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A dialética da Indústria Cultural em Adorno

Prof. Bajonas Teixeira de Brito Junior

Theodro W. Adorno, nascido em 1903, era mais jovem que Walter Benjamin
onze anos e foi fortemente influenciado por ele. Chegou a dizer que seu
trabalho era o de traduzir Benjamin para a linguagem acadêmica alemã. Isso é
importante porque, como já fizemos um percurso no pensamento de Walter
Benjamin, esses passos preliminares nos ajudarão a compreender melhor
Adorno. Na discussão a seguir, enfatizaremos algumas aproximações e
contrastes entre os dois pensadores, em particular na perspectiva dos temas
da reprodução técnica, da diferença entre a nova cultura e a obra de arte
tradicional, da relação de sociedade e indústria cultural e do significado da arte
para a transformação social.

Um aspecto que merece destaque é o da época e do lugar do exercício do


pensamento, no que diferem os dois autores: Benjamin viveu toda a vida na
Europa, enquanto Adorno foi obrigado a emigrar para os Estados Unidos
devido à perseguição nazista. Essa mudança, permitiu que experimentasse de
perto o imenso aparato da cultura como diversão promovida pelo gigantismo
técnico americano. Estando, por assim dizer, no “olho do furacão”, pôde fazer
um contraste bem nítido entre o que restava da cultura tradicional europeia e a
cultura industrial americana. Isso permitiu que tirasse conclusões diferentes,
em geral menos otimistas que as de Benjamin, em relação ao significado da
cultura industrializada. Aliás, o termo “indústria cultural” foi aplicado por Adorno
para deslocar o emprego de “cultura de massas”, que dá a sensação de que a
cultura passa a pertencer às massas quando, na verdade, é uma indústria que
impõe as formas de mercadorias culturais (os tipos de filme, desenhos
animados, história em quadrinho, teatro, novelas de rádio, etc.) ao público.

Outro elemento importante é que, na comparação entre Europa e Estados


Unidos, Adorno desmentiu àqueles que viam na cultura do entretenimento uma
fase infantil que seria própria da nação americana por ser ainda jovem, imatura.
Ao contrário, Adorno indica que o modo de diversão industrial criado nos EUA
2

seria a vanguarda da transformação da arte em mercadoria e que viria a se


espalhar pelo mundo. Um aspecto essencial da arte que se torna mercadoria é
o da finalidade: a que fins ela serve? Adorno aqui separa dos períodos
distintos. Um em que a arte servia a fins diferentes daquele do próprio artista ―
quando trabalhava para a Igreja ou as cortes, fazendo pintura, música,
arquitetura ou outra arte qualquer para fins religiosos ou para os fins dos
príncipes e nobres. Nesse período, o artista está ao lado de outros criados e,
por isso, Adorno diz que ele era um lacaio. Isso não significa, porém, que sua
arte fosse, por isso, de menor valor. A arte servia a fins diferentes dela mesma,
ou seja, estava sujeita à heternomia.1 Diferente disso, seria a arte que só
obedeceria só aos seus próprios fins, isto é, a arte autônoma.

Posterior a esse período de submissão dos artistas aos nobres, seus mecenas,
com a burguesia tornada a força dirigente na cena política, a arte passa, de
um lado, a servir aos fins de ostentação burguesa.

Mas não se esgota nisso. Muitos artistas se negam a oferecer o que a eles
pede a burguesia e lutam pela autonomia da arte. Um exemplo são os pintores
impressionistas. Durante o período em que sua pintura não foi reconhecida
sendo antes, ao contrário, ridicularizada pelos críticos de arte, eles não
aceitaram fazer qualquer concessão em nome do ideal burguês de pintura. Os
burgueses pagavam milhões pelos quadros dos pintores da moda, quase todos
medíocres, e, sumariamente, desprezavam os impressionistas. Nem por isso,
eles deixaram de acreditar que a pintura que faziam era a que valia a pena ser
feita. Contra todas as adversidades e negativas, os impressionistas seguiram
até que, por fim, chegaram a ser reconhecidos, muitos só depois de mortos.
Essa atitude seria uma atitude da arte autônoma, que se preocupa apenas com
os seus próprios desafios. No caso da pintura impressionista, esses desafios
eram a busca dos caminhos para exprimir a luz, seja na cidade seja fora dela; a
cor e suas modulações; a vida da grande cidade; as cores que a multidão
vestia, diferente do preto e branco que era típico da indumentária burguesa, a
pele na sua vivacidade, diferente da pele pálida, que era considerada a pele de
1
Palavra formada do grego hetero: outro, e nomos: lei, fins, regras. Heteronomia
significa ser regido por leis ou fins alheios. Autonomia, ao contrário, é o ser regido por
leis próprias. Um escravo é regido pelas leis do seu senhor, estando assim sujeito à
heteronomia. Já o senhor é autônomo.
3

gente superior, que não se expunha ao sol-a-sol, ao trabalho diário e que os


pintores oficiais reproduziam em suas telas.

Esses fins visados pelos impressionistas eram autônomos, ou seja, impostos


pela própria arte e procurados pelos próprios artistas. Muito diverso disso,
seria, por exemplo, um pintor aceitar fazer por encomenda o retrato de um rico
negociante burguês, colocando na tela as cores, a luminosidade, ou a
composição solicitadas pelo comprador. Nesse caso, estaríamos diante da
heteronomia, ou seja, de uma administração da arte, uma imposição de fora
das regras. Autonomia e heteronomia são oposições muito importantes para o
pensamento adorniano da arte e da indústria cultural. Na atualidade, com a arte
subordinada ao mercado e ao desejo de diversão, a arte estaria retornando a
um período de heteronomia. O artista seguiria não os próprios desafios da obra
de arte mas, antes, aos interesses da indústria cultural na sua busca de investir
nos “efeitos” que de fato “funcionam”. Se uma piada funciona numa ocasião,
alguém tenderá a repeti-la em outras. Isso é normal. Do mesmo modo, se um
tipo de música, de enredo, de peripécia, funciona num filme, ou seja, se agrada
o espectador, a tendência é que outros filmes repitam o mesmo, como uma
fórmula. Então, pouco importa o contexto em que o “efeito” apareça, ele será
inserido já que agrada.

