre esse quadro mostram que o
surgimento de pontas de projéteis e a arte rupestre, até os dias atuais, só aparecem na
transposição do Pleistoceno para o Holoceno. Também afirmam que essas pinturas
parientais vão praticamente desaparecer com a neolitização introduzida pelos povos
indígenas do Brasil. Assim, apresentam a possível hipótese de que:
65
Serra da Capivara. Disponível em: http://www.fumdham.org.br/pinturas.asp
Painéis de arte rupestre parietal com pinturas e gravuras feitas em rocha no município de
Aquidauana (MS). Disponível em:
http://www.riosvivos.org.br/pantanal/populacoes/morraria.htm.
66
A cultura material e imaterial dos povos indígenas é diversa, vasta e riquíssima. A
estudiosa norte-americana Anna Roosevelt estudando a cerâmica na Amazônia,
considerou-a como das mais antigas no mundo, com mais de sete mil anos. A cerâmica é
usada por diversas etnias indígenas e o seu uso é o mais variado possível. É por meio de
sua utilização que se pode compreender como as sociedades indígenas armazenavam os
seus produtos, o que eles comiam, bebiam e, o mais importante, como concebiam o
mundo. A cerâmica marajoara, por exemplo, tinha uma forma de decoração, que
representava o copo feminino, destacando o útero, de forma que alguns estudiosos
entendem que essas representações eram sinais de prestígio das mulheres nas sociedades
indígenas que as fabricavam (FUNARI, 2011, p. 36). Na imagem abaixo e possível verificar
que o destaque maior do vaso ocupa toda a metade inferior, representando o útero e dois
ovários, o que denota a importância da fertilidade da mulher indígena.
67
O Universo dos Povos Indígenas pré-colombianos é tão diverso e representativo
quanto o dos povos indígenas brasileiros, embora aqui deva ser tomado como nível variado
de comparação, que entre culturas é sempre um equívoco. O propósito aqui é observar que
tais povos viveram em tempos e espaços diversos, considerando os diferentes contextos
históricos, sociais, culturais e econômicos, o que muitas vezes são representados nos livros
didáticos como sendo todos em contextos históricos relativamente próximos. Como o
propósito deste estudo é o de refletir um pouco sobre a História dos povos indígenas, para
efeitos didáticos, resolvemos fazer um adendo para pontuar alguns elementos identitários
dos povos indígenas na América até chegar ao Brasil.
Os povos incas desenvolveram as melhores estradas, conforme mencionado,
criaram um grande império, com sistema de escrita própria e de comunicação que abrangia
todo império. Alguns sob o seu domínio mantiveram-se como povos agricultores, sem
grandes diferenciações internas e pouco contentes com o fato de terem de pagar tributos
ao império inca. Só aceitavam por imposição militar. Entretanto, é necessário considerar
que há povos que não tinham o domínio de tais técnicas. No século XV havia outros
povos da América que viviam em "tribos confederadas" e em guerra entre si, como era o
caso dos povos tupi e havia grupos nômades que não domesticavam animais (FUNARI,
2011, p. 44).
A escrita incaica era realizada utilizando-se de um método original, composto por
cordas e nós para registrar sua língua quíchua. Pedro Funari, a partir dos estudos de
britânico Gordon Brotherston, afirma que os desenhos corporais, os penachos, os vasos de
cerâmica, as pinturas em couro e nas paredes das cavernas, consistiam em sistemas de
escrita, de transmissão de informação de maneira sofisticada e complexa, que as
representações apontadas nos livros didáticos muitas vezes, simplistas, não dão conta de
dimensionar (FUNARI, 2011, p. 45).
68
Horizonte tardio; Acari, Peru; Cordão matriz menor com 78 cm. Os quipus foram utilizados
pelos incas como sistema de escrita, para registro de histórias e cantos em língua quéchua, e
também de contagem, tanto de rebanhos quanto de pessoas. Disponível em:
http://www.museunacional.ufrj.br
69
Disponível em: http://diegobenitezcolin.blogspot.com.br
70
partes essenciais da nossa formação cultural, histórica e antropológica, como é o de
reconhecer a presença indígena no país (FUNARI, 2011, p. 16).
No final do século XV e início do século XVI o contato físico entre essas culturas
tão diferentes resultou em um longo processo de aproximação e construção de imagens em
que, primeiramente, houve troca de presentes (colares, espelhos), cujo significado cada um
dos povos “traduziu” nos termos de sua própria cultura. Depois, a violência teve lugar,
pois o “nativo” não era entendido como um ser autônomo e “dono” da terra recém-
conhecida. O europeu colocou-o como “primitivo”, como um “atraso” ao
desenvolvimento, a quem foi negado o mínimo de autonomia para falar de si mesmo.
Mas afinal, se a ideia do europeu era a de que os povos nativos, ou seja, os
indígenas eram primitivos, atrasados, violentos, indóceis, preguiçosos, etc; qual era a visão
que os indígenas faziam a respeito do homem não indígena não indígena?
Para os colonizadores os índios foram designados de diversas maneiras, cada
povo de seu modo, com nomes que poderiam significar "seres humanos", por oposição a
outros grupos, como é caso, por exemplo, dos Tupiniquins e Tupinambás que dá uma ideia
de autodenominações. Para Funari (2011, p. 18), "Tupi" significa o "ancestral", ("nambá
quer dizer descendentes) sendo então "os descendentes do astral", conhecidos como
tupinambás, já os "tupinanki" (o nome original dos tupiniquins) quer dizer "o galho do
ancestral", em que "galho" representa as ligações com seus parentescos. Assim, pode
considerar que tais processos de nomeação podem ocorrer entre outros povos. É
importante registrar, ainda seguindo as concepções do autor, que nem sempre era possível
saber como um povo se autodenominava, ou seja, chamava a si mesmo, mas se pode
conhecer como descreviam outros povos, com era o caso dos "guarulhos", "os barrigudos",
ou "nambiquaras", "orelhas furadas" (FUNARI, 2011, p. 18).
71
A Origem dos “civilizados” segundo o povo Timbira
Tais grupos acreditavam que, antigamente, não havia civilizados, mas
apenas índios. Uma mulher indígena ficou grávida e toda vez que ia
tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu filho, que ainda não
tinha nem nascido, saía do seu ventre e se transformava em um animal,
brincando à beira d’água; depois, a criança voltava outra vez ao ventre
materno. A mãe não dizia nada a ninguém.
Um dia, o menino nasceu. Aukê, ainda recém-nascido, transformava-se
em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia
temiam os poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô
materno, resolveram matá-lo. As primeiras tentativas de liquidá-lo não
tiveram sucesso. Conta-se que uma vez seu avô, em nova tentativa de
matá-lo, levou-o ao alto de um morro e empurrou-o de lá no abismo.
O menino, porém, ao cair não morreu, pois virou folha seca e foi
caindo bem devagar, voltando para a aldeia são e salvo! Foi então que
o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirar o indiozinho; o
que realmente aconteceu.
Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as
cinzas do menino, achou no lugar uma grande casa de fazenda, com
bois e outros animais domésticos. À porta, Aukê, que não havia
morrido, mas se transformado no primeiro homem civilizado.
Ordenou ao avô que fosse buscar os outros habitantes da aldeia.
Todos vieram e Aukê pediu que escolhessem entre a espingarda e o
arco. Como os índios ficaram com medo de pegar a espingarda,
preferiram o arco. Por terem preferido o arco, permaneceram como
índios. Se tivessem escolhido a espingarda, teriam se transformado em
civilizados. Aukê chorou com pena dos índios por não terem escolhido
a civilização.
72
A preocupação dos índios com a origem dos "brancos" pode ser identificada,
sobretudo, por meio de seus mitos. Nele, segundo Julio Cezar Melatti, essa questão aparece
ligada a outra: a de explicar por que os indígenas se acham em uma situação de
subordinação, de povos dominados, perante a sociedade branca (MELATTI, 1970, p. 27).
Para os indígenas, a presença do homem “branco” era um enigma! Possivelmente
se perguntavam: como teriam surgido ali, diferente de nós, vestidos com tecidos
desconhecidos, falando palavras que não entendiam, comendo alimentos impróprios, de
hábitos diversos e com armas que cuspiam fogo? Como explicar a presença dos europeus
diante das tribos indígenas? Na impossibilidade de outras explicações, os índios apelam
para o sobrenatural. O povo indígena Timbira que vivia no sul do Maranhão e Norte de
Goiás acreditava terem os "civilizados" surgidos da transformação de um menino chamado
“Aukê”.
Com essa história, os índios Timbira explicam a origem dos não indígenas
chamados de civilizados. Assim é possível depreender alguns conceitos implícitos e
determinadas explicações sobre aquela nação indígena. Por exemplo, o estado de submissão
e pobreza em que eles vivem diante dos brancos, ou seja, dos não indígenas. Importante
notar que os civilizados conhecidos pelos Timbira são os que estão mais próximos de suas
aldeias, destacando-se entre eles os que possuem maiores recursos materiais, ou seja,
fazendeiros, grandes proprietários e possuidores de gado bovino, considerado valor
distintivo entre os homens. Por isso Aukê aparece na figura de um fazendeiro criador, pois,
por conhecerem bem apenas uma área restrita e estarem submetidos à influência desses
ricos proprietários rurais, reflete a explicação da origem dos brancos, geralmente
poderosos, o que constitui, portanto, uma visão circunscrita à realidade em que vivem
(MELATTI, 1970, p. 27-28).
Outro exemplo é retirado da cultura dos “Kadiwéu”, que habitam a região do
estado de Mato Grosso do Sul; são da família dos índios “Guaykuru”, que aprenderam a
usar o cavalo e tiveram a hegemonia na região, mantendo índios de outros grupos em
cativeiro. Contam que até mesmo os espanhóis e portugueses foram mantidos aprisionados
pelos “Guaykuru”. Seus guerreiros, para se defenderem do inimigo, costumavam cavalgar
dependurados na crina do cavalo, no sentido horizontal, para não serem vistos. Quando
corriam pelos campos, quem os via da posição contrária, tinham impressão de que eram
apenas cavalos selvagens, correndo em disparada.
Bem, mas voltemos à explicação dos Kadiwéu sobre a origem do homem branco.
Conta a lenda que os próprios Kadiwéu (e outros povos, como os Terena, os Kinikinau, os
73
Kainguang, os bolivianos, enfim, todos os homens) foram tirados pelo herói “Go-noêno-
hôdi” de dentro de um buraco. Enquanto outros povos receberam do herói terras e outros
dons, os Kadiwéu não receberam nada, ficando somente com o privilégio de lutar contra os
outros, tomando-lhes seus bens. O mito, portanto, explicava não somente a origem dos
povos, mas também os seus princípios de dominação e a relação com outros povos. Em
uma versão mais atualizada desse mito, os Kadiwéu não esperaram mais o herói “Go-
noêno-hôdi”, que fora buscar seus patrícios, ou seja, mais presentes para eles. Saindo da
letargia da espera, os Kadiwéu foram buscar alimentos, como frutas e mel nas matas. Ao
regressar, o herói disse para os Kadiwéu que eles poderiam ficar como estavam, ou seja,
livres pelos campos, lutando por sua subsistência; quanto aos demais povos, deveriam fazer
o seu próprio roçado, fixando-se em algum lugar (MELATTI, 1970, p. 28-29).
Nesse sentido, podemos perceber que tanto o povo Timbira quanto o Kadiwéu,
ao se preocuparem com a origem do homem não indígena procuravam, ao mesmo tempo,
explicar a posição da aldeia perante o homem branco e, portanto, não indígena, que aparece
como possuidor de coisas que tornariam a vida dos indígenas muito mais fácil e agradável!
Os povos indígenas, portanto, achavam um jeito de designar essas criaturas que
não eram animais, mas que não eram como eles, eram apenas parecidos com eles. Então,
ao se referirem aos brasileiros não indígenas, usam termos diferenciados; por exemplo, os
Tenetehara (povo do Maranhão e Pará) quando queriam se referir aos não indígenas
costumavam chamá-los de “Karaiw” ou de “Caraíba”, palavra que aparece entre outros
povos de língua tupi desde o século XVI. Os Tupinambá usavam o termo “caraíba” para se
referirem aos seus pajés-profetas, homens com habilidades de falar com os espíritos e ter
sabedoria da previsão. Antes disso, costumavam chamar os luso-brasileiros de “mázán”,
termo equivalente a “marinheiro” ou mesmo português.
Os Tupinambá também costumavam chamar os franceses que estiveram no Rio
de Janeiro de “maíra”, ou seja, “encantado”, terminologia que, na visão indígena,
representava o herói civilizador. Posteriormente passaram a distingui-los por meio de uma
expressão que significava “povo de hábitos diferentes”. Já os Avá-Canoeiro, povo tupi do
alto Rio Tocantins, chamam ainda hoje os não indígenas de “maíra”. Os atuais Guarani,
que descendem dos Guarani do século XVI, chamam de juruá aos não indígenas, termo
sem significado especial, assim como os Terena, do Mato Grosso do Sul, chamam-nos de
purutuy.
Se para os europeus, os indígenas não passavam de seres selvagens, silvícolas,
primitivos ou povo sem alma, já que até o século XVIII havia dúvidas sobre a possibilidade
74
de considerá-los cristãos, dignos de serem batizados, ou até mesmo se eram seres humanos,
indivíduos, gente; para os povos indígenas os europeus apareciam como seres especiais
dotados de poderes divinos ou simplesmente como homens comuns, mas com dons de
encantar.
A par das explicações míticas, o historiador Carlos Alberto Dutra escrevendo
sobre a história do povo Ofaié, registrou a partir das contribuições de Curt Nimuendaju,
que a "tribo dos Ofaié", foi equivocadamente denominada de "Xavante” e que o seu nome
não constava em nenhum mapa do Brasil, com exceção dos mapas mais especializados e
que a inclusão do nome Ofaié nesse tipo de documento é uma aquisição relativamente
recente (DUTRA, 2011, p. 53).
Também registra que desde o momento de seu "aparecimento" na documentação
oficial eles foram chamados de diferentes modos, sendo grafados de diferentes formas
como: Opayé, Opaié, Ofaiê, Faiá, Afaiá, Araés, Ypaié, Xavante, Chavante, Shavante,
Chavante-Ofaié, Chavante-Opaié, Kukura, Guachi, Wahéi, Ofaié-xavante, entre outros.
Opaié ou Ofaié, portanto, era o nome que estes indígenas dão a si mesmo, e Xavante é o
nome que eram denominados pelos "neobrasileiros e sertanejos" no período do chamado
"descobrimento", ou seja, período em que exploravam a região Centro-Oeste do Brasil. O
autor denomina "neobrasileiros como um termo empregado pelo Hermann von Ihering
(1850-1930) para designar um conjunto de raças imigradas e seus descendentes depois da
descoberta da América (DUTRA, 2011, p. 54).
Nessa perspectiva mítico-histórica, podemos retomar as concepções de Bruce
Albert (1992), no artigo A Fumaça do Metal: História e Representação do Contato entre os
Yanomami, em que ele propôs essa linha de abordagem, fornecendo os seguintes
conceitos: “dinâmica cognitiva”, que adota uma abordagem lógica do processo
interpretativo, permitindo chegar não só aos “procedimentos de seleção e associação dos
eventos e mudanças a partir dos quais se constrói a relevância cultural das situações de
contatos”, como também a possibilidade de ver “os processos de desestabilização cognitiva
subjacentes a suas sucessivas reinterpretações”.
Já a “contextualização histórica” é analisada sob o ponto de vista da história do
contato e suas representações, de maneira indissociável. Por esse enfoque, o autor chama a
atenção para os efeitos, tanto das formas de articulação do grupo à fronteira branca, quanto
da sua lógica interna de desenvolvimento. Isso sob uma óptica da configuração e
encadeamento das interpretações indígenas das situações de contato. E, para finalizar,
podemos apontar a “estratégia cultural”, que visa mostrar que “as escolhas simbólicas
75
manifestadas no tratamento dos fenômenos sócio-históricos se inscrevem num projeto de
resistência cultural subjacente”. Assim, é possível evidenciar “operações de seleção e
valorização temática que delimitam um campo interpretativo dominante e apontam para
preocupações simbólicas fundamentais” (ALBERT, 1992 apud MUSSI, 2006, p.29).
76
Reconhecido o território, Colombo se converteria em um caçador de escravos e
ávido garimpador de ouro; afinal, eram bens para serem vendidos ou trocados na Espanha,
por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos do colonizador, os indígenas,
entretanto, apesar de considerados bens de uso e troca, não eram totalmente desprovidos
de vontade e de resistência a quem lhes feria o corpo e a alma.
Convém observar que geralmente os livros de história apontam as especiarias, a
água em abundância, a mão de obra dócil e disponível, as safras agrícolas fartas e
constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o processo de
colonização e exploração concebido pela metrópole; no entanto, é preciso considerar,
também, outro fator que nem sempre é citado, mas foi a causa de muita luta e custou o
sangue de milhares de pessoas espalhados pelo sertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua
cata, os nativos, ou seja, os indígenas.
Quem vive em São Paulo não consegue imaginar o que foi feito do rio Tietê,
antigamente conhecido como Anhembi; tão temido pelos perigos das quedas d’água,
cachoeiras, pedras traiçoeiras destruindo canoas inteiras e ferindo mortalmente muitos dos
desbravadores que seguiam em busca de riquezas e expansão dos territórios. Hoje, o Tietê
é temido não mais pela força indomável da natureza, mas pela interferência do homem, que
o poluiu tanto, que ninguém se atreve, sequer, a tocar suas águas oleosas e escuras. Mesmo
83
assim, continua sendo homenageado em prosa e verso por muitos brasileiros, que o tomam
como símbolo da conquista bandeirante e de expansão das fronteiras do País.
Caminho natural das antigas expedições ao sertão do Brasil colonial, suas águas
caprichosamente nascem perto do mar, mas avançam interior adentro, até desaguar no
majestoso rio Paraná, percorrendo cerca de 1.100 quilômetros.
Resumidamente podemos dizer que o roteiro das monções paulistas foi
basicamente traçado pelos rios: Tietê, Piracicaba, Sorocaba, Grande (que era o Rio Paraná),
Pardo, Camapuã, Coxim, Jauru, Taquari, Paraguai-Mirim, que hoje é conhecido como Rio
Paraguai, Rio São Lourenço e Rio Cuiabá, Iguatemi e Paranapanema, conforme nos mostra
o Mapa.
Com tantos obstáculos, é preciso saber se todos chegaram ao destino, pois, nos
tempos das monções, muitos ficavam pelo caminho, mortos ou perdidos, mas os que
sobreviviam, enfrentaram meses de viagem, sem dia certo de chegada. Com isso, é possível
imaginar quantos acidentes ocorriam durante toda essa jornada: doenças, falta de alimentos,
picadas de mosquitos, ataque de animais ferozes; enfim, os desafios eram enormes,
lembrando uma verdadeira caça ao tesouro, ou melhor, às minas de ouro.
Mas, e os povos indígenas onde ficaram nessa passagem? Como eles faziam as
canoas? O que os monçoeiros levavam na viagem? Bem, eles faziam suas canoas de
grandes árvores encontradas principalmente nas matas do Capivari, que chegavam a medir
cerca de quinze a dezesseis metros de comprimento; mas o normal era encontrar árvores de
dez a doze metros. Dizem os estudiosos que algumas canoas chegavam a levar cerca de
cinquenta indígenas remeiros, quando não negros, a criadagem, além de alimentos. Havia
85
canoas somente para levar caças como antas, capivaras, aves etc. Na viagem, era
indispensável o feijão, a farinha, o toucinho, o sal e também o fumo de corda. Já as canoas
de pessoas importantes, carregavam, além desses alimentos, pedaços de presunto, vinho,
biscoito, açúcar, queijo, e até doce, como a marmelada. Como é possível perceber, eram
viagens longas que custavam muito, não só em esforço humano, como também em “prata”
e alimentos (GUIMARÃES, 2000, p. 24).
Com relação aos grupos indígenas, aqueles que não se aliavam aos monçoeiros
como forma de resistência, acabavam por atacá-los como é o caso, por exemplo, dos índios
caiapós na passagem por Camapuã; para defenderem o seu território esses indígenas
atacavam os monçoeiros com flechas venenosas.
Outro grande obstáculo aos desbravadores, frente à resistência indígena, eram as
ofensivas dos temíveis índios paiaguás. Quando conseguiam sobreviver aos ataques desses
hábeis canoeiros, os monçoeiros ainda enfrentavam outras dificuldades de sobrevivência,
em um meio tão hostil, como aqueles sertões bravios. Não era raro morrerem de fome, ao
perderem boa parte de seus alimentos para os animais selvagens ou em naufrágios
(GUIMARÃES, 2000, p. 35).
Valentes defensores do território também foram os índios cavaleiros guaicurus: na
passagem do rio Taquari eram quase imbatíveis, utilizando-se de estratégias de ataque aos
invasores que em nada ficariam a dever aos assaltos de cavalaria de muitos exércitos
daquela época.
O território dos caiapós era extenso, pois compreendia uma área localizada entre
as margens do rio Paraná até a serra de Maracaju, em Mato Grosso do Sul. Viviam em
Goiás, mais ao sul, e em Minas Gerais, no agora chamado Triângulo Mineiro. Por serem
indígenas andarilhos e inimigos dos brancos, foram aos poucos sendo expulsos de suas
terras. Saindo do território dos paiaguás, chegava-se à região dos índios guaicurus que
percorriam toda a região situada ao longo dos rios Taquari e Paraguai, em busca de caça e
pesca nos pantanais.
Os Guaicuru eram temidos e respeitados por todos, inclusive pelos seus antigos
aliados, os Guarani. Relata um estudioso que o governador espanhol Cabeza de Vaca, ao
conhecer os hábitos dos guaicurus enviou alguns índios guarani, seus amigos, na
companhia de um padre, aos seus aldeamentos: era uma missão de paz. O grande objetivo
era que aceitassem o rei de Castela como o seu senhor absoluto. A missão não obteve
êxito, pois foram recebidos em pé de guerra, fato que acabou por levar o povo Guarani a se
aliarem aos espanhóis e a lutarem contra os guaicurus. Reunidos em aproximadamente
86
duzentas canoas, partiram para a guerra contra os antigos amigos e aliados que, cientes da
perseguição armada, abandonaram os seus acampamentos e fugiram. Foram cercados mais
à frente e iniciada a luta: os guaranis recuaram, mas os guaicurus aprisionando um ou outro
inimigo, suspendiam-no pelos cabelos e lhe cortavam o pescoço com o auxílio de
mandíbulas de piranha. E para que não houvesse dúvida da ferocidade do ataque, a cabeça
dos inimigos era levada como troféu (GUIMARÃES, 2000, p. 72).
http://historiografiamatogrossense.blogspot.com/2009/04/atividades-de-historia-de-mato-
grosso_09.html
17 A acepção de acontecimento histórico aqui adotada baseia-se no entendimento de Le Goff e Nora para
quem o acontecimento tem como virtude unir sentidos esparsos num feixe as significações coerentes. Assim
sendo, o acontecimento é projetado na vida privada e oferecido sob forma de espetáculo. Com isto, os
acontecimentos políticos ou sociais, literários ou científicos, locais ou nacionais pertencem a uma categoria
bem delimitada da razão histórica, articulando um duplo sistema que se entrecruza: o sistema formal e o sistema
de significações.
18 O nome Chaco deriva da palavra Quechua e significa “Terra dos caçadores”, designando uma vasta planície
no centro da América do Sul, entre o planalto de Mato Grosso e o Pampa Argentino. Nos limites atuais, a
área geográfica do Chaco não coincide com a área cultural. Geograficamente, o Chaco é uma área de
depressão, limitada a oeste pelas montanhas Sub-Andinas, ao norte, pelo maciço central do Brasil e pelas
Serras de São Carlos e São José ao sul de Chiquitos. A leste é limitado pelos Rios Paraguai e Paraná e pelas
montanhas que se erguem ao longo do rio Paraguai. Ao sul, ele termina no sopé das Serras de Córdoba e
Guayasán. Entre estas montanhas e o Rio Paraná, existe uma ampla área onde o Chaco se integra sem limites
demarcados para dentro do Pampa. Culturalmente, o Chaco possui uma cadeia de montanhas Sub-Andinas,
estendendo-se ao norte e ao sul das cataratas do Rio Pilcomayo dentro do habitat dos Chiriguanos e Chané,
cujas tribos, cultural e linguísticamente, têm pouco ou nada em comum com os habitantes do Chaco. Até
poucos anos atrás (1935-37), muitos Chané tinham seus povoados no baixo rio Pirapiti, mas foram
assentados pelo exército paraguaio próximo a Lopes de Filippis, no coração do Chaco. Também por razões
culturais, o Rio Pirapiti e os pântanos de Izozog marcaram o limite noroeste de Chaco. No leste, entretanto,
havia uma correspondência natural e cultural das fronteiras até o final do século XVII, quando as invasões
dos Mbayá, na região leste do rio Paraguai, anexaram a área cultural do Chaco às terras Guaranis situadas
entre os rios Apa e Miranda (MÉTRAUX, 1963, p. 197-370).
88
que exprimem o vasto sistema que constitui a atualidade (NORA, 1988, p. 179). A
propósito, conviria sublinhar que neste trabalho o importante não é saber o que se torna ou
não atual para os Terena, mas o que, neste duplo sistema, se entrecruza: o sistema formal e o
sistema de significações. Assim, o acontecimento, não desprovido de poder, tem realmente
sentido para o grupo, na medida em que ressignificam, nesse jogo de interações, os vários
acontecimentos que são tanto extrínsecos como intrínsecos a sua ordem sociocultural.
Nesse sentido, concordamos com Nora quando afirma que:
Seguindo ainda nesta proposição teórica do autor acima citado, se, por um lado, a
modernidade segrega o acontecimento, por outro, e ao contrário, as sociedades tradicionais
preferiam torná-los especiais; assim, o acontecimento vivido nessas sociedades, por
constituir uma rotina religiosa, era visto como uma não história. Com isso, a partir da
instituição do poder, propagado principalmente pela instituição religiosa, procurou-se
acabar com esta inovação, isto é, com a importância dada ao acontecimento como sendo
único e sagrado. Logo, para que essas sociedades não desaparecessem “perpetuou-se por
um sistema de novidades, cuja finalidade consistia em negar o acontecimento, pois esse
acontecimento era precisamente a ruptura que colocaria em questão o equilíbrio sobre o
qual elas estariam fundamentadas” (NORA, 1988, p. 187).
No caso da trajetória histórica dos Terena, os acontecimentos significativos que
desencadearam o fator de mudança na sua organização social, intensificando-se
principalmente a partir do século XX, estavam, muitas vezes, além da ordem interna do
grupo, ou seja, independe da vontade intrínseca e do desejo de mudança. A necessidade de
sobrevivência e possibilidade de se reproduzirem culturalmente, estabelecia na ação uma
reação imediata e, por conseguinte, o deslocamento ou a absorção de novos elementos
culturais, criando mecanismos próprios de adaptação que os permitissem sobreviver.
Conviria observar que tal ação não é exclusiva dos Terena. John Monteiro, fazendo um
estudo sobre os Guarani, durante os séculos XVI e XVII, e apontando alguns elementos
críticos de sua história durante os dois séculos de colonização ibérica, afirma que, a respeito
da experiência guarani, são “as estratégias indígenas que, em cada contexto de inserção nas
89
estruturas coloniais, buscavam forjar espaços para poder preservar ou mesmo recriar o
‘modo antigo de viver’” (MONTEIRO, 1999, p. 476).
Com isso, na tentativa de estabelecer a ligação com o passado e para
entendimento do presente vamos nos reportar, independentemente de uma ordem
cronológica, aos acontecimentos e eventos mais significativos, remontando, assim, a alguns
aspectos relacionados aos Terena a partir do século XVII, o que propiciará obter uma
compreensão mais alargada dos principais mecanismos de inserção, adaptação e
ressignificação construídos pelos Terena ao longo de sua trajetória histórica.
De acordo com o Pe. Sánchez Lavrador, os grupos Terena, do séc XVII, não
foram devidamente estudados, porque, embora as cartas Anuas [...] [fossem] tão férteis de
informações sôbre os muitos grupos chaquenhos, [elas] quase nada nos dizem sôbre a situação dos Terênas
(apud OLIVEIRA, 1960, p. 22). No entanto, pode-se observar que, no processo de
expansão da grande família Aruak, o subgrupo Terena se diferenciava, relativamente, dos
demais por desenvolver um mecanismo próprio de organização e adaptação. Como
exemplo disto, temos, já no século XVIII, o fato de que, enquanto os Layaná eram
essencialmente agrícolas, os Terena, segundo Susnik, já haviam desenvolvido uma
sociedade classista. (SUSNIK, 1971, p. 143-144)
Silva (1949) afirma que os primeiros contatos que os Terena tiveram com outras
culturas tenham ocorrido, provavelmente, entre 1740 e 1750, quando foram contatados
pelas primeiras expedições espanholas e portuguesas, que buscavam, por meio do Chaco,
um caminho para o grande Império Peruano. No entanto, é provável ainda que os contatos
com esses e os demais grupos, Guaná e Mbayá, tenham se dado bem antes dessa data
(SILVA, 1949, p. 275).
No final do século XVIII, dois acontecimentos históricos tiveram importância no
processo de expansão dos subgrupos Aruak. O primeiro foi marcado pela exploração de
ouro, que resultou na abertura de empresas mineradoras, vindo a se expandir inicialmente
em Minas Gerais, depois em Goiás e Mato Grosso. E o segundo, pela expansão do
pastoreio, que se consolidou em decorrência de uma área ampla e propícia para a criação de
gado. Isso resultou em um processo de urbanização, criando-se, assim, novos núcleos
populacionais. De acordo com Ernani Bruno, ambos os acontecimentos, porém,
constituíram os fatores econômicos e os suportes fundamentais desse alargamento das fronteiras humanas na
América Portuguesa, [que foram] complementados com a ocupação do extremo-sul, vindo ao encontro
dos interesses políticos de Portugal de povoar essa região (BRUNO, 1967, p. 91-92).
90
Aliado aos acontecimentos históricos, conforme relata Cardoso de Oliveira
(1960), o processo de assentamento dos subgrupos Chané em território brasileiro foi
marcado por três ondas de expansão humana, que influíram, de certa forma, na vida destes
grupos e, de modo especial, na dos Terena.
A primeira, denominada pastoril, teve início quando os subgrupos Aruak
cruzaram as margens orientais do Rio Paraguai. Nessa ocasião, a região do sul de Mato
Grosso19 estava recebendo uma leva de pessoas vindas do Nordeste, resultando, assim, na
primeira onda de ocupação das terras do sudoeste brasileiro, visto, até então, como um
caminho dos bandeirantes ou local para capturar índios ou para cruzar a região em direção
ao Império Inca. Naquele tempo, porém, a área formada pelos afluentes da margem
esquerda do Rio Paraguai, onde é hoje o atual território brasileiro, estava parcialmente
ocupada por “gado vaccum e cavalar”, cujas “primeiras cabeças foram trazidas pelo Alvar
Nunes Cabeça de Vaca” (OLIVEIRA, 1960, p. 58-59 apud MUSSI, 2006, p. 87).
O autor acrescenta ainda que a área ocupada pelos Chané era conhecida na época
por Itatins, nas terras sul-mato-grossenses. Essa região foi considerada como ponto final da
penetração ou como proveniente de um encontro de dois segmentos humanos distintos,
procedentes do nordeste da região, entre os Rios Paraíba e Grande. O deslocamento,
portanto, ocorria simultaneamente: um grupo descia rumo ao sul, atravessando o Paraná e
penetrando na região de Campos de Vacaria e, o outro, seguia rumo ao oeste até Coxim,
com o intuito de receber elementos cuiabanos e, quem sabe, assim fechar o círculo que
compreende a região dos rios Taquari e Miranda (OLIVEIRA, 1960, p. 59 apud MUSSI,
2006, p. 87). Desse modo, segundo o autor, ao que tudo indica, esses grupos só sentiram as
consequências da invasão pastoril, na metade do século XIX, isto é, um pouco antes da
Guerra do Paraguai. (OLIVEIRA, 1960, p. 58-59 apud MUSSI, 2006, p. 87).
Em fins do século XIX e início do século XX, alguns eventos históricos foram de
considerável relevância na formação da sociedade sul-mato-grossenses, mais
especificamente das comunidades indígenas. Temos assim, entre 1864 e 1870, de acordo
com Mello: - A guerra do Paraguai; a invasão de Mato Grosso; ataque e ocupação do Forte Coimbra;
suas conseqüências desastrosas para Mato Grosso; a vitória do Brasil nos campos de batalha e a
recuperação do Sul da Província; e por último, o Tratado de Limites com a Bolívia, ocorrido em
1867, em que o Brasil ficou devendo aos Guaicuru a eterna gratidão pela delimitação
geográfica da região sul do estado de Mato Grosso (MELLO, 1966, p. 15).
19 O Estado de Mato Grosso foi dividido, em 1977, em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
91
Durante quase cem anos, mais especificamente entre 1870 e 1955, ocorreram
ainda alguns acontecimentos que também merecem registro: a tentativa de um acordo de
paz com o Paraguai; a política de reconstrução do Forte; a decadência das obras de defesa;
a guarnição e as velhas instalações no recinto do Forte reduzidas a ruínas; o interesse pela
preservação destas ruínas; a restauração do pavilhão da administração para futuras
instalações do Museu Histórico do Forte; e, para finalizar, a decadência da fé. Esta última,
no entanto, estimulou o trabalho missionário20 junto aos grupos indígenas, que viviam
dispersos. Essa atividade visava, sobretudo, catequizar esses povos para torná-los mais
“civilizados”, transformando-os em uma população produtora de bens de consumo.
Embora tentasse o resultado não foi tão positivo assim, pois, conforme nos assegura
Cardoso de Oliveira, no início do século, a população indígena estava espalhada pelas
fazendas da região e as suas aldeias estavam comprimidas por elas (OLIVEIRA, 1960, p.
68).
O surgimento da segunda onda humana na região dos Chané, entre os rios
Miranda e Aquidauana, foi considerada a mais incrementada. Segundo o autor, depois da
guerra do Paraguai, em 1869, uma parte do exército brasileiro, que vinha do Nordeste e da
Bahia, preferiu fixar residência lá mesmo, a voltar para as terras de origem. Além destes
contingentes, também começaram a entrar na região famílias de paraguaios que, derrotados
na guerra, visavam encontrar uma situação econômica melhor (OLIVEIRA, 1960, p. 59-60
apud MUSSI, 2006, p, 87-88).
Entretanto, essa segunda onda propiciou aos Terena uma situação dramática.
Cardoso de Oliveira, apoiando-se nos registros de Rondon, nos informou que o referido
sertanista denominou o período como o ‘tempo do cativeiro’21, que se estendeu até a criação
do Serviço de Proteção aos Índios. Segundo o autor, Rondon tomou conhecimento de tal
situação, no período da construção das linhas telegráficas, o que resultou na implantação do
Serviço de Proteção aos Índios, consumado em 1910 (OLIVEIRA, 1960, p. 61 apud
MUSSI, 2006, p. 87).
A terceira onda, considerada mais contemporânea, teve início com a “ligação São
Paulo - Porto Esperança pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil”. Essa ligação rendeu à
20Sobre o trabalho das missões dos capuchinhos entre os Guaná no Sul-Mato-Grossense, ver Schuch (1998).
21Conforme consta nos Relatórios de Rondon, Cardoso de Oliveira relata que os índios Terena eram os mais
dóceis de toda raça ameríndia que ele conheceu [Rondon]. Não manuseavam mais o arco e a flecha, andavam
vestidos, cultivavam a mandioca da qual faziam a farinha, plantavam banana, batata, a cana-de-açúcar e o
algodão, com que fabricavam as redes e os tecidos. Nos aldeamentos, plantavam laranjeiras, limoeiros e
goiabeiras. Criavam gado vacum e cavalar, sendo considerados excelentes vaqueiros. Por isso, segundo
Rondon, que eram tão solicitados pelos fazendeiros, que os remuneravam, mas acabavam por explorá-los.
Daí a nova espécie de escravidão (OLIVEIRA, 1960, p. 68-69 apud MUSSI, 2006, p. 89).
92
região um aumento considerável no seu desenvolvimento econômico, que passou a atrair
maior contingente humano. Isso resultou em uma mudança na paisagem regional, com a
implantação de novos núcleos populacionais impondo, assim, um caráter especial à configuração
indígena daquela extensa área do Brasil meridional (OLIVEIRA, 1960, p. 61 apud MUSSI, 2006,
p. 88).
Como se pode depreender, o desenvolvimento na região impôs aos índios,
especialmente aos Terena, uma configuração especial. A palavra sublinhada é forte, porém,
não menos verdadeira, uma vez que as consequências mais acentuadas atingiram em cheio
o modo de vida deste grupo, vindo a refletir também na sua organização social.
(OLIVEIRA, 1960, p. 61 apud MUSSI, 2006, p. 88).
Conforme já foi mencionado, há aspectos relacionados aos Terena do século
XVII que, embora não tenham sido devidamente estudados, apontam para alguns
caminhos interessantes, principalmente no que se refere aos grupos Chané. Pode-se
observar que no processo de expansão da grande família Aruak, o subgrupo Terena se
diferenciava, relativamente, dos demais por desenvolver um mecanismo próprio de
organização e adaptação. Não seria exagero enxergar, neste processo de mobilidade
espacial, algumas nuanças culturais que podem sugerir, já naqueles idos, uma dinâmica
intrínseca aos Terena que os tornava mais afeitos à “negociação” de suas pautas e à
mobilidade de suas fronteiras etno-culturais.
No princípio das migrações Mbayá e Chané, os Terena voltaram-se para as terras
mato-grossenses, especialmente no período em que se intensificou a colonização
portuguesa. Segundo Susnik, “dos terceras partes de los Terenos emigró”, ficando um pequeno
grupo no Chaco e um outro na margem oriental, sob a jurisdição de Vila Real. Assim,
quando os grupos dos Layaná e dos Charavaná abandonaram seu habitat no Chaco, os
Terena se deslocaram para o sul, buscando estabelecer um contato vantajoso com os
colonizadores espanhóis. É provável que nesses deslocamentos tenha havido um
desmembramento do subgrupo Terena, um se mantendo próximo aos fortes e o outro,
mais afastado (SUSNIK, 1971, p. 159-160; Apud MUSSI,2006, p, 77).
Susnik afirma, ainda, que o desmembramento dos Terena em pequenos cacicatos
ocorria devido à falta de coesão social para continuar sua tradição de expansão dos grupos
pela região chaquenha, pois diante de uma outra realidade e da necessidade de adaptação,
eles davam preferência à classe de guerreiros e à dos líderes guerreiros, menosprezando,
assim, a orientação socioeconômica anterior, nas mãos dos chefes de metades. Deste
modo, a autora não descarta a possibilidade de este grupo Terena, da zona oriental do
93
Chaco, ter mantido contato com os Terena assentados nas terras portuguesas (SUSNIK,
1971, p. 161).
Os Terena procuravam manter contato com a guarnição do forte Borbón. Em
contrapartida, esta guarnição também preferia manter boas relações com os Terena, pois
era nestas visitas periódicas que ambos os lados se beneficiavam. A guarnição de Borbón,
conhecida também como Forte Olimpo, lucrava não só por manter a ordem, como
também aproveitava as visitas para se manter informada sobre os movimentos dos Mbayá e
dos portugueses. Já com relação aos índios, o Forte provia os alimentos para a manutenção
da viagem. No entanto, o que se constata é que este sistema de “visitas” vantajosas para
ambas as partes, não levou a nenhuma estabilização das relações “Tereno-hispanas”, ficando,
assim, somente em um contato “periférico, amistoso e esporádico” (SUSNIK, 1971, p.
160-160 apud MUSSI, 2006, p. 77).
Esse grupo, constituído pelos Mbayá e Terena, além de despertar o interesse das
guarnições, também era bem visto pelos missionários jesuítas que, no século XVIII,
reconheciam neles a possibilidade de serem facilmente reduzidos, isto é, convertidos à fé
cristã, pois eram considerados “mais racionais”, comparados aos Guaicuru (SÁNCHEZ
LAVRADOR, t.II, p. 275).
No entanto, a constatação feita por esses missionários, a princípio, não chegou a
se confirmar, uma vez que os indígenas estavam sempre adotando novas estratégias de
atuação, conforme era conveniente ao grupo. Exemplo disso é o fato ocorrido no ano de
1790, em que, de acordo com Susnik, os caciques Gualeroo, Chochosi, Chuonagiri y Samooré
vieram à Villa Real22 solicitar um local para assentamento próximo às terras de Belén23 e um
catequista (SUSNIK, 1971, p. 160). Essa iniciativa, no entanto, causava uma certa
preocupação às autoridades da época, que receavam a possibilidade de se intensificar a
aglomeração dos Chané na região Oriental. Os Chané, mais especificamente os Terena,
apresentavam uma característica peculiar que visava estabelecer relações oportunistas de
conveniências no intuito de obter benefícios próprios. Como exemplo disto, podemos citar
o caso ocorrido com os Mbayá. Quando convinha aos Terena, estes uniam-se a eles para
participarem de assaltos às estâncias dos "criollos" (SUSNIK, 1971, p. 160) . Assim, ao
“relaxar” as boas relações entre os Mbayá e os Terena, devido ao interesse mútuo pela
22Segundo o trabalho de pesquisa realizado por Schuch, a Villa Real ficava na margem oriental do Rio
Paraguai, cerca de cinco léguas acima da foz do Rio Ipané, e foi fundada pelos espanhóis, em 1777
(SCHUCH, 1995:54).
23Sobre a história da missão de Belém, Schuch recomenda ver Kersten (1968). Entretanto, ela fornece a data
de fundação, 1760, na margem oriental do Rio Paraguai, mais especificamente sobre o Rio Ypané.
94
posse do cavalo, meio necessário para todas as locomoções, começaram a ocorrer disputas
sangrentas por vinganças mútuas (SUSNIK, 1971, p. 160 apud MUSSI, 2006, p. 78).
Por parte dos Mbayá, eles armavam emboscadas para os Terena na margem do
Rio Apa e na entrada das estâncias dos “criollos”. Já os Terena, para se vingarem dos
Mbayá, espalhavam rumores de que eles estavam assaltando e obtendo, às custas dos
Mbayá, os correspondentes “obséquios” das guarnições da fronteira. Com o intuito de se
defender, os Mbayá negavam as falsas notícias. Desse modo, apresentavam-se entre esses
dois povos indígenas duas características, basicamente “etnosociales: el agresivo, dominador y
señoril de los Mbayáes y el observador, aprovechador e inestable de los Chanés” (SUSNIK, 1971, p.
161). Tais conflitos, geralmente, resultavam em novos deslocamentos.
Em 1807, um grupo Terena, na pessoa do cacique Bautista, volta a pedir ao
Governador Ribera um assentamento definitivo. Este lhes concedeu as terras do Rio Apa, a
fim de poder mantê-los sob seu controle e separados da população "criolla". O grupo não
chegou a formar uma comunidade reducional, mas conquistou o direito de fixar-se nos
campos de São Domingo e Sajutá24. Já o outro grupo dos Terena seguiu para as terras de
Coimbra25, assentando-se em caráter provisório na estância de Tevego26. Esse grupo foi
utilizado pelas forças governamentais para espionar os movimentos portugueses até
Miranda27. A convivência dos Terena com os habitantes de Tevego trouxe consequências
inevitáveis, porque ocorreu uma mestiçagem considerável (SUSNIK, 1971, p. 160-161 apud
MUSSI, 2006, p. 77).
É provável que parte deste grupo, que acompanhava os movimentos dos
portugueses, se tenha estabelecido em Miranda, pois, segundo consta na Criação da DGI
(Diretoria Geral dos Índios), em 1845, chegou a constituir uma só aldeia com cerca de
2.600 a 2.800 índios, formada basicamente por Terena, Layana e Quinikinau (Criação da
DGI,1869, p. 350).
A tranquilidade nos assentamentos Terena era praticamente impossível por dois
fatores. Primeiro, pelas acusações dos "criollos" de roubo de gado e, segundo, pelas
constantes e vingativas perseguições dos Mbayá. O grupo Terena chaquenho, das
imediações do Forte Borbón, aproximou-se, em 1820, de Villa Real e pediu asilo, sendo-
lhes cedido um local próximo à lagoa de “Aquidabanigui”28. No entanto, próxima a esta, os
24Região de Corumbá.
25Região de Corumbá.
26 Região próxima a Corumbá.
27A cidade de Miranda fez parte do Estado de Mato Grosso até o ano de 1970; depois da divisão do Estado,
95
Terena e Mbayá se uniram para saquear algumas estâncias, em busca de cavalos. Ambos,
porém, foram descobertos e castigados, sendo alguns presos e levados a Assunção
(SUSNIK, 1971, p. 161-2 apud MUSSI, 2006, p. 77-78).
Já o outro grupo Terena, manteve-se afastado dos fortes por um longo período,
assentando-se em Naranjatí, perto de Horqueta29, em 1845. Quando os colonizadores os
descobriram, começaram a formular acusações contra eles. A primeira refere-se à entrada
desse grupo nas casas das índias, cujos maridos estavam trabalhando nos ervais; a segunda
era de que os Terena tinham o hábito de praticar roubos de mulheres30; a última, que era
considerada a mais séria, referia-se ao aumento demográfico dessa população, que passava
a adquirir as melhores terras. Assim, apelava-se para o desalojamento dos Terena, com o
intuito de obter seu espaço.
A luta sucessiva por um espaço obrigava cada vez mais esses grupos a se
deslocarem, abandonando suas terras, para fazerem novas solicitações. Quando isso
ocorria, quem sempre estava à frente das negociações eram as lideranças, que geralmente
tinham a sua representatividade nas mãos de mais de uma pessoa. Como exemplo disso,
podemos citar o fato que aconteceu em 1841, em que, em decorrência das acusações, foi
solicitada a presença dos três principais caciques “Luciano, Purutué e Ticú”, para lhes
comunicar a mudança obrigatória do grupo. Não lhes restou outra opção a não ser o
deslocamento e a saída de suas terras no Paraguai, com toda sua plantação, que serviu de
alimento para a guarnição do Forte Olimpo. Segundo Susnik, a consequência desses
conflitos teria resultado na desintegração do grupo. No entanto, a autora não fornece
maiores indicações de como isto realmente ocorreu, pois ela não explicita o que se entende
por desintegração, isto é, se essas pessoas haviam morrido ou se integrado a outras
populações. A única informação mais concreta que obtivemos com relação a tal
deslocamento, é que o lugar abandonado pelos Terena de Naranjati foi logo ocupado pelos
Mbayá Monteses (SUSNIK, 1971, p. 162-163).
Podemos constatar, por meio desse processo de expansão, que os vários grupos
étnicos que viveram no Chaco, mais especificamente no Alto-Paraguai, puderam criar
mecanismos de defesa que propiciaram não só a sua sobrevivência, como também
permitiram a sua reprodução cultural. O contato com os espanhóis e, posteriormente, com
os portugueses, a partir do século XVI, foi marcado por uma relação interétnica em que os
Chané tiveram uma contribuição considerável. Assim, os contatos se intensificaram a partir
31 Segundo as informações de Bach, a Cidade de Miranda foi fundada no ano de 1797, por Caetano Pinto de
Miranda. A posição topográfica fornecida pelo Barão de Melgaço, era de 20º 14’ latitude sul, 58º 24’16
longitude oeste do País. Em 1857, ao que parece, a cidade tinha conseguido, segundo o autor, um
desenvolvimento razoável. No entanto, em 1865 foi completamente destruída pelos paraguaios (BACH, 1916,
p. 03).
97
Com a expansão da ocupação das terras sul-mato-grossenses, surgiu a necessidade
de se instituir a delimitação de reservas para os índios Terena, que se encontravam nas
áreas próximas ao Município de Miranda. O Estado era, e é ainda, o principal órgão
responsável pela delimitação das reservas, cuja regulamentação ocorreu através de Decretos
e Atos ou de Resoluções expedidas pelas Câmaras Municipais de Miranda e Aquidauana.
99
maior parte da população autochtone”. Nesse período, as aldeias encontravam-se situadas da
seguinte forma: “no Naxedaxe, a seis léguas da villa de Miranda; no Ipêgue, a sete e meia;
na Cachoeirinha, e em outro lugar a três léguas, constituindo um aldeamento chamado
grande, além de outros pequenos centros” (TAUNAY, 1946, p. 19).
Entretanto, a distribuição dessas comunidades não teve uma longa duração,
porque assim que ocorreu a invasão paraguaia, eles tiveram de se deslocar novamente.
Segundo informa Taunay, foi em dezembro de 1864 que os paraguaios trocaram os
primeiros tiros na grande região de Miranda, de modo que cada tribo manifestou as suas
tendências e índoles como pôde (TAUNAY, 1946, p. 26). Enquanto uns se mostravam
indiferentes, outros seguiam na linha de frente, junto com o exército guerreiro.
Silva afirma que os cronistas da Guerra do Paraguai relataram que alguns índios
Terena e Kinikinau, que lutaram contra o Paraguai, foram encontrados sendo atacados por
essas tropas quando se encontravam entre os contingentes brasileiros. Do outro lado, e
também mostrando a sua versão dos fatos, o autor disponibiliza uma variedade de
depoimentos orais em que os Terena relatam a sua participação nessa batalha. Em
momentos extremos como foi o caso da Guerra do Paraguai, é possível identificar os
mecanismos de apropriação de valores e atitudes que são estranhas às suas pautas culturais.
Exemplo disso é a maneira como os Terena se utilizavam desses momentos para enfrentar
os seus conflitos internos, segundo as novas circunstâncias que ora se apresentavam. No
excerto a seguir, encontram-se algumas evidências que demonstram o quanto esse grupo
vinha adotando condutas que sugeriam esse mecanismo de adaptação:
100
punição. Por se valerem, ao longo de sua história, de experiências para formação de
alianças, dificilmente esse povo se deslocava sozinho, havendo sempre um ou outro grupo
acompanhando-os. Assim, aproveitavam destas “boas relações” de convívio e das
chamadas alianças para poderem se reorganizar internamente buscando sempre a adaptação
e a sobrevivência. Em outras palavras, os Terena, mesmo em condição adversa à ordem
interna, e, portanto, intrínseca ao grupo, aproveitam-se de fatores externos para se
reorganizarem internamente. Em se tratando de guerra, os Terena serviram em muitos
outros momentos de sentinela seguindo na linha de frente. Quando convinha, sabiam
reconhecer a força bélica de outros, deixando-os à frente de negociações, como ocorreu
com os Mbaya, Guaicuru e agora com os Cadiwéu.
Além da participação deste grupo do Bananal, nos campos de batalhas, também
tivemos a participação dos Terena da área do Cachoeirinha, conforme nos relata uma
narradora acadêmica indígena Terena, - acadêmica indígena que participou como
mediadora no desenvolvimento desta investigação:
É possível também notar, por meio deste depoimento, que a trajetória de vida dos
Terena sempre foi marcada por uma ligação forte entre os antepassados e a família; nesse
caso, representado pela figura do médico-feiticeiro que, mesmo em campos de batalha, não
deixava de estar presente. Assim essa rede social alternava suas funções de acordo com as
101
necessidades, ora guerreando junto às tropas nos campos de batalha, ora trabalhando nas
roças de lavouras, ou ainda desbravando as matas virgens na fixação de postes para
instalação das linhas telegráfica. Além disso, também não mediam esforços para abrir
estradas na construção dos trilhos, que ligaria todo Estado, de um extremo a outro. Como
a guerra não representava para todos um símbolo heroico e causava muito sofrimento,
alguns grupos indígenas preferiram fugir a encarar a luta, deslocando-se para longe dela,
como nos relata Taunay, na sua Retirada da Laguna.
Sem ter muita opção de escolha, os grupos Chané, por exemplo, refugiaram-se no
planalto da Serra de Maracaju, fixando e montando seus acampamentos nos morros. De
acordo com Taunay, neste período reinava verdadeira fome entre os fugitivos da guerra.
Embora sofressem com a miséria, segundo ele, ainda era melhor do que cair em mãos
paraguaias, pois estas avançavam por toda parte cometendo as maiores atrocidades
(TAUNAY, 1931, p. 32-34). A serra tem a localização de 150º a 180º estendendo-se do
Norte ao Sul, ininterruptamente, isto é, ela vai da ponta da água Branca, antes de Coxim,
até Aquidauana. Rondon a reconhece como sendo a serrania de que fala Taunay, quando
descrevia a marcha das forças expedicionárias que se deslocavam do Taquari a Miranda. Foi
nestas matas que as populações indígenas nas aldeias do Ipegue, Naxedaxe e Cachoeirinha,
encontraram refúgio seguro contra a invasão paraguaia (RONDON, 1949, p. 44).
A estratégia da retirada do grupo Chané para a Serra de Maracaju, conforme
afirmou Taunay, foi comandada por um índio kinikinau da aldeia Agaxi, com pouco mais
de vinte anos. Este comandou a mudança ordenando às mulheres, crianças e velhos para
carregarem tudo quanto havia de transportável, e que seguissem o caminho que ia em
direção ao “porto do Canuto, no rio Aquidauana, d’ahi a oito leguas". Assim, Pacalalá, como era
conhecido o líder kinikinau, pediu que seus patrícios roçassem e plantassem. O trabalho fez
surgir, não muito tempo depois, “as primeiras cargas de milho e feijão” (TAUNAY, 1931, p. 28-
30).
Espalhada a notícia de que havia alimentos naquela região, não tardou que outras
populações de brancos e índios começassem a agregar-se a eles, ficando ali estabelecidos
por mais ou menos cinco anos, esperando com paciência pelo fim da guerra que, segundo
Taunay, foi “tão deslealmente encetada quanto ferozmente conduzida” (TAUNAY, 1931,
p. 35).
