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O VERSO

DOS
Alguns textos deste livro falam diretamente sobre o trabalho escravo em
pleno século 21. Outros podem ser lidos como breves relatos ficcionais,
ou uma mistura de reportagem, crônica e memorialismo. Essa mescla de

TRA
modalidades de discurso imprime uma dimensão intimista e, em alguns
casos, poética a assuntos dramáticos e trágicos das sociedades brasileira
e moçambicana.

Há algo em comum na vida de um operário de uma fábrica de cimento-


-amianto em São Paulo; de um funcionário de uma empresa de exploração BA
LHA
de gás no extremo Norte de Moçambique; de um vaqueiro numa fazenda
do Nordeste; de uma cozinheira nordestina numa casa paulistana; de um
menino engraxate; de uma preta velha... Todos eles – crianças, homens e
mulheres – são trabalhadores espoliados.

É preciso se libertar dos padrões dominantes da cultura do colonizador, DORES

O VERSO DOS TRBALHADORES


que degrada a alma e o corpo do tecido social. É uma tarefa difícil, mas
se inscreve no desejo ou no sonho de uma sociedade mais justa e solidária.
E esse parece ser o tema mais ou menos implícito dos textos reunidos
nesse Verso do trabalhador.

Milton Hatoum fotos


textos Geyson Magno
Eliane Brum Avener Prado
Mia Couto Tibério França
Milton Hatoum Marlene Bergamo
José Rezende Jr. Walter Firmo
Clara Arreguy
Xico Sá
José Luiz Passos
Marcelo Rubens Paiva
Lya Luft
O VERSO
DOS
TRA
BA
LHA
DORES

textos fotos
Eliane Brum Geyson Magno
Mia Couto Avener Prado
Milton Hatoum Tibério França
José Rezende Jr. Marlene Bergamo
Clara Arreguy Walter Firmo
Xico Sá
José Luiz Passos
Marcelo Rubens Paiva
Lya Luft
O VERSO
DOS
TRA
BA
LHA
DORES
organizadores
Rodrigo Farhat
Alessandro Soares

textos fotos
Eliane Brum Geyson Magno
Mia Couto Avener Prado
Milton Hatoum Tibério França
José Rezende Jr. Marlene Bergamo
Clara Arreguy Walter Firmo
Xico Sá
José Luiz Passos
Marcelo Rubens Paiva
Lya Luft
AGRADECIMENTOS

Aos procuradores João Batista Aos motoristas do MPT Raimundo Otávio


Machado Júnior, Leonardo Osório dos Santos, Ronnie Von Alves de Lima,
Mendonça, Erlan José Peixoto do Prado, José Maranhão Silva Filho e Marcos Tavares
Jeane Carvalho de Araújo, Janilda dos Santos.
Guimarães de Lima, Vanessa Patriota
da Fonseca, Teresa Cristina d´Almeida À agente literária Lúcia Riff.
Basteiro e Júnia Bonfante Raymundo
pelas contribuições que ajudaram a Também fazemos agradecimento especial
viabilizar o projeto. à Folha Press, que gentilmente cedeu as
imagens que integram o ensaio Imigrantes,
Ao jornalista Fábio Victor, pelas valiosas de Avener Prado.
sugestões.

À equipe da assessoria de comunicação


do MPT, principalmente a Mariana Banja,
Ana Elisabeth Alves, Carolina Vilaça,
Cyrano Vital, Guilherme Peixoto e
Sâmela Lemos.
SUMÁRIO

09 APRESENTAÇÃO 93 ISAULINA
Clara Arreguy
11 PREFÁCIO
Milton Hatoum 109 LAVRADORES
Tibério França
15 O RUÍDO
Eliane Brum 119 VAQUEIRO, UM HERÓI
MARCADO COMO GADO
27 GESSEIROS Xico Sá
Geyson Magno
125 VAQUEIROS
41 CARTA DE MOÇAMBIQUE Geyson Magno
Mia Couto
133 OS MÓVEIS DO MUNDO
51 IMIGRANTES José Luiz Passos
Avener Prado
143 O ESCRAVO MODERNO
63 HISTÓRIA DE DOIS ENCONTROS Marcelo Rubens Paiva
Milton Hatoum
149 PORTUÁRIOS
69 CARVOEIROS Walter Firmo
Tibério França
159 TRABALHO ENOBRECE?
79 O MENINO QUE NÃO Lya Luft
VIA O CÉU
José Rezende Jr.

87 BOLIVIANOS
Marlene Bergamo
APRESENTAÇÃO

A arte sempre retratou o universo do Afastado do fotojornalismo há vários anos, trabalho. Nomenclatura essa que, muitas
trabalho. Giuseppe Pellizza da Volpedo, Walter Firmo reviveu o início da carreira vezes, serve mais para distinguir benefícios,
Candido Portinari, Tarsila do Amaral, ao aceitar a proposta de fazer Portuários. jornadas e rendimentos do que funções.
Henri Cartier-Bresson, Sebastião Salgado, Xico Sá e Geyson Magno partilham um
Fritz Lang, Charles Chaplin, Bertold assunto que conhecem desde muito jovens: Este livro, de distribuição gratuita, foi
Brecht, Émile Zola, Carlos Drummond a vida dos Vaqueiros, embora trabalhem de produzido com recursos de multas envol-
de Andrade, João Cabral de Melo Neto, forma independente e a leitura de um não vendo ações do Ministério Público do
John Lennon, Chico Buarque, Arrigo tenha função complementar à do outro. Trabalho (MPT) aplicadas a empresas que
Barnabé e uma inesgotável lista de nomes infringiram leis trabalhistas, especificamente
de diferentes países e momentos históricos O processo migratório também foi esco- destinados a ações de comunicação.
enriqueceram o olhar sobre a tarefa de lhido por dois autores, refletindo o fluxo Todo o conteúdo e informações comple-
artesãos, agricultores e operários. mais intenso de trabalhadores imigrantes mentares podem ser consultados no site
no Brasil e as consequências desafiadoras www.oversodostrabalhadores.com.br.
O Verso dos Trabalhadores nasce do desse fenômeno recente. Avener Prado
desejo de incentivar a reflexão sobre as mostra que a vida dos haitianos, senega- As narrativas e os enquadramentos de
profissões, suas simbologias e impactos leses e dominicanos morando em abrigo imagens foram concebidos sem qualquer
na vida contemporânea. A partir dessa não se parece tanto com a dos Bolivianos necessidade de obediência a regras e
ideia, convidamos diferentes autores de Marlene Bergamo, em dias de domingo conteúdos, por vezes superficiais, da
brasileiros a fazerem literatura e fotografia na praça Kantuta, em São Paulo. notícia. Também passam ao largo do rigor
especialmente para o projeto. dos estudos jurídicos e não têm necessaria-
Sem a finalidade de ilustrar o trabalho mente compromisso com engajamentos e
Algumas mudanças enriqueceram a dos escritores, os fotógrafos puderam reivindicações sindicais. Os textos de ficção
proposta original e a primeira delas é a expressar livremente suas visões sobre aqui reunidos contribuem para uma melhor
presença de Mia Couto, moçambicano que a pauta combinada. Relações entre ima- apreensão da realidade, mostrando novos
é íntimo do Brasil. Outras são os ensaios gens, contexto e personagens retratados ângulos e olhares, dando voz a afetos,
fotográficos Imigrantes, de Avener Prado, pelos escritores ficarão a critério do leitor. dores e pensamentos.
e Carvoeiros, de Tibério França, produzidos Ainda assim, percebemos que, de alguma
antes da concepção deste livro, e a maneira, os atores desses Versos mantêm Acreditamos que as fantasias literárias
crônica História de Dois Encontros, de certas semelhanças, como afirma Milton também alimentam cientistas, historiadores,
Milton Hatoum, o único texto não inédito. Hatoum, no prefácio, ao compará-los pensadores, juristas e demais operadores
com os personagens dos escritores. da justiça. Desta forma também vemos
O elenco deste Verso conta ainda com este livro como um exercício contra o
José Luiz Passos, Marcelo Rubens Paiva, O resultado final traduz o conceito do Verso esquecimento de casos reais, das vítimas
Eliane Brum, Clara Arreguy, José Rezende Jr. dos Trabalhadores. Verso entendido tanto de omissões e de ilegalidades no campo
e Lya Luft. Ao todo, o livro traz nove textos, como composição literária quanto o avesso, do trabalho.
que vão da crônica à carta, passando pelo o oculto, o pouco visível ou até mesmo o
conto e pelo artigo, intercalados por sete escondido cotidiano de funcionários, colabo- Rodrigo Farhat e Alessandro Soares
ensaios fotográficos. radores, servidores, terceirizados, frilas fixos Brasília, abril de 2015
e o que mais houver na nomenclatura do

9
PREFÁCIO
Milton Hatoum

O ferro em brasa que firma as letras Os leitores de Memórias póstumas de Brás – Aqui estou. Para que me chamastes?
iniciais do proprietário do gado marca Cubas talvez se lembrem da personagem
igualmente o vaqueiro. dona Plácida, uma das mulheres mais sofri- E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe
das e humilhadas da literatura brasileira. responderiam:
Xico Sá
Filha natural de um sacristão e de uma – Chamamos-te para queimar os dedos nos
doceira, ela perdeu o pai aos dez anos, tachos, os olhos na costura, comer mal, ou
casou aos quinze ou dezesseis, enviuvou não comer, andar de um lado para outro,
algum tempo depois, e teve de sustentar a na faina, adoecendo e sarando, com o fim
filha de dois anos e a mãe. Dia e noite ela de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste
fazia doces, costurava, “e ensinava para agora, logo desesperada, amanhã resigna-
crianças do bairro, a dez tostões por mês”. da, mas sempre com as mãos no tacho e os
Quando a mãe morre e a filha foge com um olhos na costura, até acabar um dia na lama
sujeito, dona Plácida se sente abandonada e e no hospital; foi para isso que te chama-
desamparada: mos, num momento de simpatia.

Não tinha mais ninguém no mundo e estava Quase um século e meio depois da pu-
quase velha e doente. blicação de Memórias póstumas de Brás
Cubas, muitas mulheres brasileiras ainda
Trabalhou e morou mais de um ano na casa vivem como a personagem desse romance
de Virgília, e quando esta se casou, Plácida notável de Machado de Assis. A violência, a
viveu “como Deus foi servido”, e “tinha um humilhação, o preconceito, enfim, o enorme
medo de acabar na rua, pedindo esmola...”. sofrimento físico e moral de milhões de
trabalhadores brasileiros ainda é a maior
Em vez de esmolar na rua, ela passa a cui- indignidade de um país que se pretende
dar de uma casa, onde Virgília – esposa de democrático. Aliás, são raros os países
Lobo Neves – se encontra clandestinamente desenvolvidos e democráticos em que as
com o amante Brás Cubas. pessoas mais pobres, sobretudo imigrantes,
não são humilhadas diariamente, pois o
No capítulo LXXV desse romance, o narra- sistema como um todo (político, econômico
dor machadiano, com sua ironia cruel, diz a e cultural), em qualquer latitude e em graus
que veio ao mundo a personagem: variados, é uma máquina de sofrimento
para muitos trabalhadores.
É de crer que D. Plácida não falasse ainda
quando nasceu, mas se falasse podia dizer
aos autores de seus dias:

11
Alguns textos deste livro falam diretamente Vivemos em Moçambique uma ordem
sobre o trabalho escravo em pleno século que foi concebida nos padrões dominantes
21. Outros, com viés mais ficcional, podem da cultura do colonizador. Esta imposição
ser lidos como breves relatos ficcionais, ou de um sistema de lógica e de valores é
uma mistura de reportagem, crônica e me- um crime que não aparece nos jornais.
morialismo. Essa mescla de modalidades de Nem se inscreve, em geral, nos programas
discurso imprime uma dimensão intimista e, de solidariedade entre os povos de diferen-
em alguns casos, poética a assuntos dramá- tes geografias.
ticos e trágicos das sociedades brasileira
e moçambicana. De fato, é preciso se libertar dos padrões
dominantes da cultura do colonizador e
Há algo em comum na vida de um ope- “romper o etnocentrismo redutor da civiliza-
rário de uma fábrica de cimento-amianto ção industrial que controla toda a vida com
em São Paulo; de um funcionário de uma a técnica subordinada à razão instrumen-
empresa de exploração de gás no extremo tal”, pois tudo isso degrada a alma e
Norte de Moçambique; de um vaqueiro o corpo do tecido social. É uma tarefa difícil,
numa fazenda do Ceará; de uma cozinheira mas se inscreve no desejo ou no sonho de
nordestina numa casa paulistana; de um uma sociedade mais justa e solidária.
menino engraxate; de uma preta velha... E esse parece ser o tema mais ou menos
Todos eles (crianças, homens e mulheres) implícito dos textos reunidos neste O verso
são trabalhadores espoliados, que lembram do trabalhador.
a D. Plácida do romance de 1881.

O total descaso de tantos patrões e


empresários pelas leis trabalhistas e a
desumanidade gerada por essa desfaçatez
revelam uma das faces da barbárie brasilei-
ra e africana.

Na “Carta de Moçambique”, em que


ecoa com força a crítica de Oswald de
Andrade a nossas mentes colonizadas,
Mia Couto escreve:

12
O
RUÍDO
Eliane
Brum
Aqui o chamaremos de T. Por um momento me distraí com a camisa,
que me enternecia. Eu já tinha visto aquela
Na primeira vez que o vi, foram seus olhos camisa em outros corpos. Eram as camisas
que me capturaram. Eram olhos de quem dos pobres, dos trabalhadores pobres, e
descobrira algo que lhe custava muito cada uma delas continha todo um esforço,
acreditar. Então ficava com aquele olhar uma dimensão da vida inteira. O corte era
de quem havia acabado de enxergar, mas ruim, mas o tecido era de qualidade, apesar
ainda não tinha processado. Um olhar para da estamparia antiquada. Havia nela uma
sempre surpreendido, e ao mesmo tempo vontade de missa. A camisa já tinha sido
descrente, esperando a qualquer momento muito usada, mas estava limpa e fora passa-
que alguém lhe garantisse que era tudo da com esmero por uma esposa que amava.
um engano, restituísse a sua fé e o seu Para que seu homem se apresentasse bem
mundo voltasse a girar no sentido certo. diante da repórter, para que parecesse
“Eles sabiam, o tempo todo eles sabiam que respeitável. E, mais do que tudo, para que
estavam nos matando. E continuaram a nos parecesse o que ele era, um trabalhador
matar”, dizia. E não olhava para mim, mas “de carteira assinada”, a vida inteira numa
para esse lugar entre o dentro e o fora, onde mesma firma.
parecia estar preso.
A sombra dos pobres, a de serem aponta-
Eu estava na sua casa, na Grande São dos como vagabundos, também era contada
Paulo, e depois dessa frase ele se calou. por aquela camisa. Sempre humilhados pela
Seu silêncio era como um mormaço, mas polícia, tendo que provar a todo momen-
não era um dia quente. Era só o seu silêncio to que não roubaram, não mataram, não
que fazia calor. Primeiro eu o escutei bem dormiram durante o dia, não procrastina-
baixinho. O ruído já estava lá, mas como o ram, não eram os errados na hora errada.
zunido de um pernilongo que a gente não O esforço de provar a inocência dia após
percebe logo no princípio, eu tinha estado dia, na ordem acima da ordem. Mais abaixo
surda para ele. Procurei a causa ao meu essa história seria contada pelos sapatos
redor, longe dos olhos violentados dele. O de casamento. Preto, o bico afunilando na
ruído aumentou, e agora eu já não sabia ponta, desajeitados naqueles pés habitua-
como tinha sido possível não escutá-lo an- dos aos calçados de solado grosso do chão
tes. Meus ouvidos me levaram ao peito dele, de fábrica. Mas o adequado para a ocasião,
coberto por uma camisa tão bem passada teria garantido a esposa. Uma jornalista era
que ainda carregava os vincos.

