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HISTORIA GERAL DA
ARTE NO BRASIL
ú VOL. I I
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I
I
INSTITUTOWALTHER
MOREIRASALLES
FUNDAÇÃODJALMAGUIMARÃES SãoPaulo1983 BRASIL
SUMÁRIO
8 ARTE CONTEMPORÂNEA
Walter Zanini
499
Introdução 501
. DASORIGENSDOMODERNISMO
à SEMANADE 1922
8.1 São Paulo, núcleo do movimento modernista 502
8.2 As fontes européias e a busca de estimulantes nacionais 507
8.3 As primeiras exposições modernistas 511
8.4 Anita Malfatti, a precursora 513
8.5 A contribuição de Di Calvalcanti, Vicente do Rego 520
Monteiro e Victor Brecheret
8.6 O Futurismo em São Paulo 528
8.7 A abertura no ambiente conservador do Rio 530
( 8.8 Os artistas plásticosna Semana de Arte Moderna 533
t
EVOLUÇÃO
DOMODERNISMO,
DEPOISDASAM,ATÉ1930
8.9 Desdobramentos e difusão do Modernismo 541
8.10 Deslocamentos dos artistas da Semana para Paris 547
8.11 Os primeiros anos de Segallno Brasil 55A
8.12 Tarsila do Amaral: do pau-brasil à antropofagia 556
8.13 Outros artistasde experiência européia 560
8.14 Goeldi, Nery e outros artistas ativos no Rio 562
A INTEGRAÇÃO
NOCURSOINTERNAClON1\L
DAARTE
8.23 A aderência ao universo das formas abstratas 641
8.24 Transformações do meio ambiente 643
8.25 Os artistas surgidos com a exposição dos' 19' 649
8.26 Arte concreta e neoconcreta no Brasil 653
8.27 Outras tendências construtivas e diferentes
morfologias abstratas 678
O interesse construtivo em Volpi e outros artistas 678
A abstração lírica 689
O Expressionismoabstrato 693
As tendências do Expressionismo abstrato na gravura 703
A escultura e a abstração 708
8.28 Engajamentos na arte social 709
8.29 A perseverança da figuração 715
8.30 Aspectos da arte em capitais regionais 726
ASVARIÂ
VEIS ARTÍSTICASNAS ÚLTIMASDUAS DÉCADAS
8.31 Os desdobramentos da arte e o quadro local de atividades 728
8.32 O movimentoartísticodiversificado. 734
8.33 Contribuição ao nível do objeto e da arte desmaterializada 739
As novas figurações 739
A surrealidade presente 758
O ideário construtivo 763
As múltiplas linguagens no desenho e na gravura 764
Variantes da expressãoescultural 769
Desmaterialização e reanimaão 776
Os processosintermediais 785
8.34 Aspectos da arte em váriosEstados 802
A caricatura 806
Arte incomum 808
A visãoingênua e popular 810
CONCLUSÃO 812
Notas 813
Bibliografia 820
.,
823
9 ARQUITElliRA CONTEMPORÂNEA
Carlos A. C. Lemos
FOTOGRAFIA 867
I
10 Boris Kossoy
Introdução 869
I
A invenção da fotografia 870
A descobena isolada da fotografia no Brasil 872
A chegada e a disseminação da daguerreotipia no Brasil 874
Os novos processosfotográficos e a expansão 876
do retrato fotográfico
A documentação fotográfica 878
A fotografia no Brasilnas primeiras décadas do séculoXX 882
Tec:nologianacional: uma tentativa 883
O "lambe-lambe" 884
O fotoclubismo no Brasil 884
A fotografia comercial nos meados do século 886
A fotografia impressa 888
A evolução da fotografia nas últimas décadas: panorama 892
internacional e suas repercussõesno Brasil
A opção pela fotografia: o modismo e a autenticidade 893
O ensino da fotografia 893
Exposições:a fotografia ganha maior espaço. Avolumam-se 894
as mostras
A fotografia é objeto de publicação e divulgação 896
Movimentos fotográficos 897
Temas e tendências: alguns exemplos significativosda 897
fotografia brasileira nos últimos anos
Brasile América Latina: uma problemática semelhante 907
Fotografia e história 908
Fotografia e a documentação do patrimônio cultural 909
O patrimônio fotodocumental brasileiro e a 910
preservaçãoda memória nacional
Notas 911
Bibliografia 913
it
-
ARTESANATO 1035
14 Vicente Salles
Arte contemporânea
-
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Walter Zanini
t
. I
500
ARTE CONTEMPORÂNEA
"
Introdução
. Os novos ideários da arte que se impuseram no Brasil pelo
desenrolar do século XX são objeto desta parte do livro. Desde o
movimento modernista (das raízes à Semana de Arte Moderna e sua
evolução até 1930) encadeiam-se os estudos referentes a períodos
cronológicos quase sempre bem demarcados por décadas. É verdade
que no início do decênio de 1930 delineia-se uma fase que se alonga
aos anos da Segunda Guerra Mundial. ou mesmo um pouco além.
