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Ernst Cassirer
Nio ~ como negar que todo o mundo

moderno viveu e vive, ainda ho}t, sob o Impacto

do Século da. Luzes.

A Fbsofa do lIunimmo é uma obrl de um


grande filósofo que procura compreender o
pensamento iluminista na eua profundidade, "na
unidade de sua fonte Int.lectual a do prlncfplo
que a rege", trazendo-nos, assm, seu fescfnlo e
um valor sistemático próprio.
Para Isto, o a~ C.sal,.. (1874-1945) toma
a história da fl~fll não como • dlscus'" de
reaul1ados, fnN como a busca de. forças
crtadoras que "vam • tais reauftados.
procurando fornecer uma " fenorMnoktgla do
.apfrito filosófico".
O. estudos de Casai... sobre • história dos
conceHos clentfflcos e sobre as fonnas
simbólicas na arte, na linguagem, no mito visam
mos_ como se dê • esb'uhnção do mundo
humano. Para ele, o homem pode ser definido
como um animai criador de ,rmbolo•.

2! eDIC'ÃO

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UNlCAMP

1 93
ERNST CASSIRER G.~~gt
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A FILOSOFIA
ij DO ILUMINISMO

Tradução :
Á LV ARO CABRAL

EDITORA DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

UN ICAMP

Rtilor. J~ MIII'tins Filho


Coor<knadorGeralda U~ A.od.rt Vülalobori
COflSt!/ho Editorial Alfredo Miguel Ororio de Almeida,
AntOnio Carlos Bannwart, C6!ar FI'J.DCbço Ciaoco
(PruIiú"u), Eduardo Guimarães, GeraJdo Severo de

~
SOUUl Ávila, Hcrm6gcne3 de Freitas Leltlo Filho, Jayme
Anamos Maciel 14n:ior, Luiz CeMT Marques Filho, Paulo
J0s6 Samenho MornD
DinI<JrE:m:utivo: &luardo Guimar.

M ·bo'é
BIBLIOTECA P•. Inocente R.drizz.ni
F ICH A CATALOGRÁFI CA EL ABORADA PELA
BI6L IOTEC A CENTRAL _ UNICAt-lP

eas.iru. HmM
C273r A fiJoeofll. do iluminiSClo I Erasl C-ira;
2.cd. ttaduçio: Álvaro Cal",.!. -­ 2 .cd. •• Ca.mpi:w,
SP: Edi"nI ciro UNlCAMP, 1994
(Colcçlo Rcpert6riOll)

Tn.duçlo de: me PhHo90phie der aufltlbung.


1. numiDi5DlO - Filosofill.l. TItulo.

SBN 85·l6ll-0232- 1 2O.CDD- 142.1

(odiee pua CIllUogo sislc....:;rieo:


I. lIu ro.inismo-Fi loaoflll 142.7

Coleção Repert6n03

E.~edição 6 publicada por aco:rdo

com a Imprensa da UW VC1'Iidade de Yale.

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C~"SiMaP. Trix&a
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Marco Antonio Slomni


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Korio ih Abn.rido ROSJini
Rosa DaIva V. do~lIfO

Max Cassu er
1994

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Fax:(OI92) 39.3U7
como prova de amor e resr;(·i/<J .

PREFAcIO

A pre.sente obra pretende ser simultaneamente roenos e


mais do que uma monografia sobre a filosofia do ILuminismo.
Em primeiro lugar, menos: tal monografia teria que se im por
como tarefa, expor ante os olhos do leitor toda a riqueza dos
detalhes, acompanhar em suas múltiplas ramificaçôes o nasci­
mento e o desenvolvimento dos diversos peculi ares da filosofia
do Iluminismo. A própria forma da coleção "Grundrisses der
philosophischen Wissenschaften" [Elementos de Ciências Filosó­
ficas1 e os objetivos a que ela se propõe impedem semelhante
empreendimento. No plano geral dos "G rundrisses" [elementos],
não se pode ter em vista o exame e a apresentação exaustiva,
em toda a sua amplitude, dos problemas propostos pela filo so­
fia do Iluminismo. Em vez desse programa extensivo, requer-se
um outro de natureza puramente intensiva. Trata-se de compre­
ender O pensamento iluminista menos em sua amplitude do que
em sua profundidade. de apresentá-lo não na totalidade dos seus
resultados e de suas man ifestações históricas, mas na unidade
de sua fon te intelectual e do princípio que a rege. Não me parec.:
necessário nem possível empreender um relato épico de curso,
desenvolvimento e des1ino da Filcsofia das Luzes; o que se pre­
1
tende, sobretudo, é tornar perco!ptível o movimento imerior que ademais, revelar as forças criadoras por meio das quais C~M: ~
se rea lizou nela e a <.I(,~ão dra mática em que, de certo modo. resultados são intimamente elaborados. Tal método quer forne·
Sl" l pe nsame nto esteve envolvido. Todo o fascínio carac lcr í~ l ico, cer, com o desenvolvimento das dOutrinas e dos sistemas filosó­
todo o va1nr siSlemát)::C' próprio do Iluminismo res idem nesse ficos, lõma " fenomenologia do espírito rilosórico"; quer aoom­
movime nto . .,'0energia d" pensamento que O SUScita e na paixão panhll r. passo a passo, a consciência cadll vez mais lúcida e mais
com que os seus problemas são equacionados. Nessa perspectiva. profunda que ~sse espiri to, mesmo tra tando de problemas obje­
numerosos elementos se integram à sua unidade, os quai s. para tivos, adquire de si mesmo, de. sua natureza e de seu destino_
um Outro método que expusesse pura e simplesmente os resul. de seu caráter e de sua missão. Que me seja permitido realizar
tados . poderiam passar por contradiçõcs in solúveis, por uma um dia uma recapitul ação geral, uma síntese completa de m~ u ..
mistura ec/é tica de temas heterogêneos . Para desvendar sua sig­ estudos anteriores é aigo que não me atrevo mais a esperar e
nificação histórica própria, cumpre interpreta r desde um cent ro ainda menos ouso prome ter. Neste meio tempo, esses estudos
único de perspecti va a suas te nsões e diste nsões, suas dúvidas e permanecerão como meros segmentOs separados, cujo curâter
decisõcs, seu ceticismo e sua fé inq!.lebram áve l.
I
fragmenlário não desconheço mas que , segundo espero , ~ rvirão
ES~<J é a i:ue rpre lação que esta obra vai tentar oferecer. um di a para a conslrução do grande edifíc io quando chegar o
Ela situa a filo sofis. do Ibmínismo no quadro de um mai s vusto momento oportuno.
encadelUTlento hist6rico, o qual não pode, evidentemente, Se r Quanto à fi losofia do Ilumi.nismo. cumpre dizer que ela
aqui desenvolvido mas apenas esboçado em suas linhas geruis. orerece condições bas tante favoráveis a esse gê ne ro de a nálisc.
O movimcmo que nos propomos descrever, longe de estar con­ Os resultados decisivos, verdadeiramente du radouros, que ela
centrado e fechado sobre si mesmo, encontra-se, muito pelo produziu não consistem num conteúdo doutrinai que ela teriu
cont rário, Jigado por múltiplos víncu los ta nto ao futuro quanto rentado e laborar e rixnr dogmaticamente_ E mais do que isso:
ao passado. Ele constitui apenas um ato, uma fase singu lar do a inda que não te nha to mado plena consciência desse rato, a
imenso movi men to de idéias graças ao q ual O moderno pensll­ ~ poca das Luzes perma neceu, no tocuntc ao conteúdo de seu
men ta filosófico adquiriu ti certeza, a segurança de si mcsm{), pensamento. muito de pende nte dos séculos preceden tes. Apro­
o sentimento especifico de si e sua autoconsciência especlfica_ prjou-se da herança desses séculos c ordenou , examinou , sistema­
Expus em ou tros livros, em especial em Indilliduum UM Kosmos tizou , desenvolveu e esclareceu muilO mais do q ue, na verdade,
in der I'hilosophie der RClloissunce (1927) e em Die Plu/onisclle contribuiu com idéias originah:i e sua demonstração. Entretlmto,
Renuissallcl! in Englund (1 93 2), OUlras fases desse vasto movi­ a fi losofia do Iluminismo, apesar de ter adotado a muioria dos
mento, procurando sublinhar a importânc ia das mcsmas. A pre­ seus mate ri ais de oulras fontes e de ter desempenhado, nesse
sente obra faz pélrlC jntegnmte dessa série, tanto por seu obje­ sen tido, um papel 5ubaherno, nem por isso deixou de instituir
tivo quanto por suas perspectivas metodológicas. A filosofia do uma fo rma de pensamento filosófi co pcrfeitumente nova c ori­
J(uminismo, à semelhança das obras acimêl cilUdas. procu ru con­ giml !. AJXXIcra-se de riq ucZits in telectua is já e",istenlcs? Conten­
si derar a hist6rill da filosofia sob uma luz que não tem pOr
tà-se - !.:Orno é visivelmen te o caso no toca nte à imagem do
única finaJid <ldc e~tabe lccc r e desc rever 05 resultados. mas, uni ....erso físico - cm J ar prosseguime ntu li construção sobre os
alicerces já assegurados pelo século XVt1 ? Isso não impede que prontos e acabados para 2. de forças atuantes, da condição de
tudo o que lhe cai nas mãos adquira um Oulro sent ido e abra resultados para a de imperativos. Tal é o sentjdo verdadeira­
um novo horizonte fi los6fico . Na verdade, o que ai temOs não é mente fecundo do pensamento iluminista. Manifesta-se menos
OUlra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movi. por uro conteúdo de pensamen to determinado do que pelo pró­
men ta uni versal do pensamento fi losófico . Na Inglaterra e na prio uso que faz do pensamento rilosófico, pelo lugar que ihe
França, o Humi nismo começa por quebrar O molde obsoleto do confere e pelas tarefas que lhe atribui. O século XVJIl , que se
conhecimento filosófi co, a forma do sistema metafísico. Não auto-intitulou orgulhosamente o "S~u!o da Filosofia" , justificou
acredita mais no privilégio nem na fecundidade do "espírito de essa pretensão na medida em que devol veu d etivamente à filo­
sistema": vê neste não a força mas o obstáculo e o freio da sofia seus direitos originais, em que 8 restabeleceu em sua sig­
razão filosófica. Entretanto, ao abandonar o esprit de systeme, nificação prime;ra, sua significação verdadeiramente "clássica".
no bater-se COntra ele, nem por isso o Iluminismo renuncia ao Deixou de encerrar-se na esfera do pensamento, abriu caminho
spriJ systtmatique. tiO qual pretende, pelo contrário, incutir mais até aquel a o:-dem mais profunda dO!lde jorra , com o pensamento
valor e eficá cia. Em vez de se fechar nos limites de um edifício puro, toda a atividade iotclectual do homem, e onde essa ativi­
doutrinai definitivo, em vez de resll'ingir-se à tarefa de deduzir dade deve encontrar seu alicerce. segundo a convicçõo profunda
verdades da cadeia de axiomas fix ados de lima vez par todas, da fil osofia do Ilumi nismo. Desconhece-se, portanto , o sentido
a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em dessa filosofia se se acredita poder considerá-Ia - e executá-Ia
seu movimento imanente a fonn a fundamental da realidade, for­ _ como simples "filosofia da reflexão" . I! verdade que roi um
ma de toda a exist! ncia , tanto naturAl quanto espi ritual. A file­ pensador Dada menos q ue da estirpe de Hegel o primeiro a en­
sofia já não significa, à maneira dessas novas perspectivas fun­ veredar por esse caminho da critica e que parece tê-lo legitima­
damentais, um dornfnio particular do conhecimento situado & do de uma vez por todas com a autoridade do seu nome. Mas
par ou acima das verdades da física. das ciências jurldicas e encontramos no próprio Hegel uma curiosa retificação, pois o
políticas etc., mas o meio universal onde todas essas verdades julgamento de Hegel como hiSlori ador e filósofo da história di­
formam-se, desenvolvem·se e consolidam-se . Já não está separada verge totalmente do veredicto que a metafísica do mesmo Hegel
dos ciências da natureza, da história, do direitc, da polít ica; nu­ proferiu a respeito do lIuminismo. A Phiinomeno[ogie des Geisles
ma palavra, ela é o SOpro toniricante de todas essas disciplinas, (A fenorr:enologia do espfrito] traça um retrato da época do
a atmosfera fOra da qual nenhuma delas poderia viver. Já não é Iluminismo muito diferente, por sua rique'18 e profundidade,
a subslAncia separada, abstrata, do espfrito: orerece o esprrito daq uele que Hegel costumava esboçar num espírito puramente
como um lodo , em sua verdadeira função, no modo especfrico polêmico. O movimento profundo, o csforço principal da fil o­
de suas investigações e de seus problemas , em seus métodos , no sofia do Ilumin ismo não se limitnm, com efeito, a acompnnhar
próprio Cl1J'SO do saber. Assim é que todos os conceitos e os a vida e a con templá-Ia no espelho da reflexão. Pelo contrário,
problemas, que o século XV III parece ter muito simplesmente ela acredita na espont aneid3de originári a do pensamento e, longe
herdado do passado, deslocaram-se c sofreram uma mudança ca­ de r~t rin gi-Io à tarefa de comentar a posterior; e de refletir,
racledslica de signiricação. Passaram da condição de objetos reconhece-lhe o poder e o papel de organizar a vida. O pensa­
1
menla devI!. sem dúvida, analisar, eXéminar, mas também pro. tuante, em pennonen le rluxo , não poderia reduzi r-se a lima
vocar, fazer na~cer a o rdem cu ja necessid ade ela co no.: ebcu, q ue sim pl es soma de opiniões individuais. A "filosofia" do il um i­
mais não Cosse para provar, no próprio ala de realizar-se, o seu nismo propriamente dila é al go muito diw rso do conjunlo do
reaJismo e verdade próprios. que fOi pe nsado C ensi nado pelos grandes mest rcs do pe riodo,
e impossível encontrar umacesso ti essa camada profund<l por Voltai re e Montesquieu. Hu me ou Condillac, O'Alembcrt
da filosofiA do Iluminismo se nos ali vermos. como a grande ou OiderQt, Wolff ou Lamber\. Ela não se destaca da $Orna e
maioria das ohras nistóri cas dedic!ldilS a esse período, ao seu da sucessão cronológica dcssIls opiniões porque, dc um modo
Corte longitudinal, se nos comentarmos em fazer desfilar ao geral, ela não reside nurna doxoJogia. mas na afie e na forma
oorrer do tempo a dive~jdade dos fe nômenos intelectua is e dei. de conduzir os debates de idéillS. As forças espiritu ais que a
xar, por assim dizer. que eles se desenrolem. Tal método de governam só são perceptíveis na pr6pria açÃo e no movi mento
trabalho é, em todo o caso, defi ciente, mas Os seus defeitos in. con trn uo do ,kbate: somente aí será possivel cap tar a pulsação
trinsecos talvez em parle alguma se manifestem mais claramente da vida interior do pensamemo ilumi nista. Esse faz partc da­
do que numa aprescmação da fi losofi a do século XVIII . No queles teél l'e$ espirituais onde " de um peda l mil fios são movi­
século XV II , ainda se pode conservar li espera nça dt! descrever dos / as lum;adeiras vão e vêm, I Os fios correm sem ser vistos"
a totalidade do comeúdo e do desenvolvimento da fil osofia IEi/l Trill /auselld Fiidell regt. I Die Schifllein Ilf!rüber . hi"über
acompanhando esse desenvolvimento de sistema em sistema , de sC'hiessen, I Die Faden ullgesehen Jliessen ] .
Descartes a Maleb ranchc, de Spinoza a leibn iz. de Bacon e Trazer para a luz esses fios invisíveis deve ser a tarefa
Hobbes 1.1 Locke. Mas esse fio condutor abandona-nos no li mi ar essencial da reconstrução e da medit ação históricas. Pura con­
do sécu lo XV HI , porquan to é o sistema rilosófico como tal que seguir rcaliza r essa tarefa, procuramos apresen tar no presente
carece então de fon;a de lei e de representatividade. E Christi an li vro não uma h istória de diversos pensadores e suas doutrinas
Wolff . que queria obstinadamente malHer-se fie l à forma siste­ pessoais, Illas uma hist6ria das idéias na I:.poca do Ilumini smo .
mática, acreditando que ela comportava toda a verdade especi fi­ a fim de que se possa apreende r essas idéias mais em sua efi cáci a
camenle fiJos6fica , também tentou em vão que os ou Iras ele. imediata du que em sua gênese teórico-abstraul. Por isso tínha­
gessem esse meio para resolver a tota lidade dos problemas mos que decidir, n:tturalmente, deixar em segundo plano uma
mosMicos do sCu tempo. O pensamento ilum in ista consegue profu são de detalhes mas cuidando de não omitir ncnhUlnU das
sem pre cx travaS!lr do quadro rígjdo do sistema e libertar-se, jus­ forçus essc nciili ~ quc modelaram o rosto do Iluminismo e deter­
tamente nos espíritos mais recundos e mais originais, da sua minaram sua vis~o da natu rCZH, da hi stória, da sociedade c dH
estrita diseiplina. Não é nus doutrinas particulares, nos axiomas ar te. Graças a esse método. ê possíve l de ~obr i r que a filosofia
c teorcmas em quc ele acaba por fixar-se que esse pensamento do sécu lo XVIIJ . que ainda há quem se obstine em aprescnlar
lllanirCi> ta com maior clareza ti sua estrutura e 11 sua ori.:ntação oomo uma mistul'u eclética. de temas in telecluais u(span:s, é
car<H.a eríslica, mas quando se dcixlI empolgar no próprio dcvir dominada, na verdadc. por um reduzido número de grandes
de sua elaboração , quando duvidA e averigua, ql1!mdo derruba idéias fu nd amentais que nos são propostas numa síntese coeren tc
e conStrói. A tOtaJi dad ~ desse movimento incansavelmente riu- e segundo uma rigorosa articulação . Todo O estudo histórico
deve partir dessa base, ou seja, adotar por ponto de partida o nosso objetivo. Além disso , tampouco há necessidade de, apóS
fio condutor que nos pode guiar com segu rança atra vés do labi. a obra de Kant e a "revoluç.ão do pensamento" realizada pela
rinto dos dogmas e das doutrinas individuais. Crítica da razào pura, revertermos aos problemas e às conclu­
No que se refere à crítica teórica do Iluminismo, está fora sões da filosofi a do Iluminismo. Mas se alguma vez tivesse de
de cogitação abordá-Ia no âmbito deste livro. Mas vale colocar ser escrita essa '; história da razão pura", da qual Kant nos ofe­
o nosso trabalho sob a égide do lema spinozista: /l on, ridere, receu um esboço na última seção da Cr1tica da razão. ela não
nO/l lligere, /leque detestor;, sed ímelUgere. A Epoca das Luzes poderia deixar de reservar um lugar de destaque para aquela
raramente beneficiou-se de semelh ante favor. O mais grave 'de­ época que foi a primeira a descobrir e a afirmar apaillonada·
feit o que se lhe aponta comumente é o de nada enlender a mente a autonomia da Razão, e a ir:tp6-la em todos os domínios
respeito de tudo o que está his toricamente longe dela, de ludo da vida do espírilo. Aliás, é de uma evidência cristali",1 que
o que, de um modo geral, lhe é estranho; de ler elevado a sua nenhuma obra de históri a da filosoiia pode ser pensada e rea­
pr6pria escala de valores, com uma ingênua suficiência, à cate­ lizada numa perspectiva puramente histórica : toda a \'olla ao
goria de normll universal, a única válida e a única possível, e passado da filosofia constit ui um ala de consci,enlização e de
de aferir por esse pad rão todo o passado histórico. Se a Epoca autocríljca filosófica . Ora, mais do que nunca , parece-me já ser
do Iluminismo não pode ser inteiramente absolvida nesse ponto, tempo de que a nossa época realize esse retorno autocrítico
não será demais acrescentar que ela expiou com sobras o seu
sobre si mesma e se veja 00 límpido espelho que a época do
erro. Essa suficiência do "eu sei mais" (" Besserwissens", de que
Iluminismo lhe oferece. Muitas coisas que hoje consideramos
recriminam o Século das Luzes e sobre a qu al ni nguém se cansa
ser fru to do " progresso" perderão seu brilho, sem dúvida , nesse
de acumular provas gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje
espel ho; muitas coisas de que nos vangloriamos parecerão insó­
impedem um julgamento isento do Il uminismo. À medida que
nos mantemos à margem de toda a polêmica d ireta abstemo-nos litas e caricaturais. E seria julgar apressadamente e iludir-nos
de submeter esses preconceitos a uma crítica explícita, de pre­ perigosamente atribuir todas essas deformidades a defeitos do
ceder, em suma, a um " resgate" da época il umir.i sta. O que nos espelho, em vez de ir procurar-lhes a causa em outro lugar. O
importou , acima de tudo, foi desenvolver e esclarecer, histórica Sapere audel, que é, segundo Kant , a "divisa do Iluminismo",
e racionalmente , o conteúdo do seu pensamento e a sua proble­ também vale para a nossa própria atitude histórica a seu res­
mática filosófi cu central. Esse escla recimento constitui a pri. peito. Cumpre deixar de lado os insultos e as atitudes de sobran­
meira e a mais i nd i ~ pcnsável condição para uma revisão do ceria. Tenhamos a coragem de DOS medi r por esse pensamento,
famoso processo Que O Roma ntismo intentou contra a filosofia de nos explicar intimamente com ele. O século que viu e glori­
do Ilumini smo. O julgamento adverso que foi proferido no de­ ficou na razão e na ciência "s supre ma faculdade do homem"
correr desse processo ainda hoje é repetido sem crÍlica pela não pode estar para nós inteiramen te superado; devemos encon­
maioria, c continua sendo de bom-tom aludir à " trivialidade do trar o meio de descobrir sua verdadeira fi sionomia e , sobretudo ,
Iluminismo" . Hastará que nos seja permitido impor o silêncio de libertar as forças prOfundas que produziram e modelaram
a esse gênero de julgamento para pensarmos ter alcançado o essa fisionomia .
-

Não podemos encerrar este prefácio sem agradecer uma


vez mais ao professor Frilz Medicus. editor dos "Grundrisses
der philosophischen Wissenschar.en ", a quem devemos a pri.
I­ meira sugestão para este livro e que leve a gentileza de nos
ajudar a reler as provas.
SUMÁRIO

Em!! Cassirer
Hamburgo, outubro de 1932.

r. O PENSAMENTO DA ERA DO ILLiMiN [ Si ~íC i9

"~ ,
11. NATUREZA E Clt:NC l A DA NATUREZA
." NA FILOSOFIA DO ILUMINISMO 65

111. PSICOLOG IA E TEORIA DO CONHEC I·


I' MENTO 135

IV. A lD EIA DE RELIGIÃO .. .. .......... "" .. . 189

o dogma do pecado original e o problema da


I! teodicéia 193
" A idéia de tolerância e a fundação da "religião
natural" 220

",\ Religião e história 246

v. A CONQUISTADO MUNDO HlSTORICO .. . . 267

VI. O DlR EITO, O ESTADO E A SOCIEDADE .. . 3 15


A idéiu de direi to c o pl'in dpio d os di ['ei tos inu­
li cnáveis 31 5
A idéia de contrato e o método das ciênci as sociais 337
1 VII. os PROBLEMAS FUNDAME NTAIS DA ESTE.
TlCA ...... . 367
o Cf sécuJo da crítica " . . .. .. ... . ... 367
A estética clássica e o problema da objetividade
do belo ....... . 37 1
I

o problema do gosto e a conversão ao subjetivismo 394


() PENSAMENTO DA ERA DO I L UMINISMO

A estética da intuição e o problema do gênio . . 411


Entendimento c imaginação. Gottsched e os suíços 433
Fundação da estética sistemática - Baumgal'len 441

D'Alemberl inic iou os seus Elememos de Ii/osa/ia com um


IMinel onde procura defi nir a shuação do espírilc humano em
IIH.!üdos do século XVIIT . No decorre r dos três últimos séculos,
\;Qmeça ele por assinalar, foi possível observar que em meados
de cada um desses séculos ocorreu sempre uma transfom1ação
Importante no conj unto da vida intelectual. Assim , em meados
(ltI /Sécu lo XV inicia-se o movimento literário e intelectual da
Renascença ; em meados do século xv r, a Reforma religiosa
c~ui no apogeu; e no século XV lI é a vitó ria da filosofia carte·
lima que provoca uma revolução radical na imagem do mundo
~rá po1>sível descortinar um rnovimemo análogo no século
XVIII e determinar sua direção e seu alcance? "Por mui to
pouca atenção que se preste" - prossegue D'Alembert - "aos
lUtados do século em que vivemos, aos acontecimentos que nos
ngl tam ou que, pelo menos, nos ocupam , aOS nossos costumes ,
fi. nossas ("~ras e até às nossas conversas, 6 muito diHcil passar
dctlperceb ,Ja a extraordinária mudança que, sob múltiplos as­
peclos, ocorreu t:m nossas idéias; mudança essa que, por sua

19
rapidez, parece prometer-no:; uma ainda maior. Cabe ao tcm ,lIlCut;do , anaHsado e, no mínimo, agitado . Uma nova luz sobre
fixar o objeto, a na tureza e os li mites dessa revolução. cuj .-IMuns objetos, uma nova obscuridade sobre vários, foi o frut o
inconvenientes e cu jas vantagem. ti nossa posteridade conhecer. IJU a conseqii! ncia dessa e€ervc:õCência geral dos espíritos: tal
melhor do que nós. O nosso século é chamado o Século da Fi! u;mo o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é carregar para
sofia por exce lência . Se! examinarmos sem prevenção o esta 111_ praias alguns materiais e delas afastar outros." I
atual dos nossos conhecimentos. mi o se pode deixa r de convi O homem que usa essa linguagem é um dos cientistas mais
que ti. filosofi a rcgi:;trou grandes progressos entre nós. A ciénci Ic.peitáveis do seu tempo , um de seus porta·vozes intelectuais.
dn natureza adqu ire a cada dia novas riq uezas; fi -geometria. ai Suas palavras fornecem-nos, portanto. uma idéia da índole c da
ampliar os seus limites , transportou seu fac ho p:\ra as rcgiõe: direção de toda a vida intelectual de sua época. Ora, a época
da física que se encontravam mais perto dela ; o verdadeiro si em que viveu D' Alembert sentiu·se empolgadü por um movi­
tema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeiçoa mento pujante e, longe 'de abandonar·se a esse movimento, em­
do. Desde a Terra até Satumo. desde a históri a dos céu s à do: penhou-se em compreender· lhe a origem e o destino. O conheci·
insetos, a ciência da natureza mudou de feiçóes . Com ela, q U 8S1 mento de seus próprios atos, a autoconsciência e a previsão
IOdas as outras ciências adquiriram novas formas e, COm efei to IntelectuaL eis o que lhe parecia ser o verdadeiro sentido do
era imprescindível que o fi zessem . O estudo da natureza pllrece pensamento, de um modo geral, e a tarefa essencial que, acre·
se r por si mesmo fri o e tranqüilo. porque a satisfação q ue ele' lUtava ele. a história lhe impunha. Não se trata apenas de que
ocasiona é um sentimento uniforme, contínuo c sem abalos, e o pensamento se esforça por alcançar novas metas, desconheci·
porque os prazeres, para serem vivos, devem ser separados por d05 até então; é que quer agora saber para onde o seu curso
intervalos e marcados por acessos . Não obsta nte , a invençüo e o o leva e quer, sobretudo, dirigir o seu próprio curso. Aborda
uso de um novo método de fil osorar, a espécie de entusiasmo que o mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espí­
acompanha as descobertas , uma certa elevação de idéias q ue em rito de descoberta; todos os dias aguarda novas e infaHvei5 !1!ve·
nós suscita o espetácu lo do universo, todas essas causas tive­ Inçro. .:ontudo, a sua sede de saber, a sua curiosidade intelec­
ram que exci tar nos espíritos uma vi va fermentação. Essa fC I'­ hml não se voltam somente para o mundo . O pensamento sente-se
mcntação, agindo em iodos os sentidos por sua naturezlI . em·ol· ainda mais profundamente conquistado, mais apaixonadamente
veu eom uma espécie de violência tudo o que se lhe deparou 'I comovido por uma outra qU~5 tão: a de sua própria natureza e
osi
C0 l11 0 um rio que ti "'es~e rompido :leus d iquc~. Assi m, desde do seu próprio poder. Não t por isso que ele se afasta incessan­
princípios das ci ~ncias profundas att! os fu ndamentos da Rcve· temente do curso das descobertas destinadas a amplillr O hori·
Im;ão, desdc 11 mcta fisica ate as questõcs de gO ~ IO. d\! ~lk a mÚ· 'lon le da realidade objetiva, a fim de retornar à sua origem?
sica à moral. delode as disputas escolásticas dos teólogos até os A sentença de Pape, lhe proper sJudy oI mankind i5 man, ex·
objetos de comércio, dcsde os direitos dos principes aos direi lOs prime com impressionante brevidade o sentimento profundo que
dos povos , desde a lei natural até as leis arbitrárias das nações, essa época tinha de si mesma . E uma época que sente, em seu
numa p;Jlavra . desde as questõcs que mai s profundam ente nos próprio âmago, uma nova {orça atuando e que, não obstante.
tocam utl! as que só !>upo::rficialmcntc no~ interessam. tudo fo i está menos fa scinada pelas criaçôes incessantes dessa {orça do

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1
que pelo seu modo de açdc. Não comente de usufruir os seus de partida e de chegada de suas investigaç6cs . O que foi aO$
resultados, ela ex pJo~a a forma dessa alividede produtora para olhos do século o seu orograma e e. s~a realização é para o his­
tentar anali sá-la , ~ nesse sentido que se apresenta, para o con­ toriador apenas o começo, o inicio de seu trabalho ; onde se
JUDto do século XVIll , o problema do " progr~so" intelectual. acreditou encontrar então uma resposta, Epresenta-se a verda­
Nilo existe um século que lenha sido tão profundamente penetrado deira questão. O skulo XVIII está impregnado de fé na unidade
e empolgado pela idéie de progresso intelectua l quanto o Século Cl- imutabiliQl!de da razão. A razão é una e idêntica para todo o
das Luzes . Equivocar-ae·iam, porém. sobre o sentido essencia1 Individuo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cul·
dessa idéia, aqueles que tomassem " progresso" num senlida' tura . De todas as variações dos dogmas religiosos . das máximas
quantitativo como uma simples extensão do saber, como um c convicções morais, das idéias e dos julgamentos teÓricos, des­
progressus in indelinilum. A par da ampliação quan!itativa e n. laca-se um conteúdo íinne e imutável. consistente. e sua unidade
contra-se sempre uma determinação qualitativa; à constante ex, e sua consistência são justamente a expressão da essência própria
tensão do saber para E1ém de sua periferia corresponde um da raz.ão . Para nós - se bem que estejamos de acordo, no plano
regresso sempre mais conscieote e mais pronunciado ao cenl das idéias e dos fatos , com determinadas teses da filosofia do
próprio e característico da expansão. Se se busca a muhipHci-­ Iluminismo _ a palavra "razão" deixou de ser há muito tempo
dade. é para aí encontrar a certeza da unidade. Dedicá.se à uOla palavra simples e unfvaca. Assim que recorremos a esse
extensão do saber com o sentimento, com a segurança de que voc4bulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez
ela não vai enfraquecer e diluir o espirito mas, pelo contrârio, mais conscientes da gravidade das mudanças de sentido que ele
vai reanimá-lo e "concentrá-lo". Percebe-se que os diversos ca­ sofreu no transcurso dessa histÓria. Nessas condições, sempre
minhos que o espírito deve percorrer, franqueaúdo-Ihe a reali­ nos acode ao espírito como a expressão de "razão" ou a de
dade como um todo a Cim de lhe traçar o quadro completo, só "racionalismo" têm pouco peso, mesmo no sentido de uma ca­
aparentemente são caminhos divergentes. Objetivamen te consi­ racterfstica puramente histórica . Tanto isso é verdade que o
derados, os caminhes divergem, mas essa divergência nada tem conceito genérico como tal permaneceu vago e indeterminado
de dispers.ao. Todas as e!lergias do esplrito permanecem ligadas até o momento de receber uma diJlerenlia specilica, um sentido
a um centro motor comum. A diversidade, a variedade das Cor. verdadeiramente preciso e determinado. Onde procurar, para o
mas t tão-só o desenvolvimento e o desdobramen to de uma força século XVIII, essa difereny8 específica? Se tanto se comprazia
criadora única, de natureza homogênea. Quando o século XVll I em autodenominar-5C um "século da razão" e um "século filo­
quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, sófi co" , onde encontrar o traço característico e distintivo dessa
recorre ao nome de "razílo". A "rruo" é o ponto de encootTO designação? Em que sentido devemos tomar aqui a "filosofia "?
e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus Quais as tarefas particulares que lhe são atribuídas, de que re­
desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas reali­ cursos disp6e para as levar a cabo e para estabelecer sob re ali­
zações. Cuidemos, porém, de não cometer. o erro de nos satis­ cerces seguros uma doutrina do mundo e do homem?
fazennos precipitadamente com essa ca racterística, de acredita r­ Se se comparar a resposta que o ~culo XVIII deu a essas
mos que o historiador do século XV III vai encontrar aí o ponto questões com as que já encontrou prontas no começo de suas

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atividades inlelccluais, o q ue impressiona de imed iato t lima IInálise. Newton não começa por definir certas princípios, certos
diferença negativa. O século XV II via na construção de "siste­ conceitos e axiomas universais, a fim de percorrer passo a passo,
mas filosóficos" a tarefa própria do conhecimento filosófico. por meio de raciocínios abstratos, o caminho que leva ao conhe­
Para que lhe parecesse verdadeiramente " fil osófi co", era preciso çimento do parlicular, dos simples " fatos" . E na direçilo inversa
que o sabe r tivesse alcançado e estabelec ido com firmeza a idéia ' Iue se move seu pensamen to . Os fen6menos são o dado; os
primordial de um se r supremo e de uma certeza suprema intui­ I"indpios, o que é preciso descobrir . Se os princípios são, com
tivamente apreendida, e que tivesse transmitido a luz dessa deito, o 7fQó'U!?OV 'tfi tptÍum , os fenôm enOs devem
certeza a todo o ser e a todo o saber dela dedll'lido. E o q ue permanecer o neD-rti?0v :n:t?J, 1~fl(iÇ :e por isso que
efe tivamente ocorre quando, pc lo método da demonstração e da o verdadeiro método da física jamais poderá consistir em partir
dedução rigorosa, são medialamenle ligadas à certeza primordial dt aJgum dado arbitrariamente admitid o (de um willkürlich-<In·
outras p roposições. a fi m de se percorrer, por meio dessa cone­ 8(mommenen AnsatzpunkO , de uma " hipótese", para desenvolver
xão mediara. toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre até o fi m as conclusões que af estão implícitas. Tais hipóteses
si mesma . Nenh um elo dessa cadeia pode ser separado do con­ 6áo imaginadas ao arbftrio de cada um , modificadas e trans{or·
junto, nenhum de les se explica nem se conclui por si mesmo. madas da mesma maceira ; logicamente consideradas. todas se
A única explicação de que ~ suscetivel consiste em sua "ded u­ equivalem, e só lograremos sair dessa equivalência e dessa indi·
ção" rigorosa e sistemática, a qual o reconduz à causa pri meira ferença racional para ati ngir a verdade, a determinação física,
do ser e da certeza, permit indo assim avaliar a distância ,I q ue se procurarmos alhures os ncssos critérios. Um pOnto de partida
se encontra em relação a essa causa primeira e ao número de verdadeiramente unívoco não nos pode ser fornecido pela abstra
elos intermediários que o se param daquela. O século XVIII ção e " defi niç.!io " física mas somente pela experiência e obser·
renunciou a esse modo e a essa forma de " dedução", de deriva. vação. Não se trata, em absoluto, tanto para Newton quanto
ção e de explicação sistemática . Não rival iza , em absoluto, com para seus disclpulos e sucessores, de afirmar uma oposição entre
Descartes e Malebranche, com Leibniz e Spinoza , no tocante ao "experiência" e "pensamento" , de ab ri r um abismo entre o do­
rigor e à autonomia do método. Busca uma outra concepção mlnio do pensamento puro e o dos "simples fatos". Não é ques·
da verdade e da " fi iosofi a" que confe re a uma e a outra mais tão de um conrJito de validade, de um dualismo metódico entre
amplitude, uma forma dotada de mais li berdade e mobilidade, IIS "relations 01 ideas", de uma parte, e a " malter 01 lacI", de
mais concreta e mais viva. A Era do lI uminismo não outorga esse out ra parte, como o que encont rou sua expressão mais n!tida na
ideal de pensamento às doutrinas rilosMicas do passado; prefere Enquiry cOllcerning human understanding, de Hume. O newto­
formá·lo tomando por exemplo a física contemporânea , cujo mo­ nismo não pressupõe, como objeto e condição inviolável da in­
de lo tem sob seus olhos. Em vez do Discurso do método de .Des­ vestigação, senão a ordem e a legalidade perfeita da realidade
cartes, apóia-se nas Regulae philosophandi de Newton para re. empirica . Entretanto, essa legal idade significa que os ratos, co­
solver o problema central do método da filosofia. E essa solução mo tais, não são um material simples, uma incoerente massa de
logo encaminha a investigação para uma direção inteiramente detalhes, mas que se pode demonstrar, nos fatos e pelos fatos ,
diferente . A via newloniana nfie é a da ded ução pura mas a da li existência de uma Jorma que os penetra e os une. Essa forma