Assim, por exemplo, o film noir trazia quase sempre um mulher fatal, um trama
misteriosa, uma ambientação noturna, e diversos outros traços típicos. Existem
certamente bons filmes dessa linha, mas muitos, a maioria, apenas aplicam as
formulas em busca do efeito. O que importa é se o público é capturado pela
proposta, se o efeito funciona. Isso se nota pela bilheteria, ou seja, por quanto
vendeu. Portanto, o índice da qualidade artística está na quantidade, na
expressão que mostra se o filme foi comprado ou não, isto é, se tornou-se
mercadoria bem paga. Ao ser regido por essa lógica, o filme entra numa
dinâmica de heteronomia, porque a sua produção e direção está sendo
regulada por regras externas à arte, regras que são da mercadoria (lucro,
venda, procura, oferta e outras).

No período clássico burguês, mais particularmente de fins do século XVIII e


durante o século XIX na Europa, a arte autônoma buscava obedecer apenas às
4

suas próprias regras. Guardava para si a designação de “arte séria”, ou seja,


grande arte, em oposição àquela que os artistas menores praticariam nos
cafés, cabarés, nas feiras, etc., que era chamada de “arte leve”. Enquanto a
primeira estava voltada para um mundo ideal, diferente do mundo empírico e
mais perfeito do que ele, para onde os apreciadores já seriam transportados
(quando iam aos concertos, às óperas, ao teatro, aos museus), a arte leve (dos
músicos dos cafés, dos cantores e das dançarinas dos cabarés, etc.) estaria
regida pela heteronomia, já que está arte de segunda classe seria regida por
um fim exterior: a diversão. Assim, teríamos a arte séria, de um lado, e a arte
destinada à diversão, de outro. Uma voltada para autonomia e para o
sentimento de superioridade em relação à vida cotidiana e, o outro, para a
mera diversão sem conteúdo. Adorno dá maior complexidade a essa dualidade
simplificada.

A autonomia da arte é relacionada por ele ao período de ascensão da


burguesia ao poder, que faz surgir o indivíduo que é livre como sujeito.
Anteriormente, as pessoas estavam presas às conexões sociais específicas,
como as linhagens da nobreza, às corporações de ofício, às profissões
familiares. O filho de um músico, por exemplo, estaria quase fatalmente
destinado a ser músico (como os filhos de Bach, por exemplo). Só a burguesia
cria um mundo em que o indivíduo não está destinado, mesmo antes de
nascer, a desempenhar um papel já prescrito. Nessa sociedade, o indivíduo
pode experimentar, portanto, um pouco de liberdade, ainda que bem limitada.
É nessa nova experiência social, que a arte erudita reivindicará uma
autonomia. Antes disso, a arte estava muito mais “colada” a via social:

“Antes da emancipação do sujeito, a arte era incontestavelmente e,


em certo sentido, algo de mais imediatamente social do que nas
épocas ulteriores. A sua autonomia, emancipação relativamente à
sociedade, foi função da consciência burguesa da liberdade que, por
seu turno, estava muito ligada à estrutura social.2

2
Cf., Adorno, T., Teoria estética, p.253. Trad. A. Mourão, Lisboa : Martins Fontes,
1988, p.253.
5

As duas frases que formam essa passagem devem ser bem entendidas para
que possamos decifrar o que está dito. A primeira frase diz que antes da
emancipação a arte era mais imediatamente social. O que isso significa?
Significa que a arte cumpria funções sociais e estava subordinada a essas
funções e aos responsáveis por ela. Os pintores religiosos, por exemplo,
trabalhavam para as igrejas, os conventos, as autoridades religiosas, que
encomendavam obras com temas determinados para certas ocasiões, como,
por exemplo, o funeral de um papa. Os pintores militares, acompanhavam os
exércitos e pintavam cenas de batalhas. Os músicos compunham para as
missas, as celebrações, ou tocavam nas festas da nobreza ou da igreja. Mas
existem casos mais curiosos. As bailarinas do Balé Imperial russo ― que eram
formadas desde uma idade bem precoce, na Imperial Escola de Balé em São
Petersburgo ― tinham “como principal função agradar à corte e fornecer
amantes aos grão-duques.”3 Ela diz o motivo pelo qual essas segunda função
era dada às bailarinas:

As moças eram ao mesmo tempo de origem respeitável e


excitantemente demi-mondaine; eram também limpas, pois tinham a
saúde constantemente fiscalizada, o que era importante numa
cidade em que mais da metade dos anúncios classificados nos
jornais ofereciam tratamento para doenças venéreas.4

Essa passagem mostra, ao mesmo tempo, a função das bailarinas e a função


dos jornais. Como vimos anteriormente, uma função dos jornais na
comunicação de massa é a de produzir alertas e indicar cuidados. É bastante
interessante notar que esse controle de “doenças venéreas” exercido sobre as
bailarinas, será também realizado com as atrizes durante longo período. E
motivo, sem dúvida, é o mesmo: a métier artístico das atrizes envolvia também
o servirem de amantes para os membros das classes dominantes. Os
romances do século XIX da França mostram exaustivamente como burgueses

3
Carter, M., Os três imperadores, 2013, p. 138.
4
Idem. 138-139.
6

e nobres adquiriam amantes atrizes.5 E essas, ainda no século XX, eram


obrigadas a fazerem exames periódicos.