17
quase uma autoridade, era bem parecida Mas me distraí. Eu estava buscando o Eu o escutava, e escutava também o som que também na minha infância eram “para
com uma doutora e, tão logo ele abriu a por- ruído que me levou aos botões brancos e quebrado do seu peito. Quis fugir dali, mas as visitas”. Pelo cabelo que eu adivinhei ter
ta, antes de os olhos voltarem para aquele pequenos da camisa. Por trás deles, o peito me obriguei a ficar sentada. Ele não parecia sido arrumado para me causar boa impres-
lugar de onde só saíam por um susto, para se movia com uma lentidão penosa. E agora perceber o meu desconforto. T. queria con- são. Ela então autorizou-se a sentar ao lado
retornar em seguida, ele havia me estendi- o som era quase um rugido. Como eu não tar, e eu deveria querer escutar. Mas eu só dele no sofá. Quase na ponta, incerta se
do a carteira de trabalho. A minha carteira percebera antes? Daquele momento em queria escapar daquele ruído que começa- deveria estar ali, mas arriscando.
de trabalho poucas vezes saiu da gaveta, diante eu estaria para sempre diante dele, va a me asfixiar também. “Era um bolero,
jamais me deu qualquer orgulho. Mas a e estive algumas vezes, ouvindo o seu peito Solamente una vez, conhece?” E cantarolou T. não pareceu notá-la ao seu lado. Seguiu
dele, a do trabalhador pobre, era a prova, o baixar e subir, como se o pulmão quisesse baixinho, esquecido de mim. “Solamente falando, como se falasse não para mim,
escudo que o defendia numa sociedade em abarcar todo o ar a cada inspiração e una vez amé en la vida. Solamente una vez mas para alguém que só existia dentro dele.
que já nascera sob o signo da suspeição. fracassasse em todas elas. Como um y nada más....” Esgotado, fez uma pausa an- “Quando a fábrica se instalou aqui, todos
peixe, pensei. Como um peixe fora d’água, tes de mais uma vez voltar ao salão de baile. queriam um emprego. Era grande e a gente
Naquele momento ainda estávamos em pé. tentando respirar sem conseguir. Um “Sentado na mesa eu já não ouvia mais es- achava bonita. Era o progresso chegando. E
E eu, constrangida, sempre constrangida peixe que vai morrer no minuto seguinte. ses versos. Eu só escutava a coisa dentro de a gente queria estar nele. Eu era jovem, mi-
por aquele gesto, barrei a carteira com um E sabe que vai morrer. Aquele olhar fixado mim, a coisa que me roubava o ar.” Coisa, nha família tinha vindo da roça pra uma vida
movimento suave da mão. Não precisa me era o mesmo olhar do peixe atirado à mar- eu disse, suavemente interrogativa, como melhor na cidade, e eu achava que podia
mostrar, eu disse. Eu acredito no senhor. E gem do rio, jogado de súbito para fora do uma psicanalista pontuando um discurso na progredir junto com a firma se fizesse tudo
ele, visivelmente frustrado, me fez sentar mundo que ele conhecia. assepsia de um consultório. certo. Sabe, crescer com a empresa, era o
num sofá de dois lugares enquanto puxava que a gente pensava naquele tempo. E acho
para si uma cadeira com assento de palha. De repente, o ruído que eu demorei a “A coisa, você sabe, o amianto”, e voltou a que progredi.” Mostrou a casa num gesto
Pedi para trocarmos de lugar, explicando escutar tomava conta do ambiente e me pa- me olhar. Acariciou o peito com a mão gran- amplo, em que precisou das duas mãos. E
que para escrever eu preferia ficar mais recia que suplantaria a sua voz quando ele de, um dedo médio torto por algum trauma. a casa simples, mas bem construída, com
ereta. Ele não entendeu, mas concordou. voltasse a falar. Logo me soou insuportável Um acidente de trabalho, talvez, anotei no paredes de alvenaria, pareceu ficar maior
Depositou então a carteira de trabalho na e apenas por um segundo eu procurei um meu bloquinho para perguntar mais tarde. quando a vi pelos olhos dele. Hesitante na
mesinha entre nós, perto de um vaso com botão qualquer onde eu pudesse desligá-lo, “Está dentro de mim. Eu vou morrer e vai primeira frase, a mulher completou. “A gen-
rosas de plástico, uma imagem de Nossa como um daqueles ventiladores de teto de continuar dentro de mim.” E pareceu de te queria casar, sabe, mas meu pai só acei-
Senhora Aparecida e o porta-retrato onde filme antigo de tribunal. Soube que nunca novo se perder. tava se ele tivesse um emprego bom. Então
uma família sorridente posava diante de um me livraria desse som, como jamais me li- a fábrica era toda a nossa esperança.”
daqueles bolos de casamento com grandes bertaria daquele olhar. E agora ele me enca- A mulher dele surgiu com o café numa
flores de glacê cor-de-rosa (margaridas, tal- rava, saído do transe. “Você está ouvindo?” bandeja, um prato decorado com bolachas Ela agora estava confiante, as costas afun-
vez?) e dois bonequinhos, o noivo e a noiva. Como ele poderia saber, me envergonhei. recheadas. Para adoçar a vida, ela disse. Eu dadas no estofado de um tecido florido que
Pousou a carteira de trabalho com cuidado, “Eu ouvi pela primeira vez numa noite em sorri, agradecida. E só naquele momento lembrava veludo, mas o corpo esticado para
como se ela pudesse se ferir nas suas mãos que não pude dançar com a minha mulher. me deu vontade de chorar. Não pelo homem frente, as mãos torcendo-se sobre o vestido
embrutecidas pelas máquinas. E ali ela Era um baile e todo mundo sabia que eu horrorizado diante de mim, mas pelas xíca- de pequenas flores azuis. Esta era uma mu-
ficou, como um monumento que o protegia dançava bem. Eu me preparei para fazer o ras com pequenas flores que me lembravam lher que gostava de flores, pensei, mas não
também de mim. meu show, mas depois de umas voltas tive a cozinha da minha avó. Pelas bolachas, havia flores vivas naquela casa. “O pai dela
de parar. Não tinha mais fôlego.”

18 19
queria alguém mais bem colocado na vida, eu dançar a noite toda com ele. E ele era atabalhoada, num tom mais alto do que eu “A gente se orgulhava mesmo, e eu não
era um homem rígido, dos antigamente. um pouco bonito, tinha esses olhos, sabe, gostaria. Parecia tão jornalista agora. Direta, posso mentir, eu gostava de trabalhar lá.
Queria que ela se casasse com um militar.” mas sem as rugas. E era cheio de lábia, objetiva. Quando o senhor descobriu que o Toda a minha vida foi lá, criei meus filhos
Fez um pequeno intervalo em busca de ar. ah, como era.” Eu deixei de escutá-la por amianto estava lhe matando? Ele se assus- lá, me sentia realizado de levar meus
“Mas ela tinha dançado comigo num baile e um instante, tentando enxergar o que ela tou, como se demorasse a registrar a troca meninos na fábrica e dizer que trabalhava
nunca mais pôde olhar para outro.” vira nos olhos dele no passado. Mas não de ritmo. “Quando?” O quê, quem, quando, lá. Era um trabalho de homem. Como eu ia
consegui ultrapassar a escuridão dos olhos onde, como, por quê, as seis perguntas acreditar que carregava a fábrica no peito,
Agora ele ria, sedutor, o olhar suavizado, e do presente. E deixei cair a caneta no chão, que um estudante de jornalismo aprende sim, mas desse outro jeito?” E voltou ao
eu pude vislumbrar o homem que ele havia uma coisa bem minha quando me atrapa- na faculdade que devem ser respondidas olhar de limbo.
sido. “Sabe, ele dançava bem, mesmo”, lho. Ela não percebeu, continuava falando. logo no início de uma reportagem. Como se
ela continuou, animada. “Todas as minhas “Eu era boba naquela época, mas tive sorte. fosse possível respondê-las num punhado Eu me enganara. T. não estava inteiramente
amigas queriam dançar com ele.” Rubori- Ele era muito trabalhador e fomos felizes, de frases, como se elas contassem algo do lá, mas lá e aqui. Ele ainda contava uma
zou um pouco, as bochechas ainda virgens sabe.” Ela era do tipo que falava “sabe”, a essencial. O essencial era o ruído, e ele não história, mesmo sabendo que a história
depois de todos esses anos. “Eu também bengala da língua a sustentar seu esforço. E virava palavra. nunca poderia ser contada em sua inteireza.
queria casar com um militar, por causa ela se esforçava muito. “Até a gente desco- Era um pouco como respirar. O ar se tor-
das espadas, sabe. Não é do seu tempo, a brir, pelo menos.” E baixou a voz e os olhos. “Os primeiros começaram a ficar doentes, nava cada vez mais difícil de alcançar, mas
senhora é ainda muito jovem”, e sorriu, me E o tempo dos sorrisos terminou. mas a gente não sabia que uma coisa tava ele ainda conseguia capturar o suficiente
espiando para constatar se o elogio tinha ligada na outra. Não é como aquele vírus, o para continuar vivo. E, quando ele parava
me deixado contente. Eu fiz um sinal de Eu esperei. O peito dele subindo e descendo ebola. É lento, a gente vai perdendo o fôlego, de falar, não era apenas porque voltava ao
“não sou tão jovem assim” com as mãos, como um carro velho numa ladeira. E o ru- vai ficando cansado, até que a gente nem horror, mas porque ficava sem fôlego. T.
acompanhado de um meio sorriso. Ela então ído. Tentei imaginar como aquela mulher su- consegue mais ir na padaria comprar o pão. estava exausto. Ele havia sido traído pelo
continuou, satisfeita. “Mas quando um mili- portava passar a noite ouvindo aquele som Ou dançar.” T. falava como um autômato, e século 20. A chaminé da fábrica era o falo
tar casava os outros faziam uma fila e levan- no peito do homem que amava, querendo eu sabia que ele se esforçava para res- da sua época.
tavam as espadas, os noivos passavam por desligar o som, mas sabendo que o som só ponder, mas não estava lá. “Você tem que
baixo. Era o casamento mais bonito, sabe, cessaria com a morte. Que aquele ruído entender”, e agora ele voltava a me olhar, Diante de mim, o operário prostrado era o
nós todas queríamos.” E o que aconteceu, era o melhor som que teria para sempre e mas ainda parecia que não me enxergava, da modernidade decaída. As ilusões de pro-
perguntei. “Acho que me apaixonei porque o sempre ficava mais curto a cada dia. “que a fábrica era a nossa mãe, era assim gresso e potência desapareceram junto com
ele era o melhor bailador.” E se sacudiu Olhei para ela, num sobressalto, e acreditei que a gente via ela. Era como uma grande o ar. Seu corpo era um planeta corroído. Ele
num riso encabulado. que ela tivesse escutado o meu pensamen- família. Eles diziam isso pra gente, e a gente alcançava o século 21 com a força de uma
to, porque se afundou no sofá e pareceu achava que era assim mesmo. Trabalhar na literalidade. Mas era ele o primeiro a pagar o
Eu nunca ouvira essa palavra, bailador, e a querer entrar nele. fábrica era bem visto na cidade, a gente se preço, começando por descobrir que cons-
sublinhei no meu bloquinho para lembrar- orgulhava. Eu carregava a fábrica no peito, truíra uma vida sobre fumaça. Fumaça, não,
-me de não esquecê-la quando fosse Me senti dominada por aquela atmosfera, entende?” E fez uma pausa para recuperar pó. O pó do amianto. E agora a verdade o
escrever a reportagem. Mas ela já seguia, engolfada naquele mormaço que me parali- o ar. Será que ele percebia que era agora condenava. Não era apenas a sua existência
falava bem mais rápido do que ele, engolin- sava. Contrariando minhas crenças de que que ele de fato carregava a fábrica no peito? concreta que ele perdia, mas tudo o que ele
do algumas sílabas na ansiedade de não ser é preciso ser capaz de suportar o silêncio Ele percebia, eu soube logo em seguida. acreditava ser e o que acreditava ter vivido.
interrompida. “As outras me invejavam por para escutar um outro, fiz uma pergunta

20 21
A fábrica era uma entre dezenas que as colherinha. Levou a xícara até a boca, com Sem esperar um segundo para que ele cuecas eram de sacos de amianto, tingidos
multinacionais do amianto espalharam pelo uma mão trêmula. E tomou um gole, bem retomasse o fôlego, eu atravessei. “E se de azul.”
mundo, e também no Brasil. A fábrica-fa- lentamente, como se fosse a coisa mais im- não houver justiça?” Eu sabia que estava
mília, que cuidava dele e dos seus, era uma portante do mundo. Só então reparei que a sendo cruel, que aquele espasmo era sua Enquanto ele falava sua face se contorcia,
construção simbólica. A fábrica, a engre- colherinha ostentava uma pedra colorida na máxima demonstração de potência, era sua e eu reparei pela primeira vez que as maçãs
nagem real e monstruosa, não via nele um ponta, de novo como as da minha infância. derradeira tentativa de morrer como um do seu rosto eram encovadas e todo ele era
filho. Se havia uma mãe, ela era uma Me- E por um momento fiz dela uma madeleine homem. Mas eu precisava fazer a pergunta, coberto por um branco acinzentado. Um
deia. Os donos da fábrica, aqueles senhores para escapar dali. porque eu sabia que não haveria justiça. homem-esqueleto coberto por uma pele
tão longe, com nomes estrangeiros, viam Não na vida dele, pelo menos. Talvez nunca. fina, quase transparente. “Eu levei meus
nele e em homens como ele apenas ossos Mas sua voz, como uma faca, rasgou meu Eu lembrava-me da sentença do juiz a um filhos pra brincar na poeira cinzenta, eles
e músculos. Era literalmente com a sua devaneio e me trouxe de volta. “Eu só tive operário que pedia uma indenização pelo achavam bonito. Era um dia feliz, a gente
carne que alimentaram uma das indústrias certeza quando bateram aqui, nessa porta”, pulmão perdido por uma doença do amian- não sabia. E eu talvez tenha condenado
mais bem sucedidas do século 20. Quando e apontou para a entrada da sua casa, “me to. E o juiz sentenciara: é possível viver meus filhos à morte. Eu. Os meus filhos.
instalaram a fábrica na cidade, os podero- oferecendo dinheiro pra assinar um papel com um pulmão só. Mas eu não sabia”, e seus olhos escuros
sos imperadores do asbesto já sabiam que, em que eu abria mão de entrar na justiça pela primeira vez boiaram em água salga-
quando aqueles homens cruzavam a porta, contra a firma.” Você assinou?, interrompi, Mais tarde eu me daria conta que deveria ter da. Mas ele não parou, sua fala já era rio,
empunhando orgulhosos a sua carteira numa ansiedade errada. Ele me olhou, e me calado. Que ele também sabia que seria correnteza. “Minha mulher passou a vida
de trabalho, estavam quase certamente pela primeira vez vi ali o ódio. Era tão escuro derrotado, mas que justiça era toda a espe- lavando no tanque a minha roupa empa-
condenados a morrer por asfixia. Ou pelo que me mexi, como se não encontrasse rança que ele podia ter e que eu não tinha o pada de amianto, minha mulher pode ser
agressivo e sempre fatal câncer do amianto, mais posição na cadeira. Mais tarde me di- direito de fazer qualquer gesto que pudesse a próxima. Eu sou um homem condenado
o mesotelioma. Entrar na fábrica era dar o riam que os olhos dele eram azuis, e eu não abalar uma ilusão tão frágil. Mas eu ainda que condenei a minha família, você entende
primeiro passo no corredor da morte. E os acreditei. Eram, me garantiram, mas não foi não envelhecera o suficiente para tocar a isso?” Eu entendia, mas não alcançava.
donos da fábrica sabiam. o que eu vi. Não havia nenhum céu naquele delicadeza de uma vida humana perto da Não poderia jamais alcançar. “E pra eles
olhar, só inferno. morte. Mesmo assim, ele pareceu não me pode ser pior ainda, pode ser o câncer do
“Eu demorei muito a acreditar que eles escutar. Seu peito rugia com o som e a fúria amianto, como é o nome?” Mesotelioma, eu
sabiam. Nós todos demoramos. Mesmo A mulher botou a mão no joelho dele, como de um texto de Shakespeare. falei sussurrando, como se a doença, terrí-
doentes, mesmo sem ar, a gente ainda levou se para apaziguá-lo. De novo, ele pareceu vel, pudesse ganhar forma e se materializar
tempo pra acreditar”, ele voltou a falar, e a não perceber. Em vez disso, arrancou a Ele se levantou, uma das xícaras caiu no entre nós.
voz era tão baixa que eu tive de me curvar caneta da minha mão num golpe rápido e, chão, como se fosse em câmera lenta.
para a frente para ouvir. Quando o senhor empunhando-a, disse. “Não. E nunca vou Espatifou-se. E ele ainda assim não escuta- Lembrei-me de Romana Blasotti Pavesi, a
acreditou?, perguntei baixinho. Em vez de assinar. Nem nunca vou fazer acordo. Eles va. “Isso tudo aqui é amianto. Minha casa velha mulher de Casale Monferrato, a cida-
responder, ele colocou três colheres de vão ter de reconhecer que nos mataram, a é amianto. Eles me deram amianto pra de italiana contaminada pelo amianto, que
açúcar numa xícara, sem nenhuma pressa, Justiça vai obrigar eles a reconhecer o que misturar no cimento, pra fazer as paredes perdeu o marido e a filha de mesotelioma, a
como se estivesse procurando a respos- fizeram com a gente. Eu vou morrer, mas o e o piso do quintal. Tem amianto no meu menina que um dia tinham levado para ver
ta em algum arquivo interno. Despejou mundo inteiro vai saber que eles telhado, é de amianto a minha caixa d’água. como era bonito o redemoinho da poeira.
café por cima e depois mexeu com uma são assassinos.” Eles me deram e eu agradeci! E, quer saber, Romana, que ainda perdeu a irmã, uma pri-
eu não tenho vergonha de dizer. Até minhas ma e um sobrinho de mesotelioma. Romana

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que vivia sozinha num apartamento povoado convertia-se numa cicatriz e já não con- Vai morrer como o quê?, eu perguntei. Eliane Brum é gaúcha de Ijuí, nascida em
apenas por bibelôs e lembranças e que às seguia cumprir seu destino, não era mais 1966. Escritora, jornalista e documentarista,
vezes pegava uma caixa do armário e dela capaz de inspirar e expirar. Lenta e progres- “Vou morrer como uma formiguinha.” tem seis livros publicados – cinco de não
retirava uma longa trança de vários tons de sivamente, era isso o que acontecia dentro ficção (Coluna Prestes – o avesso da lenda,
vermelho. A trança da filha. E a acariciava do homem diante de mim, num processo Eu não perguntei por que uma formiga. A vida que ninguém vê, O olho da rua, A
em sua dor sem nome. impossível de deter. T. estava se aproximan- Ele estava além das palavras. Dezenas de menina quebrada, Meus desacontecimen-
do do momento em que o pulmão seria ele quilômetros depois, já na minha casa, eu tos) e um romance (Uma duas). Já ganhou
T. já voltara a se sentar. Pensei que ele mesmo asfixiado, manietado pelo tecido continuava ouvindo o ruído. Todas as letras mais de quarenta prêmios de reportagem,
retornaria para aquele lugar entre o fora cicatricial. Pulmão de pedra, era como que escrevo aqui fracassam. Revelam ape- no Brasil e no mundo. Seu primeiro docu-
e o dentro, mas não. Ele mais uma vez chamavam. T. então morreria em terror, o nas a impossibilidade de expressar o som da mentário, Uma História Severina, do qual é
pegou a caneta da minha mão, desta vez cérebro ordenando puxar o ar, sem que o sua respiração. co-diretora, foi reconhecido com dezessete
com suavidade, sem que eu esboçasse pulmão pudesse se mover. E tudo acabaria. prêmios nacionais e internacionais. Atual-
qualquer resistência. Olhou para ela e, por O horror não se deixa dizer. mente vive em São Paulo e é colunista do
um momento, pensei que fosse quebrá-la. Era para eu ter me calado, pedido licença portal do jornal espanhol El País. Trabalha
Mas T. apenas me devolveu a caneta, num e ido embora. Mas eu não sabia como ir ------------------ com a questão do amianto, tema de seu
gesto quase solene, como se só agora me embora, e desde então nunca mais soube. capítulo neste livro, desde 2001, tendo
autorizasse. E disse: “Escreva aí”. De algum modo eu também estava presa Três anos depois. publicado várias reportagens e artigos de
e desesperada por encobrir o som daquele opinião. Seu texto parte da sua experiência
Consertei minha postura, num gesto ins- pulmão moribundo. Então cometi o imper- T. completava cem dias preso a um tubo na escuta de vítimas do amianto no Brasil,
tintivo. E ele declarou, pronunciando cada doável. Repeti a pergunta que nunca deve- de oxigênio. Um preposto da multinacional algumas delas acompanhadas pela autora
sílaba com seu olhar escuro fixado em mim: ria ter sido feita. Errei duas vezes. “E se não do amianto levou ao hospital um documento até a morte.
houver justiça?” Ele pousou em mim um para ele assinar. Se não assinasse, sua
– Eu sou de amianto. olhar comprido e vago, como se não tivesse família não receberia nem um centavo
compreendido a pergunta. Sua mulher inter- da indenização. Se assinasse, ganharia
E botou a mão no peito. Sua mulher agora rompeu, tentando nos salvar. “Você quer um R$ 38 mil. “Quase o triplo do que lhe
chorava um choro baixinho, enquanto café fresquinho?”, e tentou um sorriso. oferecemos antes”, dizia, “o senhor vai
recolhia os cacos da xícara, suas pequenas Eu quase a abracei. “Faço num instanti- ganhar mais do que os seus colegas”. T.
flores espatifadas. Nem as flores mortas nho.” E levantou-se, carregando o jardim estava agonizando. E eu me pergunto se
escapavam de morrer naquela casa. Eu no vestido, nos deixando sós e áridos. aquilo diante dele, vestido de terno e gra-
aquiesci com a cabeça, muda. A coisa, a vata, estendendo um papel e uma caneta,
coisa dentro dele. Eu conhecia a asbestose, Ele voltou a botar os olhos em mim, e agora escutava o peito do homem. T. assinou.
eu a estudara. A fibra era aspirada, instala- seu olhar era apenas triste. E sua tristeza
va-se no pulmão, de onde não poderia ser me doeu mais do que seu ódio. Abri a boca O ruído cessou na noite em que o cheque
arrancada. Instalava-se, não. Ela fincava-se, para fazer qualquer outra pergunta, mesmo foi descontado.
produzindo uma lesão. O corpo reagia para que fosse para comentar o tempo, se ia cho-
curar a si mesmo. Mas a fibra continuava fa- ver ou não, mas ele fez um gesto de cale-se
zendo ferida. E o corpo continuava tentando com a mão. E disse: “Se não houver justiça,
se curar. Com o tempo, os anos, o pulmão eu não vou morrer como um homem”.