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apresenta·se como matematicamente detenninada, eslnnllrada e busca e que todo o mundo está persuadido de encontrar, em
articulada segundo o número e ti medida. Mas é justamente essa lodo o caso, no caminho da ciência, não t a lógica escolástica
articulação que nio pode ser objeto de uma antecipação con. nem uma 16gica de concepção puramente matemática: é a "ló­
ceptuaJ; ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos . O gica dos fatos" . Qt!.e o espirito se abandone, pois, a toda a ri­
encaminhamento do pensamemo não vai, por conseguinte, dos queza dos fenômenos, que se meça continuamente por ela: longe
conceitos e dos ax iomas para os fenômenos, mas o inverso. A de correr o risco de af se perder, está seguro de encontrar nela
observação é o datum; o princípio, a lei , o quaesilum. E esse .ua verdade e sua própria dimensão. E. assim que se estabelecerá
novo programa metódico que deixa sua marta em todo o pen­ a verdadeira re<:iprocidade, a verdadeira correlação de "su jeito"
samento do século XVIIJ. O esprit systématique nem por isso é e "objeto", de "verdade " e "realidade" e que se produzirá entre
subest imado ou marginalizado; mas foi cuidadosamen te distin. esses termos a forma de "adequação", de correspondência, que é
guido do esprit de systeme. Toda a teoria do conhecimento se a condição de todo c conhecimento científico.
empenha em confinnar essa distinção. D'Alemberl, no "Discurso
A conciliação do "positivo" e do " racional" não é uma exi·
preliminar" da Enciclopédia. situa-a no centro do debate , e o
gência puramente tcórica; essa síntese é um fim acessfvel, um
Tratado dos sistemas, de Condillac, dá a essa idéia sua formo
ideal realiúvel: o pensamento setecentista vê ai a prOva con·
explícita e sua justificação. Tenta o autor, nessa obra, aplicar a
creta, imediatamente convincente no curso que as ciências, desde
crftic8 hist6rica aos grandes sistemas do século XVII, procurando
mostrar a causa de seus respectivos fraca!lsos: em vez de se o seu renascimento, efetivamente adota ram. Nos progressos da
prender aos fatos e de deixar que os conceitos se fOnDem no flsica, na sucessão das etapas perccrridas por essa ciência, uma
contato com aqueles, tais sistemas elevaram unilateralmente ao por uma, ele está inteiramente convencido de que tem, de certo
status de dogma o p rimeiro conceito que lhes Ocorreu . Em con­ modo, sob os olhos a realização do seu ideal. Pode acompanhar
traste com esse "espfrito de sistema", cumpre doravante estabe­ ai, com efeito, passo a passo, a marcha triunfal do esprrito ana­
lecer novos vínculos entre o espfrito "positivo" e o espírito "ra. Iftico moderno. Num intervalo de um século e meio, apenas,
danai". Não é que eles estejam, em momento nenhum, em esse espírito acaba de submeter-se à totalidade do real, parece
posição connitante , mas só se conseguirá obter uma verdadeira ter até realizado, enftm, O grande desígnio de unificar sob uma
sfntese entre eles se se respei tar uma autêntica via de medi ação. regra única e absolutamente universal toda a diversidade dos
Não se busque, portanto, a ordem, a legalidade, a " razão", como fe nômenos naturais. E a fórmula cosmol68ica que se apresenta
uma regra "anterior" aos fenômenos, concebfvel e exprimfvel o na lei newtoniana da atração universal não foi encont rada por
priori; que se demonstre a razão nos pr6prios fenômenos como acaso nem descoberta às apalpadelas: é um método rigoroso
a forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente. que dá suas provas nessa descoberta. Newton conclui o que
Que não se pretenda antecipar a razão sob a forma de um sis­ Kepler e Gelileu tinham começado: esses três nomes não evocam
tema fechado: há que deixá-Ia desenvolver-se a longo prazo, pelo simplesmente as personalidades de grandes sábios, mas autên­
conhecimento crescente dos fatos, e impor-se pelos progressos ticos símbolos, marcos importantes do conhecimento científico
em sua clareza e em sua perfeição. A lógica que todo o mundo e do próprio pensamen to científico. Partindo da observação dos

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I
fenõmenos celestes, Kepler leva essa observação a um grau de h'" e depois reconstru indo-o a panir desses elementos ~ que se
rigor. de "exatidâo" malemática que jamais fora atingido antes nmsegue compreende-lo. Galileu dá um exemplo clássico desse
dele. Graça, a trabalhos de uma paciência infatigável . ele chega procedimento na sua descoberta da trajet6ria parabólica dos
às leis que estabelecem a fi gura das trajet6rias dos plane ias c H'rpoS lançados no espaço. A fonna dessa trajetória não podia
detenninam 8 relação entre o pe ríodo de revolução de cada pla­ .cr diretamente dccifrada pela in tuição nem aduzida de um
neia e a sua distância do Sol. Mas essa observação dos falOS t t(tllnde número de observações separadas. A intuição fornece­
apenas um primeiro passo. A tarefa q ue 8 mecânica de Galileu I1 OS, é certo, algu ns tra~ gerais: mostra-nos que a uma fase
se impôs tem mais amplitude e ma ior alcance : a sua problemll. 115censional sucede uma fase de queda do corpo la nçado etl;.,
tica penetra numa nova camada, mais profunda, da concc: ptu8­ mas falta m suti leza, exatidão, rigor e prcci~ão nessa determina­
lização tm ffsice. Com efeilo, já não se traia de examinar um ç50. S6 podemos chegar a uma concepção exata, verdadei rame nte
determinado selOr dos fenômenos da natureza , por mui to vasto matemática , desse processo se relacionarmos esse fenômeno com
e importante que ele seja , mas de fu ndamentar universalmente as condiçõcs patticulares q ue o de terminam , e considerarmos se·
a dinâmica. a teoria da natureza como tal. E não escu pa a Cali­ pur:u.lamcn te cada um dos pl anos de delenninação que nele se
leu que li intuição imed iata da natu reza n50 está à ahura de entreCruzam para procunu estabelecer a lei. E descobe rta a lei
semelha nte tareCa, que ela deve recorrer a ou tros instrumen tos da trajetória parabólica: O recrudescimento e o decréscimo de ve­
de conhecimento. a outras runções intelectuais . O s fenômenos locidade explicam-se de modo rigoroso a partir do insta nte em
da natureza Merecem-se li inlUição na unidade de seus processos, que se consegue provar que o fenômeno balístico é um processo
como tOlalidades indivisíveis. Ela percebe-os como simples dados complexo cuja determinação depende de duas " forças" : a fo rça
individuais ; pode descrever em largos traços seu desenvolvi­ dc impu lsão originária e a força de gravitação. Todo O desen·
mento, mas essa forma de descriçâo nâo poderia substituir uma volvimento ulterior da ífsica está dado de antemão nesse sim­
"ex plicação" verdadeira . Para explicar um renÔmcno nalural , ples exemplo como num modelo elementar; toda a estmtura do
não basta apresentá-lo em seu ser e em sua maneira de ser; é $Cu método já aí está illlplfcita.
necessário fazer ver de que condições particulares lal fe nÔmeno A tcoria de Newton conservou e confirmou todos os traços
de pende e tttonhecer com impecável rigor em que espécie de que ai já são nitidamente reconhecíveis. Ela está construfda,
dependência ele se encontra a respeito dessas condições. Es~a com efeito, pelo cruzamento dos métodos dc "resolução" e de
exigência só pode ser satisfeita pela decomposição da imngem ~compos içã o ". Toma ndo como ponto de partida as três leis de
sintética do fenômeno que nos é fornecido pele intuição e pela Ke plcr, a teori a newtoniana não se satisraz em ler e interpretar
observação imediata para resolvê-Ia em seus mOmentos consti­ cssali le is como expressão de um simples estado fa tual da obser·
tut ivoli. Esse procedimento analítico é, segu ndo Galileu , a con­ vação; ela ten ta, ademais, reconduzir esse estado de fato aos
dição de todo o conhecimento rigoroso da ha tureza. Esse método seus pressupostos , provar q ue ele é a conseqllência necessári a
de construção dos conceitos Hsicos é, simuhaneamente, um mé­ da convergência de diversas condições. Em primeiro lugar, cum­
todo de "resolução" e um mé todo de "composição". S6 decom­ pre que cada um dos sistemas de condições seja explorado por
pondo um acontecimento aparentemente simples em seus elemen­ si mesmo e que o seu modo de aç.ão seja conhecido. Foi assim

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I
que o fenOmeno do movimento planetário, que Kepler vira como ,,,ncordância unânime quanto a essss premissas da teoria do
um todo, revelou ser uma formação complexa . A teoria nev.1o­ I "nhcci mento. O Tratado de nu!tafísica, de Valia ire ; o "Discurso
niana reduziu-o a dois tipos de lei fundamentais: à lei da queda pI"liminar" da Enciclopldia, de D'Alembert; e as Investigaçõcs
livre e à lei do movimento ccntrfiugo. Cada uma delas tü::.ha ..bre a clareza dos princfpios da teologia e da moral, de Kant,
sido estudada separadamente, e de maneira rigorosamente con­ lul/lm a esse respeito a mesma linguagem. Todos proclamam que
clusiva, por Galileu e Huyghens: todo o problema con sistia en­ n verdadeiro método da metaf{sica harmoniza-se, basicamente,
tão em realizar a síntese: das descober tas deles, redüzindo-as il lvlll o que foi introduzido por Newton na física e proporcionou
um único princípio inteligível. A façanha de NewtOn está jus­ tAl) copiosos fru tos. Voltaire declara que o homem que se desco­
tamente na realização dessa sJntese: consiste menos na descoberta nhece ao ponto de pretender penetrar a essência interior das
de um fato desconhecido antes dele, na aquisição de um material It}j saS, conhecê-Ias na pureza do seu " cm si" (An-Sich) , não tarda
inteiramente novo, do que no remanejamento intelectual operado "lU adqu irir consciência do limite de suas faculdades: ele vê-se
na base do material empfrico. f' não se trata mais de contemplar 11. posição de um cego que tivesse de julgar a natureza das
a estrutura do C06mo e sim, doravante, de a penetrar; ora, o (!Ires. A benevolência da natureza colocou, partm, !.Ima bengala
cosmo só se abre para esse espécie de penetração quando sub­ uRI mãos do cego, que é a análise.. M!.Inido dessa bengala ele
metido ao pensamento matemático e ao seu método analítico. VAi poder abrir caminho entre as aparências, ser informado dos
Ao criar, com o cálculo dos fluxos e o cá !cuia infinitesimal, um .cus efei tos e de seu ordenamento, de nada mais necess itando
instrumento universal a serviço desse programa , parece evidente 1l".Ta orientar-nos intelectualmen te, para organizar sua vida e a
que Newton e Leibniz demonstraram , pela primeira vez em ter­ d!ncia.' " t=; claro que jamais se deve formul ar hipóteses; não
mos de rigor absoluto, a " inteligibilidade da natureza". O cami­ !lU deve dizer: comecemos por inventar prindpios com os quais
nho do conhecimento da natureza desenrola-se indefinidamente, tralaremos de explicar tudo. Mas temos que dizer: façamos exa­
mas sua direção permanece fixada com firmeza, porquanto o lllmente ti análise das coisas. Sempre que nos é impossível ter a
seu ponto de partida e o seu destino não são exclusivamente nJuda da bússola da matemática c do farol da experiência e da
determinados pela natureza dos objetos mas também pela fortn.l (bica pa ra guiar o nosso rumo, é mais do que certo que não­
e pelas forças específicas da razão . podemos avançar um só passo." Contudo, de posse desses dois
A fil osofia do 8&:u10 XVIII está, em todas as suas partes. Instrumentos, vamos poder e devemos arriscar-nos no mar alto
vinculada ao exemplo privilegiado, ao paradigma metodológico 1.10 saber. Bem entendido. devemos renunciar à esperança dc
da físi ca newtoniana; mas logo sua aplicação foi generaliz.ada. 'Irrancar alguma vez às coisas o seu segredo, de penetrar no se r
Não se contenta em compreender a análise como a grande fer­ ubsoluto da matéria ou da alma humana . Mas o "seio da natu­
rornenta intelectual do conhecimemo ffsico-matemático e vê af rcz.a" nos estA francamente abcrto se entendermos por isso a
o instrumento necessário e indispensável de todo o pensamento e.
nrdem e a legalidade empíricas . nesse ponto central que vamos
em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepção já nos cstabelecer a fim de, a partir daí, ava nçarmos em todas as
está assegurado. Se é verdade que certos pensadores e certa s tl i reçõe ~. A potência da razão humana não está em romper os

escolas divergem em seus resultados, há, não obstante, uma limites do mundo da experiência a fim de encontrar um caminho

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de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-nos 11 II ll'TltOS e seus últimos motivos, a crença e a "verdade pré-fa­
a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança e a f,d , 111111". Mas, após esse lrabalho dissolvente, impõe·se de nuvO
habilitá-lo comodamente. Uma vez mais. manifesta-se aqui a 11111", lurda construtiva. a evidente que a razào não pode perma·
mudança de significação característica que a idéia de razão so­ li'! 1'1 en lre esses dis;ecfa membra ; deverá construir um novo
freu em relação ao pensamen to do século XVII. Para os grandes .IIUd o. uma verdadeira totalidade . Mas ao criar ela própria
sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, I t ~)llI l idade, ao levar as partes a constitui rem o todo segundo
para Spinozn e Leibniz, a razão é a região das "verdades eter­ M 1 1'~ru que ela propria promulgou, a razão assegura·se de um
na s", eSSHS verdades que são comu ns ao espírito humano e ao I ,fd to conhecimento da estrutura do edifício a~ s im erigido.
espírito divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos I 111 compreende essa estrutura porque pode reproduzir-lhe a
à luz da razão é "em Deus", portanto, que o vemos imediata­ ! <JliN lruçiio em sua totalidade e no encadeamento de seus mo·
mente: cada ato da razão assegura-nos a nossa participação na 1I1\llt l05 sucessivos. :t. median te esse duplo movimento intelectual
essência div ina, franq ueia-nos o acesso ao domínio do inteligível, 'Im 11 idéia de razão se concretiza plenameOle: não como a
do supra-sensível puro e simples. O século XVIII confer e à razão IIhlll.l dI} um ser mas como a de um Jazer.
um sentido diferente e mais modesto. Deixcll de ser a soma de Essa convicção abre caminhos nos diversos domínios dA
"idéias inatas", anteriores a toda a experiência, que nos revela ll ltu ru do séeulo XVIIT. A sentença Carnosa de Lessing, de que
a essência absol uta das coisas. A razão define-se muito menos ,,/lu /iC deve procurar o verdadeiro poder da razão na posse da
como uma possessão do que como uma forma de aquisição. Ela \I\.td llde mas em sua aquisiçiio, encontra por toda a parte seu
nào é o erário, a tesou raria do espírito, onde a verdade é depo­ I'urfllclo na história das idéias do século XVIII. Montesquíeu
~itBda como moeda son an.te, mas o pOder original e primitivo
Il' llt H dar uma justificação teórica geral para essa sede de sa·
que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. hl" r inscrita na substância da alma humana, para essa infatigá·
Essa operação de assegurar·se da verdade constitui o germe e a ~r l curiosidade intelectual que nos impele de idéia para idéia,
condição necessária de toda a certeza verificável. F. nesse seno ," 111 permitir que nos detenhamos jamais naquele pensamento
tido que tode o século XVII1 concebe a razão. Não a tem em 1111 1; acabamos de atingir: "A nossa alma é feita para pensar ,
conta de um conteúdo determinado de conhecimentos, de princí· \ .lJ seja , para aperceber: ora, semelhante ser deve ser dotado
pios, de verdades, preferindo considerá·la uma energia, uma Ill' cu riosidade, pois como todas as coisas estão numa cadeia
força que só pode ser plenamente percebida em sua ação e em In interrupta , em que cada idéia precede uma e segue-se a uma
seus efeitos. A sua natureza e os seus poderes jamais podem ser pl.l tra não se pode gostar de ver uma sem ver wna outra." A
plenamente aferidos por seus resultados; é à sua função que lN,ido sciendi, que a dogmática teológica tinha banido e a que
cumpre recorrer . E a sua fun ção essencial consiste no poder de IIplicara o ferrete ignominioso do orgulho intelectual, foi desse
ligar e de desligar. A razão desliga o espírito de todos os fatos modo proclamada qualidade necessária da alma e como tal
simples, de todos os d ados simples, de todas as crenças basea· rcslabelecida em seus direi!c", paturais. A defesa, o reforço e a
das no testem unho da revelação, da tradição, da autoridade; só Justi fi cação desse pensamento são as finalidades essenciais que
descansa depois que desmontou peça por peça , até se us últimos h culLura do século XVIII se atribuiu. Portanto ela não viu

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I
sua tarefa principal na aquisição e ampliação de cer10s conhe­ as matemáticas o "orgu lho da razão humana" , sua pedra de
cimentos positivos. No que se refere à própria Ellciclopédia, que toque, sua caução e fiança? Mas. pOr ou tro lado, via-se com
se converteu no arsenal de todos esses conhcdmentos. essa ten­ crescente clareza que O poder inerente às matemáticas deparava­
dência fundamental manifesta-se igualmente sem ambigüidade. se com certos limites: elas são, sem dúvida, o exemplo e o mo­
Diderot, o seu fundador, declara não ser sua intenção adquirir delo da razão, mas sem lograr, no entanto, dominá-Ia , esgotar-lhe
um mero acervo de conhecimentos mas provocar uma mu tação o col1leúdo. Assim se estabelece um curioso processo intelectua1
no modo de pensar. A Etlciclopldia fo i criada "pour cltanger la que pa rece acionado por forças diametralmente opos tas. O pen­
lt
laçon commune de penser A consciência dessa tarefa sensi­
.' samento fi losófico parece querer, de um só movimento, libe r­
biliza e agita todos os esprritos, suscitando nelcs um sentimento tar-se das matemáticas e vineular-se-Ihes, emancipar-se do seu
intei ramente novo de tensão in terior. Até os mais moderados e domínio exclusivo, tentando simultaneamente. digamos, não re­
os mais refletidos entre os pensadores verdadeiramente "cientí­ chaçar ou contestar essa autoridade mas justificá-Ia por um
fi cos" sentem-se impelidos para a frent e, empolgados por esse outro lado. Ele ganha em ambos os planos. no sentido de que a
movimento. Ainda não se atrevem a definir seus fin s últimos, análise, que constitui a forma essencial do pensamento matemá­
mas não podem escapar à sua potência e acreditam sentir que tico dos tempos modernos se reconhecida em sua significação
se avolumo nele, através dele , como que um novo futuro da profu nda, eXlTavasa largamente, por sua própria função univer­
humanidade. Por ex.emplo, Duelos escreveu em suas Considéra­ sal, os limites da matemática pura, da g!andeza e do n6mero.
tiOIlS sur les moeurs de ce s;ecle: "Não sei se tenho lima opinião O tratado de Pascal, Do espírito geomt1trico, ded ica-se a deter­
excessivamente benévola do meu século , mas parece-me haver minar cuidadosamente os limites das ciências matemáticas da
uma certa (em enlação un iversa1 [. . . ] cujos progressos poderiam natureza e da ciência do espírito, prenúncio de que já no século
ser dirigidos e acelerados por uma educação bem entendida ". XV II se percebia com nhidez o deflagrar iminente desse movi­
Pois o que se quer não é deixar-se muito simplesmente contami­ mento. Nessa ob ra, Pascal opõe o "espírito geométrico" ao "esprit
nar pela efervescência geral e empolgar pelas forças em ação. lin" para mostrar como eles se distinguem um do ou tro em suas
Quer-se, outrossim , compreendê-Ias e dominá-Ias à medida que respectivas estruturas e U500S. Mas essa severa delimitação não
se adquire essa compreensão. Não se q uer mergu lhar apenas em tardará em ser questionada de novo. Fontenelle, por exemplo, no
redemoinhos e turbilhões de idéias novas, mas assumir o leme prefácio de seu livro De ['utiJité des matMmaliques et de lo
e guiar o curso do espírito para metas definid as. psysique,' declara que "o espírito geométrico não está tão exclu­
O primeiro passo nesse caminho foi, para o século XVIII sivamente ligado à geometria que não possa separar-se dela e
partir em busca de uma fronteira detenninada entre o espírito transportar-se para outros domín ios. Uma obra de moral, de p0­
matemático e o esprrito filosóf ico. A tarefa era diricil e com­ lítica , de crhica, até mesmo uma obra de eloqüência jamais será,
plicada ainda por uma dialética interna, porquanto se tratava ceferis puribus, tão bela e tão perfeita quanto se fosse concebida
de satisfazer igualmente a duas exigências dife rentes, em apa­ num espírito geométrico" . O século XV IlI dedica-se a esse pro­
rente oposição. Não se devia, obviamente, queb rar o vínculo blema e resolVe-<) no sentido de que o "esplrito geométrico", se
entre matemática c fil osofia, nem mesmo afrouxn-lo: não eram o en tendt:rmos como O espírito da análise pura , é de aplicação

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absolutamente il imitada e não se encontra vincu lado a nenhuma por toda a parte. Nessa afirmação, a psicologia do século XV IlI
problemática particular. Tenta fornecer a prova dessa tese em dá ainda um p 3SS0 mais além das posições de Locke, seu mestre
d uas di reções diferentes. A análise, cuja potência 56 (ora até e gui.a . COntentara-se Locke em pOr em evidência duas fontes
então e~ perimentada no domínio do numero c da grandeza , é dHerentes da vida meDiai : a par da " sensação" , ele mantinba a
agora aplicada , por um lado , no plano do psíquico. te por outro, " reflexão" como forma autônoma e irredutível. Mas os seus
no plano do social. T rata·se, nos dois casos . de provar que uma discfpulos e sucessores vão tentar eliminar esse dual ismo por
nova in teligibilidade se revela e que um novo domínio de grande diversos meios e impor \!m fundamento estr itamente ·' monfstico".
importância tomou-se acessível à autoridade da ra7...i o . desde que Berkeley e Hume condensam "sensação" e "refie xão" no termo
esta aprenda a submetê-lo ao $Cu método especifico, o método único de " percepção" , procurando mostrar que essa expressão
da relação anaUt ica e da reçonstrução sintética. No tocante . em esgota tudo o que nos é dado como experiência interna ou exter­
pri meiro lugar, à realidade pstquica, ela pa rece . pela maneira na. como ohjeto da natureza e como conteúdo do próprio eu .
como se nos oferece concreta mente, pela experiê,lcia imediata Ouanto a Condillac, acredita ele que o seu verdadeiro mérito
que temos dela, zombar de semelhante ten tativa. Apresenta·se­ pessoal, q ue o progresso essencial que ele fez a psicologia reali·
nos com uma riqueu ilimitada. numa diversidade infinita . Não zar em relação a Loekc, consiste em ter conservado o método
tem um s6 momento, uma só de suas formas, que sejam idênti· geral ensinado pelo mestre mas estendendo-o ao novo domínio
cos aos outros ; nenhum dos seus conteudos é jamais rcapresen­ dos fatos eJcmentares da aJma . A arte analítica de Locke afi r­
tado da mesma maneira. Na corrente do devir psíquico , em seu ma·se na decomposição das idéias, mas também se esgota nessa
incessante flu~o, não há duas ondas que tenham umu só e mesmll decomposição. EJe tende a provar que toda a represen tação.
forma ; cada uma como que jorra do nada, única c sem volta . por complexa que seja. é cons truída com os materiais da per­
e ameaça logo mergulhar de novo no nada. Contudo. segundo cepção sensorial ou do sentido intimo, e mostra como esses ma·
a concepção dominante da psicologia do séçulo XV II I. essa di­ teriais devem combinar-se a fim de produzir as diversas rormas
versidade perfeita, essa heterogeneidade, essa fl uidez do con· de objetos psíquicos . Mas, objeta Condiltac, acontece que Locke
teudo psfquico, é apenas aparente. Um olhar mais penetrante deteve·se nessa decomposição. Seu comedimento não visou
reconhece, sob a mutabil idade quase desenrreada do psíquico, a mais além dessa análise, em vez de estender-se ao conjunto
base sólida , os elementos estáveis e consistentes. E tarefa da da vida e da atividade da alma, em vez de apu rar a origem
ciência trazer para a luz esse elementos que escapam ao conhe· das diversas operações psíqui cas. Ora, nessa direçiio abre-se à
cimento imediato para colocá·los sob os nossos olhos, clara­ exploração um domínio ainda muito pouco e~ pl o ra do e de
mente determinados e nitidamente di stintos . T<lmbém aí não uma. riqueza imensa . A par dos simples dados da visão, da au·
existe multiplicidade e diversidade que não se reduza, cm defi · dição, do tato, da cinestcsia, do paladar e do olfato, Lockc
nitivo, a uma soma de unidades, nenhum devir que não repouse, deixou subsistir , como totalidades originais e irredutíveis, as
em ultima instância, num Ser consistente . Desde o momCnto em diversas classes de ativida des psíquicas. A atenção e a com­
que se passa das formas psíquicas para as suas rontes c os seus paração, o discernimento e a com bímlção, o desejo e a volição :
princípios essa unidade e essa relativa simplicidildc revelam-se cada um desses fatos vale por si SÓ, como um ato autÔnomo

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que só se enCOntra e se demonstra na cltpen cncia imediata, e dade. ~ também uma !'ealidad~ em cujo seio nasce o homem,
não se deixa reduzi r a nenhum outro. Mas assim t , no fundo. que ele não cria nem organiza , com & qual, muito simplesmen­
o método de dedução, em seu conjunto, que se vê privado de te. se defron ta; e tudo o q ue se espera do homem , tudo o que
seus frutos e de seu verdadeiro rendimento. Tan to depois como se lhe exige, é que se adapte a essas forroas prcexisl'entes. Mas
an tes dessa diligência, o ser psfquico apreselHa-sc-nos como uma a anuência e 8 obediência passiva também têm aqui seus limites.
d iversidade irredutfvel que é perfei tamente possível descrever A facu ldade de pensar, ass im que 6 despertada no homem, fá-lo
em sua particularidade, mas não se deixa explicar C deduzir a erguer-se incansavelmente contra essa espécie de realidade. A
partir dessas qualidades originári as. Se se quiser tomar verda­ sociedade é intim ada a comparecer perante o tribunal da razão,
t deiramente a sério essa dedução. é netcssário que se recorra,
para o conjunto das Operações do espírito, à máxima que Locke
in terrogada sobre a legitimidade de seus títulos, sobre os Cunda·
mentos de sua verdade e de sua val idade. E. por esse procedi·
fizera sua no domfnio apenas das idéias. e preciso mostrar para mento, o ser social, por sua vez, deve condescender em deixar·se
todo esse conju:lIo que o pretenso "imediatismo" niio passa de tratar como uma realidade Jlsica que o pensamento esforça-se
aparência, que ele não se sustenta sob o olha r penetrante da por conhecer. Institui-se de novo, em primeiro lugar, a divisão
análise c:entífica , Os atos singulares do espírito, cadll um deles em partes componentes: considera·se a vontade geral do Estado
em separado, não constituem, de maneira nenhuma, dados ori­ como se fosse constituída de vontades particu lares, como se f055e
ginais, mas resultados e produtos. Para compreender a sua cons­ nascida de sua uni50. Somente por meio desse pressuposto fun­
tituiçilio, para reconhecer a sua verdadeira natureza, é necessário damentai é que é possível fazer do Estado um "corpo", a fim
acompanhar sua gênese, observar passo a passo como desperta de submetê-Io ao mesmo método que deu suas provas na desco­
na alma, a partir de simples dados sensoriais que a afetam, a berta das leis universais do mundo material. Hobhes precedeu
(acuidade de identificar esses dadO$, de os comparar, distin· o século XV III nesse caminho. O fundamen to e o principio de
gui r, abstrnir e combinar. Poi essa a tarefa que o Tratado dos sua teoria política, a lese segundo a qual o Estado é um "corpo",
sel/.Stlçoos de Condill ac propôs-se a realizar. Parece quc o método têm precisamente essa sign ificação: os procedim entos do pensa·
ana lilico obtém aqu i um novo triunfo, em nada inferior às suas men to que nos levam ao conhecimento exa to da natureza dos
proezas no dom/nio das ciências naturais, da explicação cientí­ corpos físicos são-Ihe igualmente aplicáveis sem restrição. Por­
fica do mundo material. A realidade material e a realidade psf· tanto, o que Hobbes diz do pensamento em geral. que é um
quica estão doravante reduzidas, por assim dizer, ao mesmo "cálculo", que esse cálculo consiste em adicionar e subtrair,
denominador: ambas são construídas com os mesmos elementos . vale igualmente para todo O pensamento político. Esse pensa·
associados de acordo com as mesmas leis.s menta tam~m deve começar, portanto, por desfaze r o vínculo
Mas, a par dessas duas realidades, existe uma outra que que une as vontades particulares, 8 fim de o reator de novo à
não pode con tinuar sendo considerada um simples dado C cu ja sua maneira e pelo seu próprio mttodo . ~ assim que Hobbes
origem deve ser explorada, único meio de submetê-Ia. por sua dissolve o status civilis no status lIotllralis, que suspende em
vez, à autoridade da lei e da raz50. Trata-se daquclil ordem de pensamento o víncuJo existente entre as vontades individuais
co isas que se nos manifesta pela existência do Estado c da sacie. para deixar apenas subsist ir seu an tagonismo radicaJ, a "guerra

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de todos tcntra todos". Mas é precisamen te a partir dessa ne­ uma classe de cidadãos usar os privilégios que desfrutari am para
gação que será gerado e edificado em seguida o conteúdo pos i­ destruir o equilíbrio e a hanTIonia do todo, e que, em con tra­
tivo da lei civil em sua validade incondicional e ilimitada. A partida , todos os interesses particulares s irvam ao bem geral e
gênese da vontade do Estado pela fonna do cont rato impõe-se lhe estcjam subordinados.' Nessa formulação, um problema de
como a única que penníte reconhecer-lhe o conteúdo e estabe­ sociologia e de política é, de cer to modo, transformado num
lecer-lhe os fun damentos. E o vínculo que liga a filosofia da problema de estadismo. O espírito das leis de MOlltesquieu vis­
natureza de Hobbes à sua doutrina política: uma e outra são lumbra igualmente o essenc:al de sua tarefa nessa transforma­
duas aplicações diferentes do seu pensamento lógico fu ndamen­ ção. Montesquieu não se propôs apenas a descrever as formas
. tal por meio do qual o conhecimento humano só compreende e os tipos de constituições - despotismo, monarquia constitu­
verdadeiramente o que el e gera a par tir de seus elementos. Toda cional, oonstituição republicana - e expOr empiricamente sua
a conceit uação vãJida, toda a definição completa e perfeita deve maneira de ser. Sua ambição era 'mais alta: reconstruir esses
ter aí seu pon to de partida : s6 pode ser uma definição " causal". regimes políticos a partir das forças que os constituem . l! ne­
A fílo sofia é concebida, em sua tot<!lídade, como uma soma de cessário conhecer essas forças para fazê-I as ati ngi r ~ua verda­
definições causais desse gênero: ela nada mais é do que o conhe­ deira me ta, para mostrar de que manei ra e por que meios elas
cimento completo dos efei tos por suas causas, dos resul tados podem ser utilizadas com vistas à instauração de uma constitui­
derivados pela to talidade dos meios e das condições que os ção que reali ze a exigência da maior liberdade possível. Se­
produzem. gundo a demonstração de Montesquieu, uma tal liberdade só é
A filosofia pol(tica e social do século XVIII não aceitou, IX)ssivel num único caso: quando toda e qualquer força parti­
de um modo gera l, sem restrições o conteúdo da doutrina de cular é limitada e restringida por uma força oposta . A célebre
Hobbes, mas foi profu nda e duradouramente influenciada por doutrina da " divisão dos poderes" nada mais é do que o desen­
sua }orma. Alicerçou-se na teoria do contrato , cujos pressupos­ volvimento conseqüente e a aplicação concreta desse pensamen­
tos fundamentais foi busca! no pensamento antigo e medieval; to fund amental. Montesquie u quer mudar o eq uilíbrio instável
mas, ao mesmo temlX), aplica a esses pressupostos desenvolvi­ que rege e caracteriza as for mas imperfeitas de Estado , conver­
mentos e mod ificações característicos da infl uência exercida tendo-o num equilíbrio estático; ele quer mostrar que ligações
sobre ela pela imagem do mundo decorrente das ciências na­ cumpre estabelecer entre as forças par ticulares para que ne­
turais da época. Também nesse domínio se desenha com nitidez nhuma delas chegue a sobrepujar as outras, para que todas, justa­
a vitória do método de " resolução" e de "composição" . A socio­ mente por que se equilibram de modo recíproco, deixem à
logia constitui-se à imagem da física e da psicologia analítica. liberdade o ma is vasto campo possível. O ideal que a doutrina
O seu método, explica por exemplo Condill ac no seu Tratado polftica de Montesquieu descreve é, por conseguinte, o ideal de
dos sistemas, consis te em ensinar-nos a reconhecer na sociedade um " governo misto" que ofereça uma garamia contra O risco
um " corpo artificial" composto de partes que exercem umas de uma recaída no despotismo , a saber, que a forma de mistura
sobre as outras uma influência recíproca . E necessário organizar seja tão sábia e tão prudentemente ca lculada que a irrupção de
o conjun to desse corpo de tal maneira que seja impossível a um a força de um lado deflagre incont inenti O aparecimento de

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uma força oposta àquela do outro lado, de modo que o equilí· se não esrivesse, de certo modo, nele "investido" . O próprio con­
brio procurado restabeleça·se por si mesmo. Montcsq uieu tem ceito de "princfpio" renuncia aSsim, bem entendido, ao cará ter
a certeza , ao considerar as coisas desse modo. de que elaborou absoluto a que tinha pretensões nos grandes sistemas metaffsicos
um sólido esquema intelectual que lhe permitirá ordenar e con· do século XVJ I. Contenta-se em possuir uma validade relativa;
trola r a infin ita multiplicidade e diversidade de formas de Estado quer assinalar a última parada a que o pensamento chegou, em
cmpiricamcnte existentes. Esse ordenamento e essa form ulação cada caso, à medida que avançava, sob reserva de que seja,
de princípios fundamentais constituem seu objetivo essenciaL por sua vez, aba ndonada e suplantada, q:.lil tldo necessário. Em
"Apresen tei os principios", assim declara elc no prefácio de fu nção dessa relatividade , o "princípio " torno-se dependente do
O espírito das leis, "e vi os casos particulares submeterem·se a estado e da forma da ciência da mes~a maneira . por exemplo,
ele, como por si mesmos, as histórias de todas 8S nações serem que uma só e mesma proposição que em uma ciência é postu·
apenas seqüências e cada lei particular ligada a outra lei, ou lado como princípio, pode aparecer em outra como uma con­
depender de outra mais geral". O método da razão é, portanto. clusão. Disse D'Alembert: "e assim que õevernOs nos conduzir
nesse domínio, exatamente o mesmo que nas ciências da natu­ na escolha, no desenvolvimento e na enunci:lção dos principios
reza e no conhecimento psicológico. Consiste em partir de fatos Cundamentais de cada ciência, daqueles que formam a cabeça
solidamente estabelecidos pela observação mas em não se ater, de cada porção da cadeia . Chamamos-Ihes princlpios porque é
por certo, a esses simples fatos como tais : não basta que os aí que os nossos conhecimentos começam. Mas, bem longe de
fatos estejam "ao lado" uns dos outros, é preciso que eles se merecerem esse nome por si mesmos, eles talvez não sejam mais
encaixem uns "nos" outros. que a simples coexistência se revele, do que conseqüências muito distantes de outros principias mais
quando tudo foi bem apurado, como dependência, e a forma de gerais que sua sublimidade encobre ao nosso olhar. Nlio imite­
agregado converta-se em forma de sistema. Essa forma sistemá­ mos os primeiros habitantes da beira-mar que, não vendo o fim
tica não pode, evidentemente, ser imposta aos Catos desde {ora; do mar para além da margem, acreditavam não ter ele uma
é preciso, isso sim, que provenha deles próprios. Os "princí­ conclusão." 7 A relatividade que é aqui reconhecida e admitida
pios" que devemos investigar por toda a parte, e sem os quais não contém a menor implicação céptica, o menor risco de cepti­
será impossível assegurar um conhecimento em qualquer domí­ cismo; ela apenas exprime a certeza de que nenhum limite in·
nio, não são tais ou tais pontos de partida arbitrariamente esco­ transponfvel é imposto à razão em seu incessante progresso, que
lhidos pelo pensamento e impostos à experiência concreta para os fins a que ela parece chegllr só podem e só devem constituir
remodelá-la. São condições gerais a que só podemos ser con· para ela um novo começo.
duz.idos por uma análise completa do dado. O caminho pelo De tudo o que precede sobressai qce. comparando o peno
qual o pensamento deve enveredar conduz, portanto, seja em sa rnento do século XVIII cem c do século XVlJ, em nenhum
flsiC8 como em psicologia e em política, do particular para o ponto verifica·se uma verdadeira ruptura entre eles. O novo
geral, processo que, no entanto, seria impossfvel se lodo o ideal do saber desenvolve-se em continuidade perfeita a partir
particular como tal não es tivesse já submetido a uma regra uni­ de pressuposições que tinham sido fixada s pela lógica c pela
versal, se o gera l não estivesse implícito nele desde o começo, teoria do con hecimento do século XVI[, Descartes e Leibniz em

