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HISTORIA GERAL DA
ARTE NO BRASIL
ú VOL. I I

t
\

I
I

INSTITUTOWALTHER
MOREIRASALLES
FUNDAÇÃODJALMAGUIMARÃES SãoPaulo1983 BRASIL
SUMÁRIO

8 ARTE CONTEMPORÂNEA
Walter Zanini
499

Introdução 501
. DASORIGENSDOMODERNISMO
à SEMANADE 1922
8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista 502
8.2 As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais 507
8.3 As primeiras exposições modernistas 511
8.4 Anita Malfatti, a precursora 513
8.5 A contribuição de Di Calvalcanti, Vicente do Rego 520
Monteiro e Victor Brecheret
8.6 O Futurismo em São Paulo 528
8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio 530
( 8.8 Os artistas plásticosna Semana de Arte Moderna 533
t
EVOLUÇÃO
DOMODERNISMO,
DEPOISDASAM,ATÉ1930
8.9 Desdobramentos e difusão do Modernismo 541
8.10 Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris 547
8.11 Os primeiros anos de Segallno Brasil 55A
8.12 Tarsila do Amaral: do pau-brasil à antropofagia 556
8.13 Outros artistasde experiência européia 560
8.14 Goeldi, Nery e outros artistas ativos no Rio 562

TRANSFORMAÇÕESARTÍSTICASDE 1930AO PERÍODO DA SEGUNDA


GUERRAMUNDIAL
8.15 MIrmação do Modernismo no meio artístico alargado 568
8.16 Novas fasesdos pioneiros 574
8.17 O "salão revolucionário' , 578
8.18 Agrupamentos de artistas no Rio e São Paulo 579
Núcleo Bernardelli 579
ASPAM 580
OCAM 582
O Salão de Maio 583
O Grupo Santa Helena 585
A FAP e o sindicato 586
8.19 A obra de Portinari 588
8.20 Síntese da contribuição dos artistas do Rio 596
Guignard e Pancetti 596
Artistas do Núcleo Bernardelli 599
Artistas influenciados por Portinari, quase sempre 602
Burle Marx 605
Artistas europeus 605
Escultoresdo período 609
Bruno Giorgi 610
Maria Martins 613
A arquitetura e o programa do edifício do 614
Ministério da Educação
8.21 Síntese da contribuição dos artistas de São Paulo 615
O meio paulista 615
Fláviode Carvalho 615
Novos nomes 618
Ernesto de Fiori 621
Os santelenistas: Bonadei, Graciano, Pennacchi, 623
Rebolo, Volpi, Zanini e outros
Posiçõesdiversificadas 630
Os escultores 634
8.22 Aspectos da arte em váriosEstados 637

A INTEGRAÇÃO
NOCURSOINTERNAClON1\L
DAARTE
8.23 A aderência ao universo das formas abstratas 641
8.24 Transformações do meio ambiente 643
8.25 Os artistas surgidos com a exposição dos' 19' 649
8.26 Arte concreta e neoconcreta no Brasil 653
8.27 Outras tendências construtivas e diferentes
morfologias abstratas 678
O interesse construtivo em Volpi e outros artistas 678
A abstração lírica 689
O Expressionismoabstrato 693
As tendências do Expressionismo abstrato na gravura 703
A escultura e a abstração 708
8.28 Engajamentos na arte social 709
8.29 A perseverança da figuração 715
8.30 Aspectos da arte em capitais regionais 726

ASVARIÂ
VEIS ARTÍSTICASNAS ÚLTIMASDUAS DÉCADAS
8.31 Os desdobramentos da arte e o quadro local de atividades 728
8.32 O movimentoartísticodiversificado. 734
8.33 Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada 739
As novas figurações 739
A surrealidade presente 758
O ideário construtivo 763
As múltiplas linguagens no desenho e na gravura 764
Variantes da expressãoescultural 769
Desmaterialização e reanimaão 776
Os processosintermediais 785
8.34 Aspectos da arte em váriosEstados 802
A caricatura 806
Arte incomum 808
A visãoingênua e popular 810
CONCLUSÃO 812
Notas 813
Bibliografia 820
.,
823
9 ARQUITElliRA CONTEMPORÂNEA
Carlos A. C. Lemos

" 9.1 Introdução 825


II
9.2 As primeiras obras modernas 827
I 9.3 A introdução do funcionalismo de LeCorbusier 837
9.4 A arquitetura moderna carioca 840
9.5 Os tempos do amadurecimento 851
4. 9.6 A arquitetura paulista 853
9.7 Panorama atual 861
Notas 864
Bibliografia 865

FOTOGRAFIA 867
I
10 Boris Kossoy

Introdução 869
I
A invenção da fotografia 870
A descobena isolada da fotografia no Brasil 872
A chegada e a disseminação da daguerreotipia no Brasil 874
Os novos processosfotográficos e a expansão 876
do retrato fotográfico
A documentação fotográfica 878
A fotografia no Brasilnas primeiras décadas do séculoXX 882
Tec:nologianacional: uma tentativa 883
O "lambe-lambe" 884
O fotoclubismo no Brasil 884
A fotografia comercial nos meados do século 886
A fotografia impressa 888
A evolução da fotografia nas últimas décadas: panorama 892
internacional e suas repercussõesno Brasil
A opção pela fotografia: o modismo e a autenticidade 893
O ensino da fotografia 893
Exposições:a fotografia ganha maior espaço. Avolumam-se 894
as mostras
A fotografia é objeto de publicação e divulgação 896
Movimentos fotográficos 897
Temas e tendências: alguns exemplos significativosda 897
fotografia brasileira nos últimos anos
Brasile América Latina: uma problemática semelhante 907
Fotografia e história 908
Fotografia e a documentação do patrimônio cultural 909
O patrimônio fotodocumental brasileiro e a 910
preservaçãoda memória nacional
Notas 911
Bibliografia 913
it
-

DESENHO INDUSTRIAL 915


11 Júlio Robeno Katinsky
11.1 Introdução 917
11.2 Antecedentes do An-Nouveau 918
A crítica inglesa 918
A expansão tecnológica 919
A criatividade não institucionalizada 919
11.3 O An-Nouveau 1880-1914 923
11.4 Período entre guerras 1918-1940 926
11.5 Período da "guerra fria" 1945-1975 930
11.6 Brasil 191 0-1980 931
Bibliografia 951

COMUNICAÇÃO VISUAL 953


12 Alexandre Wollner

Pioneiros da comunicação visual 955


Bibliografia 971

ARTE AFRO- BRASlIElRA 973


13 Mariano CarneifO da Cunha

13.1 Introdução 975


13.2 Evolução da escultura africana 978
13.3 Compreensão da ane africana 984
13.4 Esboço histórico: o elemento negro nas anes plásticas 989
13.5 Ane afro-brasileira: definição 994
13.6 As primeiras coleções conhecidas: sua cronologia relativa 996
13.7 Bidimensionalidade dos objetos e o problema
do "sincretismo" 997
13.8 Análise de alguns dos exemplares mais antigos:
continuidade estilística e sentido cultUral 999
Oxês de Xangô 999
A estatUária dos Ibeji 1002
A visão do mundo subjacente à iconografia
dos oxês de Xangô 1003
13.9 Estatuária de Exu 1004
Os protótipos africanos da estatUária de Exu 1005
Os primeiros exemplares brasiléuos da estatuária de Exu 1006
Exus de ferro: reformulação de uma estatUária 1008
africana em madeira
As etapas evolutivas da estatUária de Exu no Brasil 1009
Técnica e estilo da estatUária de Exu 1011
Sentido cultUral da iconografia de Exu 1013
13.10 Parafernália das feiticeiras: expressãode um ritUal arcaico 1014
ligado ao culto das "mães ancestrais nagô-yorubá' ,
O que são as máscaras Gueledé 1016
13.11 Continuidade provável de convençõesformais 1017
africanas ligadas à representação natUralista
na arte brasileira
13.12 A emergência de artistas e de temas negros a partir 1022
das décadas de 1930 e 40
APÊNDICE:Artes corporais e decorativas, jóias, 1029
jóias crioulas, alfaias,cestaria,
cerâmica e marroquinaria, vestimenta
Notas 1030
Bibliografia 1033

ARTESANATO 1035
14 Vicente Salles

14.1 Introdução 1037


14.2 Empresa vitoriosa 1040
14.3 Adestramento da mão de obra 1041
14.4 A Corporação colonial 1045
14.5 Rebaixamento e dispersão do trabalho manual 1046
14.6 Uma colônia fechada 1048
14.7 Posicionamento conceitUal 1050
14.8 Anesanato brasileiro - seuuniverso 1056
Notas 1071
Bibliografia 1073

ARTE EDUCAÇÃO 1075


15 Ana Mae T avares Bastos Barbosa

15.1 Introdução 1077


15.2 AtUalidade da MissãoFrancesa 1078
15.3 Os liberais e o ensino de arte anti-elitista 1081
15.4 Influência deJohn Dewey 1085
15.5 Arte para criançase adolescentes como atividade 108Y
extracurricular
15.6 Ane para liberação emocional 1090
Notas 1095
Bibliografia 1095

Índice Onomástico 1097


...,

Arte contemporânea
-
.

..

..

"

'.
Walter Zanini
t

. I

500

ARTE CONTEMPORÂNEA

PARTE I DAS ORIGENS DO MODERNISMO Â SEMANA DE 1922


São Paulo, núcleo do movimento ":l0deçnista
As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais I
Asprimeira exposiçõesmodernistas .

Anita Malfatti, a precursora


A contribuição de Di Cavalcanti, Vicénte do Rego.Monteiro e Victor Brecheret
O FutUrismo em São Paulo
A abenura no ambiente conservador do Rio
Os artistas plásticos na Semana de Arte Moderna

PARTE 11 EVOLUÇÃO DO MODERNISMO, DJ;:P9IS DA SAM, ATÉ 1930


Desdobramentos e difusão do Modernismo
Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris
Os primeiros anos de Segall no Brasil
Tarsila do Amara!: do pau-brasil à antropofagia
Outros artistas de experiência européia
Goeldi, Nery e outros artistás ativos no Rio

"
Introdução
. Os novos ideários da arte que se impuseram no Brasil pelo
desenrolar do século XX são objeto desta parte do livro. Desde o
movimento modernista (das raízes à Semana de Arte Moderna e sua
evolução até 1930) encadeiam-se os estudos referentes a períodos
cronológicos quase sempre bem demarcados por décadas. É verdade
que no início do decênio de 1930 delineia-se uma fase que se alonga
aos anos da Segunda Guerra Mundial. ou mesmo um pouco além.
Cada uma das três décadas seguintes. entretanto, apresent.a fortes
peculiaridades. Procurou a abordagem dessas etapas distintas colher
nas linhas gerais tanto o trabalho individual quanto a animação de
grupos ou tendências. assim como as características do sistema só-
cio-cultural da arte aqui existente.
A análise - por entre as dificuldades de pesquisa já apontadas
no prefácio do livro - busca esclarecer os aspectos principais que
marcam a atividade artística criadora no diversificado meio brasileiro
e ao mesmo tempo mostrar os dados que a ligam ao contexto inter-
nacional. 501

PARTEIII TRANSFORMAÇÕESARTÍSTICASDE 1930AO PERÍODO DA SEGUNDA


GUERRAMUNDIAL

Afirmação do Modernismo no meio artístico alargado


Novas fases dos pioneiros
O "salão revolucionário"
Agrupamentos de artistas no Rio e São Paulo
A obra de Portinari
Síntese da contribuição dos artistas do Rio
Síntese da contribuição dos artistas de São Paulo
Aspectos da arte em vários Estados

PARTE IV A INTEGRAÇÃO NO CURSO INTERNACIONAL DA ARTE


A aderência ao universo das formas abstratas
Transformações do meio ambiente
Os artistas surgidos com a expos'ição dos '19'
Arte concreta e neoconcr(~tanb Brasil
Outras tendências construtivas e diferentes morfologias abstratas
Engajamentos na arte social
.
A perseverança da figuração
Aspectos da arte em capitais regionais

PARTE V AS VARIÃVEIS ARTÍSTICAS NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS


OS desdobramentos da arte e o quadro local de atividades
O movimento artístico diversificado
Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada
Os aspectos da arte em vários estados

