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de suas fronteiras de atuação para além dos bem reforma existencial, uma outra forma de olhar,
demarcados limites dos hospitais psiquiátricos escutar e cuidar da loucura (AMARANTE,
e domeio acadêmico. 2003). A Reforma Psiquiátrica é considerada
como um processo que tem como objetivos e
Atualmente, estamos diante de um estratégias o questionamento e a elaboração
amplo processo de transformação no campo da de propostas de transformação crítica do
saúde mental. A assistência psiquiátrica, antes modelo clássico e do paradigma da psiquiatria.
pautada na exclusão, na segregação e na adoção Portanto, consiste, então, em rupturas do saber
de práticas equivocadas em nome de uma psiquiátrico em relação ao se lidar com a
melhor atenção, passa a adotar em seu cotidiano loucura, do rompimento com conceitos e com
um estatuto ético, consolidado por meio da o aparato que se montou em torno da loucura
participação de diferentes atores sociais. A (AMARANTE; GIOVANELLA, 1998).
partir desse momento ocorre o questionamento
do modelo instituído, das práticas vigentes A Reforma Psiquiátrica objetiva não
– enfim, coloca-se a instituição psiquiátrica só o fim dos manicômios, mas também a
em questão. Procura-se, então, desenvolver transformação da sociedade. Não pode ser
práticas pautadas na responsabilização, na compreendida apenas como um questionamento
territorialidade e na inserção nas redes sociais. de conceitos, fundamentos e de suas práticas
moldadas em uma questionável racionalidade
Portanto, mais que substituir os científica, mas sim como a construção de novos
hospitais psiquiátricos, é preciso substituir paradigmas (YASUI, 2006). A afirmação dos
a lógica manicomial. De acordo com Freire direitos de cidadania das pessoas com transtornos
(2004), a Reforma Sanitária não pode ser mentais e a superação do modelo asilar foram
confundida com a criação do SUS, assim como definidas como as principais diretrizes para
a Reforma Psiquiátrica não deve ser resumida à o processo de Reforma Psiquiátrica e para
criação de serviços considerados substitutivos. a execução da Política Nacional de Saúde
O movimento de Reforma Psiquiátrica Mental, engendrando mudanças significativas
brasileiro inclui, entre outros pontos, a crítica nas dimensões assistencial, legislativa e
ao modelo hospitalocêntrico, a participação sociocultural (AMARANTE, 1997).
da comunidade, a revisão da legislação
psiquiátrica, a criação e diversificação de A Reforma Psiquiátrica brasileira
práticas e a ampliação de serviços de base encontrou na implantação do SUS as condições
territorial. institucionais de desenvolvimento. A
implementação de políticas públicas ancoradas
Esse movimento consiste em uma na ampliação do direito universal à saúde
luta contra a segregação, a violência, a criou um ambiente favorável à multiplicação
discriminação e a exclusão, apontando para das inovações assistenciais no campo da
uma radical transformação social. Poderíamos saúde mental. O SUS e as significativas
considerá-lo como uma reforma técnico- transformações estruturais conformaram um
administrativa, mas, sobretudo, como uma novo quadro na atenção à saúde e propiciaram
a efetivação de uma nova política de saúde Atenção Psicossocial (CAPS) como dispositivo
mental que reforça a atenção de base territorial, privilegiado na estratégia de enfrentamento ao
em substituição à atenção hospitalar tradicional. modelo assistencial tradicional. A Portaria no
336 (BRASIL, 2002) define os CAPS como
O processo de Reforma Psiquiátrica “serviço ambulatorial de atenção diária que
aponta para a construção de novos modos de funciona segundo a lógica do território... sendo
atenção em saúde mental que proporcionem o articulador central das ações de saúde mental
a ruptura com o aparato institucional criado do município ou do módulo assistencial”.
para ‘conter’ a loucura. Assim, em alternativa
ao modelo hospitalar de atenção, a priori Neste sentido, os CAPS se apresentam
excludente, foram desenvolvidas diversas como um dispositivo de cuidado voltado para
experiências que visavam a transformar as a atenção integral ao portador de sofrimento
práticas e saberes relacionados ao campo. psíquico. Têm por objetivo o desenvolvimento
Com isso, pretendiase, entre outras coisas, de projetos de vida, de produção social, além
fazer emergir a construção de novos modos de da promoção da melhoria da qualidade de vida
atenção em saúde mental que se diferenciassem dos sujeitos. Entre algumas de suas missões
do que hegemonicamente era oferecido estão a de tecer laços para além dos serviços de
(GULJOR, 2003). Dentre estes, inclui-se a saúde e de manter aquecidas suas relações com
construção de serviços de atenção diária, de a cultura local.
