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Economia política do castigo

Autor: Edson Passetti


publicado em: Jornal Libertários v. 2, São Paulo: Imaginário, 2003, 28 - 29 pp.

A abolição do castigo sempre foi parte do fluxo vibrante da educação

anarquista. Pouco importa aqueles para quem educação seja sinônimo de

instrução. Os anarquistas não são como os comunistas. Eles não querem

somente escolas que instruem, pois o que melhor a escola sabe fazer é ensinar a

obedecer à hierarquia. Ela é parte constitutiva da família burguesa.

Quem ensina a obedecer não descarta duas coisas: castigar fisicamente e

propagar o medo do castigo por meio de ameaças corporais ou superstições.

Obediência, castigo e dominação são três coisas indissociáveis. Por isso mesmo

a pergunta: qual a valia em substituir o governante?

Todos aprendem, bem ou mal, que o Estado moderno é a única

instituição que pode dispor legitimamente do uso da força física, contra

qualquer um que atenta contra ele ou o governo. Contudo, ninguém aprende a

obedecer somente seguindo as ordens das forças que governam o Estado. Num

processo simultâneo, ao lado do Estado, da empresa, dos templos, da

burocracia, do exército, das instituições modernas que exigem obediência ao

superior está a família. Os pais ao exercer os castigos sobre os filhos estão

amparados no direito civil e penal. Mas como todo direito moderno se funda

nas garantias às partes, as crianças e os adolescentes, no Brasil, desde os

Códigos de Menores até chegar ao atual Estatuto da Criança e do Adolescente,

também possuem suas tábuas de ensinamentos que asseguram seus direitos. O

castigo moderno não prescinde do direito para legitimar-se.

O direito funciona como conjunto de deveres a ser cumpridos para que

não se lance mão de penalizações. Não é punindo que o direito mostra sua

eficácia. É pelo uso da ameaça do castigo, sob a forma de lei, de preferência


elaborada democraticamente, que se institui a prevenção geral da sociedade

contra pessoas perigosos. A família, a escola e o Estado garantem que cada

criança e jovem aprendam a obedecer para ter direitos ao direito. Caso contrário,

lhes são destinados os internatos e reformatórios. Aos adultos infratores são

destinadas as prisões, hospícios e seus correlatos. É preciso garantir a ordem!,

esse é o lema a ser seguido e introjetado. Entretanto, por mais que se façam

elogios às eficiências dos castigos e aos direitos, crianças, jovens, mulheres e

anarquistas continuarão a incomodar o Estado moderno, mais do que as

vanguardas artisticas e políticas.

Abolir o castigo, meta dos anarquistas, desde os escritos de Willian

Godwin, no final do século XVIII, na Inglaterra, não é sinônimo de aplicação de

punições aos que nos dominam, hoje ou amanhã, quando a sociedade caminhar

para a anarquia ou regime da liberdade. Max Stirner, no século seguinte,

radicalizou mais. Procurou mostrar que não há e jamais haverá relações

humanas isentas de infração. Portanto, até no interior da associação de

egoístas, forma de existência livre e anti-societal defendida por Stirner, é

impossível deixar de tratar do assunto. Coerente com sua visão anti-

universalista do homem e a ditadura do conceito de sociedade que nos

aprisiona na uniformidade, afirma que o problema do ato infracional encontra-

se colocado, no instante, como acontecimento, a cada membro interessado da

associação. A associação evita matar, confinar ou exilar o infrator; afastando-se

de uma legislação generalizadora. Cada pessoa é única, livre para entrar ou sair

da associação, a qualquer momento; livre para ficar e lidar com problemas,

como os infracionais, sem a segregação ou morte.

Godwin e depois Stirner problematizam o castigo e sua tarefa de

prevenção e correção. Tratam a infração como algo inerente às forças em luta.

Consideram-na problema específico, que diz respeito aos envolvidos, e que


deve ser abordada de maneira única: cada infração envolve pessoas únicas e

resoluções próprias aos implicados. Pessoas livres, como certos anarquistas, não

atuam como agentes da justiça universal. Lidam com os chamados desvios ali

onde eles acontecem. Como nas sociedades primitivas, as associações

anarquistas são antropofágicas. O que acontece no seu interior é resultado das

relações entre essas pessoas e situação-problema que possa lá ocorrer, ali será

equacionada.

Nenhuma lei para todos é, foi ou será justa. Ela sempre beneficia um

segmento superior real (o rei, o príncipe, a aristocracia) ou abstrato (o povo, o

proletariado). Ela é continuidade da dominação e negação da anarquia, um

somatório de palavras ocas destinadas a mentes que precisam de condutores.

Os abolicionistas penais, desde o último quartel do século passado,

apontam para essas práticas sob a forma de situação-problema. Maneira de

lidar, estilo de vida libertário. Não há como pretender abolir o castigo

socialmente sem, antes, livrar-se dele internamente. Portanto, é impossível falar

de abolição do castigo como reforma legal.

Toda reforma é sempre revanche e pretende ser a consciência verdadeira,

seja ela comandada por ditadores, democratas, socialistas ou anarquistas.

Contudo, não se pode recusar a enfrentar a situação em que vivemos na qual,

atualmente, a sociedade clama por mais punição. Do mais pobre ao mais rico; dos

mais ignorantes aos mais esclarecidos; dos mais autoritários aos democratas

juramentados, eles querem que a sociedade seja defendida. Exigem mais

castigos, identificam os perigosos da época, querem se ver livres de ameaças.