CONCLUSÃO
'\
~

Das origens do Modernismo à Semana de 1922

8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista


Desde o segundo decênio deste século alguns fatos tornaram-se
indicativos do aparecimento de uma nova situação cultural no Brasil.
Em reação a antigos e sedimentados estratos de nossas artes e
letras. tributárias. ainda depois da Primeira Guerra Mundial. de
valores já esgotados em fins do século XIX na Europa - sempre
centro das atenções da inte//igentsia da nação - afirmou-se gradual-
mente uma orientação revolucionária de sensibilidade e de idéias
resultante nos anos posteriores em sucessivas e agudas manifes-
tações que configuraram de vez o fenômeno conhecido como Moder-
nismo. Entre essas manifestações aparece, como um marco decisivo
502 de arregimentação e ao mesmo tempo com toda a força de um sím-
bolo, a Semana de Arte Moderna. Nela demonstrava-se o quanto era
imperiosa e urgente a renovação mental do meio. A transformação
pretendida embasava-se na absorção das tendências mais avançadas
da cultura e da arte do Velho Mj.mdo, havendo consciência da neces-
sidade de introduzir nessa atualização um conhecimento aprofundado
da realidade nacional.
Embora suas não poucas contradições, a Semana de 1922
representou. ao aglutinar esforços 'dispersos em várias áreas poéticas
e valendo-se do escândalo, o primeiro gesto coletivo de rejeição do
passadismo em que aqui remansavam a expressão icônica, musical e
verbal. E mesmo indo além de tudo isto, ela nãp deixava de exprimir
anseios mais vastos que idealizavam o país integrado ao diapasão
das sociedades evoluídas. A partir de então. outros desdobramentos
cpnsolidaram o Modernismo até o final da década, quando, em
sincronia com o crack de 1929 e '6 advento da República de 1930,
inaugurou-se um outro tempo, que aproveita o impulso dos pioneiros
mas que decorre em função de coordenadas próprias. No transcorrer
dos anos 20 registraram-se movimentos que se aproximam do espíri-
to de renovação da Semana também em outras capitais do hemis-
fério. a exemplo daqueles dirigidos pelo Sindicato de Artistas Revolu-
cionários do México (1922) e o grupo da revista Martin Fierro de
Buenos Aires (1924).
Essa tomada de consciência das artes e das letras era contem-
porânea de uma sociedade penetrada de perseverante espírito positi-
vista. dominada politicamente pela velha e poderosa oligarquia lati-
fundiária - sociedade que, de. um modo geral. mostrava-se cultural-
mente conformista, apegada a modelos estéticos europeus pouco
renovados, que a compraziam desde o Império. O propósito dos artis-
tas. como dos literatos da primeira hora modernista. coincidia com a
industrialização que se acelerava - impelida pela massa de imigran-
tes fixados no sul do país - e encontrava ,correspondência, pela déca-
da de 1920. no ânimo político contestatário da classe média em
ascensão e nos ideais de reforma moralizante do tenentismo, diante
do desajuste e o desgaste do regime instituído em 1889 - todas
causas desencadeadoras dos rumos ideológicos responsáveis pela
Revolução de 1930. Não faltam interpretações que atribuem decidi-
damente à Semana de Arte Moderna méritos de estimulação de um
discernimento objetivo dos problemas substanciais de auto-identifi-
cação de que era carente a nação e ela, que assimila as tensões da
sociedade, certamente os pode reivindicar pela natureza e alcance de
seus conceitos.
/
Entretanto, antes dos acontecimentos intelectuais e artísticos da
Semana e do desenrolar dos vários e importantes episódios políticos
( da década de 1920, nos anos que antecederam o evento de 1922,
sobretudo a partir do período da Primeira Guerra, todo um processo
de abertura tomava consistência em setores do país, reduzindo o
arcaísmo confrangedor herdado das velhas estruturas sócio-econômi-
cas em que fora longamente moldado. No Brasil do segundo decênio
do século XX fortalecia-se o sistema capitalista como conseqüência
do conflito mundial. Um dos efeitos maiores deste fato foi o desenvol-
vimento fabril concentrado nos próprios recursos manufatureiros
locais. Era ao mesmo tempo o instante em que se acentuava a
penetração das idéias socialistas, sucedendo-se as reivindicações 503
proletárias que em 1922 resultavam na fundação do Partido Comu- »:D
nista. Este industrialismo incipiente, mas que deixava longe os índices ~
no
qualitativos do fim do Império e começo da República, ocorre com z-I
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muito maior ênfase em São Paulo, para onde se deslocara o eixo de o""
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gravidade econômica do país e a~a-se inextricavelmente ligado à :»-
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propulsão das concepções de tendência modernista.
Considerar São Paulo florescente pela riqueza do café espalhado
pelo interior do Estado, acrescido vertiginosamente em sua
população (de 240 mil habitantes em 1910 passava a 500 mil em
1920). convulsionado pela construção e reconstrução imobiliárias,
por empreendimentos financeiros e comerciais e, acima de tudo, pela
multiplicação de oficinas e fábricás, é levar em conta desde logo os
contrastes sócio-econômicos que passavam a se acentuar entre a
província do sudeste - principalmente - e outras regiões do território
nacional. Sob angulação mais vasta agravava-se a já considerável
. assimetria existente entre as cidades litorâneas, algumas também e
mais sensivelmente atingidas pela explosão demográfica e o desen-
volvimento industrial, do interior agreste e pobre posto à mostra pela
obra de Euclides da Cunha.
O fenômeno da rápida expansão da capital paulista assinalava-se
pela complexidade de seus determinantes. A imposição da cidade,
subvertendo a tradicional primazia do campo em toda a nação, era
em São Paulo devida em grande escala às levas imigratórias que par-
ticipavam de forma vital na criação de recursos de toda ordem,
influindo na economia, nos costumes, na problemática das idéias. Por
outras palavras, essa presença que transformava os Estados meridio-
nais, trazendo nova contribuição à etnia brasileira, fazia-se fortemente
sentir na dinâmica da sociedade e da sua cultura. Não a podemos
perder de vista quando abordamos o fenômeno do Modernismo. Liga-
do à lavoura cafeeira - que recuperava submersas energias de des-
cendentes de antigas famílias bandeirantes e cuja intensificação, por
entre os dramas das crises sucessivas que afetavam o produto, se
fizera, ao lado de outros incrementos agrícolas, pelo braço do negro e
do imigrante - o surto de industrialização que alterava radicalmente
o velho burgo de Piratininga, sobretudo depois da Segunda Guerra,
diferenciava sobremaneira São Paulo de outras cidades, como o Rio
de Janeiro; capital da República, ou Belém, engrandeci da na fase efê-
mera da exploração da borracha.
Este quadro progressista será instigação decisiva para os moder-
nistas do campo das letras, que o relacionavam às lições colhidas no
agitado meio cultural europeu da época, principalmente a uma de
suas vertentes mais prolíferas: o Futurismo, fundado em 1909, e toda
a sua crença na civilização tecnológica. Preparado em São Paulo, a
partir da segunda década, ampliando-se em direção ao Rio e contan-
do com uma participação pernambucana, a corrente renovadora
estendeu-se depois de 1922, nos seus aspectos literários, a outras
cidades que, inicialmente mais ao norte que ao sul, recebiam o estí-
mulo, enfrentando densos contextos de marasmo.
Haviam permanecido muito influentes na pintura brasileira inter-
secular o academismo derivado da ortodoxia neoclássica, as impreg-
nações românticas e realistas, às quais faltara a vivencialidade históri-
ca geradora dessas problemáticas e assimilações tardias da sensibi-
504 lidade impressionista. Crisol de homens e instituições que o impu-
nham como pólo de irradiação das diretrizes culturais do país, o
Rio gerava para as provín~ias esses elementos colhidos no ambiente
parisiense mais tradicionaT. Desde a fundação da Academia Imperial
das Belas-Artes em 1826, transformada em 1890 na Escola Nacional
de Belas-Artes, reduto do ensino oficial das artes no Brasil. dali se
disseminava a orientação aos estabelecimentos congêneres que, a
longos intervalos, foram sendo instalados em diversas províncias: em
1877 na Bahia, a que se seguem, só muito mais tarde, as escolas de
Porto Alegre (1908) ou Belém (1918). Em São Paulo não haveria ins-
tituição como essa antes de 1925.
Tornou-se até um truísmo. dizer que a longa ausência do ensino
estatal na capital paulista lhe foi vantajosa na medida em "que a
subtraía ao menos por esse lado, dos preceitos da estética de conteú-
do e de soluções formais descompassadas com o seu tempo lógico.
É claro que o academismo invadia solto o ambiente paupérrimo por
outras vias. Mas aquele fato não deve ser descurado, inclusive na
inversão que revela, quando se faz alusão à arquitetura moderna, a
qual absolutamente nada poderia pretender da Escola Politécnica e
que, afinal, na Paulicéia, se restringia a uns poucos representantes,
ao contrário da incitação que essa área de estudos receberia no cír-
culo, neste particular menos preconceituoso, da Escola Nacional de
Belas-Artes'. Na deflagração da vaga modernista a inexistência de tra-
dição no cultivo artístico em São Paulo é, portanto, dado ponderável e
deve ser vinculada a todos os aspectos sociológicos resultantes do
fundamental e recente cosmopolitismo personalizador da cidade.
-É necessário insistir nas características culturais paulistanas, que
permaneceriam por muitos anos ainda e~tabilizadas em sérias defi-
ciências provinciais. Na vastidão do crescente espaço urbano, Sã~
Paulo se europeizava sobretudo à feição italiana desde os fins do sé-
culo XIX, no ecletismo e depois no Art-Nouveau da arquitetura e da
decoração (neste último estilo as melhores realizações pertenceriam,
no entanto, a arquitetos de outras origens), nos hábitos, na própria
miscigenação da língu.a. A cidade, em suma, na sua vivência,
peculiarizada pelos contextos étnico-culturais de uma população su;-
generis (com seus italianos, portugueses, alemães, espanhóis, sírios
etc.). adquiria ares de capital, com edifícios públicos e residências de
grande porte, a ereção de monumentos escultóricos e a urbanização
c01T!áreas ajardinadas. Engrandecida e enriquecida, a cidade impri-
miu um ritmo rápido às suas atividades culturais. A abertura do sole-
ne Teatro Municipal (1911) assinalou nova data para a cultura institu-
cional, provida, bem antes, de casas de espetáculos para peças
teatrais, óperas e operetas, concertos musicais e outros eventos,
sofrendo já a concorrência do cinematógrapho. Um cinema artesanal,
sobretudo ensaiado junto aos il41igrantes italianos, procurava sua
oportunidade. As freqüentes exposições de arte adaptavam-se aos
espaços improvisados no velho centro. Em 1911 esse entusiasmo já
era muito acentuado, como prova o I Salão de Belas-Artes, feito nos
moldes do Salão Oficial do.. Rio. Já antes, em 1905, fundara-se a
Pinacoteca do Estado, que . até QS anos 60 não escaparia ao espírito
do conservadorismo. .
Entre os mestres mais acatados que atendiam, no seu imobilis-
mo, a uma clientela amante da pintura reprodutora do real, achavam-
-se Benedito Calixto (1853-1927) ePedro Alexandrino (1856-1942). 505

, Ambos haviam estudado em Paris, Calixto com Gustave Boulanger


(1824-88), Alexandrino com Antoine Vollon (1833-1900), O primeiro
cultivou um repertório de temas religiosos e históricos, assim como a
paisagem e a marinha, e o segundo tornara-se meticuloso pintor de
naturezas-mortas.
Fixando-se em São Paulo, Oscar Pereira da Silva (1867-1937),
formado no Rio ainda nos tempos do Império e depois aluno de Bon-
nat (1833-1922) em Paris, cultor neo-romântico de temas ternos ou
de ênfase celebrativa, também correspondia àquelas expectativas.
Numerosos eram desde então os artistas estrangeiros que por exten-
sas temporadas ou definitivamente se radicavam em São Paulo, como
acontecia em outras cidades das Américas. Os pintores Georg Fischer
Elpons (1865-1939), Enrico Vio (1874-1960) e os escultores Ama-
deu Zani (1869-1944) e William Zadig (1884-1952) de sedentários
códigos visuais, como tantos outros seus colegas, exerciam também
atividades de ensino, ainda não estudadas. Não faltavam ao núcleo
de artistas, de predominância italiana, já compacto nos anos 1910-
-1920, requisições para a decoração de edifícios públicos ou de resi-
dências de famílias tradicionais e de imigrantes enriquecidos. Releve-
se o papel do Liceu de Artes e Ofícios no aprendizado de inúmeros
artistas e artesães qualificados. Dessa casa de ensino e do esforço
autodidata surgiriam valores mais tarde afirmados. Passaram por
seus bancos muitos estatuários e decoradores que adornavam a cida-
de, tal como ainda em 1935 a viu severamente Lévi-Strauss, na "indi-
gência pretensiosa das suas ornamentações", "agravada pela pobreza
do trabalho graúdo: as estátuas e as guirlandas não eram em pedra
mas sim em gesso pintado de amarelo a imitar uma pátina" 2.
O interesse em dar expressão cultural à cidade, até cerca de
1890 reduzida quase só à Escola de Direito e à sua emanação
literária, expandia-se na busca de existência artística que compensas-
se ou conjurasse o preponderante pragmatismo. Se na transformação
., urbana, em seu sentido monumental, fora dos mais salientes o papel
, do arquiteto e empresário Ramos de Azevedo (1851-1928) e o grupo
móvel de arquitetos - incluindo muitos estrangeiros - que com ele

l
trabalhavam, na animação intelectual de São Paulo essa tarefa coube
principalmente a um homem de carreira política, apaixonado pela cul-
tura francesa, que adquirira gosto pelo colecionismo de obras de arte,
e que se destacou na promoção de exposições e na obtenção de bol-
sas para viagem de artistas ao exterior: o senador Freitas Valle. É ver-
dade que o primeiro - profissional de rígida formação neoclássica,
responsável desde 1886 por inúmeras obras importantes (iniciadas
com o remanejamento e construção dos edifícios do Pátio do Colé-
gio) - nas contingências de suas funções empresariais ou em incum-
bências oficiais, também se interacionava ao meio de pintores, de
escultores e, pela própria natureza do seu escritório de engenharia e
arquitetura, a artistas decoradores. Mas coube a Freitas Valle, espírito
não menos conservador, um desempenho constante e dos mais pres-
tativos nesses aspectos. Caracterizou-o, ainda, a atividade de anfitrião
de famosos encontros de artistas e intelectuais, de gerações e atitu-
des diversas, na sua Vila Kirial. A aproximação fazia-se sob a égide do
cidadão que enfeixava não raros poderes nas mãos, o que não deixa
de ser já sintoma dos aspectos mecenáticos ou paternalistas que no
506 futuro estariam no cerne da orientação de muitas instituições artísti-
cas no Brasil. Freitas Valle patrocinou por anos a fio esse clima de
convivência na sua casa de Vila Mariana, considerada "templo de
arte" (Souza Lima), onde as estimulações não eram de sorte a induzir
o contexto artístico à alternativa renovadora de que necessitava.
Outras forças, entretanto, emergiam nos contornos alargados de
São Paulo. Dois artistas, principalmente, exerceram enorme influência
na metamorfose operada no contexto antes de 1922: Anita Malfatti
(1889-1964) e Victor Brecheret (1894-1955). Apoiados por alguns
intelectuais e poetas, jovens como eles e ainda num estágio de inde-
cisão entre estéticas declinantes e a experimentação, é da sua
ligação íntima que tomará corpo o movimento modernista. Sua eclo-
são na São Paulo industrializada e não fora dela foi explicada em
1942 por uma das figuras centrais do Modernismo, Mário de Andra-
de, quando sublinhou os contrastes culturais existentes entre São
Paulo e Rio. A primeira cidade - diz ele - "estava muito mais "ao
par" que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o Modernismo só
podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província.
Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre Rio e São
Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida
exterior. Está claro: porto de mar e capital do país, o Rio possui um
internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais
moderna porém, fruto necessário da economia do café e do
industrialismo conseqüente. Caipira de serra-acima, conservando até
agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua políti-
ca, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial
e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com
a atualidade do mundo"3.
Ao levantar a complexa problemática da promoção da Semana,
clímax da arregimentação de energias que já extrapolava São Paulo,
Mário de Andrade aquilatava as distâncias que separavam as classes
dirigentes de ambas as cidades em suas relações com a arte. Opunha
a formação da ';alta burguesia riquíssima" do Rio, que não se achava
preparada para "encampar um movimento que lhe destruía o espírito
conservador e conformista", ao nível cultural da "aristocracia intelec-
tuaI paulista" 4. Esta, na sua empolgação pelo progresso civilizatório
que atingia o Estado, considerou coerente o risco de trabalhar a favor
da Semana de Arte Moderna. t verdade que foram somente alguns
poucos homens dessa classe - à frente dos quais o escritor e
homem de negócios Paulo Prado - a encorajar o evento. A ela coube
essa solidariedade aos artistas e escritores que procuravam reagir ao
"que era a inteligência nacional"s. Quanto a estes, em parte perten-
ciam à mesma origem social ou então desfrutavam de inegável status
na comunidade - o que deixa patente as camadas de onde provinha
a primeira geração do Modernismo brasileiro. Mas deve-se ressaltar a
presença de imigrantes e descendentes no agrupamento de vanguar-
da, os quais certamente nela introduziam inquietudes sociais próprias
do seu meio, tese levantada por Flávio Motta nas suas reflexões sobre
um artista mais antigo, Eliseu Visconti (1866-1944)6. Da mesma for-
ma, é preciso lembrar os intelectuais estrangeiros, entre os quais
muitos de formação anarquista, atuantes em São Paulo e outras cida-
des, e cuja ideologia revolucionária não deixaria de ressoar no espíri-
to inconformista mais geral do Modernismo, embora a dissidência
deste viesse configurar-se em modelos exclusivamente estéticos. 507