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GESSEIROS
Geyson
Magno

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Geyson Magno nasceu em Caruaru (PE)
em 1971 e começou sua carreira no
Jornal do Commercio de Recife, aos
22 anos. Depois trabalhou no Diário de
Pernambuco. É co-fundador da agência
Lumiar de fotografia (1994); foi finalista
do Prêmio Abril de Fotografia (1998).
Também é autor do livro Encourados
(2006), cuja exposição circulou pelo
Nordeste. Em 2008 venceu o II Prêmio
Pernambuco Nação Cultural de Fotografia.

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CARTA
DE
MOÇAMBIQUE
Mia Couto
Escrevo este texto como uma carta dirigida Talvez eu pudesse convidá-los para uma
a um amigo. Como se o destinatário fosse viagem. E fossemos juntos a um lugar
um velho companheiro que desconhecesse remoto, longe deste mundo que acredita
o lugar em que vivo. Mais do que dar conta ser global. E que acredita estar a viver num
de mim, pretendo transportar para este único tempo chamado de modernidade.
texto um pouco do meu país, Moçambique. É num lugar remoto onde muitas vezes
Parto do princípio que nos separam longas trabalho como biólogo. É uma pequena
ignorâncias e persistentes fantasmas. Uma aldeia costeira chamada Palma, no extremo
certa narrativa portuguesa que glorifica um Norte de Moçambique. Há anos que avalio
passado heroico faz questão em eleger os nessa região os impactos ambientais de um
descobrimentos como seu tema central. projeto de exploração de gás natural.
Na verdade, nós nunca fomos “descober-
tos”. Se quisermos uma História escrita Essa pequena aldeia vive dentro de si a
a várias vozes e com múltiplos autores, fronteira dos tempos e sofre o drama de se
os países de língua portuguesa só agora se ver projetada na lógica de uma imposta mo-
estão descobrindo mutuamente. O que dernidade. Este lugar serviu de inspiração
mais nos afasta não é a geografia, mas o para o meu último romance, uma história
preconceito. O pensarmos que já sabemos. baseada numa terrível experiência cuja
Nós fomos tanto o passado uns dos outros, vivência partilhei com a aldeia. Certa noite
que não entenderemos a nós mesmos se fui acordado por um camponês que me
nos preservarmos alheios e distantes. disse estar “lá fora um morto”. Saí estremu-
nhado sem adivinhar que aquele encontro
Uma carta é um modo de trazer para macabro que eu queria evitar seria apenas
perto quem está longe, uma forma de o início de um drama bem maior. Enquanto
converter o leitor num escutador. Assim caminhava no escuro, o camponês disse-me
construímos a ilusão de que não escreve- o seguinte: “eles ainda devem andar por aí”.
mos, mas falamos. E eu vou falar desta “Eles?”, perguntei já em murmúrio. “Sim,
terra que se crê irmã do Brasil mas que, eles, os leões”. O homem morto era apenas
ao mesmo tempo, permanece tão longín- o primeiro de uma série de 24 pessoas
qua. Na verdade, ela não é distante apenas que, num espaço de quatro meses, foram
dos brasileiros. É distante ainda de si devoradas por leões. Os leões acabaram
mesma, repartida por percepções tão por ser abatidos. Mas a aldeia continua a
diversas como se fosse uma nação feita ser devorada. A ser devorada pelo Tempo.
de mil nações. Dessa doença sofre, afinal, Em todo o mundo, o Tempo fala hoje uma
o Brasil. E sofrem todas as nações. única língua, obedece a um único modelo
de pensamento.

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Nas imediações deste pequeno povoado Convido-vos agora a visitar comigo a peque- Não pretendo recuperar uma visão folclórica – E por quê?, perguntou o pescador.
que fica no fim do fim do mundo foram na aldeia. Na aparência estamos longe do de uma realidade tida como exótica. O que
descobertas das maiores reservas de gás mundo da escrita. No entanto, assim que eu quero dizer é que há universos humanos – Porque você anda muito ausente.
natural do planeta. A invisível aldeia de Pal- entrássemos nessa aldeia seria possível, que só se sabem dizer na oralidade. E esses
ma está hoje na berma de uma cratera que para quem o soubesse fazer, ler o espaço universos podem não saber escrever no nos- O homem ficou atónito: ausente? E parecia
se abre entre a modernidade e a tradição. construído como se lê um livro. Tudo ali está so reconhecido alfabeto. Mas eles escrevem, que se estava a falar de uma outra pessoa.
Quero, pois, falar-vos da aldeia de Palma. inscrito como um código, uma mensagem. e escrevem-se de outros modos. A terra, os
Sei, à partida, que retratar um lugar, qual- As casas estão posicionadas de forma a que panos, os gestos, os corpos, tudo isso são – Ausente?, voltou a perguntar. Então eu
quer que ele seja, é caminhar em terreno se saiba que tipo de família ali vive. Essas páginas onde a oralidade desenha as suas não estive sempre presente? Houve dias
minado. Os lugares não são da ordem da inscrições no chão e nas árvores atuam próprias caligrafias. que tive que ir pescar, e veio o meu legítimo
geografia, mas da linguagem. Guimarães como sinais sagrados de proteção familiar. cunhado Antoninho; houve dias que choveu
Rosa sábia disso bem quando inventou um Os panos das mulheres, postos a secar ao O mês passado, nesse mesmo lugar, nessa e as minhas mulheres não podiam trabalhar
território que só era real porque era sol, dizem quem é cada uma delas pelo aldeia de Palma, um pescador veio à minha no campo, por isso vieram elas. Mas nunca
da ficção. simples padrão do seu desenho. tenda para se queixar de uma injustiça deixei de vir trabalhar.
alegadamente praticada por uma companhia
Quando hoje se olha para os territórios Quando vos apresentasse o chefe da aldeia, petrolífera. O pescador, chamado Amade Estava claro: para ele, o compromisso tinha
remotos de África é comum adoptar um veriam as tatuagens no seu rosto. Quem Juma, tinha estabelecido um contrato para sido respeitado. Porque o acordo havia sido
olhar exótico e romantizar-se essa reali- soubesse ler essas escarificações, enten- trabalhar na abertura de uma estrada. firmado não com uma pessoa singular mas
dade tida como única e distante. Antes, deria que havia ali a clara intenção de um Amade é um dos poucos que ali sabem com toda a sua família. Em Palma, a família
desdenhava-se e desprezava-se. Agora, o texto. E quando finalmente as pessoas se falar português. Mas ele não sabe ler nem – e não o indivíduo – é a entidade que
modo de secundarizar os outros é achar- colocassem frente a frente, veriam que o escrever e por isso usou como assinatura responde perante o mundo.
-lhes graça como objetos exóticos. Podemos modo de cumprimentar era bem mais uma uma cruz em cima daquilo que lhe disseram
ter saltado de século. Não saltamos para simples saudação. A maneira como se aper- ser o seu nome. Nesse mesmo dia, fui chamado por um dos
fora do desconhecimento recíproco. O nosso ta a mão, como se demora o gesto nesse representantes de uma multinacional que
mundo só será nosso se for feito de muitos estar mão na mão, a exibida deferência do O pescador trabalhou na primeira semana. dirigia o projeto de prospecção de gás na-
mundos, todos eles reconhecíveis como braço esquerdo segurando o braço direito Na segunda semana, não compareceu ao tural. O homem apresentou-me a seguinte
sendo outros e, por essa mesma razão, (é o modo de mostrar como o braço do serviço e mandou em seu lugar o cunha- queixa: este povo daqui é muito preguiçoso,
como sendo nossos. outro pesa mais do que o nosso). Depois, do. Na terceira semana, como estivesse a teremos que contratar gente do Sul. Essa
quando se iniciassem as conversas, o modo chover, substituiu o cunhado por uma das gente do Sul já há muito tempo que vive a
Pois na aldeia de Palma, a realidade é dura como se distribuem as cadeiras, a sequên- esposas. Como os patrões reclamassem, ele cultura do trabalho assalariado e sabe o que
demais para ser idealizada. Naquele luga- cia com que se ocupam os lugares, tudo substituiu a esposa por duas esposas mais é respeitar contratos.
rejo ninguém escreve, quase ninguém fala isso são sinais que são produzidos para jovens. Os patrões voltaram a reclamar e
português, as escolas só abrem em certos serem lidos. Tudo isso são modos de convocaram Amade para lhe declarar que Eu observava tudo aquilo com tristeza,
dias do mês, não há polícia nem hospital e traçar fronteiras, definir hierarquias e ele não estava a cumprir o contrato. sabendo que tudo o que fizesse de pouco
até há pouco tempo não havia senão uma ordenar o caos. valeria. Porque aqueles mal-entendidos
nebulosa presença do Estado. mostram como universos culturais dife-

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rentes se tocam mas estão distantes e não No início da cerimónia, porém, tudo sugeria Rapidamente, porém, aquela representação A minha intenção é mostrar que é preciso
sabem falar uns com os outros. O ideal seria a mesma solenidade e o mesmo rigor com foi resvalando para uma outra cerimónia, descolonizarmos não apenas as nações mas
que esses universos tivessem tempo para que a justiça se apresenta em qualquer lu- mais solta, mais espontânea e mais dialo- o olhar com que analisamos essas nações.
se ouvirem e negociarem convivências. Mas gar do mundo. Os próprios juízes assumiam gante. A máquina de escrever adormeceu e É preciso emancipar as teorias revolucioná-
a economia de mercado tem pressa. E o o formalismo, o protocolo e as vestimentas os dedos do secretário passaram a estar dis- rias que se apresentavam como sendo as
pescador Amade Juma e a aldeia de Palma de um tribunal europeu. poníveis para o gesto. Pouco a pouco, todos únicas vias de emancipação. Experimenta-
correm o risco de serem cilindrados por ra- foram deixando de falar em português. Pé mos essa importação de modelos de análise
zões do investimento e da geração de lucro. A abrir a sessão, os juízes fizeram questão ante pé, a cultura local foi tomando conta da em Moçambique. Eu mesmo assimilei a
em exibir os volumosos livros do código civil. encenação. E a lei moderna acabou sendo abordagem marxista que reduzia à luta de
Regressei à mesma região um tempo de- Uma velha e enorme máquina de escrever engolida pelas regras do povoado. Uma classes um sistema de domínio que, para
pois. E visitei uma outra aldeia, igualmente ecoava pausadamente, para susto de Ama- proposta de sentença foi, enfim, apresenta- além da exploração económica, vivia do
na costa. Fui ali ter porque o mesmo Amade de, que nunca tinha visto tal engenho. Toda da. Não para ser imediatamente decretada, desprezo arrogante de outras culturas e
de Palma me pediu para se encontrar ali aquela representação mostrava ao réu que mas para ser discutida. E foi discutida não outras civilizações.
comigo. Um cunhado seu tinha sido acusa- ele tinha chegado a um outro mundo. Nesse apenas com o réu mas com toda a família
do pelas autoridades locais de desrespeito outro mundo, ele era frágil e estranho. Do que o acompanhava. Não se debatia a culpa Quando há mais de um século se iniciaram
para com os investidores estrangeiros. Ele outro lado, se alinhavam os que tinham e a respectiva punição. Negociava-se, sim, movimentos de reclamação dos direitos
tinha-se excedido numa discussão com as poder. Do outro lado, perfilavam-se os que a reposição do dano infligido. E porque humanos, a grande preocupação era a
mesmas autoridades e injuriara aqueles não só sabiam escrever como o faziam com a sentença era para ser negociada e não condição dos trabalhadores oprimidos e ex-
investidores. As autoridades locais julgaram uma máquina cheia de escuros e ruidosos promulgada, a palavra falada valia mais do plorados pelo capitalismo. Esse movimento
que era preciso tomar medidas para tran- dentes. No início, os representantes da Lei que o papel. No final, porém, o formalis- de contestação centrou-se em três preocu-
quilizar os estrangeiros. Um “tribunal popu- do Estado falaram apenas em português. À mo oficial voltou a imperar. A máquina de pações nucleares:
lar” iria julgá-lo no dia seguinte. Autorizaram medida que o julgamento avançava, porém, escrever voltou a funcionar e em português
que eu assistisse ao julgamento. O “tribu- a língua local, o kimwani, foi substituindo se registou a invulgar decisão: Amade foi nas razões políticas e sociais da opressão
nal”, chamemos-lhe assim, era um dos três o idioma português. O edifício podia ter os condenado a entregar um cabrito a multina- económica
únicos edifícios construídos em alvenaria e danos e as fraturas que tivesse. Porque o cionais investindo em África.
escolhera-se aquele cenário para emprestar idioma oficial remendava essas lacunas. na situação dos trabalhadores, em
dignidade à instituição. Mas era melhor que Esse idioma era um outro edifício, com mais Falei-vos, meus amigos brasileiros, de uma particular dos operários e, secundariamente,
o não tivessem feito. O estado do pequeno tecto, com mais portas, mas talvez com aldeia da costa de Moçambique. Na verda- dos camponeses (entendidos como meros
edifício era da mais miserável decadência. menos janelas. de, por via desta aldeia, falei-vos de todo aliados do operariado)
Havia rombos no telhado de zinco, não o meu país. Dos muitos mundos que esse
havia portas nem janelas. Para mim seria país tem. Gostaria que dessa visita ficasse na condição vivida na Europa, então centro
preferível terem escolhido uma das palhotas o recado de que o mais importante não é do capitalismo.
de colmo da aldeia. Todavia, na aldeia, os o que a viagem nos mostra, mas o quanto
lugares são medidos por outros critérios. E ela nos sugere os mundos que não vimos.
aquele edifício albergava espíritos vindos de Contra essa cegueira escrevo.
muito longe e de há muito tempo.

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Com o tempo, essa contestação foi sendo Um entendimento fundado na cultura dos
simultaneamente diluída e alargada. Diluída sistemas de domínio internacional: era disso
porque se generalizou a ideia de que não que eu queria falar-vos, nesta breve carta.
há alternativa para o capitalismo. O siste- E tudo isto de que falei se resume ao convite
ma renovou a sua hegemonia nas vestes de conhecer não uma realidade abstracta,
neoliberais. A contestação foi alargada mas a vida concreta de pessoas concretas.
porque outros grupos sociais se juntaram à Como o pescador Amade e o seu cunhado,
luta pelos seus direitos. E sobretudo porque nas arredores de Palma.
essa reivindicação se estendeu a todos os
continentes. A luta dos oprimidos e margina-
lizados foi, enfim, alargada e diluída porque
a hegemonia do capitalismo se generalizou Mia Couto é escritor moçambicano. Exerce
do ponto de vista social e geográfico. a profissão de biólogo nas zonas rurais de
Moçambique. É autor de mais de 25 livros
Parto do pressuposto de que, em Moçambi- de ficção, conto, novela, poesia, ensaios e
que, é ainda demasiado evidente aquilo que histórias infantis. É o mais reconhecido e
surge disfarçado em muitos outros países: premiado escritor africano de língua portu-
o modo como se lança para o abismo do guesa. É membro da Academia Brasileira de
invisível aquilo que é a cultura e a religião Letras. Em 2013 recebeu o Prêmio Camões,
dos “outros”. Esta operação constitui, desde o mais prestigiado galardão da língua portu-
há muito, uma das agressões maiores do guesa.
capitalismo (escrevo “capitalismo” com
alguma hesitação, porque o capitalismo se
batizou hoje com um não-nome). Vivemos
em Moçambique uma ordem que foi conce-
bida nos padrões dominantes da cultura do
colonizador. Esta imposição de um sistema
de lógica e de valores é um crime que não
aparece nos jornais. Nem se inscreve, em
geral, nos programas de solidariedade entre
os povos de diferentes geografias.