Cada uma das três décadas seguintes. entretanto, apresent.a fortes
peculiaridades. Procurou a abordagem dessas etapas distintas colher
nas linhas gerais tanto o trabalho individual quanto a animação de
grupos ou tendências. assim como as características do sistema só-
cio-cultural da arte aqui existente.
A análise - por entre as dificuldades de pesquisa já apontadas
no prefácio do livro - busca esclarecer os aspectos principais que
marcam a atividade artística criadora no diversificado meio brasileiro
e ao mesmo tempo mostrar os dados que a ligam ao contexto inter-
nacional. 501
CONCLUSÃO
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trabalhavam, na animação intelectual de São Paulo essa tarefa coube
principalmente a um homem de carreira política, apaixonado pela cul-
tura francesa, que adquirira gosto pelo colecionismo de obras de arte,
e que se destacou na promoção de exposições e na obtenção de bol-
sas para viagem de artistas ao exterior: o senador Freitas Valle. É ver-
dade que o primeiro - profissional de rígida formação neoclássica,
responsável desde 1886 por inúmeras obras importantes (iniciadas
com o remanejamento e construção dos edifícios do Pátio do Colé-
gio) - nas contingências de suas funções empresariais ou em incum-
bências oficiais, também se interacionava ao meio de pintores, de
escultores e, pela própria natureza do seu escritório de engenharia e
arquitetura, a artistas decoradores. Mas coube a Freitas Valle, espírito
não menos conservador, um desempenho constante e dos mais pres-
tativos nesses aspectos. Caracterizou-o, ainda, a atividade de anfitrião
de famosos encontros de artistas e intelectuais, de gerações e atitu-
des diversas, na sua Vila Kirial. A aproximação fazia-se sob a égide do
cidadão que enfeixava não raros poderes nas mãos, o que não deixa
de ser já sintoma dos aspectos mecenáticos ou paternalistas que no
506 futuro estariam no cerne da orientação de muitas instituições artísti-
cas no Brasil. Freitas Valle patrocinou por anos a fio esse clima de
convivência na sua casa de Vila Mariana, considerada "templo de
arte" (Souza Lima), onde as estimulações não eram de sorte a induzir
o contexto artístico à alternativa renovadora de que necessitava.
Outras forças, entretanto, emergiam nos contornos alargados de
São Paulo. Dois artistas, principalmente, exerceram enorme influência
na metamorfose operada no contexto antes de 1922: Anita Malfatti
(1889-1964) e Victor Brecheret (1894-1955). Apoiados por alguns
intelectuais e poetas, jovens como eles e ainda num estágio de inde-
cisão entre estéticas declinantes e a experimentação, é da sua
ligação íntima que tomará corpo o movimento modernista. Sua eclo-
são na São Paulo industrializada e não fora dela foi explicada em
1942 por uma das figuras centrais do Modernismo, Mário de Andra-
de, quando sublinhou os contrastes culturais existentes entre São
Paulo e Rio. A primeira cidade - diz ele - "estava muito mais "ao
par" que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o Modernismo só
podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província.
Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre Rio e São
Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida
exterior. Está claro: porto de mar e capital do país, o Rio possui um
internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais
moderna porém, fruto necessário da economia do café e do
industrialismo conseqüente. Caipira de serra-acima, conservando até
agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua políti-
ca, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial
e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com
a atualidade do mundo"3.