A autonomia da arte no século XIX e XX, deve bastante ao surgimento de


artistas relativamente libertos de subordinação à príncipes, bispos, nobres, etc.,
e, portanto, tendo como última fronteira apenas o mercado. Poderiam se
subordinar ao que pedia o mercado, e produzir para ele, ou se rebelarem
contra o mercado e buscarem a produção da obra puramente artística. Foi o
que fizeram os impressionistas, os futuristas, os cubistas e muitos outros
membros de movimentos de vanguarda. Muitos, como os impressionistas e
cubistas, rejeitados inicialmente pelo mercado, chegaram a conhecer privações
e mesmo a fome. Isso significa que a última ditadura, essa do mercado,
aparece numa época em que surgem homens capazes de fazerem de tudo
para não depender deles. São esses homens independentes que fazem uma
arte autônoma, ainda que, em última instância, queiram ser reconhecidos pelo
mercado. Mas o querem não pelas exigências do mercado mas pelas
exigências que eles mesmos impõe às suas obras.

Na emancipação desses poucos homens muito exigentes diante da sociedade


e da força do mercado, Adorno vê uma antecipação (como que um exemplo)
que incita todos os homens a se rebelarem contra o jugo das imposições
sociais. Nesse sentido a arte seria revolucionária. Ou seja, quando dá um
exemplo que serve como a antecipação de uma sociedade não mais
organizada pela ditadura da mercadoria. Na sociedade capitalista tudo existe
para ser trocado no mercado: a capacidade produtiva do homem, seu trabalho,
por salário, isto é, dinheiro, o dinheiro por mercadorias, as mercadorias por
lucro, o lucro por novos investimentos, esses por novas mercadorias e mais
lucros. Sempre uma coisa existe em razão de outra. Essa roda-viva não tem
fim. Mas quando a arte se dedica a explorar apenas as fronteiras da arte,
quando um artista aposta tudo na sua arte, quando se dedica a ela mesmo
correndo o risco de ser esmagado pela rejeição do mercado, sem fazer
concessões, isso em si é um gesto revolucionário:

5
Cf, Balzac, Ilusões Perdidas.
7

Nada existe de puro, de completamente estruturado segundo a sua


lei imanente que não exercite uma crítica sem palavras e denuncie a
degradação provocada por uma situação que evolui para a
sociedade de troca total: nela tudo existe apenas para-outra-coisa.6

Mas com isso, o que aconteceria com a arte que pretende exercer uma função
social criticando diretamente a sociedade e pedindo por mudanças, uma arte
de contestação? Adorno crê que essa arte enfraquece a arte para fortalecer a
contestação. Preocupada com o conteúdo crítico mais que com a forma
artística, isto é, o desafio de criar algo novo, terminar por enfraquecer a força
da arte. Para ser transformadora a arte não deve buscar slogans e programas
transformadores. Ela será transformadora se, aproveitando a liberdade de criar,
deixar de lado qualquer desejo de seguir um caminho imposto por outros
objetivos ― e o objetivo de mudar a sociedade, um objetivo político, não seria
um objetivo artístico.

No mundo em que vivemos, sempre há coisas para as quais a arte


se configura como o único remédio; sempre há uma contradição
entre aquilo que é e aquilo que é verdadeiro, entre arranjos para
viver e humanidade.7

Ao falar em contradição, percebemos que Adorno se refere à dialética, ou ao


método dialético, cuja visão de mundo põe em primeiro lugar no mundo a
contradição. E é do mundo que Adorno fala, pois se refere ao “mundo em que
vivemos”. Que contradições são essas entre o que é e o que é verdadeiro? É o
fato de que a vida impõe ao homem o sofrimento constantemente e a felicidade
permanece sempre um ideal que se esquiva de alcançado. Por isso afirma
Adorno que a “necessidade de dar voz ao sofrimento é uma condição de toda a
verdade”.8 A decepção amorosa, a perda de entes queridos, as frustrações e
abalos inesperados, os erros e as perseguições, as traições, os ciúmes, as
invejas, a violência e a humilhação, sempre enfim, o homem precisa da arte
como um remédio para as suas dores. A vera verdade é a expressão do

6
Teoria estética, p. 253.
7
Adorno, T., Modern music growing old, p.29. cit., por Jay, As idéias de Adorno, Trad.
Adail Ubirajara, São Paulo : Editora Universidade de São Paulo, 1988, p.142.
8
Idem, p. 142.
8

sofrimento pela arte. Esse seria o “momento positivo” da arte, isto é, a


contribuição positiva da arte para a sociedade. Matin Jay explicita bem esse
ponto ao comentar essa tese central do pensamento estético de Adorno:

Se há um momento positivo na verdade estética, ele só está


evidente nas obras que se esforçar por alcançar a mais profunda
autonomia, frente à sociedade atual, desafiando a acessibilidade e o
impacto popular imediato.9

Obras que o público tem dificuldade de entender (como o impressionismo, o


cubismo, o futurismo, o teatro de vanguarda, a música atonal, etc.) e que, por
isso rejeita, chegando mesmo a desenvolver certo ressentimento contra essa
arte, contra seu elitismo, são obras que não fazem concessões à
acessibilidade. Elas não trabalham para serem acessíveis, mas para trazerem
à tela, ao palco, ao ouvido, a verdade da arte. Se aceitassem o apelo para
serem populares, compreensíveis, estariam aceitando que é possível uma
unidade perfeita entre arte e vida presente, e a criação artística e o mundo
atual:

A recusar a aceitação da unidade entre a arte e a vida presente,


essas obras mantém a esperança de uma vida futura que imitará o
que há de mais utópico na arte. Pois só na mais extrema falta de
utilidade dessas obras, que teimosamente resistem a todas as
tentativas de instrumentalização, o presente domínio por parte da
razão instrumental é desafiado. Embora no sofrimento que
registram, essas obras reflitam o atual dilema da humanidade, sua
simples existência como expressão estética desse sofrimento aponta
para além (...).10