Conforme nos informa ainda o autor, os diversos acampamentos que se
instalaram na Serra de Maracaju eram constituídos de “ranchos vastos e commodos”, de modo
que aos poucos ia se regularizando o “modo de viver daquelas colonias hybridas”, de brasileiros
102
civilizados e indios, sobretudo “kinikináus, a que se haviam agregado guanás, terenas e laianos”
(TAUNAY, 1931, p. 35).
Silva, baseando-se no relato de um informante do Bananal, menciona que os
Terena não eram desprovidos politicamente de lideranças expressivas, visto que havia um
grande chefe Tovoolé, nascido em área chaquenha, e que possuía patente de capitão do
Exercito Imperial, concedida por D. Pedro II (SILVA, 1949, p. 281). Ainda a esse respeito,
Taunay também relatava sobre o chefe Terena, José Pedro, que sabia ler e escrever, este capitão;
mantinha em sua aldeia severa disciplina. Organizara uma escola de meninos, em que figuravam os seus
dous filhos e sempre se mostrava affeiçoado aos brasileiros. O mesmo autor relata também que tal
educação, desprendida por José Pedro, se deve aos préstimos virtuosos do missionário frei
Mariano de Bagnaia, a cujas vistas se educara, na aldêa dos Kinikinaus do Bom Conselho, além do
rio Paraguay (TAUNAY, 1931, p. 13). Assim, por tal dedicação e esforço o chefe Terena, em
1867, recebeu do Governo Imperial uma nomeação para capitão.
Conforme afirma Silva, é possível constatar que, naquela época, os Terena já
estavam ligados à organização política brasileira (SILVA, 1949, p. 281). Além disso, o autor
baseando-se nas informações de Bach, afirma que em 1898, tais grupos já apresentavam
certa dependência em relação ao comércio brasileiro32 (SILVA, 1949, p. 281).
Voltando ao processo de expansão dos Terena, é possível constatar que esses
grupos se adaptavam aos meios mais diversos, de acordo com a sua necessidade, visando
sempre locais favoráveis e alianças amistosas. Deste modo, de acordo com Taunay, no fim
de 1865, eles se encontravam bem no interior das matas e dispersos nos morros, conforme
já foi anteriormente mencionado, espalhados por toda a zona de Miranda, de modo a
dificultar o acesso dos paraguaios. A área que ficou sob o domínio destes últimos abrangia
“desde os pantanáes do Coxim, até o rio Apa de um lado, e de outro, desde o Paraguay até
os campos de Camapuan e Vacaria”. Os pontos extremos eram compreendidos entre
“Souza, Espenidio, Forquilha33, Nioac, Ariranha e Desbarrancado” (TAUNAY, 1931, p. 37).
Assim, pouco depois de iniciada a Guerra do Paraguai, Altenfelder (1949), de
acordo com as informações dos próprios índios, afirma que suas aldeias estavam
localizadas da seguinte forma:
32 A este respeito, nos capítulos subsequentes, retomaremos alguns destes elementos para discutir a
contribuição da mão-de-obra indígena nas destilarias do Estado e a relação multifacetada de exploração junto
ao comércio local de Miranda.
33Conviria observar que Forquilha é também mencionado no depoimento do índio Terena da aldeia do
Bananal.
103
[...] Ipegue (em área compreendida entre as atuais aldeias de Ipegue e
Bananal); Imokovookoti (nas imediações da atual aldeia de
Cachoeirinha); Tuminiku (nas proximidades da atual aldeia de Bananal);
Coxim (próxima ao córrego de Taquarí); Naxe-Dane (nas proximidades
do córrego do mesmo nome); Háokoé (nome Terena para a fruta do
pindó; situava-se a aldeia a uma légua de Tuminiku); Moreira e Akuleá
(ambas nas proximidades de Miranda); Kamakuê próxima à atual aldeia
de Duque Estrada; Brejão (próxima a Nioaque); Limão Verde (próxima a
Aquidauana); Cerradinho (na área do atual Município de Campo Grande)
(SILVA, 1949, p. 281).
O autor acrescenta ainda que neste período, em 1867, estimava-se de três a quatro
mil índios terena, o que confere com as informações fornecidas por Azara, no período da
invasão. Por outro lado, Silva, baseando-se em Bach (1916), informa, de acordo com o
registro de 1898, que a população destes índios chegava a variar entre doze e quatorze mil,
sendo que os habitantes do Município de Miranda atingiam um total de 15 mil,
transparecendo, assim, certo exagero. No entanto, de acordo com o recenseamento de
1872, toda a Província de Mato Grosso não tinha mais de “60 mil habitantes” (SILVA,
1949, p. 282). Aliado a este fato acrescente-se ainda que, segundo o censo realizado em
1920, a população de Miranda chegaria a atingir cerca de 5.055 habitantes.
Quando Bach esteve na área de Miranda, segundo Silva, visitou as aldeias “Agachy,
Bodoquehina, Morrinho, Morro, Ipegue, Sant’Ana (Naxe Dane) e Caytapé”, que chegavam a
constituir um total de doze aldeias. A população destas, segundo o referido autor, estava
estimada em um total de 2.348 índios (SILVA, 1949, p. 282). Desse modo, Altenfelder
constatou que com este número não houve grandes variações na densidade demográfica
dos Terena, naquela época.
Dessa forma, pode-se afirmar que o processo de expansão dos Terena não
ocorreu de forma isolada, mas dentro de um contexto maior, cujos motivos estavam
interligados a vários fatores, como, por exemplo, os deslocamentos dos Mabayá e,
principalmente, com o processo de colonização, que ocorreu primeiramente no Paraguai e
posteriormente no estado sul mato-grossense, originando disputas pela terra. Assim,
observa-se que todos os deslocamentos deste grupo também estiveram estreitamente
ligados à expansão e à integração de sua família de origem, a Aruak.
É possível notar, ainda, que apesar dos sucessivos deslocamentos e efetivos
contatos com os colonizadores espanhóis e portugueses, os Chané puderam criar
mecanismos de defesa que propiciaram não só a sobrevivência deste grupo como também
permitiram a sua reprodução cultural. Conviria observar que os Chané, mais
104
especificamente os Terena, mesmo antes de haver contatado os colonizadores, já
desenvolviam mecanismos próprios de reprodução e expansão de sua cultura. Isso ocorria
não só através da absorção de elementos adotados por outros grupos, como também por
meio de mestiçagens ocorridas por meios de sucessivos contatos interétnicos, como, por
exemplo, as alianças matrimoniais sucedidas com os Mbayá.
34 O autor Gilmar Arruda, ao fazer um estudo sobre Cidades e Sertões: entre a história e a memória, em sua
tese de doutorado, chama a atenção para o fato de que o sertão era visto como “imemória” o espaço da
fantasmagoria; do desconhecido. Com a “tomada” do sertão, extingue-se um modo de vida; uma visão de
mundo; uma memória. Os mapas evidenciam formas peculiares de representação espacial de construção da
memória social no Brasil, ou seja, mapas e relatos “representam” a oposição sertão e civilização. Há uma
necessidade de estabelecer o esgarçamento da historicidade nas representações sociais do embate: cidade e
105
militares, que vieram a cumprir a respectiva missão ligando os estados de Norte a Sul,
sendo estabelecidos os seguintes marcos: o Rio Grande do Sul estendeu sua rede telegráfica
até às respectivas fronteiras; o Paraná chegou até a foz do Iguassú; as do Norte levaram o fio, interior
a dentro, ligando as cidades e vilas mais importantes; a de Goiás cruzou o fio do Triângulo Mineiro,
atravessando o rio Paraíba, até chegar à margem direita do Araguaia, onde se ligou com a linha que
Gomes Carneiro trouxera de Cuiabá à margem esquerda desse famoso rio (RONDON, 1942, p. 8-9).
De todas as comissões militares, segundo Rondon, a que teve uma duração mais
longa foi, sem dúvida, a de Mato Grosso, que de 1890 prolongou-se até 1930. Foram
quatro décadas de incansáveis trabalhos técnicos na implantação não só de linhas
telegráficas, mas também na abertura de estradas carroçáveis e de ferrovias em todas as partes
do estado, atravessando de Leste a Oeste e de Sul a Norte. Assim, mais de seis mil
quilômetros de fio telegráfico se estenderam pelo vasto território de Mato Grosso
chegando a suas fronteiras: Paraguai e Bolívia (RONDON, 1942, p. 9).
Nesse contexto histórico, havia todo um projeto político bem estabelecido: o de
povoar o território brasileiro, defender as fronteiras das incursões estrangeiras, construir
estradas, ampliar as redes de comunicação para evitar o isolamento, enfim, tornar o
progresso uma realidade, visando consolidar um processo social civilizatório, em
detrimento do atraso em que se encontravam as províncias mais distantes. Nessa
perspectiva, a comissão de Rondon, além dos serviços técnicos, também partiu para o
estudo da flora, da fauna e da geologia do estado, o que o tornaria um grande conhecedor
de todo o vasto território, em muitos pontos, descobrindo, assim, minas de ouro, jazidas de
manganês, ferro, prata, diamante, turmalina, cristal de rocha, ágata, mármore etc. Em
consequência disso, acabou por percorrer as terras dos seguintes grupos indígenas, entre os
quais também se encontram o nosso grupo de estudo:
sertão, ou só sertão. Segundo este estudo, o autor afirma que o Brasil também aparece dividido em dois: um,
o mundo urbanizado, no qual São Paulo, seria o polo mais avançado, o outro, o mundo dos “sertões”, onde
as regiões Norte e Nordeste indistintamente seriam as principais representantes.
106
ignirados nas profundezas dos vales do Guaporé [...] (g.n.) (RONDON,
1942, p. 10).
107
Com essa missão, Rondon afirma ter encontrado um contingente humano com
características excepcionais que deveriam ser redimensionadas, sendo em sua grande
maioria, conforme já mencionado, indígenas. Embora a figura do índio fosse tomada por
muitos como um atraso ao progresso brasileiro, para Rondon, a questão indígena era muito
delicada e complexa, pois havia um sistema de exploração e maus-tratos, principalmente
por parte dos fazendeiros da região, que deveria ser enfrentado. O problema não se
centrava só no aproveitamento da mão de obra indígena, como um passageiro surto
econômico, mas, e principalmente, no processo de sua incorporação social e humana na
sociedade envolvente.
O autor chama a atenção para o fato de que a incorporação do índio se impunha
pelas vantagens de sua formação racial. A sua proteção oficial, independente de qualquer outra
condição, deveria, assim, ser vista como uma condição moral a ser cumprida em toda
América. Como as nações indígenas contribuíram consideravelmente para a formação das
nacionalidades americanas, caberia ao País, livre de preocupação utilitarista, a obrigação de
ampará-los e protegê-los, orientando-os na sua natural evolução.35 (RONDON, 1942, p. 28). Em
Mato Grosso, a primeira incursão para a construção de Linhas Telegráficas teve início em
1890 e, em 1916, já haviam instalado cerca de 4.502,502 Km de fios estendidos por quase
todo Estado, sendo o trabalho basicamente concluído em 1938 (RONDON, 1946 (A), p.
3). Graças à contribuição dos Bororo, que inicialmente trabalharam obrigados, foi possível
estender os fios telegráficos nos sertões do Leste, de Mato Grosso, iniciando por Cuiabá,
em 1892 e, em 1898, já estendido por todo estado.
Antes de esse fato ser concretizado, houve, porém, um desvio de rota, de Cuiabá
para Corumbá. Assim, em 1888, os primeiros fios telegráficos viriam a ser estendidos da
praça de Corumbá ao Forte Coimbra, cuja ideia partiu do General Manuel Deodoro da
Fonseca. Um ano depois, em 1899 a cidade de Campo Grande-MS estava oficialmente
nascendo. Além disso, e no mesmo ano, o General João Pedro Xavier da Câmara, no
intuito de consolidar a administração daquele departamento militar, deu início ao
empreendimento de uma viação férrea e fluvial para Mato Grosso, passando por quase
todas as cidades do Estado. O destino final da construção da linha telegráfica de Corumbá,
era a cidade de Aquidauana. Com isso, organizaram-se as instituições, e a Vila Nova de
Aquidauana se estabeleceu, surgindo como o ponto obrigatório mais importante do Sul do
35 Nesse sentido, retomaremos essa discussão no sexto capítulo do presente estudo, com o propósito de
analisar os dados coletados nas aldeias urbanas de Campo Grande, referentes à inserção da mão-de-obra
indígena no mercado de trabalho urbano.
108
estado; isso porque além de ser uma cidade promissora, também satisfazia a necessidade de
consolidar a disciplina e defender as fronteiras naquela região.
Assim sendo, o contingente indígena contribuiu não só com o processo de
ocupação e povoamento do Brasil, do período Colonial à República, como também
participou na formação e construção do Estado Nacional/Regional executando as tarefas
mais árduas que ia de levantamento de postes à colocação dos trilhos, sem contar a defesa
do Estado, nos campos de batalha, em que lutaram para garantir as nossas fronteiras.
Entretanto, a historiografia oficial recusa-se a mostrar o outro lado da história, pois são
muito poucos os trabalhos que tratam da efetiva participação destes agentes no processo de
construção do País, seja no plano econômico, como força de trabalho (mão de obra
indígena), seja no plano político, na defesa e consolidação dos Estados, como é o caso, por
exemplo, dos Guaicuru que tão bravamente garantiram a delimitação geográfica do Estado
de MS frente às invasões espanholas, por meio do rio Apa. E tantas outras participações
indígenas na defesa do território brasileiro e afirmação de sua nacionalidade.
Aliado a essas contribuições indígenas, há outra também importante que trata do
reconhecimento, por parte dos índios terena, da valorização da historiografia brasileira.
Nilza Terena, professora terena, trouxe-nos um texto escrito em que fala sobre o
envolvimento de seu avô na construção das linhas telegráficas; o texto fornecido era de
caráter pessoal, entretanto, não se pode desconsiderar a importância dos fatos apresentados
por ela, perpassando a memória coletiva do grupo, e incorporando-se na lógica de seu
discurso. Paul Veyne (1988), afirma que “nada mostra melhor as dimensões do indivíduo
que o estudo das mentalidades; na verdade, analisar uma mentalidade é analisar um
coletivo” (VEYNE, 1988, p. 76). Assim sendo, objetivamos por meio da seleção desses
acontecimentos e não de outros, mostrar o que realmente tem sentido para a comunidade,
visto que as marcas desses fatos encontram-se presentes até hoje, seja nas lembranças dos
mais velhos, seja no reconhecimento e valorização por parte dos mais jovens. Logo,
analisar os acontecimentos que estão incorporados na memória coletiva e que estabelecem
uma interlocução com os sistemas de significações na ordem social do grupo é fazer
história das mentalidades.
Dessa forma, não temos a pretensão de fazer uma análise profunda dos elementos
introjetados na ordem do discurso de Nilza que, de certa maneira, nos apresenta uma
estrutura professoral e formal; mas de mostrar que nessa lógica discursiva há uma
historicização de acontecimentos que ora dialoga com a bibliografia existente, colocando-se
fora do contexto, ora se incorpora oralmente no texto retirado da vivência de seus
109
parentes, rediscutidos com o fato e se colocando dentro da própria história. Entendemos,
por meio dos pressupostos teóricos de Orlandi, que a história se faz assim com um imaginário
que, nesse caso, o dos relatos, os inscreve no discurso das descobertas que por sua vez, é o discurso que “dá a
conhecer o Novo Mundo” (ORLANDI, 1990, p. 15, grifo nosso). Nesse sentido, concordamos,
ainda, com a autora, quando se apoiando em P. Henry, afirma que:
[...] não [há] fato ou acontecimento histórico que não faça sentido, que
não espere interpretação, que não peça que se lhe encontrem causas e
consequências. É isto que constitui, para nós, a história, esse fazer
sentido, mesmo que se possa divergir desse sentido em cada caso.
(HENRY apud ORLANDI 1990, p. 29).
110
Além disso, também denuncia os maus-tratos que esses índios vinham sofrendo por parte
dos fazendeiros:
Essa fase, que ora se apresenta, culmina com a chamada terceira onda humana, já
apontada por Cardoso de Oliveira, que a considerava mais contemporânea. Seu início foi
marcado com a ligação de São Paulo a Porto Esperança pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.
Com isso, de acordo com o autor, a região alcançou um considerável aumento no seu
desenvolvimento econômico, resultando na expansão do contingente humano. Aliado a
esse fator, houve uma mudança na paisagem regional, na implantação de novos núcleos populacionais
que impôs assim um caráter especial à configuração indígena, principalmente do Terena,
daquela extensa área do Brasil meridional (OLIVEIRA, 1960, p. 61), nesse momento, quase
toda tomada por empreendimentos pastoris.
Esse considerável aumento de atividades econômicas na região, observa ainda
Cardoso de Oliveira em estudos realizados na década de 1960, é decorrente, entre outras
coisas, do nascimento de uma mentalidade mercantil, praticamente inexistente entre os
índios, até então, mas que passa a fazer parte de suas vidas, haja vista, por exemplo, o
notável esforço empreendedor dos Terena nas frentes de trabalho junto às fazendas, forma
que encontraram para sobreviver, a partir do momento em que viram-se espoliados de suas
terras. Tal constatação se firmou por meio de entrevistas e “histórias de vida” realizadas
com as famílias da Aldeia Cachoeirinha e, em especial, com um trabalhador Terena
residente nesta Aldeia que prestou serviço na construção da Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil. Com isso se percebe a relação dos Terena com a Estrada de Ferro, contribuindo
com a sua construção e manutenção.
O projeto de ligação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil visava, inicialmente,
sair da cidade de Bauru e daí até Porto Esperança, no Rio Paraguai. Em 1903, por meio de
um decreto, foi autorizado o funcionamento dessa Estrada com o propósito de ligar Bauru
a Cuiabá. Entretanto, por motivos relacionados à política externa brasileira, tendo o mesmo
acontecido com a instalação das redes telegráficas e, contrariamente aos propósitos
inicialmente traçados, o plano de ligar Bauru a Cuiabá foi infrutífero, pois com a mudança
111
significativa de rota, de Cuiabá passou-se, então, para Corumbá, tendo a pretensão futura
de se chegar até a Bolívia (SILVA, 1949, p. 284).
Fernando de Azevedo, traçando o mapa geral dos pontos por onde passou os
trilhos aponta o trajeto da Noroeste cuja ligação vai do Estado de São Paulo a Porto
Esperança no Rio Paraguai. Em São Paulo, os trilhos saíram de Bauru, passaram por
Pirajuíba, Penápolis, Birigüi, Araçatuba, Guararapes, Mirandópolis, Andradina. Já na divisa
temos o Rio Paraná e a cidade de Três Lagoas. No estado de Mato Grosso a Estrada
passou por Buritizal, Rio Branco, Água Clara, Rio Verde, Formoso, Rio Pardo, Botas,
Campo Grande, Bolicho, Rio Aquidauana, Cachoeirão, Rio Brilhante, Brilhante,
Aquidauana, Taúna, Brejão, Rio Miranda, Miranda, Bodoquena, Porto Esperança e,
finalmente, Corumbá (AZEVEDO, 1950, p. 108-109).
Nessa perspectiva, o projeto acabou se consolidando em 1905, quando se deu
início à construção. Os trabalhos foram avançando lentamente com a média de cerca de
100 km por ano, vindo atingir o Rio Paraná, em 1908. O projeto ora iniciado, segundo
Silva (1949), florescia por toda parte por onde passava, pois dele resultou entre outras o
povoado de Três Lagoas que, na época, já contava com uma população de 15.580
habitantes. Atualmente, integra o estado de Mato Grosso do Sul.
Ainda no mesmo ano, com o intuito de acelerar o processo de construção da
Estrada iniciou-se em Porto Esperança outra seção de trabalho, que prosseguiu no
assentamento dos trilhos vindos do Rio Paraná. O encontro das duas seções ocorreu,
segundo Silva, nas proximidades de Campo Grande. Assim, a seção de Porto Esperança-
Campo Grande alcançou as cidades de Miranda e Aquidauana nos anos de 1911 e 1912, o
que veio a atingir em cheio as populações indígenas terena no estado, uma vez que, neste
trecho, foram utilizados como mão de obra acessível na execução do trabalho.
Assim sendo, a Noroeste do Brasil, com a contribuição desses trabalhadores
indígenas, passaria a ligar o Sul de Mato Grosso com o estado de São Paulo, resultando na
intensificação do contato com a sociedade envolvente. Conviria observar que, nesse
período, Rondon já havia proposto a delimitação das Reservas, tanto a da aldeia de
Cachoeirinha quanto as do Ipegue e Bananal (1904 e 1905), possibilitando a concentração
de grupos terena dispersos na região e utilizados como mão de obra barata pelas fazendas
vizinhas.
Com a intensificação do tráfego de pessoas nas áreas, em 1910, mesmo ano de
instituição do S.P.I, a visita do missionário Henrique Whittingtron às aldeias do Bananal e
Ipegue, resultou na fundação de uma missão religiosa, em 1913, sob o comando da Inland
112
South América Missionary Union36 (ISAMU). Já em 1920, sob a acusação de instigar os índios
contra os funcionários do S.P.I., esses missionários foram expulsos do Bananal (SILVA,
1949, p. 285-286), não sem deixar profundas marcas na cultura terena, impactadas pelo seu
propósito evangelizador. Ora, se é certo que os Terena mais uma vez deram mostras de
seus mecanismos de adaptação, incorporando à sua maneira e segundo suas pautas culturais
as representações simbólicas e, mais ainda, grande parte do sistema de organização dessa
missão religiosa, também é certo que nessa inter-relação negociaram parte de suas tradições
mítico-religiosas, para depois romper com esse pacto, como historicamente fizeram com os
sistemas de aliança estabelecidos com outras culturas. A propósito, Moura observa que:
Como é possível observar, a realidade histórica vivida por esses sujeitos ganha
contornos expressivos remontando à ideia de que os acontecimentos relatados acerca da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e da Missão evangelizadora, por exemplo, inscrevem-
se na ordem do espetáculo referido por Nora; isto é, ganham relevo e afirmam-se como razão
histórica. Entretanto, os estudos acadêmicos mais consagrados, seja remotamente o de
Fernando de Azevedo37, seja mais recentemente o de Paulo Roberto Cimó Queiroz38, não
dão conta de que a Noroeste do Brasil a par de sua relevância econômica tão
exaustivamente sublinhada pela historiografia oficial, também foi “[...] Outro
acontecimento muito importante para a vida dos índios Terena”, como observamos. Não
desconsideramos a relevância econômica da Estrada de Ferro para o progresso nacional,
mas o situamos no contexto sociocultural do povo terena, apontando para a participação
efetiva destes na construção da Estrada; afinal, ela trouxe as sementes de um progresso que até
hoje estamos presenciando como as culturas, costumes, tradições e outras.
Até o fim do século XIX, de acordo com Cardoso de Oliveira, a política indigenista
colonial preocupava-se com o processo de pacificação dos grupos indígenas daquela região,
no que dizia respeito aos aliciamentos às lutas que travavam com os espanhóis ou, mesmo, a sua
neutralização. Tal política encontrava-se baseada na fundação dos Fortes, como Coimbra,
Miranda e Albuquerque, conforme já foi mencionado, e no estímulo ao trabalho
missionário, que visava melhorar a sua índole. Além disso, também era preciso transformá-los
em trabalhadores aptos para o serviço, cuja mão de obra seria acessível e eficiente
(OLIVEIRA,1960, p. 68).
No caso dos Terena, por exemplo, por serem bons agricultores e excelentes
vaqueiros, eram frequentemente procurados pelos fazendeiros da região local. Aliado a
isso, também se satisfaziam com pouca coisa, isto é, com pouca remuneração; requeriam
apenas o necessário para as suas necessidades básicas, que não iam além da alimentação e
vestuário, iniciando, assim, um processo contínuo de exploração e trabalho semiescravo.
Nesse sentido, Cardoso de Oliveira relata, com certa indignação, que os Terena eram
extremamente explorados pelos fazendeiros.
114
[...] É difícil encontrar um camarada Terena que não deva ao seu patrão
os cabelos da cabeça. Contaram-me certa ocasião que um fazendeiro rico
tem por hábito, no começo de cada ano, formar os seus camaradas
Terena e anuncia-lhes o seu ajuste de contas. A cada um repete a sua
dívida, fazendo acompanhar de comentários chistosos. Depois de lhes
ter prestado as suas dívidas conclui a arenga por um extraordinário ato
de generosidade. A cada um faz abatimento de cômoda percentagem na
dívida respectiva, a fim de não ficarem sobrecarregados no novo
exercício. – Os pobres índios crentes de que o seu patrão é um poço de
bondade, retiram-se satisfeitos, encarregando-se à noite várias diversões,
como de costume, começando assim desde logo a nova dívida a
aumentar; reabre-se o débito com o consumo de álcool para festejar a
generosidade do patrão. De fato, os desgraçados camaradas nada devem
ao usuário; primeiro, porque os seus serviços não são pagos pelo que
valem e sim com redução que aproveita só ao patrão; depois, porque nas
vendas efetuadas pelo patrão aos camaradas, estes são roubados, que
jamais conseguem equilibrar-se nas relações comerciais que mantém com
aqueles. Daí a escravidão de nova espécie (OLIVEIRA, 1960, p. 69).
Como é possível depreender, os pobres índios crentes que o seu patrão é um poço de
bondade, acabam engendrando uma “escravidão de nova espécie”. Em vista disso, a criação
em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios, apesar de seu feitio paternalista, constituía-se,
principalmente para os Terena, em garantia de sobrevivência, quando eles se encontravam
em vias de exploração. O abandono das aldeias resultou em certo tipo de despovoamento,
uma vez que o deslocamento foi inevitável, pois muitos dos que saíram das aldeias não
retornaram mais. Entretanto, com a instituição do SPI, segundo o referido autor, o nível de
exploração do trabalhador indígena passaria a ser mais sutil, menos brutal, mas nem por isso
deixou de ser pouco eficiente (OLIVEIRA, 1960, p. 70).
O autor ainda reconhece que, mesmo sendo pouco eficiente, foi graças à ação
protecionista do S.P.I. que a população Terena conseguiu sobreviver ao impacto da
sociedade brasileira, a esta época em sua fase de exploração econômica denominada
pastoril constituindo a chamada segunda onda humana, já tratada anteriormente. Com a
criação das Reservas, os Terena teriam condições superiores em relação à fase de
“cativeiro”, cujo período se arrastava desde a guerra do Paraguai (OLIVEIRA, 1972, p. 46).
Se por um lado, as suas terras estariam asseguradas por meio da instituição do
SPI, por outro, se desencadearia um novo processo chamado de segregação. Entretanto,
Oliveira chama a atenção para o fato de que esta segregação não seria consequência da
imposição feita pelo S.P.I., mas de um processo natural de criação e delimitação das
Reservas. Como consequência disso, a situação de segregados levaria esses indígenas a uma
condição social: a de tutelados.
115
Segundo ainda o mesmo autor, a situação mais gritante de discriminação
implementado pelo Serviço de Proteção, no início do século XX, foi a de recolher todos os
títulos de eleitores dos indígenas, por temer que os funcionários do S.P.I., mais
especificamente os encarregados, pudessem se tornar cabos eleitorais. O resultado disso
seria a disputa dos próprios encarregados de Postos Indígenas pelos cargos de
representação política de importância eleitoral. Com receio de que isso acontecesse, o S.P.I.
resolveu tomar essa atitude, vindo a contrariar todos os princípios básicos de uma política
indigenista, negando aos índios o exercício de seus plenos direitos (OLIVEIRA,1972, p.
47). Essa iniciativa partiu da Inspetoria Regional (IR-5), sediada em Campo Grande e
responsável pela supervisão e articulação dos Postos Indígenas do sul de Mato Grosso,
com a Diretoria do S.P.I. no Rio de Janeiro.
Sobre a questão tutelar a que Cardoso de Oliveira se refere, Lima (1997)39 faz uma
crítica a esse sistema, como sendo um sistema de poder estatal repressor e autoritário. Para
ele:
[...] o poder tutelar é uma forma reelaborada de uma guerra, ou de
maneira muito mais específica, do que se pode construir como um
modelo formal de relacionamento entre um eu e um outro. Isto é, a
conquista, cujos princípios básicos se repetem – como toda a repetição,
de forma diferenciada – a cada pacificação de povos nativos (estratégia
que celebrizou Cândido Rondon), desde o início do século aos dias de
hoje (LIMA, 1997, p. 348).
39 Cf. Guerra de Conquista ao Poder Tutelar – Elementos sobre a relação entre Estado Nacional e Povos
Indígenas no Brasil Republicano. In: América 500 anos. Confronto de Culturas: Conquista, Resistência,
transformação. (Orgs) Azevedo, Francisca Nogueira de. Monteiro, M. John. São Paulo: Edusp, 1997.
116
Dito de outra forma, o autor reafirma a sua crítica, mostrando que esse sistema
visa:
Para o autor, a base de constituição desse mapa político estava centrada na ideia
de um território nacional, cujas disposições estavam voltadas para atender, de forma
segregacionista, as diversas unidades de ação do aparelho estatal como, por exemplo, os
postos, povoações, inspetorias e regionais ao tempo do S.P.I; e postos, ajudâncias, delegacias e
superintendências em variados períodos da FUNAI. Nesse sentido, o resultado material deste
sistema tutelar se refletiria na criação das reservas ou delimitação de áreas indígenas, ou
seja, em porções de terras reconhecidas pela administração pública através de seus diversos aparelhos como
sendo de posse de índios e atribuídas, por meios jurídicos, a povos indígenas específicos. Para tanto, além
desses fatores, cabia ao poder tutelar o exercício de legitimização e reconhecimento dos
povos indígenas, isto é, o poder tutelar era quem detinha a voz autorizada para quem,
inclusive, determinava o direito de definir quem é ou não índio. (LIMA, 1997, p. 352-353).
Nos estudos organizados pelo Museu do Índio, cujo objetivo era o de subsidiar a
pesquisa relativa à atuação do Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967) junto aos povos
do sul da Bahia, é possível depreender o sistema de organização do S.P.I, cuja atuação
ocorria por meio de unidades regionais chamadas de Inspetorias, ficando, assim, os postos
indígenas subordinados. As atribuições das inspetorias regionais estabelecia, desde o
regimento de 1945, os seguintes princípios: “[...] executar ou fazer executar, por intermédio
dos postos, as medidas de proteção, assistência e educação do índio, amparando-lhe a vida,
a liberdade e a propriedade, defendendo-o do extermínio, na conformidade das instituições
que forem expedidas pelo diretor”; e segue o regimento recomendando a atuação do S.P.I.
em ações que pacificação indígena; de vigilância sobre os territórios habitados; sobre os
indígenas; de cumprimento da medidas de assistência; de manter em dia escrituração dos
suprimentos, entre outros, demonstrando uma inequívoca vocação assistencialista (Museu
do Índio/FUNAI, 2002, p. 410).
117
A institucionalização das medidas de assistência e amparo aos índios, embora se
propusesse protetora, em nenhum momento reconheceu o destino das sociedades
indígenas fora do sistema político nacional; ou seja, na visão do S.P.I seria inevitável a
absorção das sociedades tribais pela sociedade nacional. Além disso, por mais que tivessem
uma tomada de posição mais positiva, preocupando-se com o bem-estar social dessas
populações, nunca conduziram a uma prática indigenista que chegasse a reconhecer a sua
autonomia política. Em outras palavras, Oliveira chama a atenção para o fato de que não há
em nenhum texto do S.P.I. ou da antiga Comissão Rondon, algo que diga respeito a tais
sociedades como unidades independentes, ainda que num futuro previsível. Logo, por mais
progressista que essa ação tenha sido, ela de forma nenhuma chegou a ser eficiente, pois, ao
contrário, era vista como “incompleta e insuficiente, e isto porque não teve forças e nem
inspiração para radicalizar o problema” (OLIVEIRA, 1972, p. 62). Embora os autores
façam uma leitura desse sistema como sendo um mal necessário devido ao seu
assistencialismo paternalista, na visão dos Terena, constituiu-se em uma instituição positiva
e progressista.
O SPI foi ligado primeiro ao Ministério da Agricultura, depois passou a ser ligado
ao Ministério da Guerra. Rondon se preocupou muito com as regiões indígenas, filmando e
apresentando nos cinemas para mostrarem que os aborígenes precisavam de ajuda. Uma
das coisas muito importante para os povos nativos foi a valorização das terras indígenas do
Oeste do Brasil.
Nesse mesmo período, a partir de 1912, inicia-se o trabalho das missões
protestantes com a visão de alfabetizar o povo terena, com a ajuda de uma missionária
Nancy e Beth lançam o primeiro escrito em língua terena (Evangelho de Marcos), cuja
publicada em 1944. S.P.I inicia também as suas atividades nas aldeias ensinadas em
português.
Entretanto, o mesmo não ocorre na visão de outros Terena que consideram esses
órgãos protetores como ineficientes por falta de preparo técnico e científico com a questão
indígena. Essa ação ia muito além do simples controle, pois visava atingir a questão da
identidade. Entre outras coisas, a crítica que se faz reitera a ideia de que com o projeto
civilizador de integração do indígena à sociedade envolvente, alguns problemas estariam
sendo resolvidos: a questão da ocupação do território brasileiro e da força de trabalho não
especializado como uma saída para os Terena e, por extensão, para os meios de produção.
Com isto, o índio seria, inevitavelmente, assimilado, e o reconhecimento às diferenças seria
118
desconsiderado. Ao se referir - não ao S.P.I, por nascer no período de sua transição, isto é,
na passagem do S.P.I à Funai, em 1967 - ao trabalho da FUNAI, afirma-se que:
[...] a Funai no passado, ela trouxe, ela... acho que tentou fazer com que a
gente perdesse nossa identidade porque o que é que ela trouxe quando
eu era menino, eu via chegar tratores, chegar caminhões, chegar diversas
máquinas agrícolas, mas sem ninguém preparado pra isso. Então trazia
motorista da cidade, trazia tratorista e o que aconteceu com o tempo
com os anos é que nós fomos perceber que essas máquinas viraram
sucata sumiram porque nós não fomos preparados e, onde nós acabamos
chamados de preguiçosos, porque a gente não tava preparado para essa
tecnologia lá fora, nós tínhamos o nosso conhecimento e então nós
começamos a enxergar corpo estranho aqui dentro. Esse trabalho de
Funai hoje como instituição eu tô buscando conscientizar que nós
precisamos, hoje nós não aceitamos as coisas entrarem aqui na aldeia
depois que tivermos nosso aprendizado, com ferramentas na mão pra
poder trabalhar, não aquele passado que houve (Narrador indígena da
Aldeia do Bananal, 2002.)
Considerações Finais
Como vimos, desde o início, são muitas as histórias indígenas, pois cada povo tem
suas especificidades regionais, culturais e históricas. Mesmo assim, pudemos ter uma visão
panorâmica, desde a pré-história da chegada dos primeiros seres humanos na América e em
especial na região onde atualmente chamamos de Brasil.
119
Vimos, sobretudo, a história das frentes de ocupação dessa região do país, os
principais acontecimentos, assim como o relato mais minucioso da história indígena do
povo terena, para servir como referência, afinal, quase todos os povos indígenas nessa
região passaram, pelas mesmas vicissitudes. Fica o desafio para que cada um, em suas
regiões específicas, continuem as pesquisas acerca das histórias dos demais povos indígenas
que estão no Mato Grosso do Sul: Atikun, Kamba, Kaiowá, Ñandeva (Guarani), Ofaié,
Kiniquinau, Kadiwéu, Guató.
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124
III
OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
125
Elementos acerca da
sociodiversidade dos povos
indígenas no Brasil e em MS40
Carlos Magno Naglis Vieira41
40
Este texto foi publicado originalmente em VIEIRA, Carlos, M. N. Sociodiversidade Indígena no Brasil e
em Mato Grosso do Sul. In: AGUILERA URQUIZA (Org.) Culturas e História dos Povos Indígenas em mato
Grosso do Sul. Campo Grande, Ed. Da UFMS. 2013.
41 Graduação em História (2005) e Mestre em Educação (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.
42 No site do Instituto Socioambiental, podemos ver uma tabela com todos os grupos indígenas que habitam o
território nacional, baseados em dados atuais, (www.socioambiental.org).
127
Suas identidades são dinâmicas e forjadas na relação com outros povos,
indígenas e não indígenas. Ao reconhecer a existência de diferentes povos,
identificamos centenas de culturas, cada uma das quais com uma forma
específica de organização social: povos que habitam em florestas e outros no
Cerrado; que vivem da pesca ou da caça; cujas musicalidades são diversas;
que têm tipos de moradia e modelos familiares distintos etc. (COLLET,
PALADINO, RUSSO, 2014, p. 45).
43De uma estimativa de mais de 5.000.000 índios para o século XVI, chegou-se em 1998 a um total de
302.888 índios, considerando as pessoas que vivem nas Terras Indígenas. Fonte: Anuário Estatístico do
Brasil 1998. Rio de Janeiro: IBGE, v.58, p.1-143-1-152, 1999.
128
portuguesa. Anchieta e tantos outros se expressaram por meio dela, chegando a ser a língua
mais usada na costa do Brasil até meados do século XVIII). É importante registrar que este
conhecimento inicial sobre o “outro”, o nativo, foi totalmente realizado pelos europeus, ou
seja, com toda a carga do etnocentrismo.
No Período Colonial houve muita discussão, sobretudo na Europa, sobre a
origem dos povos nativos das Américas, conhecidos erroneamente como índios: uns
acreditavam que eram descendentes das tribos perdidas de Israel, outros duvidavam até que
fossem humanos. Em 1537, o papa Paulo III proclamou a humanidade dos índios na Bula
Veritas Ipsa. Como o critério de humanidade era inicialmente religioso (se tinham alma),
então, a partir deste documento papal, fica oficialmente afirmada a humanidade dos povos
nativos americanos.
Em seu livro “Aprender Antropologia”, Laplantine (2006) fala da disputa nesse
período dos “descobrimentos”, a qual gerou uma dupla resposta ideológica; de um lado o
dominicano Bartolomé de las Casas que defendia, de forma um tanto romântica, a visão do
bom selvagem e do mal civilizado; de outro lado, o jurista Sepúlvera Pertence, o qual
defendia uma posição diametralmente oposta, a do mau selvagem e do bom civilizado.
Ambas as respostas, segundo o mesmo autor (LAPLANTINE, 2006) continuam sendo
dadas até o tempo presente, o que dificulta uma visão mais objetiva e real da questão
indígena nos tempos atuais.
Quanto às dúvidas sobre as origens dos povos ameríndios, hoje já se conhece um
pouco mais sobre as origens do povoamento da América: supõe-se que os povos
ameríndios foram provenientes da Ásia, entre 14 mil e 12 mil anos atrás (ou mais
tardiamente, segundo pesquisas arqueológicas e datações mais recentes). Teriam chegado
por via terrestre, por intermédio do estreito de Bering, no extremo nordeste da Ásia.
Este dado (pré) histórico e genético confirma outro elemento, o de que estes
povos se originam de outra matriz cultural que não a nossa, tradicionalmente descrita como
originária de uma tradição greco-romana, por um lado, e judaico-cristã, por outro. Supõe-
se, assim, que são tradições culturais, visões de mundo, linguagem e traços físicos, dentre
outros, completamente diferentes da matriz cultural ocidental.
Nesse ponto, podemos fazer pequena digressão, acerca de uma questão conceitual
que atualmente chamamos de subalternização dos saberes. Em outras palavras, as populações
indígenas em nosso país constituem povos com saberes e processos culturais, sociais,
históricos profundamente diferenciados, portanto, constituidores de conhecimentos
construídos a partir de outras visões de mundo, que por conta das teorias racionalistas
129
ocidentais, acabam sendo “incluídos” em nossas lógicas de produção e reprodução de
saber, sem terem status de conhecimento. São povos “etnicamente diferentes” (BRAND,
2011), com saberes, fazeres, visão e experiências históricas próprias, consequentemente,
sistematizam seus conhecimentos de forma diferente. Colocados como seres desprovidos
“de saber e cultura”, seus saberes tradicionais acabam sendo marginalizados em nossa
educação regular formal.44
Com raras exceções, os povos indígenas no Brasil foram vistos, ao longo destes
séculos, ora como posse (tentativas de escravidão e trabalhos forçados), ora como povos
selvagens que deveriam sofrer os efeitos da evangelização e civilização, ora como
empecilhos ao desenvolvimento do país (massacres praticados pelos bandeirantes e pelas
frentes de expansão das fronteiras agropastoris). Só mais recentemente, em 1910, com a
criação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) o estado brasileiro estabelece, pela primeira
vez, uma política para atender a questão indígena.
Engana-se quem pensa, entretanto, que no transcorrer desta história dos povos
indígenas, no Brasil, eles somente sofreram derrotas, foram submetidos, escravizados e
tratados como incapazes e débeis. Nas entrelinhas da própria história oficial, ainda que
contada pelos vencedores, podemos perceber que houve neste período muitos atos
heroicos e de resistência – basta ver, estudar e aprofundar o tema conhecido como “a
confederação dos Tamoios”; algumas vezes os povos indígenas fizeram alianças contra os
invasores e outras contra os próprios portugueses; apenas para dar alguns exemplos –
assim como processos de negociação e hibridização cultural.
Cristina Pompa, em seu livro “A Religião como tradução”, desenvolve esta forma
alternativa de encarar a história destes povos nativos em sua relação com os demais
segmentos sociais do Brasil Colonial (em especial missionários e colonizadores), não como
blocos monolíticos opostos e irredutíveis (POMPA, 2003, p. 21), e sim como uma
realidade dinâmica de mudanças, adaptações e constantes negociações. A autora busca
mostrar como diferentes grupos indígenas “tomaram e transformaram ‘para si’ o que se
apresentava como ‘outro’” (POMPA, 2003, p. 25), ou seja, a capacidade dinâmica destes
povos indígenas de serem sujeitos ativos no processo de constituição da sociedade colonial,
44Quanto a esta reflexão epistemológica, vale a pena continuar pesquisando; segue uma bibliografia inicial:
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Pensamento Liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2003.
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saberes. En CAIRO, H. y GROSFOGUEL, R. (Org.) Descolonizar la modernidad, descolonizar Europa.
Madrid: IEPALA, 2010.
130
redefinindo identidades, hibridizando e “traduzindo” práticas culturais para formarem,
dessa forma, novas realidades.
É óbvio que nesse processo histórico de “encontro” entre os povos indígenas e,
inicialmente, os colonizadores europeus, não houve nenhum equilíbrio cultural e, sim,
“reais relações de força e as situações objetivas de opressão e até de genocídio” (POMPA,
2003, p. 29); mesmo assim, esse “outro” indígena não pode ser considerado apenas como
objeto mudo e passivo, mas se apresenta como interlocutor e agente ativo.
O importante, após estas breves reflexões, é percebermos que os povos
ameríndios estão praticamente ausentes da historiografia brasileira, e quando são
contemplados, quase sempre é de maneira etnocêntrica e estereotipada, ora como bons
selvagens (visão romântica), ora como selvagens e empecilhos para o avanço da civilização
e do progresso.
caracterizar o processo de destruição das aldeias e o desmantelamento das famílias extensas em função do
desmatamento. É o processo de dispersão que precede o confinamento no interior das reservas. A
informação pode ser consultada em BRAND, Antônio Jacó. O confinamento e seu impacto sobre os Pãi/Kaiowá.
131
um silenciamento dos grupos que já habitavam o local (NASCIMENTO, XAVIER,
VIEIRA, 2011).
Nesse sentido, essa “colonialidade do poder” que ainda perdura muito forte pelo
Mato Grosso do Sul, fizeram e ainda fazem as populações indígenas “moldar e remoldar
sua organização social, construir e reconstruir sua forma de vida e desenvolveram
complexas estratégias, alternando momentos de confrontos direto, permeados por enorme
gama de violência, com negociações, trocas e alianças (NASCIMENTO, BRAND, 2006, p.
2). Em virtude desses acontecimentos e das condições de vida desse povo, se pode
perceber que as populações indígenas parecem ser as que mais têm sofrido com essa
situação, pois desde a colonização, vêm sendo posicionados como minorias étnicas e por
esse motivo, têm vivido “nas margens da sociedade branca ou como obstáculos para a
implantação dos valores civilizatórios, sendo vistos como ervas daninhas que devem ser
eliminadas, sufocadas” (BACKES; NASCIMENTO, 2011, p. 25) e silenciadas na
identidade do Estado.
Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS. 1993. Dissertação
(Mestrado em História).
48 Segundo Brand, o confinamento dos Kaiowá e Guarani deu-se por diferentes fatores, em especial, em
decorrência da perda de seus territórios tradicionais, provocando a falta de condições para manterem seu
modo – de - ser nos tekoha (aldeias) tradicionais, fazendo com que se aglutinassem dentro das reservas
instaladas pelo SPI. A informação pode ser consultada em BRAND, Antônio Jacó. O Impacto da perda da Terra
sobre a tradição Kaiowá/Guarani. Tese (Doutorado em História) – PUC do Rio Grande do Sul, 1997.
132
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA, 2010)
49 Cf. Os Guarani do Brasil estão nos estados de: MS, SP, PR, RS, RJ, ES, PA, SC, TO e são 57.923
(Siasi/Sesai, 2012) segundo a fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani
.
134
que uma grande parcela das aldeias Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul foram
invadidas por fazendeiros, expulsando delas os seus verdadeiros ocupantes (BRAND,
1997).
As primeiras frentes não indígenas mais recentes que adentraram no território
Kaiowá e Guarani ocorreram durante a Guerra do Paraguai, sobretudo a partir de 1880.
Enfim, com a formação da comissão de demarcação dos limites territoriais entre Brasil e
Paraguai, inicia a história e instalação da Companhia Matte Larangeira em território guarani.
Os estudos demonstram que a Cia. Matte Larangeira provocou a aceleração dos
aldeamentos dos Kaiowá e Guarani por impor limites entre os espaços ocupados pela
empresa e os indígenas e, também, foi responsável por uma nova ordem geoeconômica do
Estado. Em síntese, a Companhia Matte Larangeira:
50A criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados abarcava uma área a ser retirada das terras da União,
no então território Federal de Ponta Porã (BRAND, 1997, p.75). Para compreender melhor sobre a Colônia
Agrícola Nacional de Dourados conferir as leituras de NAGLIS, Suzana Gonçalves Batista. “Marquei
aquele lugar com o suor do meu rosto”: os colonos da Colônia Agrícola Nacional de Dourados. 2008.
Dissertação (Mestrado em História). UFMS, Dourados; OLIVEIRA, Benícia Couto de. A política de
colonização do Estado Novo em Mato Grosso (1937-1945). 1999. 255 f. Dissertação (Mestrado em
História). UNESP, Assis.
135
A Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) marcou o início de uma
difícil luta dos índios pela recuperação de suas terras. As populações indígenas que
habitavam as aldeias incorporadas pela colonização acabaram sendo expulsas e com isso
tiveram que ser transferidas para outras Reservas. Em síntese, a Colônia provocou a
transferência de inúmeras famílias extensas para dentro das Reservas demarcadas pelo
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre os anos de 1915-1928.
Durante o período de 1915 a 1928, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
demarcou pequenas extensões de terra para a população indígena. No entanto, os estudos
de Brand e Nascimento revelam que a demarcação tinha o “objetivo de confinar os
inúmeros núcleos populacionais dispersos em amplo território no atual estado do Mato
Grosso do Sul” (2006 p. 5). A chegada dos novos colonizadores, no final da década de
1960 impulsionou um grande crescimento populacional na região e a instalação de
empreendimentos agropecuários no Estado, notadamente nos espaços que abrigavam a
população Guarani e Kaiowá, o que caracterizou de confinamento (BRAND, 1997).
Esse período de colonização do Estado Novo contribuiu para o desmatamento
excessivo da região sul do Estado, pois grande parte da mata nativa foi substituída pela
pastagem para a criação de gado. Nesse tempo denominado de “esparramo51” que os índios
Kaiowá e Guarani sofreram com inúmeras consequências, sendo: a perda da terra, a
destruição das aldeias e a desarticulação das famílias extensas. Com a perda do território
tradicional, os tekoha52, a população indígena Kaiowá e Guarani teve que procurar aldeias
mais próximas para se alojarem e com isso acabaram engajando-se como mão de obra
barata para os fazendeiros, na derrubada do mato.
Para o povo Kaiowá e Guarani a perda do território não significou apenas o
deslocamento geográfico e a perda da terra, pois a vida dentro da Reserva impôs grandes
transformações principalmente na sua relação com o território tradicional. Devido a todos
esses fatores provocados pela alteração no território, os indígenas foram obrigados a
disputar os lotes cada vez mais reduzidos dentro das próprias Reservas.
Outro problema enfrentado pelos índios em consequência da perda da terra é a
grande procura de trabalho assalariado nas usinas de álcool e açúcar da região por jovens
51 O termo esparramo, segundo Brand, foi amplamente empregado pelos informantes indígenas para
caracterizar o processo de destruição das aldeias e o desmantelamento das famílias extensas em função do
desmatamento. É o processo de dispersão que precede o confinamento no interior das reservas (BRAND,
1997, p.82).
52 De acordo com os estudos de Brand (1997) tekoha é o espaço legítimo que os índios Guarani realizam seus
rituais, cantos e danças. Para os indígenas fora dos limites do tekoha, não existe um significado.
136
adultos casados ou solteiros, isso tem provocado ausências por longo período da aldeia o
que está comprometendo o seu papel na organização social do grupo (VIETTA, 1998).
Em síntese, muitos dos problemas presentes nas aldeias Kaiowá e Guarani têm
refletido na organização social, isto é, no seu “modo de ser” (Teko Porã). Por conta desse
processo histórico desfavorável, surgem sérias dificuldades, que preocupam, como por
exemplo, o alcoolismo, o alto índice de desnutrição, a prostituição, a tuberculose, o
suicídio, a violência interna, a sobreposição de lideranças nas aldeias, a reordenação da
organização familiar, a substituição das práticas religiosas tradicionais pelas crenças das
religiosas neopentecostais. Todos problemas, que somados à situação de confinamento,
reduzidas extensões de terra para viver, tendem a inviabilizar o bem viver deste povo.
Nos últimos anos temos constatado o aumento da violência física e simbólica ao
redor da posse da terra, entre indígenas e proprietários rurais, inclusive com mortes dos
primeiros, como ocorreu em 2015 e recentemente em 2016, na retomada Yvu, no
Município de Caarapó. Esses conflitos se devem, em grande parte, à ausência do Estado
brasileiro em fazer cumprir os direitos básicos dos povos indígenas, em especial no que diz
respeito à posse de seus territórios tradicionais (CF 1988, Art. 231), e a morosidade do Estado
e da Justiça em solucionar estas demandas. Nesses últimos anos, os proprietários rurais,
conforme informações veiculadas pela imprensa regional, têm radicalizado suas posições,
inclusive com a realização de leilões para a instalação de grupos armados, com o argumento
de que seriam para a defesa de seus direitos, tendo em vista a ausência do Estado. Por
outro lado, também o movimento indígena, cansado de esperar soluções viáveis,
aumentaram as atividades de retomada de seus territórios tradicionais, aumentando ainda
mais os conflitos na região sul de Mato Grosso do Sul.
Acreditamos que essa situação não encontrará caminhos de solução, enquanto
Estado, Justiça e os lados envolvidos não dialogarem e chegarem a um consenso, o qual se
apresenta no momento, como sendo a possibilidade de indenização das terras dos
proprietários rurais (terra nua), o que seria possível com “vontade política” e aprovação da
PEC 71 (2011), a qual se encontra tramitando no Congresso Nacional. Essa mudança no
ordenamento jurídico permitiria a indenização, pelo Estado brasileiro (tendo em vista que
este cometeu um erro histórico em titular as terras indígenas para a colonização dessa
região do país) da terra nua, para os proprietários que apresentarem titulação legal de suas
terras.
O povo terena
137
Os Terena são remanescentes do grupo Txané-Guaná, visto que, os Guaná são
uma sociedade composta por grupos que além dos Terena (Etelenoé), destacam-se os
Laiana, Echoaladi e os Kinikinau. Fazem parte da família linguística Aruak, e por isso, os
Terena apresentam várias características socioculturais resultantes dessa tradição.
53 A historiadora Vera Lúcia Ferreira Vargas, em sua dissertação de Mestrado em História, pela Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul, explica que a região do Chaco é formada por aproximadamente, 700 mil
quilômetros, compreendendo partes dos territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil e estabelece
limites com os pampas ao sul do rio Salado, com a região andina a oeste, com o planalto de Chiquito e
Velascos a noroeste e com os rios Paraguai e Paraná. No Brasil, onde atualmente encontra-se o estado de
Mato Grosso do Sul, região alagadiça, estende-se até pouco abaixo da cidade de Miranda, formando o
pantanal sul-mato-grossense (VARGAS, 2003, p. 40).
138
sobrevivência e algumas vantagens. Mas, devido os contatos formados com os demais
grupos provocaram transformações culturais e econômicas nessa população indígena
(MIRANDA, 2006 e VIEIRA, 2004).
A eclosão da Guerra com o Paraguai (1864-1870) afetou integralmente a
população Terena, pois um dos locais de conflito atingiu diretamente o território Terena.
Na região de conflito havia um grande número de aldeias que formavam a maior população
indígena residente naquele local.
O segundo momento, conhecido como Tempos de Servidão, assinala o final da
Guerra com o Paraguai, período que registra a reorganização do espaço territorial indígena
e a dispersão dos índios Terena por fazendas da região. O final da guerra com o Paraguai
“representou para as sociedades indígenas terena o começo de uma batalha pela sua
sobrevivência, pois, além de muitos indígenas terem sido dizimados, muitos outros ficaram
doentes” (VARGAS, 2003, p. 53).