Ao levantar a complexa problemática da promoção da Semana,
clímax da arregimentação de energias que já extrapolava São Paulo,
Mário de Andrade aquilatava as distâncias que separavam as classes
dirigentes de ambas as cidades em suas relações com a arte. Opunha
a formação da ';alta burguesia riquíssima" do Rio, que não se achava
preparada para "encampar um movimento que lhe destruía o espírito
conservador e conformista", ao nível cultural da "aristocracia intelec-
tuaI paulista" 4. Esta, na sua empolgação pelo progresso civilizatório
que atingia o Estado, considerou coerente o risco de trabalhar a favor
da Semana de Arte Moderna. t verdade que foram somente alguns
poucos homens dessa classe - à frente dos quais o escritor e
homem de negócios Paulo Prado - a encorajar o evento. A ela coube
essa solidariedade aos artistas e escritores que procuravam reagir ao
"que era a inteligência nacional"s. Quanto a estes, em parte perten-
ciam à mesma origem social ou então desfrutavam de inegável status
na comunidade - o que deixa patente as camadas de onde provinha
a primeira geração do Modernismo brasileiro. Mas deve-se ressaltar a
presença de imigrantes e descendentes no agrupamento de vanguar-
da, os quais certamente nela introduziam inquietudes sociais próprias
do seu meio, tese levantada por Flávio Motta nas suas reflexões sobre
um artista mais antigo, Eliseu Visconti (1866-1944)6. Da mesma for-
ma, é preciso lembrar os intelectuais estrangeiros, entre os quais
muitos de formação anarquista, atuantes em São Paulo e outras cida-
des, e cuja ideologia revolucionária não deixaria de ressoar no espíri-
to inconformista mais geral do Modernismo, embora a dissidência
deste viesse configurar-se em modelos exclusivamente estéticos. 507
514
685 686
1
685 Anita Malfatti - "A Boba", 1917.
oleo s/tela, 61 x 50.6, col. MAC-USP.
686 Anita Malfatti - "Nu Masculino
Sentado", 1915-16. carvão, 59 x 41,6. col.
IEB-USP
687 Anita Malfatti - "O Farol", 1915,
óleo s/tela, 46 x 61, col. Gilberto
Chateaubnand, Rio de Janeiro.
515
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516
(
8.5 A contribuiçãode Di Cavalcanti,
Vicente do Rego Monteiroe VictorBrecheret
Se o novo aporte entre os artistas plásticos era dos mais consis-
tentes em Anita Malfatti, nas outras figuras que se projetavam
naqueles anos já próximos da Semana de Arte Moderna - essencial-
mente Victor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e Di
Cavalcanti - a linguagem carecia da afirmação autêntica adquirida
posteriormente. Era incontestável, porém, sua evolução em novas vias
de percepção, em torno de 1920-21. Este amadurecimento anterior
dos artistas e o entusiasmo que provocava nos escritores e poetas
mais abertos autorizam a acreditar na tese do empuxo exercido pelas
689 artes no modernismo das letras54.
r- -:-"
Dos três artistas, Di Cavalcanti aparecia como o menos afirmado.
1.
Nascido no Rio, iniciara-se na arte através da caricatura, em 1914, na
revista Fon-Fon, praticando-a intensamente nos anos seguintes ao lado
de uma atividade de ilustrador. Paralelamente, exercia o jornalismo.
520 Em 1917 fez sua primeira exposição em São Paulo. Nesse mesmo ano
começou na pintura junto a Elpons.Assinalava-o,sobretudo, uma incli-
nação tardia pelo Simbolismo e o acento art-noUlleau, visível em
desenhos influenciados por Beardsley (1872-98) e telas de um 'pe-
numbrismo' exteriormente próximo a Eugéne Carriére (1849-1906) (o
paralelo com o simbolista francês é de Ronald de Carvalho). Em 1921
ele realizou no Rio a série de desenhos "Fantoches da Meia-Noite",
enfocando o mundo boêmio da Lapa com a verve da caricatura. Mas
689 Di Cavalcanti -
"Fantoches da
Meia-Noite", fev. 1922, Monteiro Lobato e
Cia. Editores. São Paulo.
690 Di Cavalcanti - "O Beijo", 1923,
têmpera s/tela. 90,4 x 62,3, col. MAC-USP.
691 Capa do catálogo da exposição da
Semana de Arte Moderna. desenhada por Di
Cavalcanti.