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particular. A diferença que existe entre eSSas duas fo rmas de razão. O ordename nto racio nal , o domínio racional do dado, só
pensar não lepresenta uma radical mutação; apenas exprime uma é possível com uma rigo rosa unificação. "Conhecer" uma mul­
espécie de deslocamento de acento. Cada vez mais, o acento des­ tiplicidade significa colocar os seus elementos em relação reci­
loca-se do geral para o particular, dos "princípios" para os proca de tal maneira Gue, partindo de um pon to determinado,
"fenômenos", Mas o pressuposto fundamental de que entre os a totalidade possa ser percorrida segundo uma regra constante e
dois domínios não existe oposição , nenhum connito, mas uma geral. Essa forma de pensamento "discursivo" tinha sido fixada
reciprocidade perfeita de determinações. conserva sua plena fo r­ por Descartes como nonna fundamental do conhecimento mate·
ça, se pusermos de lado, porem, o cept icisrno de H ume, o q ua l mático. Demo nstrara ele que toda operação matemática tem por
envolve, efetivamente, uma forma nova e fundamentalmente di· fi nalidade detenninar uma proporção entre uma grandeza "des-.
feren te de problemática . A "autoconfiança" da raliío em mo­ conhecida" (incógníta) e uma outra que é conhecida. Entretanto,
mento ne nhum é abalada . Antes de IUdo, foi a exigência de uni· essa proporção só pode ser concebida com perfeito rigor se o
dade do racionalismo que conservou todo o seu poder sobre os conhecido e o desconhecido participam de uma " natureza co­
espíritos. A idéia de unidade e a de ciência são e continuarão mum" . Um e outro , o conhecido c o desconhecido. devem poder
sendo intercambiáveis. "Todas as ciências, em seu conjunto", apresentar-se sob fonna quantita tiva e, como tais, inferir·se de
escreve D'Alembert, retomando assim as teses inicia is de Des· uma só e mesma unidade numérica. A forma discursiva do c0­
cartes nas Regulae ad directionem ingenii, "nadll mllis são do nhecimento tem constantemente, pois, o caráter de uma reduçao:
que a fo rça do pensamento humano, que é sempre uno e idên· ela reduz o complexo ao simples, a diversidade aparente à iden·
tico, e que deve permanecer sempre semelhante a si mesmo, tidade q ue a fundamenta . O pensamento do século XVIII dedi­
por mais variados e múltiplos q ue sejam os objetos a que esse ca.se a essa tarefa fundamental, procurando estender o seu efeito
pensamento se a plica." O século XVII deve a solidez e a uni­ a domínios cada vez mais vastos . Graças a essa extensão, a id~ja
dade in terior a q ue c hegou - sobretudo no meio cultural do de "cálculo" perde sua significação exclusivamente matemática.
classicismo francês - ao espírito de coerência e rigor com que O cá lculo deixa de ser aplicável tão-só ao n(lmero e à grandeza:
manteve essa exigência unificadora, ampliando-a a todos os domí· extravasa do domínio da quantidade para o das qua lidades pu­
nios do espírito e da vida . Essa ex.igê ncia nõo se impôs apenas ras . Pois as próprias qualidades deixam-se relacio nar entre si,
à ciência, rnM também à religião, à politica e à literatura. "Un ligar.se umas às outras, de modo que se possa inferir umas das
roi, une loi, une foi" ,· eis a máxima que governa essll época. ou tras numa o rdem fixa e rigorosa. Basta sempre, quando pos·
Guando se passa para o século XVIII , parece que esse absolutis· sível, estabelt..>ct.r u lei geral dessa ordem para que se possa. em
mo da unidade de pensamento vai perdendo sua potência , es­ virtude dessa ordem e dentro dos seus limites, manter sob as
barrando em múltiplos obstáculos que o levam a admitir con­ nossas vistas o conjunto do domfnio o nde a lei se aplica. A id6ia
ce.'l5ÕeS. Mas as modificações e concessões não atingem, de fato, de cálculo tem, assim, a mesma extensão que a de ciência; ela
o próprio âmago desse pensamento; a função unificadora como é aplicável a todas as multiplicidades cuja estrutura se reporta
tal continua sendo reconhecida como a fu nção fu nd amental da
a certas relações fundam entais que permitem determiná·la intei·
• Em rraDCÚ !lO original : "Um rei, uma lei. uma fé." (N. do T.) ramente. Condillac foi o primeiro a exprimir, em La langue des

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ca/CIl/S, com uma preCisa0 perfeita , essa idéia geral da cleneia riqueza e delicadeza dos seus matizes, Se se consegue por esse
de que quis dar, em sua psicologia, uma demonstração caracte· método produzir o psíquico, não é menor, evidentemente, u
rística e uma ilustração pe rtinente e recunda. Para ele, que se possibilidade de o reduzir, E revela-se, com efeito, que tudo
ateve, de uma (orma geral, à idéia cartesiana da alma, de sua aquilo a que chamamos " realidade psicológica" e experimen ta·
imortali dade e de sua espiritualidade, está fora de dúvida que mos como tal é apenas. no fundo , a repetição e a transformação
uma matematização imediata do psíquico é impossfve l, porquan­ de uma qualidade fundamental determinada, essa qualidade, pre­
to a aplicação direta dos conceitos de grandeza só é válida cisamente, que já está implícita na mais elementar das impres·
quando o próprio objeto ~ constitufdo de partes e pode ser re· sões sensíveis, A sensação é a fronteira entre o mundo do corpo
constitufdo a partir delas. A matematização produzir-se-á, por· e o mundo da alma, entre o mánnore como "matéria " morta e
tania, no domínio da substância corporal que se defi ne apenas um ser vivo e animado. Mas não é porque se transpôs essa
por sua extensão, e não no domfnio da substância pensante fronte ira que se tem necessidade, na dimensâo do psfquico, de
"indivisfvel". Mas essa oposição fu ndamental. essa distinção equipar-se de outra maneira e improvisar novos princípios.
substancial insuprimível que separa a alma do COrpo nâo opõe Aquilo que temos O costume de considerar princípios diferentes,
qualquer fronteira intransponível à simples junção de conhe­ de opor à vida sensível da alma as faculdades "superiores" do
cimento analítico. Essa função despreza todas as diferenças asso· espirito, nada mais é, na verdade, senão modificações do ele­
ciadas às coisas, não estando Jigada, de maneira nenhuma, na mentO originário da sensação. Pensamento e julgamento , desejar
pureza de sua forma e de seu uso formal, ao pressuposto de e querer, imaginação e criação artística, nada acrescentam de
um conteúdo determinado. Se o psicológico não se dei:..a , como novo, qualitativamente falando, nada de essencial mente hetero­
o corporal , dividir em partes, ele decompõe-se, não obstanlc, gêneo, em relação ao elemento sensfvel originário. O esplrito
em momentOli e em elementos constitutivos no pensamento. nada cria, nada inventa; ele repete e combina, Nessa própria
Ba'5ta para isso conseguir superar a diversidade aparente de repetição pode dar mostras, é verdade, de um poder quase ines­
suas formas, mostrando que essas são apenas o desenvolvimento gotável. Estende o universo vislvel para além de todo limite ;
progressivo de um germe, de uma fonte comum, de um fenô­ projetA-se no inrinito do espaço e do tempo, sem deixar de preo­
meno originário do .. psfquico em geral". Essa demonstração é cupar-se com a produção em si mesmo de figura s sempre novas,
fornecida pela célebre imagem que Condillac colocou no centro Em tudo isso, porém, o espfri to só tem que haver-se consigo
de sua psicologia. Partiu ele da hi pótese de uma estátua de mesmo e suas "idéias simples". Essas constituem o sólido ter­
mánnore que ~ progressivamente "animada" e dotada de uma reno sobre o qual assenta todo O edifício de seu mundo, tanto
vida psíquica de conteúdo cada vez mais rico à medida que do mundo "exterior" como do mundo " interior" - e esse ter­
cada um dos sen tidos impri me, inscreve no mármore, uma por reno jamais pode ser abandonado.
uma , suas qualidades respectivas. Trato-se de mostrar desse modo A tentativa a que Condillac se entrega aqui, a de provar
que a série contínua dessas " impressões" e a ordem temporal que toda a realidade psíquica é uma tran sformação, urna meta­
segundo a qual elas lhe são fornecidas bastam para con stituir a morfose da simples impressão scnsfvel, será retomada e desen·
totalid qde da existência psfquica, para produzi-la em toda a volvido por Helvétius em seu livro Do esplri/o. A influênciol

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que ~sa obra bastante Iraca e pouco original exerceu sobre a pelo nome, não na coisa em si. dos instintos mais elementares
literatura filosófica setecentista explica-se pelo fato de que essa da natureza humana, dos desejos e das paixões mais "baixas".
época encontrou aí um traço caracterislico do seu pensamento Não há nenhuma grandeza moral que se eleve aciroa desse nível:
sob uma foma deveras expressiva, até num exagero que toca por elevados que sejam os objetivos que a vontade se atribui,
as raias da caricatura. Nesse exagero aparecem claramente os algum bem supraterrestte, alguma finalidade supra·sensível que
limites e o risco metodológicos desse modo de pensamento. Esse ela possa imaginar·se perseguindo, ela nem por isso deixará de
risco consiste no nivelamento que ameaça a consciência na me­ permanecer igualmente encerrada no círculo estreito do egoísmo.
dida em que a sua riqueza viva é fundamentalmente negada, em da ambição e da vaidade. A sociedade jamais poderá obter a
que passa a ser considerada não mais do que uma máscara e repressão desses instintos primitivos mas tão-somente a sua suo
uma roupagem. O pensamento analítico arranca a máscara que blimação e o seu disrerce - é isso, de resto, tudo o que ela
dissimula os fenômenos psíquicos, mas a realidade assim des­ pode esperar e exigir, se acaso se fizer uma idéia exata de si
mascarada só vai mostrar em seguida, em lugar da diversidade mesma e dos indivíduos. As mesmas considerações são válidas
anterior e da mobilidade inlerna, a mai s nua uniformidade. A a propósito do mundo teóríco. Assim como, segundo Helvétius,
diferenciação das formas, assim como a dos valores. desmorona , não existe escala de valores no plano ético, tampouco há, na
revela ser mera ilusão enganadora. No interior do psíquico, opinião dele, diíerenças verdadeiramente radicais entre as for·
deixa de haver doravante "alto" ou "baixo", "superior" Ou " in­ mas teóricas. Tudo se funde, em definitivo, na massa única e
ferior". Tudo é colocado no mesmo plano, tudo se torna equi­ indivisa das impressões. Aquilo a que chamamos julgamento e
valente e indiferente. Helvétius desenvolve sob retudo essas con­ conhecimento, imaginação e memória, entendimento e razão ­
siderações no domínio da ética. Sua intenção profunda consiste nada disso constitui, de fato, uma faculdade específica, própria
em eliminar essas hierarquias artificiais que as convenções ins­ e originária da alma. Também aqui se produziu O mesmo dis·
tituíram e que se empenham cuidadosamente em manter. Ao farce . Acredita-se numa elevação acima da impressão sensível
passo que a ética tradicional falou sempre de uma categoria quando, na verdade, ela foi apenas ligeiramente modificada;
particular de sentimentos "morais", ao passo que acreditava no máximo, envolveu-se-a numa outra vestimenta . Para a crí·
descobrir um "sentimento de simpatia" originário no homem tica, que rechaça tais envoltórios, todas as condutas teóricas
capaz de opor·se aos seus instintos sensuais egoístas. capaz de aparecem de Iorma idêntica. Todas as operações do espírito se
os dominar e reprimir, Helvétius procura mostrar como seme­ reduzem, com efeito, ao julgamento, e esse nada mais é do que
lhante "hipótese" não se coaduna com a simples realidade dos a percepção de semethanças e dessemelhanças (cotlvenances
sentimentos e das ações humanas. Quem se debruçar simplis­ e disconvenances) entre as idéias individuais. Mas esse conhe­
tamente e sem preconceitos sobre C5sa realidade não descobrirá cimento da semelhança e da diferença também pressupõe uma
nela o menor vestígio desse pretenso dualismo. Descobrirá por " consciência" originária que é inteiramente anál::>ga à percep­
toda parte o mesmo impulso instintivo sempre semelhante e ção de uma qualidade sensível, na verdade completamente idên·
totalmente uniforme. Verá que tudo o que o homem glorifica tica. "Eu julgo ou eu sinto que, de dois objetos, um que deno­
como desinteresse, magnanimidade e altruísmo só se distingue mino toesa exerce sobre mim uma impressão diferente daquele

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que denomino pé; que a cor que nomeio vermelllC age sobre litera tura. na moral, na política, na teoria do Estado e da 50·
meus olhos de modo diferente do daquela que denomino ama· ciedade; chega ao ponto de afirmar·se na teologia, dando a essa
relo; e concluo em semelhante caso que julgar não é ser.ão disciplina uma forma inteiramente nova.' Mas na filosofia , assim
sentir." 8 Todo o edifício dos valores éticos, do mesmo modo como no movimento das idéias em geral, a sua in fluência não é.
que a escala lógica do conhecimento, é demolido de alto a baixo. em nbsolu to, incontestada. Com a HlosoHa leibniziana tinha sur·
como se vê. Os dois edifícios são arrasados por essa mesme gido, de fato, uma nova corrente intelectual que trazia consigo,
razão de que só 80 nível do chão se pensa encontrar para eles se m dúvida nen hu ma, prOfundas mudanças para a mundivisão
uma rundação sólida e inabalável. Entretanto, seria um erro desse tempo mas que, sobretudo. imprimia ao pensamento uma
considerar, como não poucas vezes foi Ceito, que as perspectivas forma e uma direção inteiramen te novas. À primeira vista, pa·
que Helvétius aqui representa S80 típicas do conteúdo da filo­ rece que Lei bn iz apenas deu prosseguimento à obra de Des­
sofia do Iluminismo. ou mesmo do pensamento do enciclope· cartes, libertou as potências que nela dormitavam a fim de lhes
dismo francês, porquanto foi justamente no circulo da Enciclo­ conferir seu pleno desenvolvimento. Assim como a sua obra
pédia que se produziram as críticas mais severas e as mai s matemática, assim como a análise do infinito sai di retamente da
precisas contra a obra de Helvétius, e foram os nomes mais problemática cartesiana. porquanto apenas quer ser a elaboração
eminentes da literatura filosófica francesa, homens como Turgot conseqüente, a realização sistemática da geometria analítica , tam·
e Diderot, os que tomaram a iniciativa. Mas o que. em lodo o bém se pode dizer, com efeito, que toda a lógica leibniziana
caso. é indiscutível é que tanto em Helvétius quanto em Con· tem sua origem na combinatória que ela tende a desenvolver
diUac atua um certo método que caracteriza o conjunto do século como uma teoria forma l geral do pensamento. E é incontestável
XVI11, uma certa forma de pensamento que determina de an· para Leibniz que só no progresso da análise exisle futuro e
temão tanto as suas realizações positivas quanto as suas difi· esperança pal'a o progresso dessa tcoria formal. paru a realização
culdades internas, suas vitórias e seus fracassos. do ideal da sciemia generalis. lal como se lhe afigura. t: sobre
esse ponto que vão doravante concentrar« todos os seus tra·
balhos de lógica . Trata·se de chegar a um "alfabeto do pensa·
menta"; de redulir todas as formas comple:tas de pensamento
2
nos se'J S elementos, ou seja, às operações de simplicidadc ex tre·
O pensamento do século XVlll. tal como o consideramos ma, do mesmo modo que, na teoria dos números, todo o número
até o presente momen to, corresponde em suma ao desenvolvi· pode se r concebido e apresentado como um produto de núml;!ros
menta do espírito analítico que é. sobretudo. um renômeno primos. Uma vez. mais, parece que a unidade, a uniformidade e
francês . Na verdade, a França era a pátria, a própria terra a simplicidade, a identidade lógico, em suma , constitui o fim
clássica da análise desde que Descartes consumara a refornla, último e supremo do pensamen to. Todas as proposiçõcs verda·
a transformação radical da fil osofia . A partir de meados do deiras, nu medido em que pertencem ao domín io das verdades
século XVII, esse espírito cartesiano penetra em todos os domí. estritHmente racionai s. das verdades "eternas", siío proposições
nios. Ele não se impõe somente na filosofia mas também na . ";rlUalmente idênticas". reportando-se ao princípio de identi·

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dade e de contrad ição. Pode-se. como fez Louis Couturat em constituem a verdadeira unidade do mundo. A mOnada 5Ó exis te
sua notável exposição da doutrina, tentar considerar desse ponto na med ida em que é ati va, e sua atividade consiste em passar
de vista O conjunto da lógica leibniziana; pode-se ir mais longe para estados sem p~ e novos e em descnvolvê-Ios incessanlemcnte
e associar-lhe, situando-a no âmbito dessa problemática, a sua de seu pr6pria fundo . "A natureza da mônada é ser fecunda e
teoria do conhec imento, a sua filosofia da natureza e a sua gerar uma diversidade sempre nova". ~ por isso que todo o mo­
metafísica. Parece, de fato, que ao proceder·se assim apenas se mento da m6nada, ainda O mais simples, envolve o seu passado
está sendo fiel às intenções pessoais de Leibniz, que sempre e já está prenhe de seu futuro. E nenhum desses momentos é
declarou não existir nenhuma divisória ergu ida entre 8 sua ló­ absolutamente idêntico aos outros; jamais se resolve na mesma
gica, a sua matemá tica e a sua metafísica, que toda a sua fil o­ soma de "qualidades" puramente estáticas. Toda a determinação
scfia e~a matematice.mente oriunda dos pr6prios fund amentos que aí encontremos deve ser, pelo comrário, considerada tran·
da matemática. sit6ria. Para descobri-la e compreendê·la racionalmente não
E, r,o entanto, parece. se considerarmos justamente a rei a· basta apoiarmo-nos num sinal característico fixa do aqui ou ali;
ção Intima e indissolúvel que une as partes dessa fil osofia , que temos que coloca r claramente sob os olhos a regra da tran sição,
os motivos considerlldos até o presente como fun damenta is, por representarmo-nos a sua lei específica. Prolongando esse pensa·
muito importantes e indispensáveis que sejam para a gênese do mento até .as suas últimas conseqüências, vê-se que o terna lógico
universo intelectual leibniziano, não o esgotam em sua totali· fundamental que dom ina e impregna a mundivisão de Leibniz
dade. Quanto mais se aprofu nda, com efeito, a significação e a s6 na aparência é o da iden tidade. Em vez dessa identidade
especifi cidade do conceito feibniziano de substância mais niti­ analftica, característica do pensamento de Descartes ou de Spi·
damente se vê que esse conceito implica, não apenas do ponto noza, encontramos aqui um princípio de con.tinuidade, sobre o
de vista do seu conteúdo mas também sob o seu aspecto form al, qual Leibniz construiu a sua matemática e o conjunto da sua
uma nova mutação reine tu!ue Wendung). Uma lógica que se metaHsica. Continuidade quer dizer unidade na multiplicidade.
construísse unicamente com base no conceito de.identidade, que ser 110 devir, constância 1U1 mudança . Esse termo designa uma
a( estabelecesse todo o se ~ti do de conhecimento, que reduzisse ligação que s6 pode exprimir-se na mudança e na constante ai·
toda a multiplicidade à unidade, toda a mudança à constância, terução das determinações, e que exige, por conseguintc, a mul­
toda a diversidade à estrita uniformidade, semelhante lógica não tiplicidade tão necessariamente, tão origináriu e essencialmente
se hannonizaria com o coOleúdo do novo conceito de substância. quanto a unidade. Até mesmo a relação do geral com o par­
A metafísica de Leibniz disting'o.le-se da de Descartes e de Spi­ ticular será doravante esclarecida de uma nova maneira. lnj·
noza ao postular, em vez do dualismo cartesiano e do monismo cialmcmc, parece que Leibniz manteve, de rato, e. prioridade
spinozista, um " universo pluralista". A "mônada" leibniziana do universal e seu "primado" lógico de maneira incond icional.
nâo é uma unidade aritmética, puramente numérica: é uma uni· O fi m supremo de todo O conhecimento reside nas "verdades
dade dinâmica. O verdadei ro correlato dessu unidade não é a eternas", exprimindo as relações universais e necessárias entre
individualidade mas a infinidade. Cada mônada é um centro as idéias, efltre o sujeito e o predicado do julgamento. As ver·
dinâmico vivo; somente a sua riqueza e diversidade infinitas dades de fato, as simples verdades "contingentes", não se inte­

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gram nesse modelo lógico; contudo, são tunto mais clnra e dis­ todo (der negriIJ des Ganzen), dentro dessa nova perspectiva,
tintamente percebidas quanto melhor se conseguir reduzi·las a adqu ire uma significação nova e mais profunda . O "todo" do
determinações puramen te racionais e, fina lmente, resolvê-Ias_ mundo , que se trata de representar. já não é redutível a uma
Embora esse fim SÓ seja acessivel a um entendimento divino, simples soma de partes; Lal representação não o esgota. A tota­
nem por isso constitui menos a norma , o fio de Ariadne do !idade revela-se como totalidade, não mais " mecânica" mas "or­
conhecimento humano acabado. E no entanto, por outra parte, gânica"; seu ser não mai s consiste na soma de suas panes mas
não existe. se nos referirmos à intuição fundament al que domi­ precede-as, já que é ele que as toma possíveis em sua naturezs
na a lógica e a teoria do conhecimento leibniziallos, uma simples e modalidade. Ar reside precisamente a diferença decisiva que
relação de subsunção entre o universal e o particular. Não se separa a unidade da mOnada da do átomo, O átomo é o elemento,
trata de subordinar um ao outro mas de conhecer que um está o constituinte fundamental das coisas no sentido de que repre·
impHcito e fundamentado no outro. E por esse motivo que, a senta o que resta finalmente quando elas são divididas até o
par do " princípio de identidade", aparece, como norma tão le­ fi m. ~ " un idade" por oposição, de certo modo, l multiplicidade,
gítima e indispensável de verdade quanto aquele, o " princípio opondo-se a toda e qualq uer tentativa para subdividi-la uma
de razão suficiente", o qual constitui para Leibniz a condição vez mais, à custa de sua solidez, fixidez e indivisibilidade. A
de todas as "verdades de fato". A ffsica é governada pelo prin­ mõnada , em contrapartida, ignora essa oposição e essa resistên­
cfpio de razão suficiente, assim como a matemática o é pelo cia, pois de um modo geral não existe para ela alternati va entre
princípio de identidade. Ela não se con tenta em estabelecer rela­ unidade e multi plicidade, cisão en tre esses dois momentos, mas
ÇÕts puramente conceptuais. a concordância ou discordância de pelo contrário. reciprocidade interna , correlação necessária. A
idéias. Deve partir da observação, da experiência sensível, mas mônada não é unidade simples nem simples multiplicidade. mas
não pode, por outro lado, contentar-se em recolher simplesmente "expressão da multiplicidade na unidade" (multorum in uno
as observações, colecioná-Ias e considerá-las em sua acumulação. expressio). Ela é um todo que não consiste em partes nem cons­
e. necessário que desse agregado se extraia um ~ i stema : e como titui o seu resultado, mas que se desenvolve constantemente
consegui·lo senão dando forma à massa incoerente de "fatos", numa multiplicidade de determinações. Sua particul aridade só
estabelecendo relações internas de modo que ela se apresente se revela nesses atos sucessivos de particularizilfiío (Beso"de­
como urra soma de "causas" e "efeitos"? A vizinhança no es­ rU'lg); particularização essa que só é possível e inteligível na
paço e a sucessão no tempo tornam-se assim uma verdadeira condição de t{ue a forma completa a partir da qual ela se de­
"conexão" em que cada elemento é detenninado e condicionado senvolve conserve·se em si mesma e permaneça fec hada sobre
pelos outros segundo regras fixas, de modo que, de todo o estado si mesma. A sua natureza e a sua realidade não vão perder-se,
singular do universo, na medida em que ele é plenamente cag­ portanto, e dispersar-se na sucessão dessas determinações; pelo
noscível, pode-se aduzir a totalidade dos seus fenômenos. contrário, conservam-se in tatas e presentes , se assim podemos
Não iremos mais além, até o conteúdo particular dessa dizer, em cada uma delas. Essa visão fun damental é conceptuel
intuição fund amental; contentemo-nos em considerar a sua es­ e terminologicamentc concebida por Leibniz graças à idéia de
(rutura categoria/o Verifica-se de imediato que o conceito de força: pois a força é para ele o estado presente que tende para

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o esta~o que se lhe segue e que aquele envolve de antemão é em si mesmo essencial e valioso para si mesmo . Cada subs·
(status ipse praesens, dum lendit ad sequentem seu sequentem tância individual. dentro do sistema leibniziano . é não só uma
praein volvit). A mónada não é um agregado mas um todo di· parte, uma fração, um fragmeoto do universo, mas esse mesmo
nâmico que s6 se pode manifestar numa profusão, digamos até, universo, visto de um certo lugar e numa certa ·'perspecliva".
numa infinidade de efeitos variados e que, no entanto, embora Ora , só a totalidade, abrangendo o universo inteiro dessa pers·
direrenciando-se infinitavamente nas expressões de sua força, pectiva caracterfstica e singular, constitui a verdade do ser.
conserva·se como um centro de força, único e vivo . Essa con­ Essa verdade não está const:tu(da de tal modo que as diversas
cepção, que já não se baseia simplesmente na idéia de ser mas imageos monadoJógicas do mundo tenha:n em comum alguma
na de atividade pura, confere ao problema do indivídual um parte integrante , na qual elas se ha:monizariam, e que figur aria,
sentido inteiramente novo . Nos limites da légica anaUtica, da em suma, como a origem comô!m da " objetlvidade" . E. preciso
lógica da identidade, só é possível tratar esse problema na con' compreender, pelo contrário, que :oda a substância, embora
dição de se encontrar o meio de reconduzir o indivíduo ao conservando sua própria permanência e desenvolvendo suas re­
conceito universal, considerando-o um caso especial do univer· presentações segundo a sua própria lei, relaciona·se, contudo,
saJ. O individual só pode ser "pensado" em geral, ser percebido no próprio curso dessa criação individual. com a 10talidade das
" cloro e distintamente", por essa referência e nessa vinculação outras e afina-se, de algum modo, com elas. A idéia central
ao universal Tomado em si, segundo o modo em que se oferece da fil osofia leibniziana não tem que ser procurada no conceito
à percepção sensível ou à simples intuição , permanece "confuso". de indiv idualidade nem no de universalidade; estes dois con­
a óbvio que, mediante uma vaga impressão de conjunto. pode­ ceitos devem, pelo contrário, ser compreendidos por meio de
mos estabelecer que o individual d, mas não seríamos capazes um outro . Ao refletirem-se um no outro eles geram, nessa pró­
de dizer. com verdadeira exatidão e certeza, o que ele é. J! o pria reflexão, o conceito fundamen tal de harmonia, o qual cons­
conhecimento desse "o que", desse quid, que permanece em titui o ponto de partida e o fim de todo o sistema . Em nossa
cada caso reservado para o universal, que só é possível obter própri a natureza, explica Leibniz em seu tratado Da verdadeira
considerando a natureza da espécie ou a definição que fornece teologia mfstica, esronde-se um genne, um vestígio, um símbolo
as caracte:-lsticas gerais. Em suma, o individual SÓ pode ser da essência divina e sua vera imagem. O que significa que só
" concebido" pela maneira como, por assim dizer, ele se encon­ se alC4lnça 8 verdade do ser, a harmonia suprema e a mais in·
tra "inserido" (umgrilfen) no universal, com o qual está rela­ tensa plenitude da realidade no auge da energia individual e
cionado por su1Jsunção. A doutrina leibniziana do conceito ainda não em seu nívelamer.to, sua igualização e sua extinção. Esse
está ligada , por múltiplos laços, a esse esquema tradicional , em· pensamento fundament al impõe uma Dova orienlaÇ<10 das idéias.
bora seja a sua própria filosofia a que lhe fez a critica mais Ela não vem apenas modificar algum resultado particular; essa
decisiva, a que implicitamente a modificou e até a desmontou. nova orientação desloca , !la verdade , o centro de gravidade de
Com efeito, o individual. na filcsofia leibniziana , obtém a posse toda uma visão do mundo.
de uma prerrogativa inalienável. Longe de estar confinado ao No início, parece, sem dúvida , que tal modificação interna
simples papel de um caso ou de exemplo, ele exprime algo que não tem nenhuma importànda direta. historicamente demonstrá·

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vel, para a filosofia do sécu lo XVIII. Com efeito, o pensamento o mais importante discípulo de Wol ff, q uem manifestará , sobre
profundo de Leibn iz não atuou de imediato, em sua totalidade, esse ponto e em muitos Olltros, sua origina lidade e sua indepen­
corno uma força viva e presente. O século XV I li s6 conhecia dênci a de es pírito. Em sua metafísica e. mais particulannenle .
inicialmente a Wosoria Jeibniziana sob uma (orma muito incom· nas grandes linhas da sua Estllica, Baumgarten encontra o ca­
pleta, puramente " exotérica". Para o conhecimento da doutrina , minho que reconduz até ce rla5 lontcs das idéias de Leibniz
dispõe apenas de um pequeno número de textos q ue, como a que estavam a té então como que solt:rrad as. A estética alemã
Manadalogia e a Teodicéia, devem sua ex.istência a uma oca­ e a filosoria da histó ria retornam, por consegui nte, e m seu
sião exterior e contingente e s6 contêm a doutrina sob uma desenvolvimento, à concepção original e profunda do problema
forma popular, transposta e abreviada , sem nenhuma justifica· da individ ualidade q ue tinha sido inicialmen te revelada e apli­
ção nem qualq uer desen volvimento rigorosamen te conceptual. A cada na Monadologia e no " sistema de harmonia preestabele­
obra·mestra da teori a leibniziana do conhecimento, o~ Novos cida" de Leibniz. Mas é no seio da cultura francesa do século
ensaios sobre o entendimemo humano, somente em 1765 in· XV III , uma vez ma is. o nde 8 influê ncia ca rtesillna vinha pre­
gressa no campo visual do século XVIII , graças à edição orga­ do minando amplamente, que a in rluê ncia e a n=ssonãnci a de
nizada por Raspe com base no manuscrito de Hanover, ou seja , cer tas idéias e de certos problemas funda me ntais de Lc ibniz se
numa época em que a fil osofia do Iluminismo já realizara a fazem sentir com força crescente. O encaminhamento dessa in­
ma ior parte do seu desenvolvimento e adquirira sua fi sionomia fluência não passa pela estética e pela teoria da a rte. as quais
definitiva. A in fluência das idéias de Leibniz é, por conseguinte , só a muito custo se afastam da ó rbita. da doutrin a clássica seis­
inteiramente indi reta: s6 atullrlÍ na (orma transposta que o sis­ centista, mas pela fil osofia da natu reza e pelas ciênci as naturais
tema de Wolff lhe impôs. O ra, justamente, a 16gica de Wolff descritivas, nas q uai s a rigidez conceptual começa, pouco a pou·
e sua metodologia distinguem-se da de Leibniz na medida em co, a afrouxar. A maior ênfase recai dorava nte sobre a idéia
que procuram reduzir ao esquema mais simples e mais unirorme leibníziana de desenvolvimentoj o sistema da natureza do
possfve l a diversidade das abordagens leibnizianas. Se Wolff século XV III, que estava dominndo pela idéia de fix idez das
confere à idéia de harmonia, aos princípios de co nlinuidade e espécies, passa progreSsiva me nte por uma muda nça dc dentro
de razão suficiente o lugar que lhes compete na economia do para fo ra. De Maupertuis. retomando os princípios da dinâmica
sistema , por outro lado procura limitar-lhes a significação e a le ibn iziana, defendendo e explicando o princfpio de continuida­
independência originais, aprcsenlando-os como conseqüências, de, a té a frsica e a metafísica do orgâ nico e m Diderot c 06 pri.
como deduções do princfpio de contradição. Os conceitos leibni­ meiros esboços de teoria descritiva completa da natureza na
zianos e os temas fu ndamentais do seu sistema só (oram, pois, Histó,iu natural, dt: Bu rfon, acompan ha-se o desenrola r de um
tra nsmitidos no sécu lo XVI I1 com certas restrições e como q ue consta nte progresso . E verdade que Voltaire, no Candide, exer­
quebrado por sua passagem através de um meio refrativo. Pouco ce se u espírito à cu sta da Teodic:éia de Leibniz e rec rimina­
a pouco, e ntretanto, vai surgir um movimento de idéias que lhe , em :;CU5 Elementos da filo sofia de Newton , não te r feito
te nderá 8 anu la r a r uptura e a remover os obstáculos q ue se out ra coisa senão retardar com suas idé ias a própria {(Bica e o
opõem à compreensão. Na Ale man ha. é Alcxander Baumgarlen, progresso da ciência em geral. "Sua razão su fi ciente , sua con tinui­

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dade, seu orgulho, suas mônadas etc." - escreveu Voltaire em oposição fundamental já estão contidas as grandes tarefas inte­
1741 - "são germes de confusão, dos quais o senhor Wolff fez lectuais com que o século XVIII se defronta::-á e qu~ irá abordar,
brotar metodicamente quinze volumes in quarlO que, mais do que desde a teoria do conhecimento até a física, desde a psicologia
nunca, instilaráo nas cabeças alemãs o gO':i1O de ler muito e até a política e a sociologia, desde a filosofia da religião até a
entender pouco." 1 1) Voltaire, contudo, nem sempre foi dessa estético, sob tão variados aspectos.
opinião. Em O século de Lllls XIV, quando queri a fazer ver e
compreender em suas grandes cor rentes O conjunto da estrutura
intelectual do século XV II , não se tratava, para ele, de menos­
prezar o papel de Leibniz, e reconhecia efetivamente sem reser­
vas a significação universal de sua obra. Essa mudança de op i­
nião manifesta-se ainda mais nitidamente na geração seguin te 11
de Voltaire, no círculo dos enciclopedistas franceses. D'Alem­
bert, embora combatendo, é certo, os princípios da metafísica
leibniziana, nu nca deixa de confessar sua profunda admiração
pelo gênjo fil osófico e matemiÍlko de Leibniz. E Diderot, no
artigo "Leibniz" da EncicfopMia, pronuncia o entusiástko elo­
gio de Leiboiz: ele proclama , com FonteneUe, que a Alemanha ,
só por ter albergado esse espírito, nôo merece menos honra
que a Grécia por P latão, Aristóteles e Arquimedes, ao mesmo
tempo. O caminho ainda é loogo, sem dúvida, desdc esse elogio
pessoal até uma penetração autêntica, uma compreensão mais
profunda dos princípios da filosofia leibnizianu . Entretanto, se
se quiser apresentar em seu conjunto a estru tura intelectual do
séc ulo XVIJI, torná-la inteligível em sua gênese, cumpre colo­
car lado a lado, distintamente, essas duas correntes intelectuais
diferentes que nele confluíram: 11 forma cartesiana clássica de
análise e essa nova síntese filosófica, que te ve em Leibniz o
seu ponto de partida, mas que atuam em comum e se justapõem.
Da lógica das "idéias claras e distintas" a marcha do pensa­
men to leva à lógica da "origem" e do individual, da mera geo­
metria à dinâmica e à filosofia dinâmica da natureza, do "me­
canicismo" ao "organicismo", do ptincfpio de identidade ao
princípio dc infinidade, de continuidade e de harmonia. Nessa

60 61
11
NATUREZA E C/~NCIA DA NATUREZA NA
FILOSOFIA DO ILUMIN ISMO

I Para obter b medida exata do papel da ciência da natureza


na gênese e elabor2ção da imagem do mundo na época moderna
não nos cingiremos a considerat todas essas descobertas que se
integraram :.:ma por uma, como traços característicos, ao con·
teúdo dessa imagem e que definitivamente a modificaram de um
modo radical. Essa transformação, cuja amplitude parece, à pri­
meira vista, quase incomensurável, está muito longe de esgotar
a totalidade G.IIS forças criadoras oriundas da Hsica. Se essa de­
ser.lpenhou um papel decisivo. foi menos pelo novo conteúdo
objetivo do pensamento, cujo acesso ao espírito humano foi fran­
queado pela física, do que pela nova função que ela atribui ao
pensamento. A ciêocia da natureza não é mel'amente o movi­
mento do per.samento q1.!e se aplica ao mWldo dos objetos, mas
também O meio onde c espírito adq'Jire o autoconhecimento.
E desse modo se instaura um processo mais signifi cativo do- que
o recrudescimento e 8 eXlensão desse /tUl(erial com que a Cisica
recém· nascida enriqueceu o saber humano. O crescimento e 8