base territorial, que trabalham na perspectiva
da desinstitucionalização; que têm o sujeito e Um dos grandes desafios dos CAPS é
sua família, e não mais a doença, como foco possibilitar que a sociedade, que durante toda
de sua atenção; onde exista horizontalidade a existência da psiquiatria ‘aprendeu’ que o
nos processos de trabalho, integralidade do melhor tratamento e encaminhamento destinado
cuidado, responsabilização, entre outros ao louco seria o hospital psiquiátrico, conheça
pontos. Faz-se necessário ocupar-se da loucura outros modos de se lidar com a loucura que não
de uma outra forma. Para Kinoshita (1997), sejam a segregação e a exclusão. A conquista
é a vida do usuário que deve ser o centro do de tal conhecimento auxilia na construção de
trabalho. Então, estar ou não louco é secundário outros circuitos que não a institucionalização
em relação a que tipo de vida leva esse usuário. dessas pessoas. Diferentemente do hospital
O social é exigência da vida humana e não está psiquiátrico que, segundo Goffman (2001),
diretamente relacionado à questão da doença impunha uma barreira ao intercâmbio social,
como se fosse em uma relação causal. impedindo de certa forma possibilidades de
troca com o mundo exterior, os CAPS buscam,
Os novos serviços sob essa lógica desejam e, de certa forma, correm ao encontro
podem ser denominados espaços de da “afetação” ou da “invasão” da loucura na
produção de sujeitos sociais, de produção de sociedade.
subjetividades, de espaços de convivência, de
sociabilidade, de solidariedade e de inclusão. Uma das estratégias utilizadas para
O Ministério da Saúde adotou os Centros de aquisição desse novo estatuto da loucura é a
de novos formatos de produção das ações de do Plano Nacional da Inclusão das Ações
saúde, “configurando-se como um centro de SM na AB”, com a presença do DAB, da
animador/catalisador dos sistemas integrados Coordenação Geral de Saúde Mental e alguns
de serviços de saúde” (MENDES, 2002, p. 17). municípios com experiências em curso de
inclusão da SM na AB.
Em 1998, o Ministério da Saúde __________________________
publica o Manual para Organização da Atenção
Básica (BRASIL, 1998), onde é enfatizada 2002 - Seminário Internacional sobre SM na
a importância desse nível de atenção para a AB, em parceria com a OPAS/MS/UFRJ/
organização e conformação do sistema de Universidade de Harvard.
saúde. Nele são propostos os instrumentos __________________________
para sua operacionalização, de modo a se
alcançar a reorientação de atenção à saúde por 2003 - Oficina de Saúde Mental no VII
meio de estratégias adequadas às condições Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva,
locais e municipais. Entre outros pontos, foram “Desafios da integração com a rede básica”.
ressaltados: o cadastramento e a implantação Contou com a participação do DAB, da CGSM,
do Cartão SUS; a adscrição de clientela; a de coordenadores estaduais e municipais de
referência para a assistência de média e alta SM, assim como de trabalhadores de SM.
densidade tecnológica; e o acompanhamento e __________________________
a avaliação das ações e serviços de saúde.
2004 - Oficina no I Congresso Brasileiro de
Naquele momento, o Departamento CAPS.
de Atenção Básica (DAB), juntamente com a
Coordenação Geral de Saúde Mental (CGSM) A partir desses encontros, o MS propôs
do Ministério da Saúde (MS), cientes da algumas diretrizes para a organização das
necessidade da implantação de ações de Saúde ações de saúde mental na Atenção Básica:
Mental na Atenção Básica, decidem elaborar o
Plano Nacional de Incorporação de Ações de 1. Apoio Matricial da Saúde Mental às
Saúde Mental no âmbito da Atenção Básica, Equipes da Atenção Básica
dentro do conjunto de ações que compõem
o cuidado integral à saúde. Para tanto, o O apoio matricial visa a proporcionar
Ministério da Saúde tem realizado oficinas com suporte técnico, em áreas específicas, às
gestores, profissionais da saúde mental e da equipes responsáveis pelo desenvolvimento de
Atenção Básica e também com representantes ações básicas de saúde. Assim, tornase possível
do MS, com o intuito de melhor desenvolver compartilhar casos/situações com a equipe de
estratégias de inclusão das ações de saúde saúde local, favorecendo a co-responsabilização.
mental na Atenção Básica. Dentre os encontros Por meio do suporte matricial seria possível,
realizados, destacam-se: entre outras ações, romper-se com a lógica
do encaminhamento, muitas vezes vinculada
2001 - Oficina de trabalho para a “Discussão à lógica da desresponsabilização. Também
da sociedade. As redes conectam pessoas, a população adscrita, pois exige uma atenção
instituições, serviços, tecem vidas e podem solidária, não mecanizada, a todas as pessoas,
estabelecer uma nova conexão entre Estado com uma escuta qualificada dos problemas de
e cidadania e, assim, uma nova relação de saúde, possibilitando a criação de vínculos.