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IMIGRANTES
Avener Prado

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Avener Prado nasceu e foi criado em
Porto Velho (RO), onde aprendeu a
fotografar e desenvolveu seus primeiros
trabalhos documentais. É repórter
fotográfico do jornal Folha de S. Paulo desde
2012 e vencedor do prêmio Folha 2014
na categoria reportagem.

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HISTÓRIA
DE DOIS
ENCONTROS
Milton
Hatoum

Para Samuel Titan Jr.

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Na década de 1960, os jovenzinhos de Numa dessas noites eu estava com um
famílias ricas de Manaus gostavam de fre- amigo do Ginásio Pedro II e convidei-o para
quentar aos domingos o “mingau dançan- assistir à apresentação da nossa banda, que
te”. Reuniam-se na praça da Saúde, onde ia dar uma canja antes do encerramento do
tomavam sorvete antes de entrar no clube mingau dançante. Os outros músicos já es-
mais grã-fino da cidade. tavam no clube e me esperavam. Na porta,
me apresentei como um dos membros da
Rumores insinuavam que nessas noites banda. O porteiro fez um gesto: podíamos
domingueiras, enquanto a moçada dan- entrar. Mas um homem de uns quarenta
çava, os adultos jogavam carteado numa anos, talvez um dos diretores do clube,
sala decorada com poltronas forradas de barrou meu amigo:
brocado suíço, cortinas de veludo alemão e
tapetes persas. Nunca vi essa sala luxuosa, “Só o músico”, ele disse. “O acompanhante,
tão adaptada ao clima do equador. Os rumo- não.”
res também se referiam a perdas enormes
durante a jogatina: homens e mulheres que “Por quê?”, perguntei. “Ele é meu amigo.”
entregavam ao ganhador anéis com brilhan-
tes e relógios com pulseira de ouro. Não era “Preto não entra aqui.”
raro um jogador perder uma propriedade.
Consta que um dos perdedores teve que Meu amigo me disse que era assim mesmo,
morar numa pensão perto do porto. já estava acostumado com essas coisas:
que eu voltasse para o clube e participasse
do show. Ele se afastou e desceu a avenida,
calado.

Estudávamos na mesma sala do Pedro II,


onde concluímos o curso ginasial. Depois
eu saí de Manaus e passei muito tempo
sem vê-lo.

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Em abril, quando visitava a cidade, encon- Agora me lembrava. “Toda quinta-feira ele cumprimenta o meu
trei-o por acaso na praça da Saudade. Na guarda-chuva. A primeira vez que joguei Milton Hatoum nasceu em Manaus, em
tarde dessa quinta-feira nublada e úmida O clube não era mais o mesmo. A velha uma nota de dez reais no chão, ele se 1952. Foi professor de literatura na Univer-
ele se dirigia para o tribunal. Quase não o elite de Manaus — grandes comerciantes ofendeu e disse que não era mendigo. Mas sidade Federal do Amazonas e professor
reconheci: parecia um atleta, nem de perto e herdeiros dos barões da borracha — era depois vi que apanhou a nota e pôs no bol- visitante na Universidade da California
aparentava um cinquentão. Usava paletó e irrelevante ou desaparecera por completo. so. Outro dia me pediu vinte e eu dei.” (Berkeley). É autor dos romances Relato de
gravata; reparei também nas abotoaduras Quase toda a economia da cidade e do um certo Oriente (Prêmio Jabuti de Melhor
pretas, nos sapatos de cromo, no guarda- estado dependia das centenas de fábricas “Mas é um mendigo?” Romance), Dois irmãos, Cinzas do Norte
-chuva cinza, de ponta finíssima. Quando do polo industrial. (Prêmios Portugal Telecom e Jabuti de
me abraçou, perguntou se eu ainda canta- “É o cara que me barrou”, disse o advoga- Melhor Romance e Livro do Ano) e Órfãos
va. Ou se cantava enquanto escrevia. Mais Tomamos um suco de graviola, contei um do. “Não se lembra de mim.” do Eldorado (Prêmio Jabuti – 2º lugar). É
de quarenta anos, ele acrescentou, com pouco da minha vida, saltando anos e também autor do livro de contos A cidade
um vozeirão alegre, que contrariava o meni- cidades. Disse que a impressão de uma vida Enquanto descíamos a avenida, notei que o ilhada e da coletânea de crônicas Um solitá-
no tímido e humilhado da nossa juventude. inteira só encontramos nos romances. advogado estava com pressa. Na calçada do rio à espreita. Seus livros já foram traduzi-
Depois disse que era sócio de um escritório “Nos bons romances”, observou, apressan- tribunal, pôs a mão no meu ombro e disse: dos para catorze idiomas e publicados em
de advocacia: havia cursado doutorado em do-se para pagar a conta. “Hoje à noite tenho que terminar de redigir dezessete países. Mora em São Paulo e é
direito empresarial na Universidade um processo. Massa falida. Uma coisa colunista do jornal O Estado de S. Paulo.
de Chicago. Ele parecia o penúltimo cavalheiro de uma chata e triste. Mas que tal amanhã? Vamos
cidade caótica e feroz. Saímos da praça da comer uma peixada?”
“Mas devo minha carreira à escola pública”, Saúde e, em frente ao clube grã-fino, vimos
ele prosseguiu. “Aliás, nós dois devemos, um velho sentado numa cadeirinha bem no
não é mesmo?” meio da calçada. Braços caídos, as mãos
roçavam a calçada, o olhar baço no céu
Concordei. E continuamos a conversar escuro. Meu amigo parou e estendeu o cabo
enquanto atravessávamos a praça da Sau- do guarda-chuva para o velho, que o aper-
dade; depois paramos num bar da praça da tou como se fosse a mão de um homem.
Saúde, onde ele se lembrou daquele episó- Meu amigo riu:
dio, “na época em que tu tinhas pretensões
musicais e eu era um negrinho, filho de
uma lavadeira com um estivador”.

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CARVOEIROS
Tibério França

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Tibério França é fotógrafo de Belo Horizonte
(MG), curador independente e produtor
cultural. Possui especialização em Arte e
Contemporaneidade pela Escola Guignard/
UEMG, onde leciona Fotografia. É o atual
presidente nacional da Associação de
Fotógrafos Fototech e realizador da Semana
da Fotografia de Belo Horizonte.

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O
MENINO
QUE
NÃO
VIA
O CÉU
José
Rezende Jr.

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O menino vivia olhando para o chão. Era por E era só nessas horas que ele levantava os
isso que ele não via o céu. olhos, à espera de uma resposta que na
maioria das vezes era NÃO! E era nessas
Não via sol, lua, estrela, arco-íris, disco horas que ele via o quanto as pessoas
voador... podem ser grandes, tristes e zangadas. As-
sustado, o menino olhava de novo depressa
Nada. para o chão, porque no chão, em vez de
caras grandes, tristes e zangadas, ele só via
Também não via as figuras que as nuvens pés apressados. E, de vez em quando, um
gostam de desenhar no céu: sapato necessitado de brilho.
cachorro, gato, elefante, girafa, jacaré...
– Vai uma graxa aí, doutor?
Nada.
O menino tinha medo. Sentia-se muito
O menino só via o chão. pequeno, menor que um pé de sapato. Um
insetozinho de nada que qualquer pessoa
Não via nem o passarinho que voava sobre podia pisar, por descuido ou por maldade.
sua cabeça e o acompanhava aonde quer
que ele fosse. O passarinho era o único Às vezes, de tanto olhar para o chão, o me-
amigo do menino. Mas o menino nem sabia nino achava uma moeda ou um sanduíche
do passarinho, porque vivia olhando para comido só pela metade. Uma vez encontrou
o chão. uma flor, que pensou em oferecer para a
professora ou para a menina mais bonita
O menino só tinha a roupa do corpo e um do mundo. Mas o menino não ia à escola e
caixote com escova, flanela e graxa. O cai- não conhecia nenhuma menina mais bonita
xote, aliás, nem era dele, e sim do homem a do mundo.
quem entregava quase tudo do quase nada
que ganhava trabalhando duro, de domingo O menino não tinha nada. O menino não
a domingo. tinha ninguém. Só o passarinho, mas nem
sabia que tinha.
O menino era engraxate. Por isso vivia
olhando para o chão, procurando algum
sapato necessitado de brilho.

– Vai uma graxa aí, doutor? – era só o que


menino sabia dizer.

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Até que um dia, o menino viu a bola amare- Mas o menino nem ouviu. O menino não De noite, exausto, o menino sentou-se na De repente, o menino sentiu o chão desapa-
la brilhando no asfalto escuro. Aproximou-se tinha olhos para mais nada que não fosse calçada, esticou o corpo sobre a cama de recer sob seus pés, e já no instante seguinte
bem devagarinho, pé ante pé, um passo de o primeiro brinquedo que ganhou em toda papelão e fechou os olhos, para ninguém voava nas asas de mil pássaros de todas as
cada vez, desconfiado. Olhou em volta, com a sua vida. De tão feliz, o menino deu um rir de suas lágrimas. O menino chorou que cores e cantos, que o velho amigo passa-
medo que alguém reclamasse a posse do chute tão forte que a bola subiu, subiu, nem criança, sendo que era de fato criança. rinho fora chamar às pressas. E o menino
brinquedo perdido. Mas ninguém reclamou. subiu... Foi então que o menino olhou para voou, voou, voou... E viu o céu pela primeira
A bola não tinha dono. Ou melhor, agora o céu pela primeira vez. Mas nem viu o céu. Morrendo de dó do menino, o passarinho vez, com tudo a que tinha direito:
tinha: era o menino. Não viu sequer o passarinho, apesar de assobiou uma canção alegre. Mas o menino
quase pousado em sua testa. continuou triste. De tanta tristeza, o passa- estrela
Feliz que nem criança, sendo que era de rinho voou para longe pela primeira vez na
fato criança, o menino saiu por aí chutando Só viu a bola vida. E pela primeira vez na vida o menino arco-íris
a bola, driblando todos os pés e pernas subindo, subindo, subindo... ficou sozinho de tudo. O menino agora não
que encontrava pela frente, sem olhar para tinha nem passarinho. nuvens em forma de bicho
cima, sem ver as caras enormes de espanto O menino continuou olhando para o alto,
e raiva. sem ver céu nem passarinho, esperando a O menino, então, tomou uma firme decisão: e até disco voador.
bola voltar. nunca mais olhar para o céu. E nunca mais
– Vai trabalhar, menino – gritou um homem. olharia, se não fosse aquele barulho esquisi- Viu o restinho do sol se pondo de um lado
Esperou, esperou, esperou... até doer o pes- to, que começou do céu e a lua nascendo do outro, em forma
– Nada disso, lugar de criança é na escola – coço. E o céu, nada de devolver a bola. Até de uma grande bola amare... Ops! Mas não
respondeu uma mulher. que o menino cansou de esperar. Baixou era lua coisa nenhuma: era a bola, era a
a cabeça e olhou outra vez para o chão. E pequenininho e veio crescendo... crescendo... crescendo... bola amarela, que imaginava perdida para
– Se todos forem pra escola, quem vai en- viu um monte de sapatos necessitados de sempre. O menino apressou os pássaros e
graxar nossos sapatos? – perguntou
outro homem.
brilho. E um monte de pés impacientes. flap flap flap flap flap flap flap flap flap flap flap voou em direção à bola, como se o brinque-
do fosse a coisa mais preciosa do mundo.
– Perdeu o brinquedo, seu preguiçoso? Tão preciosa que o menino fechou os olhos,
Bem feito – zombou um homem. Até que o mundo escureceu. O menino abraçou a lua com toda a força e jurou
olhou para o céu, mas nem viu o céu, nunca mais deixá-la escapar.
– Vem trabalhar, menino – gritou o outro. porque o céu estava escondido por uma
nuvem gigante e veloz, um borrão colorido Quando abriu os olhos outra vez, o menino
E naquele dia o menino trabalhou, traba- e barulhento que vinha estava deitado na calçada. Tinha a bola
lhou, trabalhou. Até quase esquecer que, amarela firme entre os braços, como se
por alguns minutos, havia sido criança. fosse o goleiro da Seleção na final da Copa
crescendo... crescendo... crescendo... do Mundo.

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De tão feliz, o menino nem viu a multidão
de pés apressados que podia esmagá-lo a José Rezende Jr. ganhou o Prêmio Jabuti
qualquer momento, por descuido ou por (melhor livro de contos, em 2010) com Eu
maldade. O menino já não tinha medo. perguntei pro velho se ele queria morrer
(e outras estórias de amor). Estreou na lite-
Espreguiçou-se e olhou para o céu. Viu ratura infantojuvenil em 2014, com Fábula
primeiro o amigo passarinho; depois, as Urbana. O menino que nao via o céu é sua
nuvens desenhando figuras desconhecidas: segunda incursão no gênero.

escola

livros

cadernos

outros brinquedos além da bola.

O menino não sabia o que eram todas


aquelas coisas, mas decidiu ir em busca
de cada uma delas. E foi. Olhando sempre
em frente.

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BOLIVIANOS
Marlene
Bergamo

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Marlene Bergamo nasceu em 1965 em
São Paulo. Iniciou a carreira no extinto
Notícias Populares e desde 1995 atua na
Folha de S. Paulo. Seu trabalho integra
coleções do Museu de Arte Moderna de
São Paulo, Pinacoteca e MASP/Pirelli,
e exposições em países como Holanda,
Alemanha e Espanha, além de bienais
no Brasil. Seus ensaios podem ser vistos
em livros como Brasil Bom de Bola, Brasil
500 Anos, Torcedores – Rituais e As Donas
da Bola. Entre os principais prêmios estão
o Nacional de Fotografia MINC (1996),
o Grande Prêmio Folha Reportagem
2006 e 2014 e o Prêmio Folha Fotografia
2007 e 2013.

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ISAULINA
Clara
Arreguy

Para Tia Neném,


Dorcelina,
Teresa,
Maria Augusta e
todas as mães pretas
da nossa vida

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Eu sô uma preta veia aqui sentada ao sole. entregano pr’ele, eu mais meu irmão.
Pelo menos era assim que o meu menino Ficô viúvo com dois menino, teve que dá.
mexia comigo, quando passava pelo quintá Eu queria que o irmãozinho viesse junto,
e eu cascava batata. O meu menino. Um mas o Doutore Juiz disse que num podia.
deles. Quale? O branco, craro. O Fubá. E num podia mesmo, fui vê despois. Ele
Que meu fio preto se foi há tanto tempo já... também era viúvo, fiarada, e só Grória, a
E eu num sô uma preta veia aqui sentada mais veia, pra cuidá de tudo, da casa, dos
ao sole. Diz o Fubá que é uma musga em menino, de escola, roupa, remédio. Grória já
minha homenage. Duvido. Quem vai fazê crescidinha, mas ainda menina. Ainda não
musga pr’uma veia preta sem dente e sem tinha casado com João, mas já tava noiva.
força inté pra cascá laranja?
Meu pai, meu irmãozinho, o borrão se
A primeira vez que ele falô isso foi pra me despedino sem adeus na solera do Doutore
provocá. Me chamava de preta veia quando Juiz, o passado apagado com aquela bor-
eu nem era tão veia assim. Tinha o que, ses- racha que Grória passava na lousa, tantos
senta ano? Sei lá. Perdeu-se nas lembrança. ano, ensina, corrige, conserta, ensina,
No esquecimento, mió dizeno... Agora que repete... Grória era inteligente demais. Foi
passei dos cem, quem vai dizê que era veia ela que me ensinô tudo. O Doutore Juiz falô
tanto tempo atrás? Cento e um, cento e dois, assim: “Isaulina, você vai ajudá a Grória.
quem pode sabê? Nunca tive documento, Obedeça a ela, faça o que ela dissé e fizé”.
papele, nada. Minha idade foi carculada E assim foi. Primeiro que tudo, mamadeira
pela Grória, que era danada de inteligente pro caçulinha. Grória tinha muitos irmão,
e dizia que minha data de nascimento mas tava pra casá. E o Doutore Juiz também
era “estimada”. já tinha noiva prometida. Assim que um se
casasse, a outra também lá ia. Assim as
Da minha parte, sempre estimei essa data. criança não ficaria sem mãe...
Afiná, foi Grória que me deu. Me deu tudo:
neversário, dia de festa, presente. Inté Depois da mamadeira, ela foi me mostrano
horosco ela me deu. Também, era uma data as panela, o arroz com feijão de todo dia,
importante. O dia que cheguei à casa dela. o gosto de cada um, bife fininho e bem
Virô feriado nacioná. Primeiro de maio. passado, esse adora ovo mole, aquele tem
alergia. Café fraco e coado na hora. Bolo
De nada lembro antes daquilo. Num me pra de tarde. Bate a massa, e meus braço
lembro da minha mãe. Meu pai é um borrão ficano forte. Coisa boa era batê bolo. Não
na solera da porta do Doutore Juiz, me demorô pr’eu aprendê a cozinhá goiaba

