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ISSN 1413-6651
São Paulo - 2009
Ficha Catalográfica
Imagem da Capa:
Interior de igreja
Hendrik van Steenwijck II
1609
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pire-
sAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de
Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofo-
lini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de
Lyon).
Pareceristas
Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Eduardo de Carvalho
Martins, Eduino José de Macedo Orione, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana
Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho,
Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com
site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos
A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.
APRESENTAÇÃO
Os Editores
SUMÁRIO
Gábor Boros*
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1. Esperança e Medo
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salvação, e contando para isto não a vergonha, mas a mais alta honra em
arriscar seu sangue e suas vidas pela vanglória de uma tirano”, tudo isto
não altera o fato que Spinoza faz uso da “religião verdadeira” universal, a
qual certamente não é idêntica à superstição, e não desaparecerá mesmo
que a superstição seja apagada.
Mas existe um papel para a esperança na verdadeira religião
spinozista? Certamente não esgotarei aqui a complexa questão da
“verdadeira religião” em Spinoza. No entanto, certas demonstrações
básicas precisam ser feitas em torno do tema da esperança. Evidentemente,
a esperança por objetos ilusórios não pode ser tolerada na religião
verdadeira. Ilusões sobre o uso real – ou o caráter nocivo dos objetos para
nós –, são enraizadas nas idéias inadequadas da imaginação, das quais
poderíamos inferir, para a conexão estreita da razão, idéias adequadas e
religião verdadeira, mesmo que não encontrássemos as linhas seguintes na
quarta parte de Ética:
De resto, remeto a religiosidade tudo quanto desejamos
e fazemos e de que, enquanto temos a idéia de Deus, ou
seja, enquanto conhecemos a Deus, somos a causa. Quanto
ao desejo de fazer o bem, que surge por vivermos sob a
condução da razão, chamo de civilidade. Já o desejo que
leva o homem que vive sob a condução da razão a unir-se
aos outros pela amizade chamo de lealdade. E chamo de
leal aquilo que os homens que vivem sob a condução da
razão louvam, e de desleal aquilo que contraria o vínculo da
amizade. (Spinoza 10, IV, prop. 37, esc.1, p.307-309)
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2. Amor
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ele deixa mais do que claro que assume a existência de uma relação de
implicação à maneira do Boneco Russo.
Depois do segundo nível, ao qual alguém pode também ser ajustado
através de idéias inadequadas, o que segue é o terceiro nível, onde não
existe mais espaço para o rancor. Ainda, se estamos magoados por alguma
ofensa, o ódio que resulta disto é “para ser conquistado pelo amor, ou pela
generosidade, não por retribuir isto com ódio em retorno.” (Spinoza 10, V,
prop.10, esc., p.379). Este princípio de uma empatia natural tripla poderia
ser estendido a várias formas de sociedades humanas, porém, não é minha
tarefa adentrar agora por esta direção. A moral, que eu gostaria de extrair
da comparação com De Waal, é que Spinoza elaborou uma idéia de uma
teologia sem um mantenedor e um criador transcendental de um telos, a
qual parece fechada para o que, hoje, ambos, neurocientistas e biólogos,
denominam ou praticam de uma forma nova.
3. Generosidade
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coisa amada não exprime a sua essência, mas uma de suas propriedades”.
Não deveria nos surpreender como Spinoza prescinde
completamente da vontade em sua filosofia: não apenas da boa vontade,
dirigida para o Bem pela providência divina, porém, também, e mais
basicamente, da idéia de nossa autonomia para dispor indiferentemente
nossas volições. “Deus ou Natureza” – esta é uma expressão frequentemente
fundada em ambos, nas Paixões da Alma de Descartes e na Ética de Spinoza.
Porém, enquanto em Descartes ela designa uma natureza impregnada pelo
divino, cuja base transcendente permanece a uma distância do universo
criado, em Spinoza, ela revela um deus naturalizado, quer dizer, um deus
que não age à maneira da decisão livre indiferente a sua vontade.
Em Spinoza, o fato de não existir boa vontade tanto no nível
humano como no divino, não implica que pessoas generosas não possam
ser amigáveis com relação às outras, no sentido pleno da palavra, ainda
que esta amizade não tenha fundação na faculdade inata da vontade livre,
como em Descartes. As últimas proposições da quarta parte da Ética
sobre o homem livre, explicam claramente que a liberdade não tem de ser
necessariamente fundada na autonomia para dispor indiferentemente nossas
volições para sermos eficientes na vida. Na proposição 71, encontramos
todos os ingredientes de uma teoria da generosidade, sem vontade boa e
livre, ainda que Spinoza não empregue o termo “generositas” para este
afeto do homem livre.
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4. Secularização
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dizer, for o objeto duplo da “vida eterna mesma” por um lado, e “a ajuda de
Deus, através da qual podemos esperar alcançá-la.” (Aquinas 1, p.221).
Em Spinoza, podemos também ter um tipo de esperança eminente,
como vimos. Porém, esta esperança, certamente, não pode ser considerada
uma virtude isolada de uma virtude teológica. Podemos esperar “objetos
ruins”, quer dizer, bens ilusórios, enquanto o objeto da esperança eminente
é o mais alto bem real, o qual é o conhecimento amoroso da união da mente
com a natureza inteira. Se existe um segundo objeto desta esperança,
este não é, certamente, a ajuda da Natureza-Deus no nível da substância.
Apenas causas finitas, “homens livres” guiados pela razão, podem nos
ajudar, em primeiro lugar, a obter este estado, o qual pode ser chamado
eternidade da mente, como vimos. Porém, não no sentido de uma pós-vida,
onde devemos experimentar o prazer ‘como uma das dádivas da bem-
aventurança”(Aquinas 1, p.223).
Existe também um aspecto político de distinção da esperança
em Spinoza: em um Estado bem-governado as pessoas observam as leis
do Estado com base na esperança por recompensa como uma espécie de
alegria, a qual pode nos guiar ao Estado de um homem livre que segue as
leis como se fossem sua sponte10, ao ter o prazer necessário sem qualquer
esperança ou necessidade de que lhe sejam dadas recompensas.
Referências bibliográficas:
1. AQUINAS, T. Disputed Questions on the Virtues. Ed. E. M. Atkins & Th. Williams.
Cambridge: CUP, 2005
2. AVERILL, J. R. “Intellectual Emotions”, in: Harré, R., Parrott, W. G. (eds): The
Emotions. Social, Cultural and Biological Dimensions. London: Thousand
Oaks, 1996.