Esse além é uma sociedade em que estaria abolida a dominação social. É essa
dominação (da mercadoria, do mercado, da burguesia, do capital) que na
atualidade limita o horizonte e a experiência da humanidade há um fetichismo
das próprias relações humanas, como se essas fossem coisas tal como as
mercadorias. Quando se vê, ao contrário, a própria mercadoria como relação

9
Idem ibidem.
10
Op. cit., p. 142-143.
9

social, exploração da força do trabalho humano, que é quem forma cada uma
das mercadorias, então a dominação imposta pelo mundo das mercadorias é
vista como efeito de uma sociedade repressiva. Os homens são dominados
para que as mercadorias possam reinar. E o próprio homem, sua subjetividade,
seus desejos, suas formas de diversão, de entretenimento, que se tornam
mercadorias. É isso que Adorno chama de Indústria Cultural.

Apontamos já que Adorno utiliza o termo indústria cultural para distingui-lo do


da expressão cultura de massas. Esse último dá a impressão de que haverias
uma cultura das massas quando, na verdade, essa cultura é a própria
dominação sobre as massas. Aliás, é primeiramente parte de uma concepção
de cultura que é de dominação sobre a natureza. A cultura ocidental, segundo
Adorno, “não só oprime a natureza, mas conserva-a através da sua opressão;
é o que ressoa no conceito de cultura, tirado da agricultura.”11 Assim como, na
criação de animais, se castra os machos para que engordem (o que se faz com
bois, porcos, ovelhas, frangos, gansos, etc.), reprimindo-os na sua natureza
para que se tornem dóceis e produtivos para o uso humano ― touros, não são
dóceis nem facilmente manipuláveis ―, da mesma forma a sociedade
capitalista reprime para reduzir as forças naturais à forças adaptáveis ao
mercado, não importa o sofrimento que causem. Até a sociedade socialista,
obrigada a competir com a capitalista para não ser destruída por ela, continuou
o jogo da repressão da natureza. Quando ocorreu a Revolução Russa, uma
das bandeiras logo levantadas foi o da folga das operárias durante os períodos
de mestruação. Ou seja, essa foi uma medida pedida contra a dominação de
uma cultura que reprime a natureza (seguindo a linha da agricultura), herdada
do capitalismo pelo socialismo. A medida foi recusa, alegando-se que, como a
Rússia estava em guerra, não podia se dar ao luxo de dispensar mão de obra.
E isso não foi mais discutido depois.

A educação escolar, com as longas horas que se passa sentado nas salas,
depois as universidades, preparam o indivíduo para que seu corpo possa ser
usado pelo mercado de trabalho. É sempre algum tipo de repressão à natureza
e às suas forças que conformam o regime de repressão social. O outro lado da

11
Teoria Estética, p. 282.
10

repressão é a diversão. Marx afirma em um dos seus primeiros textos que a


liberdade em sentido pueril é, por exemplo, aquela do estudante que tem um
dia de aula liberado.12 Essa não é a verdadeira liberdade. A liberdade madura
seria a que os homens, autonomamente reunidos, criam as próprias leis que
vão reger a sua convivência. Uma constituição, por exemplo.

No capitalismo, a arte industrializada tende a servir ao fim de diversão, a mera


liberdade alienada, que é incapaz de compreender a verdadeira liberdade. A
indústria cultural, cada vez mais, impõe a repressão na forma da diversão. Isso
Adorno observou de perto nos EUA. Na obra Dialética do iluminismo, o ensaio
de Adorno de 1947, A Indústria Cultural ― O iluminismo como mistificação das
massas,13 elabora muitas considerações significativas sobre o fenômeno da
arte na sociedade de massa. Para fins de exposição, podemos distinguir
preliminarmente três segmentos significativos: os meios, o público e os
produtores. Os meios, ou mídias, que parecem para alguns sociólogos como
um “caos cultural”, formam na verdade um sistema bem organizado: “Filme,
rádios e semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e
todos entre si. As manifestações estéticas, mesmo a dos antagonistas políticos,
celebram da mesma forma o elogio do ritmo do aço.”14 Com a expressão
“antagonistas políticos”, Adorno quer indicar os dois polos em conflito durante o
período da Guerra Fria, que então se iniciava, os Estados Unidos e a União
Soviética. Em ambos, o mesmo ritmo frenético, o ritmo do aço, são espelhados
nas manifestações artísticas. A arquitetura, que sempre foi uma das artes mais
destacadas, ganha um contorno inteiramente funcional e racionalizado para o
uso, deixando de lado as fachadas decorativas, para obedecerem apenas à
racionalidade do uso:

Os palácios colossais que surgem por toda parte representam a pura


racionalidade sem sentido dos grandes cartéis internacionais a que
já tendia a livre iniciativa desenfreada que tem, no entanto, os seus

12
Marx, K., A liberdade de imprensa, trad. Cláudia Schilling e José Fonseca, Porto
Alegre : L&PM, 2010, p.76.
13
Utilizaremos a tradução de Júlia Levy, revista por Luis Costa Lima e Otto Maria
Carpeaux, publicado originalmente em Teoria da cultura de massa, org. Luis Costa
Lima, Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978. Utilizaremos a edição que consta da obra
Indústria Cultural e Sociedade, São Paulo : Paz e Terra, 2002.
14
Op. cit., p. 7.
11

monumentos nos sombrios edifícios circundantes ― de moradia ou


de negócios ― das cidades desoladas. Por sua vez, as casas mais
velhas em torno ao centro de cimento armado têm o aspecto de
slums (favelas), enquanto os novos bangalôs [Pensem nos típicos
motéis pré-fabricados que se vêem nos filmes americanos] às
margens das cidades catam (...) louvores ao progresso técnico,
convidando a liquidá-las, após um rápido uso, como latas de
conserva.15