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***

e fazê a mió goiabada cascão da casa. pai enquanto eu dava banho mode baixá Grória e João tivero tantos fio quanto o eu tivesse que virá noite cortano e costura-
Também, com tanta fruta no pé, só mesmo febre, tenteava que tenteava fazê o pobre- Doutore Juiz. Era pra ser doze, mas alguns no. Aproveitava trapo veio, roupa que não
fazeno doce. Manga. Figo. Limão. Laranja. O zim engoli uma gotinha d’água que fosse, não vingaro. Num resistiro às febre, às se usa mais, resto de cortina, e olha ali o
Doutore Juiz podia tê criado a fiarada à base e nada... Os bracinho molengano, os oinho diarreia, ao nó nas tripa. Tempo ruim, sem costume pras personage das menina na
de malmelada. A gente lambia os beiço, eu revirano, a boquinha gulitano o que pusesse remédio nem médico dereito. Quantas vez cena do teatro.
e os menino. pra dentro, os úrtimo tremelique antes do o menino tinha uma fraqueza, uma dô, e
suspiro finá... Foi a primeira vez que um a gente nem sabia o que era. Nossos chá, Aprendi a costurá, craro, ajudano Grória a
Aquele dia que cheguei, mirrada e com anjinho se fez nos meus braço. A primeira nossas erva, de nada adiantava. A gente apertá pros pequeno a roupa que já não
medo, foi seno esquecido sem que eu fizes- de tantas, Deus meu. virava a noite dano banho, ninano no braço. servia pros maiorzinho. O uniforme deste
se força. Só fui percebê que o tempo tinha Eu num deixava Grória ficá na vigia. Afinar, ano da Donlita vira o do ano que vem pra
passado um ano despois, quando Grória Enfim, chegô a noiva e o Doutore Juiz se ela percisava levantá cedo pra mode ir pra Nini. O vestidinho de festa da Nini no ano
mandô fazê bolo, cocada e pé de moleque, casô. Grória e João fizero o mesmo logo em escola, tinha os aluno pra dá aula, as prova passado vai sê o traje de baile da Mana este
e juntô todo mundo pra cantá parabéns pra seguida. Eles era jove e trabaiava muito, pra corrigi, antão ficava eu mesma velano ano. Cortá, apertá, costurá, cerzi, pespon-
você pra mim. Foi o meu primeiro neversá- antão ela não me deixô ficá na casa do pai. o anjinho. Quantas noite, quantas cantiga, tá, bordá, dá bainha, fazê e refazê. Da cô
rio. Pelo meu tamanho, determinô que seria Mandô a madrasta arrumá outra menina meu Deus! Ninano ora pra mode dormi, ora preferida de uma, com a gola que a outra
oito anos. Grória, Grória. Tudo veio dela. Só e lá fui eu com minha nova mãe, minha pro sono etelno... imaginô. Seguino o morde que alguém achô
não conseguiu me ensiná a lê. Tantos ano irmã, minha patroa – o que foi Grória pra numa revista, copiano a estrela do cinema.
depois da morte de Grória, um dos menino mim? Tudo, uai. Grória e João. Eles era bão Mas nem tudo era desgraceira naquês Tricô e crochê. Roupa arrumada, um terni-
me levô pro Mobráulio, mas também lá não demais. Me davam o que eu percisasse, tempo de criação de fio. A gente se divertia, nho, nunca faltô pros meus menino, pras
adiantei muito. Aprendi a assiná meu nome, me ensinavam a fazê as coisa, a entendê as também. O nosso povo gosta de festa, de minhas menina.
garatujei minha primeira carteira. Já tinha coisa, nunca me deixaro faltá nada. E eu era cantoria e de teatro. Eu sô de natureza
quantos ano? Quase setenta... da famia. Seus fio era meus fio. Seus neto, alegre, de modo que aprendia as musga Engraçado mesmo foi quando as menina
meus neto. Seus sobrinhos, os sobrinhos que eles tanto gostava, e ainda tirava do crescero e começaro, elas também, a se
Em geral era bom na casa do Doutore Juiz, da Isaulina. fundo do baú os canto mais antiquado, que casá e a tomá o rumo de cada uma. Era
mas aquele meu primeiro ano deixô a não lembrava nem sei como, e ensinava pr’eles. uma disputa pra vê quem me levava junto!
desejá, com o caçulinha seno levado pela O teatrinho não podia sê feito male e male. Todo mundo queria, mas enquanto Grória
gripe espanhola e a famia de novo de luto. Tinha que tê cenário e figurino, era o que viveu não tive corage de sair do lado dela.
Como podia me esquecê do pavô de fia e eles queria e o que eu pensava. Nem que Passava temporadas na casa de uma, férias
na casa da outra... Nascia uma criança na
Quica, lá ia eu ajudá nas primeira semana,
fazê minha canja de galinha especiale pra

96 97
***

muié parida, cuidá do bebê inté o imbigui- parente em dificulidade. Quantas vez fomo, Mas pensam que eu num tive minha pópria Quanto mais me contavam que choravam
nho caí... Ah, não se esquece de enterrá no eu e os mais novo da escadinha de fios, casa e meu póprio fio? Tive sim. Tive meu pra dormi, mais eu chorava cá no meu
pé da roseira. É garantia de rosa perfumada dormi na sala pra dá lugá a uma tia veia que menino preto, fruto do meu casamento, canto. Mas obrigação da muié é cuidá das
pro relsto da vida... viesse pra cidade passá uma temporada que eu também arrumei marido. Era um coisa do marido, antão eu me disdrobava
em tratamento de saúde. Quantas vez uma rapaz bem apanhado, retinto, mas bonitão, pra não deixá faltá nada pra ninguém, nem
Não teve tempo mais difice que o tempo dos sobrinha ou prima veio morá conosco pra que se encantô pelas minhas bochecha cá nem lá. Foi mais difice quando o Tidinho
menino doente da Donlita. Os três desapu- mode estudá, pra tê uma refeição decente. redonda e me fez a corte na missa, depois tava pra nascê, eu ainda mais gorda do que
rado, tadinhos, com coisa de tiroide – eu E a gente cuidano, zelano, aprendeno o na jinela, inté tê consentimento de João pra já era sempre. Mesmo assim me arrastava
achava que tinham tiroide inté no pinto, de gosto de cada um, as preferença, pra mode ir em casa me namorá no portão, as menina pra cumpri minhas obrigação, com a famia
tanto que eram prejudicado, os pobre. No fazê um agrado e num deixá ninguém com vigiano pela fresta. Aristide era o nome dele. e o marido, e as coisa se ajeitava. Tempo
começo ainda andavam, mas aos pouco sodade de mãe. Com boa intenção e permissão de Grória, bão, mas durô tão pouco! O pobre do Aris-
perdero os movimento, passaro a dá trabaio me levô pro altá. E logo logo veio o Tidinho tide num teve sorte num acidente na obra.
pra comê, pra limpá as sujeira da nature- Eu nunca fui fazedeira de pouco caso. De completá minha felicidade. Pensa um caminhão de terra despejado em
za... Nunca chegaro a falá. Só me chama- casa em casa, tia de todo mundo, madrinha cima d’uma criatura? Pois no movimento
vam gritano Ina... Ina... Era o jeito de me de uns tanto. “Isaulina, vem morá conosco. Difice pra mim foi deixá a casa da famia. de um tratô dos grande o barranco cedeu
pedi colo, mamadeira, laranja pra chupá, Nossa casa fica tão sem graça quando ocê Como eu podia fazê isso com Grória, que na obra da BR e o meu marido foi soterrado,
o que fosse. Aí foro cresceno, os pobrema volta pra Vovó!” E tome bolo, doce, canja, era tudo pra mim? Ainda bem que arru- ele mais três colega. Quatro moça deixadas
se compricano, já dependiam da gente pra empadão, pastelão, papa de mio, arroz-do- mamo um barraco pelto de casa. Assim eu viúva, um monte de órfãozinho como o
tudo... Quanto sofrimento, Deus meu. Noites ce, arroz de forno... Eles ficano fortes e co- podia acordá cedo, cozinhá a malmita pra meu Tidinho.
de dô e gritos, sem força nem pra morrê. rados, eu cada dia mais gorda. Por isso que mode o Aristide levá pra obra da Rio-Bahia,
Precisaro completá quinze ano, um por um, o meu menino fica me chamano de preta onde ele trabaiava. Despois corria pra casa Ocê quer que eu lembre e conte, né, seu
pra consegui, por fim, descansá... Prefiro veia sentada ao sole. Porque o joeio dói, viu? pra mode ajudá a prepará os menino pra ir Fubá? Pois antão tá. Chegaro lá em casa
nem me lembrá da agonia daquês menino Num queira sabê. Bom, agora dói menos, pra aula. Dava tempo. De tarde, voltava pro com o corpo dele todo enlameado em cima
no fim da vida. Num conto, não. depois que me fizero aquela operação e me barraco antes que o Aristide chegasse, pra d’uma maca, padiola, sei lá. Primeiro o
pusero a tal de pótrese no joeio. Agora pelo tê janta pro homem cansado. Fomos feliz, susto, depois chorei e chorei. Mas alguém
A vida num foi face pra Grória e seus fio. menos posso andá mió, com uma bengali- apesar da sodade que os menino tinham de tinha que dá banho no corpo, tirá aquela
Mas alegria nunca fartô. Turma religiosa e nha, e nem perciso mais tomá bizeró. mim na hora de dormi. Num acostumavam lama toda. De modo que engoli o choro.
festeira, cheia de fé e de amor à vida. Sem- sem meu mingau de aveia. Num tive trabaio pra escoiê o telno pra vesti
pre se amparano uns aos outro, ajudano ele pras despedida. Era o do casamento. O
os pobre, estendeno a mão, acoieno um único que ele tinha. Ficô ainda mais bonito,
limpinho e de telno no caxão.

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É, quem tem fio pequeno pra criá tem mais Do meu irmãozinho que sumiu na soleira que lá se casara e tivera duas fia, seno uma pessoarmente. Meio sem jeito, engasga-
é que enxugá as lágrima. Num fiquei uma do Doutore Juiz nunca mais tive notícia, a mãe daquela jove. A outra, mais veia, das pela emoção, nos falamo ao telefone e
noite sozinha naquele barraco. Grória e João mas nem por isso fiquei sem famia de entrara prum convento e agora era irmã combinamo tudo.
foro lá me buscá logo despois do velório e sangue. Deu-se a descobelta da forma mais de caridade no interiô de Goiás. Magina a
do enterro. “Isaulina, vorta pra casa que engraçada. Vô contá. De vez em quando, no emoção: descobri que tinha famia, naquelas Dois mês despois, Grória me deu passagem
percisamos docê e ocê de nós.” E fomos, eu tempo das féria, a famia ia toda pra praia. artura da vida! Do meu irmãozinho a Jandira e mandou a Zezinha ir mais eu. De modo
mais o Tidinho. Meu fio foi criado junto com Uns alugava casa grande, com muitos qual- num sabia nem da existência. Meu pai já que fomo pará em Anápis, onde a Irmã
os dês, irmão com irmão. Sem diferença to e muitas esteira pras criança passá um havia morrido, assim como minha irmã, a Gabriela era fleira da ordem das Clarissa,
por sê preto e pobre, fio da criada da casa. tempo ao sole e na água do mar. Inté eu me mãe dela. Mas eu tinha uma irmã fleira em com seu lindo hábito branco e aquela cara
Tanto que Grória ensinô pr’ele as letra e os aventurava, de vestido largo, a banhá os pé Goiás e uma sobrinha, empregada domésti- de anjo. Num se parecia comigo feito a mi-
número e arrumô borsa na mió escola militá naqués ondinha espumante e sargada ca, em Tarumirim! nha sobrinha Jandira. Ao contrário de nós,
pra ele não ficá sem futuro. Em pouco tem- do Esprito Santo. era miúda e magrinha. Bondosa, serena,
po, oia o sargento Tidinho todo engalanado, Ali mesmo na praia o Fubá anotô endereço, me contô que nosso pai havia vivido muito,
bonitão que nem o pai. Como o menino Pois bem, uma bela manhã de sole, lá telefone e tudo. E indesd’esse dia, com a trabaiado na roça numa fazenda perto de
me lembrava o Aristide! Nunca mais quis estava nós brincano na praia, eu de oio nos ajuda da meninada, comecei a trocá corres- Monte Claro e morrido bem veinho. Também
sabê de marido. Fiquei dramatizada. Não ia pequeno pra não sumi ninguém, cascano pondência co’a Jandira. Fiquei sabeno da num tinha notícia do nosso irmãozinho, nem
guentá a dô de outra separação. umas laranja, quando ouvi a algazarra de sua vida, de seus sonho, do moço que ela sabia da existência dele. Decelto meu pai
riso dos maiorzinho. Era uma moça que namorava e que despois de um tempo virô deve de tê dado o menino pra alguém, ou
A gente se apega e depois tem que dizê lá envinha, gorducha, co’a bunda grande, o pai dos fio dela, meus sobrinhos-neto. Foi senão morreu pequeno, como era tão co-
adeus. Porque meu menino puxô o pai inté tão parecida comigo qu’ês num resistiro e uma das fia dela que me escreveu, anos mum naquele tempo, e o veio preferia não
na vida curta. Deus quis que ele tivesse mexero com ela: “Oia a fia da Isaulina, oia depois, pra me contá da morte da minha falá mais dele. Nem de mim, pelo jeito.
uma doença de coração inda tão novo, e a Isaulina novinha...”. Parecia tanto comigo amada sobrinha, aquela que me veio nas
num desse tempo nem de chegá a tenen- que inté no bom humor era eu escrita. onda do mar morno do Esprito Santo. As lágrima do nosso encontro, no entre-
te. Já tava inté noivo, pensano em casá e Começô a ri e veio indagá por que tanta tanto, foro somente de alegria. O tempo
em me presentiá com neto, quando passô mexeção. Eles antão trouxero ela e me mos- A minha irmã fleira também consegui já tinha passado e as tristeza da infância
male no quarté e chegô morto no hospitá. traro pr’ela. Nós duas rimo até as bandeira encontrá. Os menino descobriro, pelas infor- era lembranças esfumaçadas nas noite de
Meu menino preto, meu pobre anjinho que despregá! Parecia espeio uma da outra – mação da Jandira, a cidade onde ela vivia. pesadelo. Agora a vida nos sorria, eu tinha
num conheceu pai nem fio. Outro bonitão com uns ano de deferença, craro. Procuraro o convento onde ela trabaiava, minha famia de adoção, que eu tanto amava
de falda no caxão. Se num fosse a famia de pegaro o número, ligaro. Deve tê sido um num amore correspondido, o Tidinho já era
Grória e João, num teria tido nem afeto nes- O Fubá, sempre inxirido, logo começô a es- susto pra Irmã Gabriela ouvi, do outro lado uma sodade gostosa de senti, quando a
sa vida. Mas teve. Ninguém aqui em casa peculá co’a moça, co’a Jandira. Qual era o da linha, que era da parte da Isaulina, uma gente via uma parada de Sete de Setembro,
nunca vai esquecê o Tidinho com seu unifol- nome dela, nome de pai e mãe, d’onde en- irmã mais veia que ela num conhecia e que uma baliza bem feita... Também com a Irmã
me, o Tidinho com seu quepe na cabeça, vinha, e descobriu que o avô da Jandira era vivia assim e assado em Caratinga, ou mió, Gabriela troquei calta enquanto ela foi viva.
o Tidinho fazeno baliza na parada de Sete ninguém menos que o meu pai. Conversa em Belzonte, que a gente já tinha mudado. Quando recebi do convento telegrama co-
de Setembro... vai, conversa vem, ficamo sabeno que meu Que eu queria ir lá pra mode conhecê ela municano seu passamento, já era vespra do
pai havia se mudado pro Nolte de Minas, sétimo dia. Mandamo celebrá missa solene
pr’ela, uma santa criatura que espaiô o bem
enquanto teve por essa Terra.

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***

Comecei a contá essas história por causa da aconteceno na Zoropa durante a guerra?” e a Nini. Mana e Quica foro nascê em Tabiri- “Que coisas, Ina?” Ocê já ouviu falá de dita-
perguntação do Fubá, fio da Mana e um dos Craro, uai. A gente ouvia no rádio. Ficava to. Despois, Grória passô uma temporada dura, seu Fubá? “Eu já. Num sabia era que
menino mais chegado comigo. Indeusde todo mundo em vorta do rádio. O seu tio em Belzonte, estudano com aquela profes- ocê também conhecia isso.” E não? Pois o
neném ele não largava de mim. Por causa Mirto, que era o mais inteligente de todos, sora russa que diziam sê uma “sumidade” João trabaiava do lado de um lugá onde eles
do cabelinho louro, pusemo nele o apelido entendia ingrês, francês, alumão, antão – mas quem vivia sumida mesmo era Grória. trancava os comunista e quebrava eles de
de Fubá, Fubareco. E assim vem seno, ele ouvia uma rádia, outra rádia, outra rádia, e Nós ficava, eu mais João, cuidano das pau. Dia e noite se podia ouvi os grito dos
garrado na minha saia, me puxano pela ia contando pra gente. No fronte tale, acon- criança em Tabirito, e ela só ia no fim de se- comunista. O João, a vida toda catolco e te-
mão, me assuntano as coisa. “Ina, onde foi teceu isso, isso e isso, avançamo. No fronte mana, de trem, uma luta danada. O Ãozinho mente a Deus, não guentava ouvi tanto sofri-
que ocê nasceu? Ina, quando foi que ocê quar, perdemo posições... Parecia novela de foi com ela estudá na capitá. mento. Chegava em casa arrasado e falava
nasceu? Ina, do que é que cê lembra de rádio ou futebole, só que todo mundo torcia com a gente: “Grória, não vô dá conta de
primeiro?” E por aí afora. Ô menino pergun- pros aliado e contra os alumão. Despois que as duas nascero em Tabirito, ficá naquele trabaio. Perciso saí dali”. “Mas
tadô. Agora já tá veio também, já tem fio e nós mudamo todos pra Belzonte. Foi um ir pra onde, João?”, ela indagava, tristonha,
neto, mas cismô de fazê firme, trabaiá no “Ina, quando foi que ocê viu luz elétrica tempo bom. A cidade era bem maió que as agora que tava bem colocada numa escola
cinema, e inventô de firmá a minha vida. pela primeira vez?” Ô menino inxirido, tem duas onde a gente tinha vivido, mas ainda do Rio Comprido. “Num sei, mas vô embora
coisa que a gente esquece. Faz tempo era tranquila, sem muito carro. O bonde ia nem que seja de vorta pra Caratinga...”
“Ina, ocê lembra da primeira guerra?” Sei lá demais. Num me alembro quando acen- e vinha, a gente atravessava o centro pra vê
se era a primeira, a segunda ou a tercei- dero os primeiro poste elétrico na rua de o comércio da avenida, com aquelas arvres E assim nós fumo. João mais eu na frente,
ra, menino. Só sei que lembro da guerra. Caratinga, mas quando chegamo no Rio de enormes! Mas num era perigoso. Tá certo com as menorzinha, que ainda não tava na
“Com’é que era a guerra, Ina?” Era assim: Janeiro já era tudo iluminado. “Ina, como que a Nini foi atropelada aquela vez, mas escola. Deixamo pra trás Grória e os grande,
o Gastão teve que se alistá no Exércio. Nós foi que ocês foro pará no Rio?” Ô meu num chegô a se machucá. Foi só susto. A que aguardava o fim do ano coletivo, pra ela
ficamo morreno de medo, uma choradeira, Cristo Rebentô, mais história pra contá pra gente mais riu que chorô com o acontecido. mais eles conseguirem transferença. Che-
rezas e promessas. Ele viajô pra Bahia, ficô esse Fubareco metido a autista de cinema. Com as cara branca feito cera – da Nini e do gamo em Caratinga com u’a mão na frente
lá encurralado num navio esperano a hora Disliga essa praga aí, menino, que eu tenho chofé do tomove. e a outra atrás. Nos acomodamo na casa
de sê mandado pra Itaia. Ocê sabe, né, a mais o que fazê. da dona Chiquinha, mãe de João, enquanto
Itaia é a terra do seu tio Uíra. Era lá que os O João trabaiava em banco, naquela oca- ele negociava com o irmão pra vortá pro
brasileiro ia lutá a guerra. Antão, o Gastão “Tem nada, Ina, ocê é uma preta veia aí sião, e foi transferido pro Rio. Por isso fomo caltório que tinha deixado uns ano antes. E
ficô esperano, esperano, inté que a guerra sentada ao sole...” Assim ele fala comigo, pará lá. Nessa época já tinham nascido a Gó fumo procurano casa pra recebê o restante
acabô e ele não percisô dá nem um tiro. Foi dizeno que tem musga feita em minha ho- e a Zezinha. Só a Neusa foi nascê carioca. da famia no fim do ano. Um pedaço difice,
um alívio danado. menage. Fomos morá no Rio muito despois “E por que vortaro tão rápido de lá? Não mas um alívio pro pobre do João, que nunca
de sair de Caratinga. João saiu do caltório ficaro nem dois ano... Não era boa a vida pensô tê que testemunhá tortura com os
“Só isso? Que mais?” Ah, a gente passô da famia e foi pro caltório de Itabirito. Grória na beira da praia?” Se ao menos a gente ouvido... Naquele ano ele falô tanto nessas
apelto naquele tempo. Fartava coisa, tinha conseguiu transferença do grupo escolá e morasse na beira da praia... A gente morava coisa de ditadura que eu aprendi e nunca
o cartãozinho do racionamento. A gente lá se foi a famiage toda, e eu junto. Naquele longe, bobo. Tinha que pegá ombus pra vê a mais esqueci.
juntava pra comprá cada famia sua cota tempo era só o Ãozinho, a Donlita, o Gastão cara do mar. E num foi boa a estada lá, não.
de comida, de querosene pro lampião, sei Acontecero coisas horrives!
lá, já esqueci. “E ocês sabiam o que tava