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The secularization of the religious affects in Spinoza’s works: hope and fear, love
and generosity
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NOTAS:
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que parecem acreditar que são livres apenas à medida que lhes é permitido entregarem-
se à licenciosidade e que renunciam a seus direitos se são obrigados a viver conforme
os preceitos da lei divina. Acreditam, assim, que a civilidade e a religiosidade e, em
geral, tudo que está referido a fimeza do ânimo, são fardos de que eles esperam livrar-
se depois da morte, para, então, receber o preço da sua servidão, ou seja, da civilidade
e da religiosidade. E não é apenas por essa esperança, mas também, e sobretudo, pelo
medo de serem punidos, depois da morte, por cruéis suplícios, que eles são levados
a viver, tanto quanto o permitem sua fraqueza e seu ânimo impotente, conforme os
preceitos da lei divina. Se os homens não tivessem essa esperança e esse medo, e
acreditassem, em vez disso, que as mentes morrem juntamente com o corpo, e que não
está destinada, aos infelizes esgotados pelo fardo da civilidade uma outra vida, além
desta, eles voltariam a sua maneira de viver, preferindo entregar-se a licenciosidade e
obedecer ao acaso e não a si mesmos”.
5. “Todas as ações que seguem dos afetos referidos à Mente enquanto intelige eu
refiro à Fortaleza, que distingo em Firmeza e Generosidade. Pois por Firmeza entendo
o Desejo pelo qual cada um se esforça para conservar seu ser pelo só ditame da razão.
Por Generosidade entendo o Desejo pelo qual cada um se esforça para favorecer os
outros homens e uni-los a si por amizade pelo só ditame da razão.”
6. Quanto ao tratamento do amor por parte de Descartes ver Boros 3.
7. Talvez não seja inapropriado lembrar, neste ponto, que Alexandre Matheron
desenvolveu uma reconstrução evolucionista do conceito spinozista da gênese de um
estado, precisamente ao longo destas linhas, baseado no Tratado Político de Spinoza,
contra aqueles que sustentam que Spinoza seja um filósofo contratualista. Podemos
encontrar esta análise em Matheron 9, p. 258-270.
8. Note que a expressão “bem-aventurança” (beatitudo) atesta o encadeamento da
moralidade e da (reinterpretada) religião, que equivale a prover ambos de um caráter
“secularizado”.
9. “quando elevamos nosso espírito para considerá-lo tal qual ele é [o verdadeiro
objeto do amor, que é a perfeição], encontramos a nós mesmos naturalmente tão
inclinados para amá-lo, que tiramos a alegria mesmo de nossas aflições, ao pensar que
sua vontade se realiza nisto que as recebemos.”
10. De seu próprio movimento ou vontade (N.T.).
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HERMENÊUTICA E PLURALISMO SUBJETIVO:
O FUNDAMENTO DA LIBERDADE NO PENSAMENTO DE
ESPINOSA
Resumo: Este trabalho tem como propósito central expor uma das aspirações mais
caras à filosofia de Espinosa: a liberação da faculdade de julgar, tanto como perspectiva
hermenêutica como em seu significado político. A partir deste conceito, pretende-
se reconstruir alguns tramos do programa do filósofo, sempre enfático a respeito da
liberdade, tanto no âmbito ético como no político, e os diversos significados que esta
tem em sua obra. Há uma liberdade concebida sub specie aeternitatis e uma liberdade
sub specie durationis? A questão leva a estabelecer a relação que este filósofo tem
com as coisas do mundo político, sempre movido a partir de paixões e interesses
e, frequentemente, afastado de um sentido virtuoso da liberdade. Sem abandonar
as aspirações de um sentido superior da liberdade, o autor sustenta que Espinosa se
propõe examinar o problema da liberdade em um contexto no qual há mais prejuízos
que idéias adequadas, mais temores que esperanças, mais superstição que sabedoria.
Palavras-chave: liberdade, hermenêutica bíblica, faculdade de julgar.
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em toda parte os homens. Não creio, além disso, que valha a pena mostrar
aqui que as flutuações de ânimo que nascem da esperança e do medo, já
que da só definição destes afetos se segue que não se tem esperança sem
medo nem medo sem esperança (como explicaremos mais amplamente em
seu lugar); e porque, do mais, na medida em que esperamos ou tememos
algo, o amamos ou odiamos” (Espinosa 2, III, P50, esc., p.159). De sua
parte, as primeiras palavras do Tratado teológico-político partem com a
mesma determinação a criticar as origens da superstição: “Se todos os
homens pudessem conduzir todos os seus assuntos segundo um critério
firme, ou se a fortuna lhes fosse sempre favorável, nunca seriam vítimas da
superstição” (Espinosa 3, prefácio, p.61). Ora, essas formulações têm um
vazio específico: a imagem puramente exterior de Deus que se traduz em
uma fonte de concepções distorcidas sobre sua natureza. Os enclaves a partir
dos quais se propõe estudar a imagem externa das religiões tradicionais são
os cultos e as cerimônias instituídas pelos regimes teocráticos aos quais
aludem as histórias bíblicas; porém, nesta reconstrução das circunstâncias
histórico-hermenêuticas da Bíblia, não encontra um mero propósito erudito.
As formas da idolatria e de superstição que estuda estão submetidas à
exigência de expor todas aquelas práticas que criaram os prejuízos que
limitam as liberdades subjetivas na nascente modernidade.5 A hermenêutica
espinosana não apenas assume uma função crítica a partir da qual destrói
o continuum entre poder e fé: se desenvolve a partir da necessidade de
explicar a liberdade em suas origens mais impuras, contudo igualmente
mais incontestáveis; interpretar é um direito do qual não se pode declinar
a favor da autoridade. Isso vale tanto para o filósofo que propõe a si a livre
indagação como para o ignorante que imagina a natureza das coisas.
O filósofo de Amsterdã está longe de pretender que as religiões
desapareçam do mapa dos afetos humanos; em todo caso, sua tentativa está
orientada a despojar as religiões da superstição, pois uma crítica ilustrada
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etapa transitória para a cidade; inclusive se pode dizer que esta tese reforça
com maior veemência a alegação espinosana a favor da liberdade: se as
paixões justificam imperiosamente a liberdade, com maior determinação
podem-no fazer a virtude e a razão.
3. Alfakhar ou Maimônides
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social; tais são os diversos registros aos quais Espinosa remete cada um
dos episódios de sua redação. O ordenamento e a depuração do cânone
bíblico instituído pelos diversos concílios negligenciaram a miscelânea de
suas múltiplas intervenções, perspectivas de predicação e circunstâncias
políticas e povos aos quais foi transmitido seu conteúdo; isso exige, na
perspectiva espinosana, estabelecer os domínios aos quais pertencem seus
diversos componentes. Para Espinosa as Escrituras não são sagradas por si
mesmas, senão pela virtude que despertam. Daí que a idolatria à letra seja
uma de suas mais fulminantes críticas: adorar à letra acabou por distrair da
determinação de perseguir da melhor forma seu espírito. Quem corrompe
a palavra de Deus? O homem de fé que prescinde das obras ou aquele que
obra virtuosamente ainda que não tenha fé? Moisés mesmo se encarregou
de romper com as tábuas da lei quando estas se haviam convertido em letra
morta e seu povo havia retomado a idolatria prévia, quando deixaram de
ser o testemunho da aliança. Daí que elas não tenham um significado em
si, apenas que as ações delas derivadas possam submeter-se ao juízo de
piedade ou impiedade. Para Espinosa, são as ações que podem ser julgadas
como profanas ou sagradas, não as crenças. A crítica bíblica espinosana se
endereça a reconstruir chaves para ordenar o processo de criação textual
a que correspondem seus dois grandes segmentos. O caráter sagrado das
Escrituras já não repousa em seu autor, senão nas obras às que chamam
seus ensinamentos. A Ética apresenta de uma maneira mais incisiva esta
crítica à imagem mosaica de Deus, no mesmo sentido em que o Tratado
teológico-político sustenta que “uma coisa é compreender a Escritura e a
mente dos profetas e outra compreender a mente de Deus, quer dizer, a
verdade mesma da coisa.” (Espinosa 3, XII, ii, p.295) Assim, pois, esse
tratado não se propõe a conhecer a natureza de Deus senão a organização
interna das Escrituras e sua difusão como normas de vida.