65
ampliação constante desse material pareeem, a partir dos séculos restringir sua am pliJude mas ce conhecer a lei que o envolve e
XV I e XV II, ter que prosseguir ad in/initum. Desintegrou·se a o impregna profundamente. Essa legali dade do universo que se
fonna rígida da mundivisão antiga e medieval; o mundo deixa de revela ao pensamento e se define pelo pensamento constitui o
ser um "cosmo" no sentido de uma ordem visfvel em seu todo, correlato necessário de sua imensidade visível. A nova concepção
diretamente acessfvel à intuição. Espaço e tempo ampliam·se infi· da natureza nasce, portanto, do ponto de vista da história das
nitamente: seria impossível continuar a concebê-Ios por meio idéias. de um duplo motivo: forças aparentemente olXJstas a con·
dessa rigura sólida que a cosmologia antiga possu[ra na doutrina dicionam e informam. O impulso para o singular, o concreto ,
platônica dos cinco corpos regulares ou na universo escalar aris· o fato agem nela tanto quanto o impulso para o .unherso abso­
totélico, ou apreender sua grande7..8 por medidas e números fini· luto. o instinto de se agarrar ao mundo com todos os seus órgãos ,
tos. Em vez desse mundo único e do ser único, eis que sobrevém tanto quanto o instinto de se lançar em seu vôo a fim de ganhar,
a in rinidade de mundos incansavelmente gerados no seio de um graças a essa elevação, uma perspectiva mais correta. O desejo
devir em que cada um representa apenas uma fase transitória. e o gozo sensuais juntam·se fi potência do espírito para arrancar
singula r, do inesgotável prOCeSSo vi tal do universo. Entretanto, a ° homem no mero dado e mandá·lo divagar ao ar livre no país
mudança essencial não reside nessa extensão ilimitada, mas. antes, do possível. A concepção medetlla da natureza que se formou
no fato de que o espírito, até por causa dessa extensão, adquire depois da Renascença com uma nitidez e uma firmeza cresccntes,
consciência dessa nova rorça cuja presença sente em si mesmo. e que busca p rover-se, nos grandes sistemas do século XVIT , em
Todo o aumento de extensão continuaria sendo estéril e só de­ Descartes. Spinoza e Leibniz, de um fundamento e de uma legi­
sembocaria, em última instância, no vazio se o esplrito não ad­ timidade filosóficas, caracteriza-se sobrdudo peltl nova relação
qui risse , ao mesmo tempo, por esse meio, uma nova intensidade, que se estabelece entre sensibilidade e entendimento. entre expe­
um a nova concentração em si mesmo. Tal concentração só o con· riência e pensamento, entre mundus sensibilis e mundus in­
fi rma em sua própria e verdadeira natureza. A sua mais elevada telligibilis.
energia e a sua mai s profunda verdade não residem no poder
Mas essa mudança de método no conhecimento da natureza
de passar ao infinito, mas de se afirmar em face do infinito, de se
im pli ca, ao mesmo tempo, uma modificação decisiva da "onto­
mostrar igual em sua simples unid ade à infinidade do ser . Já
logia" pura: ela desloca e altera n escala de valores pela qual
Giordano Bruno, em quem o novo sentimento universal se mani­
se afcria até então a ordem do ser. A tarefa do pensamento
festou claramente pela primeira vez em toda a sua forya, deCiniu
medieval consistia essencialmente em reproduzir a arquitetÔnica
nesse sentido a relação entre o eu e o mundo, o su jeito e o objeto.
Para ele, a infinidade do devi r, o grande espetáeulo do mundo do ser, em descrevê-la em seus grandes traços. _t'l~. sistema reli­
que se desenrola constantemente sob os nossos olhos é a con· gioso da Idade Média, tal como a escolástica o fixara, toda a rea­
firmação desse sentido profundo que o ego só pode descobrir lidade recebia seu -Iugár lmu tá~eI e indiscutfvcl; por esse lugar,
em si mesmo. :a a fo rça da razão que constitui para nós o único pela distância maior ou menor que o separava do ser da causa
modo de acesso ao infinito. que nos ga ran te sua exi stência e nos primordia l, o seu valor também era plenamente determi nado.
ensina a apli car-l he a medida e o Hmite com o objetivo não de Não pode haver em tal sistema a menor dúvida: todo o pensa­

66 67
menta se sabe situado no seio de uma ordem inviolável que não desencadear um connito. Muito pelo contrário, os grandes siste·
lhe compete criar mas perceber. Deus, a alma e o mundo são os mas esco16sticos no auge da sua época têm por sua tareCa essen·
três eixos do ser em torno dos quais se articula o sistema do cial sua concili ação, a concordânci a entre os respectivos conteú'
~aber . O con heci mento da natureza não é, de modo algum , ex· dOS/ O reino da graça não anul a c reino da natureza. Se ete se
cluldo desse sistema; contudo, fica desde o início limitado a esse ergue acima do reino da natu reza e, de certo modo, o sobrepuja,
círculo estreito do ser donde não pode sair sem se perder, sem não contesta, porém, a sua consistêncja: gralia nalllral non tollit,
se desnortear na escuridão a luz que queima nele. O' conheci· scd per/ieit. Nem por isso deixa de va l e~ o falo de que a oaru·
mento " natural" coincide com o conhecimen to das "criaturas"; reza nno encontrará em si mesma a sua acabada perCeição, q ue
ele é o saber, r.a medida em que este é acessível a um s~ r finito, deverá procurá·la além de si mesma. Nem a ciência , nem a mora·
criado dependente; o saber que não se estende a nenhum oulro lidade, nem o Estado podem erigir« sobre O seu alicerce . Há
dom ín io salvo o dos objetos sensíveis e finitos. Portanto, quer sem pre necessidade, para levá-los à sua verdadeira perfeição, de
do lado do sujeito quanto do objeto, é limitado e cntravado! Os uma assistência sobrenatural. A "luz natural" como tal já não
limites do conhecimento natural não co incidem, evidentemente, contém em si nenhuma verdade pTÓpriu; está corrompida e
nem mesmo no pensamento medieval. com os dos seres físicos obscurecida , e não saberill como li bertar-se. como restabelecer·se
ou corporais, dos seres materiais. A par do conhecimento natural dessa escuridão. Para o pensamento medieval subsiste, a par da
do mundo, dos corpos e das forças que aluam neste mu ndo, lei divina, tanto no domínio te6rico quanto no prático, uma es­
existe um conhecilT!ento natural do direito, do Estado, até da (era psíquica , relativamente au tônoma . da lei natural, esCera que
religião e de suas verdades fundamentai s, pois os limites do c0­ é acessfvel à razão humana e talvez dominada c eltplorada por
nhecimento natural não são determinados por seu objeto mas por ela. Niío obstante, a tex naturalis constitui o primeiro grau e o
sua origem. Todo o saber é "natural", seja qual Cor o domínio ponto de fi xação da [ex divina , a única que está em condições
ti que se reC ere, se decorre exclusivamente da razão humana e de restaurar o conhecimento primitivo perdido pelo pecado. A
se se apóia unicamenle nela , sem recorrer a nenhuma outra razão çontinua sendo a serva da revelação (lanquam Jumura et
I
fonte de certeza A "natmcza" significa, portanto , menos uma ministra) ; no nível das fac uldades naturais, in telectuais e espiri­
classe de objetos que um certo horizonte do saber. de compreen­ tuais, ela coloca o espírito no cam inho da revelação, prepara o
são da realidade! Deve-se·lhe imputar tudo o que se situa no
terreno da revelação.
compo do lumel! IUlturate, o que não requer, para ser demons·
Essa concepção, que permanece viva muito além da época
trado e compreendido, nenhuma outra ajuda senão a das facul·
da escolástica, que se afirma ainda sem contestação. por exem­
dades naturais do conhecimento. 1! nesse sentido que se opõem
o "reino da natureza" e o "reino da graçaH . O primeiro é·nos plo, no estabelecimento da velha teologia protestante nos séculos
comunicado pela percepção sensível e pelas operaçõcs que lhes XV I e XV lI,l sofre por dois caminhos dircrcntes o ataque do
estão ligadas, julgamento e raciocínio lógicos, o uso discursivo pensamento renascentista. e a fil osofia da natureza que toma a
do entendimento; o outro s6 nos é acess(veL graças à revelação. dianteira: pode·se enu ndar a sua tendl!ncia profunda, o seu
Enlre fé e saber. entre revelação e razão, não cabe, de resto, princípio fundamental , dizendo que o verdadeiro ser da natureza

68 69

.
I,
~

não deve ser procurado no plano do criado mas no plano da os seres individuais não lhes é pl-escrita por um legislador estra­
criaçiio. fA natureza é mais do que simples criatura: ela participa nho ; está fundada em seu próprio ser e é plenamente cognoscf­
do ser divino originário, visto que a força da eficácia divina vel a partir desse ser. A conseqüência disso é que um segundo
está viva nela. O dualismo do criador c da criatura é assim c essencial passo foi dado; a passagem do naturalismo dinâmico
suplantado. A natureza nlio se opõe mais a Deus como o motum da Renascença para a matemálica ffsica já ~tá implicitamente
ao movctls, como o movido ao motor divino, porquanto é justa­ consumada. Com efeito, esta últ ima conslrÓi-se pura e simples·
mente um princípio criador origin ário que se move interionnen­ mente sobre a idéia de lei , mas essa idéia está então dotada de
te. O poder de dar-se forma e de desenvolver-se a si mesmo uma significação mais rigorosa e mais determinada. O que dora·
assinala a natureza do selo da divindade. Não nos figuremos vante se impõe com todo o rigor ~ o estabelecimento da lei da
Deus cemo urr..a força que sobrevém de fera, agindo como causa ação que define a natureza da coisa. niio por uma espécie de
motriz primeira sobre uma matéria estranha; ele mesmo se adivinhação mas por um conhecimento claro e distinto, não pela
empenha no movimento, ai está imediatamente presente. Tal penetração de uma corrente de simpatia mas exprimind~a atra·
modo de presença convém apenas à divindade, s6 esta é digna vés de idéias claras . Tanto o sentimento quanto a intuição se.n­
dela ... Non est Deus ).lei intelfigenJia exterior circumrotans eJ sível e a imaginação não se encontram à alturl!. dessa exigência,
circumducense dignius ,mim UI; debet esse inlernum prillcipium à qual s6 se pode responder procurando (ora dos caminhos co­
motus, quod esl natura propria, species propria. anima propria mumente trilhados relações novas entre o individual e o todo,
quam nabeont tot quol in illius gremio vivunt." entre a "aparência" e a .. idéia" . A observação ~ensível deve
combinar-se com a medida exata para engendrar 8 nova forma
Nessas fórmulas de Giordano Bruno manifesta-se uma ra­
da teoria da natureza . Essa teoria, lal como foi estabelecida por
dical mudança da idéia de natureza. A natureza é elevada até a
Kepler e Galileu, ainda está impregnada de um profundo impulso
es(cra do divino, parece ser absorvida por sua infin idade, mas ,
religioso que lhe confere seu dinamismo. De fato , O objetivo
por outro Lado, representa justamente a individualidade, o ser
que ela se propõe a alcançar não mudou: descobrir na legali­
próprio, o ser singular dos objetos. E é igualmente sobre essa
dade da natureza o vestígio de $ua divindade. Contudo, justa­
potência disti ntiva que irradia de cada coisa, como de um centro
mente por causa desse contexto religloso, tal teoria não podia
de rorça particular, que assenta o seu valor inalienável, a "digni­ deixar de entrar em conflito , de um modo cada vez mais grave,
dade" que ela reivindica na totalidade do ser. Com o nome de com as formas tradicionais da M. A luta que a Igreja travou
"natureza" entende·se doravante tudo isso ao mesmo tempo: sigo contra a penetração do esplrito ffsico-m atemático moderno só se
nifica, em primeiro lugar, o ordenamento de todas as partes em compreende nessa perspectiva . O que ela combatia na física não
relação ao Uno, da totalidade da atividade e da vida que as era certamente tal ou tal resultado da investigação cientlCica.
engloba a todas; contudo, esse ordenamento deixa agora de ser Sempre teria havido uma conciliação poss(vel entte esses resul­
uma simples su bordinação, porquanto a parte não está somente tados c a doutrina da Igreja: Galileu acreditou por muito tempo
no todo, ela afirma-se igualmente contra esse todo. Constitui algo nessa concil iação e trabalhou $inccramentc nesse sentido. Mas
de especificamente individual e necessário. A lei a que obedecem o trágico mal-entendido no qual ele fin almente viria a naufragar

70 71
foi o de ter procurado a divergência que se esforçava por resol­ Ora, esse esplrito humano manifestara·se claramente desde
-ver onde ela não estava, o de te~ subestimado, assim como então no próprio parecer do século XVIII : o que Galileu recla­
as inovações que introduzira na alilUcle metodológica do cientis­ mava não se convertera, com Newton, em realidade? O proble­
ta. Por isso Galileu não foi capaz de conduzir sua réplica até ma que a Renascença tinha formulado não encontTara, num
a verdadeira e profunda raíz do conflito; ficou na tentativa de prazo de tempo extraordinariamente cur:o, uma solução con­
adEptar e- equilibrar as conseqüências intermediárias. Na verda­ cludente e definitiva? CaJileu e l<.epler tinham concebido 8
de. não era à !leva cosmologia que se opunham com todas as idéia de lei natural em toda a S:J8 amplitude e profundidade,
scas forças as autoridades eclesiásticas: enquanto ~hjp6teses" com teda a sua importância metodológica, mas só tinham podi­
matemáticas, essas autoridades podiam permitir (anto O sistema do realizar a de:nonstração da aplicação concreto. dessa concep­
de Copérnico quanto o de Ptolomeu. O que era intolerável, o ção para fenômenos naturais isolados, como ti queda dos corpos
que ameaçava o sistema da Igreja até em seus alicerces era a e o movimento dos planetas. Subsistia, portanto, uma lacuna
nova concepção da verdade que Galileu proclamava .~ A par da por onde a dúvida poderia ir.sinuar-sc; faltava ainda o prova de
verdade da revelação, eis que surge agora uma verdade própria que essa legalidade rigorosa, a qual se revelava válida nas par­
e originaJ, uma verdade física independente. Essa verdade não tes, era transferível pata o todo, de que o universo coroa tal
nos é dada pela palavra de Deus mas em sua obra; não assenta era acessível aos conceitos rigorosos do conhecimento matemá­
no testemunho das Escrituras ou da Tradição e está a todo tico, de que ele podia ser adequadamente concebido por inter­
instante presente sob os nossos olhos. Naturalmente, ela não é méd io deste_ Essa prova foi fornecida na obra de Newton: já não
legível para quem não tiver a menor idéia da escrita em que se tratava mais de ordenar e regular um campo fenomenal cir­
se nos apresenta e que, por conseguinte, não saberia decifrá-la. cunscrito, mas de descobrir e fixar claramente uma - que
E uma verdade que pode vestir-se de palavras simples ; a única di-zemos1- "Lei do Cosmo"_ Essa lei fundamental Newton pro­
expressão que lhe corresponde e lhe convém encontra·se nos pusera-a e demonstrara-a manifestamente na teoria da gravita­
objetos matemático.s, nas riguras e nos númcros_ Grs.ça9 às mate­ ção. Era, enfim, o triunfo do saber humano: a descoberta de
máticas , ela apresenta-se wb uma (orma acabada, numa tessitura um poder de conhecer que se igualava ao JXXIer criador da natu­
sem lacunas e perfeitamente transparente. A revelação jamais reza. Foi assim que o século XVIII, em seu conjunto, compreen­
poderá, somente pela palavra. atingir esse grau de limpidez, de deu e apreciou a obra de Newton: reverencia em Newton, bem
translucidez, de univocidade, porquanto a palavra, como tal , entendido, o grande cientista experimental; mas, longe de ficai
mantém·se sempre cambisnte e ambígua, permitindo uma varie· por ai, proclama incansavelmente e com uma insistência crescen·
dade de interpretaçóes_ A sua compreensão e a sua interpretação te que Newton não deu somente AI natureza regras fixas e dura·
são obra humana, portanto necessariamente fra gmentária, ao douras, mas também à filosofia. Não menos importantes do que
passo que na naturel.8 estende·se sob 05 nossos olhos o plano os resultados de suas investigações são as mtfx{mas resultantes
geral segundo o qual o universo é construído, em sua unidade dessas investigações, as regulae philosophandi cujo valor provou
indivisível e inviolável, aguardando apenas o espírito humano na ffsi ca é com as quais marcou ·essa ciência para sempre. A
para o reconhecer e o exprimir. admiração ilimitada, a veneração que o século XVII T manifes­

72 73
tou a Newton baseia·se nessa interpretação do conjunto de sua e fixá-lo pela observação , experimentação, medida e cálculo. Mas
obra . Se essa obra parece lão importante, tão incomparável, não os nossos elementos de mediçao não devem basear-se somente
é exclusivamente em fu nção da elevação de seus p ropósitos e nos dados sensíveis, devem recorrer igualmente a essas funções
de seus êxitos mas ainda mais pelo caminho que ela inaugurou. universais de comparação e de contagem , de associação e de dis­
Newton (oi o primeiro a traçar o percurso que conduz das hipó­ tinção, que constituem a essência do intelecto. Assim , à auto­
teses arbitrárias e fantasiosas à clareza do conceito, das trevas nomia da natureza corresponde a autonomia do entendimento.
à luz.
Num só e mesmo processo de emancipação intelectuaJ, a filoso­
[ . . . ] Nalure and Nature's laws lay hid in night~ fia iluminista procura mostrar a independência da natureza ao
God said: Let Ne wton be" and aU was light [ ... ) •
li mesmo tempo que a independência do entendimento . Ambos
Nesles versos de Pope está expressa da maneira mais con­ devem ser doravante reconhecidos em sua originalidade própria
cisa e signifi cativa a veneração de que Newton gozava no pensa­ e assim correlacionad05. Toda a mediação entre a natureza e o
mento da época ilumini sta . Com ele, graças a ele, pensava-se entendimento que se arrogasse detentora de uma onipotência ou
ter ennm enconlrado o solo fi rme , a fundação que nenhuma de um ser transcenden te tomar-se-ia imediatamente supérflua.
transfonnação ulterior da física poderia vir a abalar. A corres­ Tal mediação não permite o estabelecimento de um vInculo mais
pondência da natu,reza e do conhecimento humano está agora estreito entre 8 natureza e o espreito; muito pelo contrário,
estabelecida de uma vez por todas, o vínculo que os une é sempre teve por efeito afrouxar toda e qualquer vinculação entre
doravante indi ssol úvel. Os dois termos dessa correlação são, eles , pela simples posição do problema , pelo questiotUlmento da
sem dúvida, perfeitamente independentes, mas nem por isso dei­ natureza e do espírito , e acabará por rompê-Ia. Essa ruptura já
xam de estar, graças a essa mesma independência , numa perfeita ocorrera , na metafísica dos tempos modernos, por iniciativa dos
harmonia. A natureza que está no homem encontra·se, em suma, sistemas oca,sionalistas, sacrificando 1.1 independência de ação da
com a natureza do cosmo e reencontra-se nela. Quem descobre natureza e a independência fo rmal do espfeito à onipotência da
uma não pode deixar de encontrar a outra. Já era o que a causa primeira divina. Contrária a essa recaída na transcendên­
filosofia da natureza da Renascença entendia por natureza: uma cia, a fil osofia iluminista proclama, tanto para a natureza como
lei que as coisas não recebem do exterior mas que decorre da pata o conhecimento, o princípio de imanência. Cumpre con­
pr6pria essência delas, que está desde a origem implantada nelas. ceber a nutureza e o espírito por sua essência própria, a qual
Natura estque níhilm nis; virlus insila rebus. não é em si algo de obscuro e de misterioso, de impenetrável ao
Et [ex qua peragunt proprium cuncta entia cursum.3 en te ndi mento ~ mas que, pelo contrário, consiste em princípios
Para descobrir essa lei devemos abster-nos de projetar na que lhe são plenamente acessfveis, que ele é capaz de descobrir
natureza as n05S8S representações e os nossos devaneios subje­ e de explicar racionalmente por si mesmo.
tivos; devemos, pelo contrário, acompanhar o seu próprio curso Nessa perspectiva, explica-M! a potência quase ilimitada que
• A natureza e as leis da natureza permanecem ocultas na noitel o conhecimento físico adquiri u sobre todo o pensamento da
Deus disse: "Faça-se Newton" e tudo era luz (N. do T.). epoca das Luzes . D'Alembert chamava o século XV II I de Século

74 '/5
as ciências da natureza e as ciências do espírito. assim como o
da Filosofia; mas não tinha menos direitos nem menos orgulho
principio sobre o qual essa ligação repousa:
em designar-se como O Século da Ciência. A organização da
pesquisa no domínio da física já estava muito avançada no A ciência da ,tatureza adquire de dia para dia novas
século XVII; atingira até uma certa perfeição. Na Inglaterra, riquezas; ti geometria, ao dilatar suas fronteiras, levou
com a fundação da Royal Society em 1660, tinha sido criado um o seu facho às partes da jísica que se encontravam
local de encontro pata os trabalhos de todos os cientistas. Na mais perlo dela; o verdadeiro sistema do mundo foi
realidade, essa sociedade já existia e funcionava antes como urn<! finalmente reconhecido. Desde a Terra até SaturtJo,
associação livre de pesquisadores independentes , como uma es­ desde a história dos céus até a dos insetos, a tisica
pécie de "u niversidade invisível" (invisible college) , antes de mudou de rosto. Com ela, quase todas as outras ciên­
receber, com ° decreto régia de fund ação, seu estatuto e sua cias adquiriram uma nova tormo. Essa fermentaçi10
sanção oficial. Manifestava desde sua origem um esp(rito meto­ intelectual, agindo em todos os sentidos pOr sua pr6­
doldgico muito especial , recordando incessantemente que nenhu­ pria natureza, propagou·se com uma espécie de violên­
ma idéia merecia confi8!lça em física se não tivesse dado antes cia a tudo o que lhe era oferecido, como um rio cauda­
suas provas empíricamente, se não tivesse sido testada na devida loso que rompeu seus diques, Assim, desde 00 princfpios
ocasião e por meio da experimentação, O movimento assim de­ das ciências profanas aos fundamentos da Revelação,
sencadeado alcança em seguida a França e encontra seu primeiro desde a metaf/ sita até as questões de gosto, desde a
apoio na Académie des Sciences fundada por Colber! (1666). música ã moral, das disputas dos teÓlogos aos proble­
Mas s6 o século XVIII lhe proporcionou toda a sua amplitude, mas económicos, desde os direitos naturais até os direi­
ao estender sua ação a todos os domfnios da vida intelectual. tos positivos, em suma, desde as questões que nos
Foi somente então que ele saiu do drculo das academias e das interessam de perto até as que só indiretamente nos
sociedades científicas para converter-se, de uma simples oportu­ afetam, tudo foi discutido, analisado ou, pelo menos,
nidade propiciada ao homem de ciência, num dos elementos mais agitado. Uma nova luz sobre alguns assuntos, uma nova
importantes e mais profundos de toda a civilização. A par dos obscuridade sobre muitos outros loi o truta ou a con­
seqüência dessa agitação geral dos espíritos, como o
investigadores experimentais, dos matemáticos e dos Hsicos, par­
eleito do lluxo e re/luxo do oceano cOllsiste em' trazer
ticipam agora no movimento igualmente os espíritos que se es­
para a costa alguns objetos e dela afastar outros.'
forçam por realizar uma nova orientação do conjunto das ciên­
cias morais. Uma renovação dessas ciências, uma visão mais Nem um só pensador notável do século XVIII escapou a
profunda do espírito das leis, do espíri to da sociedade, da polí­ essa tendência profunda. Se Voltaire, no e:omeço, fe.z ~poc a na
tica, até da arte poética, parece impossível se não se olhar para França. nâo foi por seus poemas nem pelos seus primeiros esbo­
o grande exemplo das ciências naturais. f: ainda O'Alemberl ços fil osóficos, mas por sua introdução a Newton , por seus
quem não s6 encarna em sua pessoa mas exprime com maior êléments de la philosophie de Newton; entre as obras de Diderot
rigor e clareut, nos seus Elementos de filosofia, essa ligação entre encontra-se uma intitulada Eléments de physiologie c entre os

76 77
escritos de Rousseau.. um a exposição dos FOlldemellts de la de Théologie physique, um tratado do inglês Derham em tradu­
chimie. Os primeiros trabalhos de Monlesquieu relacionam-se ção francesa , a que se seguem pouco depois a Théologie astrO-­
com problemas de fisica e de fisiologia. e ele parece ter sido Itomique, do mesmo Derham, a Théologie de l'eau, de Fabricius,
impedido de lhes óar prosseguimento por força de uma circuns­ e a Théologie des inSCC'tcs, de Lesser.6 Voltaire não se enfu rece
tância exterior, uma doença dos olhos que desde cedo lhe tornou apenas contra as pretensas descobertas dessa física teológica; ele
difícil a observação minuciosa. Nesse est ilo tão característ ico de procura , sob retudo, aniquilá-la no p lano metodológico. desacre­
suas obras da juventude. diz Montesquieu: "Poder-se-ia quase ditá-la como fil ho monstruoso do espfrito metodológico, como
pensar que a natureza é como essas vi rgens que guardam por bastardo da fé a da ciência. "Quando alguém quer levar-me
muito tempo o seu tesouro, mas que, depois, deixam-se arrebatar pelos caminhos da física a crer na Trindade, diz-me que as três
num instante esse mesmo tesourO que tão zelosamente defen­ pessoas divinas correspondem às Irês dimensões do espaço. Um
diam." li Todo o século XVII I está impregnado dessa convicção: outro acha q ue me vai dar a prova tangível da transubstancia­
acredita que na história da humanidade chegou fin almen te o ção: mostra-me pelas leis do movimen to como pode existir um
momento de arrancar à natureza o segredo tão ciosamente guar­ acidente sem o seu sujeito ". Uma nítida sepa ração metodológica
dado, que findou o tempo de deixá-la na obscuridade ou de se s6 se impõe aos poucos. Toma a dianteira na geologia elim inan­
maravilhar com ela como se fosse um mistério insondável , que do em primeiro lugar o esquema temporal em que se desenro­
é preciso agora trazê-I a para a luz fulgurante do entendimento lava o rel ato bfblico da Criação. Já no século XVII os ataques
e penetrá-Ia com todos os poderes do espírito . visavam sobretudo a esse esquema. Fontenelle compara a crença
Em primeiro lugar, era necessário que o vínculo unindo dos antigos na imutabili dade dos corpos celestes à crença de
um a rosa que qui sesse recorrer ao fato de, em sua memória de
teologia e física fosse definitivamente desfeito. Embora já esti­
rosa , jamais ter visto ainda morrer um jardineiro. A crítica
vesse basta nte mais solto antes do sécu lo XVIII , não fo ra ainda
torna-se mais séria depois que passou a apoiar-se em resultados
quebrado de modo nenhum . A autoridade das Escrituras conti­
empiricos, em especial nas descobertas da paleontol ogia. O tra­
nuava seado respeitada em questóes que só dependiam da física .
tado de Thomas Burnel, Telluris sacra theoria (1 680), assim
As zombarias com que Voltaire atormentava inexoravelmente a
como a sua Archaeologia philosophica ( 1692) esforçam-se uma
"fisica blblica" parecem-nos hoje superadas e insípidas, mas um vez mais por confirmar a verdade objetiva do relato bfblico da
juí'Zo histórico justo não devc esquecer que ele se defrontava no Criação ; mas Burnet deve . a esse respeito, renuncia r expressa­
sécu lo XVIl I com um adversário que era ainda sério e perigoso. mente ao princípio de inspi ração literal e refugiar-se numa inter­
A ortodoxia ainda não renunciara, em absoluto, ao princípio da pretação alegórica que lhe perm ite reformular toda a cronologia
inspiração literal e o resultado lógico desse princípio era que o bíblica. Em lugar dos sete dias da Criação, ele introduz épocas
relato mosa ico da Criação continha uma autêntica ciência da ou períodos a que se pode atribuir qualquer duração, não
natureza cujos dados não podiam ser abalados. Não só os te61o­ importa qual , imposta pelas descobertas emp(ricas . Em As épocas
gos, mas também os físicos e os biólogos esforçavam-se por sus­ da natureza, a mais importante obra de Buffon, t,sse procedi­
tenl:U e explicar essa ciência. Em 1726. é publicado com o título mento será elevado à categoria de um princípio de investiga­

78 79
ção bem definido. Buffon não pretendia entrar em conflito com natureza com um espetáeulo que se desenrolasse num vasto palco
a teologia e, aos primeiros ataques dirigidos contra a sua obra, de teatro . Ao espectador sentado na platéia oferece-se uma série
submeteu-se às decisões da Sorbonne. Mas, ao manter silênçio de eventos que chegam e partem em confusa seqüência. O espec­
a respeito do Gênese, disse muito mais do que poderia tcr de­ tador absorve-se na contemplação desses eventos, deleita·se na
clarado em qualquer polêmica. Com efeito. pela primeira vez riqueza variegada das imagens que se desenrolam diante dele,
era esboçada uma história física do mundo que se mantinha. à sem se preocupar muito em indagar como é que o espetáculo é
margem de toda a espécie de dogmática religiosa e só queria realizado. Mas, se por uma vez se encontrar na multidão de es­
apoiar-se em fatos observáveis e nos principias da física teórica. pectadores um mecânico, ele não se contentará em olhar. Não
Uma brecha irreparável foi assim aberta no sistema tradicional, descansará enquanto não estiver na pista das causas e não des­
e o espírito irrequieto de Voltaire não descansou, ao longo de cobrir como funciona O mecanismo que produz essa sucessão de
uma obra que se estendeu por mais de meio século, euquanto cenas. A conduta do filósofo é idêntica à do mecânico. Mas
não demoliu . pedra por pedra, podemos dizer, todo o edifício ocorre nesse caso uma circunstância que aumen ta a dificuldade:
desse sistema. Essa destruição era a preliminar indispensável para é que a natureza, no espetáculo que produz incessantemente sob
a reedificação da física. A ciência tinha reaberto agora, com os nossos olhos, escondeu tão bem o seu dispositivo que, durante
pleno conhecimento de causa, o processo outrora intentado por séculos, ninguém logrou descobrir-lhe o mecanismo secreto. Só
Galileu. Ela reabria-o dessa vez cm seu próprio fórum e decidia a ciência dos tempos modernos conseguiu espreitar nos basti­
fazê-lo de acordo com as suas próprias normas. Desde então o dores: percebeu não só o espetáculo mas compreendeu também
seu veredito nunca mais foi seriamente contestado: o próprio a engrenagem que o põe em movimento. E ao invés de, por
adversário aderiu·lhe finalmente em silêncio. Assim foi alcança­ essa descoberta, o encanto do espetáculo diminuir, O seu valor
da uma das primeiras vitórias decisivas da filosofia do Ih.tminis­ é, muito pelo contrário, realçado. Seria um erro crer, como
mo. Ela punha um ponto final numa questão que se iniciara na muitos, que o conhecimento dos mecanismos que regem o curso
Renascença: delimitava definitivamente o domínio do conheci­ do universo lhe reduzem ~ dignidadc. "No que me diz respeito,
mento racional, no interior do qual este não encontrava o menor ainda o tenho em mais alto apreço depois de saber que ele é
obstáculo e o menor constrangimento autoritário, onde podia como um relógio. Não é deveras surpreendente que a natureza,
movimentar·se livremente em todos os sentidos e, apoiando-se
por mais admirável que seja, assenta em definitivo sobre coisas
nessa liberdade, chegar, enfim, ao pleno conhecimento de si
tão simples? D1
mesmo e das forças que continha em seu bojo,
A compaIação assinalada por Fontenelle é mais do que um
simples jogo de espíritoi ela encerra um pensamento que era
de importânci a decisiva para toda a edificação do conhecimento
2
da natureza no século XVII. A fil osofi a cartesiana da natureza
Em Enlreliens sur la pluralité des mondes. FonteneUe, pro­ conferi.ra a esse pensamento seu cunho característico e uma apli­
curando explicar a cosmologia cartesiana, compara a história da cação universal Nada se compreende da natureza se a considerar­

80 81
l

mos tão-somente uma soma de fenômenos, se apenas tomnrmos caminho, mais se apro:x.imava dos !enOmenos particulares da na­
em consideração a sua extensão no espaço e a sucessão de even­ tureza, maiores eram as dificuldades que se acumulavam à sua
tos no tempo. Trata-se de remontar desses fenômenos aos prin­ fren te. Ele só podia defrontar essas dificuldades encontrando
cípios; ora, estes s6 se encontram nas leis universais do movi­ escapatórias nos DOVOS e cada vez mais complicados mecanismos .
mento. Portanto, assim que essas leis fo ram descobertas e se enredando-se numa série de hipóteses. Essa tela finamente tecida
lhes deu uma expressão matemática exata, está traçado o cami­ foi despedaçada por Newton. Este esforça-se igualmente por es­
nho para todo o conhecimento ulterior. Basla-nos desenvolver o tabelecer principias matemdticos universais que governem o curso
que af se encontra contido e implícito para ter uma visão com­ da natureza; mas não acredita na possibilidade de reduzir toda
pleta de toda a natureza, para compreender o universo até em a fís ica à geometria. Pelo contrário, defende o privilégio e a
suas estruturas mais íntimas. O tratado de Descartes sobre o especificidade da pesquisa física, especificidade essa que se ba­
sistema do mundo devia fornecer a execução desse plano teóriCO. seia, para ele, no método de experimentação e de raciocínio
Estava colocado à sombra do lema: " Dêem-me a matéria e indutivo. O caminho da investigação física não se faz de cima
construirei um mundo" . O pensamento já não quer mais aceitar para baixo, dos axiomas e principias para os Catas, mas, inver­
o mundo como um dado empírico; assume como tarefa pene­ samente, destes para aqueles. Não podemos começar por hipó­
trar no ediHcio e observar por si mesmo como a construção é teses gerais sobre a natureza das coisas para deduzir daí, em
realizada . Em suas próprias idéias, claras e distintas, eocontra seguida, o conhecimento dos d eitos particulares; devemos, pelo
o exemplo e O modelo de toda a realidade. A evidência de seU6 contrário, iniciar a nossa investigação na posse do conhecimento
pri ncípios e de seus axiomas matemáticos o conduz com toda a que nos foi facultado de nntemão pela observação direta, para
segurança de um extremo ao outro do domínio da natureza. tentar chegar em seguida, subindo progressivamente. até as pri­
Pois existe um só caminho fixo e determinado, uma única cadeia meiras causas e os elementos mais simples dos acontecimentos
dedutiva fecha da sobre si mesma, que leva das causas mais eleva­ em curso. O ideal da dedução opõe·se assim ao ideal da aná­
das e mais genéricas do devir até os mínimos efeitos, por com­ lise. E essa análise é um princípio sem fim; ela não pode esta­
plexos que sejam. Não ex iste qualquer espécie de barragem entre belecer-se em fu nção de uma série limi tada, de um programa
o domínio das idéias claras e distintas e o dos fat os. entre a predetenninado de operações mentais; deve ser reatada a cada
geometria e 8 físiCa. Uma vez que a substância dos corpos con­ novo está.gio do desenvolvimen to da ciência experimenta1. Jamais
siste apenas em extensão, o conhecimento dessa extensão. a se registra ar um ponto fin al absoluto, apenas uma série de pa­
geometria pura, prepondera simultaneamente na física . Ele expri­ radas relativas e provisórias. Newton considerou a sua pr6pria
me a essência do mundo dos corpos e suas Cundamentais pro­ dou trina, a teoria da gravitação universal, uma dessas paradas
priedades universais medi81lte definições exatas, e parte daI para provisórias, porquanto se contentou em mostrar na gravitação
8 detenninação do particular e dos fatos. numa seqUencia con­ um fenômeno universal da natureza sem lhe averiguar as causas
tínua. . últimas. Rechaçou expressamente uma teoria mec4nica da gra­
Mas esse grandioso projeto da Hsica cartesiana não resistiu vitação porque a experimentação nenhuma prova satisfat 6ria nos
ao teste da experiência. Quanto mais Descartes progredia nesse fornece nesse sentido. Tampouco descja estabelecer uma causa

82
83
metafísica qualquer para a gravidade! isso significaria para o ({­ [idades "ocultas' , como aquelas a que a escolástica recorria, é
sico uma transgresslio injustificável dos limites do seu domInio. arbitrária e, bem entendido, vazia de sentido; em contrapartida ,
Ora, esse só tem que se ocupar dos fenômenos da gravidade e seria indubitavelmente um progresso muito claro e muito con­
não deve procurar exprimir esses fenômenos em simples con· siderável para o pensamento cient[fico chegar·se a delimitar a
ceitas, numa derinição abstrata. O que ele procura é uma fór· riqueza dos fenômenos naturais a um reduzido número de pro­
mula matemática que os reúna a título de casos particulares priedades fu ndamentais da matéria e a certos princípios do ma-­
concretos e que faç a deles a descrição completa . A teoria física vimento, mesmo que as causas dessas propriedades e desses
não pode nem deve ir além dos limites de uma descrição puta princfpios devam, no início, permanecer desconhecidas para nós_
dos fenômenos da natureza .· Vista nessa perspectiva, a gravi· Com essas teses clássicas, como as que se encon tra , por
dade é, de fato, uma propriedade geral da matéria. mas não exemplo, em conclusão da sua Optica,O Newton traçou um pro­
existe a menor necessidade de considerá-la uma de suas pro­ grama cl aro e preciso para o con junto das investigações teóricas
priedades essenciais. A filosofia da natureza que se propõe a da física do século XVIII. O ponto mais crítico dessas investi·
edificar o mundo pelo puro pensamento, a construf·lo a partir de gaçócs é a passagem de Descartes a Newton, efetuada com muita
concei tos simples. vê-se consta ntemente a braços, segundo New· energia e lucidez, O ideaJ de uma filosofia da natu reza pura­
ton, com uma dupla tentação e um duplo perigo. Toda vez que mente "mecanist·a", segundo a concepção que Fontcnelle anun·
ela se depara com alguma qualidade geral das coisas, a. qual se ciava nas fórmu las citadas mais aci ma. é assim progressivamente
encontra por toda a parte. tudo o que pode fazer é hipostasiar arastado e, por fi m, totalmente abandonado peJas te6ricos do
essa qualidade, ou seja, fazer dela uma qualidade primeira. abso­ conhecimen to da nova física. No seu Tratado dos sistemas ( 1749) ,
lutamente real, do ser, ou resolvêAa, reduzi·la, explicando--a como Condillac já assume essa posição sem ambigüidade para elimin.ar
uma conseqüência de razões mais longínquas. Entretanto, esses do domínio da física esse "espírito de sistema" que produziu os
dois perigos são estranhos ao verdadeiro empirismo, o qual se grandes edifíc ios doutrinais da metafísica do século XVII. Em
contenta em estabelecer os fenômenos, sabendo por outro lado vez de não se sabe que explicação geral mas arbitrária, extraída
que nenhum fenômeno constituí uma realidade tão absolutamente de uma pretensa " natureza das coisas· , era imprescindível dar
derradeira que não seja suscetível de ainda outra operação analí­ lugar .à observação pura dos fenômenos e à simples demonstra·
tica. Tal análise não pode, porém, ser realizada de modo preci­ ção de sua conedo empírica. O físico deve, em definitivo, re·
pitado pelo pensamento, por antecipação; ela deve aguardar os Runciar a essa ambição de explicar o mecanismo do universo.
avanços da experiência . -e nesse sentido que Newton insiste nO Ele já tem muito que fazer. e tem feito muito, q uando se em·
fato de que a gravidade é, de momento, um elemento "'último" penha em mostrar as relações determinadas que unem seus di·
da natureza, uma qualidade provisoriamen te " irred utfve''', que versos elemen tos. O ideal do conhecimento da natureza deilCou
nenhum mecanismo conhecido basta para elCplicar. o que não ex· de se inspira r, por conseguinte, no modelo da geometria a fim
clui, evidentemente, que essa mesma qualidade, à luz de obser­ de op!ur pelo da aritmética, pois é a teori a dos números a que,
vações ulteriores, não possa por .sua vez ser reduzida a renôme· segundo Condillac, oferece o exemplo mais claro c mais simples
nos mais simples. A hipótese de que não se sabe quais as qua· de uma tcoria das relaçõcs em geral, de uma lógica geral das re­