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***

Aquês tempo de Caratinga, com as meni- encapota do outro lado da pista. Grória bate oio dereito, não ouvia com o ouvido dereito. confissão de muié sem pecado. Ditano, con-
na virano moça, fazeno festa e arrumano com a cabeça, se lasca toda, mas graças Seus movimento era só o que ela dava conta seguiu escrevê um livro sobre as desventura
namorado filme, nos dero os mió dia de a Deus se sarva. Só que, dali em diante, de fazê com o lado esquerdo. O que seria d’uma professora no interiore de Minas,
juventude. Elas era inteligente, alegre e começa a senti uns branco, a esquecê o dela se eu não tivesse do lado para ajudá naquês tempo em que male tinha lousa, giz
sadias. Formosas que pareciam mocinhas fogo aceso no fogão, a interrompê uma fala, ela a andá, a comê, a banhá, a vesti? e carteira.
de fita seriada. Em pouco tempo se casaro sem sabê o que fazia ou dizia. As coisa vai
Donlita e Nini. Logo o Ãozinho foi simbora piorano, a gente num entendeno nada, inté Como sofreu a criatura, com aquela inteli- Perdemo Grória num início de outubro. Seu
pra capitale, pra mode virá jornalista impor- que as menina acha mió leva ela pros médi- gença toda, e o corpo pelas metade. Não corpo finarmente se cansô. As ideia já tinha
tante. O Gastão passô por aquele perrengue co, pra mode vê o que se assucedia. pôde fazê nada quando João caiu morto se perdido nos úrtimos mês. Despois de oi-
da guerra, mas na vorta, curado da tubel- d’um derrame na cabeça. Nosso susto foi tenta e seis anos de brio, tava viveno numa
culose, também arrumô noiva e fez famia. Grória descobriu que tinha na cabeça um tão grande que as lágrima só começaro a caduquice inté engraçada. Via anjinhos na
Dez anos despois, com a mudança de um tumorro do tamanho d’uma laranja. No corrê de noite, quando ele num vortô pra solera da porta, seminaristas no jardim, gen-
por um pra Belzonte, restô a João e Grória, encapotamento, o coiso se mexeu e agora dormi. Fios e fias cuidaro do velório e do te que tinha morrido há tanto tempo. Queria
comigo a tiracol, vortá pra perto de todos. desafetava tudo aqui na cabeça lá dela. Era enterro. Grória e eu, apoiadas uma na outra, porque queria consultá com o dotô Meira,
João empregado em banco, Grória primeiro o que me expricava os menino, com conver- sentimos perdê a outra metade que ainda seu médico, morto tinha mais de trinta ano.
como professora mesmo, despois orientado- sa de célebro, função não sei das quanta. lhe restava. Ela num tinha força nem pra E se alguém ameaçava chamá o dotô Meira,
ra, cordenadora e diretora de grupo escolá. Seria perciso uma operação de horas pra ficá de pé. Nem com meu braço a ampará. ela rebatia: “Não seria mió um médico vivo,
mode retirá o negócio, com o coco seno Ela só alembrava d’uma poesia que João lia minha fia?”.
Enquanto isso, casa uma, nasce neto, o serrado e despois colado. Deus me livre de pr’ela sobre uns císneis que tinham prometi-
Geogeno, meu Deus, coisa mais linda! Casa senti o pavô que me vei quando sube de do segui juntos pela eternidade e acabavam Inté hoje num sei como sobrevivi ao passa-
outra, mais dois neto. E a famia se espaiano, tudo isso. O que seria de mim se alguma se separano despois de cinquenta anos mento de Grória. As menina não me deixaro
Gó e Quica pro Rio de Janeiro, netos cresce- coisa acontecesse co’ela? de harmonia. pulá no caxão e segui com ela. E era o que
no, as menina percisando da minha ajuda, eu faria, num tivesse uma fila de deses-
eu pra lá e pra cá, de ombus, de trem, ô Quando acordô da tale operação, Grória A viuvez de Grória durô mais de dez ano. peradas, entre sobrinhas, primas, amigas,
sodade do Vera Cruz! A gente levava a noite num se alembrava de nada do que tinha Fios e netos liam livros pr’ela, a gente ex-alunos, parentes e protegidos que se
inteira entre a Praça da Estação e a Centrale ocorrido indeusde a viage ao Rio, quase repetia, aos berro, as cenas da novela de despedia da maior benfeitora que tivero
do Brasil... Sete hora da noite aqui, sete da um ano antes. Estranhô de vê a Nini com televisão pr’ela consegui acompanhá as his- na vida.
manhã lá... Nesse vaivém, aconteceu uma neném de colo – num recordava da barriga tória de amô. Padres amigos rezava missa
coisa horrive: Grória vinha de temporada no da fia. Os úrtimos mês tinha sido completa- na casa dela, levava comunhão, ouvia sua
Rio com os recém-nascido de Gó e Quica mente apagado da ideia dela. Em compen-
quando o ombus faz male uma curva e sação, num tinha mais aqueles branco, num
esquecia mais nada. E num mexia um lado.
Nem pé nem mão. Num enxergava com o

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*** ***

Ocê notô como eu tô tão deferente? Ocê O tempo passa depressa, os ano se assuce- O Fubareco é um que foi morá em Brasia. Pois a Donlita foi ficano esquecida, confusa, depoimento pras poliça? E eu lá sô rica pra
notô que o Brasil tá tão deferente? A água de, as famia se cria e desfaz, por morte ou Lá ele começô com esse negoço de fazê sem animação de levá nada a cabo, sem tê herança de escravo? Falei co’ela pra levá
lava, lava, lava tudo, só não lava a língua separação, e a gente ali, filme, com o colo firme e cismô de contá minha história. É querê nem pintá os cabelo. Os menino o firme do Fubareco no meu lugá e pronto.
do povo... gordo, macio e cheroso pronto para acoiê um tar de gravá no gravadore, tirá retrato, preocupado, eu num podia tirá as vista Ele num disse que ia contá tudo no firme?
quem chega. De preferença o que perdeu videocassete, sei lá como chama essas coi- dela. Inté que suas força minguaro demais, Num firmô inté meu neversário de cento e
Com a morte de Grória, sua casa deixô de a caçulice. Craro. Pois quando todo mundo sa. Tanta conversa fiada! Tanta lembrança e com elas a cabeça parô de vez de fun- dois ano? Antão!
existi e eu fui vivê com Donlita, que já tava só tem oios pro novo nenenzinho que acaba boa e ruim que ele me pede pra desenterrá. cioná. Virô que nem uma criança. Isaulina,
viúva e percisava imensamente do meu de chegá, quem vai consolá o penúrtimo? Diz que eu num posso ficá que nem uma me acode que eu tô com fome. Isaulina, me Ah, dona Cíntia, larga de ser borrecida!
apoio. Os três fio doentinho já era só uma A Isaulina, é craro. Num consigo vê sofrê preta veia aqui sentada ao sole. Diz que tem leva no banheiro. Isaulina, fica comigo que Me deixa eu quieta aqui no sole que tá tão
lembrança triste e doce. Os dois sadio, Geo- menino pequeno, quanto mais quando ele musga com essas coisa de preta veia senta- eu tô com medo de dormi... Triste fim de quentim. É só o que eu sô mesmo: uma
geno e Mira, já criados e casados, a Donlita não tem quem oie pr’ele. da ao sole. Acho que ele tem medo que eu uma dama. Quando ela se foi, descansô. preta veia aqui sentada ao sole... Para de
inventô de tê outro menino. Era o Leio, um morra cedo. E eu me arrastano com minha E nossas lágrima secaro. me amolá e vai caçá selviço, menina!
pretinho magricelo que ela pegô das mão E num é que co’a ajuda do meu Fubá pelna sem jeito – bem mió agora que operei
do Gastão, que por sua vez recebeu do colo consegui minha aposentadoria? Custô, eu o joeio e troquei tudo. Só uso mesmo a ben- Continuei com o Leio, ajudano ele mais a Brasília, junho de 2014
d’uma mãe sem condição de criá ninguém, já tava com mais de oitenta ano, mas enfim gala pra dá mais apoio e batê pelna pra lá e muié dele a educá a fiarada. Ques menino
nem a pópria si. A Donlita daria conta, sozi- o governo, o esquitute de previdença, sei pra cá. Num tem jeito, eu num sossego... bãos! A Cíntia, a mais veia dês, é meia tope-
nha, de cuidá de um bebê? Craro que não. lá quem, reconheceu meu dereito e passô tuda. Arresorveu de estudá pra devogada.
Ela percisava de mim. Lá fumo nós. a me pagá um salarim todo mês. Foi com Morei com a Donlita enquanto ela viveu, E agora ficô importante, doutora juíza, que Clara Arreguy é mineira de Belo Horizonte,
meu póprio dinheirim que consegui fazer coitada. Sofreu, viu. Porque despois de nem o tataravô dela, percuradora num sei radicada em Brasília desde 2004. Jornalista
muitas viage, indo atrás dos fio, dos neto e viúva sua pensão num dava pra nada. Se das quanta. Não entendo dereito o que ela e escritora, é autora dos livros Segunda
dos fio dos neto de Grória. Gente no interiô num fosse meu dinheirim da posentadoria, tanto percura. Cismô com umas ideia isqui- divisão (Lamparina, 2005), Fafich (Concei-
de Minas, Quiricaba, Poço de Calda, no nem sei como a gente chegava ao fim de sita sobre o meu trabaio, anda falano umas to, 2005 e 2014), Tempo seco (Geração,
Rio, em Brasia, no Ceará! Fui pará em uns mês mais apertado. Nós duas lá, filmes, coisa que eu num gosto nem de ouvi falá. 2009), Catraca inoperante (Outubro, 2011 e
Aparecida numa romaria! Fui inté no ajudano o Leio. Ele logo se casô e continuô Fiquei braba mesmo com ela. Ó, pode ser 2014), Rádio Beatles (2012), Siga as setas
Piraguaio, prumas comprinha com minhas morano conosco, mais sua muié e os meni- fio da Neusa, pode ser fio da Mana, pode amarelas (Outubro, 2014), Sonhos olímpi-
amiga... Panhava o ombus na breviária no, cada um mais lindo que o outro. Sabe, ser fio da Donlita ou do Leio, pode enrolá cos (Franco, 2015) e Dia de sol em tempo
e lá ia eu, toda prosa, batê pelna pelo outro dia me dei conta que os fio do Leio que eu desenrolo... de chuva (Chiado, 2015). Trabalhou nos
mundo. É de vera. são os primeiro neto preto de Grória e João. jornais Estado de Minas e Correio Brazilien-
Meus também, né não? É Ina pra cá, Ina pra A Cíntia inventô de me levá num lugá pra se e escreveu crônicas para a revista Veja
lá, num me dão sossego. A caçulinha num falá numa tale de começão não sei das Brasília. www.clara-arreguy.com
dorme sem meu chamego. Quem faz a ma- quanta, contá minha história, pra mode
madeira mais docinha e morninha? Quem dá depoimento de num sei quê, de trabaio
assa o bolo mais gostoso? Quem embala o doméstico, herança dos escravo e num
sonim no braço gordo sem cansera? sei mais quê. E eu sô lá bandida pra dá

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LAVRADORES
Tibério França

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VAQUEIRO,
UM HERÓI
MARCADO
COMO GADO
Xico Sá

Eu venho dêrne menino,


Dêrne munto pequenino,
Cumprindo o belo destino
Que me deu Nosso Senhô.

Eu nasci pra sê vaquêro,
Sou o mais feliz brasilêro,
Eu não invejo dinhêro,
Nem diproma de dotô.”

Patativa do Assaré

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O ferro em brasa que firma as letras iniciais Somente em 2013, a profissão de vaqueiro
do proprietário do gado marca igualmente o foi regulamentada no país, sob o gover-
vaqueiro. Quando o ferro chia no couro da no Dilma Roussef, depois de séculos de
rês, a pele de quem-com-o-ferro-fere é clandestinidade de um afazer tão antigo
tatuada pela mesma repetida sina. Ali, no quanto a chegada do gado no Brasil, ainda
curral que cerca a rotina, o que é bicho e na primeira metade do século 16. Até então,
o que é humano se confundem na mesma apenas figurava nos nossos livros didáticos
trajetória. Ambos marcados, o boi ainda es- como tipo característico nordestino, brasi-
trebucha suas dores: o homem, na maioria leiro. Sob o sol que deixa sua pele vincada
das vezes, segue no silêncio que lhe resta como uma madeira de xilogravura ou um
para alimentar o sustento e o próprio amor chão rachado de açude, prossegue com a
ao ofício que herdou do lugar e da família. sua vida mais de gado do que de gente.

Uma legião destes homens dos sertões Guimarães e Graciliano


atravessa uma vida sob o regime duro Na arte de viver sem garantias, o vaqueiro é
das fazendas, sem garantias ou benefí- mestre. Sobrevive, em matéria de direitos e
cios trabalhistas, longe das lentes da lei e salvaguardas, como o velho matuto na mú-
protegida apenas por Deus e pelo gibão de sica de Gonzagão; sem rádio e sem notícia
couro. Nem sempre a fé cega e a indumen- das terras civilizadas. Somente nas artes,
tária destes guerreiros do sol conseguem no cancioneiro e na literatura, o homem do
evitar um espinho no olho ou uma queda gibão de couro tem a sua proteção poética.
capaz de afastá-los do ofício. No que sobra, Tem o vaqueiro de Patativa do Assaré –
quando muito, uma sobrevivência de favor repare na cumeeira dessa crônica –, tem
e a memória dos garranchos da caatinga no o Fabiano das Vidas secas de Graciliano
aperreio permanente do juízo. Ramos, e Guimarães Rosa, cuja obra está
prenhe de aventuras desta mesma natureza
Quantos vaqueiros cegos vagueiam sertões encouraçada, tem o “Vaqueiro Fabiano”(do
adentro. A sorte é quando é apenas de livro Estas estórias), com ofício e batismo
uma vista, celebram muitos. Um minuto, se- juntos, além de Manuelzão e sua lenda
gundo, um décimo e já era a fatigada retina aboiada em invenções de vida e linguagem,
diante da espinheira do caminho. Sina de ave palavra, amém.
assum preto sem a lenda da melhoria
do canto.