As chaves tipológicas das Escrituras podem ser classificados em
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5. A lógica da ilusão
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interpretação.
Na medida em que a exegese das Escrituras está dirigida a mostrar
que o Estado não perde estabilidade negando-se a interferir no campo dos
direitos subjetivos, Espinosa arremata essas exposições sustentando que a
substância fundamental da coisa pública é a liberdade. Não conclui que o
exercício dos direitos com os quais a natureza dota os indivíduos seja um
motivo para as rupturas na ordem social; os direitos subjetivos são um bem
soberano: no campo da vida social, igualmente ao campo da vida ética,
tudo o que é virtude tende à afirmação e à fundação instituinte. A liberdade
edifica mais do que quebranta. A paz não pode estar assentada sobre a
submissão das consciências, sim sobre o reconhecimento de que todas as
formas de culto têm lugar na cidade. Nas primeiras páginas do Tratado
Teológico-político fala-se da liberdade como uma espécie de concessão;
sabemos que Espinosa não a assume, em última instância, como uma
mera forma de capitular em suas atribuições. A tese mais radical sobre a
natureza da liberdade está colocada em função da impossibilidade que tem
o Estado para controlar todas as coisas relativas à consciência: a gratuidade
da liberdade não pode deslindar-se de uma concepção sobre os limites da
autoridade e dos direitos dos indivíduos. Não é uma concessão senão uma
condição natural no homem. O filósofo acaba por concluir que em matéria
de liberdade não apenas não é possível não concedê-la como, mais ainda,
é perigoso que se assuma como poder que pode limitá-la: o preço dessa
limitação é a paz.12 A realização da liberdade como ratio última do Estado
consiste, em primeiro lugar, em renunciar à pretensão de delimitá-la; em
segundo lugar, consistiria em promover ativamente todos os meios ilustrados
para conquistar uma liberdade que amadureça como fruto da razão. Em
relação à primeira fase da liberdade, o processo é acompanhado pela
tolerância; a segunda fórmula se desdobre a partir da virtude republicana.
Seja por uma visão ativa, seja por um exercício passivo, a liberdade é o
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de julgar como um poder do qual está dotado todo indivíduo, uma vis
nativa que constitui o espaço subjetivo de todo indivíduo. Remete-se à
ordem daquelas coisas irrenunciáveis que são constitutivas de cada um,
não uma simples atividade assessória daquela que se pode transferir como
se fosse uma letra de câmbio endossável. A faculdade de julgar, ativa ou
passivamente, está presente em todos os homens, ainda que não esteja
disciplinada por nenhuma espécie de método; trata-se de um nicho no
qual não há nenhuma autoridade que esteja por cima dos indivíduos. Essa
faculdade, pela qual cada indivíduo pode submeter a seu próprio critério
as coisas sagradas e profanas, é a expressão mesma da liberdade: essa
liberdade não lhe acontece, nem é recebida do exterior, não é concedida e
não se priva, daí a inutilidade de legislá-la, limitá-la ou invalidá-la. Está
antes e depois do poder, daí que o Estado que renuncia a pontificar seja o
menos violento. Permanece inalterável; permanece aí mesmo que não seja
consentida por um poder arbitrário; permanece por cima das duas formas
de debilitá-la, o temor e a esperança. Constituindo-se como um limite
para o poder, a faculdade de julgar cumpre com uma tarefa da natureza
humana, a de pensar além dos constrangimentos e dos limites externos
violentos. Inclusive nas condições mais precárias de sua existência, acaba
por se confirmar como uma esfera que está por cima de todo poder. A
racionalidade tampouco pode entender-se como uma “propriedade do
príncipe”, por exemplo, o filósofo-rei de Platão, salvo na racionalidade
do pacto social. A partir disso é questionado o princípio da autoridade:
a “verdade” não é propriedade da autoridade (filosófica ou política, ou
as duas juntas como queria Platão), sim uma propriedade da razão. Esse
projeto da modernidade não apenas consistiu em levar à sua maior crise os
princípios lógico-argumentativos do aristotelismo, como também à crítica
de seu conceito mesmo de sociedade política. A liberdade de pensar deve
ser colocada como um intento de subtrair esta do princípio de autoridade
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e como algo alheio aos fins da ação da cidade. Não apenas se trata de
um impedimento da cidade como de um limite positivo ao conteúdo de
sua ação. Seu significado é, como já indicamos, ambíguo. Se estivesse no
poder do Estado o controle da consciência, não só seria legítimo como seria
um imperativo; porém o Estado não pode fazê-lo e por isso não tem direito
a isso. Por essa razão a liberdade de pensar não pode ser entendida como
uma concessão do Estado a seus associados, sim como um limite. Espinosa
sabia que nenhum Estado democraticamente constituído pode ser lesionado
pelas palavras. A violência ou a moderação frente à faculdade de julgar
proporcionava o critério mais forte para delimitar uma ordem concebida
a partir do respeito à liberdade mais fundamental da natureza humana. A
moderação, que é a forma de virtude política mais elogiada pelos modernos,
está dirigida fundamentalmente para o respeito de todos aqueles direitos
dos quais está investida a natureza humana e que constituem os limites da
intervenção do poder. Moderação é moderação frente às palavras e juízos
dos indivíduos. Apesar de ser possível usar o poder para fins contrários
à utilidade pública, Espinosa não menosprezou o valor que possuem os
limites para seu exercício, pois se trata, antes de tudo, de um imperativo
para os que detêm o poder e para os cidadãos que exercem um direito. Não é
que Espinosa sustente que a faculdade de julgar não tem limites, apenas que
esta não pode ser eliminada. A moderação não está prescrita em nenhuma
lei; pertence ao âmbito das coisas que correspondem ser guiadas pelo bom
sentido. Tanto os tiranos como o vulgo são extremamente perigosos para a
liberdade: a soberba para mandar e a humildade para obedecer se sustentam
em posições que estão acima de toda prudência. O vulgo não exerce como
tal a faculdade de julgar, apenas sua vontade de maravilhar-se no insólito;
os tiranos exercem o poder violentamente pretendendo sujeitar ao poder
coisas que estão acima de seu alcance. À força do bom juízo, Espinosa
quer que o vulgo não seja mais vulgo e que os tiranos deixem de sê-lo;
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O direito natural é o que pode e deve governar as questões de
consciência; os atos, por sua parte, são governados pelo direito positivo,
pois os fatos que se apresentam como infratores no marco da vida social
são objeto da justiça. Os limites do direito natural são ilimitados: abrange
todas as liberdades que, por meio da razão ou da imaginação, se desdobrem
na ordem da subjetividade. Em troca, os atributos do direito positivo são
tangíveis, pois tipificam os atos como algo que está dentro ou fora da lei.