84 85
lações.10 Mas cs.se idea1 de conhecimento possui, antes, a am­ sempre a possibil idade de erro, de ilusão seosoria1. Para escapar
plitude de sua extensão e a força de sua influência em virtude de a essa ilusão. não lemos outro recurso senão rasgar o véu da
ter sido adotado por Voltaire como grito de guerra no decorrer aparência, relacionar os dados empíricos com idéias, e"primi-los
das lutas que travou contra a física cartesiana. Com esse seu por idéias que em si contêm suas próprias garantias. Existe, por­
incomparável talento pa ra simplificar e generalizar os problemas, tanto, uma certeza imediata , intuitiva, dos princípios e um c0­
para universalizá-Ios, Voltaire não tardou em situar o problema nhecimento mediato, derivado dos fatos . A certeza dos fatos está
no plano da generalidade. O método de Newton não é unica­ subordinado à dos princípios e deles depende. Mas a nova teori a
mente válido para a física; ele vale para todo saber em geral e do conhecimento físico, apoiando-se em Newton e Locke. in­
submete doravante esse saber a condições e restrições bem deter· verte essa relação. O princípio é q ue é derivado e o fala, como
minadas. Quando não podemos va1er-nos da b6ssola das mate­ malter 01 lact, é que está na origem. Não ex iste nenhum prin­
máticas nem do farol da eltperiência e da ffsica, é certo que não cípio que seja certo" em sj "; cada um deles deve a sua verdade
podemos dar um só passo em nosso caminho. :e em vão que e a sua credibilidade i.nterna ao uso que fazemos dele, uso que
esperamos poder decifrar algum dia a essência dos coisas, seu não poderia consistir em oul ra coisa senão permitir-nos abranger
pu ro "em si" (ihr reines Alt-Sich). Não poderemos compreender, inteiramente a diversidade dos fenômenos dados e impor-lhes
partindo de idéias gerais , como é possível que uma fração de urna ordem e uma classificação segundo pontos de vista deter­
matéria aja sobre uma outra se não chegarmos a faze r urna idéia minados. Se pusermos de lado essa função de ordem e de clas­
clara do nascimento das nossas próprias representações. Tanto sificação, todos os princípios caem no vazio. Eles não possuem
num caso como no outro deveremos contentar-nos em estabelecer em si mesmos a sua razão de ser; só podem receber sua verdade
o .. quê· sem ter a menor idéia do .. como". Indagar como pen­ e sua certeza por intermédio daquilo que fu ndamentam. Como
samos e sentimos, como 09 nossos membros obedecem ao c0­ nada têm a fundamentar que não pertença ao domínio da obser­
mando da nossa vontade, significa interroganno-nos sobre os vaçiio, das realidades de fa to, é óbvio que esses pri ncípios, por
segredos da criação. Ora, nesse ponto, todo o saber nos abano universais que sejam, nunca podem escapar inteiramente a esse
dona: não existe nenhum saber dos primeiros principias. Nada domínio, passar-lhe por cima, "transcendê-lo". Em meados do
de verdadeiramente primeiro, de absolutamente originário ja­ século, graças aos discípulos e apóstolos que a doutrina de New­
mais nos será plena e adequadamente conhecido: "A ucun premier ton encontrou na França, graças a Vohaire, a Maupertuis, a
ressort, aucun premier principe ne peut btre sais; par naus." 11 D'Alembert, essa concepção impÔs-se por toda parte. Costuma­
Na questão da certeza e da incerteza do conhecimento, os papéis se considerar a conversão ao "me(anismo" , ao " materi alismo",
foram curiosamente trocados em conseqüência dessa passagem como o traço mais signiricativo da filosofia da natureza do sé­
de um ideal construtivo da física para um ideal puramente ana­ culo XVIIr e acredita-se com freqüência que basta isso para
lítico. Para Descartes, a certeza e a firmeza de todo o saber fun­ caracterizar exaustivamente o seu espírito, em particular a orien·
davam-se nesses primeiros princfpios, ao passo que todo o estado tação geral do espírito frances nessa época. Na verdade, esse
de fato como tal permanecia incerto e problemático. Não p0­ "materialismo", tal como se apresenta, por exemplo. no Sysleme
demos confiar na aparência sens(vel, porquanto ela comporta de la narure, de Holbach, e em L'homme machine, de La Mettrie,

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representa apenas um fenômeno isolado que não pode, de modo blema mais difícil e mais profundo. A fil osofi a de O'Alembert
nenhum, passar por representativo desse período. As duas obras renuncia a estabelecer a fórmula me tafísica do cosmo que nos
citadas constltuem um caso específico, uma recaída no esp{rito desvendaria o "em si" das COhi3S (das An-Sicll der Dinge); ela
dogmático contra o qual o século XVIII batalba pela pena de quer ater-se ao domínio renomenal. colocar em evidência o sis­
seus pensadores científicos mais eminentes, e que se esforça jus­ tema que esses fenômenos constitllern, sua ordem conslante e
tamente por superar. A mentalidade cientffica do circulo da En­ completa. Onde podemos assegurar-nos, entretanto, da verdade
ciclopédia não é encarnada , em absoluto , por Holbaeh e La desse mesmo sistema , da existência de uma tal ordem? Onde re­
Mettrie. mas por D'Alembert, em quem vamos encon trar a mais side a garantia, a prova decisiva de que esse sistema universal
nítida recusa em aceitar o mecanismo e o materialismo como dos fenômenos é, pelo menos, um sistema perfeitamente fechado,
princípios derradeiros de explicação das coisas, como pretensas perfeitamente uno e uniforme em si mesmo? Essa uniformidade
soluções dos enigmas do mundo. O'Alembert não se desvia um é postulada por D'Alembert, não é fu ndamentada mais precisa­
milímetro sequer da linha metodológica traçada por Newton. mente em parte alguma. Não é Hcito recear, então, que, por esse
Corta,cerre loda e qualquer questão que diga respeito à essência postulado, uma nova forma de crença lenha sido introduzida?
absoluta das coisas e seu rundamento metafísico. "No fu ndo, Um pressuposto metafísico indemonstrado e indemonstrávcI não
que nos importa penetrar na essência dos corpos, desde que. se djssimularia aí por acaso? O racionalismo clássico, na pessoa
presuminda-se que a matéria é tal como a concebemos, possamos de $Cus pensadores mais eminentes, Descartes, Spinoza e Leibniz,
deduzir propriedades que consideramos primitivas; as outras já se deparara com esse problema. Ele acreditava resolvê-Io re­
propriedades secundárias de que nos apercebemos nela e quc o duzindo a questão da unidade da natureza à da unidade de sua
sistema geral dos fenômenos , sempre uniforme e continuo, em origem divina. Se é verdade que a natureza é obra de Deus, ela
nenhuma parte nos apresenta contradição? Detenhamo-nos , pois, remete-nos para a imagem do espírito divino, ostenta o selo de
e não procuremos diminuir por sutis sofismas o número já es­ sua imutabilidade e de sua eternidade. Em suma, é a sua origem
casso dos nossos conhecimentos claro, e certos. " Sobre questões que nos assegura sua verdade autêntica e profunda. A unifor­
como a união da alma e do corpo e sua ação recíproca, como a midade da natureza tem suas raízes e sua fonte na forma essen·
origem das idéias primeiras, como as razões últimas do movi· cial de Deus . Não está já implícita na 'simples idéia de Deus que
menta, a Providência lançou um véu que procuramos em vão ele s6 pode ser pensado como um, em concordância consigo
erguer. "E uma triste SOrte para a nossa curiosidade e o nosso mesmo, imut ável em seus pensamentos e em suas vontades? Ca­
amor próprio - mas é essa a sorte da humanidade, Pelo menos, loca r nele a possibilidade de uma mudança de sua existência
devemos concluir daí que os sistemas ou, melhor, 0$ sonhos dos equivaleria a uma negação, a um aniquilamento de sua essência.
fil 6sofos sobre a maioria das questões rnetarísicas não merecem A identificação spinozista de Deus e da Natureza, a sua f6nnula
ocupar nenhô,!m h;gar numa obra unicamente destinada a conso­ Deus si"e Na tura , repousa inteiramente nessa concepção funda­
tidar os conhecimentos ~is adquiridos pelo espírito humano." 12 mental. Admitir, nem que fosse em pensamento, que a ordem
Com essa espécie de resignação crftica em face do conhe· da natureza poderia ser outra, é admitir que Deus possa ser ou
cimento, já nos encontramos, entretanto, no limiar de um pro­ vir a ser outtO: "Si res aJlerius naiurae potuissc/1t esse "ei alio

88 89
,1

modo od operandum determinar;' ut naturae ardo olius esse/, sarnen to deve tomar nesse ponto impi"w'_lhe uma tarefa bem mais
I, !
ergo Dei e/iam natura alia posset esse, quam jam esJ. .. 13 Quer ãrdua e empenha a sua responsabilidade de um modo muito
falemos das leis da natureza ou das leis de Deus, trata-se apenas roais pesado do que todas as questões concernentes ao simples
de uma mudança de linguagem: as leis universais da natureza se. conteúdo da filosofi a da natureza. Não se trata, efetivamente, do
gundo as quais tudo acontece e pelos quais tudo é detenninado, conteúdo da natureza mas do seu conceito, não dos dados da
nada mais são do que os decretos eternos de Deus. o que implica experiência mas de sua forma. A filosofia do lIuminismo podia I'I.
sempre uma verdade e uma necessidade eternas.H considera r relativamente sim ples a tarefa de libertar a rísica da
Mesmo para Leibniz nâo existe, em última instância, ne­
nhuma outra prova conclusiva da constância da natureza, da
dominação , da tutela da teologia. Bastava·lhe, para consumar essa II
libertação, recolher a herança do século precedente, separar con­
harmonia das idéias e do real, do acordo dos fatos e das verdades ceptUi11mente o que já fora apartado de fato. A filosofia ilumi­
eternas. a não ser o recurso à unidade do princípio supremo nista, em suma, nada mais fez do que esclarecer wna situação
donde provém O mundo dos sentidos. assim como o do enten­ de fat o que era o resultado metodológico do trabalho científico Il i
dimento. A fim de justificar que os princrpios Cundamentais da de dois sécu los; aduziu·lhe as conseqüências mas sem realizar,

~
análise do infinito licjam aplicáveis sem restrição à natu reza, desse ponto de vista, a revolução intelec tual. Contudo, a partir
que o princfpio de continuidade possui não só uma significação do instante em que se apresenta , a essa mesma ciência, a questão
matemátka abstrata mas também uma significação física con­ de sua justificação, surge um novo e mais radical problema. Para
creta, Leibniz parte do fa to de que as leis da realidade Dão IX>dem que serve libertar a ffsica de todo e qualquer elemento teoló­
afasta r-se das leis puramente ideais da lógica e da matemát ica: gico-metaflsico, limitar O seu alcance a simples enunciados empí­
"'.c'est par ce que toUl se gouverne par raison ct qu'autrement il ricos se, por outro lado. não se consegue eliminar os elementos
n'y auroi! paint de science n'y regle ce qui tle sera;1 paint con­ metafísicos de sua estruturo? Ora, toda a afirmação que for além
forme avec la nature du souvera;n principe... UI Mas essa demons­ da simples constatação da presença de um objeto dos sentidos,
tração não contém um cfrculo manifesto? Podemos concluir da encontrado aqui ou ali, não comporta em si um tal elemento?
uniformidade empirica, cujo espetáculo a natureza parece ofe­ Será necessário considerar como resultado da experiência a in­
recer-nos, a unidade absolu ta e a imutabilidade de Deus e de­ terpretação sistemát ica da na tureza e será possível realizar a de­
pois , em sentido inverso, apoiar-nos nessa imutabilidade divi na monstração. a dedução da unifonnidade absolu ta dessa expe­
para afinnar a unifonnidade perfeita, a harmonia rigorosa da riência - ou tratar-se-á , antes, de uma premissa da experiência.
ordem da natureza? Não atentamos contra as leis mais elemen­ de um preconceito, de uma pré-opinião? E esse preconceito, esse
tares da lógica, não sentimos o chão fugir-nos sob os pés qua ndo a priori lógico, não é tão contestável quanto poderia sê-lo qual­
admitimos como prova final o que, em primeiro lugar, cumpriria quer a prior; metafísico ou teológico? Não nos contentemos em
justamente provar, quando apoiamos toda a certeza dos nossos afastar, um por um , os conceitos e juízos metaffsicos do horizonte
julgamentos e raciocínios empíricos numa hipótese metafísica da ciência empírica . Tenhamos a ousadia, finalmente, de per­
que se presta muito mais às d6vidas e aos debates do que à correr o cam inho até o fim: que se prive a idéia de natureza do
aquisição dessa mesma certeza? Com efeito , a decisão que o pen­ apoio da idéia de Deus. Que sucederá então à pretensa -neces·

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s idadc ~ dn natureza , de suas leis universais, eternas, invioláveis? traordinariamente rigoroso e conseqüen te - no sentido da in·
Existirá uma certeza intuitiva dessa necessidade, ou alguma outra vestigação de uma 16gica da ciJ!tlcia experimental. A Holanda
prova dedutiva concludente? Ou deveremos renunciar 8 todas as já tinha sido no século XV ll o pais onde se associavam, de ma·
provas desse tipo e decidirmo-nos a dar o último passo - reco­ neira exemplar, simultaneamente o movimento tendente a uma
nhecer que o mundo dos fa tos deve ser o seu próprio suporte. observação exa ta dos ra tos, para a elaboração de um rigoroso
que procuramos em vão para ele a firmeza de um outro apoio, método experimental, e um estilo de pensamen to critico propenso
de um " fundamento" racional ? a determinar, com tanIa certeza quanto cl areza, o sentidO e o
Em toda essa problemática, antecipamos o desenvolvimento valor da hipótese cientifica. O exemplo clássico dessa associação
que conduz do fenômeno da física matemática ao cepticismo de é fo rnecido pelo maior dos cientistas holandeses, Christian Huy·
Hume. E não entendemos por esse desenvolvimento uma pura ghens, que , no seu Traité de la lllmiere (1690), expõe, no que
construção intelectual mas um processo histórico concreto que sc refere às relações da experiência e do pensamento, da teoria
se pode acompanha r passo a passo no pensamento do século e da observação, prindpios q ue superam largamente o cartesia·
XVI11 e colocar em evidência até nos detalhes de seus nós e ra· nismo em clareza e d;sti nção. Huyghens estabelece nitidamente
mificações. Esse pon to preciso escapou , até o presente, aos his· que não se trata de atingir em Hsica a mesma evidência q ue Das
toriadores da filosoria e, com isso, o verdadeiro ponlo de partida demonstrações e deduções matemáticas, que não existe nenhuma
e.
do cepticismo de Hume não fo i enfatizado. evidente que esse certeza intuitiva das verdades físicas fund amentais. Que tudo o
ponto de part ida não aparece a quem se contenta, como ocorre que se deve e.x.igir e obter em ffsica é uma "certeza moral". a
freqüentemente, em situar a dout rina de Hume no contexto do qual, na realidade, pode elevar·se a um tão alto grau de pro­
empirismo britânico e em interpretar o seu desenvolvimento his· babilidade que, na prática, em nada perde para uma demonstra·
tórico a partir desses pressupostos. A dou trina de Hume não ção rigorosa. Com d eito, se as conclusões aduzidas sob a preso
representa , com efeito, um resultado final mas um recomeço da suposição de uma determinada hipótese siio plenamente confiro
fil osofia ; representa mais do que um elo na cadeia espiritual quc madas pela experiência, se se pode, em particular, prever novas
vai de Bacon a Hobbes, de Hobbes a Locke e de Locke a Ber­ observações bascando-nos nessas conclusões e se se encontra a
keley. Ê claro que Hume tomou deles alguns de seus instrumen· sua confinnação na experiência, então alcançou-se, efetivamente.
toS de pensamento, o arsenal conceptual e sistemático do empi· aq uela espécie de verdade a que a ffs ica pode aspirarP Os físj·
rismo e do sensualismo. Mas a sua problemática autêntica, espe­ cos holandeses do sé!,;ulo XVIII continuarão const ruindo sobre
cffica , p rovém de ou tro lado , tem origem numa outra causa que essas fu ndações , persuadidos que estavam de tcr sob os olhos .
se situa no prolongamento, na cont inuação direta dos debates com a teoria dc Newton , ti confi rmação por excelencia da cor·
científicos dos sécu los XVII e XV III. Um dos elos mais impor­ reção de suas posições. Com efei to. nenhum outro el emento
tantes da cadeia encontra·se nos trabalhos da escoJa newtoniana, hipotético a[ re encontra, além daqueles que a experiência pode
em particular na elaboração metodológica ~igo rosa de que se imediatamente comprovar. S'Grave5ande , em sua aula inaugural
beneficiaram as idéias de Newton ent.re os pensadores e cientis­ como professor de matemática e as tronomia na un iversidade de
tas holandeses. te Essas idéias roram reatadas de um modo ex­ Leyde, em 1717, tentou desenvolver e esclarecer sob todos os as·

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peclOS essa idéia fundamental. Mas, no transcurso desse desen­ rilclocinar por analogia, a qual. por conseguinte, pode servir de
volvimento, defrontou-se precisamente com um problema difíci.l funda mento legítimo para os nossos raciocír-ios." I' Mas essa
e deveras curioso. Quando, tomando por base certas observações, !,;unclu~ão, esse .. por conseguinte". dissimul a mal a J.u;ráfJau,ç
prevemos fatos que ainda não observamos diretamente, apoiamo­ ti, dUo yl-ro; . A necessidade psicológica e biológica do ra­
nos no axioma de unifonnidadc da natureza. Sem esse axioma, ciocínio por analogia permitirá afirmar scja o q ue for a favor de
sem a hipótese de que as leis que descobrimos hoje na natureza sua ne<::essidade lógica, de sua verdade "objctiva" ? O em pirismo
vão manter-se e perdurar mais tarde, toda a conclusão inferida ma temático chegou agora ao limiar do empirismo cépt ico: a part ir
do passado para o fu turo cairia manifestamente no vazio. Ora, desse instante <l passagem de Newton li Hume torna-se inevitá vel.
como esse mesmo axioma será demonstrável? Responde S'Grave­ As duas concepções estão separadas apenas por uma frágil e
sande : "Não se trata de um axioma estritamente 16gico mas de Jclguda divisória que o menor sopro derrubará. Descartes , para
um axioma prático; sua validade não decorre da necessidade do ped ra angular de sua doutrina da certeza do saber. não encon­
pensamento mas da necessidade da ação. Toda a ação, toda a trou outra coisa a não ser a "veracidade div ina" . Teria sido pôr
transação prática com as coisas não estaria vedada ao homem se em dúvida essa veracidade pretender contestar a validade abso­
este não pudesse levar em conta que os ensinamentos recolhidos luta das idéias e dos princípios q ue discernimos com cl areza e a
de uma experiência passada ainda valem no futuro, aí conservam evidência mais perfe ita. a das noções e regras da matem ática
sua força e sua validade? O raciocínio que conclui do passado pura . Agora , pel o contrário. é preciso recorrer. a fim de confir­
e do presente para o futuro não é. evidentemente, um raciocínio mar a validade dos primeiros princípios da flsica, à verdade da
de lógica formal, um silogismo constrangedor; mas nem por isso expe riência. não à veracidade de De us mas à sua bondade; daí
deixa de ser um raciocfttio que. por analogia, é perfeitamente resulta que uma convicção indispensável ao homem , de uma im­
válido e até indispensável. O saber que temos das coisas ffsicas, portância e de uma neçessidade vital parlt ele. deve ter também
o que sabemos da natU fC'la empírica das coisas, não transpõe o um fundamento na natureza das coisas. Podemos confiar no ra­
limite desse conhecimento por analogia. Temos, entretanto, o ciocínio por analogia. prossegue S'G ravesande . se levarmos em
direito e a obrigação de connar nele, v isto que nos é imprescin­ conta a bondade suprema do Criador: Pois a certeza da analo­
OI

dível aceitar por verdadeiro tudo cuja refutação implicaria a gia baseia-se na invari abilidade dessas leis que não poderiam estar
supressão para o homem de todo e qualquer meio de existência sujeitas a mudança sem que o gímero humano se ressentisse dis~
empírica, de todo e qualq uer tipo de vida social : 18 c pcrecc~se em pou co tempo." ztI Mas, ~..:ndo assim , o problema
. Uma curiosa reviravolta acaba, portanto, de se concretizar fundament al da metodologia da física vê-se im pl ici tamente trans­
de uma assentada: a certeza da ffsica, que era baseada em preso form ado num problema de tcod icéia. Elimine-se a questão da
supostos puramente lógicos , repousa agora numa pressuposição tcoú icéia, ou dê-se-Ihe uma resposta negativa . e O prublema da
biológica e sociológica. O próprio S'Gravesande procura atenuar certeza d<l lIldução (j"ica adqui re então um aspectO muito di fe·
a novidade e o radicalismo desse pensamento recorrendo, uma rente. E fo i justamente essa a mudança que se rea lizou em
vez mais, a uma interpretação, a uma explicação metafisica_ De­ Hume. O empirismo mlllemátioo encontrava-se num ponto 1<1 1
clara ele : "O Autor da natureza colocou-nos na necessidade de que a certeza da "uniformidade da nalureza~ só podia ser esta·

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be!ecida e justificada por uma espécie de " fé" . Hume apodera·se duzidas unicamente da extensão. Esta conslit·ui, em suma, a ver­
dessa conclusão mas despoja imediatamente essa fé de todos os dade. a essência, a substância do mundo material, ao passo que
seus componentes metafísicos, descarta todos os elemen tos trans­ todas il S outrus qualidades são postas na categoria de simples aci­
cenden tes. Ela não mais assenta em bases religiosas mas em pura­ dentes, de propriedades "contingentes ". Newton e sua escola
mente psicológicas; deriva de uma necessidade puramente ima­ contestam igualmente nesse ponto o cartcsianisOlO e opõem no
nente da natureza humana. Nesse sentido, a teoria humiana do seu ideal dedutivo um ideal puramente indutivo. Se nos ativermos
belief, da crença, é a continuação e li solução irônica de todo estritamente 110 fi o condutor da experiência, ~ u s t enlam eles, s6
um processo intelectual tendente a conferir à própria ciência ex­ poderemos concl uir pela coex istênçia regular d..:ssas proprieda­
pe rimental um fu ndamento religioso. A solução consiste na in­ des, sem poder ja mais pretender deduzir umas das outras. Para
versão dos papéis entre a ciência e a reügião. Não ~ a religião bem compreender a história desse problema, uma espiada à dou­
que permite, graças li. sua verdade superior. "absoluta" , dar um trina dos fís icos holandeses é particularmen te reveladora . S'Gra­
sólido ponto de apoio à ciência; pelo contrário, é a relatividade \"esandc c seu discípulo c :,uccssor Musschenbroek não se can­
do conhecimento cientffico que arrasta, por sua vez, a religião -llaram de repelir que é inteiramente frívolo querer distinguir en tre
para o seu terreno movediço. Nem a ciência nem li religião são as determi nações essencia is e não-esse ncia is da maté ria. Como
suscetíveis de uma justificação "racional" , estritamen te objetiva; saber se uma lei natural q ue vemos por toda parte confirmada
contentemo-nos, pois, em sacar uma e outra de suas fon tes sub· pela experiência c que, por conseguin te, devemos reconhecer
' jetivas, em compreendê·las, na falta de poder fundamentá-las à como uma lei universa l - por exemplo, a Lei da l nércia - nos
semelhança das expressões de certos instintos primitivos e pro­ revela uma propriedade essencial e necessária dos corpos? "Essas
fundos da natureza humana. leis são extrafdas da essência da matéria ou deve-se deduzi-Ias
A conclusão a que nos leva a análise do problema da cau­ somen te de certas propriedades fu ndamenttüs que Deus conferiu
salidade impõe-se também do ponto de vista do problema da aos corpos, sem que elas, entretanto , lhes pertençam essencial c
substância. O empirismo matemático também antecipava. sobre necessariamen te. ou, enfim, os efei tos que temos sob os nossos
esse ponto, um resultado decisivo . Com efeito, nãc combatia ele olhos assentam em causas exteriores das quais não podemos ter
a idéia de uma matéria cujas propriedades fundamentais, aquelas a menor idéia? Eis o que ignoramos de forma absoluta." Pode­
que nos são indicadns pela experiência, estariam unidas por uma mos conside rar, com uma certeza empírica, a extensão e a forma,
relação constante entre princípio e conseqüência e por uma cau­ o movimento e o repouso, U gravidade e n inércio como quali­
sação recíproca; e que seriam dedutfveis umas das outras , na mais dades pri márias da matéria . mas nada impede que a par dessas
ri gorosa necessidade intelectual? Tal dedução era justamente o qual idades que conhece mo~ existam outras, as quais seriío talvez
ideal a que Descartes sujeitara a ffsica, Partindo das proprie­ descobertas mais tarde, e que poderíamos considerar pelos mes­
dades pu ramente geom~ tricas da matéria , Descartes procura mos­ mos mo tivos, ou com maiores razões, qualidades primit ivas e
trar que se pode extrair delas todas as determinações que temos origin ári D s, ~ ' Temos , pois, que nos decidir, também nesse ponto,
o costume de atribuir ao mundo dos corpos! Todas as qualidades por um aba ndo no definitivo. Em vez de sepurur a "essência "
da matéria , inclusive a impenetrabilidade e a gravidade, são de­ da "apClrêndu", c de inferir CSIlI daquela, devemos tomar po.

96 97
sição, pura e simplesmente, no interior do mundo da ex periência; natureza e de aí se estabelecer em definitivo foi essa tendência
em vez de querer "explicar" uma propriedade por uma oulra , fata l pura questionar o além da natureza. Que se descarte essa
devemos nos aleI' à vizinhança, à coexistência dos diferentes ca­ questão de " transcendência " e a natureza deixa instantanea­
racteres que a exper iência nos revela, Nada perderemos do nos so men te de ser um mistério. Não é a sua essência que é misteriosa
saber real com esse abandono: apenas nos emanciparemos de um ou incognoscível, foi o espírito humano que lançou sobre ela uma
ideal que o progresso do conhecimento empírico sempre recha­ obscu ridade artifici al. Arranque-se-lhe esse véu de pa.!avras, de
çou c desmembrou. Percebe-se que não vai mais que um passo conceitos arbitrários, de preconceitos fan tásticos e a essência apre­
dessa visão das coisas à dissolução completa da idéia de subs­ sentar-se-nos·á tal como é: como um todo organizado, que se jus­
tância, ao pensamen to de que a representação das coisas corres­ tífica a si mesmo, que se sustenta e se explica inteiramente por
ponde tão-somenle à representação de uma simples soma, de um si mesmo. Nenhuma explicação extrínseca, buscando o princípio
agregado de qualidades. A passagem efetua-se progressivamente da natureza para além dela própria, jamais poderá atingir esse
e sem ruído: a ten tativa de excluir das fu ndações da filosofi a da objetivo, pois o homem é obra da natureza e só tem existência
experiência todos os elementos "metafísicos " é levada fin almente com ela. t em vão que ele se esforça por escapar à sua lei:
tão longe que ameaça, que compromete os próprios fundamen­ mesmo em pensamen to, s6 apa ren temente ele pode romper
tos lógicos do empirismo . tais vínculos. Qualquer esforço que seu espírito faça para
transpor os limites do mundo sensível vê-sc-Ihe incessantemen­
te reconduzido, pois .a única facul dade que lhe é concedi·
3 da é a de in terligar os dados sensíveis. Nesses dados está con·
tido todo o conhecimento que poderemos desejar obter sobre
Enquanto a física matemática se conserva nos limites de um a natureza; e esses dados oferecem·se-nos, aliás, numa ordem tão
feno, en ismo estrito, chegando mesmo à elaboração de conclu­ clara e tão completa que nada subsiste de obscuro ou de duvi­
sões cépt icas, a filosofia popular da ciência envereda peta ca­ doso. O segredo da natureza esquiva-se aos que ousam resistir­
minho exatamente oposto . Ela não é afetada por qualquer escrú­ lhe, encará-la de frente com arrogância. Não vislumb ra nela con­
pulo ou dúvida crítica e está fi rmemente decidida a não preso tradição nem ruptura; aí vê apenas um ser e uma forma de
cindir de nen huma de suas ambições epistemológicas. Impelida legalidade, Todos os processos naturRis, incluindo aqueles fatos
pelo de!Sejo de conhecer o que o mundo contém em seu núcleo que temos o costume de designa r como fa los espirituais, toda a
secreto, ncredita ler ao alcance de sua mão a solução de seus ordem f{sica em seu conjunto, assim como a ordem "moral"
enigmas. Já não necessita, no fu ndo, para chegar a essa solução, das coisas em sua totalidade, reduzem-se inteiramente à matéria .
de nenhum esforço positivo: tudo O que nos resta fazer é afas tar e ao movimento e confu ndem·se com eles. "Ex.istir não quer dizer
os obstáculos que rctllrdllram até o presente os progressos do Qutra coisa senão ser suscetível de movimento e concebível no
conhecimento da nat ureza e o impediram de prosseguir resoluta­ movimento, conservá-lo em si, recebê-lo e transmiti-lo; atrai r
mente em seu caminho até o fim. O que, de maneira incessante, sobre si as matérias que são apropriadas para fortal ecer o seu
reteve o esp(rito do homem de turnar verdadeiramente posse da ser e afas tar de si aquelas que podem debilitá-lo." Tudo o que

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somos e podemos vir a ser, as nossas representações, os nossos dOr8va nle o seu único gu ia: "Eis os meus Filósofos-, costulll,l\'a
atos de vontade. as nossas .::.:ividades , nad a mais são do que os ele dizer, reÍ!.:rin do-se aos seus senüdos.~· Aquele que não se
efeitos necessários da nalUreza e das qualidades fundamen tais conten t•• com esse mundo visível, quc indaga as causas invisíveis
que a naturez.a nos outorgou, assim como das cond içõcs nas quais dus efeitos visíve is, nlio age mais sabiamente, segundo DidcIOt,
essas qualidades se desenvolvem e se transrormarn .t2 do que um clImponês que atribuísse O movimento do seu relógio .
O raciocínio, que é o lÍnico .ti poder assegurar-nos da ver­ cu jo m ~c a n i s mo não enten de, a um ser es piritual escondido em
dade da natureza , não consiste, portanto, na dedução lógica ou seu interior.
matemática, é o raciocínio que vai da parte ao todo. Só podemos Sobre esse ponto o ma terialismo dogmát ico converge com
deciJrar e determinar a essência da natureza em seu conjun to o feno menismo: pode servi r·se das suas armas sem que por esse
partindo do essência do homem. A fisiologia do homem tom a·se, f,II0 concorde com as suas conclusOC.s. Pois ele também afi rmo
portanto, O ponto de partida e <I chave do conhecimento da nutu­ esta r muito longe de seu pensamento pretender determinar a
reza. As matemáticas e a física matemática perdem sua posição e!isência absolu tu d<l matéria e não ter essa questiio nen huma imo
central e são substituidas, entre os fu ndadores da doutrina mate­ porlunda decisiva pa ra a sua argumentação. Declara La Mettric :
rialista , pela biologia e fi siologia geral. La Mctt rie parte de ob­ "Sat israz-me igua lmente nada snbcr sobre O modo I.:omo a ma ·
servações médicas; Holbach recorre sobretudo à química e às téria , cm si inerte e brut a, con verte-se em matéri a ativa e orgn­
ciências da vida orgânica ; a objeção de Diderot à filosofia de nizada ; tudo ignora r das outras ma rllv ilhas inconcebíveis da na­
Condillac é a de que não poderia limitar-se unicamente à simples tureZ<I, não poder compreender, por exemplo, o nasc;imento do
sensação como elemento primeiro de toda a realidade: u análise sentimento e do pensamento num ser que, aos nossos sent idos
deve ir muito mais longe e procurar a causa da sensação. E ela limi tados, pouCQ mais parece ser do que um pedaço de lama . Que
não se encontra em nenhu ma outra parte mas em nossa própria se me conceda somente q ue :.t ma t ~ri a orgân ica enecrra em si
organização ffsico. Assim. o fundamento da fís ica deixa de resi­ UIl1 principio de mO\'imento, graças ao qual ela se dire rcnciu. c

dir na análise das sensações para l{Xalizar·5C' na história na tural . que todo ~ vida .mimal de pende dessa dife rcnçn de orgu nizaçiio."
nu fi siologia e na medicina . A primeira obra de La Me!i rie. que é O homem está para o macaco e os animais supcrior. . lI COIll0 o
a "história da alma ", explica que só existe um meio de escrever relógio pl<i ne lúrio construído por Huyghells está para um relógio
essa história: é perm anecer constantemente preso ao fio condutor cJementnr. "Se siiu nccessários instrumentOS mais numerosos, mil is
dos processos físicos e não arriscar a menor iniciativa que não rodas e molas par.. indicar o movimento dos pl anetlls do que pura
esteja justificada pela observação fie l dos fenômenos corporais. assinalar o curso das horas, se Vllucanson tivesse que pôr mais
Slio observações desse gênero, efetuadas por ocasião de um aces­ IIrt!.: p.ITa const ru ir o seu tOCHdor de fla llla do que para o seu
so de feb re de que foi acometido e durante o qual ele adquiriu ca nário, então apenas um grau a mais de sua urte leri a sido ne·
uma consciência aguda da completa transformação de toda a sua eessá rio ,I fim de produrir um ser folante [' .. J O corpo humano
vida sen ti men tal e intelectual, as que estão, segundo o seu pro­ nnda mais é do que um prodigioso pêndlllo, construído com uma
prio relato , na origem de suas investigações c que orientaram arte e uma habi lidade supremas." 2.' Cons tit ui um dos traços me­
tod a a sua filosofia.2m A experiência sens ível, corporal, devia ser todológicos cur actc r í~t i cos do materialismo do século XV III dei­