690 691
antes de 1923 - data da primeira viagem à Europa - a linguagem do
artista já evoluíra. Sua empolgação pela modernidade levara-o a resul-
tados como "O Beijo", tela a óleo do MAC-USP, onde as figuras são
decididamente hipertrofiadas e o espaço cobre-se de formas dúcteis e
cores em liberdade. Das telas conhecidas da época é a mais avançada
(ao lado do desenho para a capa do catálogo da Semana de Arte Moder-
na) e exemplifica o que ele mesmo diz: "Meu modernismo coloria-se
do anarquismo cultural brasileiro e, se ainda claudicava, possuía o
dom de nascer com os erros, a inexperiênciae o lirismobrasileiros" 55.
Paralelamente, a participação de Di Cavalcanti fazia-se também
notar pelas qualidades do animador. Viu-se que fora ele a incitar Anita
a fazer a exposição de 1917-18, como será ele um dos 'descobridores'
de Brecheret. Em 1921, trará incentivo importante a Osvaldo Goeldi
(1895-1961) no Rio. Caber-lhe-ia uma posição central no repto ao
"carrancismo provinciano paulista" (e brasileiro): partiu dele, ao que
tudo indica, a iniciativa do evento de 1922, o ápice de sua tarefa na
movimentação do contexto divergente.
A presença de Vicente do Rego Monteiro no grupo de ponta reu-
nia alternativas pessoais de pesquisa ainda de base formativa antes de 521
1922. Como em Brecheret e Di Cavalcanti, a angulação exata de sua
problemática visual foi evento posterior. Nos anos de que aqui se trata,
este artista, originário de Pernambuco, integrou-se ao Modernismo tra-
zendo a ebulição de uma experiência precoce e movediça, em que
intervinham apropriações de culturas antepassadas ao lado de influên-
cias da contemporaneidade parisiense e um apego à realidade telúrica
do seu país. Ativo no Rio e Recife, após anos de aprendizado em Paris
(1911-14), Rego Monteiro exporia em São Paulo (maio de 1920) um
conjunto de 43 aquarelas e desenhos, entre os quais muitos de temáti-
ca indígena. Esta mostra, que deveria conter ao menos parte das obras
já apresentadas no Recife, em 1919, teve lugar na Livraria de Jacinto
Silva, sede de outros eventos artísticos e intelectuais situados nas ori-
gens da Semana da Arte Moderna. Em 1921 ele deu prosseguimento
524 695 Antonio Garcia Moya - "Túmulo", Mesmo se embrionária, a obra de Brecheret era fato inédito e
s/data, nanquim, 22,5 x 25,5, col. Regina
Helena Ferreira da Silva, São Paulo. drástico confrontado à escultura produzida no Brasil, submetida aos
696 Antonio Garcia Moya - "Cabeça de padrões que haviam caracterizado essa arte no século XIX. O Neoclas-
índio", 1920, lápis preto, 40 x 26, col.
Regina Helena Ferreira da Silva, São Paulo. sicismo, introduzido pela Missão Artística Francesa, impusera-se no
paí.s, deixando atrás o Barroco, cedendo mais tarde a conceitos menos
idealísticos e academizando-se, como trata outro capítulo deste livro.
No círculo de escultores formados no Rio e que usufruíam dos prêmios
de viagem à Europa, havia, ainda neste século, um respeito a essas
tradições, ignorando-se ou desprezando-se as iniciativas profundas de
renovação.
Esta fidelidade da escultura a princípios de figuração retesada -
que atingia em alguns casos menos ostensivamente a pintura - é tes-
temunhada por Rodolfo Bernardelli (1852-1931 J. Coube a ele, a José
Otávio Corrêa Lima (1878-1974) e a outros escultores mais jovens, a
ereção, segundo o gosto oficial corrente, de numerosos monumentos
públicos no Rio de Janeiro,
Em. São Paulo (como em Belém, Recife e outros centros), a
situação não era diferente em relação a preferências esculturais.