Na miséria criada pelo capitalismo, jamais haverá sossego! Por isso os

anarquistas podem fazer mais do que esperar pela justiça no futuro em nome

da vã utopia?
É preciso acabar com as prisões para crianças e jovens! A educação

anarquista não é para ser exercida somente no seu lar, na sua escola, na agitação

política pelas avenidas. Ela tem alvos! A rebeldia não é sinônimo de baderna!

Como baderneiros, muitos de nós foram assim identificados pelos agentes

repressivos do recente regime militar e ditatorial brasileiro. Mas os brasileiros e

os contestadores parecem estar cada vez mais desmemoriados!

O problema das infrações não é de quantidade, qualidade ou valor justo,

assim como as respectivas penas. É de intensidade, e o intenso acontece na vida

de quem sabe que abolir o castigo em suas relações não é inventar um absoluto,

mas um lidar constante com desestabilidades e idiossincrasias. A abolição do

castigo não é uma lei para a futura sociedade igualitária e justa, muito menos

coisa possível aos espíritos mais esclarecidos. Ela ocorre como educação diária a

partir da disposição para abolir a existência do soberano em nossas relações: o

pai, o professor, o líder, o libertador. A abolição do castigo é também abolição

da obediência, da sociedade, do Estado. É afirmação da existência dos amigos

associados, em potência de liberdade.

Mas o mundinho dos esclarecidos é de difícil superação. Ele,

modernamente, se instituíu com base na economia política do castigo. Primeiro

supliciava os corpos daqueles que infracionavam. Depois, sua guinada

humanista, deslocou-se para as prisões, nas quais o infrator deveria aprender a

trabalhar e a ter religião, educando-se para uma futura integração. Começou o

investimento em direito e conhecimento científico sobre a vida de pessoas

perigosas para a sociedade, os pobres, os anarquistas, os delinqüentes. Os

anarquistas não tardaram a responder pela imprensa, já lá século XIX, que a

burguesia jamais teria sido o que é sem antes cada burguês não tivesse sido um

delinqüente. E assim sendo, quem comanda sempre se mostra limpo e faz os

demais aparecerem como ameaçadores, perigosos e sujos.


Os comportamentos criminalizados, desta maneira, nunca são os

mesmos. Dependem das forças atuando sobre as contingências históricas.

Igualmente, as penas de reclusão e detenção, e mais recentemente as

alternativas, aumentam e diminuem. A economia política do castigo, por

conseguinte, depende do leque de comportamentos criminalizáveis e suas

possíveis penas, deriva do grau de defesa da sociedade que está em jogo. Podemos

viver situações ditatoriais nas quais quase tudo é criminalizável, se encena o

julgamento no tribunal e se descamba para a execução sumária e campos de

extermínio. Pode haver outras ocasiões em que se criminaliza mais com penas

menores e momentos de criminalização menor com penas maiores. Ambas são

situações próprias dos regimes democráticos, ainda que estes não se

desvencilhem das execuções sumárias, campos de concentração e extermínio.

Mas a coisa não se esgota por aí. Há também épocas de investidas que

combinam infração e loucura, entendida como doença mental, dando margem

para o crescimento de desvios que levam o infrator para a prisão, o hospício ou

para uma nova instituição repressiva que combina a ambos, como o manicômio

judiciário. Defender a sociedade é, portanto, cuidar de seus corpos e almas

doentes. Os doentes são os outros!

Não existe o crime. Só há infrações e as respectivas histórias de

comportamento criminalizáveis no passado, hoje socialmente aceitos, ou vice-

versa. A lei, entretanto, permanece afirmando a importância da punição às

infrações e a sua própria grandeza como um dispositivo destinado a defender

toda a sociedade, independentemente da origem de cada um, de crimes e

criminosos. Mesmo descumprindo, no cotidiano, sua alegada universalidade, a

lei como punição faz com que muitos creiam que há uma justiça sendo

praticada, que devemos nela confiar para aperfeiçoá-la e que ela é a melhor

solução contra a desordem e o caos.


No capitalismo a pobreza sempre será uma ameaça ao Estado! Dela

procedem as pessoas perigosas. E estas pessoas tidas como agentes de

periculosidades são identificadas como aquelas que não foram corretamente

educadas para obedecer, porque vieram de famílas desestruturadas, com baixo

rendimento escolar, pouca discernimento de regras, etc. e tal. São potenciais

criminosos, não raramente doentes sociais a serem regenerados pelo bom e

atencioso Estado, com suas prisões, internatos, hospícios, penas alternativas,

escolas, políticas sociais e de direitos, e pela sociedade civil, com suas boas e

atenciosas filantropias baseadas em organizações não-governamentais.

Os anarquistas não sabem tudo, não são condutores de rebanho, não se


identificam, não pretendem ter a hegemonia da verdade. Os anarquistas são
pessoas que vivem sua época, contestam-na e enquanto forças diversas, reviram
as instituições e atiçam em busca do seu objeto. Têm um estilo de vida coerente
com uma educação para abolição do castigo. O resto é palavrório emplumado.

Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol


Texto extraido de http://www.nu-sol.org. Acessado em: 20/02/2013.

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