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xar de considerar as relações do corpo e da alma à maneira dos l'r ar-aos" sempre a mesma ligação constante, quer entre as diver­
grandes sistemas metafísicos do século XVII, desde o ponto de sas propriedades materiais quanto entre realidades e fatos cor­
vista da substancia, mas quase exclusivamente do ponto de vista porais e espirituais, Portanto, se nada encontramos de surpreen­
da causalidade. A questão de saber como se hannonizam as suas dente em atribuir à matéria, a par de sua propriedade funda­
duas "naturezas " s6 pode perturbar-nos; basta que estejamos cer· men tal de extensão, outras detenninaÇ-ÕCs, por que recuaríamos
tos da ligação indissolúvel de suas operações. A esse respeito. é diante da idéia de adicionar·lhe, ademais, a faculdade de sentir,
impossível traçar uma linha de demarcação em alguma parte: de recordar. de pensar? O pensamento como tal é, sem dúvida,
a separação dos fenômenos corporais e dos fenômenos espirituais difícil de associar à matéria organizada, mas nem mais nem me­
é apenas uma abstração para a qual a experiência não nos forne­ nos, em última análise, do que a impenetrabilidade ou a eletri­
ce documento nem p rova. Por minuciosas que sejam as nossas cidade, o magnestimo ou a gravidade, que tampouco se deixam
observações, por mais longe que possamos !evar a nossa anáJise reduzi r à simples extensão mas rep,esentam, pelo ccntrário, algo
experimental, nunca se chegará a um ponto em que seja J:ossível de novo e de diferente,2S O que vale para as sensações e as idéias
separar o espiritual do corporal. Essas duas realidades só nos são vale igualmente para os nossos desejos e os nossos instintos, para
dadas em conjunto; elas estão feitas de tal modo de um só j2to os ditames da nessa vontade e das nossas inclinações morais . Já
que a supressão de uma ja.'l1ais será possível sem a dest:,uição da não temos a menor necessidade, para compreendê-Ios. de fazer
outra. U:na vez que s6 podemos conceber e julgar a essência de intervir um principio w brenatural e imaterial , de recorrer a uma
uma coisa por seus efeitos, apenas nes resta, port!mto, uma con­ substância Simples que não passa, afinal , de uma palavra vazia.
clusão: a ligação ne~es sária e indissolúvel nos efeitos prova a " Postulado o princfpio mínimo de movimento, os corpos anima­
identidade da essência. A distância que parece separar a maté­ dos terão tudo do que necessitam para mover·se, sentir, pensar.
ria "morta" dos fenômenos da vida, O movimento da sensação, arrepender·se e comportar·se, numa palavra, no físico e no moral
tampouco ncs deve induzir em erro. Ignoramos. é certo, de que que dele depende. n 21
maneira a sensação nasce do movimento; mas não encontramos Com esses argUmentos bem conhecidos do sistema materia­
a mesma incerteza nos casos em que meramente lidamos com a lista, entretanto, apenas apreendemos, de momento, a superfície
matéria pura e simples e seus fenômenos fundame ntais? O sim· e não O verdadeiro núcleo do pensamento que a anima. Pois, por
pies fenômeno do choque, a transmissão de uma energia cinética paradoxal que isso possa parecer, à primeira vista esse núcleo
de uma massa para uma oulra, podemos "compreendê-lo" con· de pensamento não deve ser procurado do lado da filosofia da
ceptualmente, explicá· lo? Não; devemos contentar-nos em esta· natureza, mas do lado da ética. O materialismo, na forma em que
belecê·lo pela experiência . O mesmo método de verificação em· surgiu no século XVIII, em que se consolidou e foi defendido,
pírica impõe-se igualmente para os chamados probl<:rnas da não é um simples dogma científico ou metafísico: é um impera­
upsicofísica": mecânica ou psicoHsica, as dUM questões são. ao üvo. Ele não quer somente fixar ou corroborar uma tese sobre a
mesmo tempo, tão enigmáticas e, por oulTO lado, tão transparen· natureza das coisas. mas, sobretudo, comandar e interditar. En·
tes uma quanto oulra. Se nos contentarmos com os julgamentos cont.ramos esse traço com particular nitidez no Sysfeme de la
da experiência e nada procuramos além dos seus limites, ela mos· nature, de Holbach. Vista do exterior, a doutrina de Holbach

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parece representar o sistema do mais rigoroso e mais conseqüente teologia, ciência do sobrenatural , foi um obstáculo invencível ao
determinismo. Ao quadro da natureza não se deve acrescentar progresso das ciências que com ela quase constantemente coli­
o menor traço que não seja compreensível a partir do homem, diram em seu caminho. A física, a hi stória natural, a anatomia
de seus desejos, de seu querer. No reino da natureza nada existe não tinham o direito de observar fosse o que fosse, salvo pelos
de justo ou de injusto, de bom ou de mau: reina aí a perfeita olhos malévolos da superstição." B6 Entretanto, o reino da su­
equivalência de todos os seres e de todos os acontecimentos. To­ perstição é ainda muito mais perigoso quando se lhe confia li
dos os fenômenos aí são necessários e nenhum ser, nas condições organização da ordem moral. Não contente por ani quilar então
dadas e em função de qualidades que já são as suas, pode agir o saber humano, ela arranca do homem o próprio fundamento de
de qualquer outro modo senão daquele como efetivamente agiu . sua relicidade. Mergulha os homen:l na angústia com mil fan­
Por consegcinte, não existe mal nem culpa nem desordem na tasmas, arrebata-Ibcs as mais simples alegrias da existência. O
natureza: "Tudo está em ordem na natureza, cujas partes jamais único remédio é a supressão radical, decisiva, de todo o espiri­
podem afastar-se das regras certas e necessárias Gue decorrem e
tualismo . necessário extirpar, de uma vez por todas, as idéias
da essência que receberam." 211 Portanto, que o homem se acre­ de Deu s, de liberdade, de imortalidade, a fim de que parem as
dite livre não passa de um2 perigosa ilusão, de uma fraqueza intervenções incessantes do outro mundo - que essas idéias si­
intelectual. I! a estrutura do átomo que o forma, seu mOv1!T1ento mulam construir - neste nosso mundo, cuja ordem racional o
é que o faz agir: condições · que Dão dependem dele determ inam espiri tu alismo ameaça subverter. La Meltrie desenvolve a mesma
o seu ser e governam o seu dcstino. 29 Mas se tal é o conteúdo forma de argumentação em L'homme machiMc. O mundo jamais
da tese materialista. a sua expressão cai numa estranha contra­ será feliz enquanto não se decidir 11 ser ateu. Junto com a c.rença
àiçáo. Ela nunca responde à exigência spinozista: Mon ridere, em Deus desaparecerão também todas as querelas teológicas c
non lugere fleque delestari, sed intelligere. Ainda que seja ape­ as guerras religiosas. "A natureza infeccionada por um veneno
nas exteriormente, a filosofia na natureza de Holbach não pre­ sagrado retomará seus direitos e sua pureza." ~l
tende ser mais do qce a preparação, a introdução de um conjunto Ao apresentar-se dessa maneira, como aguerrido militante c
mais completo. O "si~tema da natureza" constitui para ele ape­ como acusador, impondo uma norma ao pensamento e à fé dos
nas a base do "sistema social" e da "moral universal": a verda­ homens, em vez de contentar-se com a tomada de posições te6ri­
deira orientação do seu pensamento só se apresenta nessas duas cas, O Systeme de la na/are, entretanto, mergulha num difícil dile­
últimas obras, pl~namente desenvolvida e nitidamente exposta. ma. A doutrina da necessidade absolu ta do curso da natureza
O homem deve libertar-se de todos os ídolos, de todas as ilusões prende-se na rede de suas próprias demonstrações. Com que direi­
sobre a origem primeira das coisas: esse despojamento é-lhe in­ to, de fato , pode-se ainda falar de "normas" no âmbito dessa dou·
dispen sável para cuidar do ordenamento do mundo e realizá-lo trin a? No que poderia ela basear-se para imJ>Ô"las e avaliá-Ias?
com paz e segurança. Foi o espiritualismo teol6gico que impediu O dever não irá revelar-se uma pura quimera e converter-se em
até o presente toda a organização verdadeiramente autônoma do simples necessidade ? Que mais nos restaria , nesse caso. senão
~ i s tema político e social. E o freio que retardou a cada passo o abandonarmo-nos a essa necessidade? Como poderíamos regê-Ia,
desenvolvimento das ciências. "Inimiga jurada da experiência, a prescrever-lhe o seu percurso? A crítica que se exerceu desde o

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século XVIII contra o Sy5teme de la nature já tinha descoberto que cometemos incessante mente contra 8 idéia de necessidade 80
o ponto fraco fundamental da argumentação. A réplica de Fre­ submetermo-nos a todo o instante. em nossas representações c
derico, o Grande, insiste expressamente sobre esse ponto: .. Após em nossos julgamentos, em nossas afirmações e negações, ao do­
ter esgotado todas as proves destinadas a mostrar que os homens mlnio da necessidade. Esse duplo movimeoto, essa oscilação entre
são conduzidos em todas as suas ações por uma necessidade fa­ os dois pólos da necessidade e da liberdade, realjza completa­
tal - objeta o rei - , o autor deveria aduzir a conseqüência mente, segundo Diderot . o próprio círculo da nossa existência e
óbvia de que somos apenes uma espécie de máquina, marionetes do nosso pensamento. E. graças a esse circulo, e não por uma
acionadas por uma força cega . E, no entanto, ele encoleriza-se afirmação ou uma negação simples e unilateral, que chegamos a
contra os padr~, contra os governos , contra todo o nos$O sistema um conceito bastante compreensivo para envolver toda a natu­
de educação; acredi ta, pois, que os homens que exercem essas reza: esse conceito de natureza que $e eleva fundamentalmente
atividades são livres, depois de lhes demonstrar que são escravos. acima do bem e do mal, acima da concordância e da discordân­
Que loucura e que absurdo! Se tudo é movido por causas neces­ cia, do verdadeiro e do falso, porquanto inclui os momentos opos­
sári as, todos os conselhos, todos os ensinamentos, os castigos e tos e integra ambos.
as recompensas são tão supérfluos quanto inexplicáveis: poder­ Mas o século XVIII, em seu conjunto, não se entregou a
se-ia igualmente pregar a um carvalho e querer persuadi-lo a esse turbilhão. a essa vertigem dialética de Diderot que o arras­
transformar-se em laranjeira." tava alternadamente do ateísmo ao panteísmo, do materialismo
Uma dialética mais sutil e mais flexível do que aquela de ao panps iquismo dinâmico e vice-versa. No desenvolvimento do
que Holbach dispunha podia , evidentemente, tentar reduzir e.ssa seu pensamen to. o Systeme de la nature desempenha um papel
objeção e envolvê-Ia habilmente nos ardis de sua própria argu­ relativamente exíguo e secundário. Os pensadores mais próxi­
mentação. Diderot apercebe-se com toda a clareza das antin" mos do círculo de Holbach rejeitaram as conclusões de sua obra
mias do sistema do fatalismo, exprime-as da maneira mais exata. em seu .radicalismo e combateram-lhe, inclusive, as premissas. O
mas, ao mesmo tempo, serve-se dessas antinomias como forças espfrilo satírico e contundente de Voltaire reconhece-se no modo
motrizes, como ve{culos de seu próprio pensamento dialetizado como acerta em cheio no ponto vulnerável da obra de Holbach .
de ponta a ponta. Ele reconhece a circularidade da argumenta­ Com lucidez e sem o menor constrangimento, põe a nu a con­
ção, mas logo a converte num jogo de espírito intencional . Foi tradição de Holbach que, tendo erguido como sua bandeira a
levado por esse impulso que ele concebeu sua obra mais espiritual luta contra o dogmatismo e a intolerância. não tardou em elevar
e mais original: o romance jacques te la/aliste, que quer apre­ a sua doutrina ao status de dogma e em deCendê-Ia com um zelo
sentar a id~i8 de latum como O alfa e o Omega de todo o pen­ fanático. Voltaire recusa-se a deixar-se marcar como livre-pen­
samento humano, mostrando ao mesmo tempo como, com essa sador com semelhantes argumentos e levanta-se contra a idéia de
idéia, o nosso pensamento cai em contradição coDsigo mesmo, receber das mãos de Holbach e de seus adeptos o "diploma de
como, pelo simples lato de expor essa id~ia , deve implicitamente ateu" . Seu julgamento é ainda mais nítido no tocante à apresen·
negá-Ia e suprimi-Ia. Não nos resta outra solução senão consi­ tação da obra e ao seu valor literário. Incluiu-a no número
derar também como necessária essa situação, isto é, essa lalta das obras pertencente.s ao gênero literário pelo qual alimenta a

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menOr dose rle ir.dulgência: o "gênero enfadonho " [genre en· da estética sistemática, as que tiveram igualmente uma parllc1­
nu)'euxJ.~3 Com efeito, além de seu comprimento e de sua pro­ pação ativa na edificação da filosofia da natureza do sécu lo
li xidade, o texto de Holbach é de uma rigidez e de uma aridez XVIII: O movimento que elas deflagraram desempen hou um pu·
prorundas. De resto, nlio t seu propósito expresso excluir do es· pel, fez mesmo época, até no desenvolvimento das ciências da
pctácuJo da natureza não s6 todos os elementos religioSos mas natureza.
também todos os elementos estéticos, bem como esterilizar todas
as potênci as do sen timento e da imaginação? "Pensemos ni sto:
somos apenas as partes sencientes de um todo que é desp rovido 4
de toda sensibilidade; de um todo cujas formas e ligações co du·
cam todas mal nasceram, e duraram um tempo mais ou menos Em seu escrito intitulado Da interpretação da tUltureza
longo. Vejamos na natureza uma oficina prodigiosa que con té m (L 754), Dide rot, que, entre os pensadores do século XV lll. pos.
tudo o que é necessário para produzir as c riaturas que temos sui sem dúvid a o faro mais aguçado para todos os movimentos e
diante dos nossos olhos e não a tribuamos suas obras a alguma tra nsformações do seu tempo, observa que o século parece ter
causa miste riosa que n50 existe em parte alguma , salvo em nosso ati ngi do um ponto particulalluente crítico, talvez mesmo decis ivo .
cé rebro." 33 Coethe tinha, sem dúvida, essas linhas sob seus Chegamos a um momento em que se anuncia uma grande trans­
olhos, ou outras semelhantes, ao declarar que, para ele e seus rormação das ciências. .. Atn!vo-mc a afirmar que, antes de uma
a migos de juventude, em Estrasburgo, quando ouviam falar dos CCnlena de anos ter transcorrido, não haverá três geômetras se­
cnciclqpedistas, era como se deambulassem entre as bobinas e os quer em toda a Eu ropa. Essa ciéncia atingiu o seu ponto culmi·
teares de uma imensa tecelagem, no ambiente trepidante e estri· nante c, quanto ao es~cnci81, pcnnanecerá no estado a que foi
dente de uma medtnica incompreensfvel para os olhos e para o levada pelos Euler e os Bc rnouilli, os D 'Alcmberl e os Lagrange.
espírito, na ininteligibilidade de uma oficina que integra os mais r.les fixa ram as colunas de Hércules que não se poderá transpor."
complexos dispositivos, e pensando sempre que essa fabricação Sabemos como essa profecia respcitanle à hist61"i1l das mal,emá­
lem por único objetivo produzir a peça de tecido que acabamos ticas puras foi desmen tida pelos acontecimentos: os cem anos
por nos sentir culpados de usar, na forma de vestuArio, sobre o vaticinados por Oiderot ainda não tinham transcorrido q uando
nosso próprio corpo. Quanto ao Systeme de ta nature, ele e seus morreu Gauss, q ue linha renovado, uma vez mais, toda a estru ·
amigos pensavam ser incompreensível que semelhante livro ti· tura das matemáticas, que ampli ara os seus lim ites nté novos
vesse podido paSllar por perigoso: "Pa recia·nos tão pardacento , horizontes, ('anlo quan to ao conteúdo como do ponlo de visla do
tão lúgubre e mortal, que dificilmente suportávamos a suu pre· método, de uma maneira que o séc:.Jlo XVIII não podia prever.
sença; tremíamos dian te dele como dia nte de um espectro". A Mas, no entanto, existe um sentimento correto na bas·. da pro­
reação provocada peJa obra de Holbach, desde a sua publicação, fecia de Diderot. O ponto que ele quer enfatizar, svbre u qual
relaciona·se com o fato de que suscitou contra ele a unanimi· quer insistir, é que as matemáticas não podem mais pretender,
dadc não só das forças religiosas mas também das forças vivas dorav!mte, ler o monopólio da autoridade no domínio das ciên·
da arte de sua época. Foram essas forças. levando à restauração cias da natureza. Surgira uma rival que elas não conseguirão

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repelir inteiramente. Sem dúvida, as matemáticas poderão, no passo que, por essa mesma razão, o conhecimento dos fatos s0­
interior de seu domínio, atingir a perfeição, levar seus conceitos freu um atraso. E, no entanto, é esse conhec imento que con tém
ao auge do rigor e da exatidão: essa perfeição nem por isso dei­ eru si, seja qual for a sua natureza, a verdadeira riqueza da filo­
xará de ser um obstáculo imanente. Elas não podem, com efeito. sofia. I! um dos preconceitos da filosofia racional que aquele que
escapar DO cfrculo de seus próprios conceitos, elaborados por não sabe contar seus escudos pouco mais rico é do que aquele
elas próprias; são desprovidas de todo o acesso direto à reali­ que só possui um. Lamentavelmente, a filosofia racionol ocupa-se
dade empírica, concreta , das coisas. Somente a experimentação, muito mais de comparar e de combinar os fatos que já conhece
a observação fiel da natureza, pode abrir-nos esse acesso. Mu. do que em recolher novos. · a. Diderot encontrou assim uma
para permitir ao método experimental ser eficaz, para extrair dele fÓrmula muito caracterfstica e muito escla recedora que anuncia
todos os fru tos que ele é capaz de gerar, cumpre-nos desenvol­ um novo estilo de pensamento. Ao espírito contábil, ordenador
vê-Ia até tomar-se perfeitamente independente, libertá-lo de toda e calcu lador, ao espírito do racionalismo do século XVII I, opõe­
e qualquer tutela. Devemos, portanto, combater, no domínio da se agora uma nova tendência, a de apropriar-se do real em toda
físi ca, não s6 o espírito de sistema da metafísica mas também o a sua riqueza, de abandonar-se-lhe naturalmente, sem a preo­
da matemática. Quando o matemático, não contente por desen­ cupação de saber se essa riqueza deixa·se definir por idéias
volver por conta própria seu universo conceptual, afaga a espe. claras e distintas, deixa-se medir e con tar. Ainda se continuaria
rança de envolver na rede de seu s concei tos a reaUdade como construindo, sem dúvida, tais sistemas de idéias, mas sem ali­
um todo, ele passa a ser, por isso mesmo, um metafísico. " Quan. mentar ilusões sobre sua significação e seu alcance real. "Feliz o
do os geômetras depreciaram 05 metaffsicos estavam muito longe CiJ6sofo sistemático a quem a natureza concedeu. como a Epicuro
de pensar que toda a sua ciência não era outra coisa senão uma ou a Lucrécio, como a Aristóteles ou a Platão. uma ditosa ima­
metaf(sica ." Com essa tomada de posição começa a empalidecer ginação, uma grande eloqüência e a arte de apresentar suas
o ideal da física matemlÍtica que domina e anima todo o século idéias em imagens impressionantes e sublimes. O edifício que
XVIII ; em seu lugar eleva-se um novo ideal, a exigência de uma ele ergueu pode muito bem desmoronar um dia, mas seu retrato
Jisica puramente descritiva. Diderot concebeu e desenhou em
continuar de pé, até mcsmo entre os escombros." O sistema
largos traços esse ideal muito antes que ele tivesse sido realizado
possui, portanto, no fundo, uma sign ificação mais individual do
em detalhe. Indaga ele : por que possuímos, ape1iar de todo esse
brilhante desenvolvimento do saber matemático, tão exfguos c0­ que universal, mais estética do que objetiva e lógica. Ele ~ in­
nhecimentos ainda, certos e incontestáveis, no domínio da natu­ dispen sável como instrumento do conhecimento; mas cuidemos
reza? Faltam os gênios? Há deficiências de renexão e de inves­ de não nos converter em escravos de um simples instrumento.
tigação? De maneira nenhuma: o motivo deve ser procurado, Possuir o sistema sem ser por ele possuído: Laidem habelQ,
antes, num desconhecimento do princfpio das relaçãcs que unem dummodo te ÚJis no/'! habeat. u "I! uma nova direção de investi·
o saber conceptual 80 conhecimento dos fatos. "As ciências abs­ gação e, por assim d izer, um novo temperomenlO de investigador
tratas monopolizaram por muito tempo os melhores espfritos. Os que surge, exigindo ser reconhecido, juslficado em seu estilo
conceitos e as palavras prosperaram de forma desmedida, ao próprio e na validade do seu método .

110 111

J'f 60&'
DIBLlO i ECA Pc. Inocen te Radriznnl
Essa justificação pode ser abordada med iante consideraçáes nado; mai o perdemos de vista e logo encontramo-nos inevita·
que j á foram reitas em física mate mática. Os par tidários e os velmente perdidos. Se pensássemos em e nsinar uma c ri ança a
suceSSOres de Newton se mpre disseram e repetiram, em sua po­ falar começando pelas palav ras que se iniciam com a letra A,
lémica contra a física "racional" de Descartes, que doravantc continuando pelas que se iniciam com B e assim por dia nte,
não eru mais preciso preocu parem-se em explicar a na turez.a , metade de uma vida te ria passado antes de te r-se tenninado com
basta ndo descrelJer inteiramen te os seus íenômenos.M Em vez o aJrabcto . O mé todo é excelente no dorninio do racioclnio, mas,
da definição, operação válida, alê í undamental nas matemát icas, em mi nha opi nião, nocivo no caso da história na tural , de um
é necessá rio recorrer à descrição. Ora, para um Císico, na reali· modo geral, e da botânica e m particula r." ·r Isso não significa,
dade, a descrição exa ta de um íenômeno coincide, e m úh ima evidente mente, que essas ciências possam prescin di r do método
análise, com 8 sua med ida : s6 se descreve com rigorosa exa tidão e do espírito sistemático mas que, em vez de irem pura e sim­
o que se pode determi nor por \lu/ores puramente numéricus e plesmente buscar seus princípios às disciplinas " racionais", de-­
exprim ir por relações e ntre esses va lores. Mas, q uando se passa vem elaborá·los em coníormidade oom seus próprios objetos.
da física pa ra a biologia, O poslUlado de descrição pura adqui re
Sem dúvid a, DiderOI não teria podido apresentar essa exi­
um outro sentido. Já não se traia agora de transíonnar a reali·
ganeia de uma forma tão n(tida se elo já não ti vesse , num certo
dade int uitiva numa soma de grandezas , num tec ido de números
senlido, recebido satisfação DO tempo em que ele redigia suas
e medidas; é preciso , pelo contrário, conservar·lhe a íorma pró­
reflexões sobre a interpretação da natureza. Foi, com d eito,
pria e especHica . ~ ela que deve ser exposta aos nossos olhos, e m
nesse preciso momento que se publica ram os três pri meiros vo­
toda a riqueza e divenidade do seu ser e na profusão do seu
lumes da H istória natural, de Burfon . Um novo tipo de ciência
devir. li essa construção lógica dos t:onee itos de c1ass(:s e de es·
estava assim criado, fonn ando, em cena medida, uma contra parte
pécies, graças à qual buscamos geralmente o conhecimento da
(ein SeitenslÜck) para os Philosophiae naluralis principia ma­
natureza, opõe-se de um modo direto ii: contemplação da sua
riqueza . Esses conceitos só podem resulta r muito mais numa Ihemalica, de Newton. Sem dúvida , a obra de Hu rron não é com·
limitação da intu ição, no empobrecimento, no enxugamento de parável, de maneira nenhuma, com a de Newton no plano da
seu conteúdo, do que em sua perreita compreensão . Vale a pena densidade, da originalidade e da criatividade , mas .em nada lhe
Jutâr contra essa esclerose mediante a pesquisa, a elaboração de perde do ponto de vista do mé todo, porquan to aponta com per­
conceitos que pe rmitam ndaplanno-nos à r iqueza individual, il {ci ta clareza uma certa orientação fu ndame ntal na elaboração
singularidade individu al dns rormas naturais, ligarmo-nos a essa dos conceitos científicos, os quais adquirem a amplitude majes­
singularidade sem perder a fl exibilidade q ue ela impõe . Diderol tosa de um projeto universal que o mé todo lhes confe re, Desde
il ustra pessoalmente esse programa no seu Tratado de botânica. a introdução com que a obra se inicia, Burron parte do princfpio
D iz ele nessa obra : "Se me atrevesse a ta nto, susten taria de bom de que é ocioso e perfeitamente errôneo es tabellXe r nas ciê ncias
grado este paradoxo: que, em certas circ.unstând as, nada ex iste da na tureza um ideal estritamente monjsla e dele fazer depen­
de mais molesto c mais prejudici al do que o método . l?: um fio der todos os ramos da invest igação. Todo o monismo metodológi­
condutor para se ehegar à verdade que jamais pode ser abando­ co desse tipo esba rra, inev itavelmente, no conOito da s matemáti­

112 113
cas e da física. Com efeito, a "verdade" matemática não consiste colhos já naufragcu Linel.:., na sua Filosofia da botânica. NA
em outra coisa senão num sistem a de proposições puramente ana­ posse de uma propriedade. de uma característica qualquer. sus­
líticas unidas entre si pelo vínculo da estrita necessidade e que , cetível de lhe perrntir reagrupar o mundo das pl antas, Lineu
em última análise, ex.primem apenas um só e mesmo conteúdo acredita poder, por meio dessa simples repartição, dessa clas­
de saber sob diferen tes formas. Ora, essa concepção da verdade sifi cação analítica, traçar diante dos nossos olhos o quadro de
perde o seu sentido e a sua forç a a partir do instante em que suas relações, de su a organizaç1ío, de sua rede de paren tesco .
nos aprox imamos da verdade e tentamos nos instalar nela. Quan­ Mas nós não poderíamos obter um quadro desse gênero sem nos
do deixamos de lidar com conceitos que nós próprios forjamos, resolvermos a inverter totalmente o processo assim entabulado.
prescrevendo-Ihes a forma e a determinação. conceitos que po­ Devemos, nesse caso, ter em vista não uma divisão analítica mas
demos inferir uns dos outros com perfeito rigor dedutivo, logo a reunião sistemática dos seres vivos; em vez de os situar em
se apaga essa evidência de que dispomos para comparar entre tal ou tal espécie bem distinta, cumpre-nos conhecê-los em seu
elas idéias pu ras; por conseguinte, já não se trata de transpor parentesco. suas formas de transição, seu desenvolvimento e suas
os limites do simples provável. Temos de nos confiar então à transformações, pois é justamente nisso que consiste a ve::-da­
condução, à direção ú nica da experiência: só ela nos pode pro­ deira vida da natureza. Uma vez que a natureza procede por
porcionar agora essa espécie de certeza de que é su scetível a ver­ dife renças imperceptíveis de uma espécie a outra, de um gênero
dade física dos objetos. Devemos multiplicar as observações, a outro, de tal modo que entre eles encotramos uma série de
precisá-las, generalizar os fatos, relacioná-los com a ajuda de ra­ estados intermediários que têm o ar de pertencer metade a um
ciocínios por analogia, até chegarmos, enfim , a um grau de gênero, metade a um outro, nada de melhor nos resta fazer do
conhecimento que nos permita percebê-los na perspectiva da que aceitar a delicadeza, a sutileza dessas transições, tornar o
relação da parte com o todo, da dependência dos efeitos par­ nosso pensamento suficientemente ágil para representar o movi­
ticulares em face dos efeitos universais. Já não nos satisfaz então mento e as nuanças das formas na turais . A partir daí Buffon
comparar a natureza com as nossas idéias; de certo modo, pas­ decide-se francamente pelo nomi nalismo : declara que não há es­
samos a compará-Ia a si mesma, vemos como cada uma de suas pécies nem gêneros na natureza mas somente indivíduos. E acre­
operações relaciona-se com um centro, como elas concatenam-se dita ver em todas essas observações a confirmação de tal ponto
mutuamente na totalidade de uma atividade única .as Essa uni­ de vista. Os animais de um continente não são encontrados nos
dade escapa-nos enquanto prosseguirmos com a repartição em outros, e -quando acreditamos ter descoberto as mesmas classes,
classes ou em gêneros, pois tais classificações só podem fornecer ~stas foram modificadas a tal ponto que nos fica difícil reco­
um sistema de nomenclatura, não um sistema "da natureza . Elas nhecê-Ias. Teremos necessidade de uma outra prova para nos
são úteis. sem dúvida, até indispensáveis para nos propiciar uma convencermos de que nenhum ser vivo é de um tipo imutável,
visão geral dos fatos, mas nada é mais perigoso do que substituir que sua natureza pode sempre sofrer transfonnações, até mes­
as coisas significadas por simples sinais, fazer defi nições reais mo, com o tempo, mudar inteiramen te, e que as espécies menos
de definições puramente nominais e delas esperar a mínima ex­ bem-equipadas já desapareceram ou desaparecerão num prazo
plicação da "essência " das coisas. Segundo Buffon, nesses es­ mais ou menos curto? 30

114 115
Não se trata de debater aqui a im portância dessas idéias do cOfltelÍdo es:sencial da história do natureza. A teoria lógico­
de Bufíon como esboço de uma doutrina da evolução universal. matemática da definição já exigia em Descartes uma e"plicação
No nosso con texto, elas importam menos pelo seu conteúdo do estritamente mecanicista da natureza como sua comrapartida c
que por sua forma, pelo ideal de saber que imroduzem, ideal seu corolário indispcnsável. Quando, pelo contrário, o centro de
que encontrará progressivamente na obra inteira de Bufron uma gravidade do pensamento desloca-se da definição para a descri­
rea lização concreta. A própria estrutura do conhecimento bioló­ ção , do gênero paril o indivíduo, o mecanismo deixa de poder
gico começa aqu i a desenhar-se nitidamente e é contra a forma ser considerado o único e suficieme prindpio de toda a expU·
da física teórica que ela se afirma. O método das ciências da cação; prepa ra-se uma passagem para lima visão da natureza
natureza deixa de reccber sua lei unicamente das matemáticas; que, em vez de dcduzir o clevir do scr, deduz o se r do devir e
ele encontra um segundo foco, se assim podemos dizer, na forma explica-o por elc.
fundamental do conhecimento histórico. A ramosa passagem da
Critica do juizo, de Kant, onde se encontra desenvolvida pela
primeira vez, de uma forma clara e disti nta, a idéia de uma 5
" arqueologia da natureza", parece ter sido expressomente escri ta
a propósito da obra de Burron. Diz este: "Assim como na his­ o sistema da física cartes ia na levou prontamente de vencida .
tória dos homens consultam-se docu mentos, interrogam-se moe­ na França . a resi stência que encontrara na doutrina da Igreja e
das e medalhas, decifram-se inscrições antigas para fixar as re· IIUS defensores escolásticos da física das" fonuas substanciais".
voluções e as épocas da vida intelectual, tam bém na história da A partir de mcados do século XVII, tudo evoluiu mu ito depres­
narureza devemos esquadrinhar os arqui vos do mundo, arrancar sa: o cartesianismo impôs·se não só no drculo dos espíritos cultos
OS mais antigos monumentos das entranhas da terra, reunir os mas também. a partir de Entretiens sur la pluralité des mondes,
escombros e juntar num só corpo de testemunhos todos os in­ de Fontenclle, como um dos elementos da "cu ltura" geral da so­
dícios de mudanças físicas que possam reconduzir-nos às diver­ ciedadc . Sua in nuência é tão forte e duradouro que os próprios
sas idades da natureza. I! esse o único meio de fixar um ponto pensadores mais opostos aos seus objetivos essenciais mio podem
qualquer na infinidadc do espaço. de colocar alguns limites no livrar-se dela. A doutrina de Descartes condiciona fundamental­
trânsito infinito do tempo. ~ ~o :e. nesse procedi mcnto que repousa mente. no século XVIII, li forma do espírito francês, e essa for·
o poder de uma ciência natural puramente descritiva, a qual ma revela·se tão possante e tão firme que pode assimi lar c sub­
deve afastar cada vez mais, em biologia , o método precedente. meter-se ao próprio conteúdo que a combate.~1 Tanto nR Ingla·
tomado da lógica t scolástica, de definição por gCllIlS proximum terra quanto na Alemanha não se chegou a uma dominação tão
e diflerentia specifica. Em boa verdade. só existe de definido o ilimitada do cartesianismo. A Alemanha preferiu edificar 8 sua
que é claramente conhecido, nitidamente delimitado e exata­ vida intelectual sob a égide das teses lejb nizianas, os quais, na
mente descrito. "li /l 'esf de bien dêfiní que ce qui esl exactement verdade, só registram uma penetração muito progressiva, tendo
décril." E, por essa nova concepção da essência e .ios fins da que se assegurar primeiro, passo a passo. da solidez do terreno ,
conceptusç.iio cientffica, Iransforma.se também a própria visão para depois exercer uma ação profunda e silenciosa. E, na In·

11 6 117
glaterra, os sistemas empi ristas exercem uma crítica que se torna superiOr« do pensamento, desde a impte$sao obscura e confulla
cada vez mais rigorosa e contundente contra as idéias essenciais até o mais alto cor.hecimento reflexivo. Enquanto a e:tperiênciu
do sistema cartesiano. sobretudo con tra a doutrina das idéias nos ensina que tal continuidade ex.isle. pode O pensamento dis­
inal" S e o modo como se apresent a a idéia de substência. Mas, cordar? Ao passo que os fe nômenos constituem uma série inin­
em especial. permanece viva uma Jorma de nIosoria da natureza terrupta, devem encontrar nos principios e nas elCplicaç6es essa
que se liga diretamente ao dinamismo renascentista e que tende negação bru tal que a doutrina cartesiana lhes opõe? Plantas e
até a juntar-se, mais além , às suas Ja ntes antigas, mormente às anima is vêem sua vida negada, anulada pelo cartesianismo , que
doutrinas neoplatônicas. Foi na Escola de Cambridge que essas fez deles autÔmatos, repele-os para o mundo mecânico. Contra
tendências começa ram primeiro a ganhar rorma, a encontrar urna essa tentativa de mecanização, More e Cudworth elaboram a
e:tpressão sistemática. Um dos primeiros lideres dessa escola. H
teoria das "naturezas plásticas A vida não se limita à faculdade

Henry More, saudou com entusiasmo a rilosofia cartesiana quan­ de pensar, à consciência; ela e:tprime-se de um modo mais es­
do esta surgiu, vendo nela o triunJo decisivo, sem contestação, do pontâneo e mais universal como o poder de criar formas. Deve·
espiritualismo, porquanto considerava ler sido consumada nela mos reconhecer a vida a todos os seres que, em seu modo de
a separação radical da matéria e do espírito, da substância ex­ existência, nas {amas exteriores em que se oferecem aos nossos
tensa e da substância pensan te. Mas, tendo ele próprio construído sentidos. indicam que certas {orças criadoras agem em nós e,
mai s tarde a sua própria teoria da na tu reza. é justamente a res­ ainda que indiretamente, no-las revelam. Do fenômeno natural
peito desse ponto que ele rompe com o cartesianismo. Descartes, mais si mples aO mais complc:to, desde os elementos até os orga­
com efei to, de acordo com as objeções que lhe faz Henry More. nismos superiores mais diferençados. reina essa autoridade, essa
não SÓ distinguiu as duas su bstâ nci.!ls como separou uma da outra, hierarquia das " naturezas plásticas". 1! somente nela, e nio ape­
levando tiio longe a distinção racional que tornou toda a conexão nas nas massas e seus movimentos, que a ordem e a coesão do
real impossível entre elas e gerou um abismo intranspon ível de todo podem fu ndar-se. 42
uma para a outra . Entretanto, não é na associação das duas subs­ Leibniz, em sua crítica da fil osofia cartesiana, enveredou
lâncias, na unidade de sua ação, que repousam a unidade e a vida por um outro caminho, tomando expressamente posição COntra
da natureza ? Essa unidade é destrufda , a vida desfeita. na supo­ a doutrina das naturezas pláslicas.t3 Embora situando o fen ~
sição de que o reino do csprrito só começa com a consciência meno da vida orgân ica no próprio centro de suas investigações,
humana e que se limita ao domfnio das idéias "claras e distin­ como biólogo e como me:afis;co, também teve o cuidado, por
tas". O que refuta essa Limitação, o que , por princípio. a toma outra parte, de evitar tode o ataque ao grande princípio de ex­
impossível , é a intuição da continuidade das formas da natureza . plicação matemática da natureza que a ciência deve a Descartes
Em nenhuma parte, en lre as diversas formas da vida que encon­ e até de acarretar·lhe a menor limitação. 1! por isso que, quando
tramos por toda parte sob os nossos olhos na na tureza orgânica os pensadores da Escola de Cambridge falam do morbu$ mathe­
e na forma de au toconsciência, se nos apresenta urna solução de malicus de Descartes, no qual descortinam o vício fundamental
continuidade. Um processo graduado contínuo, nunca interrom­ de sua doutrina da natureza, Leibniz, pelo contrário, sustenta
pido, vai desde os prccessos vitais elementares até as condutas que uma doutrina da vida deve ser concebida de tal modo que