8.2 As fontes européiase a buscade estimulantesnacionais


A histórica recorrência da cultura brasileira às fontes européias
ratificava-se uma vez mais nessa geração que aparecia disposta a con-
testar paralisantes correntes nos primeiros dois decênios do século XX.
Se permanecia o contributo francês, tradicionalmente primordial. ou-
tras inserções salientes, como o já referido Futurismo, de procedência
italiana, nas letras, ou o Expressionismo alemão, nas artes plásticas,
alteravam a quase unicidade do apelo anterior. Mas a busca dramá-
tica do paralelismo com a dinâmica do tempo internacional fazia-se
com a atenção simultânea nos valores internos .do país, outrora objeto
de transfigurações românticas e acadêmicas. A difícil procura de osmo-
se entre universal e nacional estava, pois, no cerne da consciência
sincrônica dos intelectuais modernistas (a preocupação com o nacio-
nal era contudo menos generalizada entre os artistas plásticos).
Nãç:>obstante as restrições de que se tornou passível o Modernis-
mo brasileiro quanto à extensão e profundidade do corolário de
experiências absorvidas no estrangeiro, à ausência de homogeneidade
grupal e à margem de atraso na assimilação das vanguardas interna-
cionais, nele tomava corpo um teor de essencialidade que, nos casos
mais consistentes, voltaria as costas a todo o convencionalismo cul-
tural daqui e do Continente Antigo, este defrontado desde o final do
século XIX por um encadeamento de resolutas afirmações de indiví-
duos e comunidades intelectuais e artísticas.
Não cabe aqui senão breve aceno ao extraordinário clima de cria-
tividade que marcou algumas capitais européias - particularmente
Paris - num contexto de vida turvado em contradições sociais. Antes
de 1914, deixados para trás Impressionismo e Pós-I mpressionismo,
mas influente ainda o Art-Nouveau, cumprira-se uma etapa que revolu-
cionava o entendimento aceito das linguagens plásticas que têm em
Picasso (1881-1973) um nome maior. As artes plásticas, como a
I,iteratura e a música, refaziam-se estruturalmente. Através do Expres-
sionismo, do Cubismo, do Futurismo, das correntes abstratas e
construtivas, da pintura metafísica - as primeiras três facções e a últi-
ma já com um ápice alcançado no limiar da guerra - haviam-se difun-
dido códigos visuais que projetavam um universo ajustado à complexa
dinâmica da realidade contemporânea. Tratava-se de ruptura com cri-
térios de representação herdados de longa data, ultrapassados pela
prospecção de conceitos de espaço/tempo, equivalentes às for-
mulações científicas pós-euclidianas. A dissidência dialética de Mareei
Duchamp (1887-1968), entretanto só ao alcance do futuro, com a sua
refutação da pintura retinal e a valoração primacial da idéia na arte,
datava também do período de pré-guerra. Na anárquica postura Dada
dos anos de conflito mundial e logo após, radicalizava-se uma proble-
mática nihilista na crítica feroz ao estab/ishment social e à arte.
Nessa atmosfera de mudanças rápidas que alteravam no sentido
508 visceral o conceito das artes e das letras ocidentais, permeavam
influências do pensamento de Nietzsche, cujo individualismo enleia
Expressionismo e Futurismo; de Freud, menos impregnante, mas cuja
investigação do inconsciente repercute na literatura e artes visuais des-
de os anos 20 - a ambas essas influências acrescentando-se outras,
de particular significação, como foram as do materialismo histórico de
Marx e do intuicionismo de Bergson.
A divergência vigorosa dos repertórios artísticos tombados na
entropia retórica, únicos reconhecidos com o direito de cidadania no
acomodamento da alta sociedade européia, era fenômeno que se
difundia pelo mundo e que chegava até aqui pelo segundo decênio do
século, produzindo conseqüências similares de perplexidade e refu-
tação. Esse conflito entre novos e passados princípios estéticos não
poderia ser reduzido à simples reedição da querel~ hi.stórica entre anti-
gos e modernos. A expressão artística procurava integrar-se a uma
totalidade de consciência diante do mundo em crise desde muito antes
da Primeira Guerra e sem mais condições de readaptação a velhos sis-
temas de idéias e de estruturas sociais e políticas.
Difundiam-se as recentes concepções no curso da chamada
Segunda Revolução Industrial, quando o aperfeiçoamento das comuni-
cações intervinha na formação de uma internacional idade cultural
intensificada, mas onde o nacionalismo das potências de outrora resis-
tia com razões de força. Era também a gênese da era dos super-Esta-
dos. No Brasil essa revolução histórica internacional fluiu na própria
medida de sua problemática de país dependente. Tomando alento na
inflamada ideologia futurista (mas logo excluindo o repúdio às tra-
dições que a caracterizava na Itália) e seu espírito agressivo e exaltante
da civilização transformada pela técnica, o Modernismo brasileiro nes-
sa fase foi antes de mais nada uma busca em bruto de libertação. Os
estímulos da modernidade vinham, igualmente, para escritores e artis-
tas, de recentes fenômenos culturais parisienses. No caso da pintura
um dos membros da vanguarda brasileira - Anita Malfatti - recebia
uma carga do Expressionismo alemão. Da conjugação desses valores
internacionais às idéias locais tomadas de efervescência, após o tempo
de descompasso com o ritmo da cultura ocidental, à qual o Brasil per-
tence, todavia sincretizada por outros importantes aportes culturais,
houve mais tarde, pelo avanço dos anos 20, resultados incontestes nas
letras, na música e também nas artes visuais.
No segundo decênio o Modernismo (sobretudo pelos seus repre-
sentantes da literatura, mais numerosos) mostrava ligação entre o
fenômeno da renovação e o problema da afirmação de um fundo
próprio de cultura. E contrariamente à idealização que sofria no passa-
do o enfoque da realidade brasileira, como se disse, com o Modernis-
mo dar-se-ia um salto à frente, principalmente graças à que seria sua
ala mais lúcida, liderada por Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
na seqüência impondo-se sobretudo o trabalho mais solitário deste úl-
timo, estabelecendo em níveis críticos a visão do meio da vivência.
Apegando-se ao "exótico descoberto no próprio país pela sua
curiosidade liberta das injunções acadêmicas" 7, reapreciaram o con-
junto dos fatores componentes de um caráter específico de ambiente
que Ihes devia ser básico para o trabalho.
Desde o estudo do espaço físico até à observação do homem de
etnia complexa que o habita e transforma, enfatizada a contribuição
recente encarnada pelo imigranteS, tudo adquiriu para eles aura de 509
estímulo legítimo. Em alguns outros países latino-americanos, como o
Uruguai e o México, desvelava-se essa preocupação, com a criação de
padrões estéticos ligados a fatores locais de vida e cultura. São
exemplos disso, na área de pintura, Torres Garcia (1874-1949) e Oie-
go Rivera (1886-1957).
O interesse pela realidade nacional. entretanto, precedera os
modernistas e era já voz corrente no segundo decêni09, quando se fun-
dara a Revista. do Brasil. Oeclarava:..se o ideário francamente antes e
durante o ímpeto da modernidade, em figuras de diversificada for-
mação. Duas ,delas, ligadas aos problemas visuais e estéticos, são
Gonzaga Duque e Vicente Licínio Cardoso. Ao menos desde 1888
havia no crítico simbolista essa preocupação. Ele se indaga: "Se a nos-
sa arte não tem uma estética nem no seu ensinamento existem tra-
dições, como admitir a existência de uma Escola Brasileira?" '0. Diante
das exposições do final do Império e seus "assuntos bíblicos e as 81e-
gorias", ele pergunta: "Este desnacionalismo ameaça continuar?" ".
Mais tarde, reafirmará a ausência de uma identidade nacional na arte
produzida no Brasil. justificando-a pela natureza nova do país, mas
acreditando que o evento esteja próximo12. Por sua vez, o filósofo posi-
tivista Vicente Licínio Cardoso, que aperfeiçoara o pensamento estético
no próprio período da ebulição do Modernismo, sem contagiar-se por
ele, apegar-se-ia à tese nacionalista e também americanista.13.
A 'problemática, evidentemente, vinha de longe, desperta pelo
Romantismo. Entre os escritores muito atentos à questão do nacio-
nalismo, cumpre mencionar Lima Barreto, prosador de particular acui-
dade crítica; Graça Aranha, o autor de Canaã, mais tarde, em 1921,
atraído pelas hO$tes modernistas; e o regionalista Monteiro Lobato,
autêntico militante na abordagem de questões relevantes do país,
impulsionador do movi.mento editorial brasileiro, espírito fascinado
pelo progresso, sem meias palavras no trato do 'subdesenvolvimento'.
O escritor de Urupês, todavia, pendeu para o lado contrário à causa
artística reformadora, fatalidade que um dos maiores entre os moder-
nistas, Oswald de Andrade, lamentaria profundamente depois'4.
No âmbito da arquitetura, encontra-se outro aspecto significativo
desse comportamento, como demonstra a irrupção do neocolonial,
tentando inicialmente ganhar terreno na cosmopolita São Paulo pela
pregação de Ricardo Severo (1869-1940) e com melhores resultados
na obra de Victor Dubugras (1868-1933), mas que se tornaria real-
mente fértil na atmosfera conservadora do Rio. Muitos equívocos cer-
caram o movimento, defendido na capital federal pelo espírito ortodoxo
e apaixonado de José Mariano Filho - em oposição ao magnetismo
exercido por diferentes estilos históricos europeus implantados no país
e pela presença menos difundida do Art-Nouveau - que serviu acen-
tuadamente à reivindicação de uma cultura de substratos locais.
No plano do pensamento transformador, teria cabido a Oswald de
Andrade, que a crítica supõe informado das recentes experiências da
literatura européia já em 1912, ao escrever os versos livres de "Último
passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde" - obra todavia
extraviada e que se desconhece - um empenho antecipador nesse
sentid015. Dele, a quem se deve a fundação, em 1911, do seminário O
Pirra/ho - órgão em que se transfundia com irreverência a nervosa
510 atmosfera paulistana da época, captada graficamente pela caricatura
mordaz de Voltolino(1884-1926) 16 - e cujos conhecimentos do vers-
-/ibrisme de Paul Fort e da doutrina futurista iriam minar, embora len-
tamente, os elos que o prendiam ao Parnasianismo - conscientização
crescente de liberação, como atesta a carta de Monteiro Lobato de
1916, mencionada por Mário da Silva Brit017 e a sua solidariedade a
artistas modernistas ~ é o citadíssimo artigo "Em prol de uma pintura
nacional", publicado em seu periódico no começo de 191516. No tex-
to, Oswald clamava contra os artistas pensionistas do Estado que viaja-
vam para a Europa e que regressavam déracinés19, opondo a eles o
,pintor Almeida Júnior (1850-99) como exemplo: "Creio que a questão
da possibilidade de uma pintura nacional foi, em São Paulo mesmo,
resolvida por Almeida Júnior, que se pode bem adotar como precursor, en-
caminhador e modelo"20. Esta opinião sobre o pintor de Itu ele não mante-
ria a seguir ao criticá-Io pela sua "mera documentação nacionalista"21.
Se o aluno de Cabanel não se prestava a servir de modelo à
evolução da arte, aqui ou em outro lugar, havia nele sem dúvida, com
suas limitações, a veracidade do regionalismo, da sua visão caipirista.
Neste sentido, é ele precursor de um aspecto da pintura no Brasil
arraigapa aos estímulos imediatos do meio. Oswald, que se equivocava
totalmente ao dizer que os estágios no exterior serviam apenas à
"aprendizagem técnica", tinha razão ao condenar os famosos "prêmios
de viagem", os quais desandavam quase sempre sob a pressão da cul-
tura plástica mais involutiva ensinada e divulgada em Paris.
Oswald se afigura assim como um dos introdutores do germe de
atualização internacional no país, pela via do verso livre e do Futurismo,
ao mesmo tempo em que se empenhava por uma arte afeita às suges-
tões locais, preludiando a própria instauração do nativismo de "Pau-
-Brasil", dez anos depois22, Ele que, no início de 1918, não hesitará
em defender a pintora expressionista Anita Malfatti, na exposição que
levantava "as mais irritadas opiniões e as mais contrastantes hostilida-
des"23, fará prosélitos, contribuindo para a formação da grei modernis-
ta que é em muito trabalho seu, resultado da sua argúcia de catalisa-
dor de talentos, embora viesse a ser mérito da área não verbal a polari-
zação do movimento.
8.3 Asprimeirasexposições
modernistas

É na órbita das artes visuais que a definição de Modernismo pôde


ganhar sua mais avançada consistência. Passavam-se as coisas
diferentemente no âmbito literário, onde, além de Oswald, outros
futuros participantes do movimento - Mário de Andrade, Guilherme de
Almeida e Ronald de Carvalho - retardavam-se em compromissos
estéreis com valores oitocentistas, os quais, já próximo da Semana,
Oswald e Mário procuravàm superar. A poesia de Manuel Bandeira em
Carnaval antecipava elementos assimétricos em 1919. Em música,
depois do silêncio do fim do século XIX, estava-se, em 1914, chegan-
do tardiamente ao fluxo impressionista de Debussy, com Villa-Lobos (a
primeira das Danças africanas) 24. No entanto, a obra expressionista de
Anita Malfatti, posta em evidência quando de sua exposição de 1917-
-18, mostrou-se contribuição precursora e audaciosa que não apenas
separava a artista por um abismo da pintura acadêmica como também
a distanciava dos que logo mais seriam seus companheiros de rup- 511
tura25. Amadurecendo antes que os demais colegas do seu ou de
outros domínios poéticos, tateantes na busca de um sistema presentifi-
cado de linguagem, como se verá adiante, a pintora paulistana, filha de
imigrantes ítalo-norte-americanos, tornou-se presença de importância
capital na pequena constelação de episódios vanguardistas da década.
Embora fosse de 'futurismo', em interpretações equivocadas, de
que obsessivamente se falasse a respeito de qualquer'obra que fugisse
à 'normalidade' representativa, couberam a artistas encaminhados ao
Expressionismo as primeiras exposições de arte moderna realizadas no
Brasil. a de Anita, citada acima, e duas outras anteriores: a de Lasar
Segall (1891-1957) em São Paulo e Campinas (1913) e a da própria
Anita em São Paulo (1914). Não restam dúvidas, entretanto, no que
concerne estritamente à evolução histórica do Modernismo no país, e
s~m considerar a qualidade de ambos os artistas, que a mostra de
1917-18, pela repercussão alcançada, aparece como acontecimento
de significado superior.
Há casualidade de encontro nessas manifestações quase contem-
porâneas (1913 e 1914) de Lasar Segall e Anita Malfatti, artistas que

. praticamente cruzaram seus passos em Berlim e que começavam a se


marcar nos contatos com o pathos expressionista. Sabemos que tanto
a dupla exposição de Segall, como aquela de Anita, despertaram limi-
tado interesse. Das obras exibidas por Segall (pinturas e desenhos).
parte ao menos só por volta de 1922 seria notada pelos modernistas,
como confirmam as palavras de Mário de Andrade, ao falar no "des-
cobrimento assombrado de que existiam em São Paulo muitos
quadros de Lasar Segall" 26. Entusiasmado pelo Expressionismo, o
escritor já conhecia o pintor através de publicações e~ropéias.
Muitíssimas referências foram dedicadas a esses primórdios cro-
nológicos que alimentaram controvérsia já superada. A questão girava
em torno do mérito da introdução da arte moderna no Brasil. Indiscuti-
velmente, a mostrà do pintor de Vilna antecipara-se de muito àquela
fundamental, de Anita, em 1917-18 e também viera antes da primeira
individual da artista brasileira em 1914. Sega 11expusera - segundo o
próprio depoimento - "algumas experiências típicas de arte expressio-
nista, ao lado de obras de um modernismo mais moderado" 27. Deci-
dira-se, no entanto, por uma seleção centrada neste último aspecto, de
fase anterior, onde predominava o acento impressionista. As de caráter
expressionista já anunciavam a linguagem futura e o seu inerente cará-
ter humanista. Mas o ambiente não estava à altura da mensagem e
em pouco ou nada reagiu. A receptividade crítica de alguns jornais
quase não ultrapassou o nível dos lugares-comuns amenos, não raro
dispensados aos forasteiros. Segall foi passivamente absorvido e até
elogiado pela "técnica moderna e às vezesousada" 28. Todavia, houve
a exceção do cronista Abílio Álvaro Miller que, em Campinas, colhia
em cheio, instintivamente, a essencial idade da instauração segaliana,
512
referindo-se ao autor como "um dos mais empolgantes pintores de
almas que tenho conhecido" 29. Há ainda o detalhe da aquisição de
várias peças expostas (sem que isto certamente tivesse o mínimo a ver
com qualquer tipo de apoio à nova arte), Segall também, ao partir, dei-
xaria trabalhos com parentes aqui residentes. Essas obras sem dúvida
foram vistas durante a'nos junto aos seus colecionadores. Mas não há
indícios de que provocassem fermentação no meio prosaico. O episó-
dio se encerraria com o retorno do artista à Alemanha nesse mesmo
ano de 19133°.
A exemplo da exposição de Segal!. a de Anita, em 1914, entre
seu regresso da Europa e a viagem aos Estados Unidos (1915). não
alcançou maior ressonância, embora as novidades que traziam a sua
pintura, desenho e gravura. Os jornais Correio Paulistano e O Estado
de S. Paulo registraram a mostra com simpatia. Neste último órgão, o
crítico Nestor Pestana, de tendência conservadora, enalteceu nas obras
"uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de exe-
cução", vendo com fé o seu futur031, A pintora - que em 1912 visitara
a IV Sonderbund, em Colônia ("para mim foi uma revelação e minha
primeira descoberta") 32 e que, em Berlim, estudara com Lovis Corinth
(1858-1925). no início da fase em que este ~e aproximava do Expres-
sionismo, e com dois outros pintores, aproveitando ainda a estada para
muitos outros conhecimentos - voltava com apreciável cultura visual.
informada dos grandes artistas do fim do século XIX e início do século
XX. Vinha já inteirada do Expressionismo. Em que pese, entretanto, a
crispação das tonalidades, os acentos por vezes duros do contorno e a
textura agitada de algumas pinturas exibidas na ocasião, ela ainda não
estava de posse da liberdade formal, da pulsação da cor, do tratamen-
to espacial sintético e da agudez interior que lhe traria a permanência
nos Estados Unidos33,
8.4 Anita Malfatti, a precursora