O juiz que tutela as liberdades da consciência é, em cada caso, o próprio
indivíduo que pensa ou imagina. Ao direito natural não corresponde fazer o
discernimento entre o bom e o mau em matéria intelectual; um pensamento
que expressa a potencia de pensar e outro que corresponde à potência da
imaginação não estão em poder de nenhuma autoridade: essa distinção é
uma tarefa para o método.
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Referências bibliográficas:
Abstract: The main aim in this paper is to expose one of the greatest aspirations
of Spinoza’s philosophy: the liberation of the faculty to judge as hermeneutic
perspective as well as in its political sense. Taking this concept as starting point, our
aim is to reconstruct some of the interstices of the philosopher’s program, who is
always emphatic with regard to the freedom in ethical and political ambit, as well as
to reconstitute the several senses that this concept has in his work. Is there a freedom
that is sub specie aeternitatis conceived and another that is sub specie durationis?
This question leads us to establish the relation that this philosopher has to the political
world’s things, which he always thinks in terms of passions and interests, excluding
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NOTAS:
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que propomos fazer sobre Espinosa se orienta em sentido diverso à que formulam
tanto Leo Strauss como Gadamer em sua exposição sobre esta crítica na Ilustração:
a liberdade tem sua expressão mais virtuosa na superação do prejuízo. No entanto,
não se pode ignorar que Espinosa é também um filósofo que se propõe explicar a
liberdade antes da conquista da razão. A liberdade não surge com a razão: é um direito
natural. Por isso mesmo, entende todos os indivíduos como dotados pela natureza
dessa condição original; a liberdade é uma conquista virtuosa da razão, contudo é uma
condição da qual nasce dotado todo homem. A liberdade existe apesar do prejuízo e da
superstição, não porque se as eliminou.
6. “Aqueles que não sabem separar a filosofia da teologia discutem se a Escritura deve
ser escrava da razão ou, ao contrário, a razão da Escritura. Este último é defendido
pelos céticos, que negam a certeza da razão; o primeiro, em troca, pelos dogmáticos”.
(Espinosa 3, p.320).
7. Maimônides representa o casamento entre Atenas e Jerusalém, Segundo uma
afortunada expressão de Daniel Jeremy Silver (10, p.1). Esse matrimônio desaprovado
por Espinosa, surgido da atmosfera tolerante e aberta do judaísmo arraigado na Espanha
do séc. XIII, é uma das causas da tendência especulativa dentro das igrejas. Aqui a
crítica vale para Maimônides, porém igualmente para qualquer doutor de qualquer
igreja. Maimônides não precisa ser apresentado de uma maneira detalhada nas grandes
tradições exegéticas do judaísmo, pois qualquer livro relativamente importante o
registra. Em troca, Alfakhar requereria um maior credenciamento, contudo não o tem
ou é difícil de rastrear. Maurice R. Hayon e sua L’exégese philosophique dans le
judaisme medieval não o faz nem uma vez.
8. “Antes da vinda de Cristo, os profetas costumavam predicar a religião como a lei
da pátria e em virtude da aliança feita no tempo de Moisés; em troca, depois da vinda
de Cristo, os apóstolos predicaram todos como lei universal e em virtude apenas da
paixão de Cristo.” (Espinosa 3, XII, ii, p. 295).
9. Alexandre Matheron insistiu sobre esse ponto em Le Christ et le salut des ignorants
chez Spinoza: “Ora, Cristo ensina ex cathedra o dogma da salvação dos ignorantes” (9,
p.250). Posteriormente se pergunta “quais consequências se pode inferir daí? Parece
que só uma, extremamente vaga: Cristo haveria ido demasiado longe no conhecimento
de terceiro gênero” (9, p. 251).
10. Um dos mestres do liberalismo, Isaiah Berlin, justifica o pluralismo a partir da
pertinência da filosofia política. O totalitarismo se refugia na presunção a partir da qual
se declara, como objeto da ação política, um fim soberano, absoluto, incontroverso. A
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pertinência da filosofia radica em que, até agora, a ciência não disse a última palavra
sobre quais são esses fins últimos; portanto, corresponde a uma visão plural das coisas
seguir explorando esses fins divergentes; a pretensão de que um regime é possuidor
objetivo da justiça, ou de qualquer outro valor, conduz a ficções que servem para
justificar o terror: “...a crença em tais ficções se atribui psicologicamente ao medo da
liberdade – a ser abandonado por suas próprias forças; terror que conduz à aceitação
acrítica de sistemas que pretendem possuir autoridade objetiva de espúrias cosmologias
teológicas ou metafísicas que se ergueram como garantias da eterna validez de regras
e princípios morais e intelectuais” (Berlin 1, p. 253). O precedente mais claro dessa
primeira parte da formulação radica na obra de Espinosa; só que, em Espinosa, se
professa a ideia de que a razão comporta um sentido absoluto do que seria o bem para
uma comunidade política.
11. Em um mesmo teor argumentativo, Espinosa arremete contra os prejuízos gerados
pelas ilusões da vontade nascida da imaginação: “Será suficiente que se tome por
fundamento aquilo que todos devem reconhecer, a saber, que todos os homens nascem
ignorantes das causas das coisas e que todos têm apetite de buscar sua utilidade e são
conscientes disso. Pois disso se segue: 1) que todos os homens opinam que são livres,
porque são conscientes de suas volições e de seu apetite, e nem por sonhos pensam
nas causas pelas quais estão inclinados a apetecer e a querer, posto que as ignoram.
Se segue: 2) que os homens fazem tudo por um fim, quer dizer, pela utilidade de que
apetecem” (Espinosa 2, I, apêndice, p.68).
12. Evidentemente Espinosa toma como processos correlatos a liberdade e a paz. O
TTP defende com maior vigor o valor da paz; porém, com igual veemência sustenta
o TP (Espinosa 4, p. 119), que a paz é uma das razões pelas quais se forma parte de
uma comunidade política: “Qualquer que seja a constituição de um Estado qualquer,
se deduz facilmente a finalidade do estado político, que não é outra que a da paz e da
segurança da vida. Aquele Estado é, portanto, o melhor, no qual os direitos comuns se
mantêm ilesos.” O irenismo de Espinosa não se coloca como fundamento da paz pela
liberdade e vice-versa: uma paz que não suponha a liberdade é tirania; uma liberdade
que não suponha a paz é estado de natureza.