Seguindo o ritmo do desenvolvimento capitalista, as técnicas de reprodução em


massa chegam à arquitetura: as habitações para os trabalhadores nas
periferias (os bangalôs) passam a ser construídos como estruturas pré-
moldadas que apenas repetem o mesmo delineamento. Essa capacidade de
reproduzir caixas, containers habitacionais, é um poder do capital que se impõe
à sociedade. Os homens são abrigados em depósitos como as mercadorias
nos containers: Os “projetos urbanísticos que deveriam perpetuar em pequenas
habitações higiênicas, o indivíduo como ser independente, submetem-no ainda
mais radicalmente à sua antítese, o poder total do capital.”16

Tudo isso é feito em nome da racionalidade. E “racional” não é definido como


os mais confortável, prazeroso, desejável, mas sim como o mais barato, mais
rápido, de mais alto retorno, de maior aproveitamento do espaço, de menor
redução de encargos, etc. Em verdade, o “mais racional” é o que serve melhor
aos objetivos do capital, nas sociedades capitalistas, e aos objetivos do
planejamento, nas sociedades socialistas. Ora, o que é uma casa
extremamente apertada, idêntica na forma à milhares de outras, encravada
numa periferia (onde os terrenos são mais baratos), próximas a uma highway
(ou uma railway, estrada de ferro), que facilita a chegada ao trabalho? É um
recipiente para estocar a força de trabalho enquanto ela descansa para, no
próximo dia, ser deslocada o mais rápido possível ao local de trabalho. Essa
dominação técnica é uma dominação política. O fato de que a técnica

15
Op. cit., p. 7-8.
16
Ver p. 8. A crise do sub prime, que envolvia basicamente empréstimo a clientes já
endividados tendo como garantia a hipoteca de suas residências, mostrou mais uma
face desse poder do capital: o poder de tomar em massa os bangalôs da massa.
12

adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos


economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A
racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é
o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena. Automóveis,
bombas e filmes mantêm o todo até que seu elemento nivelador
repercuta sobre a própria injustiça a que servia.17

Meios de transporte (automóveis), meios de destruição (bombas) e meios de


diversão (filmes) servem ao ritmo da produção, à agressão ao inimigo (as
guerras imperialistas) e ao revigoramento da força de trabalho (a diversão).
Cada um desses setores serve à racionalidade cuja forma mais visível está na
estandardização, no nivelamento e na igualização. Cada passo do progresso
parece reduzir mais a margem de liberdade deixada ao sujeito:

A passagem do telefone ao rádio dividiu de maneira justa as partes.


Aquele, liberal, deixava ainda ao usuário a condição de sujeito. Este,
democrático, torna todos os ouvintes iguais ao sujeita-los,
autoritariamente, aos idênticos programas das várias estações. Não
se desenvolveu qualquer sistema de réplica e as transmissões
privadas são mantidas na clandestinidade. Estas se limitam ao
mundo excêntrico dos amadores [rádio amadores], que, ainda por
cima, são organizados do alto. Qualquer traço de espontaneidade do
público, no âmbito do rádio oficial é guiado e absorvido, em uma
seleção de tipo especial, por caçadores de talento, competições
diante do microfone manifestações domesticadas de todo gênero.18

Com o telefone, os indivíduos ainda eram sujeitos, ou seja, ativos, porque eles
podiam escolher se atenderiam ou não, se ligavam ou não, e, em muitos casos,
como se lê em relatos sobre burgueses ricos do período entre o século XIX e
XX, época de surgimento do telefone, utilizava-se os criados para atenderem e
ficava-se assim muito mais livre. Mas com as rádios, se tem um universo
fechado de opções, com poucas variações, uma programação quase idêntica
em suas diferenças, locutores que fazem a mímica das mesmas formas de

17
Cf. p. 9.
18
Cf., p.9-10.
13

narrar, e, o pior, tudo isso é apresentado como uma ampliação das opções de
entretenimento. Essa uniformização dos mídia progride criando, do outro lado,
um público afeito a aceitar passivamente o material cultural destinado a ele,
isto é, um público massificado. Então passamos ao segundo ponto que
colocamos acima: o público.

Os consumidores são os operários e os empregados, fazendeiros e


pequenos-burgueses. A totalidade das instituições existentes os
aprisiona de corpo e alma a ponto de sem resistência sucumbirem
diante de tudo o que lhes é oferecido. E assim como a moral dos
senhores era levada [na época do feudalismo] mais a sério pelos
dominados do que pelos próprios senhores, assim também as
massas enganadas de hoje são mais submissas ao mito do sucesso
do que os próprios afortunados.19

A mesma coisa acontece na moral econômica. Embora ela seja ditada pelos
capitalistas e seus ideólogos, seus moralistas, quem a leva mais a sério são os
pequenos habitantes do planeta Capital: os pobres são os que pagam mais em
dia os seus carnês e as suas dívidas. Na indústria cultural, esse público que é
“enganado”, o é na medida em que participa desse engano com todas as suas
forças: esse público deseja a diversão que a indústria cultural promete lhe
fornecer. A diversão é uma satisfação fácil, direta e vistosa. Ela não exige
esforço para ser conquistada.