Operavam, entretanto, na capital paulista, vários escultores imigrantes
ou de passagem, de linha tradicional, quase sempre italianos, como
Ettore Ximenez (1855-1926), Luigi Brizzolara (1868-1939), Amadeu
Zani, Julio Starace (1887-1952), Niccola Rollo (1889-1926) e o sueco
William Zadig. Nas pegadas conservadoras de seus mestres, seguiram
descendentes de imigrantes como Vicente Larocca (1892-1964), João
Batista Ferri (1896-1977), Humberto Cozzo (1900-81) e outros. Das
obras públicas de que foram incumbidos (Cozzo em outros Estados),
nos primeiros decênios, quando a cidade, no súbito crescimento, pas-
sou a exigir a presença de marcos prestigiosos para simbolizar seu
novo status, algumas tiveram porte dos mais avantajados, como o
monumento do Pátio do Colégio (Zani) e o complexo em homenagem
a Carlos Gomes, no Anhangabaú (BrizzolaraJ. O monumento do Ipiran-
ga tornou-se alvo de todas as atenções com a aproximação da data do
centenário da Independência. O concurso instituído teve como vence-
dor Ettore Ximenez, um entre os muitíssimos escultores de espírito
conservador ativos na Itália e que atendeu, na concepção épica do
conjunto, às expectativas oficiais reinantes.
É em tal contexto que surgiu Brecheret com o ágil modelado de
formas introspectivas, distanciado da radicalidade de cubistas, futuris-
tas e construtivistas, reestruturadores da concepção plástica bi e tridi-
mensional, mas que procurava renovar alguns elementos do antigo
repertório expressivo da escultura. Nas obras feitas em São Paulo,
Brecheret demonstrava muita segurança e exigência no que tinha a
dizer. Para o nosso ambiente eram importantes as deformações de
suas imagens diante das obstinadas leis miméticas literalmente adota-
das na escultura. Ao conhecer o artista, os intelectuais, na iminência
de constituir o grupo modernista, referiam-se a ele com incontido entu-
siasmo. Em artigo do quinzenário Papel e Tinta - órgão que trouxe
apoio às novas tendências da arte - Ivan (Oswald de Andrade?) traçou
paralelos entre o artista brasileiro e Carl Milles, Mestrovic e outros
europeus para salientar que "Brecheret faz a sua escultura endireitar
para o futuro apoiando-se proficuamente nos preceitos ancestrais" 65.
Brecheret servia de arma contundente de ataque contra o espírito
tradicionalista prevalecente nas artes: Menotti dei Picchia declara que 525
sua obra "não despertara a curiosidade de ninguém, ou melhor, fora
hostilizada pelos Pachecos da estatuária, embevecidos em aplaudir os
Zadigs, os Staraces, os Ximenez e outros de igual força e sabe-
doria . . .". E com uma dose de chauvinismo ataca os estrangeiros (em
outras atividades para ele benquistos), chamados para as tarefas escul-
tóricas da cidade66.
Sem dúvida, Brecheret detonara muita polêmica, não lhe sendo
poupadas críticas dos acadêmicos; mas, ao mesmo tempo e ao
contrário do que ocorrera com Anita Malfatti, sua atividade plástica de
compromisso atraíra depoimentos de apoio da ala contrária à moderni-
dade. Do próprio Monteiro Lobato vieram estas palavras: "Brecheret
apresenta-se-nos como a mais séria manifestação do gênio escultural
surgido entre nós" 67.
O êxito provocou desdobramentos: ele seria encarregado do pro-
jeto do "Monumento às Bandeiras", em meados de 1920, seguindo
uma conceituação de símbolos e alegorias68. A idéia do complexo
escultórico/arquitetOnico surgiu no clima eufórico das festividades do
Centenário, aplicando-se o escultor numa seqüência de desenhos e na
elaboração de uma maqueta composta essencialmente de uma massa
de ciclópicas figuras em movimento sobre alto podium, que sugerem a
'entrada' no sertão, e de outras dispostas lateralmente. O estatuário
"seguia a linha mestroviciana de expressividade violenta, além de se
subjugar às alegorias" 69. Havia sem dúvida concessões naturalisticas.
O projeto não pOde ser levado adiante e só em 1936, após remaneja-
mentos vários, que o apuraram, foi retomado e realizado em granito
(conclusão em 1953).