13. Espinosa não aspira somente construir uma “sociedade de sábios” que vivam
isolados dos ignorantes: aspira a que as paixões dos ignorantes não determinem o
rumo do Estado (Espinosa 3, prefácio, p.8). Inclusive eles têm o direito de existir
sob a proteção do direito da república. Porém não menor é o direito dos homens
racionais ao livre exame de todas as questões do pensamento. Não somente deve
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A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA EM
BENEDICTUS DE SPINOZA*
Resumo: Spinoza concebe a natureza humana em sua obra Ethica como constituída
por modos de dois dos infinitos atributos de Deus, o pensamento e a extensão, ou a ideia
e seu objeto, o corpo, respectivamente. A mente humana, enquanto essencialmente
uma ideia, e o objeto desta ideia, o corpo, pressupõe uma relação não causal entre
um modo finito do atributo pensamento e do atributo extensão. O corpo, enquanto
certa relação composta ou complexa de movimento e de repouso se mantém através
de todas as mudanças que afetam suas partes, está continuamente sujeito ao acaso dos
encontros (occursus), ou ao impacto dos múltiplos e variados corpos a sua volta. A
mente reflete estes encontros e através deles, ou das afecções corporais, conhece os
corpos externos. É a ideia-afecção. É o conhecimento imaginativo, ou o conhecimento
condicionado pela situação de nosso próprio corpo, por nosso temperamento, nossa
experiência prévia e nossos preconceitos.
Palavras-chave: Spinoza. Ethica. Natureza humana. Mente. Corpo.
Introdução
* Este texto é uma versão modificada e ampliada de nossa Palestra apresentada no Colóquio Natureza e
Linguagem, realizado no período de 12 a 14 de setembro de 2006, na Universidade Federal do ceará – UFC.
** Universidade Estadual do Ceará - UECE
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Cadernos Espinosanos XXI
corpo, que seria por sua vez, comandado por ela. Para Spinoza, a alma, ou
melhor, a mente1, é apenas a ideia do corpo. E este é um objeto realmente
existente, ou seja, um modo do atributo extensão; e aquela, um modo do
atributo pensamento. As relações entre estes modos não se dão num plano
hierárquico ou causal, sendo somente possíveis graças ao que Spinoza vai
denominar Paralelismo. Utilizando a Ética, obra culminante de Spinoza,
elaborada por ele durante décadas e diversas vezes revisada, procederemos
a uma análise desta relação entre a mente e o corpo, ou seja, daquilo que
em Spinoza pode-se denominar de natureza humana.
1. A natureza humana
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pode ser deduzido do outro, ainda que existam infinitos atributos, segue-se
que só podemos conhecer dois dos atributos divinos: o atributo extensão e
o atributo pensamento. Donde, a natureza do homem só pode ser definida
como modos destes dois atributos. Ora, pelo axioma 2, citado acima, “O
homem pensa.”, segue-se então que ele é constituído por um modo do
atributo pensamento: a ideia, pois, de todos estes modos é por natureza o
primeiro e, sendo ela dada, os outros modos, aos quais ela é anterior, devem
existir no mesmo indivíduo. Portanto, uma ideia é o que primeiramente
constitui o ser atual da mente [mens] humana (Spinoza 1, E2P11D). Mas
esta ideia não pode ser a ideia de algo que não existe realmente, pois neste
caso a mente não seria uma ideia real, seria uma quimera ou um mero nada.
Resultando que, se a mente do homem é uma ideia, ela necessariamente é
uma ideia de algo que existe realmente (Spinoza 1, E2P11D).
Neste ponto, intervêm os axiomas citados acima, o axioma 4:
“Sentimos que um certo corpo é afetado de muitas maneiras.” e o axioma
5: “Não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além dos
corpos e dos modos do pensar.”. Pelo primeiro, segue-se que as ideias de
afecções de nossa mente necessariamente são de um certo corpo ou de
um certo modo do atributo extensão; pelo segundo, segue-se a exclusão
da possibilidade de qualquer outra coisa além do corpo ser o objeto da
mente, ou seja, se a mente humana é uma ideia, se nós sentimos que um
determinado corpo possa ser afetado e nós não sentimos nada além dos
corpos e dos modos do pensar, então a mente do homem é uma ideia ou de
um corpo determinado ou de um modo do pensamento. Ora, fora da ideia
como modificação do pensamento, ou ideia que implica o conhecimento do
seu objeto, nós não percebemos nada além dos corpos. Portanto, a mente
humana é essencialmente uma ideia, e o objeto que constitui a mente
humana é o corpo, isto é, um modo definido da extensão, existente em ato,
e nenhuma outra coisa (Spinoza 1, E2P13D)5.
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1.3 O Paralelismo
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uma ideia, pois Deus forma uma ideia da sua essência e de tudo o que dela
resulta. Considerado sob o aspecto das ideias e dos corpos, este paralelismo
se desdobra num caso particular: o paralelismo psico-físico 6.
O segundo paralelismo ou paralelismo ontológico está expresso
no escólio da proposição 7, da Parte 2 da Ética; este é o paralelismo que
se estabelece entre os modos de todos os atributos, modos estes que não se
distinguem senão pelos atributos, ou seja, uma só e mesma modificação é
exprimida por todos os modos correspondentes que diferem pelo atributo,
ou seja, os modos de todos os atributos expressam, nos seus respectivos
gêneros, uma única modificação da substância, à semelhança dos atributos
distintos que expressam uma única substância.
Martial Gueroult por sua vez, vai distinguir o paralelismo
epistemológico em dois tipos: o paralelismo extracogitativo e o paralelismo
intracogitativo. O primeiro ou o paralelismo extracogitativo é “A ideia
considerada como essência objetiva ou representação de uma coisa
diferente de um modo do pensamento.” (Gueroult 8, p. 70, grifo do autor),
ou seja, este paralelismo é dotado de função representativa, pois se dá
entre as ideias e os modos dos outros atributos não mentais. Este tipo de
paralelismo é o fundamento da correspondência entre a ideia e o seu objeto
e explica a necessidade desta relação de correspondência entre a ideia e o
seu objeto, garantindo assim que toda ideia tenha seu objeto. O segundo
ou o paralelismo intracogitativo, se dá no interior do próprio atributo
pensamento de duas formas: (1) entre a ordem e a conexão das ideias e
a ordem e a conexão das causas no interior do atributo pensamento; e (2)
entre a ordem e a conexão das ideias e a ordem e a conexão das ideias das
ideias.
À primeira forma do paralelismo intracogitativo corresponde a
ideia, enquanto “[...] considerada como essência formal (ou ser formal),
modo do pensamento, causa compreendida na cadeia infinita de causas
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Conclusão
Referências Bibliográficas:
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Escuta, 2002.