A indústria adapta-se aos desejos por ela evocados. (...) Senso


crítico e competência são banidos como presunções de quem se crê
superior aos outros, enquanto a cultura, democrática, reparte seus
privilégios entre todos. Diante da trégua ideológica, o conformismo
dos consumidores (...) adquire uma boa consciência. Ele se satisfaz
com a reprodução do sempre igual.20

O senso crítico e a competência para julgar obras de arte (seja música, pintura,
escultura, etc.), requerem estudos demorados e exercício constante dessa
habilidade. Mas se isso era normal na sociedade burguesa liberal, em que o

19
Idem, p. 26.
20
Idem p. 26-27.
14

ócio ― ao menos para os filhos da burguesia e da nobreza ― permitia o cultivo


da sensibilidade, isso desaparece com a indústria cultural. Nessa época, os
conhecedores (como o próprio Adorno) são como que fantasmas sobreviventes
de um mundo que já se desintegrou. O público, em sua maioria, vê mesmo
como ridículo e presumido qualquer um que se apresente como “especialista
em arte”. A arte de massas vende justamente a ideia de que está ao alcance
de todos, sem distinções, e que, portanto, é uma arte democrática.

Mas não é democrática, ou só o é aparentemente. No fundo, é uma cultura que


serve à dominação e a submissão dos homens a um poder superior ao deles,
seja o dos gerentes do capital seja os dos administradores socialistas. Apesar
de não ser percebido pelos consumidores, o fato é que esse público é
produzido junto com a mercadoria divertida que ele consome: “Infalivelmente,
cada manifestação particular da indústria cultural reproduz os homens como
aquilo que foi já produzido por toda a indústria cultural.”21

A produção do público para a indústria da diversão é um dos princípios da


indústria cultural. Esse mecanismo é um ajuste permanente entre o produto e o
público, pelos deuses ex machina da indústria do entretenimento: os diretores
de produção, os produtores, os criadores de programação. Esses, na época
atual, ocupam o lugar que no passado era o de Deus ― o que era a atribuído
antes à consciência de Deus, passou na arte de massas à consciência “da
terrena diretoria de produção.”22 E o que essa consciência forma no mundo?
“Não só os tipos de música, de dança, de astros e soap operas, retornam
ciclicamente como entidades invariáveis, quanto o conteúdo particular do
espetáculo, aquilo que aparentemente muda, é, por seu turno, derivado
daquele.” 23

Aqui chegamos ao conteúdo propriamente dito da indústria cultural. Esse


“conteúdo”, que está muito unido às modernas formas de reprodução que
Benjamin foi o primeiro a descobrir e analisar em profundidade. Estão ligadas
muito estreitamente à reposição do mesmo, do idêntico, do controlado e do
igual na mesa do consumidor: é fast food e junky food infinitamente

21
p. 17.
22
p. 14.
23
Idem, p. 14.
15

reproduzidos e reencarnados em formas que dizem a mesma coisa. O suporte


dessa reprodução do mesmo, Adorno chama (usando um termo da filosofia
kantiana) de esquema. O esquema forma uma mensagem subjacente que é
transmitida junto com o conteúdo das obras e confere a elas um significado
profundo, que permanece inconsciente para o consumidor. Em nossa
sociedade, esse significado é o de que tudo está submetido à pressão de
operações regulares, repetitivas. Isso é que molda a mensagem dos produtos
culturais destinados à diversão:

A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio.


Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de
trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de
enfrentá‐lo [no dia seguinte]. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização
adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre
sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos
produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as
reproduções do próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo é
só uma pálida fachada; aquilo que se imprime é a sucessão
automática de operações reguladas. Do processo de trabalho na
fábrica e no escritório só se pode fugir adequando‐se a ele mesmo
no ócio.24

Isso se percebe no fato de que o entretenimento repete a mesma rotina em


cada episódio. Pense-se nos desenhos animados, como o Papa-Léguas, e a
insana repetição incessante de violências e gags a cada episódio. As mesmas
pedras caem sobre o lobo, o Papa-Léguas repete sempre o mesmo “bip-bip”, e
tudo o mais é sempre igual. É uma repetição automática, como é automático
alguém reproduzir no trabalho todas as tarefas monótonas a cada dia. O
esquema procura usar fórmulas, clichês ou gags, que funcionam, isto é, que
despertam entusiasmo do público, e possam ser continuamente retomados: “A
breve sucessão de intervalos que se mostrou eficaz em um sucesso musical, o
vexame temporário do herói, por ele esportivamente aceito, os saudáveis tapas
que a bela recebe da mão pesada do astro, sua rudeza com a herdeira viciada

24
Idem, p. 30-31.
16

são, como todos os pormenores e clichês, salpicados aqui e ali, sendo cada
vez subordinados à finalidade que o esquema lhes atribui.” 25

A indústria cultural promove assim uma colagem de fragmentos muitas vezes


sem maior afinidade que a de se terem mostrado capazes de causar sensação
no público. Essa é “a primazia dos efeitos, da performance tangível, do
particular técnico sobre a obra, que outrora trazia a idéia26 e com essa foi
liquidada. Esse particular técnico deve ser diferenciado do particular artístico. O
particular artístico é um aspecto da obra de arte (por exemplo, a cor, na
pintura) que pode vir a ter precedência num artista ou numa escola, em relação
a outros particulares (ainda no caso da pintura: a forma, o movimento, linha,
superfície, volume, etc.). Um pintor pode dar tal precedência à cor que ela
chegue a apagar os outros elementos que formam a matéria dessa arte. Da
mesma forma, em um romance a análise psicológica pode ser tal que a
preocupação com a trama propriamente dita, o enredo, chegue a ocupar um
lugar secundário. Sobre essa imposição do particular, diz Adorno: “O particular,
ao emancipar-se, tornar-se rebelde, e se erigira, desde o Romantismo até o
Expressionismo, como expressão autônoma, como revolta contra a
organização. O simples efeito harmônico tinha cancelado na música a
consciência da tonalidade formal; na pintura, a cor particular tornou-se mais
importante que a composição do quadro; o vigor psicológico obliterou a
27
arquitetura do romance.” A novela A Metamorfose de Kafka, por exemplo, é
basicamente análise psicológica, sem enredo ou trama mais elaborada.