Toda outra é' a história da "exposição insurrecional" 34 de 1917-


-18, que demonstraria a convicção expressionista de Anita Malfatti. Se
,I a residência na Alemanha (1910-14) fora o instante da incubação nes-
I sa visão do mundo, através da cor, os quase dois anos passados nos
Estados Unidos (desde fins de 1914) e, em especial. os contatos com
>
as idéias de Homer Boss (1882-1956). na Independent School of Art,
de Nova York - ambiente que incentivava a interdisciplinaridade poéti-
ca e que lhe deu acesso pessoal a vários artistas de primeira ordem,
traçaram o perfil durável da pintora, destinada a ser a força inaugural
do Modernismo no Brasil35.
Às descobertas precedentes que haviam formado a sua sensibili-
dade - o Impressionismo e o Expressionismo, o conhecimento de Van
Gogh (1853-90). Gauguin (1848-1903). Munch (1863-1944), Hodler
(1853-1918). Nolde (1867-1956) e outros pintores, na visita à IV Son-
derbund - associou-se a experiência existencial com Boss, mestre que 513
obrigava o aluno a um processo catártico antes de considerá-Io apto
ao trabalho artístic036. Essa aproximação foi determinante para a per-
sonalidade tímida de Anita, fazendo-a extravasar disponibilidades emo-
cionais em desenhos e telas de enérgica instauração. Sua conscienti-
zação da dramática Weltanschauung contida na assistemática corrente
do Expressionismo - centrada na prospecção confessional da imagem,
que havia germinado sem pausa em seu espírito, concretizava-se des-
de 1915 em múltiplas obras de unitária organização, onde se incor-
poram também outras influências do internacionalizado meio novaior-
qUInO.
Exemplos maiores da produção que assinala o clímax de toda a
trajetória da artista, em 1915-16, pertencentes a museus e coleções
,de São Paulo, são as paisagens "Rochedos", "O Farol", "A Ventania";
as figuras "A Estudanta Russa", "O Homem Amarelo" (segunda ver-
são), "A Boba", "A Mulher de Cabelos Verdes" e "O Japonês" (todas
pinturas a óleo), além de "O Homem Amarelo", primeira versão e "O
Homem das Sete Cores" (ambos pastéis). "Torso", realçado a carvão e
pastel e vários desenhos a carvão, entre eles "O Homem de Muita
Força" e "Nu Masculino Sentado" 37. .

Superando convenções de forma, cor e percepção do espaço, ain-


da visíveis em obras de 1914 e dominando os códigos técnicos, a sua
linguagem verticalizara-se em todos os sentidos. Alta temperatura de
cor e tensão gráfica equilibravam-se agora na concisão da imagem
subjetiva, onde o anímico enraizamento expressionista recorria a
esquemas de construção cubo-futurista.
A influência expressionista em Anita era de ordem generalizada,
havendo outras incidências, sobretudo da Escola de Paris. Não consta
na pintora, entretanto, a exacerbação conteudista de um Kirchner
(1880-1938) ou Nolde, por exemplo. A introspecção psicológica pre-
valeceu nas figuras ("O Homem Amarelo", primeira e segunda versões
e "O Japonês", do IEB-USP, "A Boba", qo MAC-USP, "A Mulher de
Cabelos Verdes", da coleção Ernesto Wolf etc.). Na paisagem, uma
extroversão formal explosiva - determinada pelo tema e a influência
de Van Gogh - surgiu em "A Ventania", porém é quase exceção. No
desenho ela ousou mais nas deformações, como em alguns carvões
(e.g. no "Nu Masculino Marchando"). de 1915-16. A representação
sarcástica, recordando a caricaturalidade de George Grosz (1893-
-1959). apareceu isoladamente, como em "Café Americano" (c. 1915-
-16)38.
Anita concentrou-se em temário reduzido no seu expressionismo
- quase sempre figuras de retratados de feições vagas e abstratizadas
e vistas paisagísticas. Lúcida e decidida, a pintora brasileira participou
desse universal contexto plástico de idéias e símbolos "sem preocu-
pação de glória, nem de fortuna, nem de oportunidades proveito-
sas" 39, transmitindo uma inquietação pessoal que tocava em proble-
mas essenciais do seu tempo.

514

685 686
1
685 Anita Malfatti - "A Boba", 1917.
oleo s/tela, 61 x 50.6, col. MAC-USP.
686 Anita Malfatti - "Nu Masculino
Sentado", 1915-16. carvão, 59 x 41,6. col.
IEB-USP
687 Anita Malfatti - "O Farol", 1915,
óleo s/tela, 46 x 61, col. Gilberto
Chateaubnand, Rio de Janeiro.

515
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516

688 Anita Malfatti - "O Homem


Amarelo". 1915-16. óleo s/tela. 61 x 51. cal.
IEB-USP.
Na permanência em Nova York, tivera a importantíssima oportuni-
dade de avizinhar-se de artistas e escritores europeus ali radicados ou
refugiados, como Mareei Duchamp, Juan GriS (1887-1927). Máximo
Gorki, Jean Crotti (1878-1958) , o empresário dos balés russos Serge
de Diaghilev (1872-1929) e o cenógrafo Leon Bakst (1866-1924). Em
depoimento de 1939, ela se referiu particularmente ao "bonito Mareei
Deschamps (sic). que pintava sobre enormes placas de vidro" e que
"fez uma dissertação engraçadíssima sobre a maneira de fazer a barba
num dia de tristeza" 40. 1915 é o ano do início da execução do "Gran-
de Vidro" e certamente Anita foi o nosso primeiro artista a ter conheci-
mento dessa obra antológica do século XX, assim como de uma sua
performance. Mas o que é imprescindível de ressaltar é a sua vivência
na cidade sacudida pelo Armory Show (1913) - e fortalecida pela pre-
sença de algumas figuras fundamentais da arte revolucionária.
A Independent School of Art promovia exemplares contatos pes-
soais com esses e outros artistas. Isadora Duncan também aparece
nas citações de Anita a propósito das aulas de desenho ao vivo junto
aos seus dançarinos no Century Theatre41. No que diz respeito à
evolução do seu expressionismo, especificamente no arcabouço 517
construtivo das figuras, parece-nos não descartável a idéia de que ela
tenha tirado proveito formal das próprias imagens do "dinamismo está-
tico" de Duchamp, cujo "Nu Descendant I'Escalier" (1912) era a mais
célebre pintura moderna existente nos Estados Unidos. Outras inferên-
cias extraídas dos artistas desse círculo sem dúvida se tornaram sensí-
veis em sua obra: "Eles Só falavam no cubism042 e nós de macaquice
começamos a fazer as primeiras experiências" - afirma Anita43. Ao
concluir a estada nos Estados Unidos, a pintora estava inegavelmente
de posse de grande segurança de recursos plásticos e de um ideário
que parecia inabalável.
Os fatos que a envolveram ao regressar ao Brasil ("viagem no
tempo e no espaço", como diz sua biógrafa Marta Rossetti Batista).
são por demais conhecidos. "Quando viram minhas telas, todos
acharam-nas feias, da~tescas ( . . J Guardei as telas" 44. Entrementes,
Anita participara de concurso promovido por Monteiro Lobato sobre a
representação do "Saci". A versão da pintora, entretanto, despertou o
espírito de chacota do próprio organizador do certame: "A sra. Malfatti
também deu sua contribuição em ismo" - dizia ele45. Foi nesse perío-
do que o então jornalista e caricaturista Emiliano Di Cavalcanti (1897-
-1976). visitando Anita, animou-a a expor, o que se deu depois de mui-
ta hesitação da artista, entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918,
num salão da rua Líbero Badaró. Anita selecionou mais de 50 obras
em técnicas diversas (inclusive a gravura) e inseriu peças já produzidas
em São Paulo, com enfoque temático nacional (e.g. 'Tropical") 48.
Uma curiosidade foi que acrescentou um desenho cubista de A. S.
Baylinson (1882-1950). secretário da Independent School of Art, que
poderia servir de reforço à sua posição renovadora.
A exposição constituiu-se em impacto para a crítica e a opinião
pública e ajudou a fazer conhecer melhor o estado do estreitamento
cultural de São Paulo. Na interpretação dos críticos, como na reação
do público, em tudo transparecia essa 'situação descompassada do
dinâmico ritmo criador inaugurado pelos europeus desde a belle épo-
que. A exposição foi um choque exatamente porque nas soluções das
obras realizadas nos Estados Unidos não havia resquícios passadistas.
Houve dois aspectos relevantes e opostos entre si na mostra: um alta-
mente positivo, o de provocar a idéia da arregimentação de forças dis-
persas que se encaminhavam para uma nova cultura. Nesse sentido,
Anita foi o "estopim do modernismo", conforme a expressão de Mário
da Silva Brit047. O outro aspecto é inteiramente oposto, podendo-se
dizer que, às custas dessa contribuição, a artista tornou-se alvo de
comentários violentos e insultuosos, e que interferiam desastradamen-
te em seus principios estéticos e na sua qualidade artística. É verdade
que, antes da exposição, já havia censuras à sua pintura e que ela em
nada reagira às circunstâncias adversas, mostrando-se temerosa de
exibir trabalhos. Em última análise, a responsabilidade do retrocesso
que se anunciava e que se agravou com os ataques à mostra, coube à
sua própria dificuldade de enfrentar não só o poderoso misoneísmo
artístico do ambiente como certamente também outras formas de pre-
conceito da época, a exemplo das restrições à liberdade feminina.
A parcela de responsabilidade da crítica é enorme, porém. A prin-
cipal investida à exposição veio do conceituadíssimo escritor Monteiro
Lobato, cujo artigo "A propósito da Exposição de Anita Malfatti" era
518 acolhido na edição vespertina de O Estado de S. Paulo48 e depois ain-
da reproduzido no livro Idéias de Jeca Tatu, sob o título de "Paranóia
ou mistificação". No texto, Lobato, defensor da arte acadêmica e ele
mesmo pintor pompier, embora paradoxalmente não se isentasse de
reconhecer o "talento vigoroso, fora do comum" de Anita e de perce-
ber o quanto a "autora é independente, como é original, como é inven-
tiva", não a viu, finalmente, sen'ão como alguém que "penetrou nos
domínios dum impressionismo ~sic) discutibilíssimo e (que) põe todo o
seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura". O seu racioci-
nio falhava na suposição de que a estrutura sintática das obras que
condenava não era inseparável da estrutura de sua significação. O
improvisado crítico - e isto não era exceção no Brasil - situava
temerariamente a artista como pertencente à 'espécie' dos que "vêem
anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras,
sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes ( . . .)". "São produtos do
cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência ( , . r, E
mais ainda: "Embora eles se dêem como novos, precursores duma
arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica:
nasceu com a paranóia e com a mistificação". Ao comentário não fal-
taram as costumeiras referências caluniosas ao "Futurismo, Cubismo,
Impressionismo e "tutti quanti" 49.
Nos entreveros suscitados pela exposição, um único dos logo
mais líderes modernistas saiu em defesa da artista. Foi Oswald de
Andrade: "Anita está a serviço de seu século" - ele afirma. "As suas
telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no
espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negativa
de cópia, a ojeriza da oleografia". E adiante: "Onde está a realidade,
perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?
A realidade existe mesmo nos fantásticos arrojos criadores e é isso jus-
tamente que os salva" 50,
I .~.LIOTECA DA PUC-MO I
Além de Oswald e Di Cavalcanti. que convencera a pintora a
mostrar-se. outros do futuro clã foram envolvidos pela mensagem.
como Mário de Andrade. Menotti dei Picchia e Guilherme de Almei-
da5'. O papel estimulador exercido por Anita Malfatti nos modernistas
em potencial é testemunhado por Mário de Andrade. que afirma em
1944: "Ninguém pode imaginar a curiosidade. o ódio. o entusiasmo
que Anita Malfatti despertou. Não posso falar de meus companheiros
de então mas eu pessoalmente devo a revelação do novo e a con-
vicção da revolta a ela e à força dos seus quadros ( . . J E nós cerra-
mos fileiras em torno da artista. Se alguns poucos escritores ponderá-
veis. Menotti dei Picchia. o sr. Oswald de Andrade que iam se tornar
os propulsores eficazes do movimento modernista já nos conhecíamos
então. eles podem testemunhar se o primeiro espírito de luta. a pri-
meira consciência coletiva. a primeira necessidade de arregimentação
foi despertada ou não pelo que se passava na cidade. com a exposição
de Anita Malfatti. Foi ela. foram os seus quadros que nos deram uma
primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pelá moderni-
zação das artes brasileiras. Pelo menos a mim" 52.
Mas a geração de poetas que integraria a facção modernista não 519
escapava. ainda em 1917. à coação do meio. à sua exigência de mol-
des parnasianos. Entre os lançamentos daquele ano. figuravam livros
como Juca Mulato. de Menotti (a cujos méritos de jornalista o movi-
mento modernista deverá muito de sua propagação!. Nós. de Guilher-
me de Almeida e Há uma gota de sangue em cada poema. de Mário
de Andrade (então Mário SobraDo o primeiro e o último aderentes à
convicta linha literária nacionalista. intensíssima naquele ano assinala-
do pelo engajamento do Brasil na Guerra e quando eclodia também o
nacionalismo econômico e ao mesmo tempo se fazia sentir. mais pro-
fundamente. com a greve geral dos operários em São Paulo. a influên-
cia do socialismo no país. Por essa época. Oswald de Andrade já ela-
borava as Memórias sentimentais de João Miramar. destinada a ser
das obras magnas da moderna literatura brasileira. Isto tudo era con-
temporâneo ao surgimento. no Rio de Janeiro. do livro Cinza das
horas. de outro futuro modernista. Manuel Bandeira53.
A polêmica exposição abrira uma perspectiva e seria motivadora
do primeiro elo do movimento moderno. Paradoxalmente. entretanto.
esta conseqüência. na percepção dos estimulados. foi descompensada
pela reação contrária provocada na causadora da mudança. Os teste-
munhos são muitos: Anita. na indecisão contraída no seu país. psicolo-
gicamente menos preparada do que se poderia supor. não assimilou a
diatribe e a repercussão que ela tivera nos espíritos recalcados. As
razões externas que antes já interferiam no seu mundo interior a con-
duziriam a uma crise da qual não mais escapou.