118 119
nunca entre em contradição com os princípios do conhecimento um outro mais perfeito. Aquilo a que chamamos processo "me­
Hsico-matemático. Segundo Leibniz, para garantir a unidade des­ cânico" nada mais é, portanto, do que o aspecto exterior, ti re­
ses dois modos de pensamento, pata estabelecer entre eles uma prese ntação e a expressão sensível do processo dinbmico que
completa harmonia, não existe outro meio senão submeter todos se desenrola nas unidades substanciais, na$ (orças orgânicas. t
os fenôme nos da natureza, sem exceção, a explicações rigorosa­ assim que o ex tenso, onde Descartes acreditava ter encontrado
mente matemáticas e mecânicas, sem deixar de conside rar, entre­ a substância dos corpos, assen ta no inextenso, o "extensivo" no
tanto, que os princIpios da própria mecânica não poderiam con­ "intensivo", o " mecânico " no "vital". "'Quod in corpore exhibe­
sistir simplesmente em extensão, forma e movimento, e recorrem tur mechanice seu extensive, id in ipsu Entelechia concentratur
ainda a outras fontes. O mecanismo é a bússola intelectual que dynamice ef monadice, in quo mechanismi fons et mechanicorum
nos apon ta o único caminho seguro através do domínio dos fe­ repraesenlatio est; nam phaenomena ex mOtJadibus resultan/." 44
nômenos, que submete os fenômenos ao "princípio da razão " AS:lirr.. foram lançados, sem o menor desconhecimento dos
(Sal: vom Grunde) e permite concebê-los de modo raciona l e direitos de uma explicação matemática da natureza, os fund a­
explicá-los inteiramente. Contudo, não será com esse gênero de mentos de uma nova "fi:osofia do oTgânico"; pelo menos, estava
explicação que se alcançará a compreensão do mundo. Para com­ equacionado um prcblema que deveria desempenhar um impor­
preender o mundo, não basta sobrevoar discursivamente os fenô­ tante papel no desenvolvimento da fil osofia da natureza do
menos, ordená·los em seu quadro espaço-temporal. Em vez de ir ~éculo XVIII. Não foram razões puramen te teóricas, especula­
de um elemento do devir ao outro, aproximando-os segundo o ções abstratas. as que suscitaram e alimentaram esse problema.
espaço e o tempo, em vez de estabelecer separadamente os di­ Não menos im portante é o papel desempenhado pelas novas pers­
versos estados gue um corpo orgânico percorre em seu desen­ pectivas estéticas aprc5cntadas por espíritos dotados do sent ido
volvimento, a fim de os unir mutuamente pela relação de causa da arte. Já na idéia leibniziana de harmonia se maniresta a con·
e efeito, convirá colocar a questão da razão de ser da série in­ junção dessas duas influências. E em Shaftesbury revela-se de
feira. Essa questão de ser não é, por sua vez, um elemento da uma forma ainda mais nítida a importância dessa razão estética
série, porquanto se situa além dela. Para reconhecê-Ia , devemos para edificar uma nova concepção da natureza. No desenvolvi­
abadonar a ordem Hsico-matemática dos fenômenos e passar daí mento dessa concepção, Shaftesbury apóia-se nos pensadores da
à ordem metafísica das substâncias; devemos alicerçar nas forças Escola de Cambridgt'".. na teori a das hnaturezas plásticas", Mas
e.
originárias, primitivas, as forças secundárias e derivadas. essa repele todas as conseqüências místicas, em particular as que
a larda que o sistema leibniziano da monadologia quer executar. Henry Mor~ ex traíra dessa doutrina. Todo o seu esforço tende,
As mônadas são os sujeitos donde o dcvir extrai integralmente com efeito, a conceber a idéia de forma de tal modo que ela
seu princípio e sua fonte. O princípio de sua eficiência, de seu deixe transparecer a sua origem espiritual, "ultra-sensível", mas
progressivo desenvolvimento, não é a relação mecânica de causa conservando, nâo obstante, a sua natureza puramente intuitiva .
e efeito mas uma relação leleol6gica. Cada mônada é uma ver­ Shaft..:;sbury, que vê o mundo como uma obra de arte, qUer re"
dadeira "enteléquia " que se esforça por desenvolver e aumentar troceder desta para o artista que a produziu e que se mantém
a sua essência, por elevar-se de um certo grdu de elaboração a preSénfe, imediatamente, em todos os seus aspectos, por m{nimos

120 121
que sejam. Esse artista não submete a sua criaçAo a um modelo e das forças "demonfacas" da natureza. Ele vê o um no todo e
exterior, que ele se limitari a a reproduzir. Ainda menos se con­ o todo no um. Nessa perspectiva de imanência estética deixa de
fonna, em suas obras, a um plano preconcebido. Sua eficiência haver na natureza alto e baixo, interior e exterior : a oposição
é interiormente determinada c, por conseguinte. não poderia ser absoluta entre aquém e além, entre imanência e transcendência,
validamente expressa por analogias extraídas dos processos de está agora ultrapassada. O concei to de forma interior (inward
exterioridade, como a ação de um corpo sobre o outro. A idéia fOrm) situa-se além de toda e qualquer separação desse gênero:
de fina lidade que penetra e domina toda a mundivisáo de "Pois tal é o princípio da natureza que o que valia para o exte­
Shaftesbury sofre igualmente, desse modo, um deslizamento de rior vale também para o interior." A poderosa cor rente de um
sentido. Assim como não visamos ao objetivo tanto na criação sentimento novo da natureza parte daí para penetrar no curso
quanto na fruição artística - a fi nalidade do ato, na criação da história das idéias do século xvrn. O hi no à natureza de
tanto quanto na contemplação, nada mais é do que o próprio Shaflesbury aí desempenha um papel decisivo, sobretudo no de­
ato - . tampouco o "gênio" da natureza conhece um fim exte­ senvolvimento do pensamento alemão; ele liberta as forças pro­
rior a si mesmo. Todo o seu ser está em agir. A sua essência , fundas graças às quais formar-se-ão a filosofia da natureza de
entretanto, não se esgota em nenhuma obra singular, nem mesmo Herder assim como a do jovem Goethe. 4$
na infinidade de suas obras; ela só se nos revela no próprio ato Com a concepção da natureza de Herder e de Goethe já
de produzir e de dar fonna . E esse ato é a fonte primária de ultrapassamos, evidentemente, os limites da época do iluminis­
toda a beleza: "The beautif)'ing, not the beautiful, is the reall)' mo, mas tampouco nessa direção ocorreria qualquer ruptura no
beautiful ... • Essa imanência da finalidade que deriva da sua esté­ pensamento do século XVI II. A transição realizou-se em perfeita
tica é mantida por Shaftesbury na sua filosofia da natureza, nela continuidade. A mediação estava dada de antemão no sistema de
fazendo penetrar uma nova corrente do pensamento. Ademais, Leibniz. em seu pensamento universal, o qual continha em si
ele deu assim um passo além do modelo dos pensadores de Caro­ mesmo a unidade e a continuidade do desenvolvimento. Também
bridge que concebem as "naturezas plásticas" - as quais eles na cultura francesa aparece com nitidez crescente, a partir de
consideram indispensáveis a toda a atividade organizada - como meados do século, o desenvolvimento do conceito leibniziano de
sendo essencialmente potências subordinadas, submetidas à lei mônada. A tal propósito, cabe particularmente a Maupertuis o
e à direção da vontade divina. Deus paira acima do mundo como crédito de ter lançado uma ponte entte a Alemanha e a França.
o seu telos, o seu princípio transcendente, ao passo que as "natu­ A sua posição pessoal em relação a Leibniz não está, de resto,
rezas plásticas" são atuantes no mundo, incumbidas de Gerto inteiramente isenta de contradições, mas a dependência efetiva
~a sua metafísica, da sua filosofia da natureza e da sua teoria
modo pela causa primeira, que apen as visa a fin s universais, de
do conhecimento, em face dos princípios leibnizianos, não é me­
engendrar e de elaborar o individual. Shaftesbury abandona essa
nos indiscutivel. Maupertuis recorre às idéias Ieibnizianas tanto
oposição do inferior e do superior, da potência divina suprema
para demonstrar o seu princípio de mínima ação como para es­
• l!m inglês no o rigi nal : "Aquele ou aquilo q ue embeleza, não o tabelecer e provar o seu princípio de continuidade, e nelas se
belo, é o que realmente possui beleza." (N. do T . ) apóia também para a sua teoria da fenomenalidade do espaço

122 123
:.. do ten lpo . Na verdade, ele esforç a-se por di ssim ular essa estrei­ pretenda explicar a ronnaçao de uma planta ou de um animal.
ta dependênda: ao mesmo tempo em que se apropria tacitamente Tania o problema da reprodução quan to ~ problemas comple­
dos $Cus principios , obstina-se em criticar, em combate r o sistema xos da teoria da hereditariedade naO podem ser tralados em ter­
qua sistema , monnen te sob a rorma que ele recebeu de Woltr e mos puramente ffsicos; nem sequer é poss(vel a sua formulação
dos seus discfpuJos. Essa at itude turva e ambigus não deixou de correta nessa perspectiva. Somos necessariamen te remetidos para
de5Strvi·lo em seu con flit o com Kõnig. 48 Mas . ainda mais niti da­ uma concepção da matéria que é diferente da que o físico pos­
mente do que na versão Maupertui s do "princípio da m:nima tula. Tanto a extensão Cllrtesiana quanto a grav itação newtonia·
ação ", a dívida. denu nciada por Kõn ig, em relação ao pensa­ na não proporcionam a menor eluci dação sobre os renômenos da
mento de Leibniz , evidencili'SC na ~ teorias biológicas contidas vida e estão longe de perrntir que se proceda a uma completa
num tratado latino intitulado Disser/alio inaugurafis metaphysica dedução. Por conseguinte, não há outra solução senão somar aos
de un;versali Naturae syslenwte, a tribufdo 8 um certo doutor predicados puramente físicos - predicados de impenetrabilida·
8a uma nn e que teria sido impresso em Erlangen , em 1751 . O de, de mobilidade , de iné rcia , de gravidade -- ou tros p redicados
que confere a esse estudo sua importância para a história das em relação com a realidade objetiva da vida . E Maupertui s voltn­
idéias é ver-se aí pela primeira vez uma tentativa de concilia­ se então para Lei bniz. o qual proclamava. justamente que, em
ção, de comparação no plano dos princfpios, dos dois grandes lugar de se procura r na noção de massa os princfpios essenciais
adversários que se enfrenta m na rilosofi a da natureza do ~culo e verdadeiros da ex plicação ({sica , cumpre recorre r, para esse
XVIII. Maupertuis foi o primeiro derensor na França das idéias fim, às substâ ncias simples cuja i!ssência s6 pode caracterizar-se
de Newton; nesse combate, ele precedeu o próprio Voltaire e, como ccnsci8/1cia, ou seja, pelos predicados de representação e
de certo modo, abriu-Jbe o cami nho.n Mas não tardou em reco· de apetite. Mauperluis in siste igualmente no seguinte ponto: seria
nhecer q ue o principio newtoniano da atração não poderi a cons· impossível haver uma explicação completa da natureza se não
tituir um fu ndamento sufi cie nte a uma ciência descritiva da na­ nos resolvermos, em vez de tratar esses dois predicados como
tureza para compreender e interpretar os re nômenos da vida propriedades derivadas, a incluf·los entre os d emclItos primiti­
orgânica . Por mais brilhantemente que tenha sido demonstrada vos do ser. E verdade que, por outro lado, Maupertuis rec usa-s~ a
a teoria de Newton em astronomia e em fisica, enCOnl ramt> nos, s'!guir o radicalismo leibni'liano ao distinguir o mundo das subs·
diz Maupertuis, assim que se passa à química , diante de proble. tâncias do mundo dos fe nôme nos, o mundo do "simples " do
mas inteiramente novos qUI: já n50 se deixam tratar por esse mundo do "com posto ". Abordando a idéia de m6nada, ele não
único principio. Seria necessário, pelo menos, caso se quisesse conceberá. à maneira de Leibniz. essas unidades pri márias donde
salvaguardar na química a validade do prindpio universal de resultam os processos naturais como pontos" metafísicos" mas,
atração das massas como princfpio supremo de explicação, dar efetivamente, como pontos físicos. Para atingir essas unidades
à. própria idéia de atração um outro sentido mais amplo do que não é necessário, em absoluto, abandonar o mundo dos corpos
ela possui em física. E de paramo-nos com uma nova mudança como tal , ult rapassar o plano onde se situa O ser e o devir da
de sentido quando se passa da química à biologia, desde que se m.atéria ; basta ampliar a idéia de matéria de modo que, em vez

124 125
de excl uir os fatos primitivos da consciência , ela contenh3"OO em olhoe, ao passo que a primeira relação s6 pode ser concebida
si mesma. Por ou tras palavras, devemos incluir na derinição da por inferências e raciocínios indutivos ." ti
matéria não só as características de extensão, impenet rabilidade, Descartadas, desse modo, as objeções apresentadas contra a
gravidade elc. mas também as de desejo, aversão e mem6ria. fuoção e a coordenação direta das propriedades "psfquicas " e
Pretender que tal associação envolva uma con tradição. que pre. "((sicas" na noção de matéria , 8 construção da filosofia da natu·
dicados tão heterogêneos. até mesmo opostos, não podem coin. reza pode agora prosseguir sem obstáculos. Não está em causa,
cidir num mesmo sujei to, eis uma objeção que não pode pertur. para n6s. deduzir a consciêocia do não-consciente: isso seria pre­
bar-nos, dado que só ~ válida se partirmos do princípio de que tender uma verdadeira c.riação ex nihilo. Não ~ menos absurdo
as explicações de que o cientista serve·se correspondem a defi. acreditar que se possa explicar o nascimento da vida espiritual
nições reais, ou seja, a definições que devem designar a natureza peja associação de átomos, nenhum dos quais possui a 'Sensação
da coisa e exprimi·la plenamente. Descartes e seus adeptos con. nem a inteligência ou a mínima quaJidede psíquica que seja. 4t
sideram a consciência e o pensamen to o atributo essencial da Não resta, portanto, outra solução a não ser transportar a cons·
alma, a extensão o atributo essencial do COrpo; :;ão, portanto, ciência para os próprios átomos como .um verdadeiro fenômeno
perfeitamente coerentes ao estabelecer uma divisória estanque primitivo. Não se cogita de admitir que ela possa ser engendrada
entre a alma e o corpo, uma vez que esses dois atributos nada pelos átomos mas, isso sim, desenvolvida e levada a níveis de
têm de comum entre si, s6 atribuindo a um as características que clareza cada vez mais elevados. Da maneira como Maupertu.is
se recusam a admitir no outro. Ocorre, porém, que essa exclusão realiza esse programa, nada resta, por certo, do princCpio carat;..
recíproca fica insustentável a partir do instante em que se reco­ terístico da filosofia leibniziana da natureza. O espiritualismo
nheceu que todo o poder do pensamento limita·se ao estabele. leibniziano é caricaturado sob a fonna de um vago e cornuso
cimento de caracteres empíricos. Tais caracteres implicam-se in. hilozo{smo : .!I matéria, como tal, ~ animada, dotada de sensação
teriormente uns aos outros? São suscetfveis ou não de se r associa. e de desejo, de certas simpatias e antipatias. A cada uma dessas
dos? Não podemos nem queremos apurar isso: basta que a expe­ partes é atribuído não só um "instinto", que a leva a procurar
riência os apresente sempre juntos e que possamos eSfabelecer a o que lhe convém e a fugir do que lhe é contrário, mas também
sua coexistência regular. "Se o pensamento e a extensão sio um certo sentimento de si mesma . Quando uma parto se associa
apenas propriedades, eles podem muito bem pertencer a um a outras em grande quantidade, ela não perdc esse sentimento
mesmo sujeito cuja essência própria nos é desconhecida . Sua de si mesma ; da confluência de todas essas moléculas animadas
coexistência não é nem mais nem menos inconcebível do que a nasce, simplesmente, uma nova consciêDcitli comum, na qual par·
união da extensão e do movimento. Podemos perfeitamente seno ticipam todos os elementos que .serv iram Para a constituição do
tir uma resistência mais forte à idéia de unir extensão e pensa. todo e na qual sua individualidade se fundamenta. " Sendo a
mento do que à de uni r extensão e movimento; contudo, isso percepção uma propriedade essencial dos elementos, não parece
depende apenas do rato de que a experiência apresenta·nos cons. que ela possa extinguir-se, diminuir ou aumentar. Pode perfei­
tantemente esta últ ima união e a coroca diretamente sob os nossos tamente receber diferentes modificações através das diferentes

126 127
combinações dos elementos ; mas deverá sempre, no universo, for· transformação perpétua. Esse universo ilimitado e móvel, somen·
mar uma mesma soma, ainda que sejamos incapazes de a seguir te !lDI. pensamento móvel pode concebê·lo, um pensamento que
ou de a conhecer. Cada elemen to, em sua associação com os se deixa levar de impulso a impulso, que jamais repousá na
outros, rundiu sua per«:pção com a deles e perdeu o sentimento conlemplação do presente e do dado , mas que se inebria com a
especifico de si mesmo. de modo que nos falta a lembrança do prorusão dos passeI/eis, que os quer percorrer e tentar todos,1I
estado primitivo dos elementos e a nossa origem deve estar intei· Graças a esse traço fundamental do seu esplrilo, Diderot é o
ramente perdida para nós.r.o primeiro a romper com a visão do mundo est6tico do século
Os Pensamentos sobre a interpretação da natureza , de Dide· XV lIl para dotá·lo de urna visão dinimica . Todos OS esque­
rot, estão ligados à doutrina de Maupertuis. Mas o autor possui mas, todas as investigações puramente classificat6lias lhe pare­
um senso crltko demasiado penetrante para não iden tificar os cem estreitas, insuficientes ou, pelo menos, só lhe parecem apro­
pontos fracos dessa doutrina. Não sem razão. ele vê nessa tenta· veitáveis para fix ar o estado do saber num d2do momento espe·
tiva de superar o materialismo apenas uma variedade do mate­ cffico. Não se deve atribuir de antemão nenhum limite ao conhe­
rialismo. E a esse materialismo simplesmente um pouco mais cimento pOr intermédio de tais esquemas, nenhUIDa hipótese deve
reiinado opõe ele uma concepção puramente dindmica. Na ver· pesar sobre o seu futuro. Temos que permanecer abertos a toda
dade , é muito arriscado, ralando de Diderot, pretender definir a novidade, não deixar que nenhum modelo, nenhuma prescri­
com um nome o conjunto de idéias fil osóficas que por eLe foram ção, retraia o holizonte da experiência, Desse ponto de vista,
sucessivamente sustentadas e querer, por assim dizer, apor·lhes pode-se dizer que Diderot avan~a para urna nova coocepção da
um rotulo. O pensamento de Diderot só é cabalmente apreendi· filosofia da natureza . f; ocioso pretender atribuir limitE:! à natu­
do, na realidade, em sua trajetória. em seu movimento inces· reza, querer encerrá·la em nossos gêneros e em nossas espécies.
sante, impetuoso, que não repousa COm nenhum resultado obtido, Ela só conhece a diversidade, a heterogeneidade perfeita. Ne·
que em nenhum ponto do seu curso revela o que ~ e o que quer. nhuma de suas rormas permanece idêntica, cada uma delas re·
presenta spenas um estado de equilíbrio transitório de suas for·
Diderot mudou de "posição" in6meras vezes ao longo de sua
ças criadoras e que. mais dia menos dia, deverá romper·se. "Tal
vida, Nada de rorluilo nem de arbitrário, porém, nessas mu·
como nos reinos animal e vegetal, um indivíduo começa. por
danças . Adquire-.se a con vicção de que nenhuma posição singu·
assi.m dizer, cresce, perdura, definha e acaba; não ocorreria o
lar donde consideremos o universo, nenhuma luz particular sob
mesmo com .espécies inteiras? Se a ré não nos ensinasse que os
a qual o coloquemos, está à altura de sua riqueza e de sua
animais safram .das mãos do Criador [01 como os vemos e se
diversidadl! interior.. de sua incessante mobilidade, Diderot não fosse permitido ter a menOr incerteza acerca do seu começo e
fa z o menor esrorço para cristaliza r seu pensamento em fónn ulas do seu fim. o riJósofo entregue às suas conjeturas não poderia
fi xas e definidas ; ele é permanenlemcote um elemento flu ido e suspeitar de que a animalidade tinha os seus elementos parti·
fugidi o. Mas é ju ~ tllmentc nessa volubilidade que ele avizinha-se culares, esparsos e conrundidos na massa da matéria desde toda
de urna rea lid ade que tampouco conheci:! o que seja estabilidade , a eternidade? Que acontecera uma reunião desses elementos por·
que é impelida, pelo con lr ~rio, por um fluxo incessante, uma que havia a possibilidade de que isso se fizesse? Que o embrião

128 129
formado desses elementos passou por uma infinidade de organi­ NOTAS

zações e de desenvolvimento, que evoluiu do movimento à sensa­


ção e, sucessivamente, às idéias, ao pensamento consciente e à
reflexão? Milhões de anos transcorreram entre cada um desses
1 Para !l\aiore! precit6ts ace rca desse ponto, coosuhar em t3peciaJ
desenvolvimentos - e é possível que muitos outros desenvolvi­ Ernst Trotltscb, Vununfl und O/lenlXJfung hei Johann G~rh(Ud U'"'
mentos que nos são desconhecidos venham ainda a ocorrer." 12 Me/Wlchlon, Gottingem, 1891.
"Quem conhece as raças de animais que nos precederam? Quem 2 Cf., para uma eXp03içio mais completa da questão, O meu livro
sabe que raças de animais sucederão às nossas? Tudo muda, E,kennlnlsproblem [O problema do conhecimento), l.- edição. \'OI. t,
pp. 276 e M.
tudo passa, apenas o todo permanece. O mundo começa e acaba
3 Giordano Bruno, De ImmelUo, Livro VIII, a:p. 9; Opera LaIUla,
sem cessar; ele está a cada instante em se'..l começo e em seu fim. vaI. I, parte 2, p. 310.
Nesse oceano incomensurável de matéria, não há uma molécula .. D'Alembtrt, Êlém~lIl$ de philO$ophie, d. acima pp. 76 e M.
que se assemelhe a outras, não há uma molécula que se asseme­ 6 Sobre os primeiros trabalhos eientlfkos de Montesquieu, cf. por
lhe a si mesma de instante para instante: Rerum novus Itascitur exemplo Sainte-Beuve, Monlesquieu, cal/ser/es du /undl. vol. vn.
ardo, eis a eterna divisa do munde." 8 Sobre a amplitude e O conteúdo deua Iiteratut3. de "flsica teoló­
gica", ver as info rmações mais detalhadas que fo roece O. Momel em Lu
Não pode, portanto. haver ilusão mais perigosa e pior so­ scienclJ$ de la na/ure e/'l Fra/'lce au XVIII' si~rle, Paris, 1911, pp. 31 e sa.
fisma para os filósofos do que o "'sofisma do efêmero" - a i FOGtenclJe, E/'Ilre/ie/'ls ,'ur la pluralité des mondes. Premiu sair,
idéia de que o mundo deve ser neçessariamente o que é presen­ Oeuvres de Fon/e/'lel/e, Paris, 1818, pp. 10 e u .
(emente, Sua existência constitui apenas um átimo fugaz na 8 Para ma.is detalhes sobre a oposiçllo entre "explicaçlo da natureza"

infinidade do devir : nenhum pensamento pode medir a priori a e "descrição da natu reza", entre "definição" e "descriçlo" em Newton
e seus discípulos, cf. e,kel'l/'ll/'lisproblem, 3.• edição, vaI. lI, p. 401.
riqueza de tudo o que esse devir pode engendrar.os " Rerurn
~ Oplice, lat. reddid. Samuel Clarke, 1740, Lib. m, Quaeslio 31.
nOIlUS nascllur ardo": a diVisa a que Diderot submete a natu­
10 Condillac, Traia de: sys/~me$" Logique, p. lI, capo 7 e pas!im.
reza não vale para a posição que ele próprio ocupa na história
11 Voltaire, Le philosophe igTlorant (1766), vol. Xi cf. Trafl~ de mé­
das idéias do século XVI H? Ele cria uma nova ordem das idéias: taphysique (1734), em particular o cap, 3 e &8. [Em francês no original:
não contente em ultrapassar largamente 06 resultad~ adquiridos "Nenb~ma energia primeira, nenhu m primeiro principio pode ser apreen­
pelo seu tempo, ele acomete aquelas formas de pensamento graças dido por nós." N. do T.}
às quais esses resultados foram adquiridos e nas quais se ensai ara 12 D'Alembtrt, ÊUmenfS de phíloSlOphie VI; Méla/'lges, vol. rv,
pp. 59 e 5S.
fid-lo&.
u SpinO.t3., Erica, Proposição 33: "I. .. J se as coisa.! tivessem podido
ser de outIa natureza ou determinadas a opera! de n;odo divers.o, de tal
soc:t que fosae outra a ordem da Natureza, Deus l:imbém poderia ser,
por conseguinte, de natureza diferente da que t presentemen te [ ., .]"
(N. do T.) .
H uLege nalurue uni,,~rsa/e$. secuNium quas omnie fiu"l et dele,.
minan/llr, nihil slIn/ Del aderni decreta, quae sempe, aetemam verila tem'
e/ /'I«tssitalem ;nvolvlI"/'" TrtKtatllS Th eologico-Po/itic/U, capo lU, KO:. 7.

130 131
UUibl'liz. VarignOD; em 2 de fevereiro de 1702, M dlhemalüche I II:homme machine, p. 111 .
SChri/le" , ed. Gerhardl, vol. rv,.p. 94 [E!m franeis no onainal; "I! porque I2Cf. Voltain, Paim"u, us cabah:r (1772), Oellv,u, Paris, Le­
ludo se rege pcla razão e, se assim não fOMe, não eJ:istiria ciência nem quicn, 1825, vol. XIV, pp. 236 e 5S. [Em francb no oriainaJ. N. do T.)
reara, o que estaria em contradiçl'io com a nalureza do princípio sobe­ .. 51sl/me dr 111 na/ure. p. 205.
ra no." N. do T.J. U Diderot, De l'interpritation dfl lo na/urt , IV, XVII, XXI; Ot.u~reJ,
18 Para a im portâ ncia dos trabalhos de$5CS cientistas holaodeses 00 ed. Amzat, vol. li.
descnvolvi nlento do próprio pensamento fram:&, em C$pecial para Il in­ a" Op. cit., sec. XXI, XXVll
fluencia que exerceram em Volta ire cf. a obra de Pierre Brunet, Lu
physiciells lIo1lalldais d la mitllode apirimenraJe C" FTOIIce ali XV11l. ai Cf. acima pp. 81 t $S..

sUcle, Paris, 1926. 11 Úl Botaltlque mist d la po,tü de tout le monde, OeuvrcJ (Aw­
17 H unhens. TTa/ti dtl la lumi~Te, ed. alemA de Lommçl, Leiptig, zal), VI, 315.
1890, p. 3 e ss. as Bufron, Histoire naturclle (1749); Primeiro discurso.
la Cf. S'Gravesa'ode, D iscurso ina ugural D e MatheseCt1 i" omllib"", U No que se. refue à posiçlo de Buffon Da história do evoIDc:ionis­
sc;ietlliis praecipue in PhyslcLJ UlU (17 17) e o tratado Plryslcu E/emnt­ mo, cf. Perrier, La Philosophk toologique awmt Darwi" .
lO ... sive It,tTodflctio tJd phi/osophlom NcwtQfdam, Leyde, 1720. 40 BuLIon, His/Dire no/uFelle , ci tado em Josepb. Fabre, Lu pi res d e
I i S'Gravcsande, Ph)'sices Ele mento, [da] Irad. franasa de Joncourt; la Rivolution. (De Bay/t. d COfldoTCtl), Paris, 1910, pp. 167 e ,s.
cf. Brunet, op. dI., pp. 56 e 5S. 41 Sobre R influência de Descartes, d. G. Lansoo, "L'influence de la
tOS'G ravesa tlde, Rede iiber die Evldenz; c:4.
a introdução 1 tradução pbiiosophie carl&ien ne sur la lin~rature franÇ"-aise", R tVIIC de MClaph")'­
francesa dos lUmcI/ts dc physique, de :tJ.ie de Joncourt. ,/qlle, 1896 (ttudez d'histoire tlttéroire. Paris, 1929, pp. .58 e 5$.).
'I Cf. S'Gravesande, Ph)'s;cu e/crtUllto Mothemot ictl, Prae!atio, e f2 Fiz uma u~ ição mais profunda da fiJosofia da natureza da
Musschenbroelc, " De melhodo irutiluendi ex perimenta. physica", di!curso Escola de Cambri dse e de sua doutrina das "naturez.as plásticas" no meu
de posse como reitor (1730) . livro Die PI(llOltlscht R cnolsso/ICt ifl Englofld und & e Schule VO/l. Cam­
22 HoIbach, Systime de la n.ruure, cf. em especial pp. 1 e 11., p. 53 brIdge (Stud. der BibJ. War burs), Lcipzia. 1932, capo IV.
e paMim. u Cf. o te U tra tado CCHJSldiratioflS sur /u pTÚicipu de v/e CI :rut
nCf. La Mettrie, Hú toi'e nllturelk de r&nu! (1 745); publicado ulte­ lu Mtura p/alt/que!, Phüos. Schríften (Gerh.rdt) VI, pp. 539 e ss.
riormcnte sob o thulo rraiti de t'4me.
H Cana de Lcibniz a Christia n Wolff, CorrcspondE" cia clftre Leibniz
24 Traitl de fame, capo I. c W olft. ed. Gerhardt. H alle, 1860, p. 139 : para mais detalhes, cf. o meu
25 La Meltrie, L'lI omme machine, cd. Maurice Solovine, Paris, 1921, livro Ober Leibl/lt' S}steni, Marburs, 1902, especialmeDte pp. 283 e $S.
p. 130. e 3S4 e ss.
• La Mettrie, L'homme mochine, p. 1).(
t i A demonstração precisa dessa influência foi fornecida por Dilthe:y
2T Ibid., p. 113,
no artigo Áus dtr Zeil dtr Spl/U'ta-$fudit ,1 GOI!lhu (Archiv. f . Gesch. d.
28 HoIbach, S)'s/~me dI. Ia nalure, Parte I, caps. 4 e 5 (pp. 50 e 1.'1.,
Philosophie, 1894 ; Gelommclte Schri/tel1, 11, pp. . 391 e 5$.). Sobre a
58 t 55. ) . visão da natureZll em Shaftesbury e sua!; re.laç6es com a BIcola de Cam·
bridat, ver a exposição detalhada que apresentei em D/e Plalonische
28 Holbach. op. CiL, p. 274 : cf. La Metlde, Dixours sur le bonlleur
RenailMUlce ifl Englu"d... , Leiptig, 1932, capo 6.
(OcII>lrCI philosophiqucs, pp. 211 e 5$.): "Sou e considero um ponto de
honra Kr cidadio zeloso; mas nlo i nessa quaUdade que escrevo, 6 como .e Par.. 0$ detalhes do conflito. cf. Harnack, Guchichte der Ala·
filósofo : como lal, vejo que Cartouche foi feito para Kr Cartouche e dtmle der W IJ!tnschoftt n tU Ber fi fl , Berlim, 1901, pp. 252 e u.
Pirco para K f Pirro: OS conselhos lão inú tei~ para q uem nasceu com a H Sobre a tOlTlada de posição de Mauperluis a favor de Newton e
sede da carnificina e do sangue." tobre os seus primeiros trabalhos matcm' tioos e físicos, cf. Brune t. Mau­
10 $)'slt me dc 111 fIOIII ", p. 3 t J. ~rlujs, 2 vols., Paris, 1929, I, pp. 13 e A.

lJ2 133
.8 M2.Upertuis, SyJtlme d~ lo tUI/ure, seco m, rv, XIV, XXD ; Deu­
"reJ, Lyon, 1756, vaI. U, pp. 139 e S$..
ti Loc.. cit., &eC o LXIII, LXIV, Pil. 166 e N.
~ lbid., .aec. LllI, UV, pp. 155 e M .
lU Ver, a esse respeito, o cxce!eCle retrato de Diderot traçado por
SerM. Groelbuysen ("La peosk de Dide.rot", em Lo Grande R ,VIU,
v o l. 82, UU, pp. 322 li $S.).
1Il

U De l'interprbo/ion de lo. /"IlJIUre, :teto L VID, Oeuvrel (Am.).


.. Didcrol, LA ri ve de D'Alembtrl, Oeu"ru, vol. U, pp. 132. 154 PSICOLOGIA E TEORIA DO CONHECIMENTO

e pauim.

Um dos traços caraclen sticos do s«:ulo XVHt é a esttt:ita


relação. pode'tíamos até dizer o vínculo indissolúvel que existe,
no âmbito do seu pensamento. entre o problema da natureza e
o problem4 do conhecimento. O pensamento não pode dirigir·se
ao mundo dos objetos exteriores sem vollar-se simultaneamente
para si mesmo, procunndo assim assegurar-se, num s6 e mes­
mo ato, da verdade da natureza e da sua própria verdade . Ao
iovés de o conhecimento ser simplesmente lt8tad~ como um
instrumento e utilizado de modo singelo como tal, vemos ser
continu amente colocada, em fénnos cada vez. mais prementes,
a questão da legitimidade desse uso e da estrutura desse instru­
mento. Kant nãQ foi, em absolt..to, o primeiro pensador a ./or·
mular essa questão, embora lhe tenha dado um outro rumo, uma
signiricação aprorundada e uma solução radicalmente nova. A
tarefa universal de determinar os limitC$ do esphito (ingenii
(imites definire) já tinha sido estabelecida por Descartes com
uma clareza decisiva. A mesma questão cooverte-se em seguida,

134 135
com Locke, no furid~mento de toda a filosofia da experi~ncia. nhecimento por sua origem. Assim é que a origem psicológica
O empirismo de Locke também comporta uma tendência inten­ converte-se num critério lógico mas. por outra parte, não faltam
cionalmente "critica". A determinação do obieto da experiência as normas lógicas para penetrar na psicologia e orientar seus
deve pteceder a investigação da função experimental. Não temos problemas . A psicologia recebe delas um caráter reJlexivo pre­
o 'direIto de aplicar o nosso conhecimento a não importa que dominante: não se contenta em perceber as realidades e os pro­
objeto para desoobrir·lhe ~ natureza. A primeira questão deve;: cessos mentais, quer sondá-los até atingir seus fundamentos últi­
ser, pelo contrário: que espécie de objeto convém ao conheci­ mos, os próprios elementos do psiquismo, a fim de expõ-los à
mento? Quais são os objetos que el~ é suscetfvel de determinar? plena luz, analiticamente. e nesse domínio, precisamente, que
Entre.tanto. para resolver esse problema, para discernir exata­ ela alimenta um vivo sentimento de pertença, de estreito paren­
mente a natureza especíHca do espírito humano, não há outro tesco com a ciência universal da ntItureza. Seu ideal supremo é
caminho ~enão percorrer de lés a lés toda a extensão do seu tomar-se a "química da alma". no sentido em que a química é
domínio e reconstituir a ordem do seu desenvolvimento desde a anatomia do inorgânico e a própria anatomia é a análise dos
os primeiros até as suas realizações supremas. O problema corpos organizados. "Depois que tantos arrazoadores fizeram o
crítico redu'l.-se, portanto, a um problema genético. Somente a romance da alma", diz Yoltaire a respeito de Locke, "eis que
gênese do espírito humano pode fornecer uma solução verda­ chegou um s4bio para lhe razer modestamente a história. Locke
o
deiramente satisrat6ria para problema da sua natureza. A psi­ expôs e explicou ao homem a razão humana, tal como um exce·
cologia é assim colocada,·de modo explícito, na base da teoria [ente anatomista explica os mecanismos do corpo humano." I
do conhecimento e, até a Crítica da razão pura, de Kant, ela Os grandes sistemas racionalistas do século XVII tinham resol­
reivindicará esse papel quase sem contestação. A reação contra vido a questão rundamental da verdade do conhecimento, da
essa concepção, proveniente dos Novos ensaios sobre o enten­ concordância das idéias e dos objetos, ao situar o mundo das
dimento humano, de Leibniz, virá. algumas dezenas de anos mais idéias e o mundo dos objetos numa só e mesma camada primi­
tarde. quando essa obra veio a ser a publicada pela primeira e
tiva do ser . nesse nível que eJes se reúnem e é por essa coin­
vez em 1765, em confonnidade com o manuscrito da Biblioteca cidência p'rimordial que se explicam os acordos que em seguida
de Hanover, e sua influência subseqüente Umitar-se-á, aliás, ao realizam de forma indireta. A natureza do conhecimento hu­
domínio da filosofia e da cultura alemãs. A distinção radical do mano só se infere de si mesma, deciha-se nas idéias que contém
métod0 transcendental e do método psicológicO~ da qUC5tão do em si mesma a priori. Essas idéias "inatas" constituem o selo
"começo" e da questão da "origem" da experiência, tal como que roi impresso desde o começo no espírito hUf:lano e que
foi sistematicamente elaborada por Kant, não pode ser retida, lhe assegura, de uma vez por todas, a sua origem e o seu destino.
portanto. num exame histórico em benefício do problema fun­ O ponto de partida de toda a filosofia, de Descartes em diante,
damental do século XVIII. N~sa época, pelo contrário. a:; fron­ está nessas noções primitivas que consideramos em nós mesmos
teiras não cessam de confundir-se. A "dedução transcendental" e que, de certa maneira, são os arquétipos pelos quais se mode­
nunca se distinguiu da "dedução psicológica"; detarmin.a~e, lam todos os nossos outros conhecimentos. Entre essas noções
mede-se a validade objetiva dos conceitos fundamentais do co­ primeiras encontramos as de ser, número _e duração, que pos­