O particular técnico que a indústria cultural valoriza é diferente e contrário a


esse particular artístico. “A tudo isso a indústria cultural pôs fim. Só
reconhecendo os efeitos, ela despedaça a sua insubordinação e os sujeita à
fórmula que tomou o lugar da obra. Molda da mesma maneira o todo e as
partes. O todo se opõe – impiedosamente ― aos pormenores, à semelhança
da carreira de um homem de sucesso, para o qual tudo deve servir de

25
Idem, p. 14.
26
Por “Ideia” Adorno entende uma obra de arte autêntica, na qual o todo ordena cada
um dos elementos particulares. Esse é o “particular artístico”. Na indústria cultural
cada pedaço particular do produto é apenas uma colagem quase sempre desconexa.
27
Idem, p. 15.
17

ilustração e experiência, enquanto a própria carreira não passa da soma


daqueles acontecimentos idiotas.”28

Uma carreira de sucesso numa sociedade repressiva é só um remar a favor da


correnteza sem criar atritos ou indisposição com as pessoas. É a subordinação
que deve ser expressa: como disse o autor de Como fazer amigos e influenciar
pessoas, “sorria sempre”. Aquele que chegou ao topo, se for questionado sobre
sua ascensão, fará o relato retrospectivo em que poderá pintar uma caminhada
árdua. Mas isso é só um efeito da sua imaginação. Ou melhor, pode mesmo ter
sido árduo, já que manter-se subordinado, reverente e submisso não é fácil.
Mas não foi nada heroico. Do mesmo modo como uma carreira de sucesso
exige quase sempre renunciar à própria personalidade, e adaptar-se, deixar-se
levar como uma rolha de cortiça na correnteza de um rio, do mesmo modo, os
programas feitos para o público de massa são sequências mal costuradas de
trechos desconexos. O público deve se “contentar, mesmo nas produções
sérias do gênero, com o frisson de situações quase sem nexo interno.”29.

Esse estado de “quase sem nexo” não quer dizer, longe disso, que estejamos
diante de um fenômeno desorganizado, ou contrário. A arte industrial é hiper
organizada pelo esquema que, antes de tudo, busca reunir não o que faz
sentido numa trama mas, sim, o que causa efeito. A falta de nexo na intriga
significa um superconexão nos efeitos enfileirados ao longo da duração.
Causar efeito é prender o público, e prender o público é obter sucesso
comercial, ou seja, venda e lucro efetivo com a mercadoria. Por isso, os
produtores “matadores” são aqueles que melhor se saem na capacidade de
influenciar o público. Mas esse enfileirar de efeitos, gags, frissons, ruma para a
aberração e o absurdo. Um bom exemplo são os desenhos animados:

Os desenhos animados eram outrora expoentes da fantasia


contra o racionalismo. Faziam justiça aos animais e às coisas
eletrizadas pela sua técnica, pois, embora os mutilando, lhes
conferiam uma segunda vida. Agora não fazem mais que confirmar
a vitória da razão tecnológica sobre a verdade. Há alguns anos

28
Idem ibidem.
29
Idem, p. 32.
18

apresentavam ações coerentes que só se resolviam nos últimos


instantes no ritmo desenfreado das seqüências finais. O seu
desenvolvimento muito se assemelhava ao velho esquema da
slapstick comedy (comédia pastelão). Mas agora as relações de
tempo foram deslocadas. Desde a primeira seqüência do desenho
animado é anunciado o motivo da ação, com base no qual, durante o
seu curso, possa exercitar‐se a destruição: no meio dos aplausos do
público, o protagonista é atirado por todas as partes como um trapo.
Assim a quantidade de divertimento converte‐se na qualidade da
crueldade organizada.30

A violência no desenho é a grande gag, o grande efeito, que perpassa sua


produção desde os anos 40 até agora. Ele é o foco aglutinador dos diversos
momentos do desenho animados, a sua verdadeira espinha dorsal, ou seja, é o
seu esquema. O desenho animado se esquematiza numa sequencia absurda
de gestos, atos, ocorrências e interações violentas. Para se ter uma ideia de
onde isso chegou, há mais de 15 anos atrás, em outubro de 1998, o jornalista
Gilberto Dimenstein publicou na Folha de São Paulo uma matéria que
apresentava pesquisa da ONU sobre a violência nos desenhos animados
brasileiros. Vejamos:

A Organização das Nações Unidas gravou todos os dias, durante


uma semana, em agosto deste ano, os supostamente inocentes
desenhos animados transmitidos na televisão brasileira. O objetivo
era medir a quantidade de violência destilada para as crianças.
Analisados todos os desenhos de seis emissoras de canal aberto, os
pesquisadores coletaram uma montanha de 196 fitas, somando
1.667 horas. Cada cena foi catalogada, a partir de determinado tipo
de violência, envolvendo de assalto a estupro, numa investigação
acompanhada por sociólogos, juristas e educadores. Concluído na
sexta-feira passada, o levantamento detectou um total de 1.432
crimes durante aquela semana. É uma média de 20 crimes por hora

30
Idem, p. 32-33.
19

de desenho. Uma criança que assista a duas horas diárias de


desenho animado (o que já está subestimado) será exposta a 40
cenas de violência. Num mês, a estatística sobe para 1.200; num
ano, 14.400. Dos tipos de violência, está em primeiro lugar a lesão
corporal (57%) e, em segundo, o homicídio (30%).31

Não é nada além dessa fixação obstinada e total, inteiramente absorvida na


luta pela atenção do público, sem quaisquer escrúpulos quanto aos meios
empregados, que formam a linha mestra da indústria cultural. O esquema
vende diversão. Portanto, se a violência ocupa o primeiro lugar, isso
provavelmente se deve ao fato de se mostrar como o veículo mais eficiente
para o sucesso da mercadoria. E, no entanto, de fato é difícil crer que essa
diversão é alegre. Será muito mais propriamente definível como sádica, tanto
em relação ao personagem quanto em relação ao público: “O prazer da
violência contra o personagem transforma-se em violência contra o espectador,
o divertimento converte-se em tensão. Ao olho cansado do nada deve escapar
do que os especialistas puserem como estimulante (...). Assim sendo é pelo
menos duvidoso que a indústria cultural preencha mesmo a tarefa de diversão
de que abertamente se vangloria. Se a maior parte do rádio e do cinema
emudecesse, com toda probabilidade os consumidores não sentiriam muito sua
falta.”32. A percepção do espectador é espancada para que continue presa à
tela sobre a qual a mercadoria é projetada na sua frente.