(
8.5 A contribuiçãode Di Cavalcanti,
Vicente do Rego Monteiroe VictorBrecheret
Se o novo aporte entre os artistas plásticos era dos mais consis-
tentes em Anita Malfatti, nas outras figuras que se projetavam
naqueles anos já próximos da Semana de Arte Moderna - essencial-
mente Victor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e Di
Cavalcanti - a linguagem carecia da afirmação autêntica adquirida
posteriormente. Era incontestável, porém, sua evolução em novas vias
de percepção, em torno de 1920-21. Este amadurecimento anterior
dos artistas e o entusiasmo que provocava nos escritores e poetas
mais abertos autorizam a acreditar na tese do empuxo exercido pelas
689 artes no modernismo das letras54.
r- -:-"
Dos três artistas, Di Cavalcanti aparecia como o menos afirmado.
1.
Nascido no Rio, iniciara-se na arte através da caricatura, em 1914, na
revista Fon-Fon, praticando-a intensamente nos anos seguintes ao lado
de uma atividade de ilustrador. Paralelamente, exercia o jornalismo.
520 Em 1917 fez sua primeira exposição em São Paulo. Nesse mesmo ano
começou na pintura junto a Elpons.Assinalava-o,sobretudo, uma incli-
nação tardia pelo Simbolismo e o acento art-noUlleau, visível em
desenhos influenciados por Beardsley (1872-98) e telas de um 'pe-
numbrismo' exteriormente próximo a Eugéne Carriére (1849-1906) (o
paralelo com o simbolista francês é de Ronald de Carvalho). Em 1921
ele realizou no Rio a série de desenhos "Fantoches da Meia-Noite",
enfocando o mundo boêmio da Lapa com a verve da caricatura. Mas

689 Di Cavalcanti -
"Fantoches da
Meia-Noite", fev. 1922, Monteiro Lobato e
Cia. Editores. São Paulo.
690 Di Cavalcanti - "O Beijo", 1923,
têmpera s/tela. 90,4 x 62,3, col. MAC-USP.
691 Capa do catálogo da exposição da
Semana de Arte Moderna. desenhada por Di
Cavalcanti.

690 691
antes de 1923 - data da primeira viagem à Europa - a linguagem do
artista já evoluíra. Sua empolgação pela modernidade levara-o a resul-
tados como "O Beijo", tela a óleo do MAC-USP, onde as figuras são
decididamente hipertrofiadas e o espaço cobre-se de formas dúcteis e
cores em liberdade. Das telas conhecidas da época é a mais avançada
(ao lado do desenho para a capa do catálogo da Semana de Arte Moder-
na) e exemplifica o que ele mesmo diz: "Meu modernismo coloria-se
do anarquismo cultural brasileiro e, se ainda claudicava, possuía o
dom de nascer com os erros, a inexperiênciae o lirismobrasileiros" 55.
Paralelamente, a participação de Di Cavalcanti fazia-se também
notar pelas qualidades do animador. Viu-se que fora ele a incitar Anita
a fazer a exposição de 1917-18, como será ele um dos 'descobridores'
de Brecheret. Em 1921, trará incentivo importante a Osvaldo Goeldi
(1895-1961) no Rio. Caber-lhe-ia uma posição central no repto ao
"carrancismo provinciano paulista" (e brasileiro): partiu dele, ao que
tudo indica, a iniciativa do evento de 1922, o ápice de sua tarefa na
movimentação do contexto divergente.
A presença de Vicente do Rego Monteiro no grupo de ponta reu-
nia alternativas pessoais de pesquisa ainda de base formativa antes de 521
1922. Como em Brecheret e Di Cavalcanti, a angulação exata de sua
problemática visual foi evento posterior. Nos anos de que aqui se trata,
este artista, originário de Pernambuco, integrou-se ao Modernismo tra-
zendo a ebulição de uma experiência precoce e movediça, em que
intervinham apropriações de culturas antepassadas ao lado de influên-
cias da contemporaneidade parisiense e um apego à realidade telúrica
do seu país. Ativo no Rio e Recife, após anos de aprendizado em Paris
(1911-14), Rego Monteiro exporia em São Paulo (maio de 1920) um
conjunto de 43 aquarelas e desenhos, entre os quais muitos de temáti-
ca indígena. Esta mostra, que deveria conter ao menos parte das obras
já apresentadas no Recife, em 1919, teve lugar na Livraria de Jacinto
Silva, sede de outros eventos artísticos e intelectuais situados nas ori-
gens da Semana da Arte Moderna. Em 1921 ele deu prosseguimento

692 Vicente do Rego Monteiro -


"Nascimento de Mani". 1921, aquarela e
nanquim a cores, 28,2 x 38,2, col.
MAC-USP.

à série de figurações de ídolos e episódios míticos florestais (d. "O


Nascimento de Mani'l de apuro formal sintético e estilizada linha de
contorno, por onde transparece o seu preparo escultórico. Absorções
da arte egípcia e hindu,da gravura japonesa dos séculos XVIII-XIX,
eram por ele interacionadas ao estudo da arte marajoara. As peças
que exibiu em São Paulo captaram simpatia pela narrativa aborígene,
mas algumas liberdades formais no arranjo da composição bastaram
para que a crônica, por vezes, o estigmatizasse como 'futurista'.
o Jornal do Comércio (edição de São Paulo) comentava os
p" exemplares como sendo "todos extraídos das nossas ingênuas lendas
indígenas, trabalhadas com uma tendência mais do que pronunciada
para o descabido futurismo - eterno foco de coisas ridículas" 56, nota
que contrastava com a opinião de Nestor Pestana, em O ESlaao de S.
Paulo, para quem o artista não caíra "nos exageros do futurismo ou do
cubismo", ressaltando a "forma individual. que revela apreciável inde-
pendência de espírito e qualidade de inventiva" dos desenhos e
aquarelas57.
Monteiro Lobato também o viu com bons olhos, encontrando nos
quadros de temas lendários "sempre um alto senso decorativo" 58.
Fora diferente o pensamento do Fanfulla, que criticara a "incompatibili-
dade existente entre os temas mitológicos brasileiros e o estilo futurís-
tico das figuras" 59. Nada havia, em verdade, de 'futurista', nessa série,
posteriormente ampliada para a nova exposição de 70 exemplares,
desta vez no Rio, em 1921, no Teatro Trianon, com outras figuras e
ambientes amazônicos imaginários, ocasião em que Ronald de Car-
valho dedicou-lhe uma apreciação motivada essencialmente pelo senti-
522 mento nacionalista, sugerindo o aproveitamento do tropicalismo de
Monteiro em bailados: "Na sua exposição, o que mais interessa, é a
contribuição do pintor para os efeitos de uma grande arte cênica, de
caráter profundamente nacional. A série de bailados que sugeriram as
fábulas selvagens, como a do Corupira e o Caçador, a de Pahy e
Tumaré e a das Ikamiabas, mereceria ser aproveitada por um dos nos-
sos musicistas, como Villa-Lobos. Com aqueles cenários e a curiosíssi-
ma indumentária que desenhou Rego Monteiro, poderíamos ter alguns
bailados admiráveis" 60.
Os desejos do escritor não se realizariam. Eles eram, aliás, os do
próprio artista adolescente, cujo interesse tropicalista, ao que ele afir-
mou, se manifestara logo na volta de sua primeira viagem à Europa.
Em 1918, Monteiro cogitara de organizar um bailado de lendas indíge-
nas, ao assistir a espetáculo de Anna Pavlova no Recife. Mas tudo
ficara nas intenções, enquanto Anita foi induzida pela vaga nacionalista
a valer-se de temas nativistas na exposição de 1917-18. Não havia
nela a convicção que assinala a obra de fundo indianista de Vicente, a
partir de 1919. Muito mais tarde, o pintor pernambucano reivindicaria
a condição de "um precursor do indianismo", razão de sua recusa em
aderir ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade61.
Antes de começar a se impor como pintor, já em anos vizinhos da
Semana da Arte Moderna, Vicente do Rego Monteiro se havia con-
centrado momentaneamente na escultura. Estudando pintura, desenho
e escultura na Académie Julian, em Paris, ele (aos 14 anos) tivera
obras aceitas no Salon des Indépendants, em 1913. Adveio-Ihe dessa
época o cognome de Le Petit Rodin62. No Brasil. entre 1914 e 1919, o
trabalho escultura I (ele também lecionou essa arte no Recife) traria
conseqüências definitivas para a sua pintura, onde a cor é subalterna
ao desenho, traçado com denso teor de estabilidade. Viajando pela
segunda vez à Europa, em 1921, Monteiro confiou a Ronald de Car-
valho algumas pinturas recentes, que seriam expostas na Semana. O
conjunto era bastante heterogêneo. Entre outras peças, havia quadros
de influência impressionista, como "Cabeças de Negras", uma
aquarela de acentos art-nouveau, seuratianos e matissianos ("Baile no
Assírio''), desenhos com estilizados motivos indígenas e retratos em
que idealiza os personagens, como no de Ronald de Carvalho, colocan-
do-os por vezes à frente da paisagem nordestina. Tudo isto além de
telas de caracterização cubista que marcavam "a evolução do pintor
em direção à pintura intelectual" 63.Evidenciava-se a decisão do artista
na escolha do procedimento pictórico: ele estava perto dos propósitos
expressivos que o salientaram na década de 1920.
Afora Anita Malfatti, entretanto, nenhum outro artista da primeira
leva modernista atraiu tanta atenção quanto Victor Brecheret. Nascido
em Viterbo (Itália) em 1894 e emigrado para o Brasil em 190464 fizera
aprendizado no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo viajando para
Roma em 1913, onde estudou escultura com Arturo Dazzi (1882-
-1971). No retorno ao Brasil, em 1919, permaneceu meses entregue a
um trabalho solitário. Em janeiro de 1920, esse isolamento foi quebra-
do pela visita de Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e o pintor e carica-
turista Hélios Seelinger (1878-1965) ao atelier que improvisara numa
sala do Palácio das Indústrias. Logo em seguida, em artigos encomiás-
ticos, o próprio Monteiro Lobato (desencontrando-se com o que afir-
mara sobre Anita) e Menotti dei Picchia deram início à divulgação de
sua obra. Era o começo da trajetória amadurecida depois de 1921, na 523
segunda viagem à Europa. A escolha de Roma não havia sido acerta-
da. Apenas no plano da material idade e da técnica da escultura o tradi-
cional Dazzi lhe poderia ter sido útil. Brecheret, todavia, familiarizara-se
desde muito cedo com o modelado desenvolto de Rodin (1840-1917).
Houve, nessa estada européia, o contato admirativo com a obra do
iugoslavo Ivan Mestrovic (1883-1962), escultor eclético, influenciado
por Rodin e Bourdelle (1861-1929). E a incidência de aspectos da
escultura de épocas anteriores.
Por entre todas essas assimilações, Brecheret já manifestava,
porém, em torno de 1920-21, refinamentos formais singulares confir-
693
mados na evolução do seu estilo. Entre as peças executadas na Itália,
"Eva", gesso de 1919 (transposta em mármore no ano seguinte). ape-
ga-se a uma concepção nat,yralista que remonta no mínimo a "Desper-
tar", de 1916. Em seus acentos musculares e na energia fisionõmica
são visíveis inflexões faciais e torsões da linha serpentinada de Miguel
Ângelo (e.g. "O Gênio da Vitória", do Palazzo Vecchio de Florença).
Nos exemplares paulistas de 1920-21, como os bronzes "Sóror
Dolorosa", "Cabeça de Cristo" e "Vitória", a composição é art-nouveau
enquanto a matéria sensibiliza-se em nuanças impressionistas deriva-
das de Rodin. A "Cabeça de Cristo", estruturada simetricamente com
dureza arcaizante (a exemplo das demais peças da série), é de grande
tensão interior. Nessas obras já estão prenunciadas as constantes 'ma-
neiristas' do escultor, enquanto em "Daisy", busto em mármore de c.
1921, reaparece o movimento dramático de "Eva", com registros ana-
tõmicos muito acusados, que ele eliminará no essencial da atividade
posterior. A sofisticação linear de Brecheret aparenta-se ao grafismo
da figuração escultórica do arquiteto Antonio Moya (1891-1949). de
origem espanhola, radicado em São Paulo e participante da Semana
de Arte Moderna, que conjugava esse elemento aos seus projetos de
693 VicIar Brecherel - "Cabeça de edifícios fantásticos e túmulos.
Cristo".1920. bronze. 33.5 x 13.5 x 23.5. cal.
IEB-USP
694 VicIarBrecherel - "Eva" (Roma),
1920. mármore. 85 x 62 x 119. cal.
Prefeitura do Município do Estado de São
Paulo
!.

524 695 Antonio Garcia Moya - "Túmulo", Mesmo se embrionária, a obra de Brecheret era fato inédito e
s/data, nanquim, 22,5 x 25,5, col. Regina
Helena Ferreira da Silva, São Paulo. drástico confrontado à escultura produzida no Brasil, submetida aos
696 Antonio Garcia Moya - "Cabeça de padrões que haviam caracterizado essa arte no século XIX. O Neoclas-
índio", 1920, lápis preto, 40 x 26, col.
Regina Helena Ferreira da Silva, São Paulo. sicismo, introduzido pela Missão Artística Francesa, impusera-se no
paí.s, deixando atrás o Barroco, cedendo mais tarde a conceitos menos
idealísticos e academizando-se, como trata outro capítulo deste livro.
No círculo de escultores formados no Rio e que usufruíam dos prêmios
de viagem à Europa, havia, ainda neste século, um respeito a essas
tradições, ignorando-se ou desprezando-se as iniciativas profundas de
renovação.
Esta fidelidade da escultura a princípios de figuração retesada -
que atingia em alguns casos menos ostensivamente a pintura - é tes-
temunhada por Rodolfo Bernardelli (1852-1931 J. Coube a ele, a José
Otávio Corrêa Lima (1878-1974) e a outros escultores mais jovens, a
ereção, segundo o gosto oficial corrente, de numerosos monumentos
públicos no Rio de Janeiro,
Em. São Paulo (como em Belém, Recife e outros centros), a
situação não era diferente em relação a preferências esculturais.
Operavam, entretanto, na capital paulista, vários escultores imigrantes
ou de passagem, de linha tradicional, quase sempre italianos, como
Ettore Ximenez (1855-1926), Luigi Brizzolara (1868-1939), Amadeu
Zani, Julio Starace (1887-1952), Niccola Rollo (1889-1926) e o sueco
William Zadig. Nas pegadas conservadoras de seus mestres, seguiram
descendentes de imigrantes como Vicente Larocca (1892-1964), João
Batista Ferri (1896-1977), Humberto Cozzo (1900-81) e outros. Das
obras públicas de que foram incumbidos (Cozzo em outros Estados),
nos primeiros decênios, quando a cidade, no súbito crescimento, pas-
sou a exigir a presença de marcos prestigiosos para simbolizar seu
novo status, algumas tiveram porte dos mais avantajados, como o
monumento do Pátio do Colégio (Zani) e o complexo em homenagem
a Carlos Gomes, no Anhangabaú (BrizzolaraJ. O monumento do Ipiran-
ga tornou-se alvo de todas as atenções com a aproximação da data do
centenário da Independência. O concurso instituído teve como vence-
dor Ettore Ximenez, um entre os muitíssimos escultores de espírito
conservador ativos na Itália e que atendeu, na concepção épica do
conjunto, às expectativas oficiais reinantes.
É em tal contexto que surgiu Brecheret com o ágil modelado de
formas introspectivas, distanciado da radicalidade de cubistas, futuris-
tas e construtivistas, reestruturadores da concepção plástica bi e tridi-
mensional, mas que procurava renovar alguns elementos do antigo
repertório expressivo da escultura. Nas obras feitas em São Paulo,
Brecheret demonstrava muita segurança e exigência no que tinha a
dizer. Para o nosso ambiente eram importantes as deformações de
suas imagens diante das obstinadas leis miméticas literalmente adota-
das na escultura. Ao conhecer o artista, os intelectuais, na iminência
de constituir o grupo modernista, referiam-se a ele com incontido entu-
siasmo. Em artigo do quinzenário Papel e Tinta - órgão que trouxe
apoio às novas tendências da arte - Ivan (Oswald de Andrade?) traçou
paralelos entre o artista brasileiro e Carl Milles, Mestrovic e outros
europeus para salientar que "Brecheret faz a sua escultura endireitar
para o futuro apoiando-se proficuamente nos preceitos ancestrais" 65.
Brecheret servia de arma contundente de ataque contra o espírito
tradicionalista prevalecente nas artes: Menotti dei Picchia declara que 525
sua obra "não despertara a curiosidade de ninguém, ou melhor, fora
hostilizada pelos Pachecos da estatuária, embevecidos em aplaudir os
Zadigs, os Staraces, os Ximenez e outros de igual força e sabe-
doria . . .". E com uma dose de chauvinismo ataca os estrangeiros (em
outras atividades para ele benquistos), chamados para as tarefas escul-
tóricas da cidade66.
Sem dúvida, Brecheret detonara muita polêmica, não lhe sendo
poupadas críticas dos acadêmicos; mas, ao mesmo tempo e ao
contrário do que ocorrera com Anita Malfatti, sua atividade plástica de
compromisso atraíra depoimentos de apoio da ala contrária à moderni-
dade. Do próprio Monteiro Lobato vieram estas palavras: "Brecheret
apresenta-se-nos como a mais séria manifestação do gênio escultural
surgido entre nós" 67.
O êxito provocou desdobramentos: ele seria encarregado do pro-
jeto do "Monumento às Bandeiras", em meados de 1920, seguindo
uma conceituação de símbolos e alegorias68. A idéia do complexo
escultórico/arquitetOnico surgiu no clima eufórico das festividades do
Centenário, aplicando-se o escultor numa seqüência de desenhos e na
elaboração de uma maqueta composta essencialmente de uma massa
de ciclópicas figuras em movimento sobre alto podium, que sugerem a
'entrada' no sertão, e de outras dispostas lateralmente. O estatuário
"seguia a linha mestroviciana de expressividade violenta, além de se
subjugar às alegorias" 69. Havia sem dúvida concessões naturalisticas.
O projeto não pOde ser levado adiante e só em 1936, após remaneja-
mentos vários, que o apuraram, foi retomado e realizado em granito
(conclusão em 1953).
526