5. DELBOS, Victor. Le Problème Moral dans la Philosophie de Spinoza et dans
l’Histoire du Spinozisme. Paris: Felix Alcan, 1893. Réimpr. Georg Olms,
1988.
6. ___________. O Espinosismo: Curso proferido na Sorbonne em 1912-1913.
Tradução de Homero Silveira Santiago. São Paulo: Discurso, 2002.
7. DELEUZE, Gilles. Spinoza et le Problème de l’Expression. Paris: Éditions de
Minuit, 1985. (Arguments).
8. GUEROULT, Martial. Spinoza. v. 2 (L’Âme). Paris: Aubier-Montaigne, 1997.
(Analyse et Raisons).
NOTAS:
1. Spinoza utiliza o termo latino Mens. Optamos por utilizar em português o termo
Mente.
2. Para as citações internas da Ética indicaremos a parte citada em algarismos
arábicos, seguida da letra correspondente para indicar as definições (Def), axiomas
(Ax), proposições (P), prefácios (Pref), corolários (C), escólios (S) e Apêndice (Ap),
com seus respectivos números.
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A PRESENÇA DO MÉTODO NAS DEFINIÇÕES INICIAIS DA
PARTE II DA ÉTICA DE ESPINOSA
Resumo: Espinosa começa a sua Ética com uma série de definições, em virtude
do modelo geométrico de raciocínio que ele incorpora sistematicamente à filosofia.
Assim, os comentadores analisam minuciosamente o conjunto das definições que
abrem a Primeira Parte, mostrando que elas cumprem de maneira exemplar a exigência
do método. Já na Segunda Parte da Ética, os mesmos comentadores manifestam
dificuldade em reconhecer fidelidade irrestrita ao método. Porém, trata-se de uma
dificuldade aparente. Este artigo enfoca as definições iniciais da parte II da Ética,
tendo por objetivo explicitar que elas se relacionam entre si de acordo com uma
disposição formal precisa. Portanto, elas são escritas conforme o modelo matemático
de raciocínio que Espinosa segue desde o começo da Ética.
Palavras-chave: Espinosa, Ética, definições, corpo, mente.
* Professor da UFPB
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Nas outras partes da Ética (exceto a última, que já não traz definições
no começo), pode-se supor que as definições também se relacionam umas
com as outras de maneira precisa e, tomados em conjunto, formam um
todo. Somente notando esse seu caráter sistemático é que percebemos a
importância do papel delas no desenvolvimento das respectivas partes
de que constituem o começo. Porém, às vezes parece que Espinosa não
está muito preocupado em conferir tal unidade às definições. Na segunda
parte, por exemplo, o esboço inicial traçado pelo conjunto de definições
parece não ser tão rigoroso pelo ponto de vista metodológico, e também
não tão importante em termos de conteúdo. O leitor pode encontrar boas
justificativas para essa descontinuidade, se tiver em conta o conteúdo
particular que Espinosa submete a exame na parte II. Todavia, semelhantes
justificativas também podem obstruir a descoberta de uma conexão mais
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parte I, justamente, que Espinosa demonstra ser Deus a causa eficiente não
apenas da existência das coisas, mas também de sua essência. Com efeito,
se todas as coisas particulares são modificações da substância única, elas o
são enquanto existência e essência particulares. Um corpo é uma essência
singular expressiva.
Na terceira definição parece que Espinosa adota uma perspectiva
inversa, numa espécie de oposição dualista entre corpo e mente. Pois, se
a noção de essência se segue à definição de corpo, a definição de idéia se
segue da noção de mente, a qual, por sua vez, não é definida. A mente,
não sendo propriamente definida, aparece como “sujeito que tem idéias”.
Pela terceira definição só, não se percebe como a mente estaria articulada
no processo contínuo de causalidade das coisas finitas a partir do ser
infinito, como é o caso da definição de corpo. Deveras, não há de ser
apropriado dar uma definição particular de mente, devido ao fato de se
correr o risco de supô-la como um sujeito isolado e, assim, separada do
mundo e livre das afecções corpóreas, tê-la como capaz de formar as idéias
adequadas.6 Mas, conforme a nossa sugestão de leitura, a terceira definição
de maneira alguma deve ser considerada à parte, e sim, articula-se com
as demais. A mente não é definida porque, no delineamento matemático
das quatro definições, ela é como que o termo incógnito – x – que se
deduz a partir das relações de proporcionalidade entre os outros termos
definidos. A mente não tem uma definição. Ela figura imediatamente no
conjunto de definições, de modo que se precise deduzir delas isso o que a
mente efetivamente é. Por motivos idênticos, o axioma “o homem pensa”
aparece como uma verdade de fato ou um ensinamento da experiência (cf.
o comentário de GUÉROULT 2, p.31 acerca do segundo axioma da parte
II da Ética). É com ela que o homem aparece como dado na existência.
Assumi-la como um primeiro princípio para, a partir dele, deduzir outras
verdades implicaria em fazer dela uma hipóstase e, consequentemente,
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verdadeira e a mente que assim a percebe. Não havendo para a mente uma
definição particular, ela figura como um t ermo que se define perfeitamente
no quadro de relações que as definições constituem em conjunto. Portanto,
também ali se reconhece o modelo matemático de que Espinosa se utiliza
para conduzir ao conhecimento da mente humana.
Referências bibliográficas:
The presence of the method in the initial definitions of part II of Spinoza’s Ethics
Abstract: Spinoza begins his Ethics with a series of definitions, because of the
geometrical model of reasoning, which he incorporates systematically to the philosophy.
So, the commentators analyze meticulously the assembly of definitions that open the
First Part, showing that they fulfill exemplary the demand of the method. In the
Second Part of the Ethics, on the contrary, the same commentators manifest difficulty
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NOTAS:
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O TEMPO DAS PARTES. TEMPORALIDADE E
PERSPECTIVA EM ESPINOSA
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Referências bibliográficas:
Abstract: Spinozism has been frequently associated with the image of the circle, as
an allusive metaphor of an atemporal being and an eternal knowledge. Concretely,
Hegel used this association to celebrate Spinoza’s conception of infinity in act; and
he interpreted the geometric illustration of Letter 12 in the terms of that connection
between true infinity and circularity. In the present work, we question that reading,
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Mariana de Gainza
and we use Spinoza’s example of the non-concentric circles to thematize his special
conception of determination and limit. Through the ontological comprehension of
finite things as singular durations, it is possible to understand in what sense “time” is,
for Spinoza, an imaginary reality which has its own effectiveness.
Keywords: positive finite – determination – limit – duration – time
NOTAS:
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HEIDEGGER E LEIBNIZ: A ABERTURA DO CONCEITO DE
MÔNADA
Cristiano Bonneau*
* Mestre em Filosofia – UFPB-PB e Professor Assistente de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.
Este texto teve sua apresentação na Jornada “Recepção pela contemporaneidade do pensamento do século
XVII”, em 26 e 27 de maio de 2009, na USP, promovido pelo Grupo de Estudos Espinosanos.