Já a arte anterior, autônoma, estava ligada à sublimação. Sublimar é um efeito


mágico da palavra ou da imagem, pelo qual se realiza imaginariamente a
libertação de um afeto negativo ou uma tensão que oprime o sujeito. A
sublimação tem por isso um efeito apaziguador, substituindo a tensão pela
alegria. Sempre a arte atuou através da sublimação seja em relação à
violência, ao medo, ou ao desejo sexual. A indústria cultural, contudo, atua de
um modo diverso:

A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca. Expondo


continuamente o objeto do desejo, o seio no suéter e o peito nu do

31
Gilberto Dimenstein, Desenho desanimado. Acessível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff25109825.htm
32
Adorno, op. cit., p. 33.
20

herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não


sublimado, que, pelo hábito da privação, há muito tempo se tomou
puramente masoquista.33

Concluindo essas observações, podemos dizer que as investigações de


Adorno renovaram a discussão iniciada por Benjamin, atualizando suas
discussões e mudando a sua localização na topografia das sociedades
capitalistas. Passando da Europa para a América, Adorno se viu cercado por
um cenário muito mais avançado de estandartização e massificação do que
aquele que Benjamin pôs em destaque, quando ainda apenas se iniciava na
Europa. A maturidade da indústria cultural se mostra como um enorme aparato
de reprodução técnica, que constitui ao mesmo tempo o mundo externo e
interno. De forma interna, o sujeito é conduzido da diversão à tensão, ao apelo
dessublimado do desejo sexual, ao aprendizado da obediência ao ilógico dos
roteiros repletos de efeitos, ao hábito da repressão e do masoquismo, a uma
consciência de rebanho que o faz sentir-se feliz quando localizado na média
social, à inveja e ao desprezo por aqueles que se rebelem, porque “se acham
superiores”, ao gosto pela violência. Essa mesma racionalização repressiva do
mundo, vamos encontrar na arquitetura que, com urbanismo, se volta para a
construção das cidades pré-moldadas como enlatados para os trabalhadores
nos subúrbios enquanto nos centros eleva os palácios de ostentação das
grandes corporações.

Esse sujeito, assim violentado, é o produto de uma arte industrial que têm os
seus fins fora de si, que serve aos objetivos da racionalidade, da
funcionalidade, da diversão, ou, em resumo, do lucro. Essa arte, justamente
por ser a arte de um mundo que faz proliferar o sofrimento, não é capaz de
propor outra coisa que a acomodação das pessoas ao mundo que ela mesma
fabrica. Benjamin viu a passagem da função de culto à função artística, com
esta ligada ao valor de exibição da arte (pelos proprietários burgueses, que
assim ostentavam a sua própria posição na hierarquia social). Adorno observa,
nos EUA, como a arte de massa vai construir o sempre igual, deslocar todo

33
Idem, p. 35.
21

impulso de surpresa, deixando subsistir só a antecipação. E esse é um ponto


que nos faz lembrar de Benjamin quando este se refere a uma “atualidade
permanente” que se dá com a multiplicação das cópias. Enquanto a obra de
arte portadora de aura só se dava aqui e agora, no local e ou no momento em
que ela se apresentava (no momento da execução de uma sinfonia, por
exemplo), a reprodução disponibiliza cópias que a todos momento são
acessíveis (pelo disco, pela imagem, pelo filme, etc.).

O momento que Adorno vivencia nos Estados Unidos nos anos 40 e 50 se


pode dizer que é pós-aurático. Nele tudo tem que ser atual, por isso uma trama
que se desenvolveria aos poucos e linearmente deixa de causar efeito, porque
a tensão de ter que aguardar pelo fim é excessiva para o espectador de massa.
Ele precisa, ao contrário, de uma obra que, desde o começo, já anuncie como
vai terminar. Ou seja, que não tenha mais começo, meio e fim, mas que tenha
todos os seus momentos sempre iguais e se sabia de antemão aonde vai
chegar.

Benjamin acreditava que o cinema, a arte técnica reprodutiva por excelência,


seria capaz de ser politizada para a luta pelo socialismo. Adorno discorda
dessa posição quando diz respeito à fixação de fins sociais para a arte. Servir à
libertação dos oprimidos seria uma finalidade social. Mas a liberdade da arte,
sua autonomia, está em só servir aos seus próprios fins. E mais: é só servindo
aos seus fins que ela instiga os escravos a se libertarem porque mostra que é
possível uma realidade que não serve à outra coisa, mas apenas a si mesma.
Desprezar a heteronomia, as regras impostas de fora, seria o maior serviço
prestado pela arte autêntica à mudança social. Essa posição não diz que a arte
não pode influenciar na transformação. Mas sim será mais capaz de influenciar
na medida em que for mais capaz de se constituir como uma autêntica obra de
arte.

Enquanto a transformação da realidade social não ocorre, e a dialética social


permanece travada, incapaz de sair do circuito das limitações impostas pela
propriedade privada, a função da crítica da indústria cultural é manter aberta
uma trilha para além da alienação. Essa dialética, que mantém aberta esse
caminho, é uma dialética negativa.

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