Além dos fatores já mencionados, com o final da Guerra da Tríplice Aliança com
o Paraguai, muitas pessoas aventureiras e ambiciosas migraram para a região. A onda
migratória que se instalou nas proximidades das aldeias terena acabou acarretando uma
fragilização dos laços de parentescos, o que provocou profundas alterações
socioeconômicas, em especial, no que se refere à posse de terras e loteamento de áreas
coletivas.
Com a implantação da comissão liderada pelo Marechal Cândido Rondon, em
1904, nas terras do atual Mato Grosso do Sul e anos depois com a criação do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), registra o terceiro momento, denominado de Situação de Reservas. É
durante esse período, de 1904 e 1905, que ocorre a demarcação das primeiras Reservas
Indígenas: Cachoeirinha, Bananal, Ipegue e Lalima, no município de Miranda (VIEIRA,
2004). De acordo com os estudos posteriores de Claudionor Miranda, a demarcação “na
época, poderia ter sido a melhor solução” para o seu povo, mas o autor acredita que “este
fator foi uma das principais causas que contribuiu para a geração de conflitos internos nas
comunidades Terena (MIRANDA, 2006, p. 34).
Segundo Vieira,
A demarcação permitiu que o governo liberasse o restante das terras
para frentes expansionistas de criação de gado e, posteriormente, a
plantação de soja. Como fator importante no processo de ocupação, o
governo implementou a política integracionista dos indígenas
considerados arredios ou não “civilizados”, com o objetivo de
transformá-los em pequenos produtores rurais. Em consequência dessa
política, a população indígena foi confinada em pequenas glebas de terra,
139
possibilitando o trabalho de catequese dos missionários com os
indígenas (2004, p. 28).
O povo Kadiwéu
Os Kadiwéu são descendentes da família dos Mbayá – Guaikuru55, grupo
encontrado mais intensamente na região setentrional do Grande Chaco, por volta do século
XVII e XVIII. De acordo com os estudos do historiador Giovani Silva, “os Guaikuru
56 As monções eram expedições fluviais povoadoras e comerciais nas quais predominaram populações
oriundas do Estado de São Paulo. As expedições navegavam pelo rio Tietê e pela rede de afluentes do rio
Paraná e Paraguai até chegar a cidade de Cuiabá. A duração das viagens era pelo menos 05 meses. As
embarcações comportavam até trezentas ou quatrocentas arrobas de mercadorias desde aquelas destinadas às
141
A contínua resistência que os Mbayá – Guaikuru ofereceram aos
portugueses foi objeto de sérias preocupações por parte dos
colonizadores, os quais tentavam sempre estabelecer uma aproximação
com os índios. [...] a intenção dos portugueses em ganhar a confiança
dos índios com meio de ajudar a assegurar a posse de territórios para
domínio colonial luso-brasileiro, já que este era continuamente
ameaçado, na fronteira do sul de Mato Grosso, pela presença espanhola.
Embora atacando, ora portugueses (como em 1778, próximo ao Forte de
Coimbra), ora espanhóis, os Mbayá – Guaikuru foram levados a
estabelecer relações de proximidade [...] perspectiva que deixava os
portugueses temerosos das consequências que pudessem advir desta
aliança [...] (SILVA, 2004, p. 48-49).
necessidades imediatas da vida. Para maior aprofundamento do tema, ver texto clássico de HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990.
142
baianada pelos indígenas, os posseiros foram responsáveis por uma nova demarcação de
terras no território indígena Kadiwéu.
57 A afirmação sobre a população indígena Kadiwéu pode ser encontrada no site do Núcleo de Estudos de
Populações Indígenas – NEPPI/UCDB.
58 Cf. dados do IBGE (CENSO 2010) – (http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kadiweu/263).
143
Elemento importante, tanto no aspecto da afirmação identitária, quanto de
subsistência é a prática do artesanato e a pintura corporal, característica pelas formas
geométricas, aparentemente simétricas e, além de muito conhecida regionalmente, foi
estudada por muitos antropólogos e especialistas, como Lévi-Strauss (Tristes Trópicos, SP:
Cia das Letras, 1996) e Darcy Ribeiro (Petrópolis: Ed. Vozes, 1980).
O povo Ofaié
Os primeiros registros sobre os Ofaié aparecem no século XVIII, sempre
descritos na maioria das vezes, de uma forma genérica. Mas, baseado nos estudos de Carlos
Alberto dos Santos Dutra, observa-se que a presença desse povo somente é registrada e
percebida pela história oficial a partir da República (2004, p.45), ou seja, no final do século
XIX. Segundo o autor “desde o momento do seu aparecimento na documentação brasileira
eles foram chamados de diferentes modos, [...] tendo seu nome grafado de várias e
diferentes maneiras, ora usado no singular, ora usado no plural”. [...] (DUTRA, 2004, p.48)
A população indígena Ofaié caracteriza-se por apresentar traços marcantes da
cultura indígena: vive da caça e da coleta. Grande parte do grupo possui
144
Na história dessa população indígena, complexas e tensas foram as relações
vividas entre o grupo e o espaço físico que ocuparam e passaram a dividir com as frentes
de ocupação. No século XIX, a população Ofaié que até então era desconhecida nas
narrativas históricas do Mato Grosso do Sul, possuía cinco aldeias nas margens do rio
Paraná, região vizinha às terras Kaiowá e Guarani, com que não mantinham relações
amistosas (DUTRA, 1996). Em fins do século XIX, ocorreu uma grande ocupação de
fazendeiros na região. Esses proprietários de terra adquiriam suas propriedades com
excelentes pastos para a criação de gado e, com isso, cercavam o local com arames
farpados. No contexto do projeto colonizador do governo, que buscava incentivar a
imigração massiva para povoar os campos do antigo sul do estado de Mato Grosso,
mineiros, paulistas e nordestinos adentraram na região e acabaram constituindo grandes
propriedades rurais, nas margens direita do Rio Paraná, o que levou a população indígena
Ofaié ao enfrentamento e após muitas perdas, a abandonar suas terras tradicionais.
Ao final do século XIX, os Ofaié são engajados como peões, ou seja, mão de obra
barata, na economia regional do Mato Grosso do Sul. Já no início deste século, com um
número reduzido de sua população, os índios procuraram a região da mata onde ficavam
mais protegidos (DUTRA, 1996) e (MANGOLIN, 1993). Vítimas deste caminho tortuoso,
os Ofaié perambularam de 1880 até hoje, de um lado para o outro no Mato Grosso do Sul
para não serem exterminados de vez como povo diferenciado (MANGOLIN, 1993, p. 41).
Com as sucessivas reivindicações do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o
governo do então Estado de Mato Grosso reservou uma área de terra devoluta para o povo
Ofaié. As terras arrendadas pelo governo pertenciam à Fazenda Boa Esperança. Com o
contrato vencido, o dono da fazenda, o fazendeiro Arthur Hoffing, deslocou os índios para
a beira do rio Verde. Com a não adaptação dos indígenas ao local, os indígenas voltaram à
fazenda e alojaram-se nos fundos do terreno. A morte do proprietário fez com que a
fazenda fosse vendida a terceiros, os quais não aceitavam a presença de indígenas em suas
terras.
Anos depois vivendo em um estado crítico, os índios chamaram a atenção da
FUNAI. O órgão indigenista
Em quase um século de atuação [...] que deveria dar proteção aos índios,
nada fez de concreto para resgatar a dívida para com os Ofaié-Xavante.
Ao contrário, em 1978, numa atitude de conivência oligárquica rural de
Brasilândia, a FUNAI tirou os Ofaié de seu território tradicional e levou
para a conflitiva região de Bodoquena, onde os índios e posseiros
disputavam com fazendeiros a posse e o arrendamento das terras da
Reserva Indígena Kadiwéu (MANGOLIN, 1993, p. 41).
145
Até o presente momento, depois de anos de impasse, a população indígena Ofaié
encontra-se concentrada em uma Reserva, cedida pela Hidrelétrica (CESP) instalada na
região e com uma área de 484 há. Quanto à situação jurídica da Terra Indígena Ofaié (TI
1.937,625 há), localizada no município de Brasilândia no leste do estado de Mato Grosso
do Sul, ela foi declarada como de ocupação tradicional pela Portaria 264/92 da Funai e depois disso
não houve mais nenhum andamento no procedimento demarcatório, apesar da ausência de
conflitos fundiários judicializados dessa área. Sua população, segundo o último senso
(IBGE, 2010) é estimada em pouco mais de 70 pessoas, à qual se soma um pequeno
contingente de Kaiowá (ao redor de 40 pessoas), sendo todas residentes na Aldeia Indígena
Ofaié, com apenas alguns idosos falantes da língua.
O povo Guató
O povo Guató é um dos cinco povos que sempre habitaram e habitam as terras
do atual estado do Mato Grosso do Sul. Conhecidos como índios canoeiros ou
simplesmente índios d’água, o povo Guató localiza-se em uma região marcada por uma
extensa planície alagável, mais conhecida como Pantanal.
FAMÍLIA GUATÓ EM SUA CANOA
As primeiras descrições sobre o povo Guató surgem a partir do século XVI, nos
comentários do navegador Alvarez Nunes Cabeza de Vaca. Em seus registros, o povo
146
guató aparece como aliados dos índios Guaxarapo59 e de outros grupos que, também eram
inimigos do povo Guarani (OLIVEIRA, 1996, p.52).
Os estudos sobre os índios guató nos revelam que a sua filiação linguística
continua incerta até os dias atuais. O que existe de indicação nos mostra que o povo Guató
possa pertencer a um subgrupo da grande nação Guaicuru (MANGOLIN, 1993). De
acordo com os escritos de Magalhães, o povo guató habitava
Toda essa área ocupada pelo povo guató caracteriza-se pela grande diversidade
fisiográfica e está inclusa, em parte, nos pantanais do Paraguai, Paiaguás, Cáceres e Poconé
(OLIVEIRA, 1996, p. 68).
Os Guató, ao contrário de diferentes grupos, não se organizam em aldeamento,
mas em famílias nucleares autônomas, independentes e espalhadas pelo território que
ocupam. “Cada família ocupa uma determinada área e locais onde, na maioria das vezes,
permanecem estabelecidas durante o período da seca e outros onde permanecem durante a
cheia” (OLIVEIRA, 1996, p. 51). Baseados nos estudos do arqueólogo Jorge Eremites de
Oliveira fica evidente que esse fator é determinante na organização social e na ocupação do
espaço por esse povo.
Conforme já descrito, o povo guató não habita em casa-aldeia, suas moradias
podem ser classificadas como abrigos provisórios e casas permanentes, que servem para
abrigar as famílias diante de fatores climáticos, como a chuva (OLIVEIRA, 1996, p. 90) e a
sazonalidade das enchentes da bacia do rio Paraguai.
Os abrigos provisórios
Apresentam uma construção de estruturas improvisadas, basicamente
com equipamentos de uso doméstico e de subsistência. É menos
elaborado que a casa tradicional e possui pequenas dimensões. Serve para
uma família passar a noite ou descansar por alguns poucos dias.
Constitui-se de dois esteios centrais fincados na terra e que sustentam
um frechal improvisado por uma zinga. O frechal é fixado por uma
59Os índios Guaxarapo correspondem a um grupo canoeiro atualmente dado como extinto. Esse grupo
também é conhecido como Guachico ou Guacharapo. Eles ocupavam a porção Centro-Sul do Pantanal
Mato-grossense, principalmente os rios Taquari, Miranda e parte do Paraguai (SUSNIK, 1978, p. 22-24 apud.
OLIVEIRA, 1996, p. 50).
147
amarração de enlace que deve ter sido feita com cipó. Dez flechas
funcionam como caibros para sustentar um revestimento improvisado
com dois tipos de esteiras de dormir que servem de cobertura. Quando
os Guató mudam de lugar, este tipo de abrigo é desfeito, sendo menos
provável encontrar evidências de suas estruturas (OLIVEIRA, 1996, p.
92-93)
O povo Kiniquinau
As primeiras informações sobre o povo kinikinau (ou Kiniquinau) remetem para o
período da História Colonial Brasileira. Realizando uma leitura mais detalhada dos registros
produzidos por viajantes e exploradores que adentraram no interior do Brasil é possível
149
identificar que os índios Kiniquinau pertencem ao subgrupo guaná e ao grupo linguístico
Aruak (SILVA, 2004) e (CASTRO, 2005). Segundo o antropólogo Roberto Cardoso de
Oliveira, em seu livro: Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terena, ele declara
que os Kiniquinau “[...] teriam atravessado o rio Paraguai, em ondas sucessivas, a partir da
segunda metade do século XVIII, e se instalaram na região banhada pelo rio Miranda, entre
os paralelos de 19º e 21º de latitude, onde foi encontrá-los os viajantes do século XIX”
(1976, p. 27). Nesse mesmo período, os índios mantiveram uma aldeia na região de
Miranda, mais precisamente “junto ao rio Agaxi, de onde se dispersaram, expulsos de suas
terras por uma civilização que as teria comprado do Estado do Mato Grosso do Sul”
(OLIVEIRA, 1976, p. 27).
Estudando sobre esse povo fica evidente que os índios Kiniquinau sofreram duas
dispersões ao longo de sua história. A primeira dispersão está registrada pelos historiadores
por volta do século XIX, mais notadamente para a Guerra do Paraguai. Durante a Guerra,
os índios foram obrigados a prestarem serviços aos brasileiros, fornecendo alimentos aos
soldados e, provavelmente, combateram no intuito de defender a sua terra.
Para o historiador Giovani José da Silva
Após a Guerra do Paraguai, os índios Terena e Kiniquinau, além de
outros, sofreram com sérias perseguições por parte de fazendeiros,
posseiros e invasores. O grupo dos kiniquinau foi disperso, mas algumas
famílias estabeleceram em Agaxi, próximo a Miranda. Os invasores da
terra, novamente, os perseguiram, obrigando-os a procurar outro lugar60
(2004, p. 12).
60 Esse registro equivale ao depoimento do ancião Leôncio Anastácio, concedido ao professor Rosaldo de
Albuquerque Souza no final de 2003. A entrevista está no texto do historiador Giovani José da Silva
intitulado: Os kiniquinau em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul: (in) visibilidade de um grupo indígena para o
Seminário Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência – Bonito/MS, 16 à 18 de junho de 2004.
150
abrange Aquidauana, Miranda, Nioaque, Bodoquena, Bonito, Porto
Murtinho e outras áreas fronteiriças com o Paraguai (CASTRO, 2005, p.
5-6, grifo meu).
O povo Atikum
Como afirmado anteriormente, o povo atikum é oriundo de Pernambuco e
chegou ao Mato Grosso do Sul no início da década de 1980. Segundo a pesquisa de Silva,
os Atikum antes de chegarem à região “passaram pelos Estados de São Paulo e Paraná,
além dos municípios de Selvíria (MS) e depois se dirigem a aldeia Passarinho, Área Indígena
Pilade Rebuá, no município de Miranda” (SILVA, 2000, p. 25). Na atualidade, os índios
atikum somam aproximadamente 55 índios localizados na Área Indígena de Nioaque, da
etnia terena.
Os índios Atikum, que estão no Estado, são falantes apenas do português e
possuem a “cor da pele negra, e por isso, são vistos pelos outros não como índios, mas
como negros”. Esses indígenas “antes de se identificar como pernambucanos, [...] preferem
151
ser identificados como índios do Nordeste, um índio diferente” que se originam de uma
“terra seca” (SILVA, 2000, p. 32). Conforme os estudos do autor, “terra seca é um nome
que vem de fora para dentro, que tenta desqualificar o grupo, enquanto oriundo de um
lugar desprovido de água e de difícil sobrevivência” (2000, p. 32).
Segundo Gabriel Ulian (2013, p. 73) o grupo étnico atikum soma um total de um
total de 7.499 índios, dos quais 4.273 residem fora de Terras Indígenas, constituindo a 15°
maior população indígena do Brasil fora de reservas (IBGE, 2010). No estado de Mato
Grosso do Sul a situação desse grupo indígena é bastante precária. Eles estão brigando
junto aos órgãos competentes por uma melhor condição de vida. Pois a Terra Indígena da
aldeia Cabeceira, cedida a esses indígenas, com cerca de 60 hectares, é muito fraca para a
plantação. Na área destinada aos indígenas, não conseguem retirar mais do que uma roça de
subsistência (mandioca, abóbora, feijão, etc.). “Os que ficaram na aldeia possuem pequenas
plantações e empregaram-se como peões de fazendas vizinhas”. Outro fato a mencionar é
que além de toda a dificuldade com a terra, ainda existe a falta de água. “A água da região é
obtida através de um poço”, pois não há rios nas proximidades. “A água dos poços não é
de boa qualidade e isso tem contribuído para uma alta incidência de doenças” (SILVA,
2000, p. 33).
Na pesquisa elaborada para a conclusão do curso de Especialização em
Antropologia, o historiador Giovani Silva registra por meio de entrevistas, as difíceis
condições desse grupo, como afirma o índio Atikum Aliano:
152
segura na mão um chocalho e o ritmo da dança é marcado pelas batidas dos pés (SILVA,
2000, p. 34-35).
Por muito tempo, foram discriminados por sua pele negra, seus cabelos
encaracolados e seu sotaque tipicamente nordestino. Por alguns anos
foram pejorativamente chamados de “Terra Seca” e por vezes sofreram a
acusação de não serem “índios de verdade”, tanto pelos Terena, quanto
pela população não índia de Nioaque que mantinha contato com esses
sujeitos dentro e fora da aldeia (José da Silva, 2000). Nesse sentido, se
torna relevante o fato desses indígenas não possuírem uma língua
distinta, sendo falantes apenas da língua portuguesa, com típico sotaque
nordestino, e de possuírem características fenotípicas negroides
(decorrentes da mistura com afrodescendentes), elementos que se
constituem como pontos de conflito quanto ao reconhecimento de sua
identidade indígena (p. 107).
Encerramos, dessa forma, a primeira parte deste módulo, sabendo que esta
sociodiversidade dos povos indígenas é sempre dinâmica, assim como todos os elementos
que se referem às manifestações culturais: as relações destes povos com seus territórios, as
relações com outros povos e consigo mesmos.
O Povo Kamba61
O povo kamba possui ligação com os Chiquitanos da Bolívia, e que receberam
esta denominação por volta do século XVIII pelos colonizadores europeus, sendo uma
denominação genérica dada a diferentes grupos étnicos alocados em uma vasta região
61Texto baseado em RODRIGUES, Andrea L. C. A dinâmica e a mobilidade étnico-social dos Kamba e suas
ressignificações identitárias. Campo Grande: Relatório Final. PIBIC, 2014/2015 (CNPq/FUNDECT).
153
chamada de Chiquito (Chiquitania), na região oriental da Bolívia. Esta área geográfica é
compreendida pelo espaço localizado entre o Chaco (sul), os rios Paraguai (leste) e Rio
Grande (oeste).
Os Camba-Chiquitanos são provavelmente o grupo mais numeroso da Bolívia
oriental, vivem nos municípios de Ñuflo Chávez, San Ignácio, Velasco e na Província de
Pando, todos situados na porção oriental do país (SOUZA, 2009).
154
[...] os pioneiros Kamba teriam aproveitado a “descida” para Corumbá,
como mão de obra da ferrocarril e daí se fixaram na cidade; [...] após esse
primeiro movimento migratório, outros indígenas se deslocaram,
atendendo aos chamados dos parentes (afins consanguíneos), já
moradores no lado brasileiro (SILVA, 201, p 151).
62Alguns pesquisadores como SOUZA (2009) e SILVA (2012) utilizam a escrita da etnia dos povos indígenas
boliviano como Chiquitanos. Em respeito aos interlocutores da pesquisa que conhecem a literatura de
SILVA, 2009 resolvi manter a mesma grafia, ou seja, Camba-Chiquitano.
155
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município de Miranda/MS. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Local).
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Campo Grande. 2004.
VIETTA. Katya. “Não tem quem orienta, a pessoa sozinha é que nem uma folha que vai
com o vento”: Análise sobre alguns impasses presentes entre os Kaiowá/Guarani. In:
Multitemas. Campo Grande: UCDB. Nº 12, 1998.
158
Breve reflexão sobre a diversidade
linguística e os povos indígenas em MS
Ilda de Souza63
Rogério Vicente Ferreira64
Introdução
63 Doutora pela Unicamp, com tese em Descrição da Língua Kinikinau, atualmente professora/pesquisadora
em Timor Leste pela CAPES. A leitura deste texto em sua primeira versão para o livro “Culturas e História
dos Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul” (2013), teve contribuição do Prof. Dr. Angel Corbera Mori
(Unicamp) e da Drª. Maria Pankararu.
64 Professor Doutor do Curso de Licenciatura Intercultural “Povos do Pantanal”, da Universidade Federal de
Mato Groso do Sul, Campus de Aquidauana, tem atuado com povos indígenas na área de linguística
descritiva.
159
chegaram a falar a Língua Geral, uma variação do Tupi, foi somente com Marquês de
Pombal que foi proibido o uso dessa língua. Essa característica ímpar do português
brasileiro fez com que tivéssemos uma enormidades de empréstimos oriundos do Tupis e
Tupinambás, por exemplo, socar “pilar” (sók, verbo transitivo), cutucar “tocar com a ponta
de dedo ou com vara” (kutúk, verbo transitivo, sapecar “chamuscar” (s-apék, chamuscá-lo),
jururu “tristinho” (i-arurú ‘está tristinho, pensativo), pixaim “cabelo enrolado, encrespado),
além disso, temos os topônimos, como os nomes de cidades, rios, relevos etc, por exemplo,
Ipatinga (‘yupátinga, ‘lagoas branca’), Uberaba (‘yberába, ‘rio Brilhante’), e assim tantos
outros que permeiam nossa língua atual. A influência não foi somente lexical, mas também
gramática, o que faz o português brasileiro bastante diferente do português europeu.
Mais do que um engano pensar em um país monolíngue, esse pensar evidencia
desconhecimento, descaso e pode até ser interpretado como preconceituoso, pois exclui,
do quadro de nossa diversidade cultural e linguística, as línguas faladas por grupos
considerados “minoritários” (pouco numerosos e de muito baixo poder político), como os
povos indígenas, os estrangeiros, os afrodescendentes todos eles falantes de sua língua
tradicional, além do português, língua oficial do país. Não se pode também ignorar a língua
gestual dos surdos e o sistema Braille de escrita utilizado pelos cegos.
Como se vê, somos um país plurilíngue, em que coexiste uma variedade de línguas
que compõem um bonito mosaico no cenário linguístico do Brasil. Esses falantes de
diferentes línguas estão refletidos em nossa cultura, o que nos torna brasileiros, únicos,
diferentes de outros povos, inclusive dos demais povos falantes de português.
Dados que constam em estudos de Rodrigues (2002) informam que aqui são
faladas atualmente cerca de 180 línguas indígenas. Segundo Oliveira (2009), existe cerca de
30 comunidades de imigrantes e seus descendentes que continuam falando suas línguas de
origem. Há também as línguas afro-brasileiras que são faladas nos quilombos, em rituais
religiosos e a língua brasileira de sinais, LIBRAS, que é utilizada pelos surdos. Há que se
lembrar, ainda, do sistema Braille, código tátil utilizado pelos cegos, para a escrita e leitura.
Este texto, de caráter etnolinguístico, tem o objetivo de apresentar o quadro das
línguas indígenas brasileiras, com ênfase nas línguas faladas por povos de Mato Grosso do
Sul. Pretendemos mostrar o panorama das línguas e enfatizar a importância dos estudos
linguísticos como a descrição e a documentação delas para o conhecimento científico, para
a preservação e a continuidade de uso. A maioria das línguas indígenas brasileiras encontra-
se em risco de extinção. Sabemos que é possível evitar o desastre da morte dessas línguas,
pois o natural é que elas se modifiquem, que se diversifiquem, que se transformem, porque
160
como expressão e veículo da cultura de um povo, elas também mudam. Quando chega a
ocorrer, a morte é um destino muito triste para as línguas e para os povos. Com a perda da
língua, perde-se um pouco da história, da cultura, perde-se muito da autoestima coletiva,
podemos acrescentar a isso a observação de Darell Posey, “com a extinção de cada grupo
indígena, o mundo perde milhares de anos de conhecimento sobre a vida e a adaptação a
ecossistemas tropicais” (POSEY, 1986, p.23), o pesquisador coloca o ponto de vista da
biologia, mas podemos acrescentar o linguístico, perde-se o conhecimento de mundo que
vem por meio da linguagem de cada povo.
161
distinguindo-se cada vez mais do grupo original. Mudanças são transformações que vão
acontecendo sem que as pessoas se deem conta e, elas ocorrem também na língua.
Uma característica universal das línguas naturais é que elas estão constantemente
mudando, transformando-se e diversificando-se, principalmente quando na dispersão de
grupos ocorre a aproximação de grupos de línguas diferentes. O contato entre línguas gera
vários fenômenos em quase todos os níveis dos sistemas linguísticos, o que pode resultar
em variações, mudanças e até surgimento de uma outra língua, fenômenos que podem ter
ocorrido com a língua de Luzia. Segundo Rodrigues (1999):
Tabela 1
Português Proto-Tupari Ayuru Makurap Mekéns Tupari
açaí * gwit+i Gwiri βirica kwiri βit+’i
machado *gwi __ βi kwi
βetok
distante *gwetsok gweeto kwesop
162
francês, italiano, português, romeno são membros dessa família. Por isso essas línguas são
chamadas línguas neolatinas.
Como é possível saber quantas línguas eram faladas no Brasil por ocasião da
chegada dos portugueses?
No artigo “Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas”, Aryon
Rodrigues (1993) apresenta o resultado de um estudo que fez por estimativa, com base
científica, partindo de documentos (manuscritos) de jesuítas do século XVI. De acordo
com esse estudo, cerca de 1200 línguas indígenas eram faladas nesta região da América do
Sul, para uma população ao redor de 5 milhões de habitantes.
Estima-se, que desde a chegada dos portugueses houve a perda de 1.000 línguas, o
que representa 85% das línguas existentes no território brasileiro no século XVI, informa
Rodrigues (1999). Segundo o autor, a morte continuada de cerca de 1000 línguas em 500
anos (a uma média de duas línguas por ano) estendeu-se ao longo do período colonial, do
período imperial e no período republicano, num contínuo sucessivo de silenciamentos sem
possibilidades de recuperação. Nessa enorme perda quantitativa que implicou também em
grande perda qualitativa, perdeu-se a oportunidade de conhecer línguas com propriedades
exclusivas, que hoje ajudariam muito na reconstituição dos troncos e famílias linguísticas.
Essas línguas desapareceram sem deixar vestígios. Provavelmente algumas famílias
linguísticas inteiras deixaram de existir (RODRIGUES, 1999). Com tudo isso, dificilmente
se descobrirá que língua falava Luzia (o nome dado ao crâneo de uma mulher com cerca de
11.680 anos, encontrado por arqueólogos em Lagoa Santa/MG em 1975).
Sabemos da existência de dinossauros e de Luzia em terras brasileiras, porque eles
deixaram vestígios. Mas a língua que morre ágrafa, não deixa vestígio, não há como
recuperá-la.
De acordo com outra importante pesquisadora e estudiosa das línguas indígenas
brasileiras, Lucy Seki (2000), os primeiros colonizadores tiveram contato apenas com os
povos tupi, que ocupavam grande extensão da costa atlântica brasileira. O tupi foi a
primeira língua conhecida e estudada pelos portugueses (jesuítas), com finalidades práticas
como estabelecer comunicação com os nativos e também para facilitar a catequese,
interesse maior dos jesuítas. Com esses objetivos, o padre José de Anchieta publicou, em
1595, uma gramática tupi. Neste período, também, era comum a tradução de textos como as
163
orações: credo, pai-nosso e ave-maria nesta língua. Em 1621, o padre Luis Figueira também
publicou uma gramática da língua tupi.
Outras publicações importantes são: a gramática kiriri, por Luis Vicêncio
Mamiani, em 1699 e a gramática da língua dos maramonin ou guarulhos, escrita por Viegas,
com a ajuda do padre Anchieta. Essas gramáticas foram reeditadas posteriormente, no
século XIX (RODRIGUES, 2005, p. 35).
Para Seki (2000), a ênfase no estudo e nos registros sobre o tupi tornou as demais
línguas invisíveis por trezentos anos. A partir do século XIX, algumas outras línguas
começaram a ganhar visibilidade através de estudos de missionários e estudiosos
(geógrafos, naturalistas, etnólogos, historiadores) que, em contato direto com vários
outros povos indígenas, além do tupi, registraram informações sobre as línguas. Esses
registros, apesar de não terem como finalidade específica o estudo linguístico, de tratarem
apenas de listas de palavras, transcrições precárias e algumas tentativas de descrição de
aspectos da gramática, contribuíram para os estudos comparativos, cujas análises
permitiram a primeira classificação das línguas brasileiras em troncos linguísticos e
famílias.
A redução de 1200 para 180 línguas indígenas nos últimos 500 anos foi o efeito de
um processo colonizador extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura, não
tendo sido interrompido nem com a independência política do país no início do século
XIX, nem com a instauração do regime republicano no final desse mesmo século, nem
ainda com a promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988 (RODRIGUES, 1999).
Embora esta tenha sido a primeira carta magna a reconhecer direitos fundamentais dos
povos indígenas, inclusive direitos linguísticos, as relações entre a sociedade majoritária e
as minorias indígenas pouco mudaram.
Mas, como a resistência é uma característica histórica do “ser brasileiro”, Seki
enfatiza que:
164
Se, por um lado, essa resistência dos povos indígenas nos redime um pouco, por
outro, impõe-nos uma responsabilidade maior, pois hoje somos conhecedores e
conscientes da importância da preservação do que ainda resta dessa riqueza cultural, e
sabemos que a preservação e revitalização não são tarefas fáceis.
Como podemos constatar, grande parte das línguas atuais no Brasil possuem um
número reduzido de falantes, muitas destas encontram-se em situação próxima à extinção.
165
Os Troncos e famílias linguísticas e o papel dos linguistas
166
As línguas se distribuem por cinco grandes grupos: Tronco Tupi, Tronco Macro-
Jê, Família Karib, Família Aruak, Família Pano; havendo ainda nove famílias menores e
dez Isolados linguísticos (RODRIGUES, 1986; TEIXEIRA, 1995; SEKI, 1999, p. 3).
Conforme foi exposto anteriormente, logo nos primeiros cem anos do
descobrimento do Brasil, uma gramática da língua tupi foi elaborada pelo jesuíta padre José
de Anchieta. Porém, apesar da importância dessa gramática para os estudos linguísticos das
línguas indígenas brasileiras que bem mais tarde se iniciaria, a intenção primeira do jesuíta
não era fazer um estudo descritivo da língua e sim sistematizar o conhecimento que
adquiriu sobre a língua para facilitar a comunicação e a catequese. Vários outros registros
sobre as línguas foram feitos, também sem o rigor da ciência, como os dados coletados por
Marechal Rondon e outros profissionais não linguistas e todos esses trabalhos de coleta de
listas de palavras e anotações sobre algumas formas de uso das línguas foram bem
aproveitados posteriormente pelos linguistas.
Repito essas informações aqui para ilustrar o fato de que as línguas sempre foram
objetos da curiosidade de estudiosos em geral, não apenas de linguistas. Mesmo sabendo-se
que a língua não é o único fator de identidade étnica de um povo, é importantíssimo que
ela seja mantida e praticada pelos seus falantes, pois ela ajuda a preservar muitos traços da
cultura e, principalmente, ajuda a manter a autoestima coletiva.
No Brasil, em 1960, uma disciplina ministrada por Mattoso Câmara Jr, no
departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ, em um programa de pós-
graduação para etnólogos “O método linguístico e sua aplicação ao estudo das línguas
indígenas”, resultou na publicação do livro “Introdução às línguas indígenas brasileiras”.
O curso teve a participação de linguistas do Summer Institute of Linguistics (SIL),
com o qual o Museu Nacional tinha convênio. As ações propostas pelo Summer eram a
descrição das línguas indígenas, a classificação genética e a confecção de dicionários, além
da capacitação de pesquisadores brasileiros para esse trabalho. Porém, tratava-se de uma
missão cristã-evangélica de caráter acadêmico que, posteriormente, acabou gerando
questionamentos e algumas polêmicas no meio científico. Apesar das divergências que
resultaram no fim do convênio, não se pode negar as importantes contribuições de alguns
estudiosos do Summer no desenvolvimento de trabalhos linguísticos com algumas línguas
indígenas brasileiras. No Mato Grosso do Sul, a língua terena conta com muito boa
descrição, com vários trabalhos publicados sobre aspectos da gramática da língua e também
material para uso didático, produzidos por integrantes do SIL. As línguas ofayé e kadiwéu
167
possuem descrições fragmentadas de aspectos da gramática e vocabulário produzidos por
missionários do SIL e ainda são utilizados como material de pesquisa sobre essas línguas.
Os linguistas têm se dedicado a fazer a descrição científica das línguas,
produzindo importantes bancos de dados para estudos teóricos, estudos comparativos,
classificatórios e de documentação. Atualmente essa tem sido a preocupação maior dos
linguistas, ou seja, a documentação das línguas indígenas, principalmente as mais ameaçadas
de extinção. Leite (2007, p. 19) afirma o seguinte: “A tarefa dos linguistas que se dedicam a
essa área de conhecimento é, pois, gigantesca: formar pessoal capacitado para cumprir essa
missão, tanto professores e pesquisadores indígenas, quanto membros da academia”.
Das línguas indígenas faladas atualmente no Brasil, a maioria está filiada a uma
família e a um tronco linguístico. No site do Instituto Socioambiental65 é o lugar que
encontramos uma das melhores representações dos troncos, famílias e línguas indígenas
brasileiras. A seguir apresentamos as línguas indígenas segundo suas classificações. Os
quadros apresentados pelo Instituto Socioambiental seguem a classificação feita por Aryon
Dall’Inga Rodrigues a partir de seu livro Línguas Brasileiras – para o conhecimento das
línguas indígenas (São Paulo-Edições Loyola, 1986).
169
170
171
POVOS INDÍGENAS DE MATO GROSSO DO SUL E SUAS LÍNGUAS
172
; Nhandéva estado
Guató Guató Macro-jê Ilha Ínsua - 131
(Corumbá)
Kadiwéu Guaicuru Porto Murtinho e 1.575
Bodoquena
Kamba ? ? Corumbá ?
Kinikinau Aruak P. Murtinho, 213
Bonito e Miranda
Ofayé Ofayé Macro-jê Brasilândia 60
Terena Aruak Aruak Aquidauana, 28.845
Miranda, Buriti,
Nioaque,
Sidrolândia,
Dourados
66 O mapa dos aldeamentos Guarani tanto no Brasil como nos outros países fronteiriços:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/mapa_guarani_final.pdf
173
Os povos Kaiowá e Guarani do Estado de Mato Grosso do Sul estão distribuídos
em várias aldeias na região da grande Dourados e outros municípios do sul e sudoeste do
estado, o que não significa que sejam possuidores dessa grande extensão de terra. Ao
contrário, a população Kaiowá e Guarani, neste estado, é estimada em mais de 50 mil
habitantes. Hoje são mais conhecidos pela luta que têm empreendido bravamente com
fazendeiros e com o governo estadual, pela demarcação de suas terras, pela posse de seu
território tradicional. São também conhecidos pelas evidências manifestas da situação de
miséria que a desterritorialização de povos de essência rural acarreta, ou seja, desnutrição
das crianças, marginalidade e revolta, estampadas com frequência nas mídias do estado.
Nesta história triste de perdas e de mortes não estão os Guarani Mbyá que habitam em
outras regiões fora de MS.
Com o aumento expressivo da população Kaiowá e Guarani, a expansão
descontrolada das fazendas e a expansão dos espaços urbanos aproximando-se muito de
aldeias ao longo das últimas décadas, surgiu a grande e insustentável questão da terra, que
tem levado à evasão de indígenas para assentamentos e para os centros urbanos. Essa é
uma realidade que tem exposto muitos indígenas a situação de extrema pressão social e
cultural, situação que gera muitos problemas como a miséria e todas as consequências
associadas a ela. O território não mais comporta toda a população. O pouco espaço
territorial gera muitos conflitos internos, além dos externos, obrigando famílias a
abandonarem a aldeia em busca de uma vida mais digna, o que dificilmente encontram.
A língua guarani é muito bem descrita, na avaliação dos pesquisadores da área.
Está bem situada em uma família, a Tupi-Guarani e a um tronco, o tronco Tupi. Existem
boas descrições do guarani em suas variações (Kaiowá, Mbyá e Nhandeva).
Um dos trabalhos mais recentes sobre o Kaiowá e Guarani é a tese de Cardoso
(2008), na qual a autora apresenta, além da descrição de aspectos morfossintáticos da
gramática da língua, as publicações mais relevantes sobre a língua guarani desde os mais
remotos estudos.
Segundo essa pesquisadora, os primeiros estudos sobre a língua guarani são os do
missionário Antônio Ruiz de Montoya: “Tesoro de la lengua Guarani” e “Arte y
vocabulario de la lengua guarani” de 1639 e 1640, respectivamente. A autora afirma que o
Guarani da época das missões jesuíticas foi usado como língua geral até o século XVIII,
por grande parte dos espanhóis no Paraguai e também no sul do Brasil e, que muitos
outros trabalhos de descrição foram publicados desde então sobre o Guarani antigo, com
destaque para os estudos de Meliá.
174
Há muitos falantes da língua Guarani, pois ela continua sendo repassada às
crianças como língua materna em vários grupos do Mato Grosso do Sul, o que não a livra
do risco da extinção, pois a urbanização já referida anteriormente e o contato com a
sociedade envolvente é uma ameaça sempre real a ser monitorada através de trabalhos
constantes de estudo e conscientização, de incentivo e de prática do uso da língua em todas
as situações da vida das famílias, sejam rurais ou urbanas.
Com relação à educação, muitos indígenas já concluíram o Ensino Fundamental.
Quanto ao Ensino Médio, o curso da Secretaria Estadual de Educação “Ára Verá” forma
professores para as séries iniciais e, a Universidade Federal da Grande Dourados criou em
2006 o curso de Licenciatura Indígena (intercultural) que atende, principalmente aos
Nhandeva e Kaiowá. Lembramos que as maiores aldeias destes povos já possuem o Ensino
Médio regular, com expressivo aumento de alunos, o que significa aumento dos futuros
acadêmicos indígenas.
Ainda sobre estudos linguísticos da língua kaiowá, Cardoso (2008) cita as
contribuições de missionários do SIL, Bridgeman, Harrison e Taylor, de 1958 a 1997. Os
Kaiowá e Nhandeva contam com produções de textos didáticos nas línguas e ainda com
gramática e dicionário para uso pedagógico.
Os três subgrupos revelam vigorosa energia em manter sua língua viva e nada
indica que isto tenda a arrefecer, mesmo em situações de alto grau de escolarização e de
relações interétnicas. A língua, ou, melhor, a palavra, para o Guarani na atualidade assume
relevância cosmológica e religiosa, representando importante elemento na elaboração da
identidade étnica (ALMEIDA, 2009).
2.2. Ofayé
De acordo com a pesquisa feita por Dutra (2004, 2011), até o final do século XIX
os Ofayé dominavam uma grande extensão de terra e conheciam cada palmo das beiradas
dos rios por onde andavam, por serem nômades (coletores e pescadores) e pelas
perseguições, muito comuns entre os povos indígenas rivais. As análises das
movimentações desse povo mostram que houve uma divisão em pequenos grupos, que
tomaram rumos diferentes, para as regiões de Aquidauana, Bataiporã, para a região dos rios
Ivinhema e Anhanduí até para as margens do rio Tietê, no Estado de São Paulo. Dispersos,
foram dados como extintos a partir de meados do século XX.
Um trabalho mais recente sobre a língua ofayé, Alencar descreve que “atualmente,
os ofayé vivem em uma área de 1.144 hectares, dividida em duas aldeias, próximas ao
município de Brasilândia, Mato Grosso do Sul, região Centro-Oeste do Brasil. De acordo
com o recente senso realizado na aldeia ofayé pela FUNASA (2010) vivem hoje ao redor de
105 pessoas distribuídas em 32 famílias, sendo 60 Ofayé, 5 Guarani, 2 Guarani kaiowa, 36
kaiowa e 2 não indígena, vivendo em casas de alvenaria” (2013, p. 11)
Quando se trata da denominação ofayé e sua grafia, eles foram conhecidos
também, durante muito tempo, pela denominação Ofayé-Xavante67, mas, segundo Dutra
(2011, p. 53), “desde o momento do seu aparecimento na documentação brasileira eles
foram chamados de diferentes modos, tendo seu nome grafado de várias e diversas
maneiras: Opayé, Opaié, Ofaiê, Faiá, Faié, Afaiá, Ypaié, Xavante, Chavante, Shavante,
Chavante-Ofaié, Chavante-Opaié, Kukura, Chachi, Wahéi (...). A pronúncia predominante,
67 Ofayé é autodenominação, o nome como eles mesmos se denominam. Entretanto, como viviam em uma
região do Centro-Oeste habitada pelos índios Xavante, os sertanejos em geral estendiam essa denominação a
todos os diferentes povos indígenas que ocupavam a região, fato que resultou em vários equívocos na
literatura. O primeiro estudioso ao tentar esclarecer a distinção entre esses povos foi Nimuendaju
(NIMUENDAJÚ, 1993) e mais tarde Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 1951).
177
segundo Darcy Ribeiro (1922-1997), é representada por uma consoante imprecisa entre o
‘f” e ‘p’68. Contudo, na atualidade, eles preferem ser chamados apenas de Ofayé.
O primeiro registro sobre a língua Ofayé data de 1901, feito pelo botânico e
etnógrafo tcheco Alberto Vojtech Frič (DUTRA, 2004). Sabemos que Curt Nimuendaju,
etnógrafo Alemão radicado no Brasil, registrou um vocabulário Ofayé com 300 palavras em
1909.
O professor Aryon Dall’Igna Rodrigues não insere a língua ofayé em nenhuma
outra família linguística do tronco Macro-Jê, com isso, torna-se uma língua de uma única
família dentro desse tronco linguístico. Segundo Dutra:
Após estas intrusões da língua Ofayé sobre o Jê, Sarah C. Gudschinsky faz uma
proposta concreta de classificação dessa língua em seu trabalho “Ofaié-Xavante, a Jê
Language”, apresentado na reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em 1958,
tal material foi publicado posteriormente em 1971, pelo SIL, em Estudos sobre Línguas e
Culturas Indígenas. Além de classificar a língua, a pesquisadora também descreve de
forma geral a fonologia da língua, bem como aspectos da morfologia.
No que diz respeito a questão socioeconômica dos Ofayé, segundo Alencar (2013,
p. 12), “hoje em dia, os Ofayé mantem pequenas plantações individuais e algumas poucas
criações. A terra pertence a todos, e esse sentimento pode ser observado quando se recebe
algo voltado para a comunidade e, logo em seguida, é realizada a partilha entre as famílias
mais necessitadas. A situação econômica é precária. A principal fonte das famílias ainda são
as cestas básicas”. Já mais recentemente, em nosso trabalho de campo69, participamos de
uma reunião em que a empresa de celulose (FIBRIA) está investindo em projeto de
empreendedorismo, com o apoio de Carlos Dutra, estão se organizando para confeccionar
materiais que represente sua arte, como camisetas, brindes entre outros. No que se refere a
68 Este tipo de imprecisão é devido o fato de se tratar de uma consoante fricativa bilabial surda labializada
[ɸw], vimos este mesmo tipo de imprecisão em tese e trabalhos acadêmicos.
69 Em maio de 2014 a convite de professores do Magistério Indígena, eu, Rogério, fui à aldeia ofayé para
trabalhar na confecção de uma cartilha de alfabetização que será publicada pela Secretaria de Educação de
MS.
178
lavoura, um indígena terena que vive entre os Ofayé está incentivando o plantio de
mandioca, com isso este grupo vai devagar retomando algumas de suas práticas. Já na
escola, a cartilha na língua ofayé é uma forma de manter viva a importância da língua,
mesmo que seja por meio do ensino de palavras para as crianças. Também estamos
trabalhando em um dicionário que faz parte de um projeto financiado pelo CNPq e que
tem como objetivo final servir para auxilio na escola e no aprendizado da língua. Outro
projeto é trabalhar em uma gramática pedagógica, isso ocorrerá a partir da tese de
doutorado de Oliveira (2006) que descreveu a morfossintaxe dessa língua.
O povo Terena sempre foi o mais numeroso dos subgrupos Chané (Guaná),
desde que esses povos começam a aparecer na literatura do Chaco paraguaio, ainda no
século XVI, início da colonização da América do Sul. Também foi o mais resistente ao
contato com o não índio, salienta Taunay (1931).
Após a Guerra do Paraguai, apesar do caos em que se transformou a região onde
ocorreram os combates, os Terena conseguiram se reorganizar e reaver parte do seu
território, porém, com todas as sequelas que um episódio daquela magnitude pode deixar.
Com pouca terra e muita pressão dos invasores, criadores de gado, muitas famílias
viram-se obrigadas a trabalhar para eles. Outras tiveram a sorte de conseguir voltar a
plantar suas pequenas roças e comercializar seus produtos nas cidades próximas às aldeias.
Outras famílias decidiram tentar a vida na cidade, enfrentando os infortúnios do
preconceito, da pobreza e do abandono. A partir daí os Terena passaram a estabelecer
maior contato com a sociedade envolvente e aprenderam a abrir as portas do comércio, da
escola urbana e da universidade, ainda que tivessem (e continuam tendo) de superar
grandes desafios, inclusive o do preconceito.
Atualmente o povo Terena está em aproximadamente 27 mil indígenas, estão na
maioria no estado de Mato Grosso do Sul, mas há também distribuídos vivendo nas
reservas indígenas localizadas nos municípios de Campo Grande, Nioaque, Dois Irmãos do
Buriti, Sidrolândia, Anastácio, Aquidauana e Miranda. Há famílias Terena vivendo na
reserva dos índios Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, e na dos Guarani-Kaiowá,
no município de Dourados. No estado de São Paulo outras famílias Terena vivem junto
aos Kaingang na reserva Araribá, na região de Bauru.
179
De um modo geral, podemos definir os Terena como um povo estritamente
bilíngue - entendendo por isso uma realidade social em que a distinção entre uma língua
materna (por suposto, indígena) e uma língua "de contato" ou "de adoção" (o português,
no caso) não tem sentido sociológico (ISA, 2012). A língua 'materna' para os Terena não
tem importância socializadora, no sentido de integrar o indivíduo em um mundo próprio,
conceitualmente diferente do 'mundo dos brancos'. Podemos afirmar que seu uso está
ligado a uma socialidade afetiva. Em outras palavras, a língua terena não é usada nestas
sociedades enquanto sinal diacrítico para afirmar sua diferença frente aos não-indígenas. De
acordo com Ladeira (2001), os Terena têm orgulho de dominarem, inclusive por meio do
uso da língua do purutuya70, a situação de contato com a sociedade nacional, e é este
domínio que lhes permite continuar existindo enquanto um povo política e
administrativamente autônomo.
3.2. Kiniquinau
Os Kiniquinau são índios Chané (Guaná), parentes dos Terena, um dos povos
indígenas mais numerosos do país, e também dos Layana, considerados extintos, porém
com alguns raros representantes ainda vivos, entre os Terena e os Kinikinau e mais o
(†)Exoaladi.
Em meados do século XX os Kinikinau foram dados como extintos por Darcy
Ribeiro e depois por seus seguidores. Ainda hoje, é possível encontrar artigos, dissertações
181
e teses que omitem a existência dos Kinikinau, quando se referem aos subgrupos Chané
(Guaná), referindo-se aos Terena como únicos remanescentes Guaná.
Tal equívoco não ocorre sem motivação. O Kiniquinau, além de um grupo muito
reduzido, vive em uma terra kadiwéu, num espaço multiétnico, onde dividem um pequeno
espaço territorial com Terena, Kadiwéu e não índios. Dado como extinto, ficou na
invisibilidade durante quase todo o século XX. O Exoaladi, também denominado “Guaná”,
foi dado como extinto desde o final da Guerra da Tríplice Aliança e nunca mais se teve
notícia sobre esse grupo. Quanto aos Layana, também dados como extintos, depois da
Guerra não conseguiram mais se organizar como grupo, diluíram-se entre os Terena,
Kiniquinau e os não índios, porém sempre se tem notícia de um ou outro Layana.
Devido ao difícil acesso a centros urbanos e ao pouco tempo de existência de uma
escola com Ensino Fundamental completo e agora também Ensino Médio, há poucos
Kiniquinau que tenha estudado ou que estejam estudando além do Ensino Médio. Na
atualidade, alguns encontram-se em fase de conclusão o curso Licenciatura Indígena
“Povos do Pantanal”, oferecido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A aldeia
está na jurisdição do município de Porto Murtinho, que fica a 200 quilômetros de distância.
Nestas últimas décadas, os Kiniquinau não só ficaram invisíveis, como esquecidos.
A comunicação na aldeia é de longo tempo em língua portuguesa, não só pelo fato
de haver povos de línguas diferentes (Kiniquinau, Kadiwéu, Terena e não índios), mas
porque as famílias que foram conduzidas para a aldeia São João, em geral, já possuíam um
histórico de dispersão do grupo original, de perdas culturais significativas. Os poucos
indígenas que ainda falam sua língua tradicional na aldeia não têm feito o repasse dela para
as gerações atuais.
A língua kinikinau, em particular, encontra-se em estágio muito avançado de
extinção, contando com 11 falantes proficientes e alguns falantes passivos ou semi-falantes.
Nos dois últimos anos o fantasma da extinção surgiu mais implacável entre o povo
182
Kinikinau, com a saída da aldeia de famílias muito importantes na luta pela continuidade de
práticas culturais e de uso da língua, motivadas por conflitos que, no fundo, tem tudo a ver
com a questão territorial.
Os Kinikinau são povos akoti poke’e “sem terra. O fato de viverem em uma terra
indígena alheia, de favor do povo que sempre foi (historicamente) dominador, hoje,
constitui um problema de grande pressão cultural, social e também política, com a luta pela
liderança.
A falante mais comprometida com as práticas das atividades culturais e,
principalmente, com o uso cotidiano da língua kiniquinau com a família e com outros
Kiniquinau da aldeia, a pessoa mais influente, mais procurada como referência da cultura
Kinikinau, principal colaboradora (informante da língua) em minha pesquisa do doutorado,
mudou-se da aldeia São João para um assentamento de índios Terena, no município de
Miranda, denominado “assentamento Mãe-Terra”, com outros membros de sua numerosa
família, na esperança de conseguir, mais de cem anos depois, voltar para o território
tradicional de seus antepassados. Dona Zeferina perdeu a referência exata do ano de seu
nascimento, devido a várias mudanças em seus documentos de identificação, mas sabe que
já passou bastante dos 70 anos. Mas continua na luta incansável pela herança que quer
deixar para os filhos, netos e bisnetos, que já são muitos.
Há dois anos chegou a eletricidade na aldeia e, com ela, o desejo de possuir os
bens que essa novidade pode oferecer e que conheciam apenas de longe, nas vitrines das
lojas da cidade de Bonito, onde vão, não com tanta frequência devido à dificuldade de
acesso. Hoje, há televisão em pelo menos quatro casas, onde vizinhos e parentes se reúnem
para assistirem aos programas e a jogos de futebol.
Esses fatores não são causas, mas influenciam no comportamento que pode levar
ao silenciamento definitivo da língua.
A língua kiniquinau pertence à família Aruak. Embora partilhe o mesmo
vocabulário com a língua terena, os Kiniquinau escreveram outra história de vida, de lutas e
perdas, de contatos, de dispersão, de abandono, de invisibilidade, de simbiose cultural com
povo de língua muito diferente, que é o Kadiwéu. É natural que não falem a mesmíssima
língua e eles são veementes ao apontarem diferenças que constatei em minha pesquisa, que
vão além do campo da fonética e do léxico. A língua kiniquinau é uma variação de um
proto chané, como o terena, o layana. Só estudos descritivos mais aprofundados poderão
esclarecer esse parentesco e as diferenças resultantes de Contatos. Trabalho para mais
linguistas.
183
Apesar de ter afirmado, em minha tese, Souza (2008) que não há falante
monolíngue em kiniquinau, descobri depois uma senhora, recentemente de mais de 70 anos
de idade, que mora sozinha e que fala apenas a língua kiniquinau. O fato de estar meio
isolada e de não praticar a interlocução no dia a dia, os falantes da aldeia acreditam que ela
possa ter preservado uma variação arcaica da língua. Porém, ao ouvi-la, em uma situação
bastante complicada, pelo fato de ela não receber estranhos, formulei outra hipótese,
porque me pareceu que essa falante tem problema físico que pode estar influenciando na
fala. Essas hipóteses dificilmente poderão ser testadas, porque ela não atende a porta, senão
para uma pessoa muito familiar.
É provável que existam falantes de kiniquinau fora da aldeia, pois muitas famílias
saíram da aldeia São João devido a desentendimentos com algumas famílias kadiwéu. Só
uma pesquisa mais abrangente poderá confirmar essa hipótese.
4. Família Guaicuru
4.1. Os Kadiwéu
184
Os Kadiwéu são remanescentes da nação Mbayá (Guaicuru), Rodrigues (2002, p.
73) aponta que “os Kadiwéu é o membro mais oriental dessa família (Guaicuru), único a
leste do rio Paraguai. Ele é muito semelhante ao Mbayá, documentado no século XVII pelo
padre Sánchez Labrador. O padre que entrou em contato com esses índios no Chaco
paraguaio em 1760, afirma que os Mbayá foram os primeiros povos indígenas a reagir
contra a dominação dos europeus, no Chaco, em 1661 (cf. SANDALO, 1997, p. 7).