526
697
Ao escultor que em 1921 se fixaria na Europa para a fase decisi-
va, coube o mérito de selar a unidade do grupo sensível às novas
idéias. Oswald, que se refere a ele, em crônica de c. 1920, como "o
nosso único escultor, mas que vale bem diversas gerações de modela- .
dores", defende-o dos que vêem a arte apenas por critérios de cópia
do reaI70. Mário de Andrade, em 1921, na partida do artista para a
Europa, chama-o de "amigo e irmão dos mais íntimos" e "a profecia
mais genial que o país teve até hoje na escultura" 71. Muito mais tarde,
na conferência de 1942, dirá que "fazíamos verdadeiras rêvenes a
galope em frente da simbólica exasperada e estilizações decorativas do
'gênio'. Porque Victor Brecheret. para nós, era no mínimo um gênio.
Este o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos
a que ele nos sacudia" n Menotti, em fins de 1921, sabendo-o admi-
tido no Salon d'Automne, em Paris, intitula-o "a bandeira dos futuristas
paulistanos" 73. Ninguém media os arroubos que dirigia à obra de
Brecheret que, na seqüência da comoção suscitada por Anita, aparecia
como uma espécie de pivô de sua arregimentação final.
Dos depoimentos, o mais revelador é o de Mário de Andrade, em
1942, em que ele também lembrou a metamorfose por que passara 527
seu espírito em 1920 quando, indeciso entre o Parnasianismo e Sim-
bolismo, lera as Villes tentaculaires de Verhaeren, resolvendo-se à
experiência difícil de "fazer um livro de poesias 'modernas' em verso
sobre a minha cidade" 74. Por meses ele tentou a empresa até que, ao
levar para casa a "Cabeça de Cristo" de Brecheret, a "feia" e "me-
donha" imagem com trancinhas provocou verdadeiro escândalo em
família, sobrevindo, então, no desabafo angustiado, o "canto bárbaro"
de Paulicéia desvairada75, que Oswald meses depois chamará de "um
supremo livro neste momento literário". Este testemunho, ao lado de
vários outros, permite uma vez mais deduzir a dianteira tomada pelas
artes visuais no país. No dizer de Manuel Bandeira: "O impulso inicial
do movimento modernista veio das artes plásticas" 76. E no de Mário
Pedrosa: "Graças a esse contato, desde os primeiros passos, com a
plástica moderna, puderam os literatos e poetas do modernismo bra-
sileiro ter, de saída, uma visão global do problema da arte e da criação
contemporânea. Educaram-se através da pintura e da escultura moder-
nas" 77.
701
A pintora Zina Aita levou à mostra a imagem de um divisionismo
superado, aceito, entretanto, por Anita Malfatti, que lembrava em 1951
suas "oito telas bem modernas" 127. Milliet julgou a pintora "antes
bizarra que original", não deixando de apreciar-lhe a cor "moderna"
mas criticando o realismo do desenh0128. Zina encaixava-se entre os
brasileiros experientes da Europa antes de 1922, tendo estudado em
Florença mas não com suas personalidades mais vivas. Eram visíveis
acentos art-nouveau nas obras da época desta artista não desprovida
de qualidades gráficas, que se endereçaria para uma cerâmica pictóri-
ca anacrônica numa carreira desde 1924 transcorrida em Nápoles.
Dos demais presentes à seção de pintura (e desenho), ignora-se,
como se disse, o que apresentou Martins Ribeiro. Ferrignac, carica-
turista e ilustrador colaborador da revista paulista Panóplia, estivera
igualmente na Europa em duas oportunidades, dividindo o tempo entre
tarefas jornalísticas e a atividade gráfica e plástica. Em 1919 ele vinha
de volta de viagem a Portugal, Espanha e Itália trazendo numerosas
ilustrações a lápis, nanquim e aquarela. Uma crônica da época situava-
-o como "muito moderno nas suas sensações de artista", com obra
feita de "nervos e de sonho" (que) "tem sempre no traço, na sombra, 539
no colorido e no movimento, esse mesmo ritmo, essa mesma melodia
dos artistas 'decadentes', e toda a graça dos coloristas ingleses" 129.
Pelo que dele se conhece nada faz crer que o quadro "Natureza
Dadaísta", exibido na Semana, tivesse algo a ver com a intenção do tí-
tulo. O testemunho de Sérgio Milliet esclarece tratar-se de "natureza--
morta", informação a que acrescenta, não sabemos por quê: "É a
extrema esquerda do movimento paulista" 130. Quanto à participação
de João Fernando (Yan) de Almeida Prado (e do ilustrador, gravador e
ceramista art-nouveau Paim Vieira), de que não restou traço, ela se fez
com desenhos e collages de "contestação" humorística ao espírito da
mostra, como confessou o futuro autor do polêmico livro A grande
Semana de Arte Moderna131.