reconhecimento entre as pessoas (LOSICER,
2000). Implicam também a redefinição das Responsabilização
políticas sociais, em uma recomposição do
papel do Estado e das coletividades. De acordo com a Portaria no 336/02
(BRASIL, 2002), os CAPS devem se
A formulação da política de Saúde responsabilizar pela coordenação e pela
Mental, orientada pelos princípios da Reforma organização da demanda e da rede de cuidados
Psiquiátrica, requer o desenvolvimento de em saúde mental no âmbito de seu território. A
ações integradas e intersetoriais nos campos responsabilização pela clientela atendida deve
da educação, da cultura, da habitação, do ser um princípio norteador dos novos modos
esporte, do trabalho, do lazer, dentre outros, de atenção em construção.
além do estabelecimento de parcerias com
universidades, Ministério Público, ONGs, etc. Tome-se como encargo que o serviço
deve se responsabilizar pela saúde mental da
Acolhimento população de sua área de abrangência. Este,
juntamente com os demais segmentos sociais
O acolhimento, como, ação, atravessa que compõem a rede social, devem se articular
processos relacionais em saúde rompendo a fim de promover a melhoria das condições
com o atendimento tecnocrático, criando um de saúde e de vida das pessoas, desenvolvendo
atendimento mais humanizado (SILVEIRA, papel ativo na promoção da Saúde Mental.
2003). Como modo de organização de práticas,
o acolhimento possibilita que o usuário O território é a área sobre a qual o
assuma o lugar central das atividades de saúde serviço deve assumir a responsabilidade sobre
(FRANCO; BUENO; MERHY, 1999). as questões de saúde mental. Isto significa que
uma “equipe deve atuar no território de cada
Por meio do acolhimento é possível que usuário, nos espaços e percursos que compõem
os equipamentos de saúde mantenham a marca suas vidas cotidianas, visando enriquecê-lo
de processo, de criação cotidiana, de invenção, e expandi-lo” (KINOSHITA, 1997, p. 73).
que pode dar a cada uma das experiências um Os serviços que trabalham na perspectiva
caráter singular e a cada equipe a possibilidade do território desenvolvem papel ativo na
de construir, com seu desejo, o trabalho promoção da saúde mental na localidade.
diário em lugar de repetições modulares
(MACHADO; COLVERO, 2003). Outra questão relacionada à
territorialidade das ações está atrelada à
Em suma, acolhimento advém da acessibilidade das ações e serviços de saúde
participação efetiva e afetiva entre a equipe e (ALVES, 2001). O serviço pode estar ou não
A noção de vínculo está atrelada a No entanto, essa tarefa não pode estar
outros conceitos, como o da continuidade, restrita aos serviços de saúde mental; deve-
da responsabilização, do acolhimento, da se desenvolver uma articulação entre os
acessibilidade e do afeto. Vínculo também segmentos sociais que compõe a rede, a fim de
pode ser definido como “a circulação de afeto promover melhorias nas condições de saúde e
entre as pessoas a partir da disposição de de vida das pessoas. Faz-se necessário fomentar
acolher de uns e da decisão de buscar apoio mudanças, em todo o sistema de saúde, para
de outros” (CAMPOS, 2003, p. 28), que se que de fato possamos nos responsabilizar
constrói com base na necessidade de quem de modo integral pela saúde das pessoas. A
demanda atendimento e de um outro que possa responsabilização pela clientela atendida deve
atendê-lo e ouvi-lo. ser um princípio norteador dos novos modos
de atenção em construção.
Os vínculos que norteiam os projetos
de intervenções integrais de atenção e cuidado Portanto, a noção de integralidade
à saúde são constituídos a partir de escuta e extrapola o conceito jurídico-institucional da
responsabilização entre sujeitos. Em que nós Constituição de 1988 e da LOS no 8.080/90,
– profissionais –, em uma relação próxima, ganhando outras dimensões. Essa constatação
clara, pessoal e não burocrática, devemos nos propõe a ruptura com os ‘antigos’ padrões
sensibilizar com o sofrimento do outro e nos assistenciais e aponta para a superação da
responsabilizarmos pela vida do usuário. racionalidade médica. Busca a produção de
práticas de atenção coerentes com os princípios
do SUS. Assim, a Atenção Básica estaria
Integralidade do cuidado ampliando sua capacidade de resolução dos
problemas da saúde, permitindo a construção
Deve-se considerar a integralidade de um novo tipo de relação entre ela e a
como um indicador da direção que se deseja saúde mental, ao potencializar capacidades de
imprimir aos sistemas de saúde (MATTOS, produzir mudanças.
2002). Diferentemente da noção de integralidade
trabalhada na Lei Orgânica Nacional da Saúde Acreditamos que somente com a adoção
(LOS) nº 8.080/90, vinculada ao acesso aos desses princípios é que poderemos ousar
diferentes serviços e em diferentes níveis oferecermos, de fato, práticas de atenção e de
de atenção à saúde mental, tem-se adotado o cuidado ao portador de sofrimento psíquico.
termo integralidade, na maioria das vezes, para
compreender o indivíduo como um sujeito CONSIDERAÇÕES FINAIS
integral, dotado de diferentes necessidades
em diferentes momentos, estando relacionado Trabalhando-se com a perspectiva de
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