Impressionado com a natureza bélica desses índios e, também com as peculiaridades de sua
cultura, Sanchez Labrador dedicou a maior parte de seus registros e de seu trabalho
missionário a eles. Elaborou uma gramática da língua Guaicuru e os textos sobre a história
e etnografias desses indígenas resultaram em dois volumes mais tarde publicados.
O povo kadiwéu se autodenominam Ejiwajegi (Povo da palmeira Ejiwa), sua
língua pertence à família Guaicuru. Quanto a língua, existem alguns trabalhos importantes,
podemos destacar os seguintes trabalhos: Griffiths e Griffiths, em 1976, com o trabalho
“Aspectos da Língua Kadiwéu”, posteriormente encontramos o trabalho da profa. Silvia
L.B. Braggio, em 1981, “Aspectos fonológicos e morfológicos da língua kadiwéu”, em
seguida, em 1995, Filomena Sandalo apresenta a gramática dessa língua, que, sem dúvida, é
o trabalho mais completo já feito sobre o Kadiwéu. Sandalo tem ainda se dedicado ao
estudo e pesquisa e publicado vários artigos científicos que mostram o aprofundamento de
suas reflexões sobre a gramática da língua, mas recentemente, em 2012, Lilian Ayres,
apresenta uma descrição da fala feminina e masculina da língua Kadiwéu, pela UFMS. Isso
faz com que os Kadiwéu estejam em uma situação privilegiada em relação a muitas outras
línguas indígenas brasileiras, como aponta Seki:
186
décadas. Atualmente, a população é estimada em 300 habitantes, não temos dados oficiais.
Esse povo está no processo de transição entre o evitar assumir a identidade indígena e a
luta pelo seu reconhecimento como povo indígena, junto aos órgãos oficiais, FUNAI e
Funasa, atual SESAI.
Não foram encontrados dados sobre a língua ou aspectos culturais. Por ser um
povo ainda recente no estado, não há estudos linguísticos, pelo menos disponíveis ou
acessíveis para pesquisa.
Um dos trabalhos mais recentes acerca desse povo é a tese de doutorado de
Giovani José da Silva “A Presença Camba-Chiquitano na Fronteira Brasil-Bolívia (1938 –
1987): Identidades, Migrações e Práticas Culturais” (JOSÉ DA SILVA, 2009).
5.2. Atikun
Segundo Silva (2003), o povo Atikum que se encontra em Mato Grosso do Sul é
um pequeno grupo que migrou de Pernambuco e se juntou a um grupo Terena em um
aldeamento no município de Nioaque. Por ser um povo de pele negra, sem o fenótipo
característico dos indígenas da região, sua indianidade foi questionada e o grupo teve algum
187
trabalho para conseguir o reconhecimento pelos órgãos públicos responsáveis, FUNAI e
Funasa, explica o pesquisador.
De acordo com informações do ISA (2012), não há registros da língua que os
Atikum falavam:
A não ser pouquíssimas palavras como: sarapó cobra grande e comestível;
toê fogo. Se há uma única referência com relação a Aticum (ou
Araticum), como língua extinta, quanto a Umã, pelo espaço territorial
pelo qual se deslocavam no século passado, pode-se insinuar, com apoio
na Introdução à Arqueologia Brasileira de Angyone Costa e em Os
Cariris do Nordeste de Baptista Siqueira, tratar-se de um grupo
pertencente à família Cariri, embora outros autores destaquem uma
língua Umã como isolada ou desconhecida.
188
LÍNGUAS A PESQUISAR EM MS
Existem índios da etnia layana (Aruak), parentes muito próximos dos kiniquinau e
terena, diluídos entre esses dois povos. Em geral essas pessoas não se identificam como tal,
temendo ser discriminadas ou, por medo de perder o direito ao espaço físico onde moram
(território).
É possível que ocorram ressurgências de outros grupos indígenas no estado,
como Chamacoco, por exemplo. Por enquanto, a pressão por que vêm passando os
Kaiowá e Guarani pela questão de demarcação de seu território não encoraja os
sobreviventes invisíveis de outras etnias a se manifestarem. Mas é só uma questão de
tempo para que isso venha a ocorrer, a exemplo do que tem ocorrido, nas últimas décadas,
em alguns estados do nordeste brasileiro.
O fato de muitos indígenas urbanos não se identificarem como tal e a falta de
pesquisas científicas nas diversas áreas do conhecimento junto a esses povos em aldeias
rurais e urbanas dificulta um censo mais próximo da realidade populacional em Mato
Grosso do Sul e mesmo no Brasil.
O desaparecimento de línguas indígenas no Brasil é uma preocupação mundial.
Não só de linguistas que sabem o que representa para as ciências a perda de uma língua,
mas também pela UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization),
que tem acompanhado o fenômeno do desaparecimento acelerado de idiomas em todo o
planeta. Essa preocupação levou organização a decretar em 1999, o dia 21 de fevereiro
como o Dia Internacional da Língua Materna.
A extinção de línguas no Brasil vem aumentando as estatísticas. Segundo
informações da UNESCO, a cada 14 dias um idioma desaparece. Pela preocupação com
esse cenário, o ano de 2008 foi definido como o Ano Internacional dos Idiomas. No Brasil,
apesar de trabalhos relevantes de linguistas reconhecidos nacional e internacionalmente, as
políticas públicas são bem inferiores à magnitude dos problemas relativos à morte das
línguas indígenas.
Hoje, muitos projetos de revitalização e reaprendizagem, tentam proteger as
línguas indígenas. As escolas, com a educação bilíngue e intercultural têm investido nessa
luta. São iniciativas pontuais, dignas de louvor. Porém, em termos de políticas públicas que
contemplem trabalhos mais sistemáticos e continuados, com projetos envolvendo a
comunidade, os falantes idosos, as jovens em idade fértil (potenciais transmissoras da
189
língua para seus filhos) e os linguistas capacitados para coordenar e monitorar esses
projetos, ainda estão no campo das utopias.
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193
ANEXO 1
TERRAS INDÍGENAS
http://cartageografica.blogspot.com.br/2011/12/mapa-das-tis-e-ucs-no-estado-do-
mato.html
194
IV
OS PRECONCEITOS E OS POVOS
INDÍGENAS
195
DESCONSTRUINDO
PRECONCEITOS SOBRE OS POVOS
INDÍGENAS 71
Introdução
71 O presente texto tem por base originalmente MUSSI & SOUSA, Povos Indígenas no Brasil – outra visão
da História e da Literatura. In: AGUILERA URQUIZA (Org.) Culturas e História dos Povos Indígenas em Mato
Grosso do Sul. Campo Grande, Ed. Da UFMS. 2013.
72 Doutora pelo Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco-
étnicos “nativos” brasileiros. E ancoradas em Oliveira (2003), argumentamos que, ao tentar “substituí-la nesse
momento implicaria uma outra invenção”. Afirmamos com Oliveira, “Reconheço que é uma denominação
comprometida com determinado olhar e que cada grupo dessa etnia tem características culturais próprias,
como cada um de seus membros tem especificidades individuais” (p 27).
75 Entendemos artefatos culturais como sendo todos os produtos disponibilizados, constituídos por meio de
relações coloniais modernas, permeadas também pelo poder, variando de produtos tecnológicos a simples
recursos materiais.
196
Levantamos algumas problematizações que vêm de uma reflexão necessária, a
revisão dos processos coloniais/modernos que acabou por posicionar povos e culturas.
Iniciamos as reflexões desde texto com as afirmações de Fanon (2001), por entender que,
para construirmos relações outras com os povos indígenas, faz-se necessário um processo
de descolonização de nossas mentes. Com as reflexões de Fanon (2001), propomos fazer
um exercício revisionário descolonial, entendendo-o como uma possibilidade de se
ressignificar as marcas da colonialidade herdadas dos processos de nossa colonização.
Neste texto, buscamos problematizar sobre como alguns artefatos culturais (textos
escritos, discursivos e imagéticos) marcam, classificam e constroem representações e
estereótipos, gerando preconceitos que acabam excluindo os povos indígenas do nosso
sistema social.
Na historiografia brasileira, podemos perceber que em qualquer tempo e em
diferentes contextos históricos os povos indígenas frequentemente não foram apresentados
como sujeitos de nossa história, geralmente são invisibilizados ou colocados às margens de
nosso processo societal.
Monteiro aponta a invisibilidade dos povos indígenas como atriz histórica na
historiografia tradicional, segundo o autor, “com a construção da figura do bandeirante,
entre outros mitos da colonização, o papel histórico do índio foi completamente apagado”
(MONTEIRO, 1994a, p. 119).
Um dos primeiros passos para um possível movimento de revisão, reversão e
desconstrução dos preconceitos, representações e estereótipos, é reconhecer que não existe
a realidade, mas sim as realidades. E que essas realidades são construídas por diferentes
grupos, de acordo com sua cultura, e que, por meio de práticas específicas ou de formas
próprias de poder, ser e viver vão construindo suas identidades (MIGNOLO, 2003).
Um movimento possível é rever as marcas coloniais, por entender que estas
produziram um silenciamento e a invisibilidade histórica desses povos, ou seja, o
“encobrimento” das questões que se referem à constituição individual e coletiva das
pessoas que vivem em nosso país. Indagamos se seria pelo fato do Brasil ter sido
“descoberto” que “encobriram” os povos indígenas, ou se “um fenômeno pode-se manter
encoberto por nunca ter sido descoberto” (HEIDEGGER, 2002 apud BERGAMASCHI,
2005, p. 35). Com esse entendimento podemos perceber que os colonizadores, desde o
início, não se abriram para o encontro com a cultura dos povos indígenas.
197
Autores pós-colonialistas76 como Bhabha (2003), Hall (1997), Said (1990), Mignolo
(2003), Quijano (2003) apontam para a importância de analisarmos as relações de poder,
ser e saber que constituem as diferenças culturais, mais especificamente a diferença
colonial, que numa posição binária dispõe de maneira hierárquica os “iguais” e “os
diferentes”, impondo aos “diferentes” lugares subalternizados e periféricos. E revisitar os
conceitos que nos levam a posicionar esses povos às margens de nosso sistema social, exige
que façamos uma revisão também dos processos coloniais, a qual pode contribuir para a
compreensão dos processos históricos, culturais e sociais da colonização europeia em
nosso país, permitindo-nos analisar como hoje se mantém estabelecida a relação entre os
sujeitos (índios e não índios77). Cria-se também, a possibilidade de construção de
pensamentos outros78.
Ao buscar nos relacionar com sujeitos de grupos diferentes, recorremos a uma
forma simplificada de identificá-lo. Por exemplo, os povos indígenas carregam consigo uma
marca generalizada e pronta de “ser índio”. Representações errôneas construídas em um
outro século e que permanecem sustentadas pela colonialidade.
A dominação política, social, cultural e epistêmica desenvolvida no Brasil é
conhecida como colonialismo. Desse processo, da colonialização, derivou a diferença
colonial; e nessa relação de colonização, de dominação, os europeus passaram a ser os
principais favorecidos, estabelecendo com os povos colonizados (indígenas) uma
dominação permeada pelo seu (europeu) modo de poder, ser e viver.
Entendemos com os autores pós-colonialistas que embora tenha ocorrido a
independência das ex-colônias e a formação dos Estados-nação, estes fatos não garantiram
a descolonização, e que apesar desta dominação ter se findado, a colonialidade se manteve
presente por meio de imposição política, epistêmica, jurídica e administrativa.
origem ocidental (leia-se Europa). Entendendo que esta também remete a um conceito errôneo (índio). Neste
texto, referimos a não índios aos grupos de pessoas de origem ocidental. .
78 Pensamentos outros, introduzido por Mignolo (2003), Walsh (2009, p.25) nos explica a conceitualização de
Mignolo, afirmando, “Falar de modos ‘outros’ é tomar distância das formas de pensar, saber, ser e viver
inscritas na razão moderno-ocidental colonial. Por isso, não se refere a ‘outros modos’, nem tampouco a
‘modos alternativos’, mas aos que estão assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial,
incluindo as diásporas africanas sobre as histórias e experiências da diferença colonial [...]”.
198
Maldonado-Torres (2007) ao interpretar as reflexões de Quijano (2007), nos
diferencia colonialismo de colonialidade, argumentando que:
Também não podemos negar, como nos indicam Nascimento e Aguilera Urquiza
(2010), que a Constituição Federal de 1988 representou um marco epistemológico
importante, pois os temas atinentes à identidade sociocultural e seu reconhecimento são,
hoje, direitos explicitados no texto constitucional.
Nascimento e Aguilera Urquiza (2010, p. 118), afirmam:
Pode-se dizer que na atualidade, estamos passando por uma quarta fase
no processo histórico que envolve os povos indígenas no Brasil e a
educação escolar, aquela marcada pelas conquistas políticas pós
Constituição Federal de 1988, quando constatamos uma verdadeira
“guinada epistemológica” dos conceitos e práticas da educação escolar
indígena no país [...].
199
O que representa um avanço no que se refere ao respeito à alteridade dos povos
indígenas, como também produziu deslocamentos importantes, esses se constatam, em
especial, no campo da educação. Enquanto um projeto de sociedade, a Educação
apresenta-se com base na história, cultura, mitos, tradições nacionais e locais.
No campo educacional podemos citar a implantação da Lei n.º 9.394/1996 – Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996) –, base de onde surgiram novas
legislações. Destacamos a Lei nº 11645/2008, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, já modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Esta estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". Passa a vigorar
a seguinte redação: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos
e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Para atender às disposições legais e compreender a relação entre índios e não índios
em países colonizados como o nosso, é necessário compreender os contextos em que se
deram as relações coloniais. Um dos objetivos deste estudo é problematizar o encontro dos
povos etnicamente diferentes, pois quando a história do país se cruza com vários povos e
culturas, torna-se pertinente analisar até que ponto essa história mantém uma versão
eurocêntrica dos envolvidos nesses processos de longa interação colonizadora.
Analisando como o silenciamento sobre a cultura e a história dos povos indígenas
nas sociedades ocidentais torna-se uma forma de educar eurocêntrica, que também
reproduz um olhar eurocêntrico sobre esses povos, notamos que este silenciamento e esta
cultura se dão através de representações, de estereótipos e de ideias desenvolvidas durante
séculos de colonialismo.
Como exemplo disso, em Mato Grosso do Sul se autodeclararam indígenas 73.295
mil (CENSO/IBGE/2010), configurando o estado como o segundo maior contingente
populacional indígena do país, e mesmo sendo uma expressiva população, esses índígenas
ainda seguem reconhecidos através de conceitos errôneos, de concepções estereotipadas e,
consequentemente, preconceituosas, que circulam no senso comum e fixam sua identidade
desde os primeiros contatos há mais de 514 anos.
Estudar, revisitar a Antropologia e História dos Povos Indígenas é uma
tentativa de refletir como esse período ainda traz marcas das relações coloniais entre suas
200
culturas e organizações de vida e de pensamento. Como afirma Azevedo (2013)79
“Acreditamos que conhecendo mais, o preconceito diminui. Como os povos indígenas
vivem e vão continuar vivendo no território brasileiro é questão que diz respeito a todos
nós”.
Reconhecemos que abordar a temática da diferença entre os povos indígenas e não
indígenas, na perspectiva do respeito à sua alteridade, cultura, luta pela terra,
conhecimentos tradicionais, cosmovisões, modo de viver, ainda constitui-se em um desafio
cultural e epistêmico.
A escola é uma instituição formadora, e, por isso, precisa elaborar discursos outros,
pois ainda temos nas escolas um currículo eurocêntrico, falocêntrico, heterossexual e
cristão que segue ensinando indígenas, negros, mulheres, homosexuais, eliminando suas
diferenças e impondo-lhes um modelo cultural diferente ao seu.
79 http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-preconceito-historico-contra-os-povos-indigenas
201
por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos do colonizador, os indígenas,
entretanto, apesar de considerados bens de uso e troca, não eram totalmente desprovidos
de vontade e de resistência a quem lhes feria o corpo e a alma.
Convém observar que geralmente os livros de história mencionam as especiarias, a
água em abundância, a mão de obra dócil e disponível, as safras agrícolas fartas e
constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o processo de
colonização e exploração concebido pela metrópole. No entanto, é preciso considerar
outro fator que nem sempre é citado, mas foi a causa de muita luta e custou o sangue de
milhares de pessoas espalhadas pelo sertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua cata, os
nativos. A propósito, podemos dizer que o movimento de resistência indígena começa a ser
uma constante e ganha mais relevo, junto aos não indígenas, a partir desse período.
Não se pretende, com esta reflexão, fazer uma análise crítica dos livros didáticos
de História e Literatura – longe disso. O propósito é usar das proposições discursivas de
alguns autores e obras, tomando-os como ponto de partida para o entendimento de
generalizações e equívocos carregados de preconceitos em relação às comunidades
indígenas, que se cristalizaram com o tempo e se estenderam ao senso comum, tendo
reflexos negativos até os dias atuais.
De modo geral, na História do Brasil os indígenas aparecem como
“Desqualificados enquanto seres humanos, vistos como animais sem alma, bárbaros,
demônios” (MUSSI, 2010, p. 10). No livro intitulado: História das Cavernas ao Terceiro Milênio
das autoras: Mota e Braick (2012) a figura dos indígenas aparece no bojo do
Descobrimento no item O Olhar dos Vencidos da seguinte forma:
202
apontaremos, mais adiante, a visão de contato que os povos indígenas apresentavam sobre
os não indígenas.
Convém observar que nesse mesmo livro, no item que trata dos Nossos
Contemporâneos Indígenas, é retomada a discussão chamando a atenção para os riscos de
generalizações no exame da cultura das sociedades tribais: Sociedades Indígenas, a partir das
reflexões de Tassinari (1995). Na sequência, assume o risco das generalizações, afirmando
que a vida social dos indígenas estava centrada nas relações familiares e no papel que cada
elemento ocupava na comunidade.
A par dos riscos, as terminologias utilizadas ainda mostram que há falta de
entendimento do que representam tais grupos étnicos no universo Latino-Americano e que
ainda são muito explicitas as expressões generalizantes. Outro ponto que nos chama a
atenção, além das terminologias generalizantes, é a indistinção que se faz entre as nações
indígenas americanas, registrando na mesma ordem de apresentação os povos indígenas do
Brasil e os povos da América do Norte, além dos Pré-colombianos (MOTA; BRAICK,
2012, p. 158-160). Dessa forma, os jovens que estão tendo contato pela primeira vez com
documentos escritos tratando da História do Brasil ainda não têm como discernir o tempo
histórico e as especificidades culturais que permeiam a compreensão de tais grupos étnicos.
Assim sendo, tais visões generalizantes não contribuem, portanto, para o entendimento
crítico das especificidades culturais desses povos; além de submetê-los a uma ordem de
comparação simplista e equivocada!
O livro didático cumpre seu papel de legitimador dos saberes na escola e, muitas
vezes, seu papel é o de transmissor de estereótipos e preconceitos, como veremos adiante
neste texto. Além de não atender aos objetivos dos PCNS (Parâmetros Curriculares
Nacionais – Indagações Curriculares) e nem à nova Lei nº 11.645 (2008), que institui os
conteúdos dos povos indígenas na Educação Básica, alguns livros didáticos ao invés de
desvelar e desnaturalizar os preconceitos, acabam reforçando processos de discriminação.
Nesse sentido, a presença dos indígenas nos livros didáticos é quase sempre
fragmentada, depreciativa e, muitas vezes, de uma forma secundária, associando-se à ideia
de que falar de “índio” é falar de passado. Nos livros de História, principalmente, a figura
do índio aparece em função do colonizador e quando percebidos, o são de forma
secundária, folclorizada ou colocados em um tempo e com práticas culturais do passado. E
da mesma forma que aparecem na história do Brasil, acabam por desaparecer como um
passe de mágica ou simplesmente como uma cegueira histórica! O problema resultante das
203
sucessivas propostas tanto dos livros de História quanto dos livros de Literatura é que além
de imagens fragmentadas e distorcidas, conforme já mencionado, tais iniciativas acabam
por não preparar as crianças e os jovens para entender a presença dos povos indígenas nem
no presente e nem no futuro.
Nessa perspectiva propositiva, Rocha (1984b) assevera que a figura do índio no
livro didático representa uma forma vazia que confere sentido ao mundo dos não indígenas
(dos brancos). Os indígenas são tidos como seres “alugados” nas Histórias do Brasil, de
modo que se constroem as imagens de acordo com as alternâncias de funções. Por
exemplo, em um mesmo livro eles podem aparecer de três formas diferentes: em um
primeiro momento, no capítulo do “descobrimento” aparece como a figura do “selvagem”,
“primitivo”, “antropófago”, isso na tentativa de mostrar o quanto os colonizadores
europeus eram superiores. Já no capítulo que trata da catequese, a figura do índio é vista
como “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, o que vem demonstrar o quanto
eles precisavam de religião, bem como de “proteção”. E no capítulo posterior, que trata da
“etnia brasileira”, a figura do índio já é a de um ser “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor à
liberdade”, que por ser tão livre era incapaz de trabalhar (ROCHA, 1984b, p. 17-19).
Conviria observar que a gênese da reflexão antropológica é contemporânea ao
período do descobrimento. No entanto, de acordo com as concepções de Laplantine
(2010), o Renascimento (séc. XV e XVI) começa a explorar espaços até então
desconhecidos e a construir discursos sobre os povos que lá habitavam. As primeiras
observações e os primeiros discursos sobre esses povos provinham, principalmente, dos
relatos de viajantes e dos relatórios dos missionários, principalmente dos Jesuítas. Assim,
inúmeras questões se colocavam à época a respeito daqueles seres recém-descobertos
como, por exemplo, se eles eram seres humanos, se pertenciam mesmo à humanidade; se,
por serem extremamente selvagens, tinham alma. Com isso, o critério essencial para
atribuir-lhes um estatuto humano era estritamente de cunho religioso.
Dessa forma, ainda de acordo com as concepções de Laplantine (2010), entre os
critérios utilizados pelos europeus, a partir do século XIV, para conferir ao índio um
estatuto humano, além do religioso, podemos situar alguns dos comportamentos usuais
mais disseminados:
205
“outro”, assuntando seus mistérios e esforçando-se por decifrar seus enigmas. É como se
um dissesse ao outro: “Decifra-me ou te devoro!” E o mais interessante é que, para ambos,
indígenas e não indígenas, o nome é o lume, é a luz, como diziam os gregos, ou seja, dar
nomes às coisas é iluminá-las pelo conhecimento. A linguagem, portanto, desempenha um
fator de grande importância para entendimentos, se bem que, para desentendimentos,
também.
Assim, os povos indígenas, ao se referirem aos brasileiros não indígenas, usam
termos diferenciados; por exemplo, os Tenetehara (povo do Maranhão e Pará) quando
queriam se referir aos não indígenas costumavam chamá-los de “Karaiw”, ou de “Caraíba”,
palavra que aparece entre outros povos de língua tupi desde o século XVI. Os Tupinambá
usavam o termo caraíba para se referirem aos seus pajés-profetas, homens com habilidades
de falar com os espíritos e ter a sabedoria da previsão. Antes disso, costumavam chamar os
luso-brasileiros de “mázán”, termo equivalente a “marinheiro” ou mesmo português.
Os Tupinambá também costumavam chamar os franceses que estiveram no Rio
de Janeiro de “maíra”, ou seja, “encantado”, terminologia que, na visão indígena,
representava o herói civilizador; posteriormente, passaram a distingui-los por meio de uma
expressão que significava “povo de hábitos diferentes”. Já os Avá-Canoeiro, povo tupi do
alto Rio Tocantins, chamam ainda hoje os não indígenas de “maíra”. Os atuais Guarani,
que descendem dos Carijó e Guarani do século XVI, chamam de juruá, aos não indígenas,
termo sem significado especial, assim como os Terena, do Mato Grosso do Sul, chamam-
nos de purutuye.
Em síntese, observa-se que nessa concepção indígena, os europeus aparecem
como seres especiais dotados de poderes divinos, ou simplesmente como homens comuns,
mas com dons de encantar; já, para a maioria dos europeus, os indígenas não passavam de
seres selvagens, silvícolas, primitivos ou povo sem alma; aliás, até o século XVIII, ainda se
tinha dúvida se os indígenas podiam ser considerados cristãos, dignos de serem batizados,
ou até mesmo se eram seres humanos, indivíduos, gente, conforme já mencionado.
Que contraste! Para os indígenas, como se viu, o homem branco era considerado
um ser supremo, dotado de sabedoria, dons extraordinários e encantamentos. Veja que no
encontro das culturas cada um, ou cada cultura, possui uma forma diferenciada de olhar.
Como percebemos com o relato de Macunaíma, do escritor Mário de Andrade (1928), para
uns, Cruzeiro do Sul; para outros, Pai do Mutum. E, acima das diferenças de cultura e de
concepção de mundo, as estrelas continuam a brilhar e o céu é para todos!
206
Nesse sentido, quando cada povo, cada cultura se encontra, se conhece, se
reconhece e interage, vão surgindo explicações cheias de fantasia; ou muitas vezes lógicas
definitivas: cada um se esforça para impor as suas crenças ao outro, como ocorre com a
origem do homem. Assim como existem variadas explicações fornecidas pelos estudiosos
sobre a origem do homem no continente americano, o mesmo ocorre com os povos não
indígenas, que também buscam fornecer explicações sobre a origem do homem branco.
Embora os indígenas não disponham dos mesmos recursos tecnológicos das
sociedades não indígenas, auxiliados por sofisticados instrumentos de precisão, eles
também fornecem respostas sobre a origem do homem branco, por meio de explicações
míticas. A falta de precisão está diretamente ligada à carência de conhecimento dos
fenômenos físicos, biológicos e humanos. Por exemplo, como esses indígenas vão dar
explicações geográficas sobre os não indígenas, quando, na verdade, com raras exceções,
não ultrapassam os espaços que percorrem em suas aldeias?
Mas afinal, em que consiste a preocupação dos indígenas com a origem dos
brancos civilizados e como isso pode ser constatado em suas explicações míticas?
Retomando os estudos de Melatti (2007), é possível entender como isso acontece na
prática; mas a “prática”, aqui, deve ser entendida como concepção de mundo, aquela tal de
“cosmovisão” de que já falamos e que se manifesta nos relatos lendários, ou seja, por meio
de narrativas míticas, muito próprias da educação indígena. Afinal, nas sociedades
indígenas, são as narrativas que ensinam definitivamente; e a conduta do dia a dia é a
demonstração concreta de que a lição foi aprendida.
Aqui vão dois exemplos muito interessantes. O primeiro mostra que nas várias
aldeias dos índios Timbira, que vivem no sul do Maranhão, e norte de Goiás/Tocantins, os
indígenas acreditam que o homem branco surgiu da transformação de um menino
chamado “Aukê”. A história desse menino era mais ou menos assim: antigamente não
havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena ficou grávida e toda vez que ia
tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu filho, que ainda não tinha nem nascido,
saía do seu ventre e se transformava em um animal, brincando à beira d’água; depois, a
criança voltava outra vez ao ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém.
Um dia, o menino nasceu. Aukê, ainda recém-nascido, transformava-se em rapaz,
em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os poderes sobrenaturais de
Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolveram matá-lo; nas primeiras tentativas, não
tiveram sucesso. Conta-se que uma vez, seu avô, em nova tentativa de matá-lo, levou-o
para o alto de um morro e empurrou-o de lá no abismo. O menino, porém, ao cair não
207
morreu, pois virou folha seca e foi caindo devagarzinho, voltando para a aldeia são e salvo!
Foi então que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirar Aukê, o que realmente
ocorreu.
Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as cinzas do
menino, achou no lugar uma grande casa de fazenda, com bois e outros animais
domésticos. Aukê não havia morrido, mas transformou-se no primeiro homem civilizado e
ordenou ao avô que fosse buscar os outros habitantes da aldeia. Todos vieram e Aukê
pediu que escolhessem entre a espingarda e o arco. Como os índios ficaram com medo de
pegar a espingarda, preferiram o arco. Por terem preferido o arco, permaneceram como
índios. Se tivessem escolhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê
chorou com pena dos índios por não terem escolhido a civilização.
Com essa história, em que os índios Timbira explicam a origem dos não indígenas
chamados de civilizados, também é possível depreender alguns conceitos e determinadas
explicações sobre aquela nação indígena. Por exemplo, o estado de submissão e pobreza
em que eles vivem diante dos brancos, ou seja, dos não indígenas. É importante notar que
os “civilizados” conhecidos pelos Timbira são os que estão mais próximos de suas aldeias,
destacando-se entre eles os que possuem maiores recursos materiais, ou seja, os
fazendeiros, grandes proprietários e possuidores de gado bovino, considerado de grande
valor entre os homens. Por isso Aukê aparece na figura de um fazendeiro criador, por
conhecerem bem apenas uma área restrita e estarem submetidos à influência desses ricos
proprietários rurais; isso reflete a explicação da origem dos brancos, geralmente poderosos,
o que constitui, portanto, uma visão circunscrita à realidade em que vivem (MELATTI,
1970, p. 27-28). A propósito, convém observar que na explicação mitológica feita pelos
Timbira o conceito de “civilizado” é apresentado como uma analogia feita aos não
indígenas, ou seja, aos “brancos”.
O outro exemplo é retirado da cultura dos Kadiwéu, que habitam a região sul do
Pantanal do Estado de Mato Grosso do Sul; são remanescentes dos índios “Guaykuru”,
que domesticaram o cavalo e com ele dominaram toda a região, mantendo os grupos
indígenas de outras procedências étnicas em um sistema semelhante ao da “vassalagem”,
onde havia trocas de proteção por alimentos e mulheres. Contam que até mesmo os
espanhóis e portugueses foram aprisionados pelos “Guaykuru”80. Seus guerreiros, para se
80A história dos índios guaicuru está ligada à inserção do cavalo em terras da América espanhola, em 1541.
Chegando da Espanha, o novo Governador Nuñez Cabeza de Vaca, sabendo que o povoado de Buenos
Aires encontrava-se abandonado, resolveu viajar por terra com seus soldados da Ilha de Santa Catarina, até
Assunção do Paraguai, em lombo de cavalo. Chegando ao rio Paraná, encontrou os índios guarani que, na
208
defenderem dos inimigos, costumavam cavalgar dependurados na crina do cavalo, no
sentido horizontal, para não serem vistos. Quando corriam pelos campos, quem os via da
posição contrária, tinham a impressão de que eram apenas cavalos selvagens, correndo em
disparada.
Bem, voltemos à explicação dos Kadiwéu sobre a origem do homem branco.
Conta a história, que os próprios Kadiwéu (e outros povos, como os Terena, os Kinikinau,
os Kaingang, os bolivianos, enfim, todos os homens) foram tirados pelo herói “Go-noêno-
hôdi” de dentro de um buraco. Enquanto outros povos receberam do herói terras e outros
dons, os Kadiwéu não receberam nada, ficando somente com o privilégio de lutar contra os
outros, tomando-lhes os seus bens. O mito, portanto, explicava não somente a origem dos
povos, mas também os seus princípios de dominação e a relação com outros povos. Em
uma versão mais atualizada deste mito, os Kadiwéu não esperaram mais o herói “Go-
noêno-hôdi”, que fora buscar seus patrícios, ou seja, mais presentes para eles. Saindo da
letargia da espera, os Kadiwéu foram buscar alimentos, como frutas e mel nas matas. Ao
regressar, o herói disse para os Kadiwéu que eles poderiam ficar como estavam, ou seja,
livres pelos campos, lutando por sua subsistência; quanto aos demais povos, deveriam fazer
o seu próprio roçado, fixando-se em algum lugar. (MELATTI, 1970, p. 28-29).
Ao prestar a atenção aos dois mitos, levando em consideração a compreensão que
temos sobre a diferença do “outro”, tanto o Timbira quanto o Kadiwéu, observe que a
preocupação com a origem do homem não indígena estava ligada à percepção da diferença
de posses: o homem branco marca a sua presença – e sua existência no mundo – como
possuidor de coisas que os indígenas gostariam de ter, na suposição de tornarem a vida de
todos muito mais fácil e agradável!
Se as narrativas demonstram que a imagem do outro fica sempre distorcida ou
desfocada, numa clara deficiência de compreensão, o que é necessário fazer para que não
ocorra tanto estranhamento entre ambas as partes? Na visão que um faz do outro é preciso
relativizar essa diferença, ou seja, na forma de uma cultura entender a outra, a diferença não
deveria se transformar em hierarquia, em superiores e inferiores, ou em bons e maus. O
troca de presentes, o auxiliou na construção de jangadas, servindo de transporte para navegarem rio abaixo
até Assunção. Em território brasileiro, os cavalos se reproduziram e foram caçados pelos guaicurus. Foram
domados pelos índios e acabaram sendo utilizados tanto nas caçadas, quanto nas guerras contra os inimigos.
Os guaicurus se tornaram tão exímios cavaleiros que ao se dependurarem na crina do cavalo, tornavam-se
“invisíveis” aos olhos do inimigo, pois ao correrem de lado davam a impressão de que os cavalos estavam
sozinhos (Trecho do texto retirado do livro de Acyr Vaz Guimarães: Quinhentas Léguas em Canoa de
Araraitaguaba às Minas do Cuiabá: as monções Paulistas, 2000).
209
importante seria que se percebessem mutuamente em sua dimensão maior: a riqueza por
serem diferentes e o orgulho de terem identidade cultural.
210
Na concepção moderna e liberal, o conceito de representação está associado à
delegação de poderes, por meio de votos, na expectativa de que os eleitos articulem e
defendam pontos de vistas e interesses dos eleitores. Recorremos ao conceito de
representação para designar o uso dos variados sistemas significantes disponíveis (textos,
imagens, sons, discursos) para “falar por” ou “falar sobre” categorias ou grupos sociais.
Observamos que as representações, entendidas aqui como carregadas de
estereótipos e preconceitos, foram primeiramente construídas pela estranheza do olhar
ocidental sobre uma forma de ser “indio”, culturalmente diferente a ele (o europeu), depois
estrategicamente, no bojo de um projeto colonizador, foram sendo produzidas e
reproduzidas sistematicamente ao longo tempo de convivência.
As representações sobre os povos indígenas, produzidas pelos
colonizadores e registradas, também, em muitas produções historiográficas oficiais, “É a
visão de povos bárbaros, sem cultura, que levavam uma vida próxima a dos bichos,
construída pelos colonizadores, que acaba sedimentada nas representações e no imaginário
de amplos setores da população regional até o presente” (BRAND; CALDERONI, 2010,
p. 64), e se diferem e muito de povos e nações dinâmicas existentes em nosso país.
As representações demonstram que a imagem do outro (do indígena) fica sempre
distorcida ou desfocada, em uma clara deficiência de compreensão, resultando em
estranhamentos entre ambas as partes. Na visão que um faz do outro, é preciso relativizar
essa diferença, é preciso construir uma imagem menos etnocêntrica em relação à cultura do
outro.
Falar de representações sobre povos indígenas é compreendê-las com olhar
etnocêntrico. Segundo Rocha (1984a, p. 07), o etnocentrismo deve ser percebido como
“[...] uma visão de mundo em que o nosso próprio grupo é tomado como o centro de tudo
e todos os outros são pensados e sentidos a partir dos nossos valores, nossos modelos e de
nossas definições do que é existência. ”
Foi justamente para mostrar como se dá a construção do conhecimento, ou de uma
ciência sobre a diferença entre seres humanos, que surgiu a Antropologia Social. Assim,
essa diferença não se equaciona com a ameaça, mas com a alternativa, a alteridade. Não é a
hostilidade do “outro”, mas a possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”
(ROCHA, 1984a, p. 21).
A propósito, um dos entendimentos equivocados – e aqui já referido – a respeito
dos povos indígenas é o de que não contribuem para o desenvolvimento do País, seja do
ponto de vista econômico, político, ou sociocultural. Poderíamos dar inúmeros exemplos
211
mostrando a contradição desses equívocos, no âmbito da agricultura familiar, na
conservação do meio ambiente, na defesa do território, na língua portuguesa, nas artes, na
medicina tradicional, na educação; enfim, em muitas áreas do conhecimento.
É importante entender a partir do universo indígena, que a economia desses
povos exerce mais uma função social do que econômica, propriamente dita, ou seja, são as
dinâmicas sociais de cada sociedade que estabelecem o ritmo, o tempo desprendido e o
sentido das práticas econômicas e produtivas. Ao compreendermos essa dimensão social da
economia e do trabalho, desfaz-se a ideia incorreta de que as sociedades indígenas exercem
suas atividades produtivas apenas para suprir suas necessidades básicas de sobrevivência
física; além dessa dimensão material, vimos que o trabalho também possui uma dimensão
pedagógica, espiritual e moral.
Convém repetir, portanto, que a economia, entre os povos indígenas, não exerce
apenas uma função material, mas também social, moral e política. É preciso repetir ainda:
os povos indígenas têm uma compreensão muito peculiar do trabalho e do modo de
garantir a sobrevivência, afastando-se do conceito de lucro e de acumulação de bens,
próprio das sociedades não indígenas. E mesmo essa compreensão diferente de trabalho
não é única para as diversas nações e etnias indígenas, pois cada sociedade particular
elabora diferentes conceitos e diferentes práticas econômicas.
Essa tentativa de se apresentarem modelos únicos e estranhos às comunidades
indígenas sejam eles econômicos, culturais, políticos, sociais, e até mesmo pedagógicos,
para se adequarem às expectativas das sociedades não indígenas, só podia resultar nos
resultados negativos já conhecidos. Nenhum desses modelos impostos foi bem-sucedido
em suas pretensões; não levaram em conta que as sociedades indígenas, à época do
descobrimento do então chamado Novo Mundo, já tinham uma forte identidade cultural e
havia uma enorme diversidade entre esses povos. Mesmo assim, há inúmeros exemplos na
história, de modelos impostos e malsucedidos que, enquanto duraram – alguns durante
décadas –, causaram grandes prejuízos às comunidades indígenas.
Como se pode observar, apesar de todos os esforços de readaptação econômica, a
busca pela sobrevivência continua expondo muitos povos indígenas do País a situações
precárias e a condições degradantes de trabalho. São “modelos” impostos que, embora
malsucedidos do ponto de vista dos valores culturais e econômicos dos indígenas, geram
lucro e abastecem a economia não indígena da região e contribuem para a formação do
Estado e, por conseguinte, para a nação brasileira.
212
A propósito, conviria ressaltar que nas sociedades indígenas, o princípio da
reciprocidade determina todo o processo de distribuição e troca do que é produzido. Em
algumas regiões, como é o caso do Alto Xingu, existe uma complexa rede de trocas: a partir
dessas trocas de alimentos, utensílios domésticos e até ornamentos, são firmadas as boas
relações sociais entre uma sociedade e outra; mas não é difícil ocorrer uma negociação
desvantajosa para uma das partes, trazendo desarmonia entre essas sociedades. Mas uma
boa conversa ao pé do fogo pode superar a desavença.
Assim, os sistemas econômicos das sociedades indígenas, como já dito, não visam
ao lucro, isto é, não trabalham para acumular bens materiais, ao estilo das sociedades não
indígenas; mas também não se pode afirmar que trabalham apenas para se manterem vivos
e nada mais. Os povos indígenas acumulam sua produção, sim; muitas vezes o fruto do
trabalho é maior do que as suas necessidades básicas de sobrevivência, mas esse excedente
não é dirigido ao lucro e enriquecimento material. Quando produzem mais do que
precisam, o objetivo pode ser a partilha solidária entre as próprias famílias da aldeia, ou a
realização de cerimônias e rituais de iniciação e celebrações míticas.
213
Fazer este processo revisionário sobre as representações culturais construídas pelo
projeto colonial/moderno é uma tentativa de busca por desconstruir alguns estereótipos,
consolidados em nossa histórica de “encontros culturais”. Somos alertados por Dal-farra
(2008, p. 25) que “As representações estão tão perto de nós, que deixam de ser visíveis e
passam a fazer parte de nós. Quando nos acostumamos com um olhar, esquecemos que
um dia o adotamos, e, de tão visíveis, estas representações passam a ser invisíveis”.
Consideramos também importante refletir sobre o conceito que nos foi
consolidado de que o “povo brasileiro” seria composto por representantes de três etnias:
brancos, negros e indígenas. Passando-nos uma ideia genérica de que não existiria
diferenças entre esses povos, impossibilitando a construção de um outro conceito, de que
há consideráveis diferenças dentro de cada um desses grupos. As diferenças internas
sempre existiram e precisam ser levadas em conta.
Desconstruir algumas dessas ideias sobre os diversos povos indígenas é considerar
que cada um desses grupos possui diferenças internas, passando assim a considerar e
respeitar a diversidade étnica, cultural e linguista de cada povo. Nesse sentido, afirma
Oliveira (2003, p. 32):
A cultura indígena se difere da cultura ocidental, pois possui uma identidade, outra
relação com o mundo, são concepções diferentes que não podem ser traduzidas como
desiguais. Hall (2000, p. 109) nos faz refletir sobre o conceito de identidade, argumentando
que nossa identidade está ligada ao sistema de representações, “com a questão da utilização
dos recursos da história, da linguagem e da cultura”, fazendo-nos também pensar como os
discursos sobre os povos indígenas acabam por definir e marcar suas identidades. O autor
argumenta sobre a eficácia discursiva na marcação da identidade. Nesse sentido afirma que:
[...] Tem a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde
nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem podemos nos
tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e como essa representação
afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios.
214
As representações culturais ainda seguem coloniais e nos indicam a persistência de
relações também coloniais, a partir das quais segue sendo definido o lugar desse outro,
neste caso os índios. E, revisitar algumas representações é possibilitar maneiras outras,
pensamentos outros de enxergar o que nos foi inviabilizado no processo de colonização,
permite-nos preencher os espaços vazios da nossa história, tornando-a mais plural,
dinâmica, desmitificando as visões estereotipadas, assim descolonizando-as, recriando-as.
Embora tais ações tenham sido prospectivas e eficazes na luta por sua
sobrevivência e conquista de seus direitos, observa-se que ainda não conseguiram um
avanço na construção de uma imagem positiva junto à sociedade não indígena. Há grande
dificuldade em serem entendidos – e aceitos – na sua dimensão de povos diferentes, isto é,
como sujeitos de direitos que constroem a sua própria história.
O que permanece é a fantasia colonial, ideias errôneas ou equivocadas que ainda
continuam sendo veiculadas por artefatos culturais como os livros didáticos, paradidáticos,
discursos que circulam nas instituições, pelos conhecimentos produzidos na escola ou pela
escola, ou ainda pela mídia a respeito desses povos. Vejam algumas delas:
215
b. Revisitando algumas representações: Índio ou Povos Indígenas?
Índio do Brasil ou Índio no Brasil?
No bojo desta discussão, uma questão a ser considerada: É índio ou são povos
indígenas? Vamos problematizar um pouco esse conceito já visto, pois este advém de uma
representação. Barreiros (2005, p. 96), nos convida a questionar o poder da linguagem81 nas
narrativas escolares, ao afirmar que “A linguagem precisa ser permanentemente desafiada e
questionada, para superar a noção de neutralidade que nos impinge”. Com as reflexões da
autora podemos perceber que os conceitos encontram-se sombreados por jogos de
interesse e poder, o que nos permiti pensar como a persistência dessas representações
produzidas nas relações coloniais e modernas, interpostas às leis do projeto imperialista,
através da “colonialidade do poder”, sufocou e ainda silencia os povos indígenas e
posiciona-os às margens do nosso sistema social.
Ao refletir sobre a forma genérica a que recorremos para nomear os povos
indígenas, podemos perceber que essa forma vai instituindo verdades e produzindo
subjetividades a partir da centralidade de uma determinada cultura, que no caso do Brasil, é
a ocidental.
Quando recorremos ao conceito “índio” parece-nos que não damos conta de quão
carregada de generalizações traz esse conceito, para muitos, uma forma simplificada.
Sempre que vamos nos reportar a essas populações indagamos: é correto falar em índios?
Ou, como devemos nos reportar?
Afinal, o conceito de índio é bastante polissêmico e ambíguo, e segundo
historiadores e pesquisadores da temática, procede de um equívoco histórico, equívoco
devido ao entendimento errôneo dos colonizadores, pois esses acreditaram ter chegado à
Índia. Embora a denominação indígena signifique o “que é original de determinado país,
região ou lugar. Nativo. Aborígene”82. Apesar de parecer correto o termo índios, é
importante destacar que também se trata de uma categoria trazida de fora, isto é, pelo
colonizador ou não indígena (COLLET; PALADINO; RUSSO, 2014, p.11).
Esse conceito, como tantos outros, encontra-se tão naturalizado que não o
problematizamos. Entretanto, se “olharmos” criticamente para a história da colonização
216
brasileira, podemos observar que esse termo foi criado no passado para identificar os
habitantes das “Índias”, visto que os europeus acreditavam ter “descoberto” as Índias,
quando chegaram à América, ao também denominado por eles, Brasil.
A categoria genérica de “índio” hoje também tem sido apropriada pelos próprios
indígenas brasileiros enquanto instrumento de lutas, e reinvindicações de seus territórios. Já
povos indígenas refere-se a uma denominação política discutida, eleita e referendada pela
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT, de 07 de julho de 1989.
No Brasil, os termos desta Convenção foram regulamentados no Decreto nº 5.051 de abril
de 2004, e referindo a este decreto, passando a observar as disposições que dela advêm
sobre os Povos Indígenas no Brasil.
Segundo Bergamaschi (2005, p. 31),
A pluralidade de povos indígenas afirma a diversidade étnico-cultural e
reconhece a peculiaridade própria de cada povo, que deverá ser
considerada no interior de cada Estado-Nação, em todas suas dimensões.
Esse reconhecimento implica a necessidade de demarcação,
homologação e desintrusão das terras indígenas, o respeito às formas
específicas de vida, o manejo dos recursos naturais nela existentes, o uso
da língua, ciência, tecnologia, economia, espiritualidade e educação.
Ao problematizar essa questão, podemos perceber que esses povos não devem ser
reconhecidos como índios, porque são povos indígenas, e possuem diferenças internas
significativas. Essa forma de compreender os povos indígenas dentro de uma categoria
“genérica” impõe a necessidade de conhecer a diversidade cultural, étnica, histórica,
linguística e antropológica dos povos indígenas no Brasil. Os povos indígenas sendo
colocados como uma categoria genérica, deixa de atentar para a diversidade cultural das
mais de 305 etnias presentes em nosso país.
O CENSO/IBGE/ 2010 apontou pela primeira vez o pertencimento étnico, sendo
“etnia” a comunidade definida por afinidades linguísticas, culturais e sociais
(CENSO/IBGE/2010).
217
Esta mesma fonte (CENSO/IBGE/ 2010) investigou pela primeira vez o número
de etnias indígenas, encontrando 305 etnias: 250 dentro das terras indígenas, 300 fora delas.
Uma parte significativa da população brasileira ignora a imensa diversidade de povos
indígenas. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000 povos,
somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Pesquisadores em todo o Brasil apontam que
durante os dois primeiros séculos da colonização, a taxa de depopulação foi
incomensurável, acreditava-se em um extermínio sem precedentes.
Segundo último (CENSO/IBGE/2010), do total de indígenas declarados ou
considerados, 672,5 mil (75%) declararam o nome da etnia, 147,2 mil (16,4%) não sabiam e
53,8 mil (6%) não declararam. A maior etnia é a Tikúna, com 6,8% da população indígena.
Com o CENSO/IBGE/2010, foram identificadas 274 línguas, sendo a Tikúna a mais
falada (34,1 mil pessoas). Dos 786,7 mil indígenas de 5 anos ou mais, 37,4% falam uma
língua indígena e 76,9% falam português.
Pontuamos alguns indicadores que possivelmente explicariam esse considerável
aumento populacional, ou seja, possivelmente tivemos mais nascimentos (novos indígenas),
também podemos citar como possível indicador a diminuição de mortalidade
(principalmente a infantil), mas um fator que damos relevo são os processos de “resgate
cultural e étnico”, ou seja, com a política cada vez mais forte na luta pela afirmação da
identidade cultural, com ela, busca-se também o reconhecimento como indígenas. Ao
218
analisar esses dados, detectamos omissões ensinadas, principalmente referentes à
diversidade étnica e linguística, sinalizando para uma visão eurocêntrica e unívoca que
descaracteriza uma compreensão plural dos povos indígenas.
Ao contrário do que nos é ensinado (pelas representações eurocêntricas), a
diversidade cultural, a singularidade dos povos indígenas resistiram há anos de tentativas do
que Sousa Santos (2002, p. 245) denomina de epistemicídios, ou seja, retirou-se de todas as
culturas não ocidentais a capacidade de pensar e passou a desconsiderar sua cultura e
história, “[...] isto é, a negação do devido status filosófico, acadêmico ou intelectual de ideias
que não são territorialmente oriundas de solos europeus” (NOGUEIRA; LAUDINO,
2013, p. 80).
O Brasil é constituído por povos indígenas, com etnias diferentes. Em Mato
Grosso do Sul, a cosmovisão dos povos Guarani se difere em muitos aspectos das formas
de ser e viver dos Kadiwéu, entre outras características, com suas subjetividades. Para
Franchetto (2001, p. 21):
219
Segundo Telles (1984, p.74) “[...] como ocupam um espaço vazio, a tarefa de
ocupação vira obra de pioneiros heroicos e esforçados num meio ambiente que estava à sua
disposição”. Ao contrário disso, tínhamos e ainda temos habitado um enorme contingente
de povos e nações que se diferem na forma de ser e viver. Ligório (2008, p. 111), ao refletir
com Telles (1984), argumenta que “Nos manuais, a colonização é tratada como algo
simples, linear e homogêneo, como se século após século tivesse ocorrido a ocupação e a
fundação de cidades, sem obstáculos, visão que não corresponde à realidade”.
A ideia de descoberta e de espaços vazios indica-nos a visão eurocêntrica e
etnocêntrica, reforçando o conceito de que seriam “índios do Brasil”. Ou seja, do Brasil
que a Europa descobriu. Problematizando essa questão podemos observar que essa
representação errônea acaba de certo modo apontando para o entendimento de que não
havia povos, culturas e histórias anteriores à chegada dos europeus, desse modo, justifica-se
a colonização. “Este conceito recobre uma ideia implícita, segundo a qual o mundo só se
torna objeto da história com a entrada em cena dos europeus” (LIGÓRIO, 2008, p. 112).
Para Hall (1997 apud Woodward, 2006, p. 8), “a representação atua simbolicamente para
classificar o mundo e nossas relações no seu interior”.
A noção de representação formulada por Bhabha (2003, p. 111) questiona os
discursos do colonialismo e destaca que o objetivo do discurso colonial é “[...] apresentar o
colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo
a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”. O autor
argumenta sobre os efeitos desse processo sobre uma cultura colonizada, afirmando que:
220
As construções culturais (frutos de muitas representações) permitem que os grupos
de culturas diferentes (ocidentais), subjuguem e posicionem os demais grupos. Ou seja,
somos construídos histórica, social e culturalmente, e uma das dificuldades que
encontramos é como lidar com as diferenças culturais entre os grupos distinguidos. Ou
seja, estabelecemos um padrão de “normalidade” a partir das nossas experiências culturais e
acabamos estabelecendo representações aos demais grupos, assim, recorremos a nossas
referências para estabelecer esse padrão.
Os povos indígenas são “povos indígenas no Brasil’, porque nosso país é que surgiu
enquanto nação, após a anterior existência dos índios no território brasileiro”. Esse é um
conceito relevante que deve ser revisitado na história de nosso país. Com ele, cria-se
também a possibilidade de revisão epistêmica, cria-se a possibilidade de relações menos
excludentes. Com os discursos eurocêntricos, com representações e imagens estereotipadas
toma contorno e permanece o projeto colonizador europeu que dominou várias colônias,
que resultou em um contexto discriminatório e preconceituoso que segue até hoje.
222
Perduram em nosso imaginário, até os dias de hoje, uma identidade equivocada dos
povos indígenas, imagens atreladas a uma visão estática de povos e nações, atreladas à
imagem do índio original, puro, desconsiderando a dinamicidade e a diversidade cultural
desses povos e nações. “Importa ressaltar igualmente que nenhuma cultura é passiva. Toda
cultura é ativa para interpretar o que vem de fora dela, apropriando-o a partir de suas
próprias características” (COLLET; PALADINO; RUSSO, 2014, p. 19).
A revisão da história de nosso país pode nos ajudar a pensar como a diferença
colonial acabou epistemologicamente posicionando os povos indígenas às margens do
nosso sistema social, cultural e educacional e atribuindo-lhes estereótipos e representações.
As sociedades indígenas têm suas peculiaridades sociais e culturais; ora, isso não significa
que sejam inferiores ou superiores aos não indígenas, mas, sim, que são diferentes e que
essa diferença não deve ser traduzida como desigualdade.
Da mesma forma, podemos dizer que não há duas sociedades indígenas iguais, ou
seja, mesmo quando ocupam o mesmo espaço, vivendo uma próxima da outra, elas
mantêm sua própria individualidade, suas diferenças culturais, tanto no que diz respeito às
relações sociais quanto ao campo simbólico, isto é, à maneira como representam o mundo
das coisas e dos homens. Em outras palavras, não é possível explicar a lógica sociocultural,
ou seja, a forma como essas sociedades pensam, agem e se organizam, simplesmente por
fatores ecológicos (espaços em que vivem), biológicos (por determinação genética) ou até
mesmo por fatores econômicos (forma como desenvolvem suas atividades de trabalho).
Nas aldeias indígenas, não existem muros separando uma casa da outra e, em algumas
sociedades, até as roças são coletivas; mas isso vai depender da forma como se organizam e
como entendem o mundo, o universo, segundo as concepções míticas que os orientam na
vida material.
Para maior compreensão dessa dinâmica sociocultural, vamos tomar como
exemplo a questão da escassez, ou seja, da falta de recursos. Nas sociedades não indígenas,
conhecidas como ocidentais, a falta de recursos é mais o resultado de um sistema
econômico vigente do que propriamente de uma condição natural, conforme mencionado
anteriormente.