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Referências bibliográficas:
Abstract: This paper handles the heideggerian reflection on the concept of monad in
Leibniz and its determinations. The comments that Heidegger does about the being
from the leibnizian thought promotes a fundamental openness of the monad, bringing
with it, among other consequences, the perspectivism and the idea of the beings as
pulsion. The monad’s ontological limitation and its capacity to move from itself result
in a notion of representation and delimitate the beings’s contours. The aim of this
discussion is to demonstrate the possibilities of comprehension of the conception of
monad taking as starting point Heidegger’s reflections in ‘From the last Marburg
lecture course’.
Keywords: Heidegger, Leibniz, Monad
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O RACIONALISMO CARTESIANO POSTO EM QUESTÃO
Considerações iniciais
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Carlos Eduardo Pereira Oliveira
que essa tese poderia tornar problemático este sistema, o qual, tal como
nos foi legado pela tradição moderna, parece incompatível com um Deus
indiferente.
Antes de analisarmos as questões referentes à indiferença, julgo
importante considerarmos inicialmente o seguinte:
a) O termo racionalismo alude a diferentes posições filosóficas.
Significando, em primeiro lugar, o primado da razão em relação ao
sentimento e à vontade, recebe o nome de intelectualismo, pressupondo
uma hierarquia de valores entre as faculdades psíquicas. Em segundo
lugar, racionalismo pode ser entendido como uma posição segundo a
qual somente a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado e
verdadeiro do real. Por último, pode significar uma posição que considera
a razão a essência do real.
b) Ao racionalismo de Descartes é fundamentalmente necessária
uma garantia transcendente, a fim de que não se instaure no interior do seu
sistema a dissociação entre a racionalidade humana e a estrutura última
da realidade. Todavia, se de um lado Deus é imprescindível à sustentação
deste racionalismo, de outro a concepção segundo a qual à ideia de Deus
convém o atributo da indiferença pode transformar Descartes num autor
irracionalista, destruindo em definitivo o sistema por ele construído. Isto
porque, como veremos adiante, a indiferença expressa que a ação divina
não é motivada por razões de verdade nem de finalidade à maneira da
ação humana, dando margem a uma cisão entre aquilo que a razão acredita
corresponder à realidade e aquilo que é efetivamente a realidade. Ora, se
de um lado é impossível retirar Deus da discussão, posto sua existência
ser necessária ao sistema como um todo, por outro, considerando que
o atributo da indiferença constitui a natureza ou essência divina, o
racionalismo claudica. Dessa maneira, assim como somos impedidos de
admitir Deus sem a indiferença para preservar o racionalismo, igualmente
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A indiferença divina
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“Por exemplo, não é por ter visto que era melhor que o
mundo fosse criado no tempo que desde a eternidade, que
ele quis criá-lo no tempo; e ele não quis que os três ângulos
de um triângulo fossem iguais a dois retos, porque ele
conheceu que isto não se podia fazer de outra maneira, etc.”
(Descartes 1, AT IX, p. 233).
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A onipotência divina
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A incompreensibilidade divina
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Conclusão
Portanto, os argumentos utilizados pelos partidários de um suposto
irracionalismo cartesiano pressupõem equivocadamente uma identidade
entre o conceito cartesiano de criação e aquele cunhado pela filosofia
cristã. Daí considerarem a indiferença divina uma pedra de tropeço para
Descartes.
Apoiados, porém, em relevantes passagens da obra cartesiana,
mostramos que seu autor entende criação de modo diferente do da
tradição e que, levando-se em consideração os conceitos de onipotência
e incompreensibilidade, não apenas é descartado o irracionalismo, mas se
confere à razão toda a eficácia necessária, porquanto tudo o que ela conhece
depende necessariamente da ação divina, totalmente simples e pura. Tudo
indica que Descartes leva a garantia divina a um grau absoluto ao defender
a necessária dependência de todas as coisas do Deus “soberano, eterno,
infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as
coisas que estão fora dele” (Descartes 1, AT IX, p. 32).
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Carlos Eduardo Pereira Oliveira
Referências bibliográficas:
Obras de Descartes:
1. Oeuvres de Descartes. Ed. de C. Adam e P. Tannery. XI vols. Paris: Vrin,
1996.
2 .Tutte le Lettere, 1619-1650. Testo francese, latino e olandese. Org. de Giulia
Belgioioso. Milão: Bompiani, 2005.
Demais obras:
3.BEYSSADE, J-M. Descartes au fil de l’Ordre. Paris: Puf, 2001.
4. CURLEY. E. M. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The
Philosophical Review, vol. XCIII, n. 4. October. New York: 1984.
5. FRANKFURT, H. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The
Philosophical Review, vol. LXXXVI, n 1. January. New York: 1977.
6. GHISALBERTI, A. Guilherme de Ockham. Tradução de Luís A. De Boni. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1997.
Abstract: Due to the resumption of the theory of the creation of the eternal truths,
some interpreters bring to the contemporary international debate a interesting bias
interpretative of Descartes’ thought. According to them, when Descartes presents
the indifference of the will as an attribute of God, he introduces a concept totally
dangerous, from which derives the incompatibility between the Cartesian system and
divine indifference, deflagrating, finally, a radical irrationalism.
Keywords: Descartes. Freedom. Divine Indiference. Racionalism. Irracionalism.
NOTAS:
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divina, nenhuma escolha é feita por Deus. Por conseguinte, a indiferença da vontade
divina exclui o livre-arbítrio.
2. A posição cartesiana acerca da vontade divina pode ser compreendida graças à
supressão desde Ockham dos arquétipos no entendimento divino, conforme os quais
seriam criados os existentes. Tal supressão veio a significar o fim da distinção ou
hierarquia entre as faculdades divinas, surgindo, por conta disso, a tese da unidade
absoluta entre essas faculdades. A Ockham coube pôr um fim definitivo à questão dos
arquétipos, reduzindo-os a entes de razão, não podendo gozar jamais de existência
extramental. Existem apenas as substâncias singulares e criadas imediatamente pela
onipotência divina. Deus as conhece enquanto singulares. A realidade existencial
do singular consiste na existência exterior ao pensamento; coisas como universais,
gêneros e espécies, ideias, essências são reduzidas a nomes. No intelecto humano,
elas existem como conhecimento abstraído de nossa experiência dos particulares.
Desaparecendo as ideias do intelecto divino e os universais nas coisas, desaparece
igualmente a precedência do intelecto à vontade. Ora, se se pensava na conformidade
da vontade ao intelecto, porque neste residiriam as essências exemplares segundo
as quais somente as coisas existentes seriam criadas, agora, com o fim das ideias
arquetípicas e concebida somente a existência real dos indivíduos, Ockham abre um
universo em que nenhuma necessidade inteligível se interpõe, mesmo em Deus, entre
sua essência e suas obras. (Ver Alessandro Ghisalberti, 6 , capítulos III e VII).