697
Ao escultor que em 1921 se fixaria na Europa para a fase decisi-
va, coube o mérito de selar a unidade do grupo sensível às novas
idéias. Oswald, que se refere a ele, em crônica de c. 1920, como "o
nosso único escultor, mas que vale bem diversas gerações de modela- .
dores", defende-o dos que vêem a arte apenas por critérios de cópia
do reaI70. Mário de Andrade, em 1921, na partida do artista para a
Europa, chama-o de "amigo e irmão dos mais íntimos" e "a profecia
mais genial que o país teve até hoje na escultura" 71. Muito mais tarde,
na conferência de 1942, dirá que "fazíamos verdadeiras rêvenes a
galope em frente da simbólica exasperada e estilizações decorativas do
'gênio'. Porque Victor Brecheret. para nós, era no mínimo um gênio.
Este o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos
a que ele nos sacudia" n Menotti, em fins de 1921, sabendo-o admi-
tido no Salon d'Automne, em Paris, intitula-o "a bandeira dos futuristas
paulistanos" 73. Ninguém media os arroubos que dirigia à obra de
Brecheret que, na seqüência da comoção suscitada por Anita, aparecia
como uma espécie de pivô de sua arregimentação final.
Dos depoimentos, o mais revelador é o de Mário de Andrade, em
1942, em que ele também lembrou a metamorfose por que passara 527
seu espírito em 1920 quando, indeciso entre o Parnasianismo e Sim-
bolismo, lera as Villes tentaculaires de Verhaeren, resolvendo-se à
experiência difícil de "fazer um livro de poesias 'modernas' em verso
sobre a minha cidade" 74. Por meses ele tentou a empresa até que, ao
levar para casa a "Cabeça de Cristo" de Brecheret, a "feia" e "me-
donha" imagem com trancinhas provocou verdadeiro escândalo em
família, sobrevindo, então, no desabafo angustiado, o "canto bárbaro"
de Paulicéia desvairada75, que Oswald meses depois chamará de "um
supremo livro neste momento literário". Este testemunho, ao lado de
vários outros, permite uma vez mais deduzir a dianteira tomada pelas
artes visuais no país. No dizer de Manuel Bandeira: "O impulso inicial
do movimento modernista veio das artes plásticas" 76. E no de Mário
Pedrosa: "Graças a esse contato, desde os primeiros passos, com a
plástica moderna, puderam os literatos e poetas do modernismo bra-
sileiro ter, de saída, uma visão global do problema da arte e da criação
contemporânea. Educaram-se através da pintura e da escultura moder-
nas" 77.

697 Victor Brecheret - estudo para


"Monumento às Bandeiras", c. 1920,
nanquim s/papel. 32 x 96, col. Família
Brecheret. São Paulo.
698 Victor Brecheret - "Monumento às
Bandeiras". 1936-53. granito cinza. parte
frontal: 600 x 845 x 4400. alI. da base: 210.
parte posterior: 290 x 580, alI. da base: 160.
Parque Ibirapuera, São Paulo.
8.6 O Futurismo em São Paulo

A intenção da pequena coletividade modernista concretizava-se,


em verdade, enquanto redução do retardamento cultural do país. No
campo visual. a assimilação mesmo se precária das novas correntes
internacionais, no segundo decênio, fizera-se com defasagens menos
sensíveis das que se observa na área da renovação verbal. O expressio-
nismo de Anita surgiu como exceção e era emulação inserida no pro-
cesso mais vital da tendência. Em Victor Brecheret e Vicente do Rego
Monteiro valia essencialmente a decisão de investigar a forma com a
liberdade que infringia preceitos de verossimilhança e, no próprio Di
Cavalcanti, "O Beijo" demonstra aberturas para valores morfológicos e
cromáticos de interiorização pessoal. O que realmente presidia todo
esse impulso era, afinal de contas, a vocação generalizada da moderni-
dade, captada por Di Cavalcanti e inclusive por Rego Monteiro em
doses anárquicas. Se em Anita Malfatti o processo contributivo estava
528 encerrado já muito antes da Semana e em Di Cavalcanti, ao contrário,
mal despontavam significantes que o personalizariam, Brecheret e
Monteiro abeiravar(l-se da linguagem que os definiria a partir do reen-
contro com a Europa.
Embora fossem várias as procedências dos estímulos desses
artistas e de outros que a eles se associaram na Semana de 1922,
tomou vulto incontrolável a sua caracterização como futuristas, termo
utilizado com ilimitada versatilidade pelos que combatiam a insurgên-
cia. Apelava-se para essa denominação a propósito de não importa
quais modelos plásticos, musicais ou verbais, desagregadores das
idéias repertoriadas. Entre os intelectuais modernistas, o Futurismo
acabou por encarnar parte significativa dos seus próprios princípios de
combate, havendo dissenções quanto aos limites de sua influência.
Uma primeira divulgação - sem maior repercussão - do Futuris-
mo no Brasil coube a Almáquio Dinis no mesmo ano do lançamento
do manifesto de Marinetti78. Oswald de Andrade tomara conhecimento
do movimento em 1912 na própria Europa, trazendo a informação
para São Paulo, onde o Futurismo seria difundido dois anos depois em
artigo do professor Ernesto Bertarel1i79. Laconicamente lembrado no
Rio em 1913 por Afonso Costa, na figura de Marinetti80; citado em
1916 na própria Academia Brasileira de Letras, em discurso de Alberto
de Oliveira, como algo qualquer indistinto de outras manifestações de
várias índoles8', o Futurismo teria episódio efêmero na articulação sur-
gida em 1915 entre Ronald de Carvalho e o poeta português Luís de
Montalvor, diretores da edição inaugural da revista Orpheu. Os dois
números dessa publicação assinalaram o início do Modernismo em
Portugal, onde o Futurismo afirmaria breve seqüência na obra de poe-
tas e pintores, entre eles Fernando Pessoa, Santa-Rita Pintor (1889-
-1918) e Almada Negreiros (1893-1970), enquanto aqui, dessa fonte,
que envolvia um intelectual mais tarde aderente à Semana da Arte
Moderna, não se geravam conseqüências paralelas.
o ideário futurista, fundamentado na necessidade de criar dimen-
sões de linguagem compatíveis com o avanço tecnológico e tendo
como divisa a rejeição concomitante das tradições acumuladas -
consciente das alterações radicais que experimentava a estrutura já
fragmentada da sociedade contemporânea - serviu à causa modernis-
ta no Brasil, melhor dizendo de São Paulo, na fase mais aguda de sua
configuração (entre 1920-21). tornando-se instrumento crítico de com-
bate às posições ultrapassadas e constituindo-se, no próprio âmago da
confraria que se consolidava, em objeto de sérias refregas, como ficou
demonstrado no desentendimento havido entre Oswald e Mário de
Andrade,
Coube a Menotti dei Picchia e à sua freima jornalística, depois de
combatê-Ios e de muitas hesitações, sair a campo na defesa polêmica
dos postulados futuristas, divulgando conceitos, traduzindo poemas de
Marinetti e Govoni e apresentando novos poetas que, sem enquadrar--
se no sistema futurista, livravam-se parcialmente das estruturas verbais
metrificadas.
Houve identificação entre a cidade tumultuada pelo progresso
material e os novos poetas e escritores com a estética que pregava a 529
"beleza da velocidade", "o movimento agressivo", "a insônia febril",
Mas as adesões ao Futurismo diversificavam-se com inseminações
próprias do ambiente brasileiro, desfigurando as premissas italianas
originais. Se de parte dos adversários dos modernistas havia, para
começar, incorreções esdrúxulas no manejo do nome - o que aliás
ocorreu também em outros países, como a Rússia, onde o Futurismo
foi influente e por muito tempo denegrido - no grupo revolucionário a
acepção 'futurista' era deliberada mente alargada e confundida com a
vasta dialética do movimento modernista internacional, a exemplo do
que pregavam Menotti dei Picchia (desde fins de 1920). Oswald de
Andrade, Cândido Mota Filho e Sérgio Buarque de Holanda, em arti-
gos divulgados pela imprensa no ano de 1921, Estava-se todavia mui-
to longe da profundidade de conceitos alcançada por futuristas de
outros centros europeus, O Futurismo, como demonstrou Mário da Sil-
va Brito, em alguns capítulos do seu livro fundamental82, tornou-se em
São Paulo palavra de ordem e da moda para explodir nas próprias
mãos dos modernistas em meados de 1921, no instante em que
Mário de Andrade respondeu ao artigo "O meu poeta futurista" de
Oswald de Andrade83. O autor ç:Jueestrearia com Os condenados
impregnava o poeta ainda desconhecido de Paulicéia desvairada, do
nome extremado que este repudiou altivamente, negando-se ao papel
de "reformador, revolucionário, iconoclasta" 84, Ele duvidava da exis-
tência de um "futurismo brasileiro, ou por outra de São Paulo" - que,
Oswald não definia - discordando sobretudo do materialismo futurista,
ao invocar sua condição de católico e opondo-se à renegação total do
passado, apoiado no seu marcado nacionalismo, que preza "nossas
tradições, poucas, mas áureas". Na sua resposta, Oswald não teve dú-
vidas em reafirmar o que dissera: colocava-se "na larga visão de Prate-
lia" e considerava "que em relação ao acanhamento de estética e ao
embrutecimento tradicional do nosso país em coisas de arte, os versos
de Paulicéia desvairada são do mais chocante, do mais estuporante, e,
para mim, do mais abençoado futurismo", Ele fala de "meu futurismo
sem as acrobacias tipográficas de Marinetti nem as asnices intrujadas
de Max Jacob, nem as liberdades criadoras de Vicente de Carvalho"
para exaltar "mestres calmos" de sua primeira nota: Guilherme de
Almeida, Agenor Barbosa e Menotti dei Picchia. Para Oswald estes
constituíam também o 'futurismo' de São Paulo85.
Se a discussão em causa era importante - sem que ninguém,
entretanto, se preocupasse em conceituar o "futurismo paulista", mais
próximo da moderação de sua vertente florentina que da radicalidade
assumida pelos marinettianos86 - de maior relevância era a delineação
do clã contestatário que, lentamente, desde a exposição de Anita e a
descoberta de Brecheret, já estava em seu estágio maduro. A 9 de
janeiro de 1921, portanto meses antes da polêmica entre os dois
Andrade, numa homenagem que se prestava a Menotti dei Picchia no
Trianon, Oswald, saudando o autor de As máscaras, concitou-o à parti-
cipação decidida no esforço da coletividade marginal. Ele falava "em
nome de meia dúzia de artistas moços de São Paulo" ( . . .) "grupo de
orgulhosos cultores da extremada arte de nosso tempo" ( . . .) "restrito
bando de formalistas negados e negadores". No discurso citou Victor
Brecheret, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e John Graz (1891-1980). o
pintor suíço, futuro expositor da Semana da Arte Moderna. Dias
530 depois, no artigo "Na maré das reformas", Menotti mostrava enfatica-
mente toda a sua aversão "à caturrice originária da nossa subserviên-
cia ao passado" 87. Sem dúvida, a essa altura, o grupo estava alicerça-
do. Mas não menos que no grupo de literatos predominava entre os
artistas a posição individual. Não havia entre eles uma teoria que os
norteasse, apesar da falaciosa rotulação de 'futuristas'. É claro que nos
aspectos formais do expressionismo de Anita Malfatti há por vezes
soluções de movimento que se avizinham das 'linhas de força' futuris-
tas88. O que os aproximava, entretanto, era a formação ainda em curso
(salvo no caso da própria Anita e de Graz) adquirida direta ou indireta-
mente nos consecutivos movimentos europeus do início do século e
ainda não interiorizados.