A terra, nas sociedades ocidentais, sendo de propriedade privada, isto é, particular,
passou a ser escassa por se limitar somente às pessoas que possuem um poder aquisitivo
razoável, dispondo de dinheiro suficiente para poder comprá-la. Logo, quem não tem
dinheiro não compra terra e alguns nem conseguem comprar uma casa; isso já não ocorre
nas sociedades indígenas, porque a terra é considerada de uso comum, embora tenham
223
diferentes significados culturais para cada povo ou etnia. São formas de ser e viver
diferentes. Em vista dessa multiplicidade de povos e culturas, considera-se o Brasil um país
pluriétnico e multifacetado, devido à grande diversidade existente. É difícil definir o que
seja um determinado povo ou etnia, pois há muitas diferenças em torno das línguas faladas.
Geralmente, quando nos referimos a um determinado grupo é mais por indicação
da forma como eles eram conhecidos no período do contato com os colonizadores (pelo
olhar do colonizador), conforme explicitado neste estudo, ou como ficaram conhecidos
por seus grupos vizinhos, do que por meio de informações diretas fornecidas por eles.
Desde o período Colonial, entretanto, vem ocorrendo um fato muito
preocupante: os povos indígenas têm sido pressionados a se deslocarem sucessivamente,
por conta do avanço da sociedade envolvente e das frentes de ocupação; isto é, o avanço
de toda e qualquer sociedade que não é indígena e que se apossa e passa a residir em
território indígena. Esses povos buscam todas as alternativas possíveis para continuarem
existindo, mantendo sua cultura e seus costumes tradicionais.
Atualmente, porém, a situação não mudou muito e, em diversos casos, até piorou,
pois na luta pela garantia da sobrevivência, as populações indígenas começaram a sair de
suas aldeias de origem para as cidades mais próximas, o objetivo é encontrar alternativas de
vida que possam atender as suas necessidades mais urgentes, como trabalho, alimentação,
saúde, educação e moradia.
A convivência com os povos indígenas, nos causa certo desconforto, perturba
nossa “normalidade”, então, recorremos aos estereótipos, e ao narrarmos por estereótipos,
a complexidade do outro é reduzida a um conjunto de signos (modo pronto de ser índio).
Recorremos aos estereótipos para não nos incomodar, com esse recurso discursivo e
imagético, negamos aos povos indígenas sua presença e seu dinamismo cultural. Torna-se
mais fácil a nossa convivência se atribuímos a eles um modo genérico, exótico e
estereotipado de ser “índio”.
224
FONTE: indioeesporte.blogspot.com
Os discursos que nos interpelam sejam eles pelas mídias, diálogos cotidianos, ou
escritos na imprensa e livros didáticos, mantêm os povos indígenas conectados ao passado
como alguém que vive na floresta, que se encontra integrado à natureza, colocam os povos
indígenas como se todos fossem o índio amazônico. Bonin (2008) argumenta que recorremos
a essa estratégia para mantê-los distante de nos.
83 O “Eldorado” é um mito espanhol que fala da existência de uma cidade toda em ouro. Assim, muitos
conquistadores, sendo um deles o próprio Irala, em jornada ao Peru, em 1542, saíam em busca desse ouro
interrogando os índios, com o intuito de obter alguma informação para que pudesse chegar a essa terra
encantada. De acordo com os relatos de Métraux, as terras chaquenhas, em si, não constituíam um fator
importante, mas o seu papel histórico se tornou decisivo à medida em que se tornou uma espécie de “portão de
passagem para as fabulosas terras do oeste, das quais os Guarani receberam objetos de prata e ouro vistos pelos espanhóis da boca
do rio da Prata ao Paraguai” (MÉTRAUX, 1963).
225
proposição, não do imaginário, mas da representação do real, podemos dizer em relação à
origem do homem americano que ainda há muitas hipóteses a serem comprovadas. Se sua
origem tem a marca de nascimento aqui mesmo, ou se foi criado pela divina ação dos
deuses. Outros, entretanto, podem afirmar que o homem americano é descendente de
algum povo navegante que atravessou o oceano e veio chegar a algum ponto do nosso
continente, dispersando-se, depois, por todo o território americano.
Assim, a presença do homem no continente americano ainda continua sendo tema
de pesquisa, no sentido de compreender a evolução do processo de chegada e adaptação
nesse continente. Há inúmeras versões sobre seu surgimento. Para uns esses povos vieram
da África e se dispersaram em busca de novos continentes, novas regiões de climas e
recursos naturais variados. É preciso dizer, portanto, que há muitas lacunas na história,
sobre a origem do homem americano; ou seja, há muitas perguntas sem respostas a respeito
do povoamento da América. Atualmente, quem se dedica aos estudos sobre a origem do
homem americano são os antropólogos físicos e sociais, os arqueólogos, os etnólogos,
linguistas, biólogos e geólogos que procuram conhecer não só a origem, as características,
mas também quando e como a nossa espécie chegou à América.
Uma das hipóteses mais aceita pelos estudiosos é a de que os nossos antepassados
teriam chegado ao continente americano atravessando a região do Estreito de Bering, no
extremo norte da América, no Alasca. Essa parte do continente americano ainda estava
ligada ao continente asiático, por uma estreita faixa de terra. Isso significa que o Alasca era
ligado à Sibéria, o que permitia então a passagem de animais e homens, de um continente
para o outro, por terra firme.
Ao chegar à América do Sul, mais especificamente ao norte desse continente,
encontra-se uma densa e úmida floresta chamada amazônica; e, mais para o sul, estendem-
se as planícies de cerrados. Em vista dessa diversidade ecológica, é natural que houvesse
tantas diferenças culturais e sociopolíticas entre os povos que ali habitavam. E mais ainda é
possível dizer: as diferenças históricas do processo de formação desses povos pioneiros são
perceptíveis nas diferentes formas de adaptação e de organização de suas sociedades; tais
peculiaridades apresentam inúmeras formas de cultura, rica na diversidade de manifestações
religiosas, artísticas, políticas e, até econômicas.
Até há pouco tempo, era aceita a ideia de que a América do Sul apresentava uma
distinção fundamental e contrastante entre os povos do altiplano andino, tidos como
detentores de uma alta civilização, e os povos da floresta tropical, socialmente toscos e
atrasados, sem qualquer complexidade cultural ou política. Entretanto, investigações
226
recentes (FAUSTO, 2000) já demonstram o quanto é variada e rica a cultura desses povos
que se desenvolveram à sombra da cordilheira dos Andes, seja, por exemplo, os povos das
várzeas amazonenses, como o marajoara, seja os que, mais ao sul, circundavam o Chaco.
O homem, ao se deslocar, foi se adaptando a este novo sistema e criando formas
próprias de organização social, econômica, política e cultural, bem como se protegendo das
adversidades causadas pela natureza. Assim, cada sociedade que se desenvolveu na América
do Sul, percorreu caminhos culturais próprios. Sobre os caminhos buscados pelos povos
que habitavam o Brasil, os que sempre estiveram mais em evidência, sobretudo nas últimas
décadas, foram os povos da Amazônia, pois além de possuírem uma densidade
populacional maior, cerca de 60%, entre dos demais povos indígenas de outras regiões do
País também apresentam em sua dinâmica de organização social uma influência menor na
relação de contato, visto que são povos que vivem mais distante das cidades, em grandes
áreas preservadas pelas matas e rios. Outro aspecto significativo que também merece
registro é que ainda há alguns grupos na região amazônica que ainda não foram contatados
pela sociedade não indígena.
A propósito, conviria observar que é difícil definir o que seja um determinado
povo, pois há muitas variantes em torno das línguas faladas. Geralmente, quando nos
referimos a um determinado grupo é mais por indicação da forma como eles eram
conhecidos no período do contato, ou como ficaram conhecidos por seus grupos vizinhos,
do que por meio de informações diretas fornecidas por eles.
Embora tenha ocorrido um crescimento significativo da população indígena no
Brasil, há grupos considerados “extintos” e grupos que ainda não permitiram um contato
mais direto e permanente com a cultura ocidental: são conhecidos como “índios isolados”.
Dessa forma, é na Amazônia que se encontra uma das maiores organizações
indígena no Brasil, a COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira)84. Tal coordenação possui cerca de 75 organizações membros dos nove Estados
da Amazônia Brasileira, sendo: Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima e Tocantins. São organizadas por meio de associações locais,
federações regionais, com especificdades de atuação via organização de mulheres,
professores e estudantes indígenas. Assim sendo, juntas, essas comunidades somam
84Há por todas as regiões do Brasil, fora da região amazônica, a criação de diversas organizações indígenas no
sentido de reivindicar uma atenção por parte do Governo para estabelecer políticas públicas de
reconhecimento e atendimento a estes povos. De acordo com estas organizações deve-se reconhecer a
dinâmica de organização social e política de cada etnia do País, sem que haja parâmetros de comparação entre
eles (grupos fora da Amazônia) com os povos da Amazônia.
227
aproximadamente 430 mil pessoas, o que representa cerca de 60% da população indígena
brasileira. Por isso, o imáginário de que só há povos indígenas na Amazônia, devido muita
vezes às suas pinturas corporais, rituais e vestimentas, é tão evidente e disseminado no
senso comum que acaba por causar prejuízo aos demais povos indígenas do Brasil,
originando exclusão e preconceitos. Quando a grande imprensa fala de indígena, logo
apresentam a imagem de algum grupo amazônico.
Quando vamos falar de povos indígenas, as imagens que nos vêm à mente estão
primeiramente relacionadas à visão construída pelos colonizadores em outros séculos, e
que ainda tendem a associar as imagens de índios que vivem nus com corpos pintados e
com paus introduzidos em lábios e orelhas, em comunhão com a natureza. Essas imagens
estereotipadas são mostradas através de ampla variedade de artefatos culturais, constituídas
por jornais impressos ou on-line, revistas, livros didáticos, programas de televisão, selos e
cartões postais, entre tantas outras. As imagens e os discursos circulam nessas produções, e
se tramam num discurso silencioso, preconceituoso. Esses acabam inventando conceitos,
produzindo identidades e de certa forma, contribuem para a representação da identidade
cultural não atualizada desses povos.
São vários artefatos culturais que tomam a imagem de “índios” como motivo
ilustrativo e sinaliza que os discursos que neles circulam são representações e estereótipos
construídos pelos colonizadores para posicionar os povos.
228
Se solicitássemos um desenho de nossos alunos possivelmente seria como este:
Analisando desenho feito por um aluno de ensino regular em Mato Grosso do Sul,
no ano de 2014, podemos observar que este traz uma representação dos povos indígenas
carregada por estereótipos. Ao focarmos nesse desenho produzido pelo aluno, as
representações e os estereótipos emergem, assim, podemos observar quantos marcadores
culturais e sociais são recorridos para representar os índios, como: a mata, adornos
corporais, e quanto aos seus corpos, são masculinos, seminus, usam “tangas”, ou algo
parecido (para esconder suas vergonhas, como ainda na carta de “Pero Vaz de Caminha”)
com enfeites corporais, penas sobre a cabeça (geralmente é somente uma centralizada na
cabeça, lembrando-nos dos filmes americanos), arco, ou nesse desenho uma espécie de
arma (quase sempre arqueado, pronto para guerra), quase que conectado à natureza e que
nada representa o índio que se encontra em nosso estado.
O desenho do aluno mostrado acima indica que ainda seguimos com a
representação do “bom selvagem”, do índio exótico, conectado à natureza, que vive na
floresta, em oca e usa pouca roupa. Representações genéricas que tendem a universalizar e
a homogeneizar os indígenas como sujeitos, portadores de um modo único de ser e
desconectados há tempos outros, ou seja, encontramos formas de mantê-los longe de nós,
229
não índios. São alguns marcadores de identidade genérica que recorremos para identificar
os sujeitos indígenas, são “construções culturais [...]”, afirma Bonin (2007). Com eles,
reafirma-se o “olhar” do colonizador, o exotismo colonial.
Segundo Albuquerque Jr. (1999, p. 20), “o estereótipo nasce de uma caracterização
grosseira e indiscriminada do grupo estranho, em que as multiplicidades individuais são
apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo”. Como as palavras do autor
podemos perceber que temos criado em nosso imaginário uma forma genérica sobre os
índios no Brasil, com ela como afirmamos, acabamos desconsiderando as multiplicidades
de línguas e costumes. Retomando nossas reflexões introdutórias podemos perceber que a
forma genérica da identidade indígena desconsidera as “multiplicidades individuais” de cada
povo e nação.
Mas quando temos uma imagem mais atualizada dos povos indígenas no Brasil esta
também se encontra carregada de estereótipos, como a associação dos índios à pobreza, à
luta pela terra e sobrevivência; como pessoas preguiçosas, que não gostam de trabalhar e
que passam o dia tomando tereré. Nas palavras de Bonin (2007, p. 139):
Os efeitos pedagógicos dos estereótipos são como uma forma de impor um sentido
de organização ao mundo social. Embora se tenha buscado desconstruí-la nos espaços
acadêmicos, ainda encontramos muitos textos e discursos que “muito frequentemente
apelam para uma imagem genérica, um ‘índio universal’, fixado por estereótipos”. Também
somos alertados pela autora que os “estereótipos são centrais na representação da
diferença”, eles qualificam, determinam o “que é normal e o que foge à norma, o que se
inclui ou se exclui” (BONIN, 2008, p. 128).
Com relação à educação, muitas discussões, estudos e ações têm sido realizados
no sentido de rever o modelo único (ocidental) instituído, desde o período da colonização
pela sociedade não indígena. Ao trabalharmos didaticamente essa temática temos que estar
atentos aos efeitos pedagógicos que podem produzir, sabendo que os livros didáticos são
artefatos poderosos como posicionadores de identidades.
231
Quanto à diversidade étnica brasileira, não há como negar a presença dos povos
indígenas, entretanto, sua presença na maioria das vezes ainda é representada pela marca
imposta na colonização. Ou seja, construída por imagens, discursos que os apreendem e os
estruturam num modo uno e desatualizado de “ser índio”, tão presente ainda nos livros
didáticos.
232
Fazer uma leitura interessada sobre os conhecimentos descritos nos livros didáticos,
em especial sobre os povos indígenas representados nesses livros, permite-nos rever as
marcas da colonização e pode contribuir na descolonização das metanarrativas
historiográficas (WALSH, 2009).
A diferença entre os povos não pode ser tomada como essencial, fixa,
essencializada dos sujeitos, mas deve ser problematizada e entendida como resultado de
construção social e cultural. Com essa reflexão podemos afirmar que a “diferença” cultural
é também colonial, porque também resulta da projeção no “outro” de um olhar colonial.
Em Quebrando preconceitos: subsídios para o ensino das culturas e histórias dos povos indígenas,
Collet, Paladino e Russo refletem com o pesquisador Souza Lima. Segundo as autoras, o
pesquisador argumenta sobre a existência de um “arquivo colonial”, “[...] ou seja, o que
conhecemos sobre os índios ainda tem a ver com a visão construída pelo colonizador
europeu”. Sendo assim, afirmam com ele “Foi nos primeiros séculos de contato entre
europeus e povos indígenas das Américas que se gestaram as representações que os situam
entre ‘aliados’ ou ‘inimigos’” (COLLET; PALADINO; RUSSO, 2014, p. 06).
Ao nos referirmos aos povos indígenas, muitas vezes não especificamos sua etnia,
ou nação, pois é muito difícil apresentar com detalhes todos os mais de 230 povos que
fazem parte do nosso país. Até porque, cada sociedade tem uma história de contato, de
85 Grifos do autor
233
expansão, de conquistas, de lutas, de entendimento do mundo, de educação, saúde,
trabalho, enfim, cada povo tem sua própria forma de organização social.
O que propomos, com essas reflexões é mostrar que todos esses povos fazem
parte da nossa sociedade e têm um papel importante historicamente na formação
sociocultural e econômica do Brasil; são cidadãos brasileiros. Mesmo assim, e diante de
tamanha importância histórica, social e cultural, a história oficial nos livros didáticos não
tem efetivamente mostrado isso com destaque e com a devida importância.
Segundo Grupioni (1996), ainda há imagens contraditórias e fragmentadas sobre o
lugar dos índios nos livros didáticos. Argumenta o autor,
Repensar sobre as relações entre índios e não índios nos permitem analisar a gama
de preconceitos, de representações e estereótipos inscritos nos discursos, imagens contidas
nos livros didáticos que seguem posicionando os povos indígenas às margens. Passamos a
perceber o quanto emerge a necessidade de ponderar sobre o reconhecimento e o respeito
à diferença entre os povos. Esse repensar implica em refletir sobre as relações assimétricas
de poder que posicionam os povos colonizados.
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238
V
RELAÇÕES INTERÉTNICAS E OS
POVOS INDÍGENAS
239
V
DIVERSIDADE SOCIOCULTURAL,
RELAÇÕES INTERÉTNICAS E OS
POVOS INDÍGENAS
INTRODUÇÃO
86 Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul com Doutorado em
Antropologia pela Universidade de Salamanca. Professor da Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS
e das Pós-graduações em Antropologia (UFGD) e de Educação (UCDB). E-mail: hilarioaguilera@gmail.com
87 Atualmente é supervisor do núcleo da UFMS da Ação Saberes Indígenas na Escola MEC/SECADI com
de matriz europeia, uma construção ideológica que sobreviveu ao período colonial e se mantém através de
relações de colonialidade. Em outras palavras, o Eurocentrismo faz parte da maneira como pensamos e
somos, manifestando-se de diversas maneiras: sociais, culturais, econômicas, etc.
240
1. POVOS INDÍGENAS E A DIVERSIDADE SOCIOCULTURAL
b. A cultura diz respeito a uma capacidade comum a toda a humanidade; mesmo que
eu tenha os códigos culturais da minha sociedade, sou capaz de compreender os
códigos culturais de outras sociedades e culturas;
242
d. Toda cultura é dinâmica, ou seja, vai se transformando com o passar do tempo e
através do acúmulo de experiências através da história. Isso contradiz algumas
ideias muito divulgadas sobre as culturas indígenas, como a de que são “paradas no
tempo”' ou de que vão perdendo traços originais a partir do contato até
desaparecerem ou tornarem-se aculturadas.
Dessa forma, toda cultura passa por mudanças. As culturas, ao passarem por
transformações, continuam diferentes umas das outras. Nas palavras de Tassinari (1995, p.
449-450): “Não existe uma história única a ser trilhada por todos os povos e, por isso, se
uma sociedade indígena passa por alterações, ela não precisa necessariamente mudar no
sentido da nossa sociedade e tornar-se ‘igual a nós’”.
Outra concepção importante é que geralmente esses povos não têm a noção de
propriedade privada da terra, reconhecem a “posse”' de um território a partir do uso que
fazem dele. Essa posse, afirma Tassinari, “[...] é coletiva na medida em que todas as famílias
podem utilizar os recursos existentes nesse território, como a água dos rios, lagos,
cachoeiras, os peixes, os animais, aves e vegetais.” Logicamente as famílias desenvolvem
suas roças familiares, muitas delas próximas de suas casas, espaços pertencentes às famílias
ou clãs. Assim como possuem seus objetos de uso próprio, como ferramentas e
instrumentos de caça e pesca. No entanto, o território é comum, sendo reconhecida a
“posse” enquanto determinada família realiza determinada atividade agrícola TASSINARI
(1985, p. 453-454).
Dessa forma, algo totalmente fora das concepções indígenas é a prática de cercar e
delimitar os territórios que são de uso comum. Mesmo assim, não é visto com bons olhos
quando alguém entra em seu território tradicional sem licença, ou sem aviso. Na atualidade,
todavia, encontramos áreas indígenas, como a Aldeia Jaguapiru de Dourados/MS, em que a
terra está dividida em lotes e identificada como de posse de algumas famílias, o que
caracteriza a adoção do modelo Ocidental capitalista de privatização da terra, fruto de um
longo processo “colonial” e das mudanças culturais pelas quais passa aquela área.
a. Espaço para a aldeia, entendido aqui como o local mais ou menos fixo composto pelo
conjunto de moradias familiares; sabemos que são muito variados os modelos das
construções, a forma como são dispostas e o número de famílias que residem nas
casas (evitamos aqui palavras como tapera, oca, choça, etc.).
b. Espaço das roças, como aquele que circunda as aldeias e que geralmente abriga as
roças familiares. Estas são produzidas, quase sempre, segundo o sistema de
‘'coivara’, no qual um pedaço da mata é derrubado e queimado. Em seguida
retiram-se os galhos menores que sobraram da queimada, deixando no solo grandes
troncos carbonizados impossíveis de serem removidos, entre os quais as plantas
serão semeadas: arroz, feijão, abóbora, mandioca, milho, entre outros.
c. Espaço de caça e coleta, ou "território de itinerância". Para além das roças e capoeiras,
há um território de mata densa que é utilizado para a caça e a coleta, formando
certos caminhos com marcas imperceptíveis para o leigo, mas muito significativas
para os membros do grupo. Percorrem caminhos de caça, caminhos que levam de
244
uma aldeia a outra, aos rios, lagoas ou às áreas de coleta: buritizais, açaizeiros,
bambuzais. Na caça há regras, pois nem todos os animais podem ser caçados ou
ingeridos por todas as pessoas e cada povo indígena estabelece seus critérios
alimentares, que podem ser ainda diferentes para cada família/clã ou para diferentes
momentos da vida das pessoas.
MORADIAS
Há povos, como os Yanomami ou os Tukano, nos quais cada aldeia é
composta por uma única e grande casa (redonda ou retangular,
respectivamente) que abriga todas as famílias. Já entre os Kayapó, as casas
são construídas ao longo de um círculo, que compõe o desenho de todas as
aldeias (inclusive daquelas levantadas rapidamente durante os períodos de
acampamento na floresta) e entre os Xavante, a disposição das casas desenha
o formato de uma meia-lua ou de uma ferradura.
Sobre os espaços das aldeias, as teorias indígenas de mundo geralmente os
dividem em locais femininos e masculinos, como a casa e o centro da aldeia
(entre os Jê), ou certos locais no interior das casas (para os Tukano).
Também as famílias podem se encontrar associadas aos espaços das aldeias,
conforme pertençam a grupos de descendência relacionados aos pontos
cardeais, às constelações, aos animais e outros objetos.
Quanto à população das aldeias, o mais comum entre os índios brasileiros é
formarem aldeamentos pequenos, abrigando entre 30 e 100 pessoas, mas
encontramos aldeias maiores, com 400 ou 500 indivíduos. Ramos (1986),
lembra que nos séculos passados os Tupinambá formavam aldeias muito
populosas na costa brasileira e os povos Jê do Brasil Central viviam em
aldeamentos de mais de mil indivíduos. As aldeias indígenas têm grande
mobilidade espacial, havendo constantes transferências das famílias entre as
aldeias, e mudanças do próprio conjunto das famílias, que de tempos em
tempos transferem o local de suas aldeias (TASSINARI, 1995, p. 455-456).
245
Aldeia Kamaiurá – Parque Indígena do Xingú/MT
Fonte: www.socioambiental.org.br
Fonte: http://funaipontapora.wordpress.com
247
Para a autora em tela:
Quanto aos aspectos sociais, podemos dizer que se os indígenas usam critérios
particulares para classificar os espaços e os seres da natureza, também os utilizam para
classificar as pessoas enquanto membros de parentelas e parte de uma sociedade. Em boa
parte das sociedades indígenas,
Lévi-Strauss ao escrever a Introdução à obra de Marcel Mauss aponta que a troca nas
sociedades indígenas se constitui como um elemento necessário às relações entre indivíduo
e a sociedade, sendo a troca sempre fruto de uma construção.
248
Nas sociedades indígenas, muitas vezes têm mais status aquelas famílias que têm
mais condições de oferecer bens ou alimentos às outras, agradando a todos e angariando
sua confiança, ou seja, a importância está na generosidade da distribuição de riquezas e bens.
249
responsáveis pela criação da atual humanidade, pelas demais espécies e por suas respectivas
capacidades”.
250
2. DIVERSIDADE E RELAÇÕES INTERÉTNICAS90
[...] povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista não estão
fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi
infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda
mais abrangente: seu próprio sistema de mundo (SHALINS, 1997, p. 52).
Talvez o conceito de cultura seja um dos mais polissêmicos nos últimos dois
séculos, no seio das Ciências Sociais. Um termo que mereceu muitos estudos e debates,
além de um caudal de publicações, especialmente na área da Antropologia. Mesmo assim,
trata-se de um conceito que, por ter caído no linguajar comum, acabou, em muitos casos,
esvaziando-se de elementos importantes de seu conteúdo dado pelas Ciências Sociais.
Neste item buscaremos uma aproximação aos conceitos de cultura e, sobretudo,
sua importância e significado para nossa vida cotidiana e para o campo da educação. Afinal,
para tratar do tema da diversidade é fundamental a compreensão do conceito de cultura.
Logo no início da obra, Cultura, um conceito antropológico (LARAIA, 2009),
hoje uma publicação utilizada na maioria dos cursos de introdução à Antropologia, o autor
afirma que os seres humanos são seres de cultura, ou seja, podemos comparar
metaforicamente da seguinte forma: a cultura é para os seres humanos o que é a água para
os peixes, ou seja, de fundamental importância, mesmo que quase sempre não tenhamos
consciência de que estamos imersos nela.
Após tratar dos conceitos de cultura, abordaremos, mais concretamente, a questão
das dinâmicas sociais e diversidade no contexto das relações interétnicas, uma vez
que, conforme a concepção de cultura se define a forma de como compreender as
dinâmicas relações sociais entre as minorias e a sociedade hegemônica em nosso país.
Como dissemos antes, veremos neste item uma ampla reflexão acerca dos
conceitos de cultura, para melhor entender nossa própria cultura e a diversidade cultural
dos grupos com os quais convivemos e, ainda mais, compreender as sociedades mais
distantes da nossa cultura. Nesse sentido, podemos dizer que desde que o ser humano
iniciou a saga do registro de sua história, observamos, no tempo e no espaço, a distinção
entre tipos de sociedades: extrativista, caçadora, agrícola, guerreira, comerciante,
253
A maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. [...] Um
mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado
grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si
mesmos. É justamente porque compartilham parcelas importantes deste
código (o da cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e
capacidades distintas e até mesmo opostas transforma-se num grupo
onde podem viver juntos, sentindo-se parte da mesma totalidade.
254
Tratando de resolver o problema da falta de uma definição comum, em 1952,
Kroeber e Kluckhon (1952 apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 64), revisaram todas as
definições de cultura conhecidas até esse período (em inglês, é óbvio); encontraram nada
menos que 160 definições. Finalmente, formularam uma definição que mesmo extensa leva
em conta todas as particularidades e qualidades da cultura, que a seu juízo satisfaziam as
necessidades conceituais da Antropologia Cultural norte-americana de sua época:
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos dizer que para Geertz, a cultura é
como a rede ou a trama de sentidos com que damos significados aos fenômenos ou
eventos da vida cotidiana. O importante, nesse caso, é compreender a cultura como
produção de sentidos, de maneira que também podemos entender a cultura como o sentido
que têm os fenômenos e eventos da vida cotidiana para um grupo humano determinado.
Percebemos, dessa forma, que o mundo compõe-se de sociedades caracterizadas
por culturas cada vez mais distintas. As raízes dessas culturas, geralmente com fundamento
255
religioso, são tão antigas quanto o processo de formação dessas sociedades. Os seres
humanos ao se associarem a seus iguais buscam estabelecer critérios de convivência, de
ritualização e de significação que tornam suas sociedades um mundo próprio, com suas
marcas; cultivado, construído e consolidado na mente das gerações. Assim, a cultura torna-
se expressão do caráter de um povo. Esse processo é lento e longo, em que contam a
manutenção de tradições, o incremento dos saberes e a transmissão dessa tradição sempre
acrescida, mas sempre construída dentro de parâmetros aceitos socialmente e regulados
pelo corpo da própria cultura.
Finalizando este primeiro tema de nossa reflexão, podemos dizer que o conceito
de cultura é importante, não somente para as Ciências Sociais, mas, sobretudo, para
compreendermos o contexto e os significados das relações que tramamos no nosso
cotidiano, especialmente no mundo da educação. Sendo assim, podemos reafirmar com a
UNESCO (2002), em seu artigo primeiro, que a diversidade cultural é um patrimônio
comum da humanidade:
256
convivência, de diálogo, de tolerância, em meio a contradições e conflitos. Nesse sentido, o
não reconhecimento da existência de culturas distintas, ou da perda da diversidade, seja ela
biológica ou cultural, é uma perda irrecuperável de potencial de expressão humana e da
vida em sentido mais amplo.
257
das novas formas culturais verificadas não são as nações, mas os indivíduos. A eliminação
de barreiras nacionais – da qual a queda do muro de Berlim, em 1989, é o ícone mais
enfático – fez com que as barreiras ideológicas se concentrassem em atores sociopolíticos,
econômicos e culturais.
Nesse contexto, a capacidade de disseminação da informação, da disseminação do
meio e da mensagem, passa a ser a medida do poder de tais ideologias. Assim,
contemporaneamente, verifica-se a primazia da cultura ocidental – nem sempre
representada por seus mais altos valores – como referente valorativo (FRÓIS, 2004).
Constatamos que no passado também aconteceu essa primazia dos valores e ideologias da
cultura ocidental.
A história da relação entre nativos e portugueses no Brasil colonial, por exemplo,
revelou-se bastante dinâmica e contraditória. Apesar da violência, percebemos que políticas
de alianças e dissensões perpassaram os contatos interétnicos como formas de reação e
expressão à colonização ibérica. Em todo o período colonial e até poucas décadas atrás, o
Estado Brasileiro recomendava oficialmente a incorporação dos índios à sociedade colonial
por meio do trabalho. De acordo com o pensamento da época, os índios deveriam se
estabelecer em aldeamentos, de tal forma que fossem úteis à agricultura, à mineração e à
ocupação dos vazios, particularmente nas regiões de fronteira. No entanto, caso houvesse
manifestação de resistência, ordenava-se a escravização ou extermínio de grupos indígenas
considerados hostis. Na atualidade, percebemos outras formas de extermínio (preconceito,
assassinatos seletivos de lideranças, falta de terra, etc.), não oficiais, mas tão eficientes como
no período colonial.
Podemos dizer que a consequência imediata da chegada dos europeus na América
foi o fato da imediata depopulação desses grupos e consequente desaparecimento de
muitas sociedades ameríndias. Outro elemento: os grupos indígenas passaram a ter sua
circulação controlada e limitada dentro de territórios demarcados pelas coroas, inicialmente
com a construção de fortes e a formação de aldeias, que desorganizaram e enfraqueceram
os movimentos de resistência dos ameríndios e, posteriormente, pelos Estados Nacionais,
com a agressiva ocupação dos territórios indígenas, concebidos como áreas de vazio
demográfico, através do incentivo das frentes de ocupação agropastoris.
Todas as regiões brasileiras passaram por esse processo, em períodos distintos e,
em alguns casos com mais ou menos violência. O período das bandeiras, por exemplo, foi
um tempo de extrema violência contra os povos ameríndios do interior do Brasil, tendo em
258
vista que os objetivos principais desses grupos eram a busca por minérios e prear índios, ou
seja, caçá-los como animais e levá-los para o litoral para serem vendidos como escravos.
Desde o período colonial, os povos nativos no Brasil são vistos como uma
condição transitória: ou irão morrer – o que ocorreu em grande parte do processo – ou vão
tornar-se brasileiros, ou seja, caboclos, bugres ou sertanejos. O próprio SPI ao ser criado
em 1910, como primeira política pública do Estado em favor dos povos indígenas, fazia
parte inicialmente do Ministério da Indústria e chamava-se Serviço de Proteção aos Índios
e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A noção era a de que os índios, mais
cedo ou mais tarde, seriam absorvidos (aculturados e assimilados) pela sociedade brasileira.
Durante todo esse período de contatos interétnicos, entre os povos indígenas e a
população não indígena, muitos preconceitos foram produzidos no imaginário e nas
práticas sociais das várias regiões desse imenso país. Cada sociedade indígena e cada região,
com o tempo, foram escrevendo suas histórias de particularidades, nesta questão das
ambivalentes e críticas relações entre povos tão diversos.
Quando falamos, aqui, de dinâmicas sociais em contexto de relações interétnicas, sabemos
que falamos de povos que trazem na bagagem uma longa história de confrontação, negação
e negociação com o colonizador de ontem e hoje. Trata-se, na verdade, de povos com
culturas muito diversas, porém, todos com uma longa experiência de enfrentamento com o
não índio, sempre em torno de seus territórios91. Suas trajetórias históricas são, de um
lado, muito parecidas e, de outro, muito distintas no tempo e, também, no que se refere à
intensidade e interesses das diversas frentes de colonização, bem como das estratégias que
cada povo adota para enfrentá-las.
No caso do atual sul de Mato Grosso, alguns historiadores afirmam que os
primeiros contatos mais intensos com os povos indígenas deram-se no início do século
XVIII, quando da chegada dos primeiros aventureiros (bandeirantes) na região de Cuiabá,
em busca de ouro. Os conflitos se deram contra o povo Bororo daquela região, e com os
povos da região pantaneira, por onde passavam: Paiaguá, Guató, Guaicuru, entre outros.
Na região sul do então Estado de Mato Grosso, atualmente Mato Grosso do Sul,
veremos que essa história das relações interétnicas não foi diferente, conforme segue
abaixo. Vários desses povos originários desapareceram, ou deles restaram alguns poucos
91 Conceito de território - Segundo Little (2002, p. 3), território é um “produto” resultante do “esforço
coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar” com determinada parcela do
ambiente físico. A noção de terra indígena ou de território não remete para a temporalidade da ocupação ou
para a imemorialidade. O território como algo construído e constantemente reconstruído de acordo com a
dinâmica própria de cada população, torna-o inseparável da história de um povo indígena. Remete, portanto,
para as “contingências históricas”, vivenciadas por determinada população indígena.
259
remanescentes, dispersos pelas fazendas do Estado, e se perguntados se são índios,
certamente irão negar tal evidência, tamanha a pressão sofrida na pele, desde gerações
passadas, em uma região com forte sentimento anti-indígena.
92 Este item é baseado em texto: BRAND, A. J. (Et. al.) A Relevância do Patrimônio Cultural na
Afirmação Étnica dos Acadêmicos Índios nas Cidades. Apresentado no GT 1 do Seminário sobre Povos
Indígenas e Patrimônio na América. Cidade do México. 2009.
260
Cabe destacar, ainda, a profunda interferência de conflitos envolvendo a definição
de fronteiras nacionais e interesses regionais, na vida de determinados povos indígenas,
como foi o caso do povo Terena e Kadiwéu, cujas histórias recentes vêm marcadas, em
especial, pela Guerra da Tríplice Aliança, mais conhecida pelos livros históricos e didáticos,
como Guerra do Paraguai (1864-1870), ou a “Grande Guerra”.
Após essa introdução geral sobre a história recente dos povos indígenas em Mato
Grosso do Sul, cabe um breve detalhamento da situação dos territórios, em especial no que
se refere ao povo Terena e Kaiowá e Guarani, povos indígenas dos mais numerosos do
Estado e do país.
Pode-se dizer que de uma forma ou de outra, na primeira metade do século XX
inicia-se, com o apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e a expropriação
dos territórios tradicionais dos povos indígenas no Estado, configurando o que Brand
(1997) chamou de uma política de confinamento93 dessas populações, dentro de reservas
de terra (pequenos fragmentos de seus antigos territórios tradicionais), processo que seguiu
inexorável, à revelia da legislação de proteção dos direitos indígenas à terra, até o final da
década de 1970.
A demarcação das reservas por parte do SPI para aí confinar os povos indígenas
constituiu-se em fundamental estratégia e política governamental, com a intenção de liberar
as terras para a colonização e consequente submissão da população indígena aos projetos
de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não indígenas (LIMA, 1995).
Na implantação dessa política, o governo ignorou completamente, os padrões indígenas de
relacionamento com o território e seus recursos naturais e, principalmente, a sua
organização social. Esse processo histórico de confinamento em reservas constitui-se em
fato decisivo para a compreensão da situação e do contexto atual dos povos indígenas no
Estado de Mato Grosso do Sul.
Esse processo histórico de confinamento em pequenas reservas, além de
inviabilizar a economia, comprometeu, de forma crescente, a autonomia interna desses
povos, por reduzir suas possibilidades de decisão sobre seu futuro, deixando
consequentemente, um espaço, cada vez mais reduzido para a negociação a partir de suas
pautas culturais (LITTLE, 2003). O objetivo dessa política era colocar as populações
93 Conforme estudos de Brand (1993, 1997), entendemos por confinamento compulsório a transferência
sistemática e forçada da população das diversas aldeias Kaiowá e Guarani tradicionais para dentro das oito
Reservas demarcadas pelo governo entre 1915 e 1928. Este conceito pode ser aplicado a outras situações
similares sofridas por outros povos indígenas no Brasil. Com o aumento populacional, vivem literalmente
espremidos em minúsculos territórios.
261
indígenas sob a égide do Estado, por meio do instituto da tutela94 (LIMA, 1995),
prometendo assegurar-lhes assistência e proteção e, dessa forma, tornar efetiva e segura à
expansão capitalista nas áreas onde havia conflito entre índios e fazendeiros.
O avanço sistemático da colonização sobre os territórios indígenas e seus recursos
naturais, em todo o Estado de Mato Grosso do Sul, é consequência da imposição histórica
de um projeto de desenvolvimento monocultural, no âmbito dos Estados Nacionais.
Podemos dizer de outra maneira, que esse mesmo projeto de desenvolvimento
caracterizou-se, também, pela sistemática e planejada busca de superação da
sociodiversidade, igualmente percebida como um estorvo e uma excrescência para a
realidade brasileira. Na perspectiva dos Estados Nacionais, a persistência dos povos
indígenas, além de sinal de atraso, representava, ainda, o risco de futuras fragmentações
políticas. Ainda na atualidade nos deparamos com essas questões na grande imprensa,
sobretudo por ocasião dos grandes projetos governamentais, como as hidrelétricas que
atingem territórios indígenas. O governo se acha no direito de levar avante essas obras de
grande impacto ambiental e sobre as sociedades de povos tradicionais (indígenas,
ribeirinhos, entre outros), sem consultar os principais envolvidos nas consequências.
O destino dos povos indígenas, nesta lógica, era o seu desaparecimento, mediante
a integração na sociedade ocidental, o que, na perspectiva dos povos indígenas, se traduzia
em desintegração de seus territórios, modos de vida, organização social, economias,
religiões e cosmovisões. Seus conhecimentos, tecnologias de manejo ambiental, medicina e
agricultura eram considerados imprestáveis e sinal de atraso e de não civilização.
Dessa forma, podemos concluir que a visão subjacente à política indigenista do
Brasil, durante quase 500 anos, era de que se tratava de povos “passageiros” ou
“transitórios” (LIMA, 1995), cujo destino era integrar-se através da superação de sua
identificação étnica, caminhando em direção a um “índio genérico” ou se quisermos, a um
brasileiro “sem identidade”.
É relevante enfatizar que associado à perda do território, dá-se o processo de
instalação, nas comunidades indígenas, de escolas e igrejas evangélicas – a Missão Kaiowá
entre os Kaiowá e Guarani, a partir de 1928 e as Igrejas Neopentecostais, a partir da década
de 1970, e entre o povo Terena, a Igreja Católica, desde antes da Guerra do Paraguai e
94 A Lei nº 6001/1973, mais conhecida como Estatuto do Índio, em seu artigo 7º, afirma que “Os índios e as
comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido
nesta Lei”. Ou seja, a tutela seria a negação a estes povos indígenas de exercerem seus direitos humanos de
cidadania. O órgão indigenista (inicialmente o SPI e depois a FUNAI), tinha todas as prerrogativas para
“defender e proteger” os interesses dos indígenas, o que quase sempre não ocorria.
262
diversas Igrejas Evangélicas, a partir de 1913 (MOURA, 2009) –, coincidindo, como
observa Brand (2010, p. 4) “[...] com a radicalização do processo de confinamento, todas
preocupadas em ‘ajudar os índios’ a viverem, ou melhor, a sobreviverem em um cenário no
qual o seu modo de vida e seus saberes historicamente construídos tornaram-se supérfluos
e ‘imprestáveis”’.
Um elemento importante a ser considerado neste longo processo histórico de
relações interétnicas entre os povos indígenas e os demais grupos da sociedade nacional foi
a tentativa de “apagamento da história” e da importância destes povos para a constituição
da identidade nacional. Diante disto, vem a importância dos bens culturais, como
marcos da memória destes povos, que precisam ser novamente valorizados a partir de
novas concepções de relação entre estes povos e o próprio Estado Brasileiro.
Conforme a leitura de Carmencita Ignatti, baseada na análise da obra de Bosi
(1998, p. 442-443),
264
Na atualidade, estes povos demandam por políticas que gerem autonomia,
sobretudo na gestão de seus territórios, com a produção de alimentos, novas dinâmicas
socioculturais, somadas às conquistas legais no campo da educação intercultural.
Este estudo, na área da Antropologia, teve seu auge a partir de meados do século
XX, quando proliferaram as pesquisas e publicações sobre as relações entre índios e a
chamada sociedade nacional, no Brasil. Atualmente, esse campo de estudos da
Antropologia leva o nome de estudo das relações interétnicas, contando ainda com
importantes centros de pesquisas no país.
Para compreender a noção da assimetria nas relações interétnicas, veremos a
importância da compreensão desses estudos no âmbito da Antropologia e da prática
265
indigenista no Brasil, os quais passam pela noção do que seja a corrente do evolucionismo,
funcionalismo e a partir deste, as noções de assimilação e aculturação.
Iniciamos, na sequência deste texto, a reflexão acerca das noções de poder e
desigualdade, pois elas incidem diretamente nas relações sociais e culturais assimétricas.
267
Após essas reflexões sobre a noção de poder, entendido aqui não na frágil
oposição binária de dominante e dominado, mas na sua concepção mais dinâmica
ressaltada por Michel Foucault, quando afirma que o poder está perpassando todas as
tramas do tecido das relações sociais95. Trataremos agora sobre o tema da desigualdade.
Quanto à noção de desigualdade, podemos afirmar, logo de início, que também se
trata de um conceito carregado de significados, porém, com elementos mais próximos do
senso comum, quando se diz que “vivemos em uma sociedade desigual”; logo todos
compreendem tratar-se de uma sociedade em que alguns têm mais privilégios que outros,
ou vivem com maior poder aquisitivo que outros, ou...
95 Veja seu livro: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 23º Ed. São Paulo: Ed. Graal, 2009.
268
aceitável (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 15 apud ANTUNES;
PADILHA, 2011, p. 4).
No caso dos povos indígenas, no Brasil, desde sempre as relações entre eles e os
europeus que chegavam, foram relações perpassadas por caráter de desigualdade e de
tentativas de submetimento (entre outras formas, a submissão cultural). Essas relações
foram sendo construídas ao longo deste período de história recente do país, através de um
poder político, mas, sobretudo, simbólico, que foi produzindo sujeitos desiguais, fora,
portanto, da normalidade preconizada pela cultura europeia: branca, católica, individualista,
machista, empreendedora, heterossexual, etc.
Na história do nosso país, quando falamos dos dilemas da desigualdade, da
diversidade e da diferença, a questão das diferenças étnicas, das relações de gênero, as
diferenças geracionais, a questão das diferenças mentais e físicas entre as pessoas,
sobretudo aquelas geralmente identificadas como deficientes, excepcionais ou, mais
recentemente, pessoas com necessidades educacionais especiais ou, simplesmente, de
direitos especiais, passam a ser tratadas como questões de segunda categoria. As políticas
públicas, na atualidade mais do que a preocupação com a integração, deveriam preocupar-
se urgentemente com a inclusão.
Mesmo a inclusão pode ser desigual, quando não está atenta aos direitos
individuais e, sobretudo, coletivos; especialmente quando se trata de direitos de
coletividades, como é o caso dos povos indígenas, que procedem de outras matrizes
culturais, que não a nossa ocidental. Dessa forma, apenas a política da inclusão é muito
aquém das demandas sociais desses segmentos.
Como vemos, ao falar de desigualdade, estamos em outro nível se relacionamos
com os conceitos de diversidade e diferença, mais próximos dos teóricos dos chamados
Estudos Culturais. Geralmente o conceito de desigualdade vem atrelado com um adjetivo:
social, econômico, racial, entre outros.
Segundo Camargo (2013)
269
Na atualidade figura como o 4° país mais desigual da América latina, segundo
dados da Gazeta do Povo96 em 2012. Torna-se importante frisar que no caso dos povos
indígenas, eles vêm passando/sofrendo por várias dessas desigualdades.
CONCEITOS DE DESIGUALDADE:
96 (http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/conteudo.phtml?id=1289121&tit=Brasil).
270
a partir da qual se busca pressionar por políticas públicas para diminuir essas desigualdades
(nosso curso é um exemplo dessas políticas públicas).
Ficamos, assim, com a constatação de que a desigualdade não é natural, ao
contrário, ela é social e historicamente “naturalizada”, para justificar o processo de
construção/constituição desses sujeitos sociais desiguais. Na Antropologia, quando falamos
da comparação entre culturas, na ótica do relativismo cultural, afirmamos que as culturas
são diferentes, mas não desiguais, ou seja, não há um juízo de valor classificatório, e sim a
constatação da diversidade entre as culturas. Assim, conforme afirmado anteriormente, o
conceito de igualdade é o contrário de desigualdade e não de diferença.
273
Conforme afirmado anteriormente, acontece nesse período uma forte
predominância do Funcionalismo no Estudo das Culturas e Sociedades Indígenas. Dentre
os trabalhos desse período, segundo Melatti (1984) destaca-se o texto de Florestan
Fernandes sobre A Organização Social dos Tupinambá.
Outro importante antropólogo que começa a pesquisar e escrever nesse período é
Darcy Ribeiro, o qual indica explicitamente sua reflexão como uma abordagem funcionalista.
Apesar da hegemonia da abordagem funcionalista nessa época, demorou-se a se estabelecer
nas pesquisas com povos indígenas do Brasil o longo e intensivo trabalho de campo. Vários
pesquisadores (Baldus, Galvão, Egon Schaden) preferem viagens curtas (MELATTI, 1984).
FUNCIONALISMO
Ao estudar a cultura, a preocupação não era mais com as origens ou história,
mas com a lógica do sistema focalizado, ou seja, a visão sincrônica (um
momento dado – fotografia) e a visão sistêmica, que é a relação da sociedade
com um organismo, um todo organizado. Qualquer traço cultural tem funções
específicas e mantém relações com cada um dos outros aspectos da cultura
para a manutenção do seu modo de vida total.
Bronislau Malinowski, seu grande formulador teórico/metodológico. Este
autor publica em 1922 seu clássico Argonautas do Pacífico Ocidental, onde ficou
famosa a descrição e sistematização da prática da ETNOGRAFIA,
ressaltando a importância da observação participante, e com algumas regras
básicas para o pesquisador: aprender a língua do nativo; conviver de 2 a 3
anos com o grupo pesquisado; fazer a transposição psicológica, ou seja, que o
eles, se transforme no “nós”.
Representantes: B. Malinowski (1884-1942), Radcliffe-Brown (1881-1955).
98 Corrente que teve seu apogeu nas décadas de 40 e 50. Tem pontos em comum com o “funcionalismo”: visão
sincrônica da cultura; visão sistêmica e globalizante do fenômeno cultural; adoção do termo estrutura; influências
da escola francesa. Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009) é considerado o mentor da teoria estruturalista.
275
passou a ser examinada segundo as noções de identidade étnica99. Os anos 70 foram marcados
pelo esforço, que continua a vigorar, de alguns etnólogos em colaborarem com os povos
indígenas pelos quais se interessam academicamente na obtenção de soluções para seus
problemas mais urgentes, como demarcação de terras, assistência médica, instrução,
administração direta pelos índios de sua produção, etc. (MELATTI, 1984).
O processo de mudanças culturais é determinado pela própria dinâmica das
relações sociais e da forma como essas relações ocorrem no âmbito do sistema interétnico,
que podem ser percebidas pela análise dos níveis econômico, social e político. Cardoso de
Oliveira, em seu trabalho intitulado Povos indígenas e mudança sociocultural na Amazônia,
desmistifica a análise que deve ser feita e afirma que “Não se trata de mudança por
empréstimo de tais ou quais traços culturais, como pretendem explicar as teorias da
aculturação” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972, p. 4), pois a situação de contato é
marcada por relações assimétricas de dominação por partes dos não índios e sujeição dos
índios.
O sistema interétnico se constitui a partir do momento em que se cria uma
interdependência, “e se cristaliza quando tal interdependência se torna irreversível”, como
Roberto Cardoso de Oliveira descreve em 1962 e 1964, nos estudos referentes ao processo
de fricção Interétnica, reafirmados em 1972:
99Os membros de um grupo étnico compartem certas crenças, valores, hábitos, costumes e normas, devido a seu
substrato comum. Definem-se a si mesmos como diferentes e especiais devido às características culturais.
Etnicidade, neste sentido, significa identificar-se com, e sentir-se parte de um grupo étnico e exclusão de outros
devido a esta filiação. Normalmente os indivíduos costumam ter mais de uma identidade grupal.
276
nacional e, conforme sua intensidade destaca a relevância da incidência perversa sobre os
povos indígenas.
Aproveitamos, aqui, para apresentar o conceito de fricção interétnica, conforme
aparece no Dicionário de Ciências Sociais, organizado por Silva (1986):
277
Qualquer estudo sobre índios no Brasil que objetive revelar a sua
verdadeira situação não poderá deixar de focalizar o caráter das frentes
desbravadoras que os alcançam, hoje, nos seus mais distantes redutos. O
papel variado, desempenhado por essas frentes de expansão da sociedade
nacional, segundo a intensidade e a qualificação do contato entre índios e
brancos, torna relevantes quaisquer dados que permitam traçar um perfil
compreensivo – pois fundado em evidências estratégicas – das formas de
ocupação civilizada e das modalidades de exploração do trabalho
indígena e não indígena regional (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p.
31).
278
Além do avanço das frentes de expansão, nos meados do século XX, conforme
vimos acima, o fenômeno da globalização, que por diferentes razões está relacionado ao
ressurgir das questões étnicas. Destacamos, também, outras razões, específicas para o caso
Latino-americano. Por um lado, se percebe que a incidência de novos tipos de lideranças
sobre a tradicional consciência de singularidade cultural das populações indígenas põe em
marcha processos de reconstrução e redefinição das identidades étnicas desses povos.
Dessa forma, se produz um discurso com renovada auto representação do “nós” indígena
com a intenção de conseguir sua veracidade mediante a simultânea referência ao que cada
povo conserva de distintivamente “índio” e ao que vem adquirindo e transformando como
resultado de suas, forçadas ou voluntárias, relações culturais e econômicas com o ocidente
(AGUILERA URQUIZA, 2006).
Por outro lado, as culturas indígenas latino-americanas contemporâneas mostram,
de maneira geral em sua estrutura e seus traços, que não são senão resultado de um duro
confronto histórico com as culturas europeias. A reconstrução de suas identidades é
inevitavelmente alusiva a esse confronto histórico que tem se mantido, com diversos
rostos, até o presente. Uma das questões deste texto é entender o sentido das profundas
transformações que as sociedades indígenas estão experimentando em um passado
próximo, como vimos até agora, e na atualidade. O futuro para esses povos indígenas se
apresenta como caracterizado por um “pós-nacionalismo”, que em suas diversas
manifestações – construção de um tempo único universal, desterritorialização cultural,
mestiçagem, hibridismo, etc. – produzem um esvaziamento da referência identificatória do
aspecto nacional com tendência a ser preenchido pelas identidades locais e étnicas
(AGUILERA URQUIZA, 2006).
Por tudo isso, a partir do que vimos até aqui, nos propomos seguir as linhas
centrais da teoria da etnicidade, a partir do seu aspecto de ser essencialmente
interdisciplinar, buscando apoio especialmente nas teses de Fredrik Barth (1998).
A partir dos novos estudos de Fredrik Barth (2000), sobre o tema étnico,
podemos compreender alguns elementos atuais sobre as relações interétnicas em nossa
região, especialmente no caso de povos indígenas recorrerem à memória coletiva
(reconstrução – reavivamento da língua, os rituais e tradições). Nesse movimento, tem-se
enfatizado seu caráter primordial, o qual tende a tirar aos povos “originários” da história e
localizá-los onde o tempo se encontra “congelado”, no sentido de “recuperar” algo que
estava perdido. Segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998), a crítica ao “primordialismo”
segue até hoje como necessária para uma nova reelaboração teórica da noção de etnicidade.
279
É certo que alguns autores defendem a existência de um conjunto de traços e
elementos culturais de “larga duração”, porém, sob o ponto de vista de Barth (1969),
preferimos analisar a etnicidade em suas transformações através do tempo e as identidades
étnicas como identidades fluidas que se constroem, se reconstroem, se ocultam e se
mostram, de acordo com as circunstâncias históricas, políticas, sociais e culturais
determinadas. Fredrik Barth (1998 [1969]) inicia sua análise ordenando o que geralmente se
entende por ‘grupo étnico’ na literatura antropológica. Uma comunidade que: “Perpetua-se
principalmente por meio biológico; comparte valores culturais fundamentais; Integra um
campo de comunicação e interação; os membros se identificam a si mesmos e são
identificados pelos demais” (BARTH, 1998 [1969], p. 189).
Aprofundando essa temática, Barth (1998) chega à conclusão de que etnicidade é
um processo subjetivo. Os ‘grupos étnicos’ são formados na medida em que os autores
utilizam identidades étnicas para categorizar a si mesmos, e aos outros, tendo como
propósito a interação. Assim, pode-se dizer que é o ‘grupo social’ o que determina a cultura
e não o contrário. Desse modo, as diferenças culturais podem persistir, apesar do contato
interétnico e da interdependência.