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Criado e crescido no meio de familiares va- pés ou quatro patas, que diabo importa?”, nada pros meninos (doze nascidos, cinco Até hoje o aboio de Luiz Gonzaga ecoa entre
queiros do Ceará e de Pernambuco, lembro resgato aqui nos quase incompreensíveis sobreviventes), e a cabeça não sossegava. Exu e Serrita, no sertão pernambucano, em
até do barulhinho cruel, chiiiii, do couro e garranchos de um velho caderno de repórter Pegar boi me deixava nervoso, um nervoso um lamento pela morte de Raimundo Jacó,
da carne do boi sob a brasa do ferro dos os dizeres de Pedro Joaquim dos Santos, o que eu gosto até hoje, mas eu chorava nos primo de Gonzagão covardemente assassi-
fazendeiros. Nós, os meninos, ali de butuca, Pedró Quincó, 64 anos quando estive com descampados, meião do mato, por causa nado em 8 de julho de 1954. Jacó estava
testemunhando o trabalho e a sina. No que ele, em 2003, na calçada alta da sua casa dos meninos... Sabe um passarinho que em uma “pega de boi”, caatinga adentro
saltava Chiquim Inglês ou Luíz Nunes, no em Barcelona, município do Rio Grande deixa as crias no ninho em pé de juazeiro?” em busca de umas reses desgarradas do
Sítio das Cobras (município de Santana do Norte. “Não é que seja sacrifício, moço, rebanho. Foi morto, traiçoeiramente, por um
do Cariri, Ceará), entre um gole e outro na pensar assim é tão pouco: é obediência às Pedro limpa os olhos na manga de camisa. colega invejoso da sua arte. É o que conta a
aguardente, com um aboio triste que marca- coisas lá de cima... Se fosse depender de Macho nordestino sem vergonha do choro, história sertaneja.
va a cerimônia. recompensa e ouro, ´mió´desencantar desse do soluço que funciona como ponto e vír-
mundo”, disse o galego sertanejo. gula de uma crônica das dores do mundo. Em louvor a Jacó, todo santo ano, em
Aquela zuada nunca sai dos ouvidos. Por Trabalhou a vida inteira para fazendeiro que Serrita, é celebrada a Missa do Vaqueiro,
mais que um homem mude de vida e de Vale a pena lembrar mais um pouco desse tirou-lhe o couro e o despediu como gado um ritual sagrado desde 1971, sempre
lugar, o aboio dos vaqueiros não larga personagem de carne e osso e lágrimas – que dá carne de terceira. Os vizinhos, de no terceiro domingo de julho. O altar é de
sua memória afetiva. Aqueles chocalhos Quincó chorava muito ao contar sua lida tanto vê-lo chorar, nem mais olham. “É fraco pedra. Nada mais representativo dessa pro-
também são guardados para sempre, lengo- –, que marcou as minhas andanças de do juízo”. Ele só fica um tanto sossegado fissão historicamente tomada apenas como
-lengo-tengo, no juízo até o final dos dias. colhedor de histórias. Um pouco do meu quando está no meio do deserto, a caatinga sina ou destino repassado de gerações para
caderno de rabiscos: “É fraco do juízo”, diz já é rala, e grita coisas para os céus, em lín- gerações. Não se sabe mesmo onde termina
Couro, seca e miséria a mulher, Tereza Patrocínio dos Santos, 55 gua de pentecostes, “misturo fala de bicho, a vida de gado e começa a vida de gente.
Mesmo com toda a falta de proteção e anos. “Ele acorda, noite alta, com lem- mocó, preá, cachorro e gente”. Falar com Quando marca um, o patrão, simbolicamen-
garantia mínima no ofício, há um quê de brança de ‘pegança’ de boi e de todas as esses bichos é como se fosse uma terapia te, ferra os dois.
mítico, místico, talvez sagrado, na arte de necessidades da vida, atordoado da cabeça, ou algo do gênero da psicanálise.
cuidar do rebanho ao longo desses anos feito uma assombração dentro de casa,
todos nos sertões e seus ciclos de couro, tenho é medo”, conta. Os vizinhos fazem Missa do vaqueiro
seca e miséria. um círculo com o dedo indicador, na altura Numa tarde bem tristonha Xico Sá, jornalista e escritor, é autor de
das têmporas, para dizer que o homem não Gado muge sem parar Big jato (Companhia das Letras), entre
“É mando de Deus se misturar aos bi- gira bem da cabeça. Lamentando seu vaqueiro outros livros.
chinhos, de gado aqui na terra ninguém Que não vem mais aboiar
passa... Por mim mesmo, nem curral nem Pedro chora quase o tempo inteiro. Calado Não vem mais aboiar
a fala do homem nos desiguala, de dois ou narrando sua trajetória. “O povo diz que Tão dolente a cantar
sou fraco do juízo. E sou mesmo. Saía de Tengo, lengo, tengo, lengo,
casa, atrás de boi dos outros, sem deixar tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi...

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VAQUEIROS
Geyson
Magno

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128 129
130 131
OS
MÓVEIS
DO
MUNDO
José
Luiz
Passos

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I II

Da fazenda de criação trouxe duas memó- Um gosto que me chega desse tempo é o
rias, a terra minando água de dentro duma do leite ferrado. Com o dia nascendo meu
pedra e um touro malhado, de máscara pre- pai levava os filhos até a beira do cercado,
ta, as narinas furadas com um aro de latão, o leite saía morno, puxado da vaca. Na
ele correndo atrás de mim, eu menina, eram lenha ele deixava seixos. As pedras, averme-
várias disparadas até que alcançasse o pulo lhadas, iam pra dentro de copos de estanho
da cerca ou fechasse a taramela. Quan- e queimavam o leite cru, que misturávamos
do esse touro morreu, as vacas urraram, com mel e matruz pilado. Associo o leite
pavorosamente, o dia inteiro, lembro disso, ferrado à extrema disciplina de meu pai, a
a impressão que me deu foi de um choro disciplina é o principal motor de qualquer
sincero. Da mistura de minerais com gado cozinha. Mas não lembro de brincar de
e gente, vem minha cozinha, e essa será panela, ou lembro bem pouco, ajudar em
sempre a melhor escola. casa sim, isso sempre, é normal entre as
filhas. Querer ajudar é o que conta, e quis
desde cedo. De duas avós, uma gorda,
outra magra, vieram receitas de lugares
vizinhos, de outras fazendas, da Espanha e
da Itália. Essa são as origens de fora, datam
das bisavós. Já o meu pai tomou a origem
por uma medida mais curta, não se sabe de
onde veio. Batizou os filhos com nomes do
Antigo Testamento. Adonai, Baruque, Joatã,
Ruth e Sulamita, além do meu. O sobre-
nome foi inventado por ele. Fugia de quê?
Vejo uma foto de meu pai e penso, sírio-
-libanês, negro, maçom? O fato é que ainda
não tenho certeza. No final da vida, depois
de ser desenganado pelos médicos, saiu
de um coma de três meses, fez exercícios e
levantou um pequeno prédio de apartamen-
tos, onde viveu e de onde tirou sua última
renda. As novas gerações se encarregaram
de dilapidar isso. Concluo que, mesmo uma
receita estando próxima à perfeição, poderá
sempre ser estragada por terceiros.

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III IV V VI

De minha mãe aprendi a dedicação aos ou- Diz um ditado, quem cedo sai muda por Agora, aqui, o dono da casa me comprou Hoje, longe da terra, me sinto em casa mes-
tros, o trato das carnes e alguma coisa com demais, e isso é certo. Cheguei jovem ao uma pedra nova, que eu disse que preci- mo com esse cheiro de gás no ar. São Paulo
massas batidas na pedra de casa. Ela agora Recife, trabalhei pra um fornecedor de car- sava pra bater as massas e picar melhor as é sertão e aeroporto, me disse um taxista.
esquecida do presente fala com os olhos ne, amante da mesa, das artes. Nas proprie- ervas. Ele me chama de a senhora. É um Não discordo, também não venho do sertão.
voltados ao marido morto. A simplicidade dades da família estiveram um presidente e granito escuro, não pedrês nem alvo, como De viver da cozinha vieram ideias pra outros
de ervas, molhos e xaropes é em minha vários maestros de orquestra. Não alcancei os que vêm de fora. Com exceção dessa problemas. A origem é importante, não é
mãe um traço natural e difícil de imitar. nenhum deles, mas recebi pessoas de igual pedra, tudo em São Paulo é mais claro. Em tudo. Uma boa receita é sempre mais longa
Quem cozinha se dá. Não falo mais dela por tarimba, empresários que iam ao campo ou São Paulo tem pelo menos uma pessoa de do que uma vida inteira de comida-rápida.
respeito, pois, no estado confuso em que vinham à casa da cidade enquanto ele, o cada cidade do Brasil. Em nenhuma outra E novas misturas também são um modo de
está, ainda acha forças pra me corrigir com fornecedor, depois meu marido, se perdia cidade do Brasil caberiam essas pessoas. se matar o tempo, melhorando o que ainda
um riso que parece alheado e de repente se aturando gente de chapéu apenas pra não A senhora vai passear neste fim de semana, pode ser melhorado. A senhora filosofa, Ra-
mostra adivinha de qualquer coisa por aqui, ser visitado por nenhum deles, em seu leito êh!, o dono da casa me diz, com o respeito mil diz, como o pai, com os olhos pra o alto,
em São Paulo, em casas e ruas por onde de morte, num hospital público. Quando da perturbação. Queria ir ver minha mãe, rindo. Ramil é jovem. Mas em São Paulo, no
ela própria nunca passou. Como pode ser, São Paulo passou as fazendas do Nordeste, respondo. A senhora ainda tem mãe viva, Ipiranga, aqui, no casarão dessa rua cheia
se vai tão longe? Minha mãe, agora idosa, minha cozinha precisou de outra ciência. hm. Que bem, ele diz e bate palmas. Que de árvores, vejo que começam a tomar
quando for a minha vez, acho eu, nunca Primeiro foi a ruína de meu pai, criador. me importa. Nos sábados e domingos não como deles a ruína dos outros, por exem-
chegaremos a ser totalmente iguais. Saí Depois, a de meu marido, sem a renda dos cozinho. Aqui no casarão eles saem pra plo, a minha. Fecham as portas e agora
muito nova de casa. abates nem das plantações. Mas a queda rezar, ou recebem gente próxima. Dizem falam em vender a casa. Será minha última
faz bom caldeirão. Tudo que o dinheiro que o fim de semana serve pra isso. O dono mudança? Tem gente que se acostuma a
comprou foi gasto, as receitas que melho- uma vez quis saber se eu não sentia falta tudo. A senhora vai pra onde se venderem a
ramos, não. O que agrada a um, agrada a das grandezas do Norte. Que norte, se não casa? Quem pergunta é Maura, copeira. Ela
mil. Que prato cabe a qual ocasião? Em que venho da Amazônia? O Brasil não cabe no é jovem, ri pros lados quando Ramil faz uma
ordem uma novidade merece a boca dos Brasil, diz o filho da casa, chamado Ramil. graça, passando a mão nos seus ombros.
outros? Esse aprendizado vem de longe, Respondo, uma cozinha são muitas cozi- Menina, digo eu a ela, bezerro novo também
toma tempo, não tem fim. nhas, como numa derrota em que várias ou- cabeceia, cuidado. Com as sobrancelhas
tras vêm à tona. Nessas situações eles riem, grossas, escuras, as tatuagens e o brinco no
falam que sou espirituosa, nortista é assim. nariz, esse rapaz tem as marcas do touro de
Mas quem provou daquilo, lá debaixo, por minha infância.
assim dizer, vai concordar comigo.

136 137
VII VIII IX X

A senhora pensa em fazer o quê, hm? Pode São Paulo tem cursos sobre tudo, até pra A carne pra rechear as berinjelas precisa Estavam todos sentados, as mãos no colo
deixar uma berinjela recheada pra esse fim se abrir uma lata. O professor de Ramil ser tratada, moída, temperada e assada. ou na toalha de linho, com a cara de frente
de semana? Ouço o pedido já perto das me fez uma provocação. Entrar e sair da Uso alecrim e um pouco de cominho. Às pra louça de festa, e vinha eu segurando a
sete. Hoje à noitinha eles vão sair. É sexta- cozinha dos outros, pra quem perdeu a sua, vezes, uso tomilho, pimenta rosa e hortelã sopeira grande na bandeja, com as berinje-
-feira. Se soubessem das histórias que gosto passou por restaurantes e bufês, é serviço picada pra fazer uma das berinjelas, em las no forno, quando o freguês, professor de
de repassar de cabeça, na janela, mudariam que cobra desembaraço. Acho a questão cada travessa, diferente das outras. O dono Ramil, me fez a tal pergunta sobre a cozinha
as receitas da casa, não mudariam? Passear interessante, essa, a da língua universal. A da casa diz que essa é a premiada. Ele tam- ser uma língua universal. Parei no meio da
não gosto, isso ficou pra trás. Mas mato o ela respondo que é preciso não ter vergonha bém se chama Ramil, como o jovem Ramil, sala. Eles fizeram silêncio. Maura colocou
tempo comparando as coisas como eram de onde viemos, e cozinhar com graça, da filho dele. Quando jogo a carne moída na a cabeça pra fora da porta da copa. Ramil,
antes. Quando ninguém vem de fora, visitar, melhor maneira possível. Olha, a senhora panela de azeite com alho, o cheiro de vez o pai, disse que eu deixasse a sopeira em
os pedidos são mais simples. Berinjela, sabe das coisas, é Ramil, que disse que em quando puxa pra dentro da cozinha cima da mesa e fosse me sentar. A senhora
claro que faço, eu disse. O dono da casa é filosofo. Os jovens hoje em dia comem cor- um dos dois, o pai ou o filho. E esse Ramil veja, o professor quer saber da nossa causa,
advogado, mas não advoga mais. Depois do rendo. Quando ele para, e come bem, quer repete a mesma pergunta, onde a senhora hm? E doutor Ramil espalhou os braços,
meu caso, foi fazer a vida na fábrica de ven- dizer que a comida é boa. Mas essa filósofa aprendeu a fazer isso? O cheiro da fritura mostrando ali na sala, no espaço da casa, a
tiladores da família. Aliás, acho São Paulo também teve seus dias de vacas magras. se entranha nas roupas e no meu lenço. beleza dessa vitória sua no fórum. Depois, o
mais fria do que quente. Mesmo assim todo De noite, quando me troco, tomo banho e próprio professor falou, a senhora me conta
mundo compra um ventilador, não compra? passo pelo cesto na área de serviço, sinto o como foi? Ramil jovem puxou uma cadeira
De acordo. E um prato de berinjela é fácil, bafo oleoso que vem dos panos embolados pra mais longe da mesa, onde fui me sentar,
não me custa o tempo dum banho. A berin- no chão. Minha memória puxa pelo cheiro e então ficaram todos me olhando curiosos,
jela com carne moída também faz parte dos de outras épocas. Se a casa for vendida, esperando pela história.
jantares demorados, com estrangeiros. Pois vou voltar a ser uma pessoa móvel, não vou?
a cozinha não é a única língua universal? A Uma pessoa móvel a essa altura da vida, eu
pergunta não é minha, é de alguém da uni- penso nisso. Respondo a Ramil que aprendi
versidade, freguês da casa, um professor de de tudo um pouco, aos bocadinhos, e que
Ramil. A senhora não acha? Ela me foi feita meu tempo nas lanchonetes da Beef’s me
quando entrei na sala de jantar, equilibran- deu uma lição naquilo que há de bom e de
do na bandeja a sopeira grande, em forma mau no trato das carnes.
de taça.

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XI XII XIII XIV

Quando a senhora acabar, pode ir, não Diz o professor, à mesa, diante de Ramil e Eram três as meninas que entraram comigo As piores Beef’s não permitiam sequer que
precisa ficar. Foi o que doutor Ramil me Ramil, entre colheradas de sopa, nós não numa das primeiras lanchonetes da Beef’s. os funcionários trouxessem almoço de casa. José Luiz Passos nasceu em Catende,
falou. Ele também disse ao professor que sabemos o que é o cheiro, o que sabemos Ficávamos enfileiradas num banco compri- As refeições eram tiradas lá, em forma de Pernambuco, em 1971. Ele é autor de
a Beef’s tinha entrado no Brasil havia uns é que ele não forma o eu. O olfato apre- do, encostadas na parede do corredor entre vale. Com jornadas curtas, os móveis como vários ensaios e contos publicados na
quinze anos, logo após comprar uma cadeia cia a intensidade, a qualidade e duração a cozinha e a saída dos fundos, que dava eu acumulavam poucas horas e chega- Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos,
de lanchonetes no Rio Grande do Sul. Dali, dos cheiros, sendo para isto ajudado pela numa pequena rampa de carga. Ao lado do vam à sexta-feira muitas vezes devendo em antologias e revistas como Cuentos
a Beef’s foi se espalhando pra cima do memória. O olfato é auxiliar do gosto na per- relógio de ponto tinha uma prancheta mar- os adiantamentos da comida. Nos fins de en tránsito, Granta Brasil e Luso-Brazilian
Brasil. Tem o Beef’s Supreme, com ovo, e o cepção dos sabores, e suspendida que seja rom, separada com a lista dos funcionários semana, a fila dos madrugadores aumenta- Review. Pela Alfaguara publicou, entre
Xis Beef’s, com queijo. Já teve um Beef’s Pi- a sua ação, o gosto não se exerce, senão de jornada móvel. Éramos maioria. Ainda va, buscando descontar em jornadas longas, outros, o ensaio de crítica Romance com
canha, que não era feito com bolo de carne imperfeitamente. Já o gosto é a faculdade hoje a Beef’s faz propaganda mostrando prováveis naqueles dias, a dívida da alimen- pessoas (2014) – que interpreta a influên-
mas com tiras do corte na chapa, e era mais pela qual percebemos os sabores, e a se- atendentes de riso aberto com o boné do B tação acumulada no banco de espera, no cia de Shakespeare na imaginação moral
caro. O Beef’s Dublê tem dois andares e o nhora disse isso muito bem. Mas a respeito grande na cabeça. “Beef’s, o gosto é aqui”, corredor, embaixo da prancheta. O professor dos romances de Machado de Assis – e
Natura vem sem pão, com a carne embru- dos sabores, o que sabemos é que também dizem os comerciais e cartazes espalhados me disse, o olfato não é parte intrínseca do O sonâmbulo amador, romance vencedor
lhada em folhas de alface. Entrei na época não são o eu, não estão na pessoa. O sen- pela cidade. Mas os sanduíches custam eu, o gosto também não, já a memória, sim, do Grande Prêmio Portugal Telecom de
dos Espetinhos Beef’s, quatro ou cinco tido que nos faz conhecer o sabor abrange caro, são um programa de passeio. Quando pois não há eu sem a faculdade de saber Literatura de 2013 e do Prêmio Brasília
almôndegas num palito comprido, servidas os seus diversos graus e modificações entrei, no começo da cadeia, os clientes ter durado no tempo. Ramil jovem disse, de Literatura. Foi professor de Letras em
com molho vinagrete, agridoce e coquetel. infinitas, e ele varia segundo a disposição apareciam e desapareciam, conforme a ouvir essa merda toda me dá é vontade de Berkeley, por dez anos, e, mais recente-
A carne na Beef’s é pré-cozida e, depois, particular dos órgãos do indivíduo nos seus hora e o dia da semana. Pra esse movimen- ter nascido vegetariano. Doutor Ramil quer mente, professor visitante na Universidade
frita em caçambas de óleo. A mistura fofa instantes de duração. O indivíduo e os seus to doido, o gerente me disse, só mesmo que o rapaz estude pra ser advogado. E de São Paulo. Atualmente, ensina literatura
é moldada em forma de bolota ou hambúr- sentidos, como falei, são, em si mesmos, com funcionário que também vá e venha, ele me falou, olhe, a senhora sabe, é como brasileira e escrita criativa na Universidade
guer. Doutor Ramil disse que encontraram intrinsicamente móveis. E a cozinha é a arte e trabalhe quando tem trabalho, assim é se fosse da família. Cadê a berinjela? Essa da Califórnia em Los Angeles (UCLA), onde
ali dentro, ainda na minha época, farelo de no encantamento do olfato e do gosto, que, melhor pra todo mundo, entende? Éramos nossa ação contra a Beef’s quem não se vive com a esposa e os dois filhos.
soja, frango e farinha de osso misturados aliás, hoje em dia nem se chama mais gosto os móveis do mundo Beef’s. Cheguei a con- lembra? Acabamos eu e a senhora com essa
a gordura de várias qualidades, até formar e, sim, paladar. tar uma fila de onze nos bancos e cadeiras tal jornada móvel. Associo a jornada móvel
uma massa esponjosa. Associo essa massa dos fundos, aguardando o movimento na ao cheiro das caçambas de óleo chiando
à inhaca do óleo de repetidas frituras e aos casa. O gerente chamava um por um, na com carne de terceira, no fio de dias intei-
bonés berrantes, de cor alaranjada, com a ordem de chegada pro turno flexível, assim ros, depois lançada fora, em grelhas e nas
estampa de um imenso B decorado na tes- que aparecesse o que fazer. E na espera escumadeiras, pra uma refeição adiantada
ta. De longe, as Beef’s gritam nessa cor uma da longa manhã, às vezes pegávamos uma aos móveis daquele mundo, pessoas iguais
nuvem sabor salmoura, ketchup e banha. jornada de hora e meia no dia, com os vistos a nós, eu entre elas, alternando o assento
de entrada e saída marcados pelo gerente no banco, de olho na porta envidraçada,
na prancheta marrom. Não esqueço do na torcida por um feriado, por um jogo em
meu primeiro gerente, Jéferson, inocente do campo próximo ao bairro, quando a clien-
cabelo pastoso, um homem de fé batista. tela, engrossada pelo passeio na rua, viesse
fazer festa com as suas pequenas esponjas
de carne.