8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio


A consistência do grupo modernista já era fato indiscutível em
1921. Uma de suas características fortes - a procura da interdiscipli-
naridade - ganhara maior densidade nesse ano. Silva Brito enumera
entre os seus membros quatro pintores: Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Vicente do Rego Monteiro e John Graz e um escultor: Victor Brecheret,
especificando também o contingente maior de literatos: "Poetas são
Mário de Andrade, Menotti dei Picchia, Guilherme de Almeida, Agenor
Barbosa e Plínio Salgado. Menotti e Oswald de Andrade são romancis-
tas. Na crítica, sustentando a polêmica, estão Mário de Andrade,
Oswald, Menotti, Cândido Mota Filho e, com menor desempenho, Sér-
gio Milliet". Na lista do estudioso, aparecem depois Armando Pamplo-
na ("interessado em cinema") e Antonio Garcia Moya89, o arquiteto
"poeta de pedra", no dizer de Menotti dei Picchia, lista à qual se deve
acrescentar outros nomes, como o do historiador Rubens Borba de
Morais. Foi ainda em 1921 (outubro) que se registrou o primeiro movi-
mento de expansão do grupo fora de sua área geográfica original. Uma
delegação composta de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e
Armando Pamplona viajou ao Rio em missão de proselitismo.
No Rio, acomodado às tradições da Escola Nacional de Belas-Ar-
tes, da Academia Brasileira de Letras e outras instituições, a renovação
das idéias demandaria longo prazo. Em 1921, ao mesmo tempo em
que Mário de Andrade, em São Paulo, publicava a série de artigos
"Mestres do passado", dando por finda a interminável etapa do Parna-
sianismo, na capital federal realizava-se uma espécie de "semana de
arte antiga", no dizer de Wilson Martins, as "vesperais literárias" da
Biblioteca Nacional, organizadas por Adelino Magalhães, com a partici-
pação de jovens que reiterava~ a mentalidade acadêmica, vesperais
que "foram qualquer coisa comparável a uma 'semana de arte moder-
na' abortada" 90.
A comitiva paulista que fora ao Rio, ali se entendera com aqueles
poucos que seriam os seus pendants de cruzada. Mário de Andrade
apresentou os versos de Paulicéia desvairada, "numa leitura principal,
em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro Couto
e Renato Almeida, numa atmosfera de simpatia" e "obtinha o consen- 531
timento de Manuel Bandeira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros
versos-livres, no Carnaval" 91.
Em 1921, ainda, no próprio mês em que os modernistas viajaram
ao Rio, Graça Aranha estava de regresso ao Brasil depois de se exercer
por muitos anos na carreira diplomática. O autor de A estética da vida
(1921) aproximar-se-ia imediatamente das vanguardas e seu renome
nacional seria utilizado por estas de forma estratégica como trunfo para
atrair adeptos à causa, embora a duplicidade do seu posicionamento en-
tre valores ultrapassados e adaptações a conceitos mais vívidos.
Os representantes do disperso Modernismo carioca eram da área
literária - além dos citados, há a se destacar Sérgio Buarque de
Holanda, de São Paulo, mas que residia no Rio, Álvaro Moreyra e Aní-
bal M. Machado. Logo se cogitaria do compositor Villa-Lobos, quando
se pensou na Semana, e de alguns artistas plásticos. Era peculiar no
contexto a presença de Di Cavalcanti, cuja atividade dividida entre São
Paulo e Rio facilitava contatos assíduos em ambos os centros. No Rio
ele ilustrara Carnaval, de Manuel Bandeira, colaborava na revista Fon--
Fon em 1921 e era ligado a Ribeiro Couto, que prefaciara a série de
desenhos "Fantoches da Meia-Noite". Embora sempre vinculado ao
Recife, Vicente do Rego Monteiro, nos anos 1920-21, revelava intenso
ritmo de trabalho no Rio, onde estudou a cerâmica marajoara junto às
coleções da Quinta da Boa Vista, realizando exposições em que figura-
vam aquarelas com motivos dessa inspiração.
Ao Rio retornara em 1919 Osvaldo Goeldi, o futuro fundador da
gravura moderna no Brasil, após longa residência na Suíça. Em 1921,
no Liceu de Artes e Ofícios, ele exporia uma série de desenhos expres-
sionistas, mostra malograda em termos de público e de crítica, mas
que atraiu o apoio dos intelectuais do Modernismo carioca, entre eles
Ronald de Carvalho e Aníbal M. Machado, afora a solidariedade
sempre manifesta de Di Cavalcanti, de onde talvez a lembrança para a
sua presença na Semana de Arte Moderna, o que, aliás, nunca se pôde
comprovar. Uma das principais figuras da arte no Brasil desse decênio,
o paraense Ismael Nery (1900-34), iniciava-se no Rio por essa época
(1921-22).
Não se estende_muito além disto o número de artistas de visão
nova. muitos em princípio de carreira. na capital do país. ambiente
contraído pelas normas da instituição oficial. Entre os pintores mais
antigos. Eliseu Visconti constituía figura de exceção. inclusive no ensi-
no. O acento pessoal da fase marcada pela sensibilidade pré-rafaelita
- que o torna um dos raros e apreciáveis artistas sensíveis ao Sim-
bolismo fora da Europa - e o Art-Nouveau. rendera-se à orientação
divisionista e impressionista. único aporte que o aproximava tenuamen-
te das gerações voltadas para o futuro. Por aí ele se aproxima das
gerações voltadas para o futuro. Flávio Motta. em seu texto deste livro
(19 vol.. capo 7) traz elementos valiosos para o estudo do art-nouveau
em Visconti e outros artistas que absorvem sua modernidade. pro-
curando incuti-Ia no próprio ambiente das academias onde lecionavam.
O desenvolvimento notado na obra de Belmiro de Almeida (1858-
-1935). "mineiro que possuía a verve. a sagacidade de um parisiense
bulevardeiro" (Gonzaga Duque). o fez passar do tradicionalismo da tela
"Arrufos" para o divisionismo segundo Seurat (1859-91) da paisagem
de Dampierre (1912). Indo além. num período mais tardio. transcorri-
532 do entre o Rio e Paris. avizinhou-se de aspectos genéricos do Cubismo.
do Futurismo e de Delaunay (1885-1941); (cf. "Mulher em Círculos".
1921). Mas esse approach não captou senão de forma decorativa
aquelas mensagens revolucionárias.
O Neoclassicismo diluíra-se no contato com o Naturalismo. difun-
dindo-se no meio todo um repertório iconográfico e formal acadêmico.
O Simbolismo. de sua parte. teve raros adeptos. A incidência do
registro impressionista ou de uma maior espontaneidade de represen-
tação se fez presente em artistas diversificados. como o citado Belmiro
...
de Almeida. Lucílio de Albuquerque (1877-1939). Rodolfo Chambe-
Iland (1879-1967). João Timóteo da Costa (1879-1930). Carlos
Oswald (1882-1970). Artur Timóteo da Costa (1882-1923). Navarro
da Costa (1883-1931). Georgina de Albuquerque (1885-1962). Mar-
ques Júnior (1887-1960). Pedro Bruno (1888-1949). ao passo que
Henrique Cavaleiro (1892-1975) assimilaria o colorido tauve. Sobretu-
do em Artur Timóteo da Costa, pintor de intrínseca poesia, desapareci-
do prematuramente. observa-se resoluta evolução entre Impressionis-
mo e Expressionismo, como atestam duas de suas melhores obras de
1920. Pertencente a essa geração, Hélios Seelinger aparta-se por suas
preocupações simbolistas deslizantes em "bizarrismos duma superexci-
tação", como diz Gonzaga Duque. Mas os raros comprometimentos
específicos com o Modernismo, na terceira década do século no Rio.
estava m reservados a outros artistas.
8.8 Osartistasplásticosna Semana de Arte Moderna

Fruto de longa maturação de idéias, embora não deixasse de se


marcar por contradições em sua montagem aparatosa, como vimos, a
SAM foi essencialmente uma atitude de ruptura e provocação, enfren-
tando a estagnação cultural brasileira. Nela confluíram mentalidades
inconformadas em busca da inserção do pensamento e das artes do
país na exata contemporaneidade histórica. Em concomitância, realça-
va-se a necessidade da sensibilização pelos valores autóctones. Ao pro-
pósito de modernidade atendia-se apenas em parte, não sendo supera-
da a distância entre as pretensões de radicalidade e o que efetivamen-
te era apresentado ao público no Teatro Municipal. De certa forma, as
intenções revolucionárias do evento pairavam acima dos indivíduos e
suas dificuldades e prejuízos de formação, suas contradições e conces-
sões. O que finalmente importava, diria Paulo Prado, era a realização
do evento e a sua capacidade de impacto. Relevavam-se as presenças
ocasionais ou as fissuras existentes no comportamento do grupo. 533
Empenhadas em destruir, essas forças deixavam para etapa posterior a
construção apurada dos novos modelos. Está claro, por outro lado, que
o academismo nas artes, como nas letras, não seria, nem poderia ser
erradicado, uma vez que é uma realidade comum a todas as épocas,
correspondendo à expectativa de um determinado público.
A idéia da promoção de uma manifestação memorável na passa-
,
gem do Centenário da Independência estava assente desde 1920 no
espírito de Oswald de Andrade, como mostra o rastreamento de Silva
Brit092.Todavia, se não o pensamento original, pelo menos a iniciativa
de levar adiante o projeto do que já seria a Semana, coube a Di Caval-
canti, conforme testemunho por ele prestado em seu livro Viagem da
minha vida93, corroborado por várias opiniões ponderáveis, e a que nos
parece se dever dar crédito. A decisão de concretizá-Ia deu-se quando
da exposição do artista em novembro de 1921 na livraria O Livro, de
Jacinto Silva, em São Paulo, oportunidade em que exibia suas pri-
meiras pinturas ao lado dos "Fantoches da Meia-Noite".
Cogitou-se de utilizar o espaço que o livreiro se habituara a reser-
var em sua loja da rua 15 de novembro a intelectuais e artistas quando
de lançamentos e exposições94,mas o empreendimento logo ganhou
maior amplitude, resolvendo-se transportar a Semana para o Teatro
Municipal. Apresentado por Graça Aranha a Paulo Prado, Di Cavalcanti
levou a este o propósito, imediatamente aceito, da realização de "uma
semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na
barriga da burguesiazinha paulistana" 95. Paulo Prado, que aliava em si
o profissional da economia cafeeira ao conhecedor erudito das idéias
mais atuais, futuro autor de Retrato do Brasil, tornou-se o principal
financiador e animador da Semana, colocando em jogo seu prestígio
ao envolver-se no que seria o tumultuoso festival de fevereiro de
192296.
Várias figuras da alta sociedade, induzidas certamente por Paulo
Prado, surgiriam como promotoras da manifestação, o que nada agra-
dava a Di Cavalcanti que fazia críticas "ao aspecto demasiadamente
mundano que ia tomando a Semana" 97. Até hoje graves acusações
pesam sobre o que seria a cumplicidade entre patrocinadores e patro-
cinados. Estes últimos, contudo, pertenciam, em boa parte, às chama-
das classes de elite.
Graça Aranha aparecia como o autor da iniciativa no noticiário jor-
nalístico que preparava a opinião pública. Articulados os modernistas
de São Paulo e Rio, tomadas as providências organizativas, onde se
destacou o escritor René Thiollier - "mais que um assimilador da "Se-
mana", fui seu empresário", diz ele98 - o evento teve lugar sob o
comando dos intelectuais. O acontecimento, em verdade, ganharia cur-
so dentro e fora do recinto nobre da casa da ópera de São Paulo. No
dizer da crítica Aracy Amaral: "A luta se deu não apenas durante os
dias 13, 15 e 17 nos programas divulgados, no Teatro Municipal de
São Paulo, alugado para a ocasião, como sobretudo através da impren-
, sa, em textos dos modernistas apaixonados como de seus atacantes
534 mqjs acirrados" 99.
A idéia central da Semana foi a de torná-Ia uma expressão inter-
disciplinar. A presença da poesia, da música, da dança e de uma expo-
sição de artes visuais, por entre alguns discursos de fundo teórico que
pregavam as razões do Modernismo, quase fizeram da Semana um
espetáculo completo sob esse aspecto. Faltariam o teatro e o cinema.
A respeito do teatro afirma Décio de Almeida Prado: "A verdade, a
dura verdade, é que não estivemos na Semana de Arte Moderna, nem
presentes, nem representados por terceiros" 100. Foi omitido o cinema
que se desenvolvia precariamente e que atravessava fase de decadên-
cia nos anos anteriores a 1922. O contexto das artes plásticas incluía
a arquitetura, a escultura e a pintura. A coordenação alcançada não
deixa dúvida quanto à lucidez desse ato cultural.
A Semana que seguia à sua maneira manifestações de grupos
europeus de vanguarda e que é de alguma correspondência com a
Armory Show, exposição que, em 1913, também pela via do escân-
dalo, desencadeara as tendências internacionais da arte nos Estados
Unidos (que decorrem paralelas às resistências realistas locais), arga-
massava o Modernismo já sólido de São Paulo, e o do Rio, mais recen-
te e menos coeso.
As novas correntes interacionadas, como vimos, em suas varian-
tes categoriais de expressão, foram, como já se verificara antes da
Semana, tachadas de 'futuristas'. Pretendia-se, aliás, assumir o termo
tabu para a Semana, idéia depois abandonada. O escopo principal era
obviamente a contestação e a provocação - o que se fez face a um
público ruidoso e que lotava o teatro, mas ao mesmo tempo diante da
indiferença das autoridades que encampavam as performances coloca-
das sob a égide de representantes da própria classe dirigente.
Uma dissertação de Graça Aranha - "A emoção estética da arte
moderna" - na linha de pensamento do seu livro A estética da vida
(1921) - inaugurou a Semana. Com linguagem sentenciosa, própria
da práxis acadêmica, o escritor maranhense anunciou ao público os
"horrores" que o esperavam em pintura, poesia e música, descartando
a noção do belo como "fim supremo da arte". Referia-se por outras
palavras, implicitamente, à tese antológica da multiplicidade das cate-
gorias estéticas que se impusera desde o Romantismo, enfatizando
a "transformação incessante" da arte, a subjetividade e indepen-
dência que a conduzem, entretanto, sem cogitar de seus condiciona-
mentos sociais. Na palestra destacaram-se diversos pontos de apoio
ao Modernismo, a que Graça Aranha aderira sem penetrar-lhe a radi-
cal idade. O escritor defendeu o individualismo da sensibilidade artística
moderna, a "liberdade absoluta" da expressão diante da qual "não pre-
valecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando
bom gosto, e do infecundo bom senso", condenou o regionalismo,
como o condenavam os modernistas ("O regionalismo pode ser um
material literário, mas não o fim de uma literatura nacional aspirando
ao universal"). reportou-se a vários co-participantes como os autores
do "próprio comovente nascimento da arte no Brasil" (tomando como
modelo Villa-Lobos) e afirmou a necessidade da formação de um "Uni-
verso brasileiro", liberto de passadismos e componente de um todo
maior ("Para sermos universais, façamos de todas as nossas sen-
sações expressões estéticas, que nos levem à ansiada unidade cósmi-
ca")101.
Ao discurso de Graça Aranha impregnado da espiritual idade de 535
sua busca cósmica, iria sobrepor-se a intervenção turbulenta e um
pouco simples de Menotti dei Picchia, enfrentando o Futurismo 'orto-
doxo' ("abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti")
mas ao mesmo tempo afirmando: "queremos escrever com sangue -
que é humanidade; com eletricidade - que é movimento, expressão
dinâmica do século; violência - que é energia bandeirante" 102. Antes
de Menotti, na parte teórica da Semana, a comunicação de Ronald de
Carvalho, no dia 13, revelava preocupações com uma arte nacional por
fazer-se, como ficou evidenciado no capítulo "Arte brasileira" de seu
livro Estudos brasileiros, publicado em 1924. Identificado a Graça
Aranha, nele aflorava uma refinada sensibilidade que se contraditava
na procura da conciliação impossível entre envelhecidas estruturas
mentais e a modernidade103, sincretismo que, a exemplo de Menotti e
alguns outros, o distancia do grupo mais autêntico do Modernismo.
Mário de Andrade leu a conferência "A Escrava que não é
Isaura", em parte talvez recuperável através do ensaio do mesmo
nome, divulgado no início de 1925 e que reassumia também o curso
de idéias expostas no "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia des-
vairada (1921). O texto, apoiado em artigos lidos na revista LEsprit
Nouveau (especialmente em Paul Dermée). é um tour d'horizon de
problemas estéticos. Mário de Andrade deduzira que "um dos pontos
mais incompreendidos pelos passadistas" fora a "substituição da
ordem intelectual pela ordem subconsciente", não ignorando os "peri-
gos formidáveis" dessa substituição, a exemplo do "hermetismo cego
em que caíram certos franceses na maioria dos seus versos". Em outro
tópico, utiliza a comparação freqüente entre os modernistas: "O poeta
sintetiza e escolhe os universais mais impressionantes. O poeta não
fotografa: cria. Ainda mais: não reproduz: exagera, deforma, porém
sintetizando". De onde, como ele dissera, "todo um ambiente de reali-
dades ideais onde sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se
apresentam na sua plenitude heróica, que ultrapassa a defeituosa per-
cepção dos sentidos" ("Prefácio interessantíssimo"). Ele defendia na
.
"Escrava" a simultaneidade "como processo artístico", a "polifonia
poética", o esforço "em busca duma forma que objetiva esta multiplici-
dade interior e exterior cada vez mais acentuada pelo progresso
material e na sua representação máxima em nossos dias", o que, em
termos plásticos, permite-nos vê-Io vizinho ao Cubismo, Futurismo e
Orfismo, situando-se sua posição estética como um "trabalho pragma-
tista (que) longe da especulação abstrata, conota o critério da eficácia
enquanto teste da viabilidade prática dos conceitos" 104.
Mas na Semana tratava-se menos de propor e especificar novos
códigos poéticos do que de combater antigos sistemas de arte e litera-
tura. No primeiro aspecto, que completaria o segundo, a parte teórica
da Semana não primou pela unidade de pontos de vista ou pela objeti-
vidade. As coisas não poderiam mesmo acontecer de outra forma.
Todos os representantes da área de letras vinham de formação parna-
siana ou simbolista ou estavam perdendo essa condição. Ao procurar
aproximar-se do Modernismo, os 'clássicos' Graça Aranha e Ronald de
Carvalho detinham-se no evolucionismo de compromisso. As fissuras
do movimento modernista incoavam já nas arengas do Teatro Munici-
pal. mesmo se os desígnios contestatários que moviam uns e outros.
em diversa escala, se realizassem na inquietude produzida.
536
A Semana configurou-se, como vimos, pela apresentação sincro-
nizada de diferentes dimensões poéticas e com o máximo de infor-
mação relacionável. A exemplo dos outros setores da manifestação, a
mostra de artes plásticas, instalada no saguão do teatro, incluía ape-
nas reduzida quantidade de participantes, dos quais Anita Malfatti, Vic-
tor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti eram os
nomes mais em evidência. O catálogo, por demais sumário, impresso
na ocasião (trazendo no frontispício um desenho expressionista de Di
Cavalcanti, que apontava algo para a sua visão formal posterior), enu-
merava os seguintes expositores distribuídos em três secções: Antonio
Garcia Moya e Wilhelm Przyrembel (1885-1956) (arquitetur.a); Victor
Brecheret e Wilhelm Haarberg (1891) (escultura); Anita Malfatti, Di
Cavalcanti, John Graz, Alberto Martins Ribeiro, Zina Aita (1900-68).
João Fernando de Almeida Prado (1898). Ferrignac (lnácio da Costa
Ferreira; 1892-1958) e Vicente do Rego Monteiro (pintura) 105. Perma-
necem algumas dúvidas quanto à presença de artistas citados por
outras fontes e que seriam hors catalogue, como Osvaldo Goeldi e Hil-
degardo Leão Velloso (1899-1966), Nada se sabe, por outro lado, do
envio de Martins Ribeiro mencionado na lista. Por haver colaborado na
feitura de col/ages de Almeida Prado incluiu-se automaticamente na
mostra o desenhista Antônio Paim Vieira (1895). Vicente do ReQo
Monteiro, Zina Aita, Martins Ribeiro e Hildegardo Leão Velloso compu-
nham a delegação do Rio, organizada por Ronald de Carvalho e da qual o
primeiro - a bem dizer o representante pernambucano - constituía o
único nome relevante. Os demais do elenco eram todos de São Paulo.
A incipiente catalogação das obras expostas, a incerteza do com-
parecimento de artistas mencionados em notícias dos jornais e a dis-
persão de muitos dos trabalhos foram sempre fatores prejudiciais à
reconstituição completa desse encontro nacional pioneiro da arte
moderna no país. Muitas interrogações permaneceram no ar, embora
certamente pouco de monta haja a acrescentar à informação acumula-
da, sobretudo nos últimos anos108. Seja como for, o que restou da
Semana é mais do que suficiente para a avaliação do seu contexto. O
estado de paralelidade temporal em relação à cultura plástica interna-
cional, pretendida pelos modernistas, confirmava-se apenas parcial-
mente. Um decênio ao menos (e mais em alguns casos) se passara do
momento heróico do Expressionismo, do Cubismo e do Futurismo. O
Futurismo, a abstração e o Construtivismo russo, como o movimento
De Stijl, já eram formulações de longo e sólido desenvolvimento pela
segunda década do século. Desde 1919, idealizada pelo arquiteto
raciona lista Walter Gropius (1883-1969). a Bauhaus se havia proposto
a preencher o vazio aberto entre o artista e a civilização industrial. A
potente ação Dada estava cumprida, só lhe faltando o desenlace 'ofi-
cial' do "Congresso de Paris", e da- "Soirée du coeur à barbe". Em
1912 Duchamp havia abandonado a pintura e instaurava uma própria
dialética artística. Enquanto isto, aqui mal se saía do estado de letargia
imposto pelos padrões acadêmicos, pagando-se seríssimo tributo a
essa submissão sem horizontes. As condições culturais haviam esta-
belecido clima restritivo às iniciativas individuais que investigavam o
presente com sentido crítico. Não se pode obliterar esse quadro da
evolução histórica do pensamento e arte no país ao se olhar para os
expositores válidos de 1922 - e os resultados que eles atingiam no
seu esforço solitário.
Aos comentários anteriores à obra de Anita Malfatti, Victor 537
Brecheret, Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti, cabe acrescentar
poucas referências ao se tratar da Semana. A vacilante Anita Malfatti,
que fizera novas individuais em São Paulo e Santos em 1920-21, levou
à exposição "doze telas a óleo e oito peças entre gravuras e desenhos
alguns deles coloridos" 107, um rebatimento da mostra de 1917-18,
acrescentado de peças recentes em que se diluíra consideravelmente o
seu expressionismo vigoroso. Foi a fase paradoxal dos estudos com
Pedro Alexandrino e da freqüentação de Georg Elpons. Depois de
declínio violento nos anos 1918-20 - "período em que buscara o
isolamento" 108 - houve nela, em 1921, tentativa de recuperação da
linguagem original ao reaproximar-se dos modernistas109. Sua expo-
sição na Semana devia refletir essa instabilidade que levara Mário de
Andrade a escrever pouco antes: "tinha-se a impressão dum artista
que tivesse perdido a própria alma" 110. Somente através das obras de
1917-18 Anita Malfatti ainda era capaz de trazer uma mensagem vital
no contexto da manifestação. Sérgio Milliet, citando "O Homem
Amarelo", "O Japonês" e "Paisagens à Borda do Mar" 111,colocou as
obras ao nível de "puros chefs d'oeuvres", ressaltando que "seu
desenho concentrado e seu colorido sóbrio 'fazem dela o melhor pintor
699AnltaMalfatti - "lndia" (dito da exposição". O crítico dizia que uma "Indienne" marca a evolução
Moema"i.
c. 1921-22. pastel. 63 x 48.5. definitiva de Anita Malfatti na direção da pintura de interpretação sinté-
GilbertoChateaubriand.Rio de Janeiro.
tica". A evolução era, entretanto, como se viu, a regressão112.
A contribuição de Di Cavalcanti não chegou a ter a forma de
pequena retrospectiva, como a amostragem de Anita. Técnicas diver-
sas caracterizavam os seus trabalhos: óleos, pastéis e desenhos113.
Alguma vinculação cubista e expressionista nuançava a produção mais
recente, como demonstra a ilustração que preparou para o rosto do
catálog0114. O seu penumbrismo de figuras espectrais era algo que
ficava para trás, mas ele o incluiu na mostra. Milliet aproximou as últi-
mas obras de Di Cavalcanti (não apresentadas na Semana) às gravuras
do expressionista belga Frans Masereel (1889-1971) "que ele des-
conhecia antes de minha chegada". Acrescenta que Di Cavalcanti
errara ao expor apenas trabalhos da fase precedente, criticando os de
forte contraste de luz e sombra que considera "pintura antiga" 115.
Não faltavam igualmente disparidades na seleção de pinturas de
Rego Monteiro, como já observado. Em evolução muito rápida entre
1920-21, o artista recifense ultrapassara o impressionismo de "Ca-
beças de Negras" e "Cabeça Verde" para adotar componentes cubis-
tas (duas das obras, extraviadas, têm como título "Cubismo") e a este
respeito Sérgio Milliet também deixou testemunho explícit0116.Nota-se
a insistência nessa novidade do artista em Ronald de Carvalho que se
referiu aos "cubismos da Semana" em carta a René Thiollier117.De
Rego Monteiro eram ainda vistos na Semana desenhos com sua temá-
tica indígena de figuras alongadas e despojadas. O apuro formal des-
sas "lendas brasileiras", assim como certamente dos retratos, entre os
quais o do patrocinador Ronald de Carvalho, provam que ele estava a
um passo das soluções da fase parisiense dos anos 20118.
Recém-chegado ao Brasil (março de 1920) para rápida estada,
mas onde se fixaria em definitivo. participou da Semana o artista suíço
John Graz, formado em Genebra e Munique. Aqui. casado com Regina
700 John Graz - "Ciprestes", 1919,
Gomide (1902-73). que também cursara a Escola de Belas-Artes de
óleo s/tela, 73.4 x 58,8, col. Gerda 8rauen, Genebra. ele desde logo se acercara dos modernistas paulistas119. Um
538 São Paulo.
701 Zina Aita - "Homens Trabalhando", artigo de Claro Mendes, insistindo em que seja aproveitado como
1922, óleo s/tela, 22 x 29, col. Yan de vitralista, o tem como "uma força de que São Paulo necessita" 120.
Almeida Prado, São Paulo.
Graz, que em dezembro de 1920 exporá suas pinturas "ao lado de tra-
balhos artesanais" de Regina Gomide Graz no saguão do Cinema
Central121,recebera uma citação de Oswald de Andrade no discurso do
Trianon. como vimos e será incluído na Semana com oito quadros.
todos feitos na Europa. No "Retrato do ministro G." (início de 1917)122
é .influenciado pelo expressionismo de Hodler. assim como por Cézan-
ne (1839-1906) nas paisagens que exibiu. mostradas também em
1919 na galeria do artista Moss em Genebra123. Denotam esses tra-
balhos expressionistas o pintor de bons recursos compositivos124, que
acentua os acentos formais geométricos e esmera a cor nostálgica. A
respeito de sua presença na Semana de Arte Moderna, a testemunha
ocular Sérgio Milliet afirma: "Eis, da esquerda para a direita. John
Graz. antigo discípulo de Hodler125. que nos apresenta telas de um
colorido vigoroso e de um simbolismo místico simples, duro e ingênuo.
"A Descida da Cruz" é, entre todas, o melhor exemplo. Nas paisagens
e nas naturezas-mortas essa mesma rudeza de expressão, que é um
dos princípios de Hodler. "Paisagem de Espanha" é uma tela magnífi-
700 ca"126. Desse momento data também "Ciprestes".