A etnicidade é uma entidade relacional, pois está sempre em construção, em uma
forma predominantemente contrastiva. O que significa que está construída no contexto de
relações e conflitos intergrupais. A forma contrastiva que caracteriza a natureza do grupo
étnico resulta de um processo de confrontação e diferenciação. Tudo isso acentua a
natureza dinâmica da identidade étnica que se constrói no jogo dessas confrontações,
oposições, resistências, como também e, sobretudo, no jogo da dominação e submissão. É
nesse jogo dialético da dominação e da sujeição, em que se encontra a dimensão mais
crítica do problema da identidade étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p. 58). Barth
(1998) também assinala que o caráter contraditório da relação entre grupos étnicos aparece
mais claramente quando se trata de minorias em suas relações de submissão para com as
sociedades que estão no entorno (AGUILERA URQUIZA, 2006).
Como vimos acima, no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1976), com sua
teoria da fricção Interétnica (a afirmação de um determinado grupo se processa na distinção e
contraste, diante dos demais). Quando uma pessoa ou um grupo se afirma como tal, o faz
como meio de diferenciação em relação com alguma pessoa ou grupo com que se
confronta (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 05-06) e posteriormente Oliveira Filho,
(1977, 1988) – noções de ‘campo social’ e ‘situação histórica’ – são os principais representantes
atuais dessa reflexão, em continuidade aos trabalhos de Fredrik Barth.
280
Nós nos perguntamos, na atualidade, como os povos indígenas constituem sua
identidade em meio às relações que estabelecem com a ‘sociedade nacional’ e quais são os
efeitos, ou como lhes afeta o tema das vertiginosas mudanças sociais no mundo atual?
Sabemos que essas questões de identidades interétnicas, têm sua origem justamente nas
relações estabelecidas entre sociedades indígenas e setores da sociedade nacional, marcadas
simultaneamente por conflitividade por um lado e interdependência, por outro.
Cardoso de Oliveira (1976), confrontado por este contexto, afirma que a noção de
‘identidade contrastiva’,
Pode-se dizer, segundo o argumento do autor, que cada vez se torna mais
necessário descobrir e reafirmar – ou incluso, criar – suas semelhanças, pois isoladamente
assim, em uma situação de confrontação e de minoria, terá condições de reivindicar para si
um espaço social e político de atuação.
Participando, dessa maneira, de um ‘grupo étnico’ (BARTH, 1998, p. 15), como
forma de organização social, articulados basicamente por si mesmos, os povos indígenas,
recorrem a sinais externos de identificação que eles mesmos se constituem como tais,
organizando um processo de interação com outros grupos, que inclui articulações e
interdições, com o fim de garantir sua sobrevivência como unidade (grupo) social. Esses
sinais de identificação não são dados previamente e estabelecidos, mas se constituem
dinamicamente, no próprio processo de organização das relações interétnicas, respondendo
a circunstâncias históricas, assim como aos interesses dos atores relacionados.
Em outros termos, poderíamos dizer que a identidade étnica e a etnicidade são
frutos, também, do processo de ocidentalização do mundo. Implicam sistemas de
classificação e autoclassificação, de identidade/alteridade, presentes nas relações entre
sociedades hegemônicas e dominadas, nas quais estas, quase sempre são os atores
(minorias) que participam do movimento histórico como desiguais e diferentes (classe e
etnia), o que chamamos de relações assimétricas.
281
Essas relações interétnicas, como vimos, historicamente foram e são pautadas por
relações assimétricas, ou seja, relações pautadas pela desigualdade. O maior desafio
enfrentado pelos povos indígenas na atualidade, no Brasil, segue sendo a posse dos
territórios tradicionais, base necessária para a sua sustentabilidade e autonomia e um dos
fatores mais relevantes para explicar a persistência de elevados índices de pobreza e
precárias condições de vida verificadas entre muitos povos. O avanço sistemático da
colonização sobre os territórios indígenas e seus recursos naturais é consequência da
imposição histórica de um projeto de desenvolvimento monocultural, no âmbito dos
Estados Nacionais.
Entendemos que a situação dos povos indígenas hoje, não só no Brasil, mas em
diversos países da América Latina, traz marcas profundas desse mesmo projeto de
desenvolvimento que se caracterizou, também, pela sistemática e planejada busca de
superação da sociodiversidade, percebida, inclusive, pelos Estados Nacionais que aqui se
implantaram, como um estorvo, e a presença dos povos indígenas, além de sinal de atraso,
significando o risco de futuras fragmentações políticas.
O destino dos povos indígenas, sob a ótica dos Estados Nacionais, era o seu
desaparecimento, mediante a integração na sociedade ocidental, o que, na perspectiva dos
povos indígenas, se traduziu em desintegração de seus territórios, modos de vida,
organização social, economias, religiões e cosmovisões. Seus conhecimentos, tecnologias de
manejo ambiental, medicina e agricultura, sob a ótica das elites ocidentais, eram (e são,
ainda, em amplos setores dessas mesmas elites) considerados imprestáveis e sinal de atraso
e de não civilização.
Como afirmou Boaventura de Souza Santos, nós temos o direito a sermos iguais
quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade
nos descaracteriza. As pessoas querem ser iguais, mas querem respeitadas suas diferenças.
Ou seja, querem participar, mas querem também que suas diferenças sejam reconhecidas e
respeitadas.
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edição).
285
VI
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
MARCO CONCEITUAL E GESTÃO
286
Apresentação da Seção
Esta seção está composta por 04 textos, os quais tratam da temática mais ampla
do marco conceitual da Educação Escolar Indígena e elementos da gestão. São textos já
publicados alhures e adaptados, inicialmente, para o curso de Especialização em
Antropologia e História dos povos indígenas e, finalmente, publicados com algumas
mudanças no presente livro.
287
Elementos da História da Educação
Escolar Indígena no Brasil – uma
“guinada epistemológica”100
AGUILERA URQUIZA, A. H.101
100 O presente artigo foi publicado originalmente em: AGUILERA URQUIZA, A. H. EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL - Os caminhos de uma “guinada política e epistemológica”. In:
NASCIMENTO, C. G. Versos e Reversos da Educação: das políticas às pedagogias alternativas. Goiânia: PUC-
GO, 2010.
101 Doutorado em Antropologia (Universidade de Salamanca). Professor da Pós-Graduação em Direitos
aquela pensada executada e gerenciada pelos próprios indígenas e a partir da sua lógica, e o que chamamos de
Educação para os índios – aquela que foi realizada durante quase 500 anos, ou seja, uma educação de matriz
eurocêntrica, pensada “para” e não “com” os povos indígenas.
288
inclui-se como parte de um conjunto de reflexões que temos desenvolvido a alguns anos,
acompanhando de perto o processo de construção e reinvenção histórica da educação
escolar no contexto das comunidades indígenas brasileiras, mais notadamente, dos povos:
Bororo do Estado de Mato Grosso, Terena e Guarani-Kaiowá do Estado do Mato Grosso
do Sul.
289
dimensão cultural da educação enquanto processo de socialização das novas gerações. Em
um sentido mais amplo, entendemos educação como um processo de transmissão das
tradições culturais de um grupo, de uma geração a outra; em outras palavras, conforme
Luciano (2006, p. 129)
Educação seria um conjunto dos processos envolvidos na socialização
dos indivíduos, correspondendo, portanto, a uma parte constitutiva de
qualquer sistema cultural de um povo, englobando mecanismos que
visam à sua reprodução, perpetuação e/ou mudança.
Podemos dizer que cada povo indígena projeta e deseja para si um tipo de
alteridade, o que se confunde com a constituição da pessoa, a sua formação e o seu ideal
(LUCIANO, 2006, p. 131), que é sempre coletivo: o que é bom para o indivíduo é bom
para seu povo.
Após estas considerações a respeito do conceito mais amplo de educação e da
educação indígena, podemos afirmar que a educação escolar é apenas uma das formas
encontradas pela civilização ocidental para sistematizar o processo de socialização de seus
membros. Depreende-se, dessa maneira, que “a educação escolar indígena, diz respeito aos
processos de produção e transmissão dos conhecimentos não-indígenas e indígenas por
meio da escola, que é uma instituição própria dos povos colonizadores” (LUCIANO, 2006,
p. 129). Desde a chegada dos Jesuítas ao Brasil, em meados do século XVI, dá-se a prática
do que se convencionou chamar a educação para o índio (MELIÁ, 1979), ou seja, uma
proposta de alfabetização a partir dos padrões ocidentais, onde os conteúdos, as práticas
Cada clã Bororo possui uma lista abundante de nomes próprios de pessoas entre os quais é escolhido o
103
nome ou os nomes que a criança recebe no dia da sua nominação. Como os filhos pertencem ao clã da mãe, o
nome que eles recebem será escolhido na lista dos nomes do clã da mãe.
291
metodológicas e procedimentos de aprendizagem eram concretizados a partir das
concepções dos educadores. Na verdade, a educação escolar era uma estratégia para
facilitar a conversão (evangelização) e catequização das novas gerações, o que estava em
consonância com o projeto colonial: integrar o índio como mão-de-obra na sociedade
nacional. As escolas, nesta época, se pautam por uma perspectiva integracionista e a recusa
do diálogo com a diferença, o que veio a ser alterado apenas com a Constituição Federal de
1988.
Não se pode negar que durante quase cinco séculos, com raríssimas exceções, a
educação escolar serviu como ponta de lança para o processo de aculturação e consequente
dominação dos povos indígenas no Brasil. Seguindo um texto conhecido, de Ferreira (2001,
p. 71-111), podemos dividir, grosso modo, em quatro fases a história da educação escolar
entre os povos indígenas no Brasil: a primeira seria durante o período colonial, quando a
escolarização dos índios esteve a cargo exclusivo de missionários católicos. Até 1759
quando foram expulsos do Brasil, os jesuítas usaram a educação escolar, entre outras coisas,
para impor o ensino obrigatório em português como meio de promover a assimilação dos
índios à civilização ocidental (cf. FERREIRA, p. 72). Pode-se dizer que o objetivo das
práticas educacionais/escolarizadas, neste período, era negar a diversidade dos índios, ou
seja, acabar com suas culturas, ao mesmo tempo em que incorporavam os indígenas à
sociedade nacional como mão-de-obra. Outras ordens religiosas, com o apoio do Estado,
também seguiram com práticas semelhantes às dos jesuítas, como foi o caso dos/as
salesianos/as, entre os Bororo (a partir de 1895) e Xavante no Mato Grosso (a partir de
1953)104 ou, no Alto Rio Negro, com atividades envolvendo várias etnias e que
permaneceram até as últimas décadas do século XX: internatos, imposição do ensino do
português em detrimento das línguas nativas, “metodologias próprias para ignorar os
conhecimentos indígenas e seus pensadores: velhos, mestres de danças, entoadores de
mitos, benzedores, ritos, casas rituais…” (RESENDE, 2008).
O segundo momento da educação escolar entre os povos indígenas no Brasil
pode ser marcado pela criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em 1910, quando
acontece uma importante mudança na política do Estado brasileiro. Após quatro séculos de
total descaso com os povos indígenas, o Estado resolveu formular uma política baseada
nos ideais positivistas do final do século XIX, procurando intencionalmente integrar os
índios à comunhão nacional, utilizando, para isso, como uma das estratégias, a educação,
ainda que alegando certa preocupação com a diversidade linguística e cultural dos povos
105 Artigo 49: “A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português,
salvaguardando o uso da primeira”.
293
escolarização como importante e necessário nas lutas cotidianas; recorrem a ela, como
mecanismo de luta.
Foi necessária uma longa trajetória até que as próprias sociedades indígenas
constatassem que a educação escolar, de “instrumento de opressão e integração forçosa”,
poderia tornar-se uma aliada, ferramenta de luta a favor de seus interesses, na dinâmica
história de contato de cada um destes povos com a chamada “sociedade nacional”. Neste
sentido afirma Ferreira (2001, p.71) que:
A grande suspeita contra a escrita está ligada ao fato de que ela serviu como
ferramenta de conquista e domínio por parte do Estado brasileiro sobre os povos
indígenas. A magia da escrita se burocratiza quando ela entra na escola e, como diz Meliá
(1989, p.11) “não existe escola sem escrita e quase não se dá escrita sem escola”. Dessa
forma, vários povos indígenas passam, a partir da década de 1970, a assumir suas escolas e
o processo de alfabetização, adequação dos espaços, formação de professores, entre outros.
Neste processo de assumir a escola para si, os povos indígenas contaram com o apoio de
muitos parceiros (Universidades, ONG’s, OPAN, CIMI, CTI, entre outros). Importante
salientar que não existe uma pedagogia indígena única e genérica, mas a abertura aos
processos próprios de aprendizagem.
294
Um dos exemplos mais conhecidos neste movimento de construção de
experiências de autonomia no campo da educação escolar indígena vem do povo Tapirapé.
Segundo Paula (2008), os Tapirapé, povo indígena cuja língua pertence à família Tupi-
Guarani, somam hoje cerca de 650 pessoas. Suas seis aldeias se localizam na região
nordeste de Mato Grosso. É um povo que já esteve à beira da extinção, por volta de 1950,
vitimado por doenças contraídas na situação pós-contato e também por ataques de grupos
Kaiapó. A ação das Irmãzinhas de Jesus possibilitou uma franca recuperação populacional
e hoje eles apresentam uma elevada taxa de crescimento demográfico, por volta de 7% ao
ano, localizados no noroeste do Estado de Mato Grosso. Com apoio do CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), os Tapirapé começam o processo de construção de um projeto
emancipatório, tendo a educação como elemento central. Começam a produzir materiais
didáticos na própria língua e a partir da própria realidade cultural; priorizam a formação de
professores índios e a alfabetização na própria língua. O processo de reelaboração da
ortografia da própria língua é outro exemplo, segundo Paula (2008), que demonstra
inequivocamente o modo de os Tapirapé lidarem com as novidades que vão sendo
incorporadas, assumindo o protagonismo destas mudanças, seja no campo da educação, da
produção de alimentos ou mesmo da língua.
Na situação pós-contato, a escola tem sido uma das instituições solicitadas pelos
povos indígenas. Parece que nela percebem elementos que podem ajudar na luta mais
global, como o resgate da memória histórica, o domínio da escrita ou dos conhecimentos
matemáticos acumulados pela cultura ocidental. Frequentemente, a metáfora utilizada para
a escola, para a escrita, é de que elas sejam armas na luta pela sobrevivência. E, de fato, os
projetos educacionais elaborados junto com os grupos indígenas, a partir de seus interesses
e necessidades, têm conseguido responder satisfatoriamente a essa demanda (PAULA,
2008).
295
seus aliados, conseguiram fazer ouvir tais direitos. A lei maior do país, a Constituição
Federal de 1988, os reconhece de modo claro e inequívoco (PAULA, 2008), assim como a
LDBEN (Lei 9394/96), no que diz respeito à educação.
296
possuem direito à cultura, tradições e territórios, tratando-se assim, de uma verdadeira
“guinada epistemológica”.
297
Ao ter a língua materna como um sistema linguístico que orienta as ações
curriculares, no sentido de incluir cada grupo indígena no currículo, o trabalho escolar
valoriza a língua local, potencializa o fortalecimento da identidade através de práticas que
facilitam a comunicação, a compreensão das representações que os alunos fazem, o diálogo
com a comunidade e, com isto, facilitam a aprendizagem, ao mesmo tempo em que abrem
possibilidades para novas aprendizagens e interação com outros saberes. “Ensino
ministrado nas línguas maternas das comunidades atendidas, como uma das formas de
preservação da realidade sociolinguística de cada povo”, da “organização escolar própria”
(NASCIMENTO; AGUILERA URQUIZA, 2005).
298
Educação Nacional) em seu artigo 32 assegura aos povos indígenas “a utilização de suas
línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem”. Nos artigos 78 e 79, a
reafirmação de suas identidades étnicas, assim como currículos, programas e publicação de
materiais didáticos específicos e diferenciados.
299
assim como espaços de incompreensões e de redefinições [...]” reorienta as funções do
professor, de sua prática pedagógica em torno de identidades plurais, dinâmicas e híbridas
(CANCLINI, 1998) como aquele que deve: transmitir a vivência da continuidade, o que faz
recorrendo ao acervo de sua experiência vivenciada na família e no grupo de pares, e
realizar a ruptura ao fornecer ao aluno novos elementos de crítica capazes de ajudá-lo a
ultrapassar a experiência, os estereótipos, as barreiras do etnocentrismo, as inúmeras
pressões da ideologia dominante.
Acrescenta que:
301
Considerações finais
Embora haja boa vontade de aceitar as mudanças para as escolas indígenas temos
percebido que a operacionalização, ou seja, traduzir as ideias e/ou as construções históricas
em cotidiano, tanto por parte dos professores como por parte das Secretarias e dos
Conselhos de Educação tem sido muito difícil. Programas curriculares, cumprimento de
horários, calendários, modos de avaliação tendem a ser polarizados e, portanto, colocados
em crise de uma ou de outra parte, o que impedem a construção de uma escola indígena.
Ainda neste contexto, podemos afirmar que a preocupação centra-se, então, nas
fronteiras sociais que definem o grupo. A persistência das fronteiras étnicas, conforme
BARTH (2000, p.35), exige e supõe o contato e a relação com quem não é igual, ou seja, a
relação com o outro. É essa relação com os outros que permite a explicitação de critérios
de pertencimento e de exclusão, ou seja, de um “conjunto sistemático de regras que governam os
encontros sociais interétnicos”, incluindo prescrições, interdições e proscrições. A educação
escolar indígena é, na atualidade, este território de trânsito e (in)compreensões.
302
modelo de escola ocidental e homogeneizadora, que cada um viveu e reorganizar o seu
conhecimento escolar, ou seja, a formação de sua identidade étnica e política; o processo de
investigação, de elaboração, de sistematização dos novos conteúdos (os conteúdos culturais
particulares de cada realidade); a produção da síntese através da interculturalidade, do
diálogo entre as culturas e os saberes.
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304
O desafio da interculturalidade na
formação de Professores Indígenas106
AGUILERA URQUIZA, A. H.107
NASCIMENTO, Adir Casaro (UCDB)108
Introdução
106
O presente artigo foi publicado originalmente em: AGUILERA URQUIZA, A. H. & NASCIMENTO,
Adir Casaro. O DESAFIO DA INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
INDÍGENAA. In: Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 44-60, jan./jun. 2010.
107 Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul com Doutorado em
da UCDB.
305
professores - índios, dos alunos e das mães, sujeitos mais diretamente envolvidos na
dinâmica e tensões da escola e, como essas práticas e seus efeitos, estão envolvidos na
dinâmica do poder social da comunidade e o seu entorno.
Nas últimas décadas do século XX, por iniciativa dos povos indígenas, com apoio
de universidades e ONG’s, esta realidade colonial, de uma escola a serviço da assimilação
compulsória, vem mudando, tendo como marco legal, a Constituição Federal de 1988, a
qual garante, além do reconhecimento da diversidade linguística e sociocultural, uma
educação indígena específica, diferenciada, bilíngue e comunitária. Dessa forma, os
indígenas passam a ressignificar esta escola e a tomá-la para si, colocando-a como espaço de
fronteira (cf. TASSINARI, 2001), lócus de negociação entre culturas distintas (cf.
BHABHA, 1998; HALL, 2003).
306
processo de reflexão e sistematização teórica tenha aparecido apenas anos mais tarde 109, a
partir da década de 1980 (cf. FERREIRA, 2001).
109Pode-se considerar que uma primeira tentativa de reflexão sistemática sobre esta “nova proposta de
educação indígena” foi o livro de MELIÁ. B. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola,
1979.
307
o curso “Povos do Pantanal”, formação em nível médio, a partir de 2007 e, atualmente,
está em andamento a Licenciatura através do PROLIND.
Queremos uma escola própria do índio [...] dirigida por nós mesmos,
[...] com professores do nosso próprio povo, que falam a nossa língua
[...] A comunidade deve decidir o que vai ser ensinado na escola, como
vai funcionar a escola e quem vão ser os professores. A nossa escola
deve ensinar o Ñande Reko (nosso jeito de viver, nossos costumes,
crenças, tradição), de acordo com nosso jeito de trabalhar e com nossas
organizações. Os currículos devem respeitar os costumes e tradições das
comunidades Kaiowá e Guarani e devem ser elaborados pelos próprios
professores junto com as lideranças e comunidades. Os professores
Kaiowá e Guarani devem ter uma capacitação específica. As escolas
devem ter seus próprios regimentos... Que as iniciativas escolares
próprias das comunidades Kaiowá e Guarani sejam reconhecidas e
apoiadas pelos municípios, estado e união.
308
Percebe-se, claramente, por este depoimento, a consciência histórica de que era
chegado o momento das comunidades indígenas assumirem o lugar de protagonistas no
processo de implementação desta nova proposta de educação escolar indígena. Essa
trajetória, entretanto, quase sempre não foi devidamente acompanhada e documentada
pelos órgãos governamentais.
110Com relação aos dados específicos das escolas situadas em aldeias, ou que atendam a população indígena,
não encontramos na Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul, até 2004, dados precisos,
embora haja relatos e dados isolados de que na década de 1990, houve uma certa “apropriação” da escola
pelos índios, inclusive, como gestores, especulando-se que em todo o Estado cerca de 80% dos professores
das escolas indígenas de ensino fundamental sejam índios. Também não se tem um cotejamento oficial sobre
o número de crianças nas escolas e, por consequência, a trajetória das mesmas no período escolar.
309
práticas precisam estar profundamente ancoradas no diálogo entre culturas – diálogo
intercultural.
Vem, a seguir, a ocupação das regiões dos campos naturais e dos cerrados, que
são rapidamente tomados pela pecuária. No território de Mato Grosso do Sul esses espaços
eram ocupados pelo povo Ofaié, entre outros, que, também, resultou, praticamente,
extinto, sendo encontrados hoje apenas cerca de 61 indivíduos (FUNASA, 2007). A
exemplo dos Guató acabaram rapidamente sem terra. E, finalmente, em período muito
311
mais recente, ocorreu a ocupação das regiões de mata, atingindo em cheio os “povos da
mata”, no caso, os Guarani e Kaiowá.
111 Embora conste na Secretaria Estadual de Educação, projetos de formação continuada para professores
índios, interpretar os programas de formação inicial, continuada e específica para os professores índios não
tem sido tarefa das mais fáceis, apesar de uma busca incessante para tanto. Neste sentido é necessário
salientar a falta de compromisso político-social dos órgãos responsáveis pela manutenção e implementação da
312
“aprendizagens” acontecidas nesses cursos as mais significantes parecem ser: - a
instrumentalização metodológica e cognitiva para uma permanente necessidade de
investigação, de elaboração, de sistematização de novos conteúdos; o desejo de estar
realizando a antropologia de si mesmos, de seu povo; a atitude de ressignificar os chamados
conteúdos universais (cristalizados pela cultura escolar ocidental); a autonomia para a
elaboração e invenção de projetos pedagógicos e materiais didáticos próprios,
particularizados: reinventando a didática. Aqui estão os grandes desafios da prática da
interculturalidade e a formação de professores indígenas no Estado.
Fica claro que essas aprendizagens foram e são permeadas e/ou mediadas por
dois fatores fundamentais na vida de cada um, segundo nossa interpretação: o
fortalecimento, o orgulho de definir-se como índio, com alguma clareza de sua identidade e
das possibilidades objetivas de futuro e, talvez, em um processo mais doloroso, a
“desconstrução”, ou mesmo a fragmentação do modelo de escola que cada um viveu e a
reorganização do seu próprio conhecimento escolar. Percebe-se em alguns, a experiência de
estar podendo escrever a história de si mesmos através da voz do seu povo, no caso,
principalmente, dos mais velhos que se tornaram “bibliotecas vivas”, acervos raros para
aprender a cultura, a história tradicional (NASCIMENTO, 2003).
Educação Escolar Indígena no Estado de Mato Grosso do Sul: os projetos de formação inicial e continuada,
seus objetivos, metodologias e propostas devem estar ao alcance de pesquisadores e de toda a comunidade, a
fim de se tornar possível toda e qualquer investigação neste âmbito.
313
Sem perder de vista os elementos estritamente didático-pedagógicos, os currículos
das escolas indígenas são constantemente atravessados pelos temas do cotidiano de suas
respectivas comunidades: saúde, sustentabilidade, produção de alimentos, retomada de seus
territórios, relação com os mercados locais e regionais, assim como a questão da violência,
desnutrição, assalariamento compulsório nas usinas, entre outros.
314
A Resolução estabelece, entre outras diferenças, as “diretrizes curriculares do
ensino intercultural e bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas
e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica” (Art. 1º). Segundo o documento isto
será possível através de “ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades
atendidas, como uma das formas de preservação da realidade sociolinguística de cada
povo”, da “organização escolar própria” (Art. 2º), da “participação da comunidade na
definição do modelo de organização e gestão” considerando “suas estruturas sociais; suas
práticas socioculturais e religiosas; suas formas de produção de conhecimento, processos
próprios e métodos de ensino-aprendizagem; suas atividades econômicas” (Art. 3º). O
artigo 5º destaca que: “A formulação do projeto pedagógico próprio por escola ou por
povo indígena, terá por base” - entre outros aspectos de cultura e currículo, “a participação
da respectiva comunidade ou povo indígena”. Quanto à docência na escola indígena diz a
Resolução 03: “A formação de professores indígenas será especifica.” (Art. 6º); “Os cursos
de formação de professores indígenas darão ênfase à constituição de competências
referenciadas em conhecimentos, valores, habilidades e atitudes, na elaboração, no
desenvolvimento e na avaliação de currículos e programas próprios, na produção de
material didático e na utilização de metodologias adequadas de ensino e pesquisa” (Art. 7º)
complementando no artigo 8º que afirma:, “A atividade docente na escola indígena será
exercida prioritariamente por professores indígenas oriundos da respectiva etnia”. Todos
estes elementos legais, conquistados após alguns anos de práticas alternativas nas escolas
indígenas e, também, pelas pressões, agora como marco legal, referendam o cotidiano da
formação dos professores indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul.
Foi a partir desta base teórico-legal que com o protagonismo dos próprios
professores indígenas, através de associação e juntamente com outras lideranças, foram se
construindo e se constituindo os primeiros projetos de formação de professores no Estado.
O destaque, conforme visto anteriormente foi a experiência dos professores das etnias
Ñandeva112 e Kaiowá, com a Licenciatura Teko Arandu, por ser algo totalmente novo (um
único povo – o Guarani), a partir de uma construção coletiva, com seleção na própria
língua, além de currículo próprio.
112Os Guarani são considerados, geralmente, como possuindo três subgrupos, no território brasileiro: os
Mbya (mais presentes no litoral), os Kaiowá (no sul do Estado de Mato Grosso do Sul) e os Ñandeva (mais
conhecidos como simplesmente Guarani).
315
2004, para a construção da proposta de uma licenciatura indígena específica. Entretanto, a
ideia só foi concretizada alguns anos depois, com a participação da UFGD (Universidade
Federal da Grande Dourados), recém-criada pelo Governo Federal. O projeto pedagógico
do curso foi todo discutido e elaborado a partir da participação dos professores indígenas,
assim como a disposição do currículo e do processo seletivo, com a novidade de ser na
própria língua, ou seja, a prática da língua Guarani é um primeiro critério de seleção dos
futuros acadêmicos/as da Licenciatura Teko Arandu. Neste curso, busca-se continuamente
o diálogo e a discussão de procedimentos de aprendizagem a partir da base epistemológica
da interculturalidade, ou seja, saberes diferentes e de matrizes culturais distintas, mas que
podem ser contemplados dentro de um mesmo processo de aprendizagem.
Considerações finais
316
reciprocidade, sistema econômico...) e a cosmovisão de cada povo: “suas estruturas sociais;
suas práticas socioculturais e religiosas; suas formas de produção de conhecimento,
processos próprios e métodos de ensino-aprendizagem; suas atividades econômicas”
(NASCIMENTO; AGUILERA URQUIZA, 2005, p. 05).
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318
CURRÍCULO, DIFERENÇAS E IDENTIDADES:
Tendências da escola indígena guarani e kaiowá113
AGUILERA URQUIZA, A. H.114
NASCIMENTO, Adir Casaro (UCDB)115
Considerações iniciais
113 Este texto foi publicado originalmente em NASCIMENTO, Adir C.; AGUILERA URQUIZA, A. H.
DIFERENÇAS E IDENTIDADES: tendências da escola indígena guarani e kaiowá. In: Currículo sem
Fronteiras, v.10, n.1, pp.113-132, Jan/Jun 2010.
114 Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul com Doutorado em
da UCDB.
319
processo de construção de uma política que tem como centralidade reverter o quadro da
imposição guiada pelos movimentos sociais indígenas, compreenderemos a importância
dada ao currículo enquanto produtor de identidade.
320
imposição de uma cultura dominante e abre-se para um espaço de intercultura de onde
emergem inquietações e desafios para todos os envolvidos nesse processo.
Nesse sentido o currículo escolar tem que ser traduzido como uma linguagem,
um evento que expressa uma realidade que percorre um caminho, que vive um tempo: um
tempo de negociações internas, locais, elaboradas no fragmento, no cotidiano e que no
continuum vão sendo coletivizadas, assimiladas. “É na cultura que se dá a luta pela
significação, na qual os grupos subordinados tentam resistir à imposição de significados
que sustentam os interesses dos grupos dominantes” (VORRABER COSTA, 2002, p.138).
321
culturas, produz-se um novo espaço com novas complexidades. A problemática que se
propõe para reflexão é: em que medida a escola para índios tem se tornado escola indígena
ou, até que ponto a escola tem sido reelaborada e ressignificada pela mediação de
professores-índios?
A escola pode ser considerada como uma instituição ocidental, alheia à cultura e
tradição dos povos indígenas. Faz-se necessário, desde o início, retomar a clássica distinção
entre educação indígena e educação escolar indígena.
Desde a chegada dos Jesuítas ao Brasil, em meados do século XVI, dá-se a prática
do que se convencionou chamar a educação para o índio (MELIÁ, 1979), ou seja, uma
proposta de alfabetização a partir dos padrões ocidentais, em que os conteúdos
curriculares, as práticas metodológicas e procedimentos de aprendizagem eram
322
concretizados a partir das concepções dos educadores e não a partir da realidade dos povos
indígenas.
Com a substituição do SPI pela FUNAI em 1968, o ensino bilíngue passa a ser
prioridade, assumido como forma de “respeitar os valores tribais”, adequando, na sua
concepção, a instituição à realidade indígena (FERREIRA, 2001, p. 75). Em 1973, o
Estatuto do Índio (Lei 6.001117) tornou obrigatório o ensino de línguas nativas nas escolas
indígenas. Mesmo antes disso, o Estado já havia firmado, em 1959, convênio com o SIL
(Summer Institute of Linguistics) para o estudo e descrição técnica das línguas indígenas, o que
estava em consonância com os objetivos integracionistas do Estado brasileiro. Tratou-se,
na verdade, de uma opção política: repassar a ação governamental para uma instituição
norte-americana, cujo objetivo era a evangelização dos indígenas, ao invés de investir na
autonomia e na educação indígena.
116 Concepções que a Idade Média tinha de suas disciplinas curriculares (e de seu ensino e valor educativo), as
"artes liberais": o trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e
Astronomia), adaptadas posteriormente pelos Jesuítas em sua Ratio Estudiorum.
117 Artigo 49: “A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português,
Na atualidade, estamos passando por uma quarta fase no processo histórico que
envolve os povos indígenas no Brasil e a educação escolar, aquela marcada pelas conquistas
políticas pós Constituição Federal de 1988, quando constatamos uma verdadeira mudança
de concepção epistemológica dos conceitos e práticas da educação escolar indígena no país,
conforme será mais bem explicitado na sequência. Os movimentos indígenas se
fortaleceram e com o apoio de pessoas e instituições parceiras, conseguiram importantes
conquistas no que se refere aos seus direitos básicos, de organização social, posse da terra,
uso da língua, autonomia, etc.
324
conjunto, bem como programas curriculares que levassem em conta as características
culturais dessas populações.
Na atualidade, na maioria dos casos, a escola tem sido uma das instituições
solicitadas pelos povos indígenas. Parece que nela percebem elementos que podem ajudar na
luta mais global, como o resgate da memória histórica, o domínio da escrita ou dos
conhecimentos matemáticos acumulados pela cultura ocidental. Frequentemente enxergam na
escola uma nova arma na luta pela sobrevivência, no contato com o restante da sociedade
nacional.
Essas aprendizagens foram e são permeadas e/ou mediadas por dois fatores
fundamentais na vida de cada professor: o fortalecimento e o orgulho de definir-se como
325
índio, com maior segurança de sua identidade e das possibilidades objetivas de futuro e,
talvez, através de um processo mais doloroso, a “desconstrução”, a desfragmentação do
modelo de escola que cada um viveu em sua experiência como aluno em escolas ocidentais e,
nesse sentido, a reorganização do seu próprio conhecimento escolar, a experiência de estar
podendo escrever a história de si mesmos, através da voz do seu povo, no caso,
principalmente, dos mais velhos, que se tornaram “bibliotecas vivas”, acervos raros para
aprender a cultura e a história tradicional (NASCIMENTO, 2003).
Como sabemos, Mato Grosso do Sul é o estado brasileiro que possui a segunda
maior população indígena no país. Dentre as várias etnias destacam-se os Guarani e
Kaiowá, com um contingente populacional aproximado de 30 mil pessoas, sendo, dessa
forma, um dos mais numerosos povos indígenas do país.
326
atualidade, a incidência do alcoolismo, a prostituição, a violência interna e os suicídios118.
118Entre os anos de 1980 a 1999 foram constatados um total de 384 casos de suicídios entre os Kaiowá e
Guarani, localizados na região da Grande Dourados, no MS (BRAND, 1997).
119 Os mesmos Guarani e Kaiowá ocupavam, também, terras que hoje integram o território paraguaio, sendo,
evidentemente, a fronteira política entre os dois países completamente estranha aos índios.
120 Esses termos designavam as chefias de família. Cabiam-lhes atribuições nas esferas política e religiosa.
Essas expressões incluem, hoje, as pessoas iniciadas nas práticas rituais e dirigentes de grupos de reza que
podem, ainda, ser denominadas, genericamente, de caciques ou rezadores, sendo estes os termos mais
recorrentes nas falas dos indígenas (BRAND, 1997).
121 Grande empresa de exploração da Erva Matte no sul de Mato Grosso; utiliza, dentre outros, da mão de
obra dos Guarani; posteriormente, no século XX torna-se empresa argentina e começa a entrar em crise nos
anos de 1940.
122 CAND – Colônia criada por Getúlio Vargas, como parte do movimento “Marcha para o Oeste”, com o
objetivo, geopolítico, de colonizar e ocupar esta parte do território nacional, realizando um ensaio de
“reforma agrária”, loteando “terras devolutivas”, que na verdade eram pertencentes ao povo Guarani, a partir
de 1940.
327
professores, são indígenas. No mínimo, trata-se de uma realidade ressignificada, hibridizada
(CANCLINI, 2000).
329
longa história de contato e enfrentamento entre culturas trazem uma memória e voz de
uma resistência, imbricando identidades. As tendências parecem indicar que a escola
Guarani e Kaiowá "deve aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
línguas culturais, a traduzir e a negociar entre elas" (HALL, 2003, p.88).
Considerações finais
330
próprio ao seu fazer pedagógico, pois trata-se de um tradutor que transita com certa
familiaridade por fronteiras culturais e de lógicas diferentes de conhecimento.
331
que se propõe a valorizar esta mesma cultura e dar a ela legitimidade e visibilidade para, ao
lado de outras culturas, reescrevermos a história da construção do conhecimento da
humanidade. Esta é hoje, parece-nos, a tendência da escola indígena Guarani e Kaiowá.
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333
A GESTÃO DA EDUCAÇÃO INDÍGENA:
Etnocentrismo e novas Diretrizes Curriculares
Nacionais
123Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UNB), com vasta experiência profissional na temática
da Educação Escolar Indígena. Atualmente compõe equipe da Coordenação Geral da Educação Escolar
Indígena da SECADI/MEC.
334
A definição desses direitos é fruto de
processos de resistência e de mobilização política dos No Brasil, os povos indígenas têm
reconhecidos seus direitos:
Povos Indígenas na defesa de seus interesses e Às formas próprias de
perspectivas políticas e identitárias. A efetivação desses organização social;
À territorialidade tradicional;
direitos assegura aos povos indígenas se apropriarem da À valorização dos sistemas
epistemológicos e cosmológicos;
instituição escola, atribuindo-lhe identidade e função À valorização, manutenção e
peculiares à escola. proteção das suas línguas;
À produção e transmissão das
A escola historicamente foi um espaço de tradições;
Ao reconhecimento de suas
imposição de valores e assimilação à economia de instituições educativas;
Aos processos de constituição de
mercado – devoradora de identidades – mas, a partir da
saberes;
definição dos direitos políticos dos povos indígenas, À transmissão do patrimônio
sociocultural, linguístico e
entre eles, direitos culturais, educacionais e linguísticos, histórico às gerações futuras.
passa a ser reivindicada como espaço de construção de
conhecimentos e estratégias para as relações intersocietárias, baseadas na interculturalidade,
na autonomia política e na equidade.
Para que isso fosse possível, um longo processo histórico de cinco séculos foi
vivido por esses Povos que começa com a dominação colonial e espoliação territorial e
chega aos dias de hoje à perspectiva de uma sociedade que se reconhece pluricultural,
pluritiétnica e multilíngue, democratizada pelo reconhecimento e respeito às diferenças
culturais.
1. MARCOS INSTITUCIONAIS
1.1 Elementos Históricos
335
A escola entrou na comunidade indígena como um corpo estranho, que ninguém
conhecia. Quem a estava colocando sabia o que queria, mas os índios não sabiam,
hoje os índios ainda não sabem para que serve a escola. E esse é o problema. A escola
adentra na comunidade e se apossa dela, tornando-se dona da comunidade, e não a
comunidade dona da escola. Agora, nós índios, estamos começando a discutir a
questão. (KAINGANG, 1997, p. 214 citado por FREIRE,2004, p. 28)
Esses primeiros contatos entre jesuítas e índios ocorreram ora em clima de grande
hostilidade e ora de forma muito amistosa. Segundo LEONARDI (2001), quando o índio
se recusava a trabalhar ou se revoltava, opondo resistência ao processo de escravização
(completa ou parcial), ele era duramente perseguido e reprimido.
De acordo com RIBEIRO (1984), os índios receberam o jesuíta como a um pajé todo-
poderoso, que lhes proporcionaria fartura e bem-estar. Mas, conforme citação do mesmo autor,
extraída de uma carta escrita pelo padre João de Azpilcueta Navarro, nem todos os
contatos ocorreram dessa maneira.
A população indígena brasileira nessa época era bastante diversa; estima-se que
existiam aproximadamente 6 milhões de índios e cerca de 1200 línguas diferentes. Portanto,
havia diferentes grupos étnicos com costumes e tradições próprios. As diferenças no
tratamento dispensado pelos jesuítas aos povos nativos eram proporcionais à resistência
que os mesmos ofereciam ao processo de escravização. Um exemplo seria a violência
praticada contra os índios Tremembé, no século XVII; todavia, a expedição militar que foi
enviada para reprimi-los foi chamada de “atividade de pacificação” (LEONARDI, 2001).
a) Da Colônia ao Império
De 1549 a 1750
De 1750 a 1777
337
Período Pombalino – as reformas instauradas pelo Marquês de Pombal representam
princípios e interesses que não se coadunam com as práticas educativas dos padres jesuítas.
De 1757 a 1798
Instituído o Regime do Diretório – Diretório dos Índios ou Diretorias dos Índios – que
consistia na nomeação, pelo governador, de um diretor – de Estudos – que representaria os
interesses do Estado relativos às populações indígenas, incluindo sua educação.
Regime do Diretório
De acordo com CUNHA (1992), apesar de extinto o Diretório dos Índios fica
oficiosamente em vigor no período entre 1798 e 1845; em algumas províncias, como Ceará
e Rio de Janeiro, é oficialmente restabelecido; outras províncias, como a do Maranhão,
passam a definir suas próprias diretrizes e oficializam o regime das missões, que consistia
na permissão legal para o retorno de missionários ao Brasil sem obstáculos à sua atuação.
338
Até depois de 1845, com a instituição do Regulamento das Missões, como destaca
Amoroso (2001), os Diretórios dos Índios foram mantidos com diretores militares naquelas
províncias onde o número de missionários não foi suficiente para suprir a demanda e nos
aldeamentos localizados em áreas de fronteira.
Missionários católicos
Na ótica dos padres jesuítas, o contato com os colonos também não trazia bons
exemplos morais e religiosos para os índios, pois era comum encontrar entre aqueles
criminosos cumprindo pena de degredo. Muitos colonos envolviam-se com os índios a
ponto de converterem-se a seus modos de vida e era comum manterem relações sexuais
com índias. Outro aspecto negativo era o fato de também ensinarem aos índios a se
embriagarem. Mas os colonos, sobretudo, preferiam ter os índios como mão de obra para
prestar-lhes serviços domésticos ou trabalhar nas atividades de suas fazendas a vê-los
estudando.
Nessas aldeias os índios passavam a viver sob as normas civis e religiosas impostas
pelos padres missionários, sem nenhum contato com o mundo externo a não ser quando
esse contato atendesse a algum interesse dos jesuítas. Por exemplo, para atrair novos
340
adeptos para a fé cristã os jesuítas utilizavam os índios aldeados-convertidos no
convencimento de outros, chegando a exigir dos colonos que negociassem apenas com os
índios cristãos moradores dos aldeamentos. Esperava-se, com essa segregação, que os
índios não sofressem influências que comprometessem o trabalho de catequização, cuja
finalidade era a de que mudassem efetivamente seu modo de vida, considerado selvagem
pelos jesuítas.
O maior anseio dos jesuítas era fazer com que os índios abandonassem seus
rituais, tidos como profanos para os olhos cristãos, como a antropofagia, a nudez e a
poligamia.
341
A legislação não considerava o índio cidadão... e, sim, ser humano inferior e
dependente do não-índio, incapaz de se autogovernar. Faz-se necessária a tutela do Estado.
Tutela do Estado
Aldeados e aliados
Devido à visão do índio como uma criança imatura e indefesa e do estado como
seu tutor e protetor, havia neste período a figura do juiz de órfãos, pois cabia aos órgãos do
Estado a função de proteger e garantir o bom tratamento aos índios, garantindo-lhes a
evangelização, a educação e o amparo de enfermos e órfãos, protegendo-os em suas
342
relações com outros índios e com não índios. (COLAÇO, 2000, p. 97; CUNHA, 1992, p.
146-7)
Categorias de índios
O texto de Beatriz Perrone Móises (In: CUNHA, 1992, p. 115-32) apresenta uma
análise da legislação para os índios aldeados e para os não aldeados no Brasil dos séculos
XVI a XVIII.
Primeira Constituição
Diretório de Índios
Assim, na escola criada e implementada por Portugal, não havia espaço para os
índios e seus saberes, para seus processos de aprendizagem, para suas concepções
343
pedagógicas, para a sua diversidade linguística e étnica, o que resultou na intensificação de
fugas dos índios desses espaços.
Com a implantação dos Diretórios e, dois anos mais tarde, com a expulsão dos
jesuítas do Brasil, intensifica-se também a escravização dos índios. Isso decorreu do
aumento da necessidade de braços para atuarem nas atividades domésticas, nas atividades
agrícolas e nas atividades extrativistas e os braços indígenas foram considerados próprios
para essas funções, tanto pelo fato de estarem adaptados às condições naturais da região
quanto por serem mais baratos do que os braços dos escravos negros que já vinham sendo
importados e comercializados no Brasil, desde 1580, em decorrência da expansão da
indústria açucareira em Pernambuco.
344
Brasil iniciativas expressivas no âmbito da instrução pública a partir de 1808, com a
transferência da família real de Portugal para o Brasil.
A questão indígena, que até 1759 tinha sido tratada sob diferentes perspectivas de
interesses, quais sejam: a dos moradores, a da Coroa e a dos jesuítas, com a expulsão desses
últimos, deixa de ter discursos dissonantes no seu debate e os indígenas deixam de contar
com representantes que os defendessem em algum nível organizacional.
Dentre as queixas dos colonos com relação aos jesuítas estão as seguintes: não
cumpriam o que ditava a lei acerca da repartição dos índios capturados nas ‘guerras justas’ e
utilizavam-nos em prol de seus interesses; a fim de monopolizarem os índios,
catequizavam-nos na língua geral e nem os governadores podiam castigá-los - expressão
presente em documentos do século XVIII (CUNHA, 1992, p. 118).
Ao serem expulsos os quase 500 jesuítas que aqui viviam tinham sob sua
propriedade 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários, sem contar os
seminários menores e as escolas de ler e escrever instaladas em todas as cidades onde havia
casas da Companhia de Jesus.
O ideal para o índio é viver sob a proteção da justa, humana, pacífica e doce sociedade
brasileira. A tutela laica ou religiosa sustentou-se no discurso da necessidade de humanizar
o índio para integrá-lo à civilização, denegando a sua autonomia política, inserindo-o na
sociedade conquistadora através de ação violenta e de poder sob a gestão intencional de
organizações administrativas criadas ou convertidas a esse fim, iniciando um processo de anulação
cultural pela transmissão de outros valores, tornando-o cada vez mais dependente da nova
ordem constituída.
345
ignorou quase que totalmente os interesses e as características próprias das sociedades
indígenas, cultural e organizativamente diferenciadas.
Assim, nesse período incluía-se também como função da educação para os índios
a formação voltada para certos ofícios. O Regulamento da Catequese e Civilização dos
Índios, de 1845, propunha a criação de oficinas de artes mecânicas e o estímulo à
346
agricultura nos aldeamentos indígenas, bem como o treinamento militar e o alistamento dos
índios em companhias especiais, como as de navegação.
Por volta de 1870, diante da dificuldade de manter os índios nas escolas dos
aldeamentos, ocorre em algumas províncias o investimento em institutos de educação, em
internatos e, no caso específico de Pernambuco, em orfanatos para crianças indígenas, com
o fim de transformá-las em “intérpretes” linguísticos e culturais para auxiliar os
missionários na “civilização” dos seus parentes. Essas escolas localizavam-se fora da área
dos aldeamentos e pretendiam oferecer às crianças indígenas não só a instrução primária
elementar, mas também ensino para desempenho de funções identificadas com o
desenvolvimento das províncias e com os processos de assimilação da diversidade dos
povos indígenas.
No entanto, estar presente nas agendas políticas da época não representou para os
índios uma política imperial voltada especificamente para seus interesses. Ao final do
Império, os especialistas e autoridades que chegaram a se entusiasmar com a possibilidade
de haver instituições públicas destinadas ao ensino de crianças indígenas desacreditavam
disso poder ocorrer sem a intervenção das missões religiosas. Dessa forma, até o início do
século XX o indigenismo brasileiro viverá uma fase de total identificação com a missão
católica e o Estado dividirá com as ordens religiosas católicas, mais uma vez, a
responsabilidade pela educação formal para índios.
347
c. Dispositivos Legais da República
Merecem destaque, ainda, a Lei n.º 5.371, de 1967, que extingue o SPILTN e
institui a Fundação Nacional do Índio – FUNAI - e a Lei n.º 6001, de 19 de dezembro de 1973,
que define o Estatuto do Índio.
348
Nos anos seguintes, com a instauração e consolidação do regime republicano, o
Estado sistematizará uma política indigenista com a clara intenção de mudar a imagem do
Brasil perante a sociedade nacional e mundial. Cria-se em 1910 o Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), com as funções de prestar assistência aos índios e protegê-los contra atos de
exploração e opressão e de gerir as relações entre os povos indígenas, os não índios e os
demais órgãos de governo. O SPI será extinto em 1967 quando suas atribuições são
repassadas para a FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
349
Diante das dificuldades técnicas encontradas para implantar o ensino bilíngue, em
virtude dos escassos conhecimentos linguísticos referentes às várias línguas autóctones, a
partir de 1970 a FUNAI estabelece convênios com o Summer Institute of Linguistics (SIL),
visando ao desenvolvimento de pesquisas para o registro de línguas indígenas, elaborando
alfabetos e análises das estruturas gramaticais. Além disso, a FUNAI deixa sob a
responsabilidade dessa instituição a preparação de material de alfabetização nas línguas
maternas e de material de leitura, a formação de pessoal docente, tanto da FUNAI, como
de missões religiosas e a preparação de autores indígenas. A instituição, cujo objetivo
principal era converter povos indígenas à religião protestante, passa a atuar de uma forma
que se confunde com a do Estado e, em alguns casos, assume para si a obrigação estatal de
tutela desses povos.
1.3 SPI
Em decorrência do regime republicano e da sistematização de uma política
indigenista baseada nos ideais positivistas, é instituído o Serviço de Proteção aos Índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais – mais tarde, Serviço de Proteção aos Índios, SPI.
350
aparelhos de poder. Da data de sua criação até sua substituição em 1967 pela FUNAI, o
SPI funcionou vinculado a diferentes ministérios.
351
1.3.4 FUNAI
Nessa época, pesava contra o Brasil a acusação de extermínio cultural dos povos
indígenas, o que dificultava a obtenção de investimentos externos.
Além do Summer Institute of Linguistic (SIL) atuaram junto aos índios do Brasil
durante a gestão do SPI e da FUNAI, segundo FERREIRA (2001, p. 85), mais de 50
missões religiosas católicas e protestantes. O SIL hoje foi renomeado como Sociedade
Internacional de Linguística.
Meu avô paterno conhecia todos os mitos e meu avô materno era pajé. Mas depois os
missionários obrigaram a jogar fora tudo que eles tinham de instrumento. Eu sei dizer essa turma, os velhos
que conheci, morreu por desgosto. Álvaro Sampaio Tukano, in Educação Escolar Indígena do Rio
Negro – 1998 - 2011:2012, p. 57.
352
Nesta parte você verá como as mudanças nos textos legais reconhecendo, e
valorizando a diversidade dos Povos Indígenas, vão sendo aprofundadas em novos marcos
legais, que geraram novas políticas públicas e estruturas institucionais.
Foi por definição do Decreto Presidencial nº. 26/1991 que o MEC passou a ser
responsável, em todos os níveis e modalidades de ensino, pela definição de políticas de
educação escolar indígena e sua coordenação e as escolas indígenas são inseridas nos
Sistemas de Ensino estaduais e municipais, como política pública.
Ações alternativas às do governo brasileiro surgem quando, nos anos 1970, inicia-
se no Brasil, com a emergência mundial de debates em torno dos direitos humanos,
possibilitados pelos processos de descolonização e pela tendência à globalização, um
movimento de recuperação da autonomia e da autodeterminação dos povos indígenas,
controlados durante anos pelo poder tutelar e hegemônico do Estado. Criam-se entidades
de colaboração e apoio aos povos indígenas, que são organizações civis compostas por
pesquisadores (principalmente, antropólogos e linguistas), indigenistas e missionários leigos
(influenciados pela Teologia da Libertação), ou seja, agentes não indígenas voltados para a
defesa da causa indígena124.
Aos poucos o movimento embrionário do início dos anos de 1970 ganha força e
multiplicam-se as organizações não governamentais de apoio aos índios. Paralelamente, e
em consonância com esse movimento, os próprios povos indígenas buscam se articular
politicamente para defender seus direitos e projetos de futuro e, a partir de meados de
124Dentre essas, destacam-se as entidades de apoio com perfil laico: Comissão Pró-Índio de São Paulo, do
Rio de Janeiro e do Acre; Centro de Trabalho Indigenista – CTI; Centro Ecumênico de Documentação e
Informação – CEDI; Associação Nacional de Ação Indigenista – ANAI, na Bahia e Rio Grande do Sul;
Instituto de Antropologia e Meio Ambiente – IAMA; e as entidades ligadas às igrejas católicas e luteranas:
Operação Anchieta – OPAN; Conselho Indigenista Missionário – CIMI; Conselho de Missões entre Índios –
COMIN. (FERREIRA, 2001, p. 95)
354
1970, são criadas organizações e associações indígenas, em diferentes regiões do país, que
realizam assembleias, encontros ou reuniões que culminam na criação, em 1980, da União
das Nações Indígenas – UNIND (depois UNI) e suas regionais.
355
professores indígenas em suas escolas por meio da sua inserção no sistema público de
ensino.
356
– COPIAM e a Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues – OGPTB.
(FERREIRA, 2001, p. 92-3)
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS
Os professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, dos Povos Apurinã, Baniwa, Baré, Desano, Jaminawa,
Kaxinawá, Kambeba, Kampa, Kokama, Kulina, Makuxi, Mayoruna, Marubo, Miranha, Mundurucu, Mura,
Pira-Tapuia, Shanenawa, Sateré-Mawé, Tariano, Taurepang, Tukuna, Tukano, Wanano, Wapixana,
Yanomami, reunidos em Manaus/AM, nos dias 16 a 20 de outubro de 1994, preocupados com a situação atual e
futura das escolas indígenas, reafirmam os seguintes princípios:
1. As escolas indígenas deverão ter currículos e regimentos específicos, elaborados pelos professores indígenas,
juntamente com suas comunidades, lideranças, organizações e assessorias.
2. As comunidades indígenas devem, juntamente com os professores e organizações, indicar a direção e supervisão das
escolas.
3. As escolas indígenas deverão valorizar as culturas, línguas e tradições de seus povos.
4. É garantida aos professores, comunidades e organizações indígenas a participação paritária em todas as instancias
consultivas e deliberativas dos órgãos governamentais responsáveis pela educação escolar indígena.
5. É garantida aos professores indígenas uma formação específica, atividades de atualização e capacitação periódica
para o seu aprimoramento profissional.