3. Cabe ressaltar que depender de Deus é o mesmo que ter sido criado por ele.
Essa é uma observação importante, pois a noção tradicional de criação envolve
necessariamente a contingência, finitude ou cessação da coisa criada. Uma vez que
Descartes coloca o necessário como dependente de Deus, pode-se inferir que tudo é
contingente. Consequentemente, a razão, enquanto conhecedora do necessário, fica
em uma situação um tanto desagradável.
4. Por Exemplo, Curley e Beyssade. Não desenvolveremos a solução apresentada por
esses célebres autores, mas cuidaremos de apresentar uma alternativa à solução do
problema, tendo como núcleo o conceito cartesiano de criação.
5. “Vós me perguntais in quo genere causae Deus disposuit aeternas veritatis [em
que gênero de causa Deus dispôs as verdades eternas]? Eu vos respondo que in eodem
genere causae [pelo mesmo gênero de causalidade] que ele criou todas as coisas, ou
seja, ut efficiens & totalis causa [como causa eficiente e total]” (Descartes 1, AT I,
pp. 151-152).
6. Ver também a carta a Clerselier (Descartes 1, AT IX, pp. 210-211).
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ESPINOSA: UM PENSAMENTO DA ATUALIDADE E DA
CRÍTICA À UTOPIA POLÍTICA
Resumo: Este artigo tenta localizar alguns pontos nos quais pode se embasar a crítica
de Espinosa à filosofia política utópica, esta muitas vezes baseada em uma noção
transcendente de poder. Fazemos isso dando relevo a algumas noções, como a de
experiência e a de indivíduo, além de focalizarmos a importância da noção de conatus
no estabelecimento de uma ontologia da atualidade da natureza humana, na qual,
do ponto de vista cognitivo, conhecimento imaginativo e racional afirmam ambos
a atualidade dessa natureza humana e permitem a proposição de regimes políticos
baseados em tal atualidade.
Palavras-chaves: Política, experiência, utopia, indivíduo, conatus.
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que define o direito natural de cada um, contudo, não escapa a uma outra
tensão, pois essa potência individual é sempre relacional, está em contato
com miríades de outras potências, e o ser sui juris do estado de natureza
passa a ser encarado como sendo “na realidade inexistente” (TPII,15). Por
esse prisma, a regulação racional no que concerne à gênese e manutenção
política passa pela compreensão da interdependência necessária entre
homens guiados hegemonicamente por paixões, principalmente a do
medo.
Temer o quê? A morte, a força do outro e a solidão. Não é senão
pelo próprio mecanismo passional que pode surgir daí um equilíbrio
- melhor formatado, cremos, na democracia – entre as paixões de cada
singular envolvido numa gênese política. Se chamamos a atenção, por
um instante, para a “unidade” do conatus – não é essa unidade em si que
importa, senão o que decorre daí, que seja, a causalidade eficiente que
determina o homem a agir – é porque escolhemos a chave do movimento: a
razão não vai nem dominar nem anular as paixões, não vai ser um ideal de
conquista comum a todos os cidadãos, apenas vai imprimir uma mudança
qualitativa na dinâmica passional, propiciando o concurso entre vários
singulares na formação de uma individualidade específica, o Estado. No
Estado, o medo da morte se ameniza, a desconfiança do outro diminui e
até pode desaparecer e a solidão é extirpada, isso dentro de uma dinâmica
que torna comum as paixões mais determinantes. A interdependência, em
tese, deixa de ser problema e se transforma em solução, porém ainda sem
escapar à tensão passional que pode empurrar cada indivíduo contra o outro
ao mesmo tempo em que os aproxima por meio de paixões e vontades
comuns.
Retornando ao primeiro momento deste texto, a evocação que
Espinosa faz da experiência não serve, em hipótese alguma, para fazer
dela a fonte de cânones políticos, pelo contrário, ela aponta para um
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Cadernos Espinosanos XXI
toda essa realidade natural e põe em movimento aquilo que não poderia
ser pensado senão como fluxo, paixões sobre paixões, como podemos
apreender do fato de que seus modelos de Estado têm como princípio a
atualidade do ser homem, descartando qualquer exemplaridade de cunho
moral e teológico, em suma, descartando, da sciencia politica, qualquer
resquício de transcendentalidade.
O que pode vir a ser um ótimo regime, seja qual sua modalidade,
só o pode a partir daquilo que é, não do que não foi e deveria ser. A própria
pretensão crítica a modos e viveres políticos podem ser bastante enfraquecidos
diante de uma apreensão do que é a partir do que deveria ser, lugar este que
hospeda não uma perspectiva apenas, mas tem em comum a cristalização do
certo e do errado a partir de princípios que não são os da natureza humana
entendida em sua atualidade, antes são o de uma natureza humana idealizada,
que produz homens que deveriam agir e ser de outra forma, que deveriam
conviver e dividir de outra forma. O querer fazer de outra forma, aspecto
tão presente a quem se propõe a desenvolver uma política em Espinosa,
parte sempre da necessidade de sabermos o que somos, conseqüentemente
entender o que queremos, conhecer as determinações de nossos apetites –
e de seu meio – e formular questões e soluções baseadas nessa esfera de
realidade. Por mais que toda vontade de mudança tenha em comum a crítica
ao atual, nem sempre essa noção é unívoca e a rede afetiva que compõe
nossas ações em torno dessa mudança é que pode realmente variar conforme
se parta do que se espera ou do que se sabe. É assim que podemos pensar a
crítica espinosana aos moralistas e utopistas como um plano de tensão, em
cujo solo imanente o “melhor modelo”exige o fim absoluto das dicotomias
relacionadas acima e a compreensão da realidade flexível do homem em
sua veia passional. Não deixa de existir, aqui, a possibilidade da crítica à
atualidade como ela está, justamente porque sabemos, mesmo que de formas
múltiplas e às vezes contraditórias, que o que é é o que permite o que será.
172
Daniel Santos da Silva
Referências bibliográficas:
Spinoza: a think about the actuality and the criticism of the utopian politics
Abstract: This article tries to locate some points in which the Spinoza’s criticism of
the philosophy of utopian politics can be found, philosophy which is very often based
on a transcendent notion of power. We do that giving relief to some notions, like that
of experience and that of individual, besides focusing the importance of the notion of
conatus in the establishment of an ontology of the actuality of the human nature, in
which, from the cognitive point of view, imaginative and rational knowledge affirm
the actuality of this human nature and allow the proposition of political regimes based
on such actuality.
Keywords: Politics, experience, Utopia, individual, conatus
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Cadernos Espinosanos XXI
NOTAS:
174
NOTÍCIAS
DEFESAS DE DOUTORADO
Marcos Ferreira de Paula
Alegria e felicidade. A experiência do processo liberador em Espinosa
Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza Chaui
Data: 28.08.2009
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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
176
CONTENTS
177
Spinoza: a think about the actuality and the criticism of the
utopian politics
Daniel Santos da Silva...............................................................159
INSTRUCTIONS......................................................................................176
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