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O
ESCRAVO
MODERNO
Marcelo
Rubens
Paiva

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A mãe de um amigo em Alagoas morava e voltando da farmácia, padoca, venda e
numa casa enorme e paradisíaca, numa banco, comendo do bom e do melhor, com
praia afastada, na Linha Verde. Obesa, mal roupa limpa e até um caderno e lápis, do
caminhava. Precisava de uma tropa para que vadiando pelas ruas de uma região vio-
deixar tudo em ordem. Seus filhos já cres- lenta sem água potável e com esgoto a céu
cidos e casados viviam em outras cidades. aberto, na periferia de Maceió. Ali ele tinha
Mas ela fazia questão de manter a casa perspectiva. Ali ele era bem tratado. Ali ele
pronta para a grande família, como era alguém. Só que fulano não ganhava
se todos ainda morassem com ela. Talvez salário. Aí também é demais...
na esperança de que voltassem um dia.
Ou por inércia... Foram tantos séculos de escravidão. Índios
e negros. Não só o europeu como algoz.
Vira e mexe tinha uma criança diferente Índios que escravizavam índios de outras
morando lá. Às vezes, cinco crianças. Com nações indígenas. Negros que vendiam
as domésticas, formavam uma fauna de negros para traficantes em Angola. Bran-
trabalhadores pequenininhos. Ela dava teto, cos em bandos que não conheceram outro
comida, saúde, saneamento, banho e até sistema senão o de subjugar a liberdade
educação àqueles sem lar, sem família, sem de outro com correntes, castigos, chicotes
nada. Os chamava a todo instante. Fulano, ensanguentados. E, mesmo quando era
pega uma água. Fulano, o gelo. Fulano, proibido importar negros, traficantes os
derrubei, limpa aqui. Fulano, limpa o cocô traziam às escondidas, descarregavam em
do cachorro. Desentope meu sanitário. Fula- portos clandestinos, num comércio que
no, compra jornal, compra sorvete, compra gerava muita, mas muita grana.
sabão, vai na farmácia, vai na venda, vai na
padaria, vai no banco, volta pra farmácia, Foram tantos os séculos em que tinha
varre o quintal, colhe as flores, pega um mais escravos do que libertos no Brasil.
cinzeiro. Me abana.
Nas ladeiras de Minas, nas usinas de
Como muitos senhores de escravos, há mais Recife, nas fazendas do Vale do Paraíba, ar-
de cem anos atrás, pensava que fazia um rancando cana, ouro, café, amamentando a
bem a eles: dava um teto, um lar, comida, filha da patroa, carregando a patroa, carre-
uma chance. Que formavam todos uma gando o patrão, charqueando, na plantação,
família. Seria melhor ao fulano estar ali, na casa-grande, servindo, levando liteiras
levando água, gelo, limpando o chão, o cocô nas ruas de Salvador, Rio de Janeiro, São
do cachorro, desentupindo a privada, indo Paulo, Recife, Ouro Preto, sendo surrado

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em pelourinhos se desobedecesse. Tanto Está no aeroporto, no shopping, no super- Os solteiros ficavam numa grande pousada Trabalhadores trocavam cariris por cruzei-
sangue rolou, tanta saudade de casa, tanta mercado, na pracinha: enquanto a patroa de madeira, chamada de Clube dos Soltei- ros. Comerciantes começaram a aceitar
dor... Para empurrar uma economia que era fala no celular, a sua doméstica vigia, acode ros. Para os casados, tinha muitas casinhas cariris com deságio. O avô criara um país
toda movimentada pela escravidão. Para e acalma o filhinho. enfileiradas, com varanda, sala, dois quar- dentro de outro. Trocava-se cariri por
movimentar uma vida social que não conhe- tos, cozinha e banheiro, tudo muito digno. cruzeiro na praça à luz do dia. Logo, logo,
cia outra forma de se relacionar. O avô de um conhecido tinha uma fazenda a população criou uma bolsa de negócios
perto de Porto Feliz, Sorocaba. Plantava Muitos nunca tinham visto uma privada na informal para especular com as moedas.
Foram tantos séculos que não nos acostu- cana e café, cujas colheitas se revezavam, vida. Nos primeiros dias, a avó e as tias do A confusão aumentou tanto, que a família
mamos sem eles. uma na primavera, outra no outono. Pelos meu amigo os ensinavam a usar. Alguns se teve que extinguir a moeda. Mas como
pastos, criava gado. Era uma fazenda de confundiam e colocavam lenha na privada fazer para pagar os empregados sem pagar?
O limite do absurdo eram os brancos que mil alqueires, enorme. Dava dinheiro. Tinha e acendiam. Outros bebiam água dela. A Inventou uma caderneta nominal. Que só
alugavam seus negros para outros brancos, agrônomos, especialistas, administradores. família se sentia bem em dar conforto e um era possível usar na lojinha do Clube dos
ou os negros autônomos que se alugavam Era um negócio. rastro de civilização para aqueles serta- Solteiros da avó ou no supermercado do pai
para brancos, ou negros de brancos que nejos que não sabiam acender a luz num do meu amigo.
alugavam e meavam os lucros com seus Tinha uma sede enorme, em que ficavam os interruptor, não entendiam o que era uma
negros a outros brancos, para fingirem-se filhos do avô do meu amigo, as noras, com tomada, não sabiam trocar uma lâmpada. O dinheiro não saía dos cofres. Só um
de seus escravos, nas ruas da capital, em os vinte netos e mais convidados. Muita de mentira.
eventos sociais, festas, lugares públicos, o gente da própria região trabalhava lá, espe- Os trabalhadores não faziam contas, não es-
que daria status ao membro da elite que cialmente como domésticos: a cozinheira tavam acostumados a relações comerciais, Se o funcionário quisesse dinheiro de ver-
determinava que subia no conceito quem negra que mandava mais do que a avó, o manejar moeda, troco, poupar. Para facilitar dade, papel-moeda, cruzeiro mesmo, para
tinha mais escravos aos pés. mordomo gay, que servia de jardineiro e a vida de todos, o avô criou uma moeda, gastar como bem entendesse, não tinha.
motorista, as arrumadeiras. As empregadas chamada cariri, o nome da fazenda, que Seu salário era uma caderneta, um livreto.
Tudo isso se encerrou em 1888? Não, domésticas da família, que morava entre imprimia numa gráfica de Sorocaba. Uma Reclamar com quem, com o prefeito? O avô
não acabou. Nem em 1988. Ainda é uma São Paulo e Sorocaba, como a babá do moeda paralela. Que só era aceita na venda era o prefeito. E o pai do meu amigo, o juiz
estagnação visível na engrenagem da cadeia meu amigo, eram de Porto Feliz. Eles as da fazenda, uma lojinha da avó, que ficava do Fórum mais próximo.
social, uma alavanca do mercado, o com- “importavam”. no Clube dos Solteiros, e num supermerca-
bustível da economia. É costume. É cultural. do na entrada de Eldorado, que era do
A alforria não se completou até hoje. A No entanto, o avô precisava de mais pai do meu amigo.
escravidão está nítida. Ela não se extingue. trabalhadores braçais que aguentassem O jornalista, romancista e dramaturgo
Ela não desaparece. Nós é que, de tão habi- o tranco. Porto Feliz era uma cidade peque- Para todos, era uma solução brilhante. Marcelo Rubens Paiva nasceu em São
tuados, não conseguimos enxergar. na, não tinha mão de obra suficiente. Nos Dinheiro não circulava à toa. Evitava-se Paulo, em 1959. Marcou sua geração e
anos 1950, ele importava trabalhadores que aquela pobre gente, que só conhecia o projetou-se como escritor com a autobiogra-
Ela está nas relações trabalhistas não for- de Alagoas, que vinham num pau-de-arara. escambo, gastasse em produtos desneces- fia Feliz ano velho (1979), escrita depois de
malizadas, em prédios com dois elevadores, Eram os “alagoanos”, e sua chegada era um sários, especialmente em pinga. No entanto, ter perdido o pai, o deputado Rubens Paiva,
o social e o de serviço, nos cubículos de acontecimento. Era como índios chegando a moeda, como toda a moeda, passou a ter assassinado pela ditadura em 1971, e de ter
empregadas. Até pela lei, as domésticas não na Corte Portuguesa. Ou negros desembar- câmbio, a ser trocada na cidade pela verda- ficado paraplégico em decorrência de um
têm os mesmos direitos de não domésticos. cando nos portos de Angra, Ubatuba, deira moeda, o cruzeiro. acidente. Tem vários livros publicados,
Rio, Salvador. entre eles Ainda estou aqui (no prelo).

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PORTUÁRIOS
Walter
Firmo

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Walter Firmo, carioca nascido em 1937,
é fotógrafo desde os 20 anos. Trabalhou
no Última Hora, Jornal do Brasil e na revista
Realidade. Produziu fotos antológicas
de artistas como Pixinguinha, Cartola e
Clementina de Jesus. Entre 1973 e 1982,
foi premiado sete vezes no Concurso
Internacional de Fotografia da Nikon.
De 1986 a 1991, dirigiu o Instituto Nacional
de Fotografia da Funarte. Principais livros:
Walter Firmo – Antologia Fotográfica (1989),
Paris Parada Sobre Imagens (2001), Rio
de Janeiro: Cores e Sentimentos (2002)
e Firmo (2005).

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TRABALHO
ENOBRECE?
Lya
Luft

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Algumas frases feitas ouvidas desde sempre Simplesmente porque só nos dignifica
ficam gravadas em nós como verdades. aquilo que nos compensa, nos dá alegria,
Amadurecendo, a gente vai se libertando sentido de vida e alguma importância,
desses mitos, ou compreende que só algu- ainda que seja a de colocar corretamente
mas vezes são verdade. uma pecinha de engrenagem para que um
carro, um avião, um aparelho cirúrgico ou
Uma delas é “Querer é poder”, o que cedo uma engrenagem imensa funcione direito,
constatamos não ser bem assim... Outra salvando vidas, trazendo progresso, enfim,
poderia ser “A dor nos torna melhores”, melhorando alguma coisa.
estranha apologia do sofrimento. O que logo
veremos que a muitos apenas torna amar- O bom trabalho é aquele para o qual vamos
gos, eternas vítimas, queixosos, azedos, todas as manhãs (ou noites) com dispo-
revoltados. Mais um desses ditos seria sição, mesmo enfrentando agruras como
“O trabalho enobrece”, coisa que vou condução péssima ou atrasada, distâncias,
questionar aqui. cansaço. Mas saberemos que aquela ofici-
na, escritório, mina, avião, cozinha ou rua é
Trabalhar pode enobrecer, mas não sempre, um lugar nosso, à espera da nossa presen-
não necessariamente: depende de inúme- ça, nossa ação, nossa colaboração. Temos
ras condições, então não é o trabalho em um lugar no vasto mundo, mesmo na mais
si, mas um conjunto de situações de cada modesta atividade: nenhuma é desimpor-
indivíduo ou grupo. tante desde que honesta. Assim, embora
em outra dimensão, o local de trabalho,
Assim como a frustração de não poder tudo o emprego, se tornam um pouco a nossa
o que queremos, mesmo com muita luta, casa; e os colegas passam a ser quase uma
e de nem sempre nos tornarmos melhores outra família, apesar de diferenças e desen-
com a dor, o trabalho pode nos desmorali- tendimentos – como em qualquer família.
zar, pode nos embrutecer. Estarei sendo idealista, romântica?

Como? perguntarão os eternos indignados.

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Não creio. Estou, sim, descrevendo uma Em boa parte do mundo as carências Nenhuma condição, nem mesmo alto
situação ideal, mas é a que temos que também são enormes. Mesmo em grandes salário ou localização ideal, é tão importante Lya Luft é romancista, poeta, contista, en-
desejar para todo mundo. Pois um trabalho cidades organizadas, onde as leis imperam quanto se sentir necessário, ser apreciado, saísta e colunista da revista Veja. Sua obra
indigno, mal recompensado, mal gerido, no mais e melhor, diariamente assistimos a ainda que seja por colocar diariamente está publicada em doze países. Mestre em
qual não somos respeitados e apreciados, multidões espremidas em conduções inacei- centenas de vezes o mesmo parafuso no Linguística Aplicada e em Literatura Brasilei-
nos humilha e nos faz adoecer ainda que táveis, ônibus, trens, até caminhões (onde mesmo lugar da mesma engrenagem. ra, também é tradutora de alemão e inglês
seja na alma. E é da alma, da psique, que vão na boleia), quase como animais. Ou e já traduziu para o português autores como
se trata quando falamos de nós humanos – melhor: como alguns animais, pois muitos, Pois, sem esse mínimo objeto bem pos- Virginia Woolf, Thomas Mann, Rainer Maria
hoje se acredita cada vez mais que também como cavalos nobres, recebem tratamento to, alguma coisa há de falhar, e cabe ao Rilke, Günter Grass, Hermann Hesse e Doris
os outros animais têm uma psique que deve inacreditavelmente melhor do que muitos empregador, no meio de tantas teorias, Lessing. Gaúcha, reside em Porto Alegre.
ser levada em conta. Um simples animal trabalhadores. Porém, temos de ter um setores especializados, recursos humanos e
doméstico pode ser mais agressivo ou mais laivo de otimismo. Temos direitos, podemos psicólogos, em vez de tentar burlar as leis,
afetuoso conforme o ambiente em que está reclamar, processar, fazer manifestações, aperfeiçoá-las, ir além da letra fria, e dar a
e foi criado. recorrer aos sindicatos. quem trabalha a sensação essencial de que
o seu trabalho, seja qual for, é importante
Aos poucos, evoluímos para o trabalho Mesmo em condições boas o trabalho nem e o está enobrecendo.
instituído com operários ou trabalhadores sempre nos gratifica, portanto, não nos
de qualquer setor e hierarquia, com alguns enobrece: por ser mal pago, por ser algo E para isso, mesmo cada dia dando um
direitos, cada vez mais aperfeiçoados. Te- para o qual não nascemos para fazer, por passo em frente, parece que ainda nos falta
mos sindicatos, temos conselhos de classe, ser demasiado mecânico e desinteressante, um longo caminho.
temos leis, temos, enfim, algo que se apro- por nos obrigar a grandes sacrifícios físicos,
xima do melhor possível para que o trabalho enfim, talvez porque sonhemos demais,
nos dignifique. além de nossa real possibilidade.

O que fazer então? É preciso atendimento


humano, psicológico, interessado, a cada
operário ou funcionário de qualquer escalão,
para que ele se conscientize de que o que
deseja é possível e pode tentar mudar, ou
de que seu sonho é irreal, e adaptar se à
realidade pode ser a melhor saída.

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Ministério Público do Trabalho Editora Terceiro Nome

Procurador-Geral do Trabalho Direção


Luís Antônio Camargo de Melo Mary Lou Paris

Vice-Procuradora-Geral do Trabalho Administração


Eliane Araque dos Santos Dominique Ruprecht Scaravaglioni

Coordenador Nacional de Combate Revisão


às Fraudes nas Relações de Trabalho Daniel Navarro Sonim
(Conafret)
José de Lima Ramos Pereira Capa e projeto gráfico
Valéria Marchesoni
Coordenação editorial
Marcela Rossetto Foto da capa
Walter Firmo
Consultoria
Dimas Ximenes

Os recursos para financiamento deste livro resultam da


ACP nº 00572-2005-018-10-00- 5 –
18ª Vara do Trabalho do Distrito Federal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V564 O verso dos trabalhadores / organizadores Rodrigo Farhat,


Alessandro Soares; textos Eliane Brum ... [et al.]; fotos Geyson Magno
... [et al.]. – São Paulo: Terceiro Nome, 2015. 164 p. : il. ; 25 cm.

ISBN 978-85-7816-160-6

1. Literatura - Crônicas. 2. Literatura brasileira. 3. Literatura africana.


4. Trabalhadores. 5. Escravidão. I. Farhat, Rodrigo. II. Soares,
Alessandro. II. Brum, Eliane. IV. Magno, Geyson.

CDU 82-94
CDD 809

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura: Crônicas 82-94


(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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Todos os direitos reservados


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