6. É garantida a isonomia salarial entre professores índios e não índios.
7. É garantida a continuidade escolar em todos os níveis aos alunos das escolas indígenas.
8. Aas escolas indígenas deverão integrar a saúde em seus currículos, promovendo a pesquisa da medicina indígena e o
uso correto dos medicamentos alopáticos.
9. O Estado devera equipar as escolas com laboratórios onde os alunos possam ser treinados para desempenhar papel
esclarecedor junto às comunidades no sentido de prevenir e cuidar da saúde.
10. As escolas indígenas serão criativas, promovendo o fortalecimento das artes como formas de expressão de seus
povos.
11. É garantido o uso das línguas indígenas e dos processos próprios de aprendizagem nas escolas indígenas.
12. As escolas indígenas deverão atuar junto às comunidades na defesa, conservação, preservação e proteção de seus
territórios.
13. Nas escolas dos não índios serra corretamente tratada e veiculada a história e cultura dos povos indígenas, a fim
de acabar com os preconceitos e o racismo.
14. Os Municípios, os Estados e a União devem garantir a educação escolar específica às comunidades indígenas,
reconhecendo oficialmente suas escolas indígenas de acordo com a Constituição Federal.
15. A União deverá garantir uma Coordenação Nacional de Educação Escolar Indígena, interinstitucional, com
participação paritária de representantes dos professores indígenas.
357
O PROCESSO DE CONQUISTA DA ESCOLA
Com o surgimento do movimento indígena organizado do Rio Negro, a partir da criação da FOIRN,
podemos constatar que a consciência a respeito da necessidade de criar um modo próprio de fazer escola cada
vez mais se fortalece. Entra em cena o papel fundamental dos professores indígenas, enquanto um dos
principais envolvidos nesta busca de concretização de processos escolares, norteados pelas pedagogias
indígenas. Significa que seu trabalho só pode realizar-se com eficácia, segundo os ideais afirmados, num
processo realmente indígena de escola. E esse será construído com a participação efetiva de todos: professores,
lideranças, alunos e comunidade indígena. Informativo da Federação das Organizações Indígenas
do Rio Negro / FOIRN – Educação, 1996, p. 17.
358
O Ministério da Educação se pronuncia, em novembro de 1999, a respeito de
proposta de atuação do SIL, nesse novo quadro legal da educação escolar indígena. Afirma
seu papel no processo de garantir a integridade cultural dos povos indígenas e, como órgão
responsável pela condução da política educacional a ser oferecida nas comunidades, a
natureza laica da educação no Brasil.
125Portaria MEC nº. 490, de 18 de março de 1993, designa os membros do Comitê de Educação Escolar
Indígena.
359
investiu na formação inicial e continuada de professores indígenas;
publicou materiais didáticos específicos, em línguas indígenas e
português;
apoiou as Secretarias Estaduais de Educação para a implantação de
cursos de formação de professores indígenas;
apoiou a elaboração da regulamentação da educação escolar indígena,
adequada às aspirações dos povos indígenas, junto ao Conselho
Nacional de Educação;
divulgou a questão indígena em escolas não-indígenas;
realizou, por intermédio do INEP-Instituto Nacional de Pesquisas
Educacionais – MEC, o primeiro Censo das Escolas Indígenas, em
1999.
360
O Comitê Nacional de Educação Indígena deu prioridade à elaboração de
referenciais curriculares, que foi seguida pela discussão de uma resolução do Conselho
Nacional de Educação que pudesse normatizar a execução das políticas educacionais no
âmbito dos estados. Em 1999 foram aprovados o Parecer nº. 14 e a Resolução nº. 3, da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, regulamentando as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena. Estes documentos trouxeram
importantes orientações para os Sistemas de Ensino e as Escolas Indígenas ao criar a
categoria escola indígena, com normas e procedimentos jurídicos próprios, ao dispor sobre a
estrutura e funcionamento das escolas indígenas e sobre os programas específicos para a
formação de professores indígenas. Em alguns estados, iniciou-se então a discussão e a
elaboração de resoluções ou leis (decretos e outros) para a criação e implantação dessas
escolas.
Foi realizada uma série de programas, sendo uma primeira com 3 programas, em
2000, e outra com 4 programas em 2002, pela TV Escola, através do programa Salto para o
Futuro, sobre os povos indígenas, suas escolas e a formação de professores. Outra série
importante foi a Índios no Brasil, composta de 10 programas de vídeo que mostram a
diversidade dos povos indígenas, seus diferentes modos de ser, a visão dos não índios
sobre os índios, os preconceitos existentes devido ao escasso conhecimento que é
repassado nas escolas para os estudantes. Compõe ainda a série um conjunto de três livros,
com artigos de especialistas sobre as culturas, línguas, e história dos povos indígenas no
Brasil.
361
Apesar de assumir nuances diferentes – segundo os interesses políticos,
econômicos e sociais de diferentes momentos históricos – os documentos legais
relacionados aos Povos Indígenas permanecem, em sua essência, praticamente inalterados,
desde o período colonial até 1980, na pressuposição da superação de suas identidades
étnicas. A superação da identidade étnica é uma política básica que normatiza e orienta as
ações oficiais relativas ao funcionamento das escolas para os índios até 1988, quando é
elaborada a nova Constituição Federal.
Ideologia integracionista
a. Definições Constitucionais
362
si próprios ao eliminar o especifico de sua identidade, ora submetendo-os forçadamente à invisibilidade.
(DUPRAT, 2002, p. 41)
No âmbito federal
363
1.4.6 Novos focos políticos, novos desenhos institucionais, novos programas e ações
– criação da SECAD no Ministério da Educação
Comissão Assessora da Diversidade para Assuntos Indígenas, instituída pela Portaria nº. 1.941/2003, no
126
364
Nacional dos Secretários de Educação para o desenvolvimento da educação escolar
indígena que deu maior institucionalidade nas Secretarias Estaduais de Educação aos
programas e ações – como exemplo, a Carta do Amazonas.
366
O PDE afirma o direito dos povos indígenas a uma educação própria e indica a formação de
arranjos territoriais educacionais para atendimento às especificidades referenciadas em
territorialidades.
As populações indígenas têm constitucionalmente garantido o direito a uma educação própria. Os conceitos
que sustentam o PDE permitem que sejam construídos, com as comunidades indígenas, arranjos étnico-
educativos em respeito à territorialidade das comunidades, ensejando um novo desenho do regime de
colaboração, com responsabilidades partilhadas entre os níveis de governo, participação ativa das
comunidades e da sociedade civil organizada. (Plano de Desenvolvimento da Educação – razões,
princípios e programas, MEC, 2007, p. 37).
O primeiro ciclo do PAR foi no período de 2007 a 2010. Um novo ciclo iniciou
em 2011, onde os Estados, Distrito Federal e Municípios foram orientados a realizarem
367
novamente seus diagnósticos na nova estrutura do PAR e elaborar o planejamento com
vigência para o período de 2011 a 2014, no SIMEC. Essa etapa consistiu na atualização dos
dados da realidade educacional local e um momento de revisão por cada ente federado do
seu Plano de Ações Articuladas, com base no IDEB dos últimos anos (2005, 2007 e 2009).
e) 2.3.4.3 – Realizar encontros das Comissões Gestoras dos TEEs para acompanhamento
da implementação de seus planos de ação.
369
Divulgação das Histórias e das Culturas dos Povos Indígenas em todas as escolas
brasileiras - Por meio da Lei nº. 11.645, de 10.03.2008, que altera o Artigo 26-A da LDB,
se torna obrigatória a inserção nos currículos das escolas brasileiras das temáticas das
Histórias e das Culturas dos Povos Indígenas. Com isso, por meio de publicações voltadas
para a temática e, principalmente, da formação continuada de professores das redes
públicas de ensino, se promove a qualificação dos projetos pedagógicos das escolas para
superar o desconhecimento, a discriminação e o preconceito com relação aos Povos
Indígenas.
370
ambiente escolar inclusivo e cooperativo; promover a atualização teórico-metodológica nos
processos de formação dos profissionais do magistério, inclusive no que se refere ao uso
das tecnologias de comunicação e informação nos processos educativos; e promover a
integração da educação básica com a formação inicial docente, assim como reforçar a
formação continuada como prática escolar regular que responda às características culturais
e sociais regionais.
APERFEIÇOAMENTO
240h - Culturas e História dos Povos Indígenas
180h - Gestão Etnoterritorializada da Educação Escolar Indígena
180h - Política Linguística para Educação Escolar Indígena
ESPECIALIZAÇÃO
360h - Culturas e História dos Povos Indígenas
360h - Gestão Pedagógica para a Educação Escolar Indígena
371
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar lndígena na Educação
Básica / DCNEEIs - Em 2012, foram aprovadas a DCNEEIs por meio do Parecer
CNE/CEB nº. 13 e da Resolução CNE/CEB nº. 05. Entre as deliberações da I Conferência
Nacional de Educação Escolar Indígena constam indicações para o tratamento a ser dado à
educação infantil, educação especial, ensino médio regular e/ou integrado à formação
profissional, educação de jovens e adultos, projetos político-pedagógicos, formação de
professores indígenas, educação superior, a partir do fato de que nos últimos anos houve
uma significativa expansão do número das escolas indígenas e de matrículas, em níveis e
etapas de ensino ainda não presentes em 1999, quando da homologação das primeiras
Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Escolar Indígena pelo Conselho Nacional
de Educação. Por outro lado, a formação contínua de professores indígenas, tanto em nível
médio - magistério intercultural, quanto no ensino superior - licenciaturas interculturais,
possibilitaram a ampliação da oferta de toda educação básica intercultural e suas
modalidades nas escolas indígenas. Em decorrência disso, o Ministério da Educação, por
meio da SECADI, criou um Grupo de Trabalho Técnico Multidisciplinar, formado por
especialistas indígenas e não indígenas das instituições e do movimento indígena,
considerando as deliberações da I CONEEI e a necessidade de reformulação das Diretrizes
da Educação Escolar Indígena de 1999, conforme Portaria no. 593, de 16.12.2010, publicada
no DOU de 17.12.2010. O GT recebeu a atribuição de coletar e sistematizar as
contribuições das etapas locais, regionais e nacional da I CONEEI e elaborar Subsídios
para o Conselho Nacional de Educação propor Parecer e Resolução para as novas
DCNEEI. Concluindo esse processo participativo, houve dois Seminários para as
Diretrizes da Educação Escolar Indígena, promovidos pelo Conselho Nacional de
Educação para acolher e debater as propostas. As DCNEEIs reafirmam os princípios da
igualdade social, das diferenças culturais, da especificidade, do bilinguismo e da
interculturalidade como fundamentos da Educação Escolar Indígena e estabelecem os
objetivos de orientar as escolas indígenas de educação básica e os sistemas de ensino na
elaboração, desenvolvimento e avaliação de seus projetos educativos, na construção de instrumentos
normativos visando tornar a Educação Escolar Indígena um projeto orgânico, articulado e sequenciado de
Educação Básica em suas diferentes etapas e modalidades, assegurar que os princípios da
especificidade, do bilinguismo/multilinguismo, da organização comunitária e da interculturalidade
fundamentem os projetos educativos das comunidades indígenas, valorizando suas línguas e conhecimentos
tradicionais, assegurar que o modelo de organização das escolas indígenas leve em consideração as práticas
socioculturais e econômicas das respectivas comunidades, bem como suas formas de produção de
372
conhecimento, processos próprios de ensino e de aprendizagem e projetos societários, fortalecer o regime
de colaboração da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios, aportando diretrizes
para a organização da Educação Escolar Indígena na Educação Básica no âmbito dos Territórios
Etnoeducacionais, normatizar dispositivos constantes na Convenção 169/OIT, promulgada
pelo Brasil em 2004, no que se refere à educação e meios de comunicação, bem como os mecanismos de
consulta livre, prévia e informada, orientar os Sistemas de Ensino, tanto nos processo de
formação de docentes indígenas, quanto no funcionamento regular das escolas indígenas,
para a colaboração e atuação de especialistas em saberes e fazeres tradicionais e outras funções próprias e
necessárias ao bem viver dos povos indígenas, zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja
garantido às comunidades indígenas com qualidade social e pertinência pedagógica, cultural, linguística,
ambiental e territorial, respeitando suas lógicas, saberes e perspectivas dos próprios povos indígenas. Os
objetivos elencados incorporam uma série de deliberações que constam do Documento
Final da I CONEEI e avançam quando tratam da Educação Escolar Indígena na Educação
Básica de modo sistêmico, articulando princípios legais - nacionais e internacionais,
políticas de garantia dos direitos humanos e justiça social alicerçados no reconhecimento e
valorização da sociodiversidade indígena e na autonomia política desses Povos em
definirem suas próprias perspectivas de desenvolvimento. Por fim, a Resolução normatiza
que o fundamento para a efetivação das políticas de Educação Escolar Indígena são os
Territórios Etnoeducacionais que se constituem em espaços institucionais em que os entes
federados, comunidades e organizações indígenas e indigenistas e as instituições de ensino
superior pactuarão ações de promoção da Educação Escolar Indígena adequada às
realidades sociais, históricas, culturais e ambientais dos povos e comunidades indígenas. Os
TEEs se fundamentam no regime de colaboração, definindo competências comuns e
privativas da União, dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, aprimorando processos
de gestão e de financiamento da Educação Escolar Indígena e garantindo a participação
efetiva das comunidades indígenas interessadas. A Resolução recomenda a criação ou
adaptação de mecanismos jurídico-administrativos que permitam a constituição dos
Territórios Etnoeducacionais em unidades gestoras com dotação orçamentária própria, tais
como os consórcios públicos e arranjos de desenvolvimento educacionais. Define, ainda,
que as Comissões Gestoras dos TEEs são responsáveis pela elaboração, pactuação,
acompanhamento e avaliação dos planos de ação definidos nos respectivos Territórios e
recomenda a criação e estruturação de uma Comissão Nacional Gestora dos Territórios
Etnoeducacionais com representantes de cada território.
373
Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais / PNTEE - Em 2013, com a
Portaria nº. 1.062, fica instituído o PNATEE, com o objetivo de proteger e promover os
direitos dos povos indígenas à educação, por meio do fortalecimento dos TEEs,
reconhecendo e valorizando a diversidade sociocultural e linguística, a autonomia e o
protagonismo desses povos. O PNTEE se organiza em cinco eixos – Gestão Educacional
e Participação Social; Pedagogias Diferenciadas e Uso das Línguas Indígenas; Memórias
Materialidade e Sustentabilidade; Educação Profissional e Tecnológica e Educação Superior
e Pós-Graduação. Cada um dos eixos se desdobra em ações a serem desenvolvidas. Este
curso faz parte do Eixo I e uma de suas ações consiste na formação das equipes gestoras e
técnicas dos sistemas de ensino para a gestão dos TEEs da Educação Escolar Indígena.
Plano Nacional de Educação - Em 2014, o novo PNE – Lei nº. 13.005, em seu Artigo
7º, fortalece a política dos territórios etnoeducacionais:
Artigo 7º. Parágrago 4º. – Haverá Regime de Colaboração específico para implementação de modalidades
de educação escolar que necessitem considerar territórios étnico-educacionais e a utilização de estratégias que
levem em conta as identidades e especificidades socioculturais e linguística de cada comunidade envolvida,
assegurada a consulta prévia e informada a essa comunidade.
Referências Bibliográficas
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século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
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Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ, 2009.
CABALZAR, Flora Dias (Org.). Educação Escolar Indígena do Rio Negro: relatos de experiências e
lições aprendidas. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira, AM:
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, 2012.
COLAÇO, Thaís Luzia. 'Incapacidade' indígena: tutela religiosa e violação do direito guarani nas
missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 1999. 224 p.
EM ABERTO 76. Experiências e Desafios na Formação de Professores Indígenas no Brasil. Brasília:
Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais, 2003.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. Brasília: Ministério da Educação e
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GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Um território ainda a conquistar. In: Educação escolar
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NASCIMENTO, Rita Gomes do. Educação Escolar dos Índios – consensos e dissensos no projeto de
formação docente Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé. Dissertação de mestrado apresentada no
Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006.
RUSSO, Kelly. O Povo Xavante e a formação dos “novos guerreiros”: o sistema educativo e a educação
escolar indígena no Brasil. Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais e Educação, oferecido pela Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais FLACSO Argentina, 2005.
SANTOS, Sílvio Coelho dos. Educação e Sociedades Tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.
MELIÀ, Bartomeu. Educação Indígena e Alfabetização. São Paulo: Loyola, 1981.
381
2. POLÍTICA E GESTÃO ETNOTERRITORIALIZADAS – EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA
1.1 Desafios
O MEC e os sistemas de ensino têm enfrentado os desafios postos...
pela educação escolar intercultural, específica e diferenciada;
pelas complexas demandas implicadas no reconhecimento da diversidade de mais
de 305 povos indígenas;
pela busca por autonomia dos povos indígenas na condução de seus projetos;
pela implementação de inovações nas práticas gerenciais, normas e procedimentos
administrativos a partir da gestão etnoterritorializada;
pelo enfrentamento da discussão sobre políticas universalizantes, direitos indígenas
e especificidades político-pedagógicas;
pelo rompimento com estratégias de adequação / adaptação de programas e ações;
pela consulta e diálogo institucionalizados na gestão e avaliação dos programas e
ações com representantes indígenas;
pelo tratamento da diversidade linguística.
382
Isso tem sido feito...
com políticas de gestão territorializada da educação escolar indígena;
com proposta de um regime de colaboração específico para a educação
escolar indígena;
com políticas de formação de professores indígenas para as licenciaturas
e o magistério intercuturais;
com políticas de formação continuada para professores indígenas;
com a produção de materiais didáticos e paradidáticos específicos, não
só livros mas materiais que valorizam oralidade dos povos indígenas;
com a ampliação da oferta de educação básica nas escolas indígenas;
com a estruturação da rede física de escolas;
com o fortalecimento da interlocução institucionalizada de
representantes indígenas com os gestores e dirigentes dos sistemas de
ensino;
com a institucionalização das ações enquanto política pública;
com o aprofundamento da consideração da sociodiversidade indígena;
com políticas de garantia de acesso e permanência de estudantes
indígenas no ensino superior;
com ampliação orçamentária;
com articulação interinstitucional interna e externa;
com tratamento sistêmico da educação intercultural indígena – da
educação básica ao ensino superior;
com diálogo intercultural;
com a criação de cursos de formação continuada para profissionais da
educação básica dos sistemas de ensino.
127Em 2011, o Decreto nº 7.480, altera a SECAD para SECADI – Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão.
383
intermédio de entidades de apoio aos índios, afirmando seus conceitos e metodologias.
Dessa maneira, iniciativas de caráter local, fundamentadas na reflexão sobre educação e
diversidade cultural e linguística e na efetiva participação indígena no processo de
descolonização da escola, tornaram-se referência ampla para a conceituação e
implementação de uma política pública de educação escolar indígena voltada para o
atendimento da demanda de escolarização das comunidades indígenas, a partir de um
paradigma da especificidade, da diferença, da interculturalidade e da valorização da
diversidade linguística. (MONTE, 2000)
Passa a ser um princípio organizacional para o Estado brasileiro fazer com que os
povos indígenas sejam ouvidos e atendidos com relação ao tipo de escola que querem e à
gestão dessa escola. Em outros termos, as ações governamentais passam a ser orientadas
no sentido de possibilitar aos povos indígenas que discutam, proponham e procurem
realizar seus modelos e ideais de escola segundo seus interesses e suas necessidades.
Nesse caminho, a escola outrora imposta aos índios e por eles vivenciada como
uma ameaça à sua maneira de ser, pensar e fazer, tem sua presença hoje reivindicada por
esses mesmos índios. Os povos indígenas contemporâneos vêem os projetos pedagógicos
por eles formulados como instrumento para a construção de projetos de futuro e como
uma possibilidade de construção de novos caminhos para se relacionarem e se
posicionarem perante a sociedade não-indígena, com os quais estão em contato cada vez
mais estreito.
384
Assim, a educação escolar indígena passa a receber um tratamento, no MEC,
focado na asserção dos direitos humanos, entre eles o de os Povos Indígenas terem seus
projetos societários e identitários fortalecidos nas escolas indígenas.
1.2.1 Territorialidade
Uma das importantes peculiaridades dos povos indígenas é sua concepção de
territorialidade.
Alguns dos territórios indígenas tradicionais – regularizados de forma contínua ou não –
não coincidem com as divisões político-administrativas em estados e municípios.
O conceito de territorialidade indígena deve ser considerado na definição das ações, que
devem prever novas articulações entre diferentes gestores e institucionalidades.
O conceito de territorialidade indígena deve possibilitar a superação da fragmentação
administrativa, de modo a fazer valer o princípio do reconhecimento da organização social
dos povos indígenas.
Cabe às Secretarias de Educação observar a territorialidade dos povos indígenas, inovando
na proposição de práticas de gestão compartilhada com outras Secretarias de Educação e
demais órgãos.
Tal prática deve ser acompanhada da participação informada de representantes das
comunidades, para a definição de projetos e ações que possam melhorar suas condições de
vida.
385
Os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul têm suas comunidades em uma área que
envolve 21 municípios, além das regiões transnacionais da Argentina, Paraguai, Uruguai e
Bolívia.
128Ver a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas / PNGATI, Decreto no.
7.747/2012.
386
A articulação dos conhecimentos tradicionais às novas tecnologias permite a gestão dos
territórios indígenas com autonomia e a partir de seus interesses e necessidades.
Sob essa ótica, é imprescindível que a escola e os professores indígenas colaborem e
participem da formulação e execução de projetos de auto-sustentação.
387
A partir dessa base dialógica, as iniciativas devem procurar direcionar a ação pública às
necessidades, interesses e concepções das comunidades indígenas.
Tais diretrizes são estendidas a toda a educação básica intercultural e à formação superior
de professores indígenas.
388
da reflexão e ação promovidas pelas experiências inovadoras
conduzidas pelas organizações de apoio aos povos indígenas;
da mobilização de professores e lideranças indígenas interessadas
em uma educação escolar que contribuísse para sua autonomia.
Pluralidade
É relevante compreender a diversidade implícita na pluralidade étnica para a formulação de
políticas e ações adequadas às realidades e perspectivas de cada povo indígena.
Desse modo, não são condizentes com essa realidade propostas de políticas e ações que
tomem os povos indistintamente, sem contemplar suas especificidades em termos culturais,
linguísticos, de histórias de contato com a sociedade nacional, de projetos de futuro e de
presente. Trata-se de um importante desafio para os gestores construir uma agenda política
acordada com professores e representantes de cada povo que reflita suas perspectivas, suas
demandas socioambientais.
Os povos indígenas brasileiros de hoje são sobreviventes e resistentes da história
da colonização europeia, estão em franca recuperação do orgulho e da auto-
estima identitária e, como desafio, buscam consolidar um espaço digno na
história e na vida multicultural do país. (Gersem Baniwa, 2009)
389
A comunidade possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e distribuída por seus membros; são
valores e mecanismos da educação tradicional dos povos indígenas (...) que podem e devem contribuir na
formação de uma política e prática educacionais adequadas. Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas-RCNEI, MEC, 2005.
390
1.2.10 Características da Escola Indígena
A escola indígena é caracterizada...
Pela interculturalidade
a educação escolar indígena deve...
Escolas de fronteira
TASSINARI (2001) conceitua as escolas indígenas como espaços de fronteira, entendidos
como espaços de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de
incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, índios
e não-índios.
Multilinguismo
Em algumas regiões, falantes e comunidades indígenas são multilíngües, usando no dia-a-
dia, além de duas ou três línguas maternas, o português e as línguas usadas nos países com
quem fazemos fronteira.
Bilinguismo
Esta característica da escola indígena tem que passar por uma reflexão extensa e profunda
entre os professores indígenas e as equipes técnicas dos sistemas de ensino, pois se trata de
uma abordagem às línguas usadas na comunidade e no processo educativo, tendo em vista
um horizonte de manutenção, ampliação e revitalização das línguas maternas e
aprendizagem da língua portuguesa com metodologias de aquisição de segunda língua.
Levar em conta os direitos linguísticos das crianças nas escolas indígenas significa, então,
conhecer a realidade sociolingüística da comunidade e discutir essa realidade na escola,
fortalecendo e valorizando a língua indígena em seu uso como língua de instrução, de
comunicação, de veiculação dos valores e tradições culturais, dos materiais didáticos e
como objeto de análise e estudo.
Para isso, os professores indígenas devem participar de cursos de formação continuada que
possam possibilitar a construção de conhecimento e reflexão sobre a realidade da sua
língua, do bilinguismo e multilinguismo praticado na comunidade, e formular estratégias no
âmbito da escola para fortalecer e ampliar o uso da própria língua.
Realidade sociolinguística
Nas discussões sobre as realidades sociolinguísticas é importante problematizar a situação
do uso da língua portuguesa como língua materna. Muitos povos indígenas no processo
colonizatório perderam o uso de suas línguas e adotaram a língua portuguesa. Vários
392
pesquisadores vêm demonstrando que as variedades da língua portuguesa usada pelos
povos indígenas são marcadas pelas diferenças culturais e que, portanto, essas variedades
têm que ser levadas em conta, frente à variedade-padrão e outras variedades, pois espelham
o pertencimento étnico dos educandos.
1.3 Avanços
Destacam-se na gestão da SECADI nos programas de educação escolar indígena...
maior foco político com a criação da SECAD;
ampliação do orçamento do MEC para a educação escolar indígena;
formatação do Programa Nacional de Alimentação Escolar do FNDE, às
especificidades dos povos indígenas;
definição de coeficiente específico nos valores do FUNDEB;
identificação das escolas indígenas no cadastro do INEP/Censo Escolar;
tratamento específico das demandas da educação escolar indígena no Plano de
Desenvolvimento da Educação / Plano de Ações Articuladas, com subações identificadas
às demandas dos Territórios Etnoeducacionais;
criação de programa para formação superior de professores indígenas em IES
públicas e institucionalização do PROLIND, em parceria com a CAPES,
inserindo a licenciaturas interculturais no PIBID;
definição de investimentos para a formação inicial e continuada de professores
indígenas e estruturação da rede física das escolas indígenas;
incremento da produção de materiais didáticos específicos com a criação da
Comissão de Apoio à Produção de Materiais Didáticos Indígenas-CAPEMA, com apoio à
produção de materiais audiovisuais para valorizar a oralidade dos povos indígenas;
fortalecimento da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, do MEC, com
formato interinstitucional, de natureza majoritária para a representação indígena,
consultiva e deliberativa para as políticas educacionais;
criação de mecanismos para acesso de estudantes indígenas na formação superior,
reconhecendo e valorizando a diversidade sociocultural – Lei de Cotas e Programa
Bolsa Permanência;
criação de instâncias de participação e controle social e aplicação de investimentos
próprios para o desenvolvimento da educação escolar indígena nos sistemas de
ensino;
realização da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, em 2008/2009;
393
criação dos Territórios Etnoeducacionais;
criação da Rede de Formação dos Profissionais do Magistério da Educação Básica
para oferta de cursos sobre as temáticas das Histórias e das Culturas dos Povos
Indígenas, sobre a Gestão Etnoterritorializada da Educação Escolar indígena,
sobre Política Linguística, para professores e técnicos das redes de ensino;
criação da Ação Saberes Indígenas na Escola para a formação continuada de
professores indígenas nas áreas do letramento e numeramento, em 2013;
criação do Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais, para fortalecer a
política com foco na territorialidade dos Povos Indígenas, em 2013.
1.4 Desafios
Em que pesem os avanços, existem alguns desafios na efetividade dos direitos
educacionais indígenas...
na implementação da autonomia pedagógica e organizacional das escolas
indígenas;
na gestão escolarizada da merenda tradicional;
na definição e implementação de projetos pedagógicos referenciados nos
projetos societários das comunidades indígenas;
no atendimento das demandas por ensino médio integrado à formação
profissional relacionada à gestão socioambiental de projetos comunitários;
na universalidade da formação de professores indígenas;
no tratamento desigual que diferentes gestores públicos operam no
contexto indigenista;
na atenção permanente a não homogeneizar as diferenças;
na reflexão sobre os sistemas de avaliação de larga escala diante das
especificidades da educação escolar indígena.
Educação indígena é aquela oferecida exclusivamente para alunos indígenas. As escolas indígenas
podem estar localizadas em terras ocupadas pelos índios, em qualquer processo de regularização ou até
em áreas urbanas. Os professores dessas escolas são prioritariamente indígenas e o ensino pode ser
ministrado em língua portuguesa ou indígena e, de preferência, utilizando materiais didáticos específicos
e diferenciados. As escolas indígenas são consideradas pelo Conselho Nacional de Educação (Resolução
nº 03/CEB-CNE/1999) uma categoria específica de estabelecimento escolar e por isso têm direitos de
autonomia pedagógica, organizativa e gerencial. INEP, Censo Escolar
129Além das escolas indígenas nos sistemas de ensino estaduais e municipais, existem escolas indígenas
particulares e escolas indígenas federais, incorretamente cadastradas. Existem escolas indígenas particulares que
são mantidas projetos de mitigação de impactos de grandes empreendimentos, como as escolas do Povo
Waimiri Atroari que são particulares, mantidas pela Eletronorte.
394
Distribuição dos estudantes indígenas nos estados de acordo com o Censo Escolar
2013
Unidades da Número de
Escolas Porcentagem - Brasil Porcentagem - Brasil
Federação estudantes
Sergipe 1 0% 80 0%
Goiás 2 0% 94 0%
130 Note-se que a presença de escolas federais indica erro de cadastramento, pois nesse caso trata-se de
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia com alunos indígenas matriculados, o que não torna a
escola indígena.
395
Escolas Indígenas Variação
Ano 2005 2013 2005/2013
Estaduais 1.084 1.420 31,00%
Municipais 1.217 1.622 33,28%
Federais 0 3
Particulares 22 14 -36,36%
Total 2.323 3.059 31,68%
131 Idem.
396
A formação de professores indígenas para o magistério intercultural ocorre em
programas especiais que ensejam experiências pedagógicas e curriculares inovadoras no
sentido de que intentam assegurar uma formação que dê conta dos objetivos educacionais
pretendidos por muitas comunidades indígenas na sua apropriação da instituição escola,
atribuindo-lhe sentidos e funções voltados para o fortalecimento de suas identidades
étnicas, recuperação de suas memórias históricas, valorização de suas línguas e ciências,
acesso a conhecimentos e tecnologias relevantes para interação cidadã com a sociedade
nacional e para o exercício da autodeterminação na condução de seus destinos.
Para isso, o perfil profissional buscado na formação dos professores indígenas diz
respeito a um ator social que age em múltiplas dimensões sociais, políticas, culturais e
educativas – na mediação intercultural entre sua comunidade e agentes da sociedade
nacional, na organização de pesquisas para fundamentar sua prática pedagógica que valoriza
os saberes indígenas, na associação da escola com os projetos societários e identitários de
suas comunidades, na reflexão contínua do papel da escola no contexto interétnico vivido
por sua comunidade, no compromisso em transformar a escola em espaço de diálogo
intercultural, no conhecimento dos direitos dos povos indígenas.
Bibliografia
Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
Indígenas. Brasília, 2014.
399
FRANCHETTO, Bruna. Línguas indígenas e comprometimento linguístico no Brasil – situação,
necessidades e soluções. Cadernos de Educação Escolar Indígena - 3º Grau Indígena. Barra do
Bugres: UNEMAT; v. 3, 2004.
GRUPIONI, Luiz Donisete B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias.
MEC, SECAD, 2006.
MEC. Referenciais para a formação de professores indígenas. MEC/SECAD, 2005.
MONTE, Nietta Lindenberg. Escolas da floresta - entre o passado oral e o presente letrado. Rio de
Janeiro: Multiletra, 1996.
MARCOS DE DIREITOS
2008
Portaria no. 1.062, de 26.08.2008, convoca a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
Portaria no. 1.063, de 26.08.2008, constitui a Comissão Organizadora para a I Conferência Nacional de
Educação Escolar Indígena
Lei 11.645, de 10.03/2008, que torna obrigatória a inserção nos currículos das escolas brasileiras as
temáticas da História e das Cultura dos Povos Indígenas
2009
Decreto 6.861, de 27.05.2009, organiza a gestão da educação escolar indígena em Territórios
Etnoeducacionais (link para o texto)
Lei 11.947, de 16.06.2009, dispõe sobre o atendimento da merenda escolar e do programa Dinheiro
Direto na Escola, para as escolas da educação básica, reafirmando que alimentos oferecidos façam
parte dos padrões culturais alimentícios das comunidades, e apoiando o desenvolvimento
sustentável com incentivos à aquisição de gêneros alimentícios da produção comunitária,
priorizando as comunidades indígenas e quilombolas (link para o texto)
2008
Portaria no. 1.062, de 26.08.2008, convoca a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
400
Portaria no. 1.063, de 26.08.2008, constitui a Comissão Organizadora para a I Conferência Nacional de
Educação Escolar Indígena
Lei 11.645, de 10.03.2008, que torna obrigatória a inserção nos currículos das escolas brasileiras as
temáticas da História e das Cultura dos Povos Indígenas
2007
Decreto 6.094, de 24.04.2007, cria o Plano de Desenvolvimento da Educação e dispõe sobre a
implementação do Plano de Metas do Compromisso Todos pela Educação, afirmando o direito dos povos
indígenas a uma educação própria (link para o documento)
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 13.09.2007 (link para o
documento)
2006
Portaria IPHAN/MinC 586, de 11.12.2006, cria o Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística
com objetivo de mapear as línguas faladas no Brasil como bens imateriais que formam o
patrimônio brasileiro
2005
Portaria MEC, nº 3.282, de 26.09.2005, nomeia a Comissão Nacional de Educação Escolar
Indígena-CNEEI, criada com a finalidade de subsidiar e deliberar sobre as ações que envolvem a
política de educação escolar indígena desenvolvida pelo Ministério da Educação, com
representantes de organizações de professores indígenas e de organizações de caráter político mais
geral.
2004
Decreto Presidencial 5.051, de 19.04.2004, promulga a Convenção nº 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra em 27 de
junho de 1989 e em vigor internacional desde 5 de setembro de 1991. No Brasil, até esta
promulgação, a Convenção nº 169 seguiu a seguinte trajetória: foi aprovada pelo Congresso
Nacional, por meio do Decreto Legislativo n o 143, de 20 de junho de 2002, sendo ratificada em 25
401
de julho de 2002 pelo Governo brasileiro junto ao Diretor Executivo da OIT, vigorando a partir de
25 de julho de 2003.
Decreto Presidencial n.º 5.159, de 28.07.2004, cria a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD.
Portaria no. 52/Secretaria de Educação Superior, de 29.10.2004, que institui Comissão Especial, no
âmbito da Secretaria de Educação Superior – SESu, para elaborar políticas de educação superior
indígena.
2003
Portaria MEC nº 1.941, de 16 de junho, institui, no âmbito da Secretaria de Educação Média e
Tecnológica - SEMTEC, unidade responsável pela execução do Programa Diversidade na
Universidade, a Comissão Assessora de Diversidade para Assuntos Indígenas. Essa Comissão
deverá “assessorar a SEMTEC na formulação de políticas de inclusão social e combate à
discriminação racial e étnica no ensino médio e superior e subsidiar as ações que envolvem a
adoção de normas e procedimentos relacionados à educação escolar indígena a serem desenvolvidas
por aquela Secretaria”. A Portaria estabelece ainda a composição da Comissão.
2003
Decreto Presidencial 4.876, de 12.11.2003, dispõe sobre a análise, seleção e aprovação dos Projetos
Inovadores de Cursos, financiamento e transferência de recursos, e concessão de bolsas de
manutenção e de prêmios de que trata a Lei nº 10.558, de 13 de novembro de 2002, que instituiu o
Programa Diversidade na Universidade.
2002
Decreto Presidencial de 15.03.2002, designa como representante indígena no Conselho Nacional de
Educação, Câmara de Educação Básica, Francisca Novantino Pinto de Ângelo – Paresi.
Decreto Presidencial nº 4.229, de 1304.2002, dispõe sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos -
PNDH, instituído pelo Decreto n o 1.904, de 13 de maio de 1996. Dentre as providências
estabelecidas, destacam-se a revogação do Decreto n o 1.904 e a definição, no seu Art. 2º § 1º,
de que os direitos humanos devem ser entendidos como “um conjunto de direitos universais,
indivisíveis e interdependentes, que compreendem direitos civis, políticos, sociais, culturais e
econômicos”.
402
Lei 10.558, de 13.11.2002, cria o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério
da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção de acesso ao
ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente, dos
afro-descendentes e dos indígenas brasileiros. (Artigo 1º)
Lei 145, de 11.12.2002, dispõe sobre a Co-Oficialização das Línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa à
Língua Portuguesa no município de São Gabriel da Cachoeira/Amazonas. Obriga a prestação de
serviços básicos de atendimento ao público nas repartições públicas na língua oficial e nas três
línguas co-oficiais, oralmente e por escrito; a produção e documentação pública, bem como
campanhas publicitárias institucionais na língua oficial e nas três línguas co-oficiais; o incentivo e
apoio ao aprendizado e o uso das línguas co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicações.
2001
Plano Nacional de Educação – Lei 10.172, de 09.01.2001. O Plano Nacional de Educação (PNE),
previsto no artigo 87 da LDB 9.394/96, destina um de seus capítulos Educação Escolar Indígena.
Nesse capítulo, apresenta-se um diagnóstico da educação escolar indígena no Brasil e estabelecem-
se as diretrizes para essa modalidade de educação.
Entre os objetivos e metas previstos salientam-se: a) a universalização da oferta de programas
educacionais aos povos indígenas para todas as séries do ensino fundamental, assegurando
autonomia para as escolas indígenas e garantindo a participação das comunidades indígenas nas
decisões relativas ao funcionamento dessas escolas; b) a criação de programas específicos para
atender às escolas indígenas, bem como a criação de linhas de financiamento para a implementação
dos programas de educação em áreas indígenas; c) a determinação de que a União, em colaboração
com os Estados, equipe as escolas indígenas com materiais didático-pedagógicos básicos, incluindo
bibliotecas, videotecas e outros materiais de apoio, bem como de que sejam adaptados os
programas já existentes no Ministério da Educação em termos de auxílio ao desenvolvimento da
educação; d) a profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena, com a criação
da categoria de professor indígena como carreira específica do magistério, e com a implementação
de programas contínuos de formação sistemática do professorado indígena; e) a definição de que a
União, em articulação com os demais sistemas de ensino e com a sociedade civil, deve proceder a
avaliações periódicas da implementação do Plano e de que tanto os Estados quanto os Municípios
devem, com base no Plano, elaborar seus planos decenais correspondentes.
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural / INESCO, junho. Afirma a convicção de que o
diálogo intercultural é garantia da paz. Declara que os direitos culturais são parte integrante dos
403
direitos humanos e que toda pessoa deve poder expressar-se na língua que deseje, em particular, na
sua língua materna; tem o direito a uma educação e formação de qualidade que respeite plenamente
sua identidade cultural. Define que a defesa da diversidade cultural implica em compromisso de
respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular de pessoas que pertencem
a minorias e povos autóctones.
1999
Parecer CNE/CEB 14, de 14,09.1999. Com o objetivo de definir as normas necessárias à
implantação da nova estrutura educacional instituída pela LDB 9394/96, o Conselho Nacional de
Educação (CNE), por meio de trabalhos desenvolvidos por sua Câmara de Educação Básica (CEB),
aprova as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, descritas no Parecer 14.
Esse parecer apresenta conceitos, fundamentações, dados históricos e legais relativos à educação
escolar indígena, determina a estrutura e o funcionamento da escola indígena como categoria
específica de estabelecimento de ensino e propõe ações concretas necessárias a sua implementação
e desenvolvimento. Destaca-se no parecer a ênfase dada à categoria escola indígena e à definição de
competências para a oferta dessa modalidade de educação, a formação e as formas de contratação
do professor indígena, ao currículo e sua flexibilização.
Resolução CNE/CEB 03, de 10.11.1999. Fixa as diretrizes nacionais para o funcionamento das
escolas indígenas aprovadas no Parecer CNE/CEB 14/99. Dentre as importantes definições
inscritas e regulamentadas nesta Resolução, destacam-se três. A primeira refere-se à organização, à
estrutura e ao funcionamento da escola indígena que, embora integre o sistema de ensino nacional,
deve ter “normas e ordenamento jurídico próprios”; declara-se imprescindível que as escolas
indígenas sejam criadas “em atendimento à reivindicação ou por iniciativa de comunidade
interessada, ou com a anuência da mesma”, em terras habitadas por esta comunidade, para atender
exclusivamente aos seus membros, com ensino ministrado em suas línguas e com o modelo de
organização e gestão que melhor lhes convier, ou melhor, de acordo com o que cada comunidade
definiu nos seus respectivos projetos pedagógicos e regimentos escolares. A segunda definição diz
respeito à formação dos docentes que atuarão nessas escolas; consta nos Artigos 6º, 7º e 8º que essa
formação deverá ocorrer em cursos específicos e diferenciados, oferecidos por instituições
experientes na formação de professores, assegurando-se a formação em serviço e, quando for o
caso, concomitantemente com a própria escolarização do docente em formação. O terceiro
destaque, inscrito no Artigo 9º, estabelece um regime de colaboração entre União, Estados e
Municípios visando a oferta da educação escolar entre povos indígenas e as competências de cada
uma dessas esferas de governo no cumprimento dessa responsabilidade.
1996
Decreto Presidencial nº 1.904, de 1304.1996, institui o Programa Nacional de Direitos Humanos –
PNDH, que compreende um diagnóstico da situação desses direitos no País e as medidas a serem
implementadas e/ou coordenadas na sua execução, pelo Ministério da Justiça e parceiros, com o
intuito de defender e promover tais direitos.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9.394, de 20.12.1996. Fixa as diretrizes e as
bases sob as quais devem ocorrer a estruturação e o funcionamento do sistema de ensino brasileiro
no que tange à sua organização administrativa, pedagógica e curricular, sendo a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional a referir-se explicitamente à educação escolar indígena.
Isso ocorre em quatro dos seus artigos: 26, 32, 78 e 79, Os Artigos 26 e 32 compõem o capítulo que
trata da Educação Básica, e os Artigos 78 e 79 fazem parte do Título VIII, das Disposições Gerais.
O Art. 26, que trata em seu caput da base comum nacional dos currículos do ensino fundamental e
404
médio, determina no seu § 4º que o ensino da História do Brasil deve considerar as diferentes
culturas e etnias que contribuíram para a formação do povo brasileiro, dentre elas as matrizes
indígenas. No Art. 32 reproduz-se o direito inscrito na Constituição Federal de que o ensino regular
para as populações indígenas deve ser ministrado não só na língua portuguesa, mas deve assegurar o
uso das línguas maternas e, além disso, devem estar presentes os processos de aprendizagem dessas
populações. Os Artigos 78 e 79 estabelecem os procedimentos a serem adotados pelo Estado para
cumprir com sua obrigação de oferecer aos povos indígenas uma educação escolar bilíngüe e
intercultural; tratam, portanto, de programas de ensino e pesquisa, de formação de pessoal
especializado e específico, de currículos e materiais didáticos específicos e diferenciados.
Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, Barcelona, Espanha, de 09.06.1996, proclama a igualdade de
direitos lingüísticos sem distinções entre línguas oficiais / não-oficiais, nacionais / regionais /
locais, majoritárias / minoritárias; considera inseparáveis e interdependentes as dimensões coletiva e
individual dos direitos lingüísticos; leva em consideração os direitos das comunidades lingüísticas
assentadas historicamente em seus territórios. Afirma a necessidade de se corrigirem os
desequilíbrios linguísticos de forma a se assegurarem o respeito e o pleno desenvolvimento de todas
as línguas como fator de convivência social.
1991
Decreto Presidencial nº 26, de 04.02.1991, transfere da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o
Ministério da Educação (MEC) a competência para coordenar as ações referentes à educação
escolar indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino. Define também que a execução
dessas ações definidas pelo MEC, em articulação com a Funai, ficará a cargo das Secretarias de
Educação dos Estados e Municípios.
1988
Constituição Federal. Este é o primeiro documento do governo federal brasileiro a reconhecer sua
sociedade como pluricultural. O Estado passa a ser responsável por garantir “a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, bem como por apoiar e
incentivar “a valorização e a difusão das manifestações culturais” populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (Art. 215, §
1º). Nos artigos 231 e 232 do capítulo intitulado “Dos Índios” reconhece a organização social, os
costumes, as línguas, as crenças, as tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente esses povos ocupam. No tocante à educação, essa Constituição, em seu Art. 210,
§ 2º, assegura que as comunidades indígenas utilizem suas línguas maternas e seus próprios
processos de aprendizagem.
1973
Lei 6.001 – Estatuto do Índio. Publicada no Diário Oficial da União de 21.12.1973, essa Lei cujo
propósito é, contraditoriamente, preservar a cultura dos índios e integrá-los, progressiva e
405
harmonicamente, à comunhão nacional, regula a situação jurídica de índios ou silvícolas e
comunidades indígenas. Para isso, define seus direitos/deveres civis e políticos, a forma pela qual
serão tratadas as questões relativas às terras, aos bens e renda do patrimônio indígena, bem como
sua educação, cultura e saúde.
1965
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Os países que
aderem a esta Convenção passam a condenar a discriminação racial definida no Art. I, qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional
ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício
num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no
domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida” e,
comprometem-se a adotar políticas/ações que previnam, condenem, coíbam e, sobretudo, não
incentivem a discriminação racial. O Brasil ratifica-a em 1968.
1948
Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime e de Genocídio. Ratificada pelo Brasil no mesmo ano de
sua aprovação pela ONU/OEA (1948), essa convenção considera que em todos os períodos da
história o genocídio causou grandes perdas à humanidade e define, em linhas gerais, que o
genocídio, em qualquer situação, em tempo de paz ou de guerra, em razão da nacionalidade, etnia,
raça ou religião, é um crime contra o direito dos povos e, por isso, deve ser prevenido e punido.
406
VII. DIREITOS INDÍGENAS E
INDIGENISTA
407
DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E
LEGISLAÇÃO INDIGENISTA132
132 Este texto é parte da dissertação de mestrado que teve como título Poké'exa Utî: o território indígena como
direito fundamental para o etnodesenvolvimento local, defendida no âmbito do Programa de Pós Graduação em
Desemvolvimento Local - UCDB.
133 Advogado. Doutorando em Antropologia Social - Museu Nacional - UFRJ
408
Índio de 1973; a Convenção 169 da OIT e vários outros dispositivos legais esparsos pelo
ordenamento jurídico brasileiro.
É preciso registra que os estudos sobre a realidade agrária brasileira são muitos
recentes, bastando lembrar que vivenciamos um período de “escuridão científica” durante
400 anos de colonialismo. Basta lembrar que a primeira universidade brasileira surgiu em
1903135, e as universidades públicas foram criadas no Brasil após a Semana de 1922136.
Segundo Stedile: “A carência e a ignorância sobre as questões agrárias em nosso país são
frutos dessa submissão colonial, que impediu o desenvolvimento das idéias, das pesquisas e
do pensamento nacional durante os 400 anos de colonialismo” (STEDILE, 2011, p. 16).
134 O conceito de “questão agrária” pode ser trabalhado e interpretado de diversas formas, de acordo com a
ênfase que se quer dar a diferentes aspectos do estudo da realidade agrária. Na literatura política, o conceito
de “questão agrária” sempre esteve mais afeto ao estudo dos problemas que a concentração da propriedade
da terra trazia ao desenvolvimento das forças produtivas de uma determinada sociedade e sua influência no
poder político. Na sociologia, o conceito de “questão agrária” é utilizado para explicar as formas como se
desenvolvem as relações sociais, na organização da produção agrícola. Na geografia, é comum a utilização da
expressão “questão agrária” para explicar a forma como as sociedades e as pessoas vão se apropriando da
utilização do principal bem da natureza, que é a terra, e como vai ocorrendo a ocupação humana no território.
Na história, o termo “questão agrária” é usado para ajudar a explicar a evolução da luta política e a luta de
classes para o domínio e o controle dos territórios e da posse da terra (STEDILE, 2011, p. 15).
135 […] a primeira universidade brasileira surgiu apenas em 1903, a Universidade Cândido Mendes, por
iniciativa de uma família de verdadeiros iluministas, que quiseram se dedicar à ciência (STEDILE, 2011, p.
16).
136 As universidades públicas foram criadas no Brasil somente após a revolução cultural ocorrida em 1922,
por ocasião da Semana de Arte Moderna, que projetou a necessidade do surgimento de um pensamento
nacional, brasileiro, que se dedicasse às artes, à cultura e à ciência nos seus mais diferentes aspectos
(STEDILE, 2011, p. 16).
409
É certo que não existe consenso quanto à antiguidade da ocupação humana na
América do Sul. No entanto, é inquestionável que o continente já estava densamente
habitado por volta de 12.000 anos atrás.
Niéde Guidon apud Costa (s/d, p. 07), já em 1992 sugere uma ocupação mais
antiga, com datações superiores há 30.000 anos. Stedile (2011) trabalha com a data de
50.000 anos atrás, em razão da descoberta de diversos instrumentos e vestígios humanos
no Estado de Piauí. Beltrão (1974) igualmente trabalha com datas mais antigas.
Fato é que “as populações viviam no Brasil mais de dez mil anos antes do
chamado 'descobrimento'” (COSTA, s/d, p. 02); ou “encobrimento” como defende Dussel
(1993). Exemplificando, em relação aos Guarani de Yvy Katu, comunidade localizada no
município de Japorã, Mato Grosso do Sul, “resultados da análise de fragmentos de
cerâmica coletados na região da terra indígena Porto Lindo, e apresentados por Landa
(2005), indicam um período de ocupação entre os anos de 1240”. No mesmo sentido,
Eremites de Oliveira (2012), corrobora a ocupação pré-colombial137.
É evidente que antes de 1500, já existiam aqui povos organizados não havendo
entre esses povos qualquer sentido ou conceito de propriedade dos bens da natureza.
Todos os bens da natureza existentes no território – terra, água, rios, fauna, flora – eram,
137 Nas Américas, especialistas em arqueologia comumente entendem por pré-história o período
correspondente ao transcurso histórico e sociocultural das sociedades indígenas antes dos contatos direitos e
indiretos com os conquistadores europeus. A data oficial do início desses contatos é 1.492, ano em que o
genovês Cristóvão Colombo e sua tripulação, a serviço do Rei de Espanha, chegaram ao que hoje em dia
corresponde à América Central. No caso do Brasil, há arqueólogos que utilizam como data oficial o ano de
1500, quando o almirante português Pedro Álvares Cabral e seus comandados desembarcaram no que é hoje
o litoral do estado da Bahia. Dessa forma, tanto 1492, para as Américas em geral, quanto 1500, para alguns
arqueólogos brasileiros, são datas usadas como marcos temporais para separar, a partir de uma visão
evolucionista sobre o passado da humanidade, a história da pré-história. Daí compreender o porquê de
chamar a pré-história de período pré-colombiano, pré-cabraliano, pré-colonial ou pré-contato (EREMITES
DE OLIVEIRA, 2012, p. 24).
410
todos, de posse e de uso coletivo e eram utilizados com a única finalidade de atender às
necessidades de sobrevivência social do grupo (STEDILE, 2001).
138Embora, desde a época da colonização, a legislação previsse uma disciplina jurídica diferenciada para os
índios, não havia um tratamento especial enquanto etnia distinta, fato que só se reverteu com o
fortalecimento dos direitos humanos, no plano internacional e a consagração dos direitos fundamentais,
notadamente na Constituição de 1988 (FREITAS JÚNIOR, 2010, p. 23).
411
A partir de então, os colonizadores implantaram a “plantation139”, que segundo
Stedile (2011, p. 21), “é a forma de organizar a produção agrícola em grandes fazendas de
área contínua, com a prática monocultura, ou seja, com a plantação de um único produto,
destinado a exportação”. Em relação à propriedade a coroa portuguesa monopolizou a
propriedade de todo o território e, para implantar com sucesso o modelo denominado
agroexportador optou pela “concessão de uso” da terra com direito a herança, entregando
enormes extensões de terra.140
139 Palavra de origem inglesa, utilizada por sociólogos e historiadores para resumir o funcionamento do
modelo empregado nas colônias.
140 Em 10 de março de 1534, Duarte Coelho recebeu 60 léguas de terra, na costa do Brasil, situadas
entre o rio São Francisco e a ilha de Itamaracá, que “entrarão na mesma largura pelos sertões terra firme
adentro, tanto quanto puder entrar e for de minha conquista”, doação que lhe era feita “deste dia para todo o
sempre, de juro e herdade, para ele e todos os seus filhos, netos, herdeiros e sucessores, que após ele virem,
assim descendentes, como transversais e colaterais' (BORGES, 1958, p. 262).
412
fazer guerra ao Estado, conforme explicitado pela Carta Régia de 9 de
abril de 1655 (CAMPOS, 2007, p. 07).
413
O Alvará de 1º de abril de 1680 estabelecia que os índios estavam isentos de
tributos sobre as terras das quais eram “primários e naturais senhores”. Neste, Portugal
reconheceu que se deveria respeitar a posse indígena sobre suas terras.
[...] E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há
de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que
senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser
tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia. E o Governador com
parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares
convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser
mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a
pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dados em
Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva
sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se
entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturais
senhores delas (CUNHA, 1987, p. 59).
414
No período imperial encontramos dispositivos do direito indigenista na
Constituição de 1824, que apesar de relativa omissão, adotou algumas medidas favoráveis
aos índios141. Segundo Freitas Júnior (2010), por meio de lei, sancionada em 27 de outubro
de 1831, foi determinada a libertação dois índios que se achavam em regime de servidão e,
como forma de melhor resguardar os seus interesses, os índios foram equiparados aos
órfãos e entregues à proteção dos respectivos juízes de órfãos.