701
A pintora Zina Aita levou à mostra a imagem de um divisionismo
superado, aceito, entretanto, por Anita Malfatti, que lembrava em 1951
suas "oito telas bem modernas" 127. Milliet julgou a pintora "antes
bizarra que original", não deixando de apreciar-lhe a cor "moderna"
mas criticando o realismo do desenh0128. Zina encaixava-se entre os
brasileiros experientes da Europa antes de 1922, tendo estudado em
Florença mas não com suas personalidades mais vivas. Eram visíveis
acentos art-nouveau nas obras da época desta artista não desprovida
de qualidades gráficas, que se endereçaria para uma cerâmica pictóri-
ca anacrônica numa carreira desde 1924 transcorrida em Nápoles.
Dos demais presentes à seção de pintura (e desenho), ignora-se,
como se disse, o que apresentou Martins Ribeiro. Ferrignac, carica-
turista e ilustrador colaborador da revista paulista Panóplia, estivera
igualmente na Europa em duas oportunidades, dividindo o tempo entre
tarefas jornalísticas e a atividade gráfica e plástica. Em 1919 ele vinha
de volta de viagem a Portugal, Espanha e Itália trazendo numerosas
ilustrações a lápis, nanquim e aquarela. Uma crônica da época situava-
-o como "muito moderno nas suas sensações de artista", com obra
feita de "nervos e de sonho" (que) "tem sempre no traço, na sombra, 539
no colorido e no movimento, esse mesmo ritmo, essa mesma melodia
dos artistas 'decadentes', e toda a graça dos coloristas ingleses" 129.
Pelo que dele se conhece nada faz crer que o quadro "Natureza
Dadaísta", exibido na Semana, tivesse algo a ver com a intenção do tí-
tulo. O testemunho de Sérgio Milliet esclarece tratar-se de "natureza--
morta", informação a que acrescenta, não sabemos por quê: "É a
extrema esquerda do movimento paulista" 130. Quanto à participação
de João Fernando (Yan) de Almeida Prado (e do ilustrador, gravador e
ceramista art-nouveau Paim Vieira), de que não restou traço, ela se fez
com desenhos e collages de "contestação" humorística ao espírito da
mostra, como confessou o futuro autor do polêmico livro A grande
Semana de Arte Moderna131.
A escultura da Semana era essencialmente o conjunto de doze
peças de Brecheret. Já foram aqui feitas menções ao artista a quem
Sérgio Milliet, a exemplo de Oswald de Andrade e outros, reporta-se
702
com adjetivos incandescentes: "gênio da raça latina", "digno sucessor
de Rodin e Bourdelle, e também admirável poeta pela sua extraordi-
nária imaginação" (o crítico deslocava-se do contexto da Semana para
centralizar a atenção no projeto do "Monumento às Bandeiras") 132.
Não há dúvida de que os méritos de Brecheret conduziam os críticos
ao gosto do ditirambo. A presença de Wilhelm Haarberg marcava-se
por um grupo de esculturas de pequeno porte em madeira.
Trata-se de um artista e professor alemão temporariamente radi-
cado no Brasil e conduzido ao evento de 1922 por Mário de Andrade:
"Eu descobria Haarberg, o escultor expressionista" 133. Novas pesqui-
sas em trâmite sobre este modesto escultor podem acrescer o pouco
que dele se sabe, inclusive no âmbito decorativo a que se dedicou. Das
peças que apresentou, "Mãe e Filho" indica sensibilidade intimista e
honestamente emotiva que trata com segurança a imagem. Num
703 desenho da época em que a figura simbólica da "Morte" domina o
702 ;.errognac- "Colombina", 1922,
espaço preenchido por registros de rostos dramáticos, observa-se a
dese"" uarelado, 19 x 31, col. A.F. disposição extrovertida dominada pela aflição dos problemas huma-
Lel'Oe' Sj Paulo
703 Haarberg- "Mãe e Filho", C. 1921,
nos134. Não se tem informação a respeito do que Hildegardo Leão
'nade'a" x 14.7 x 15. cal. IEB-USP. Velloso teria mostrado na Semana. Introduzido na escultura aos 15
anos por Rodolfo Bernardelli e ao mesmo tempo aluno de desenho de
Henrique Bernardelli (1858-1936). seguia a linha tradicional do
mestre estatuário. A obra posterior, de acentuada base naturalista,
mesmo quando estiliza a imagem, certifica distanciamento de qualquer
propósito de modernidade'35 e portanto o equívoco de sua presença,
se ela ocorreu, no encontro de 1922.
A mostra compreendia aceno à arquitetura, estando-se porém ain-
da longe do enraizamento local da problemática racionalista. Na época
tomava densidade o entusiasmo patriótico em busca do neocolonial.
que redundaria freqüentemente em equívocos. Wilhelm Przyrembel.
arquiteto polonês aqui radicado na segunda década do século - um
dos convidados - procurou absorver tais princípios historicistas na
"Taperinha na Praia Grande" (1922). de simétrica e apurada orde-
nação nos cheios e envazaduras da fachada, complicada entretanto
pelo uso de elementos ornativos ecléticos. Antonio Garcia Moya, de
origem espanhola - o outro convidado - exibiu projetos de edifícios
visionários. Desenhados com traço sensível a nanquim, suas
construções lembram moles egípcias e exóticos castelos do Mediterrâ-
540 neo. A depuração das fachadas e a organicidade geométrica dos blo-
cos dos muros devem ter atraído o interesse dos modernistas por ele
que todavia adaptava, nas elevações e interiores devaneantes, elemen-
tos híbridos ou evocativos de estilos antepassados.
Na exposição de artes plásticas, como em outros aspectos da
Semana de Arte Moderna, só em parte atingia-se as metas propostas.
Descartadas as admissões enganosas e ambíguas, valiam mais as
intenções, como se viu, do que os resultados em torno da real interpe-
netração com o momento internacional.
O mesmo se pode dizer das ambições nacionalistas. O Futurismo
é mais ideário difuso, sobretudo presente, de um modo ou de outro, no
espírito dos intelectuais. Nos artistas, em maioria na busca da identi-
dade profunda, são evidentes, isto sim, elementos de formação compó-
sita, destacando-se a influência do Art-Nouveau e assimilações cubis-
tas e expressionistas, estas decididamente incorporadas na obra de
Anita Malfatti.

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