A escultura da Semana era essencialmente o conjunto de doze
peças de Brecheret. Já foram aqui feitas menções ao artista a quem
Sérgio Milliet, a exemplo de Oswald de Andrade e outros, reporta-se
702
com adjetivos incandescentes: "gênio da raça latina", "digno sucessor
de Rodin e Bourdelle, e também admirável poeta pela sua extraordi-
nária imaginação" (o crítico deslocava-se do contexto da Semana para
centralizar a atenção no projeto do "Monumento às Bandeiras") 132.
Não há dúvida de que os méritos de Brecheret conduziam os críticos
ao gosto do ditirambo. A presença de Wilhelm Haarberg marcava-se
por um grupo de esculturas de pequeno porte em madeira.
Trata-se de um artista e professor alemão temporariamente radi-
cado no Brasil e conduzido ao evento de 1922 por Mário de Andrade:
"Eu descobria Haarberg, o escultor expressionista" 133. Novas pesqui-
sas em trâmite sobre este modesto escultor podem acrescer o pouco
que dele se sabe, inclusive no âmbito decorativo a que se dedicou. Das
peças que apresentou, "Mãe e Filho" indica sensibilidade intimista e
honestamente emotiva que trata com segurança a imagem. Num
703 desenho da época em que a figura simbólica da "Morte" domina o
702 ;.errognac- "Colombina", 1922,
espaço preenchido por registros de rostos dramáticos, observa-se a
dese"" uarelado, 19 x 31, col. A.F. disposição extrovertida dominada pela aflição dos problemas huma-
Lel'Oe' Sj Paulo
703 Haarberg- "Mãe e Filho", C. 1921,
nos134. Não se tem informação a respeito do que Hildegardo Leão
'nade'a" x 14.7 x 15. cal. IEB-USP. Velloso teria mostrado na Semana. Introduzido na escultura aos 15
anos por Rodolfo Bernardelli e ao mesmo tempo aluno de desenho de
Henrique Bernardelli (1858-1936). seguia a linha tradicional do
mestre estatuário. A obra posterior, de acentuada base naturalista,
mesmo quando estiliza a imagem, certifica distanciamento de qualquer
propósito de modernidade'35 e portanto o equívoco de sua presença,
se ela ocorreu, no encontro de 1922.
A mostra compreendia aceno à arquitetura, estando-se porém ain-
da longe do enraizamento local da problemática racionalista. Na época
tomava densidade o entusiasmo patriótico em busca do neocolonial.
que redundaria freqüentemente em equívocos. Wilhelm Przyrembel.
arquiteto polonês aqui radicado na segunda década do século - um
dos convidados - procurou absorver tais princípios historicistas na
"Taperinha na Praia Grande" (1922). de simétrica e apurada orde-
nação nos cheios e envazaduras da fachada, complicada entretanto
pelo uso de elementos ornativos ecléticos. Antonio Garcia Moya, de
origem espanhola - o outro convidado - exibiu projetos de edifícios
visionários. Desenhados com traço sensível a nanquim, suas
construções lembram moles egípcias e exóticos castelos do Mediterrâ-
540 neo. A depuração das fachadas e a organicidade geométrica dos blo-
cos dos muros devem ter atraído o interesse dos modernistas por ele
que todavia adaptava, nas elevações e interiores devaneantes, elemen-
tos híbridos ou evocativos de estilos antepassados.
Na exposição de artes plásticas, como em outros aspectos da
Semana de Arte Moderna, só em parte atingia-se as metas propostas.
Descartadas as admissões enganosas e ambíguas, valiam mais as
intenções, como se viu, do que os resultados em torno da real interpe-
netração com o momento internacional.
O mesmo se pode dizer das ambições nacionalistas. O Futurismo
é mais ideário difuso, sobretudo presente, de um modo ou de outro, no
espírito dos intelectuais. Nos artistas, em maioria na busca da identi-
dade profunda, são evidentes, isto sim, elementos de formação compó-
sita, destacando-se a influência do Art-Nouveau e assimilações cubis-
tas e expressionistas, estas decididamente incorporadas na obra de
Anita Malfatti.