141 Outras leis foram publicadas na tentativa de melhor resguardar os direitos desses povos considerados
incapazes de, por si só, promover a defesa de seus interesses. Destacam-se, dentre elas, as de 3 e 18 de junho
de 1833; a primeira beneficiava os índios que se estabelecessem nos aldeamentos à margem do rio Arinos, no
estado do Mato Grosso, com a isenção do pagamento de qualquer tributo por um período de vinte anos, e a
segunda transferia a administração dos seus bens para os juízes dos órfãos, também tutores dos interesses dos
indígenas (OLIVEIRA SOBRINHO, 1992, p.108, apud, FREITAS JÚNIOR, 2010, p. 28).
142 Às missões cabia a tarefa de desenvolver a catequese dos índios; trabalhando diretamente nas aldeias já
existentes e agrupando os índios nômades em aldeamentos, para ministrar, nestes e naquelas, o ensino das
primeiras letras, as máximas da Igreja Católica, incutindo o respeito e a prática dos seus sacramentos, dentre
eles o casamento. Construíam também habitações mais confortáveis, tudo com o fim de promover a
adaptação dos índios às práticas correntes na sociedade brasileira. E como uma espécie de prêmio aos índios
que bem se comportavam nos aldeamentos, a eles eram concedidas terras separadas das aldeias para suas
granjearias particulares, que passariam a sua propriedade definitiva, através de Carta de Sesmaria, se, durante
doze anos ininterruptos, mantivessem-nas cultivadas (OLIVEIRA SOBRINHO, 1992, p.110 apud FREITAS
JÚNIOR, 2010, p. 28).
415
O marco jurídico-institucional que preparou a transição do modelo de
monocultura exportador para um novo modelo econômico, foi a Lei de Terras de 1850 143.
A lei de Terras introduziu o sistema da propriedade privada das terras, ou seja, a terra
passou ser mercadoria visto que a partir de 1850, as terras podiam ser compradas e
vendidas. Até então, eram apenas objeto de concessão de uso – hereditária – por parte da
Coroa àqueles capitalistas com recursos para implantar, nas fazendas, monoculturas
voltadas à exportação (BORGES, 1958). A característica principal desta lei foi a
implantação no Brasil da propriedade privada, ou seja, a lei proporcionou juridicamente a
transformação da terra (bem da natureza) em mercadoria, objeto de negócio. Normatizou
então a propriedade privada. A segunda característica144 estabelecia que qualquer cidadão
poderia se transformar em proprietário privado de terras (STEDILE, 2011).
143 A lei de terras foi muito importante. Ela foi concebida no bojo da crise da escravidão e preparou a
transição da produção com trabalho escravo – nas unidades de produção tipo plantation, utilizadas nos quatros
séculos do colonialismo – para a produção com trabalho assalariado (BORGES, 1958, p. 283).
144 […] essa característica visava, sobretudo, impedir que os futuros ex-trabalhadores escravizados, ao serem
libertos, pudessem se transformar em camponeses, em pequenos proprietários de terras, pois, não possuindo
nenhum bem, não teriam recursos para comprar, pagar pelas terras à Coroa. E assim continuariam à mercê
dos fazendeiros, como assalariados (STEDILE, 2011, p. 23).
416
Por sua vez Mendes Junior (1988) assevera que as leis portuguesas dos tempos
coloniais apreendiam perfeitamente estas distinções: dos índios aborígenes, organizados em
hordas, pode-se formar um aldeamento, mas não uma colônia; os índios só podem ser
constituídos em colônia quando não são aborígenes do lugar, isto é, quando são emigrados
de uma zona para serem imigrados em outra. O autor, interpretando os dispositivos já
citados do Regulamento de 1854 (artigos 72 a 75), conclui que:
A Constituição de 1891 não fazia qualquer menção aos índios ou aos seus
direitos territoriais. Isso explica, por exemplo, porque o Serviço de Proteção ao Índio – SPI
417
não tinha poderes para reconhecer as terras indígenas (ARAÚJO, 2006). Após isso, as
constituições que se seguiram trouxeram alguns dispositivos reconhecendo a posse dos
índios sobre as terras por eles ocupadas:
418
nacional”
1969 Emenda Constitucional “Incorporação dos silvícolas à comunhão
nacional”
1973 Estatuto do Índio “... preservar a sua cultura e integrá-los
progressiva e harmoniosamente à comunhão
nacional”
- Reconhecimento da organização social,
Visão pluriétnica e costumes, línguas, crenças e tradições;
multicultural: - Reconhecimento do uso das línguas maternas
- proteção e valorização 1988 Constituição Federal e processos próprios de aprendizagem no
das diferenças; ensino fundamental;
- convivência respeitosa; - Reconhecimento dos direitos originários (de
- reconhecimento das posse e usufruto exclusivos) sobre as terras que
instituições indígenas tradicionalmente ocupam;
próprias, submetidas - Consulta às comunidades sobre projetos de
apenas ao marco jurídico exploração mineral;
do Estado soberano. - Reconhecimento da capacidade de
postulação em juízo para a defesa de seus
direitos e interesses;
- Dever da União em demarcar as terras e
proteger e fazer respeitar todos os bens
indígenas;
- Sobre povos indígenas e tribais em países
independentes.
1989 Convenção 169 da OIT, - Reconhece suas aspirações a “assumir o
(promulgada no Brasil pelo controle de suas próprias instituições e
Dec. 5051 de 19.04.2004) formas de vida e seu desenvolvimento
econômico, e manter e fortalecer suas
identidades, línguas e religiões, dentro do
âmbito dos Estados onde moram”.
- Direito de usufruto das riquezas naturais.
- Consulta às comunidades sobre projetos de
exploração mineral.
1996 Lei de Diretrizes e Bases Educação escolar bilíngüe e intercultural
da Educação Nacional
Fonte: ELOY AMADO, 2014.
Nesse sentido que grande parte dos dispositivos do estatuto do índio encontra-
se em desacordo com o que preceitua o texto constitucional razão pela qual não devem ser
aplicados, justamente por ser a Constituição Federal norma hierarquicamente superior ao
estatuto do índio.
NORMAS CONSTITUCIONAIS
(Topo da Hierarquia)
Constituição Federal
Emendas Constitucionais
Tratados internacionais de direitos humanos
CF
NORMAS COMPLEMENTARES
(Complementam a Constituição. São expressamente previstas por esta)
Leis complementares
Complementares
NORMAS ORDINÁRIAS
(elaboração legislativa comum)
Leis ordinárias (Ex:Estatuto do Índio , Código Civil, Código Penal,
LDB) Medidas Provisórias (Presidente da República) Decreto Legislativo
(Congresso Nacional)
Leis Delegadas (Presidente da República) Ordinárias
NORMAS REGULAMENTARES
(elaboração administrativa)
Decreto (Presidente da República) Portarias (Ministeriais, interministeriais,
Administrativas)
Resoluções
Regulamentares
NORMAS INDIVIDUAIS
(aplicação aos casos concretos, individualizados)
Sentenças (“a sentença é lei entre as partes”)
Despachos
Contratos Individuais
420
O capítulo II da lei 6.001/73 trata da tutela e da incapacidade civil do índio.
Continua adotando a expressão do Código Civil de 1916145: silvícola”. Expressão
ultrapassada que não foi utilizado com o advento da Constituição em 1988. O artigo Art.
7º146 do estatuto preconiza que “os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados
à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta lei”, ou seja, o índio
ou a comunidade indígena era tido como “alguém incapaz” que só poderia exercer seu
direito se tivesse seu “tutor”, no caso a FUNAI, lhe assistindo. São comuns nas falas dos
caciques anciãos a lembrança dos tempos em que até para viajarem necessitavam de uma
autorização da FUNAI, sem a qual não poderiam nem sair da comunidade.
No artigo 8º está à previsão de nulidade dos “atos praticados entre o índio não
integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido
assistência do órgão tutelar competente”. Não poderia o índio firmar qualquer tipo de
contrato (compra, venda, abrir conta em banco, etc) sem a assistência do órgão tutelar
(FUNAI) sob pena de nulidade. Estávamos diante do que no direito Civil brasileiro
denomina de incapacidade civil relativa para a prática dos atos da vida civil. O artigo 6°,
inciso IV do Código Civil de 1916 preconizava que os silvícolas são incapazes,
relativamente a certos atos ou à maneira de exercê-los; afirmando expressamente no
parágrafo único que “os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e
regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação”.
145O Código Civil de 1916 foi revogado pelo atual Código Civil de 2002.
146Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao
regime tutelar estabelecido nesta Lei.
§ 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de
direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca
legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória.
§ 2º Incumbe à tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas
(Lei n. 6.001/73).
421
Parágrafo único. O Juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão
de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença
concessiva no registro civil.
Art. 10. Satisfeitos os requisitos do artigo anterior e a pedido escrito do
interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante
declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição à
capacidade, desde que, homologado judicialmente o ato, seja inscrito no
registro civil.
Art. 11. Mediante decreto do Presidente da República, poderá ser
declarada a emancipação da comunidade indígena e de seus membros,
quanto ao regime tutelar estabelecido em lei, desde que requerida pela
maioria dos membros do grupo e comprovada, em inquérito realizado
pelo órgão federal competente, a sua plena integração na comunhão
nacional.
Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste artigo, exigir-se-á o
preenchimento, pelos requerentes, dos requisitos estabelecidos no artigo
9º.
147 Sem dúvida a Constituição Federal de 1988 é o marco divisor de águas na linha de evolução do direito
indigenista. Não só trouxe um capítulo específico denominado “Dos Índios”, rompendo com a visão
integracionista, como também, reconheceu o direito à diferença das comunidades indígena, reconheceu a
422
Rompendo com a visão integracionista148 que orientava o relacionamento do
Estado com os povos indígenas, a constituição denominada cidadã inovou trazendo um
capítulo específico denominado “Dos Índios”. Ali estão dois artigos de fundamental
importância para o movimento indígena e que vaticinam os princípios vetores do direito
indigenista.
Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua
posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional,
ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação
nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e
os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad
referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País,
após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer
hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios
e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a
nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União,
salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no Art. 174, §§ 3º e 4º.
capacidade processual dos índios, suas comunidades e suas organizações, bem como atribuiu ao Ministério
Público o dever de garantir os direitos indígenas e por fim, em seu Art. 231, caput, reconheceu os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupadas. Como bem atesta Deborah Duprat, os territórios
indígenas, no tratamento que lhes foi dado pelo novo texto constitucional, são concebidos como espaços
indispensáveis ao exercício de direitos identitários desses grupos étnicos. As noções de
etnia/cultura/território são, em larga medida, indissociáveis (ELOY AMADO, 2011, p. 13).
148 A teoria integracionista ou assimilacionista foi inspirada na teoria do evolucionismo social. Essa teoria da
evolução, oriunda da Biologia de Darwin, foi construída a partir de dados empíricos, qual seja, a seleção de
diversos organismos e sua diferenciação tipológica. Contudo, essa teoria foi refutada pelas ciências sociais,
notadamente pela antropologia (SANTILLI, 2009 apud FREITAS JÚNIOR, 2010, p. 23).
423
Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses,
intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
O caput do Art. 231 vaticina que são reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições; com isso a ordem constitucional derrubou
por terra a visão integracionista que antes perdurava. Nota-se que o estatuto do índio de
1973 apregoa em seu Artigo 1º que tem como propósito “integrar, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional”. Se antes a política era integrar a comunhão
nacional, agora a Constituição de 1988 reconhece o direito de ser diferente. O índio tem o
direito de ser índio do jeito que o quiser, seja na aldeia ou na cidade. Ele tem o direito de
preservar sua cultura, sua língua e manter suas crenças e tradições. Em síntese, ele não
precisa deixar de ser índio para ser integrado à sociedade nacional, visto que ele já tem sua
própria sociedade com organização própria.
424
índios; pois, pensava-se que “progressiva e harmoniosamente” esses deixariam de ser
índios e desapareciam.
A segunda parte do Artigo 231 reconhece ainda “os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”. O direito originário significa dizer um direito de nascença,
direito congênito, direito anterior a qualquer outro direito. Essa é a extensão da afirmativa
constitucional.
149 Na lição de José Afonso da Silva, o tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao
modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção (Os
Direitos Indígenas e a Constituição - Núcleo de Direitos Indígenas e Sérgio Antônio Fabris Editor –– 1993,
p. 47).
425
ou outro elemento qualquer considerado sagrado pela comunidade, dentre outros, o
cemitério.
Vê-se que as atuais reservas indígenas estão bem longe do que traçou a
Constituição de 1988, logicamente porque terra indígena reservada é diferente de terra
indígena demarcada, razão pela qual todas as reservas indígenas de Mato Grosso do Sul
deverão ser demarcadas de acordo com as lentes constitucionais de 1988.
Nota-se que no Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 não tem palavra
sobrando, nem faltando. O dispositivo foi bem redigido, razão pelas quais tais direitos
devem ser protegidos e aplicados em absoluto. O direito dos povos indígenas não sofre
mitigação a exemplo de outros direitos como o de propriedade.
Segundo o Art. 231, caput, última parte, da CF/88, compete à União demarcar
as terras de ocupação indígena. O Estatuto do Índio – Lei 6.001/73, em seu Art. 19, caput,
prevê que as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência
ao índio (FUNAI), serão administrativamente demarcadas151, de acordo com o processo
estabelecido em decreto do Poder Executivo. O processo demarcatório é regulado pelo
Decreto 1.775/96, em que são previstos etapas que delineia o procedimento: 1)
identificação e delimitação, 2) aprovação pela FUNAI, 3) contestação, 4) declaração de
limites pelo ministro da justiça, 5) demarcação física, 6) homologação presidencial, 7)
registro e 8) desintrusão.
150 Art. 5, Alíne “c” - deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas
voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de
trabalho.
151 A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é "ato estatal que se reveste da
presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade", além de se revestir de natureza declaratória e força
autoexecutória. (Pet 3388 / RR – Rel. Min. CARLOS BRITTO/ 25-09-2009).
427
A FUNAI publica portaria constituindo grupo de trabalhando nomeando
antropólogo que irá coordenar (art. 2º do Decreto 1.775/96) e deverá elaborar um trabalho
fundamentado de estudo antropológico de identificação. Este profissional deverá ter
qualificação reconhecida e será ele quem irá coordenar o grupo de trabalho que realizará
estudos complementares de natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica e
ambiental, além do levantamento fundiário, com vistas à delimitação da terra indígena. Ao
final, o grupo apresentará relatório circunstanciado à FUNAI, do qual deverão constar
elementos e dados específicos listados na Portaria nº. 14, de 09/01/96, como a explicitação
das razões pelas quais tais áreas são imprescindíveis e necessárias, bem como a
caracterização da terra indígena a ser demarcada. No caso de haver não indígenas na região,
devem ser ainda realizados levantamentos socioeconômicos, documentais e cartoriais, bem
como a avaliação das benfeitorias edificadas em tais ocupações.
Após iniciar-se a fase das contestações (Art. 2º, § 8º), visto que a contar do
início do procedimento até 90 dias após a publicação do relatório no DOU, todo
interessado, inclusive Estados e Municípios, poderão manifestar-se, apresentando ao órgão
indigenista suas razões, acompanhadas de todas as provas pertinentes, com o fim de
pleitear indenização ou demonstrar vícios existentes no relatório. A FUNAI tem, então, 60
dias, após os 90 mencionados, para elaborar pareceres sobre as razões de todos os
interessados e encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça.
152 Segundo o lesto Cândido Rangel Dinarmaco, em sua obra Capítulos de Sentença, “cada capítulo do
decisório, quer todos de mérito, quer heterogêneos, é uma unidade elementar autônoma, no sentido de que
cada um deles expressa uma deliberação específica; cada uma dessas deliberações é distinta das contidas nos
demais capítulos e resulta da verificação de pressupostos próprios, que não que não se confundem com os
pressupostos das outras. Nesse plano, a autonomia dos diversos capítulos de sentença revela apenas uma
distinção funcional entre eles, sem que necessariamente todos sejam portadores de aptidão a constituir objeto
de julgamentos separados, em processos distintos e mediante mais de uma sentença: a autonomia absoluta só
se dá entre os capítulos de mérito, não porém em relação ao que contém julgamento da pretensão ao
julgamento deste.” In: LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. Dos capítulos da sentença. Revista Jus
Vigilantibus, Sábado, 13 de junho de 2009. Disponível em http://jusvi.com/artigos/40442. Acesso em
16/02/2011.
429
O Supremo Tribunal Federal – STF apregoou que o significado do substantivo
índio é usado pela Constituição Federal por um modo invariavelmente plural, para exprimir
a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias, propósito constitucional de retratar
uma diversidade indígena tanto interétnicas quanto intra-ética. Ademais, firmou
entendimento de que a terra indígena é parte essencial do território brasileiro, sendo bem
público federal traduzindo-se numa realidade sociocultural, e não de natureza político-
territorial. Realça que a demarcação de terras indígenas é capítulo avançado do
constitucionalismo fraternal, onde se afirma que os artigos 231 e 232 da Constituição de
1988 são de “finalidades nitidamente fraternal ou solidária”, in verbis:
1.O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas
terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231
(parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na
forma de Lei Complementar;
2. O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos
hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso
Nacional;
3. O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas
minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando
aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
4. O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação,
devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;
5. O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de
Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais
intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de
alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho
estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de
Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a
comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI;
6. A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no
âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a
comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI;
7. O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de
equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de
construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os
de saúde e de educação;
8. O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação
fica sob a responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade;
9. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá
pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra
153O assessor jurídico do CIMI, Paulo Machado Guimarães salienta que desde 1990 tramita na Câmara dos
Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 260, que visa dispor sobre os atos relevantes de interesses da
União, previsto no § 6º do art. 231 da CF. E ainda, desde 1991 e 1992 tramitam na Câmara dos Deputados
proposições legislativas que visam dispor sobre uma nova legislação indigenista, superando o atual Estatuto
do Índio, Lei nº 6.001/73. Em junho de 1994 foram apreciados por Comissão Especial da Câmara dos
Deputados e aprovados, no qual todas as questões suscitadas nas condicionantes propostas são tratadas.
431
indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser
ouvidas, levando em conta os usos, as tradições e costumes dos indígenas, podendo,
para tanto, contar com a consultoria da FUNAI;
10. Trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido
na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo
Instituto Chico Mendes;
11. Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-
índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela
FUNAI;
12. Ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto
de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das
comunidades indígenas;
13. A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não
poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos
públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e
instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da
homologação ou não;
14. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de
qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto e da
posse direta pela comunidade indígena;
15. É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos
tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim
como de atividade agropecuária extrativa;
16. As terras sob ocupação e posse dos grupos e comunidades indígenas,
o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras
ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da
Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade
tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições
sobre uns e outros;
17. É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
18. Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e
estas são inalienáveis e indisponíveis.
19. É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as
etapas do processo de demarcação.
Fonte: Supremo Tribunal Federal
432
usufrutuários exclusivos e tal entendimento vir restringindo esse direito real das
comunidades indígenas. Por outro lado, a Lei n. 7.805/89 que trata do regime de permissão
de lavra garimpeira não se aplica aos índios. Assim para a permissão de lavra garimpeira em
terras indígenas é possível desde que exclusivamente em beneficio dos índios que
tradicionalmente a ocupam, após um licenciamento ambiental e também uma avaliação
antropológica, mas tudo isso ainda necessitaria de regulamentação normativa especifico, tal
como um decreto do presidencial.
434
Por fim a condicionante que mais suscita discussões na seara jurídica, de
número 17 prescrevendo que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”. É de se
considerar que o STF já firmou entendimento que a demarcação de terra indígena se faz no
“bojo de um processo administrativo”, procedimento este disciplinado por lei e dividida
em etapas que devem ser respeitadas sob pena de nulidade dos atos praticados. Assim a
primeira conclusão que se deve verificar é que, se uma terra está sendo periciada com o
intuito de se averiguar se é ou não de ocupação tradicional, esta passará por todos os
trâmites previstos em lei, tais como o estudo histórico e antropológico, serão dadas às
partes ainda no processo administrativo a oportunidade de se manifestarem, após isso, será
expedida a portaria declaratória que de todo modo, havendo alguma crise a respeito do
assunto, poderá ser levado à apreciação do judiciário.
PEC 215/00
154 A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados por meio de parecer da lavra do
Deputado Federal Osmar Serraglio, aprovaram em parte a admissibilidade da PEC 215, aduzindo que a
proposta não feriria cláusulas pétreas, a não ser no ponto em que determina a necessidade de ratificação pelo
Congresso Nacional das demarcações já homologadas, o que violaria o art. 60, § 4º, IV, da Constituição. Por
conseqüência, tal previsão foi expurgada da PEC 215 pelo próprio Poder Legislativo, no exercício do controle
político preventivo de constitucionalidade. A CCJ da Câmara dos Deputados também aprovou, no mesmo
ato, as PECs 156/2003, 257/2004, 275/2004, 319/2004, 37/2007, 117/2007, 161/2007, 291/2008, 411/2009
e 415/2009, todas anexadas à PEC 215. Com exceção da PEC 291/2208, que trata da definição de áreas de
conservação ambiental, propondo nova redação para o art. 225 da Constituição, todas as demais versam
basicamente sobre o mesmo tema: criam embaraços e limitações adicionais para a demarcação de terras
indígenas. Porém, considerando que o foco precípuo do Mandado de Segurança nº 32.262 é a PEC 215 -
única discutida pelos Impetrantes na petição inicial -, o fato de que é sobre tal proposta que vem convergindo
toda a movimentação política em favor da mudança constitucional do tratamento dos territórios indígenas, e
ainda a urgência na elaboração da presente Nota Técnica, minha atenção neste estudo concentrar-se-á sobre a
referida proposta de ato normativo (SAMENTO, 2013, p. 02).
435
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
XVIII- aprovar a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios e ratificar as demarcações já homologadas.
Art. 231 (...)
§4º. As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação
aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e
indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
(...)
§ 8º. Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas indígenas
deverão ser regulamentados em lei.
436
direitos e garantias fundamentais – mas estão no artigo 231 e 232 (CF/88), as terras
indígenas são cláusulas pétreas, não podendo ser objeto de emenda constitucional.
Os direitos conhecidos aos índios e suas comunidades são frutos da luta dos
povos indígenas durante articulação feita com aliados no período da constituinte, razão pela
qual, quaisquer alterações nesses dispositivos representam um retrocesso nos direitos dos
povos indígenas.
TERRITÓRIO TRADICIONAL
Cada sociedade indígena tem sua forma própria de lidar com o meio físico em
que se encontra localizada (ambientes). Com o reconhecimento da “diversidade fundiária
do Brasil” a questão fundiária vai além das problemáticas relacionadas à distribuição de
terras e o cerne centra-se nos processos de ocupação e afirmação territorial, e aqui tratada
da demarcação e homologação das terras indígenas (LITTLE, 2002).
155 “Atribuo ênfase nestes mencionados processos às denominadas terras tradicionalmente ocupadas, que
expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas
relações com os recursos da natureza (ALMEIDA, 2004, p. 09)”.
437
indígenas aos seus territórios tradicionais e impondo prazo de cinco anos para a
demarcação e homologação de todas as terras indígenas, ainda hoje, várias comunidades
estão fora de seus territórios tradicionais aguardando o reconhecimento jurídico-formal de
sua terra. A conduta territorial que antes usurpava, invadia e despejava comunidades
inteiras de seus territórios tradicionais, hoje se traduz numa “conduta política”
sistematizada no conjunto de articulações estatais imbricados em todas as instâncias de
poderes da máquina estatal com o nítido objetivo de impedir o reconhecimento dessas
terras tradicionais. Os dispositivos constitucionais que reconhecem essa diversidade de
territorialidades – Estado pluriétnico – tal processo de ruptura e de conquista não
resultaram em nenhuma adoção de política étnica e nem ações governamentais capazes de
reconhecer efetivamente esses territórios.
Nessa luta pelo território surgem questões que permeiam o interior das
comunidades (estratégias próprias – retomadas) e as questões externas (ações
governamentais). Fica nítida a territorialidade estatal (reconhecimento formal) e a
territorialidade indígena (autodemarcação – retomada), em razão do pressuposto de que a
territorialidade humana comporta multiplicidades de expressões (LITTLE, 2002).
156A renovação da teoria de territorialidade na antropologia tem como ponto de partida uma abordagem que
considera a conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos (LITTLE, 2002, p. 03).
439
espaço. Lefebvre (1976) apud Raffestin (1993) demonstra como é o mecanismo para passar
do espaço ao território: “[...] a produção de um espaço, o território nacional, espaço físico,
balizado, modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam:
rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos comerciais e bancários, autoestradas e rotas
aéreas etc.”. Continua Raffestin: “O território, nessa perspectiva, um espaço onde se
projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações
marcadas pelo poder. O espaço é a ‘prisão original’’, o território é a prisão que os homens
constroem para si” (RAFFESTIN, 1993, p. 2).
157 [...] a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do "vivido"
territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens "vivem", ao mesmo
tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais
e/ou produtivistas. Quer se trate de relações existenciais ou produtivistas, todas são relações de poder, visto
que há interação entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações
sociais. Os atores, sem se darem conta disso, se automodificam também. O poder é inevitável e, de modo
algum, inocente. Enfim, é impossível manter uma relação que não seja marcada por ele (RAFFESTIN, 1993,
p. 14).
440
seja, cada conjunto de estrutura de sistema territorial é um “território produzido”, podendo
ter duas dimensões: a) dimensão tangível (constituída por estruturas de edificação e de
instrumentos de uso, de infraestrutura de comunicações e transporte, de produção, entre
outros); e b) dimensão intangível (constituída por uma estrutura de regras, valores, crenças,
representações, símbolos, memória histórica, linguagem, conhecimento, sentimentos).
441
emoções (CARLOS, 1996 apud LE BOURLEGAT, 2008).
Para Savigny apud Diniz (2012, p. 33), defensor da teoria subjetiva, a posse é
um fato que se converte em direito, porque a lei o protege. “Pela teoria subjetiva é
inadmissível a posse por outrem, porque não podemos ter, para terceiro, a coisa com o
desejo de que seja nossa, pois se não há vontade de ter a coisa como própria, haverá apenas
detenção” (DAIBERT, 1979, p. 31 apud DINIZ, 2012, p. 35).
158 Tuan (1980) apud Le Bourlegat (2008) denominou “topofilia” ao elo afetivo estabelecido entre a pessoa e o
lugar físico de existência que teria origem na maneira como o ser humano percebe e estrutura seu mundo.
159 A teoria de Niebuhr defende a tese de que a posse surgiu com a repartição de terras conquistadas pelos
romanos. Terras essas que eram loteadas, sendo uma parte dos lotes – denominada possessiones – cedida a
título precário aos cidadãos e outra destinada à construção de novas cidades. Como os beneficiários não eram
proprietários dessas terras, não podiam lançar mão da ação reivindicatória para defendê-las das invasões. Daí
o aparecimento de um processo especial, ou seja, do interdito possessório, destinado a proteger juridicamente
aquele estado de fato. “Já a teoria aceita por Ihering explica o surgimento da posse na medida arbitrária
tomada pelo pretor, que, devido a atritos eclodidos na fase inicial das ações reivindicatórias, outorgava,
discricionariamente, a qualquer dos litigantes, a guarda ou a detenção da coisa litigiosa. Todavia, essa situação
provisória foi-se consolidando em virtude da inércia das partes; como conseqüência disso aquele que tivesse
sido contemplado com a medida provisória, determinada pelo pretor, passava a não ter mais qualquer
interesse no prosseguimento da ação reivindicatória, uma vez que sua situação praticamente já lhe assegurava
o domínio. A parte contrária, ante a posição inferior a que ficara relegada, interessava-se também pela
pretensão de ver decidida a reivindicatória, pois a situação de fato declarada em favor do antagonista por si só
já contornava praticamente inoperante quaisquer meios de prova a seu favor” (DINIZ, 2012, p. 31-32).
442
Diniz (2012, p.35) aponta as linhas gerais da teoria subjetiva de Savigny:
a. A posse só se configura pela união de corpus e animus;
b. A posse é o poder imediato de dispor fisicamente do bem, com o
animus rem sibi habendi, defendendo-a contra agressões de terceiros;
c. A mera detenção não possibilita invocar os interditos
possessórios, devido à ausência do animus domini.
A posse indígena não pode ser tratada da mesma forma que a posse regulada
pelo direito civil brasileiro, isso porque sua previsão decorre de comando constitucional.
“Para o Direito Civil, a posse é uma relação material com a res(coisa), na medida em que
seu titular guarda e age como senhor do bem” (FREITAS JÚNIOR, 2007, p. 310). Por sua
vez a posse indígena é anterior a qualquer outra relação jurídica. Esse é o debate travado na
jurisprudência dos tribunais e que tem ganhado força, visto que a posse indígena não pode
ter sua proteção confundida meramente com a posse civil ou ocupação geral.
Art. 231, §1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por
ele habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, às imprescindíveis a preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e
444
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Segundo Freitas Júnior (2007, p. 313), a terra objeto dessa posse é aquela
tradicionalmente ocupada pelos índios. “Aqui não se está diante de um conceito
meramente de tempo, mas da busca de um elemento cultural na forma de a tribo se
relacionar com seu quinhão”.
160 A demarcação de terras indígenas é, pela sua própria natureza, um processo administrativo. O
procedimento, disciplinado pelo Decreto nº 1.775/96, envolve a elaboração de estudo antropológico de
identificação de comunidade indígena (art. 2º), bem como a realização de estudos de natureza etno-histórica,
sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, além de levantamento fundiário (art. 2º, §§ 1º e 2º). Ele
demanda a prática de atos administrativos pela FUNAI, Ministério da Justiça e Presidência da República (arts.
1º, 2º, § 10,º e 5º) e conta com a participação dos grupos indígenas envolvidos em todas as suas fases (art. 1º,
§ 3º). Todo o procedimento se desenvolve sob o signo do contraditório, permitindo-se a ampla participação
de todos os interessados, inclusive Estados e municípios (art. 2º, § 8º). “O procedimento de demarcação
objetiva, em síntese, concretizar o direito às terras indígenas, previsto no art. 231 da Constituição. As
atividades desenvolvidas e as decisões adotadas no procedimento são de natureza estritamente técnica,
voltando-se a aferir a caracterização da hipótese descrita no § 1º do art. 231, da Carta, e a extrair daí as
conseqüências pertinentes, que consistem na demarcação e registro da área indígena, na eventual extrusão de
ocupantes não indígenas da área, e no pagamento aos mesmos das indenizações competentes, quando
cabíveis. São, portando, ações materiais e decisões de índole técnica, que, pela sua própria natureza, têm
natureza administrativa” (SARMENTO, 2013, p. 30).
445
O Artigo 231 da Constituição Federal (1988) reconheceu aos índios o direito
originário às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcar esses
territórios – o artigo em questão impôs prazo de cinco anos para que todas as terras fossem
demarcadas, a contar da data da promulgação da Constituição em 1988. O prazo estipulado
venceu em 1993 e até o momento poucas foram as terras Guarani e Kaiowá demarcadas e
com relação aos territórios Terena, Ofaié e Kinikinau, nenhuma terra foi de fato
demarcada.
447
Ação Cível Originária Guarani Taquara Estado de Mato Grosso do Sul interpôs AgRg
n. 1606 Kaiowá em
29/4/2013 STF requisitou os autos do AI 15600-
90.2010.4.03.0000 do TRF3.
Ação Cível Originária Terena Cachoeirinha TRF3 encaminhou os autos do AI interposto pela
n. 1684 FUNAI na Ação
Ordinária nº 2009.60.00.002962-4 em
08/2/2013.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça – CNJ, com adaptações feitas pelo autor.
Quadro: Terras indígenas cujos processos demarcatórios encontram-se paralisados por decisões
judiciais no Mato Grosso do Sul.
449
custo, as obras de infraesturura a área de transporte e geração de energia, tais como,
rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, usinas hidroelétricas, linhas de transmissão, dentre
outras (BUZZATO, 2013)161.
161 Buzzato (2013) aponta como estratégias adotadas pelos setores anti-indígena três ações centrais: O
primeiro é o de inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas que continuam
usurpadas, na posse de não índios. Este objetivo também se aplica no caso da titulação de terras quilombolas,
na desapropriação de terras para a reforma agrária, na criação de novas unidades de preservação ambiental e
no reconhecimento do direito fundiário de outras populações tradicionais do Brasil; o segundo grande
objetivo é o de reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados; o terceiro
objetivo é o de invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas
pelos povos indígenas, pelos quilombolas, por outros grupos tradicionais, pelos camponeses. Para concretizar
estes objetivos, declararam guerra e buscam desconstruir os direitos historicamente conquistados pelos
povos. De maneira particular, no que tange aos direitos dos povos indígenas, os setores anti-indígenas vêm
fazendo uso de diferentes instrumentos político-administrativos, judiciais e legislativos para cada um dos
objetivos acima mencionados.
450
Total 1.045
Fonte: Assessoria Jurídica - CIMI
Segundo a entidade indigenista, pouco mais de um terço do total das terras foi
totalmente regularizado: 361 (34%) até o final de 2012. As categorias reservadas, dominiais
e com restrição somam 46 (4%). Outras terras cerca de 293, ou seja, 28% estão em alguma
fase de regularização ou mesmo com o processo demarcatório paralisado. As demais terras
cerca de 339 (32%) estão sem providência. As 644 terras aguardam o início ou a finalização
do procedimento de demarcação. Observa-se que em todos os casos as autoridades
responsáveis não têm cumprido os prazos estabelecidos pelo Decreto n° 1.775/96, que
regulamenta a demarcação das terras, atribuição da FUNAI e do Ministério da Justiça
(CIMI, 2013).
451
Quadros esquemáticos
452
Superior Tribunal de Justiça – STJ)
⇒ Reconhecimento formal dos limites da terra tradicionalmente ocupada que
está sendo demarcada.
6.ª - Se entender que os autos encontram-se bem fundamentados, se não houver contestação ou se
DECLARAÇÃO tiver julgado improcedente a contestação, o Ministro da Justiça baixa Portaria Declaratória da
DE ocupação tradicional indígena. A Portaria é publicada no DOU. Indica a superfície aproximada
OCUPAÇÃO em hectares, perímetro aproximado em quilômetros e as coordenadas geográficas dos limites
(Prazo anterior) da área. Por último, determina que a mesma seja submetida a demarcação administrativa pela
Funai. Em alguns casos o Ministro inclui um ítem proibindo o ingresso, trânsito e permanência
de não-indígenas no local, interditando-o. Em várias ações de Mandado de Segurança, o STJ
anulou estas interdições, entendendo que são ilegais, mesmo se previstas em Decreto.
(OBS: as Portarias Declaratórias do Ministro da Justiça podem ser contestadas em Ações
perante o STJ)
⇒ Fixação de marcos nos limites determinados pela Portaria Declaratória.
7.ª - Fase também chamada de “Demarcação Física”, pois é quando são abertas as picadas e fixados
DEMARCAÇÃO os marcos. O trabalho é feito por empresa especializada, contratada pela Funai mediante
ADMINISTRATIV licitação. Também pode ser efetuado pelos próprios índios (“autodemarcação”), através de
A convênio com o órgão. Nesta fase são necessários recursos financeiros, em maior ou menor
(Sem prazo) volume a depender do tamanho da área e das características geográficas dos limites onde os
marcos devem ser colocados.
⇒ Aprovação final da demarcação pelo chefe do Executivo Federal.
8.ª- É feita através de Decreto do Presidente da República, após a realização dos trabalhos de
HOMOLOGAÇÃO demarcação administrativa. A homologação é publicada no DOU. O Decreto 1.775/96 não
(Sem prazo) prevê prazo para o Presidente da República efetuar a homologação de demarcação.
(OBS: os atos de homologação de demarcação podem ser contestados em Ações perante o
Supremo Tribunal Federal – STF)
9.ª - Publicado o Decreto de homologação, a Funai tem 30 dias para requerer o registro da área,
REGISTRO como terra de ocupação tradicional indígena e bem da União, no Registro Notarial de Imóveis
(Prazo: 30 dias) da Comarca respectiva, e na Secretaria do Patrimônio da União.
Fonte: ELOY AMADO, 2014
453
CF/88, art. 201: “Os planos de previdência social, Lei 6001/73, art. 14: “ Não haverá
mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: I – discriminação entre trabalhadores
cobertura de eventos de doença, invalidez, morte, indígenas e os demais trabalhadores,
incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e aplicando-se-lhes todos os direitos e
reclusão; II – ajuda à manutenção dos dependentes dos garantias das leis ... de previdência
segurados de baixa renda; III – proteção à maternidade, social”
especialmente à gestante; IV- proteção ao trabalhador em ⇒ Os mesmos direitos e
PREVIDÊNCIA situação de desemprego involuntário; V – pensão por garantias.
SOCIAL morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou
companheiro e dependentes,...§ 1.º qualquer pessoa CONCLUSÃO: Os direitos
poderá participar dos benefícios da previdência social, previdenciários estendem-se aos
mediante contribuição na forma dos planos trabalhadores indígenas, da mesma
previdenciários.” forma que aos demais trabalhadores.
⇒ Exige Contribuição do Beneficiário.
⇒ Comprovação da atividade e Recolhimento das
contribuições.
-Obrigatoriamente: Para Empregados (urbano ou rural;
urbano temporário; doméstico); Empresários;
Trabalhadores Autônomos; Equiparados a trabalhador
autônomo; Trabalho Avulso e Segurado Especial
(pequeno produtor, parceiro, meeiro e arrendatário rurais;
pescador artesanal e assemelhados.)
- Especificidade Rural: Portar Carteira de Identificação e
Contribuição, emitida pelo INSS (Lei 8212/94, art. 12, §
3.º, conforme redação dada pela Lei 8870/94. Exigência a
partir de 16/04/94, pela Lei n.º 8.213/91, art. 106,
conforme redação dada pela Lei 9063/95); Comprovação
do tempo de serviço rural e contribuição.
- Prestações Devidas ao Segurado: Aposentadoria ( por
motivo de invalidez, idade, tempo de serviço, especial);
Auxílio-doença; Auxílio-acidente; Salário-família; Salário-
maternidade.
- Prestações Devidas aos Dependentes: Pensão por morte;
Auxílio-reclusão.
CF/88, art. 203: “A assistência social será prestada a Lei 6001/73, art. 2.º: “Cumpre à
quem dela necessitar, independentemente de União, aos Estados e aos Municípios,
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a bem como aos órgãos das respectivas
proteção à família, à maternidade, à infância, à administrações indiretas, nos limites
adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e de sua competência, para a proteção
adolescentes carentes; III – a promoção da integração no das comunidades indígenas e a
mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das preservação dos seus direitos: I –
ASSISTÊNCIA pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua estender aos índios os benefícios da
SOCIAL: integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário legislação comum, sempre que
mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de possível a sua aplicação; II – prestar
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios assistência aos índios e às
de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por comunidades indígenas ...”
sua família, conforme dispuser a lei.”
⇒ Não Exige Contribuição do Beneficiário. CONCLUSÃO: Os direitos de
A) Benefícios de Prestação continuada: mensal: p/ assistência social estendem-se aos
portadores de deficiência incapacitante p/ o trabalho e índios que dela necessitarem,
carentes a partir de 65 anos. conforme o previsto na CF/88.
B) Benefícios eventuais: Auxílio Natalidade e Auxílio
Funeral: - Para famílias com renda mensal, por pessoa,
inferior a ¼ do salário mínimo.
- Regulamentação de critérios e prazos: Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS);
- Regulamentação de deferimento e valor do benefício:
Conselhos de Assistência Social dos Municípios, Estados e
DF.
- Quem efetua o pagamento: Município (com recursos do
município e do estado).
CF/88, art. 14, §3.º: São condições de elegibilidade, na Lei 6001/73, art. 5.º:“Aplicam-se aos
forma da lei:I – a nacionalidade brasileira; II – o pleno índios ou silvícolas as normas dos
exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; artigos .... da Constituição Federal,
IV – o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação relativas à nacionalidade e cidadania.
partidária; IV – a idade mínima de: a) trinta e cinco anos Parágrafo único. O exercício dos
ELEITORAL: para Presidente, Vice-Presidente da República e Senador; direitos ... políticos pelo índio
454
Elegibilidade. b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de depende da verificação das condições
estado e do Distrito Federal;c) vinte e um anos para especiais estabelecidas nesta Lei e na
Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, legislação pertinente.”
prefeito, Vice-Prefeito e Juiz de Paz; d) dezoito anos para ⇒ Aplicação normas
Vereador. § 4.º. São inelegíveis os inalistáveis e os constitucionais s/ nacionalidade e
analfabetos.” cidadania; Exercício direitos civis e
Lei n.º 4737/65 (Código Eleitoral). políticos: Verificação condições
⇒ Nacionalidade brasileira; Pleno exercício dos especiais no Estatuto e legislação
direitos políticos; Alistamento eleitoral; Domicílio pertinente; preenchimento dos
eleitoral na circunscrição; Filiação partidária; Idades requisitos.
mínimas para os cargos respectivos; Alfabetização. CONCLUSÃO: Os indígenas são
também elegíveis, quando preenchem
as condições de elegibilidade previstas
na CF.
CF/88, art. 5.º, II – ninguém será obrigado a fazer ou CF/88: art. 231. São reconhecidos
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;(...) aos índios sua organização social...
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo Art. 232. Os índios são partes
de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele legítimas para ingressar em juízo em
entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.” defesa de seus direitos e interesses ...
Dec. n.º 637/92, art.19. São condições gerais para Lei 6001/73:“ Art. 8.º. São nulos os
VIAGENS AO obtenção do passaporte comum: I - ser brasileiro; II - atos praticados entre o índio não-
EXTERIOR declarar, sob as penas de lei; (...) c) que está em dia com as integrado e qualquer pessoa estranha à
obrigações eleitorais e militares, quando for o caso; (...). comunidade indígena, quando não
III - apresentar cédula de identidade ou, na sua falta, tenha havido assistência do órgão
certidão de nascimento ou de casamento. IV - comprovar tutelar competente. Parágrafo único.
o recolhimento de taxas de emolumentos devidos. § 1º(...). Não se aplica a regra deste artigo no
§ 2º Quando se tratar de menor de 18 anos, não caso em que o índio revele consciência
emancipado, será exigida autorização dos pais ou do e conhecimento do ato praticado,
responsável legal, ou do juiz competente. § 3º Salvo nos desde que não lhe seja prejudicial, e da
casos de justificadas razões, nenhum outro documento extensão de seus efeitos.”
poderá ser exigido. Art. 20. O pedido de passaporte CONCLUSÃO: A CF/88 abole a
comum deverá ser feito em formulário específico,(...), perspectiva da incorporação, assentada
assinado pelo próprio interessado ou, sendo este absoluta na idéia da capacidade reduzida do
ou relativamente incapaz, pelo seu representante legal, e índio p/ o exercício dos direitos civis
entregue ou remetido ao órgão expedidor, acompanhado e confere-lhe capacidade para a defesa
dos documentos exigidos, os quais, após conferidos, serão judicial de seus direitos e interesses.
restituídos ao titular. § 1º Quando o solicitante não puder Mesmo que assim não fosse, se
ou não souber ler e escrever, o formulário relativo ao aplicaria a regra do parágrafo único do
pedido será assinado a rogo. art. 8.º da lei 6001, pela qual têm valor
Lei n.º 4737/65 (Código Eleitoral) exige quitação com as os atos praticados com consciência e
obrigações eleitorais (art. 7.º, § 1.º, V). conhecimento, desde que não seja
Lei n.º 4375/64 (Lei do Serviço Militar) exige se estar em prejudicial ao índio. Assim, é
dia com as obrigações militares (art. 74, “a”). desnecess. intervenção da Funai.
⇒ ser brasileiro; c. de identid. ou cert. de nasc. ou
casam.; - de 18 anos, não emancipado: autoriz. pais
ou responsável legal, ou juiz.
CF/88, art. 37, “I – os cargos, empregos e funções Lei 6001/73, art. 1.º, § único: “Aos
ACESSO A públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os índios e às comunidades indígenas se
CARGO, requisitos estabelecidos em lei*; assim como aos estende a proteção das leis do país,
EMPREGO E estrangeiros, na forma da lei; II – a investidura em cargo nos mesmos termos em que se
FUNÇÃO ou emprego público depende de aprovação prévia em aplicam aos demais brasileiros,
PÚBLICA: concurso público de provas ou de provas e títulos, de resguardados os usos, costumes e
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou tradições indígenas, bem como as
emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as condições peculiares reconhecidas
nomeações para cargo em comissão declarado em lei de nesta Lei.” art. 5.º. “Aplicam-se aos
livre nomeação e exoneração; (...)”(de acordo com redação índios ou silvícolas as normas dos
da EMC n.º19/98, art. 3..º.) artigos .... da Constituição Federal,
* Lei n.º 8.730/93 - Estabelece a obrigatoriedade da relativas à nacionalidade e cidadania.
declaração de bens e rendas para: Presidente e Vice- (...).”
Presidente da República;Ministros de Estado; membros do CONCLUSÃO: Aplicam-se aos
Congresso Nacional; membros da Magistratura Federal; índios que pretendam o acesso a este
do Ministério Público da União; e todos quantos exerçam tipo de atividade, as regras específicas
cargos eletivos e cargos, empregos ou funções de que se aplicam aos demais brasileiros.
confiança, na administração direta, indireta e fundacional,
de qualquer dos Poderes da União.
Lei n.º 4737/65 (Código Eleitoral) exige quitação com as
obrigações eleitorais (art. 7.º, § 1.º, I).
455
Lei n.º 4375/64 (Lei do Serviço Militar) exige estar em dia
com as obrigações militares (art. 74, “ f ”).
CF/88, art. 14, “§ 1.º. O alistamento eleitoral e o voto são
CF/88, art. 231: “São reconhecidos
: I – obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II –aos índios sua organização social,
facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de costumes, línguas, crenças e
setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de tradições, (...) competindo à União
dezoito anos. § 2.º Não podem alistar-se como eleitores os
..., proteger e fazer respeitar todos os
estrangeiros e, durante o período do serviço militar seus bens.”
obrigatório, os conscritos.” Lei 6001/73, art. 5.º:“Aplicam-se aos
ELEITORAIS: Lei n.º 4737/65 (Código Eleitoral). índios ou silvícolas as normas dos
Alistamento e ⇒ Obrigatório: + de 18 anos. artigos .... da Constituição Federal,
voto. ⇒ Facultativo: Analfabetos; entre 16 e 18 anos; + relativas à nacionalidade e cidadania.
de 70 anos. Parágrafo único. O exercício dos
⇒ Inalistáveis: estrangeiros; conscritos. direitos ... políticos pelo índio
depende da verificação das condições
especiais estabelecidas nesta Lei e na
legislação pertinente.”
⇒ Aplicação das normas
constitucionais relativas à
nacionalidade e cidadania.
⇒ Exercício dos direitos civis e
políticos: verificação de
condições especiais no Estatuto e
na legislação pertinente.
CONCLUSÃO: 1) Os índios são
alistáveis (podem tirar o título de
eleitor) pois possuem nacionalidade
brasileira. 2) O alistamento eleitoral e
o voto facultativo estendem-se
automaticamente aos que não
possuem alfabetização em língua
portuguesa, aos que estão entre 16 e
18 anos e aos acima de 70 anos. 3)
Para os que são alfabetizados em
língua portuguesa e possuem entre 18
e 70 anos, o alistamento eleitoral e o
voto também não são obrigatórios,
pois devem ser respeitados a
organização social, os costumes e
tradições do povo ou comunidade.
Portanto, em termos gerais o
alistamento eleitoral e o voto são
facultativos para os indígenas.
CF/88 art. 143. “O serviço militar é obrigatório nos CF/88, art. 231: “São reconhecidos
SERVIÇO termos da lei*. (...). § 2.º As mulheres e os eclesiásticos aos índios sua organização social,
MILITAR ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de costumes, línguas, crenças e
OBRIGATÓRIO paz, sujeitos porém a outros encargos que a lei ** lhes tradições, (...) competindo à União
atribuir. “ ..., proteger e fazer respeitar todos os
* Lei n.º 4375/64 (Lei do Serviço Militar), regulamentada seus bens.”
pelo Decreto n.º 57.654/66. Lei 6001/73. art. 1.º, Parágrafo único.
** Lei n.º 8.239/91. Aos índios e às comunidades
⇒ Obrigatório: sexo masculino: 19 anos; indígenas se estende a proteção das
⇒ Isentos: mulheres e eclesiásticos em tempo de leis do país, nos mesmos termos em
paz; que se aplicam aos demais brasileiros,
resguardados os usos, costumes e
tradições indígenas, ... . art.
5.º:“Aplicam-se aos índios ou
silvícolas as normas dos artigos .... da
Constituição Federal, relativas à
nacionalidade e cidadania.
Convenção 107 da OIT. Art. 7.º 1.
Ao serem definidos os direitos e as
obrigações das populações
interessadas, será preciso levar-se em
conta seu direito costumeiro.
CONCLUSÃO: Para os índios não se
estende a regra do serviço Militar
456
obrigatório em razão da idade. Há
também que considerar o respeito à
organização social, costumes, crenças
e tradições do Povo ou Comunidade.
Para os indígenas o alistamento e o
Serviço Militar são facultativos.
Fonte: ELOY AMADO, 2014
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Malheiros, 2004.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos Povos Indígenas para o
Direito. Curitiba: Juruá, 1998.
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OS AUTORES
1. ADIR CASARO NASCIMENTO
Doutorado em Educação (UNESP). Professora da Pós-Graduação em Educação
(mestrado e doutorado) da UCDB. Coordenadora do Observatório da Educação/Edital
049/2012- Projeto: Formação de professores indígenas Kaiowá e Guarani em MS: relações
entre territorialidade, processos próprios de aprendizagem e educação escolar. Lider do
grupo de pesquisa Interculturalidade e Educação (UCDB). E-mail: adir@ucdb.br
2. ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul com Doutorado em
Antropologia pela Universidade de Salamanca. Professor da Pós-Graduação em Direitos
Humanos da UFMS e das Pós-graduações em Antropologia (UFGD) e de Educação
(UCDB). E-mail: hilarioaguilera@gmail.com
3. CARLOS MAGNO NAGLIS VIEIRA
Doutorado em Educação (2015) pela Universidade Católica Dom Bosco/UCDB. Professor
do Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado e Doutorado da Universidade
Católica Dom Bosco e nos cursos de graduação e pós-graduação (especialização). Atual
coordenador institucional do PIBID/UCDB. E-mail: cmhist@hotmail.com
4. ILDA DE SOUSA
Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP / IEL,
2008). Tem atuado na formação de professores Indígenas, nas disciplinas leitura e
produção de texto, Fonologia, Morfologia e Prática de Ensino (Estágio). Foi professora
convidada na Universidade Nacional de Timor Leste em 2012. Foi bolsista da CAPES no
PQLP em Timor Leste 2014-2015. E-MAIL: Silda.souza.msi@gmail.com
5. JOSÉ HENRIQUE PRADO
Mestrado em Antropologia (Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD).
Professor de Antropologia no curso de Direito da UFMS. Supervisor da Ação Saberes
Indígenas na Escola e da Especialização “Antropologia e História dos Povos Indígenas”.
E-mail: prado.jhenrique@gmail.com
6. LEVI MARQUES PEREIRA
Doutorado em Ciências (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2004), pós-
doutorado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2009) e pós-
doutorado em Antropologia Social pela USP (2016). Atualmente é associado na
Universidade Federal da Grande Dourados, onde leciona na Faculdade Intercultural
Indígena (Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu, desde 2006, e participa dos
programas de pós-graduação em Antropologia e História. Coordena o Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Sociocultural. E-mail: levipereira@ufgd.edu.br
7. LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO
Doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional – UFRJ; Mestrado em
Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidades - UCDB (2013). Membro da
COMISSÃO ESPECIAL PARA DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS
INDÍGENAS do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. E-mail:
adv.luizeloy@gmail.com
8. ROGÉRIO VICENTE FERREIRA
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Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2005), pós-doutor
pela Universidade de São Paulo (2013) e, desde 2012, é pesquisador colaborador no
Instituto de Estudos da Linguagem - IEL, departamento de Linguística, na Universidade
Estadual de Campinas. Atualmente é professor Associado I na Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS). Durante 3 anos participou em projeto de ensino de
Linguística a falantes nativos de Guiné-Bissau. E-mail: rogmatis@gmail.com
9. SUSANA MARTELLETI GRILLO GUIMARÃES
Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (UNB), com vasta experiência
profissional na temática da Educação Escolar Indígena. Atualmente compõe equipe da
Coordenação Geral da Educação Escolar Indígena da SECADI/MEC. E-mail:
susana.guimaraes@mec.gov.br
10. VALÉRIA APARECIDA MENDONÇA DE OLIVEIRA CALDERONI
Doutorado em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco- UCDB (2012- 2016).
Membro do Projeto Observatório da Educação Indígena desde 2012. Pesquisadora do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações étnico-raciais e Formação de
professores GEPRAFE/UFGD; membro do grupo de pesquisa Interculturalidade e
Educação (UCDB). Supervisora Escolar, hoje atuando como diretora de uma escola da
rede estadual de educação do Mato Grosso do Sul/ SED/MS. E-mail:
lela_13613@yahoo.com.br
11. VANDERLEIA PAES LEITE MUSSI
Doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -
UNESP -campus de Assis/SP (2006). Coordenadora do curso de História, Coordenadora
do PIBID e Professora Adjunto II na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-
UFMS/ CCHS. E-mail: vanderleia.mussi@ufms.br
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