136 137
suem um valor absoluto .para todo o conteúdo do pensamento, os cbjetos exteriores; não dispomos de qualquer outro recurso
ao passo que as idéias de extensão, forma e movimento só valem para agir sobre eles. Foi assim que a doutrina cartesiana das
para o mundo dos corpos e a idéia de pensamento só para a idéias inatas viu-se alçada por Malebranche às. alturas de um
alma.' Toda a realidade empírica, toda a diversidade dos corpos princfpio segun do o qual só em Deus vemos tOOas as coisas.
e toda a vida complexa da alma estão contidas nesses modelos Não existe um conhecimento verdadeiro das coisas, salvo se
simples e primitivos , que se relacionam de antemão com essa relacionarmos em nós mesmos as percepções sensíveis com as
realidade objetiva pela única razio de que assim' se relacionam idéias da razão pura . Somente essa relação confere às repre­
também, simultaneamente, com a sua própria origem . As idéias sentações uma significaçi10 objetiva; de simples modificações
inalas são " as marcas do operário impressas em sua obra" . Que do nosso eu, convertem-se por esse meio em representações do
benefício se colhe, enUio, em interrogar-se.. ainda sobre a sua ser e da ordem dos objet05. Em si mesmas , as qualidades sensl­
ligação com a realidade, sobre a possibilidade de aplicá,las a veis, as sensações de cores, de som, os cheiros e os sabores ainda
esta? São aplicáveis à e:q>eriência pela simples razão de que niio comporiam O menor indício de um conhecimento do ser
têm R mesma origem dela e de que não poderia haver, portanto, e do mundo: enquanto vivências imediatas apenas nos assinalam
a mínima oposição entre sua própria estrutura e a eStrutura das os diversos estados por que passa a nossa all'!la, de in stante a
coisas. A razão como sistema de idéias claras e distintas e o instante. Só a cilncja permite extrair desses estados de alma a
mundo como totalidade do ser criado não podem separar-se. um indicação de um estado de coisas objetivamente real e objetiva­
do outro em nenhum ponto: cada um desses dois planos do mente válido, de uma existência da natureza e de uma legalidade
ser oferece tão-somente expressões_e representações Cliversas de inviolável. Mas só pode efetuar essa passagem do subjetivo 80
uma mesma e única substancialidBde (Wese:nheil). O inteltectus objetivo na condição de reconduzir o contingente ao necessário,
archetypus divino converte-se, Bs;sim, no mundo cartesiano, no a existência fatual à racionalidade, o temporal ao intemporal e
elo fixo, no grampo de rerro que mantém unidos O pensamento ao eterno. Para chegar ao conhecimento da natur~, ao conhe­
e o ser , a verdade e a realidade. Esse traço C8racteristi~ da cimento do mundo físico. devemos, em vez de atribuir à "maté­
dOUlrina destaca-se ainda mais francamente nos discípulos ime­ ria" uma propriedade sensível qualquer, ·reduzi-Ia à pura exten­
diatos e sucessores de Descartes. Ora, todo o movimento do üo. Entretanto, cumpre-nos juntar a essa redução uma outra
pensamento a partir de Descartes consistiu precisamente em cujo alcance t mais profundo. Com efeito, não basta aceitar a
negar todo o vínculo direto entre a realidade e o espírito huma­ extensão no sentido em que ela nos é dada na extensão concreta,
no, entre a substantia cogital1s e a substantia ex/enla, mesmo na "imaginação". Para concebê-la em sua estrita e autêntica ver­
ao ponto de o desfazer inteiramente. Não existe- nenhuma espé­ dade, temos que nos libertar também de todas as .imagens que
cie de "união" entre a alma e o corpo, entre as nossas repre­ esta última nos fornece e dar o passo que nos 'conduzirá da
sentações e a realidade, salvo a que é dada e produzida na essen­ extensão imaginativa à "extensão inteligível".- E por intermédio
cia divina. Nenhum caminho leva diretamente de um pólo a dessa idéia de uma extensão inteligível que o espírito humano
outro do ser; deve-se passar necessariamente pela mediação da é suscedvel de conhecer a natureza, a realidade física ; mas só
existenda e da dicJ.cia de Deus. Só por esse meio conhecemos conceberá ~ mesma idéia se a relacionar, se a reconduzir a

138 139
Deus como um verdadeiro "lugar 'das idéias". Nesse sentido, do f1u 01inismo considerou ser a sua larela essencial inicia-sc
todo ato de conhecimento autêntico; todo ato da razão estabe· nesse pOnto e com espedal virulência. O problema lógico c
lece uma unidade imediata, uma junção entre Deus e a alma epistemológico das " relações da consciência com 0$ seus obje­
humana. A validade, a potência e 8. certeza das idéias fund a· tos" mio pode ser resolvido pela introdução de temas religiosos
mentais do saber estio fora de QUe5tio pelo próprio fato de que e metaffsicos que, pelo contrtirio, 56 iriam obscurecê-lo, Em sua
participamos nelas e através delas da existência divina . Em é lti· célebre carta a Marcus Herz, a qual contém a primeira formu·
ma análise. ~ neSsa participação metafísica que repousam toda a lação precisa do problema crítico, Kant condena solenemente,
verdade e toda a certeza lógica; é nela que se apóia a prova uma vez mais, toda a tentativa para se resolver assim esse pro­
perfeita. A luz que ilumina para nós o caminho do conheci· blema , " Platzo tomou para primeira fonte dos conceitos puros
mento vem de dentro, não de fora : da regi~o das idéias e das do entendimento uma antiga concepção da divindade; Male­
verdades eternas, nlio das coisas sensíveis. E, no entanto. essa branche, uma concepção desse ser primordial que ainda tem
pura luz " interior", justamente, não nos pertence; ela é o 're­ curso nos dias de hoje [ , . . ] Na detenninação da origem e da
flexo de uma Conte luminosa mais alta: "C'est un ~ctat de la validade dos nossos conhecimentos, o deus ek machina constitui
substance lum{" euse de nOlre
, maltre commun,"· a escolha mais ex.travagante que se poderia fazer; além do
Num exame atento desse desenvolvimento metafísico do círculo vicioso que introduz na dedução dos nossos conhecimen.
racionalismo cartesiano, percebe-« com toda a clareza o ponto tos, oferece ainda a desvantagem de favorecer todas as Cantasias
onde ele devia fatalmente entrar em conmto com a filosofia ilu· e lucubraç(Ses cerebrais piedosas ou [antásticas." I Nessa parte
minista. Esta encontra·se, a propósito do problema do conhe· negativa da sua doutrina , Kanl sustenta ainda uma tese que
cimento, diante de uma tarefa idêntica àquela com que se de· corresponde ~ opinião comum de toda a filosofia do Iluminis­
,p arou a propósito do problema da natureza e que ela acreditava mo, a qual nunca , deixou de se manifestar contra toda e qual.
entâo ter vitoriosamente solucionado. Trala-se de estabelecer a quer tentativa de encontrar num mundo transcendente um ponto
natureza e o conhecimento em seu próprio fundamento, explicar de apoio para a alavanca do conhecimento. Quanto a Voltaire,
' uma e outro por suas próprias determinações. Convém, tanto na luta perpétua que travou contra semelhante tendência , ma·
para um quanto para b outro, abster-se de recorrer a todo o ni[esta sua predileção pelo sistema de Malebranche, em quem
"além", Entre conhecimento e realidade, entre sujeito e objeto , vê o mais profundo ~etaffs i co de todos os tempos;' mas é evi·
nlo deve interpor·se nenhuma instAncia estranha. O problema dente que essa referencia constante serve-Ihe para provar a imo
deve ser formula do e resolvido no terreno da experiência : o potência do "espirito de sistema" da metafísica.7 Para Voltaire
menor pa~so que arriscarmos fora do seu domínio significará e pare. todo o enciclopedismo francês, essa atitude negativa imo
uma solução ilusória, uma explicação do desconhecido por algo plica imediatamente uma certa posição que eles con's iderarão
mais duc:onhecido ainda. Assim, essa mediação em que o aprio­ doravante inatacáve1. Que mediação, com efeito, irti subsistir
rismo e o racionalismo pensavam tcr baseado a mais alta cuteza entre o eu e a coisa, entre o sujeito e o objeto, se excluirmos
do saber deve ser recusada sem vacilação nem concessão, O o caminho da transcendência? Que espécie de relaçâo é ngorll
grande processo de secularização do pensamento que a filosofia penstivel entre eles, senão uma relação de influência direta excr­

140 14 1
cida por um sobre o outro? Se o eu e o objeto pertencem a mo não renunciou. em absolut.o, a valer-se de princípios uni­
duas camadas diferentes do-ser. se devem. apesar de tudo, estar versais e de sua evidência imediata. Mas eSSE! evidência mudou,
em contato e estabelecer entre si uma conexão, será inevitável por certo, de lugar: não enuncia mais mD vínculo entre idéias
que a reaUdade exterior se comunique à consciência . Mas a úni· puras mas a apercepção de uma ligação de luclo. Em vez da
ca forma empírica que conhecfamos de uma comunicação dessa metafísica da alma, deve aparecer a história da alma, esse "mé­
espécie é a da impressão (Einwirkung) direta . Só ela permite todo estritamente histórico" que Locke defende contra Descar·
lanç.ar uma ponte entre a representação e o objeto. O principio tes. IO Pode-se muito bem afirmar que a autoridade de Locke.
segundo o qual toda a idéia que eocontramos em nós mesmos em todas as questões de psicologia e de teoria do conhecimento.
assenta numa " impressão" prévia e só se explica a partir desta é quase incontestada durante a primeira metade do século
será por conseqüência elevado à categoria de um axioma incon· XVlll. Voltaire situa Locke muito acima de Platão - e O'Alem·
testável . Mesmo o cepticismo de Hume, embora dirigido contra a bert declara na introdução da Enciclopédia que Locke é O cria­
validade universal 'da relação de causalidade em geral, nâo he­ dor da (ilosofia científica, tal como Newton Q foi da física
sitou na presença dessa fonna especial da famosa relação: se científica, CondiUac. num exame rápido da história do problema
nem sempre é Poss(vel produzir o original de um,determinada. da alma, associa Locke diretamente a Arist.6teles; declara ele
idéia, por mais profundamente escondido que possa estar esse que tudo o que foi produzido nesse meio tempo não conta, por
original. nenhuma dúvida pode haver, contudo, de que ele exis· assim dizer, para nada no avanço verdadeiro do problema. ll
te e ternos que o procurar. Duvidar disso significaria apeoas A psicologia inglesa, tal como a francesa, só procura ultrapassar
leviandade e incooseqüência .8 •
Locke cuma direção: a liquidação do que resta de dualismo
Reencontramos ai um resultado' surpreendente e teorica­ co principio de sua análise, a distinção da experiência " inte-­
mente paradoxal : O empirismo psicol6gico v!--se precisamente riQr" e "exterior" que ela quer eliminar para reduzir todo O c0­
{orçado, para desenvolver a sua tese, a colocar à frente de sua nhecimento humano a uma só e mesma fonte. A oposição entre
doutrina um axioma , psicológico. O principio : nihil est in in-­ "sensação" e "reflexão" apenas espelha um pscudodilema que
tellectu quod non antea fuerit in sensu nio pretende, em absolutõ, se apaga diante de uma análise mais apurada. Todo o desen­
enunciar uma verdade {atual que teria sido prov:.'-da por múl· · volvimento, todo o progresso da doutrina empirista de Locke a
tiplas confinnaçôes indutivas. Não lhe recoohece uma'. simples Berkeley e de Berkeley a Hume tende: a compensar e, em última
probabilidade empírica mas uma certeza perfeita, indubitável, análise, a apagar inteiramente a suposta diferença entre sensa­
inclusive uma espécie de necessidade. Diderot declara expres­ ção e reflexão, e a crítica da filosofia francesa do século XVIJt
samente: " Nada existe de demonstrado em metaHsica. e nada incide igualmente sobre esse único ponto, tendente a eliminar o
sabemos, em momento algum, sobre lU nossas faculdades in1&­ resto de autonomia que l..ocke tinha concedido à renexão. A
lectu.ais, nem SÇ>bre a origem e o progr~so dos nossos conbe-­ reflexão queria eer conhecimento da alma no que se refere à
cimento:J, se o antigo princípio: nihil est in intellectu etc. não 6 6ua própria existência e aos seus próprios estados, mas existirá
a evidência de um pirmeiro axioma." o Essa fórmula de Dide­ tal conhecimeoto, na verdade, como dado empírico real? Algu­
rot é caracteristica . porquanto mostra que o próprio empiris­ ma vez nos experimentamos a "nós mesmos" sem q"ue não 50­

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brevenha, nessa experiência , alguma impressão, por mínima que opor nenhuma fronteira superior .80 processo de gênese contl·
seja, relacionada com um fato físico. com uma disposição ou nua da vida anímica . Longe de se deter diante das formas de
uma condição do nosso corpo? Alguma vez será possível indicar energia espiritual pretensamente "superiores", esse processo de­
na experiência um puro "sentimento do eu" (lchgefüh l), uma ve encontrar aí a sua plena eficácia e O seu papel decisivo.
autoconsciência abstrata? Maupertuis, ao formular essa questão, Nada se encontrará nesse nível que já não esteja contido e cons­
recusa-se a resolvê-la dogmaticamente, mas é propenso a dar­ tituído nos elementos sensíveis primitivos. Os atos do esplrito,
lhe uma resposta negativa. Quanto mais fundo penetra-se na as operações intelectuais. nada comportam que seja verdadei­
idéia de uma- ex.ist~nci a pura mais longe se leva a sua análise, ramente novo e, daí. misterioso: são apenas sensações transfor­
mais claramente se afirma a impossibilidade de separar essa madas. Convém acompanhar passo a passo a gênese desses atos,
idéia de todo e qualquer dado sensfvel. Verifica-se, em particu­ O processo de transformação' dos elementos sensíveis primitivos
lar, que o senlido do l alo desempenha em seu a~ rec ime n to um da vida da alma. Verifica-se então que as diversas fases singu­
papel decisiyo.t2 Vamos en~nlrar a mesma argumentação em lares nunca estão separadas por um corte' níti do mas, pelo con­
Condillac sob uma form a essencialmente mais radiéal, a qual trário, fundem·se insensivelmente umas nas outras. Ao consi de­
culmina numa penetrante crítica dos fund8.O'lentos da psicologia rarmos o conjunto dessas metamorfoses psíquicas, reconhece­
e da teoria do conhecimento em Locke. Sem dúvida, Locke deu mos uma só e mesma ordem de desenvolvimento, tanto dos atos
um importante passo no sentido do avanço da investigação em­ do pensamento e da volição quanto dos atos de sentir e per­
pírica; também foi, indubitavelmente, o primeiro a traçar-lhe ceber. Condillac não é exatamente "sensualista", no seotido de
o percurso que deveria ser adotado. Mas deteve-se a meio ca­ querer fazer do eu, à maneira' de Hume, um simples "feixe
minho e recuou precisamente diante do problema que apresen­ de percepções". Insiste na simplicidade da natureza da alma,
tava maiores dificuldades. Com efeito, foi quando se abordavam onde se deve procurar. diz ele expressamente, o verdadeiro su­
as mais altas funções da vida mental, do poder de com parar, jeito da consciência. A unidade da pessoa pressupõe necessaria­
de distinguir, de julgar, de querer, que Locke tomou-se, de sú­ mente a unidade do ser senciente, portanto, que existe uma
bito, infiel ao seu método geral. Contenta-se em enumerar sim­ substância espiritual simples que sofre somente modificações
plesmente essas faculdades e em apresentá-las como poderes fun­ múltiplas sob o efeito de diversas impressões que se exercem
damentais da alma, em vez de segui-las até às suas origens. sobre o corpo e cada uma de suas partes.14 Os sentidos não
Portanto, é no ponto mais importante, no ponto decisivo. que são, pois, stricto Sertsu, mais do que as causas ocasionais e não
se quebra precisamente o fio da investigação. Locke, que com­ a origem de todos os nossos conhecimentos. Com efeito, não
bateu vitoriosamente as idéias inatas, não derrubou o precon­ são eles que sentem e sim a alma, por ocasião das modificações
ceito das operações inatas da alma. Ele não viu que, à seme­ que se produzem nos órgãos corporais. Devemos observar cui­
lhança da vista e do ouvido. a atenção. a compreensão etc. dadosamente as primeiras sensações de que temos consciência,
não são qualidades primárias indivisíveis mas estruturas tardias descobrir a causa das primeiras operações do espírito, surpreen­
que s6 podemos adquirir pela experiência e a aprendizagem. I3 dê·las em seu nascimento, acompanhá-las até seus limites extre­
1! necessário, portanto, dar continuidade ao desenvolvimento sem mos, em suma, devemos, como disse Bacon. rf"Criar de certo

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modo todo o entendimento humenc , .. fim de comoreendê-lo cimento e constitui para este um pressuposto indispensável.
realmente em SUB estrutura. 1I Locke já enCatizara esse ponto em sua análise dos Cenômenos
Nessa tentativa de "recriação", Coodillac não se ateve, volitivos: o que determina os homens a empreender uma da­
evidentemente, à simples observação cmp/rica. O T raité des sen­ da ação voluntária, o que é, em cada caso singular, a causa
sations não ~ contenta em alinhar observações; pelo contrário, concreta da decisão tomada, não é, de Corma alguma, a repre­
obed&(C a um plano sistemático partindo de uma hipótese teó­ sentaçiio de um bem futuro para o qual a ação serviría de meio.
rica que ele quer consolidar e provar passo a passo. A célebre Nem essa representação nem a avaliaçãO puramente teórica dos
imagem da estátua que, sob a influência das impressões que se possíveis fins singulares do querer, do poDIa de vista do melhor
exercem sobre ela, desperta para a vida e eleva-se para Cormas ou do pior, contêm qualquer espécie de força motriz. Não se
de vida cada vez qlais ricas e diJerenciadas, mostra claramente trata de uma força que atua de antemão, pela previsão teórica
que a "história natural da atma" que Condillac nos quer apre­ e antecipação de um bem Cuturo, mas de uma força que age no
sentar não está inteiramen te isenla de intenções especulativas sentido de antes para depois, proveniente do desprazer e do
ou sintéticas. Condillac tampoucO' se contenta em desenvolver mal-estar que a alma sente em certas 6ituaçõcs em que se vê
diante dos nossos olhos a gênese da alma e a diversidade cres­ colocada e que a impelem irresistivelmente a fugir dessas situa­
cente de suas formal : ele quer revelar-nos a orientação dessa ções. Esse mal-estar (uneasiness) e .essa inquietação Coram COn­
gênese, desvendar·nos os seus verdadeiros mec~nismos. Assim, siderados por Locke o verdadeiro motor e o impulso decisivo
encontramos nele uma nova posição do problema, repleta de de todo o nosso querer.IS Condillac parte das mesmas conside·
Cecundas possibilid,des: compreende ser impossfvel descobrir rações mas entendeu levá-las muito além do circulo dos íe n~
05 fatores essenciais deua gênC6e se permanecermos no domínio menos volitivos e estendê-las a todo o domfnio da vida psíquica.
das nossas simples idéias e representações, no domínio do nosso· A "inquietude" é para ele não só O ponto de partida do nosso
conhecimento tcórico. e necessário recorrer a uma outra di­ desejo e dos nossos anseios, do nosso querer e da nossa ação,
mensão do psíquico. Não é sobre a especulação, sobre a mera mas também das nossas sensações e das nossas percepções, do
observação, que repousa a atividade de alr~a , não é aí que se nosso pensamento e dos nossos julgamentos, e até mesmo dos
escondem as fontes vivas de todas as nossas diversas energias. atos superiores de renexão a que a nossa alma se e1eva. 1f Desse
Pode O movimento ser explicado pelo repouso? A dinâmica da modo se vê invertida a ordem habitual das idéias, aquela que,
vida. anímica pode Cundamentar-se na estética? Para compreen­ estabelecida em novas bases, recebera a sançAo da psicologia
der que a Corça latente está subentendida em todas as metamor­ cartesiana. A vontade deixa de ser causada pela representação,
foses da alma, jamais se detendo em qualquer forma estável, passando esta a ser causada por aquela. Deparamo-nos aqui,
esCorçando-se sempre por alcançar novas realidades e novas pela primeira vez, com a atitude "voluntarista" cujo rastro pode
operações, é necessário supor nela a existência de um principio ser seguido em metafísica até Scbopenhauer e em teoria do .00­
motor originário que não pode ser encontrado nas representa­ nheeimento até o pragmatismo moderno. ê no simples ordena­
ções e no pensamento mlls tão-somen te no desejo e no esforço. mento teórico dos fenômenos que, segundo Condillac, consiste
O impulso instintivo (Trieb) é. portanto, "anterior" ao conbe­ a primeira atividade da alma, na apreensão pura e simples do

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que os sentidos nos oferecem, no ata da percepção. O ato de se confundem assim que 6S necessidades cessam, nada Sé vú
atenção que lhe sucede imediatamente permite insistir em certas além de um caos. As idéias passam uma e outra vez sem ordem;
percepções, destacar certos dados sensíveis do conjunto do pro­ são quad.ros móveis -que somente oferecem imagens bizarras c
cesso psíquico. Entretanto, essa acen tuação, esse esforço de de­ imperfeitas, e toca às necessidades fi tarefa de redesenhá-Ias e
terminadas percepções seria impossível se não houvesse razão situá-las eco sua verdadeira luz." 18 A ordem lógica das nossas
nenhuma para escolher umas em vez de outras. Ora, essa razão idéias não é, portanto, primária mas derivada, segundo Con­
não pertence) como tal, à esfera puramente teórica, mas à da dillac; trata-se de uma espécie de reflexo ou de espelho de
prática : A atenção só capta o que, num certo sentido, "afeta" di­ ordem biológica; o que em cada caso nos parece importante,
retamente o eu, ou seja, o que corresponde à satisfação de suas "essencial", é-o menos em função da essência das coisas do que
necessidades e inclinações. Também são as inclinações e neces­ da direção do nosso "interesse", o qual é determi nado pelo
5idades que determinam a orientação das nossas lembranças: a que nos for proveitoso, pelo que for útil à nossa conservação.
memória não se explica pela associação mecânica das idéias, Estamos, pois, <iO mesmo tempo, na presença de uma ques­
sendo determinada e governada-pela vida instintiva. f: a ne,ces­ tão preilhe de conseqüências no que tange à significação da
sidade que recupera da obscuridade e restabelece alguma idéia filosofia iluminista como um todo. Há o costume, enquistado
esquecida: "As idéias renascem pela própria ação das necessi­ numa concepção demasiado estreita desse perfodo, de recrimi­
dades que as produziram." As idéias formam na nossa memória nar na psicologia do século XV IIl sua orientação num sentido
certos turbilhões que se multiplicam na própria medida em q-ue exageradamente "intelectualista", limitando o essencial de suas
os nossos instintos se avolumam e se diferenciam. Cada um análises à vida intelectua l e ao conhecimento teórico, ignorando
deles apresenta-se como o centro de um movimento determinado ou menosprezando, em contrapartida, a força e a originalidade ­
que se prolonga até a periferia da vida psíquica, até as repre­ da vida instintiva. Essa concepção, entretanto, Dão resiste a
sentações claras e conscientes. "Assim é que as idéias renasc~m um exame histórico sem preconceitos. Quase todos os sistemas
pela própria ação das necessidades que inicialmente as produ-' do século XV IlI reconheceram claramente. pelo menos, e apro­
ziram. Elas form-am, por assim dizer, na memória, turbilhões fandaram o problema que acabamos de abordar. Já no século
que se multiplicam como as necessidades . Cada necessidade é XVII a análise das emoções e das paixõcs tinha sido substituída
um centro, cujo movimento se comunica até a circunferência. no centro de interesse da psicologia e da filosofia ·em geral.
Esses turbilhões são alternativamente superiores uns aos outros, As paixões da alma, de Descartes, e a teoria spinozista das
à medida que as necessidades vão fi cando cada vez mais vio­ paixões no Livro lU da Etica não são obras secundárias, me­
lentas. Todos efetuam suas revoluções com uma variedade sur­ nores; fazem parte integrante dos sistemas. No conjunto, entre­
preendente: empurram-se, destroem-se, fQrmam-se de novo, de-. tanto, o pensamento que prevalece é, de rato, o de que é im­
bilitam-se, à medida que ·os sentimentos, aos quais devem toda. possível apreender e determinar pelas paixões a "natureza" da
a sua força, enfraquecem-se, eclipsam-se, ou produz·se o que alma . Essa natureza reside no "pensamento" e só no pensamento
ainda não tinha sido experimentado. De um instante a outro, encontra sua marca verdadeiramcnte característica. E a repre­
o turbilhão que arrastou vários é por sua vez !Togado; e todos sentação, a idéia clara e distinta, não a paixão obscura e con·

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fusa, que caracteriza, por conseguinte, 8 natureza da alma. Os então incontestada. E, em suma, a inversão do inferior c do
instintos, os desejos, as paixões sensíveis só indiretamente lhe superior : mostra que a razão que se costuma honrar como 11
pertencem . Não estão af suas propriedade! originárias e seus faculdade soberana do homem desempenha afinal um papel
movimentos próprios mas perturbações que experimenta, oriun· inteiramente secundário no conjunto da vida psíquica . Ela exer­
das do corpo, de sua junção com o corpo. A psicologia e a ce tão escassos poderes na direção das factildades " inferiores"
ética do século XVII fu·ndem·se essencialmente nessa concepção da alma que não se cansa , pelo contrário . de reCOrrer a elas,
das paixões como fenOmenos de inibição e de perturbação, como e não saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibili·
perturba/Íones animi. Somente possui vela r ético o ato que do. dade e da imaginação. Todo o saber racional se reduz ~clusi·
mina essas "perturbações" , que manifesta li vitória da porte )lamente à inferência da causa a pa ~ [ir da observação do efeito;
ativa da alma sobre a parte passiva, a lf.ii6ria da " razão" sobre ora . essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, in­
as paixões . Essa perspectiva estóica não caracterizo somente a certa, e jarn«is poderá ser estabelecida por via puramente 16gi.
filosofia do século XVII; ela impregna toda a vida espiritual ca. Para ela só existe a justificação indireta. aquela que consiste
dessa época. :e. o ponto de contato da doutrino de Descartes e em descobrir sua origem psicol6gica, em reconduzir à sua ori·
do pensamento de Corneille .'9 A vontade racional dominando gem a crença na validade do princfpio de causal idade . Vedfi­
os impul sos dos sentidos, os insOntos e as paixões, tais são o ca·se então que essa "crença" não se fund amenta, de maneira
sinal e a essência da Uberdade do homem . O século XVIII não alguma, em princípios racionais universais e necessários mas
se detém num critério tão negativo, numa apreciação tão ne· provtm de um simples «inslir:to", de uma pulsão primitiva da
gativa das pab;õe&., ·Longe de ver aC uma simples inibição, pro­ natureza humana. Esse instinto é, em si mesmo, cego; mas é
cura o impulso originário indispensável da vida da alma, Na justamente nessa cegueira que consiste a sua força essencial, a
Alemanha, os principias da filosofia leibniziana já deviam de· potEncia pela qual ete impõe-se a todo o curso de nossas idéias.
sempenhar um papel nesse sentido. Com efeito, L.eibniz, ao ela· Hume parte desse resultado teórico para sistematicamen.te es.­
borar o seu concei.to de manada, não procurou reduzir a sua tender a todo o domínio do psíquico o processo de nivelamento
natureza à simples "representação" , ao conhecimento teórico. por ele iniciado. Procede então à redução das camadas superj()­
A mOnada não se limita à atividade representativa; ela efetua re3 da vida psíquica segundo um plano que é, em si, perfeita·
em si a dntese da representação e do esforço. A idéia de repre· mente metódico. Em sua Hist6ria natural da religião, procura
sentação e a de tendência, a idéia de perceptio e a de percep­ assinalar até que ponlo é ilusória e caduca essa pretensão que
turilio,2O são colocadas lado a lado no mesmo. plano. De um a religião tem de comunicar, de tornar acessível ao homem um
modo geral, a psicologia alemã liga·se a essa hipótese básica "outra mundo". O verdadeiro solo nutriente da religião, da
que lhe permite dar aos fenômenos voluntários e efetivos uma representação e da adoração de Deus nâo está aí. Não deve
posição independente no sistema da psicologia . Mas um movi· ser procurado numa idéia inata nem em qualquer certeza intui­
mento idêntico esboça·se na França e na Inglaterra, daí passando tiva primitiva; tampouco poderfamos encontrá·lo por intermédio
a outros países. O cepticismo critico de Hume leva, no domínio do pensamento e do raciocínio, mediante provas e argumentos
da psicologia, a uma inversão de critérios cuja validade era até teóricos. Uma vez mais, não nos resta ou lra solução senão a de

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r:~urar a raiz proCunda do religioso na vida instintiva. O sen­ orgulnoso ediflcio da razão se sustenta: Tudo" que há de me­
timento do medo ~ o começo de toda e qualquer religião; é a lhor oa poesia, na pintura, na música, todo o sublime da arle
partir dele que se explicã e se desenvolve toda a religião sob e dos costumes, brota dessa mesma fonte . Portanto, as paixõc ~
seus múltiplos aspectos. O novo modo de pensamento que assim não devem ser enfraquecidas mas, pelo contrário, intensificadas,
se maniCesta em Hume exerce igualmente uma ação incessante pois a verdadeira Corça da alma nasce de sua concordância recí·
no seio da cultura francesa setecentista. Vauvenargues produz proca e não de sua destruição.22 Em tudo o que precede perco­
quase o efeito de uma violência subversiva, de um ato revolu­ be-se sem 'diCiculdade um deslocamento prog ressivo das pers­
cionário, ao declarar, em sua Introdução ao conhecimento do pectivas fundamentais da psicologia e uma modificação da ordem
esptrito humano (1746), que a verdadeira e profunda natureza dos valores psicol6gicos: metamorfose que se manifesta antes
do homem não consiste em sua razão mas em suas paixões. do aparecimento das principais obras de Rousseau e que se
O imperativo estóico de dominar suas paixões pela razão nunca realiza Cora de sua influência. Essa metamorfose, como iremos
seria mais do que puro devaneio. A razão não é no homem uma ver, não é somente importante para o sistema do conhecimento
fa culdade diretora e dominante. Não podemos compará-la com teórico: ela age em todas as direções, a sua influência exerce-se
o ponteiro que indica as horas no mostrador de um relógio. tanto sobre a ética e a filosofia da religião quanto sobre a esté·
As engrenagens do conhecimento e o seu primum movens são tica do Século do Iluminismo, cujos problemas ela coloca em
pul5ÕeS primitivas, origin árias, que nos acodem sem trtguas, novas bases .
oriundas de um domínio diferente , absolutamente irracional.
Até mesmo os pensadores mais claros e lúcidos entre os ilumi­
nistas franceses, até mesmo os protagonistas e porta-vozes de 2
uma cultura puramente intelectual estão de acordo a respeito
dessa tese . No seu Tratado ·de metaflsica Voltaire declara que, Ao consideraf'se o conjunto de problemas de que t.ratam a
5em 85 paixões, &em o orgulho, a ambição, 8 vaidade, todo o teoria do conhecimento e a psicologia do século XVIII, sur­
progresso da humanidade, todo e refinamento de gosto e todo preende a percepção de que, apesar da sua diversidade e da
o desenvolvimento das arle$ e das ciências seriam impensáveis: especificidade de cada um, eles convergem para um mesmo
"Foi com esse expediente que Deus, a quem Platão chamou o pomo. A busca de detalhes vê-se levada constantemente, apesar
eterno geômetra e a quem eu chamo o eterno maquinista, ani­ de toda a sua riqueza e de sua aparente dispersão, pafa um
mou e embelezou a natureza : as paixões são as rodas que fazem problema te6rico fundamental onde se reúnem todos os fios. 23
funcionar todas essas máqUinas." 21 O tratado Do esplrilo, de Trata·se da questão que tinha sido apresentada peia primeira
Helvétius, não foi escrito em tom diCerente. O primeiro escrito vez na Optica de Molineux e que logo despertara o mais vivo
independente de autoria de Diderot, os Pensamentos filosóficos , interesse fil osófi co. As experiências que fizemos num dos nossos
também parte desse mesmo pensamento . E fútil bradar contra setores sensoriais podem permitir·nos constituir um setor de
as paixo3es, seria o cúmulo da insensatez empenhar-se em des­ conteúdo qua litativamente diferente e de outra estrutura espe­
'mi.las. nada menos do que 5QC8var o terreno sobre o Qual O cifi ca? Haverá uma conexão interna que nos permita passar

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diretamente de um setor a outro, por exemplo, do mundo tátil Molíneux é, portanto, perfeitamente clara, de fato: para além
ao mundo visível? Um cego de nascença que tivesse adquirido, do exemplo particular que ele destaca, encontra-se colocada a
graças à experiência do tato, o conhecimento exato de certas questão geral de saber se o "sentido" como tal está em condi,
formas corporais e que 50ubessc apontar com segurança as di­ ções de construir para a DO$Sa consciência a forma do mundo
fere nças entre elas, conlinuaria possuindo esse mesmo dom ' de real ou se necessita da colaboração de outras faculdades psf·
distinção depois. que uma fel iz operação lhe proporcionasse o quicas e, nesse caso, coloca-se a questão de apreender o modo
sentido da visão e ele tivesse que passar a julgar essas mesmas como determiná·las.
formas com b'ase em dados puramente ópticos? poderá ele dis­ Berkeley, em Nova teoria da visão e nos Princlpios do
tinguir de imediato, por meio da visão, um cubo de uma esfera, conhecimento humano, tinha pari ido deste paradoxo: a única
ou terá que realizar um longo e difícil esforço de conciliação matéria, o único material de que dispúnhamos para edificar o
antes de chegar a estabelecer a ligação entre as impressões táteis nosso mundo perceptivo, consiste apenas em simples impressões
e a form a visfvel de um e de outro volume? Todas essas ques­ sensíveis - mas, por outro lado, essas impressões sensfveis não
tões ficnram sem uma solução geral imediata mas não tardaram comportam em si a menor indicação das "Cormas" sob as quais
em exercer uma innuência muito além dos meios científiços ver­ a realidade percebida se nos apresenta . Acreditamos ver essa
dadeiramente especializados. O DiArio filosófico, de Berkeley, realidade diante de n6s como uma estrutura s6lida onde cada
mostra-nos como ele se preocupou com esses problemas que elemento singular teria seu lugar designado e suas relações com
constituíram , de certo modo, o germe de toda a sua teoria da todos os demais elementos exatamente detenninadas, Ali ás , não
percepçilio, A NQ\Ja teoria da visiio, que t o primeiro ato da é justamente essa detenninação o que constitui O caráter essen·
filosofia de Berkeley e contém implicitamente todos os seus re­ cial dessa realidade? Se a5 percepções particulares não fossem
sultados, nada mais é, em suma, do que uma tentativa de de­ ordenadas em sua simultaneidade e em sua sucessão, se não
senvolvimento do problema de Molineux até as suas últimas tivessem entre si relações fixas no espaço e no tempo, não
conseqüências para o elucidar. E algumas dezenas de anos mais existiria pata nós qualquer mundo objetivo, não haveria a me­
tarde o problema reencontra no seio da filosofia francesa toda nor "natureza das coisas". E mesmo o idealista mais convicto
a sua força e fecundidade anteriores. Voltaíre conugra-Ihe uma não pode renunciar a essa "natureza das coisas": terá, inclusive,
análise penetrante em seus Elementos da JiI~Jia de N.ewton que admitir e exigir nos fenômenos uma ordem fixa e inviolável
(1H8)j" Diderot coloca-o no centro da sua ' primeira obra de para que a aparência não redunde, para ele, em pura ilusão."
psicologia, de teoriJl do conhecimento, as Cartas sobre os cegos Por conseguinte. a questão crucial de toda a teoria do conheci­
(1749) . Quanto a Condillac, estA fascinado a tal ponto por essa mento consiste em saber o que essa ordem significa, e a de toda
questão que declara sem rodeios ter que se procurar aí a origem a psicologia em saber como aquela se constitui. Mas parece
~ a chave de toda a psicologia moderna, porquanto foi ela que que a experiência, a única que poderia fornecer-nos informações
chamou a atenção para o papel decisivo do julgamento nos mais certas, falta-nos justamente nesse ponto, O mundo que ela nos
simples atos e a fortiori na construção progressiva do mundo apresenta nunca é, de fato, um mundo em devir, mas sempre
da percepção.::& A importância te6rica decisiva do problema de um mundo já constitufdo: ela coloca diante de n6s os objetos

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em sua forma defini tiva, em particular segundo uma distribuição camen te. Ela comtitui, portanto, o único mundo que nos é
espacial determinada , sem nos informar como foi que eles adqui­ acessível, o dos dados imediatos dos sentidos, como que um
riram essa forma. Não s6 a primeira vez que olhamos para as corpo estranho, o qual, não obstante, não pode ser eliminado
coisas faz-nos descobrir nelas certas qualidades sensCveis mas, sem que o mu ndo desmorone e retorne ao caos originário . "DÊs­
além disso, cremos adquirir consciência de certas relações espa­ tance is, in ifs own nature, imperceptible Qnd yet it is perceived
ciais: atribuímos a cada objeto uma certa grandeza , uma certa by sight"; 27 com essas palavras Berkeley exprime, na Nov a teo­
posição e uma certa distância em face dos out ros objetos. Mas ria da visão, da maneira mais rigorosa e impressionante, o
procuramos, entretanto , as razões de todas essas asserções; e dilema em face do qual a psicologia e a teori a do conhecimento
chegamos à conclusão de que elas sâo impossfveis de encontrar sensualista viram-se colocadas desde o seu nascimento.
nos dados que o sentido da visão fornece-nos. Esses dados s6 Quando atribuiu ao seu conceito fundamental de percepção
se diferenciam por SUB posição numa grndação puramente qua­ uma significação mais ampla, Berkeley superou esse dilema ao
litativa e intensiva e nada contêm que possa levar de imediato in serir nele, além da simples sensação, a atividade de repre­
à idéia de grandeza, .de quantidade pura . O raio luminoso que, sentação. Toda a impressiío sensível possui esse poder de re­
partindo do objeto , alcança o meu olho, nada me pode informar presentação, de referência mediata. Com efeito, a impressão não
diretamente acerca da forma espacial desse objeto nem sobre a se propõe simplesmente à consciência com o seu próprio con­
sua distância, Tudo do que o olho dispõe é da impressão {eita teúdo específico, ela torna-lhe também visíveis e presentes todos
na pr6pri a retina. E a natureza dessa impressão não permite os outros conteúdos aos quais está vinculada por uma 9ólida
aduzir nenhum saber referente à causa que a suscitou nem à conexão empírica. E essa interação das impressões sensíveis,
distância menor ou maior a que tal objeto encontra-se. A con­ essa regularidade com a qual elas se convocam e se rep resentam
clusão que se deve tirar dessa análise é que tudo aquilo a que mutuamente perante a consciência, é o fundamento últ imo da
chamamos distância, posição, grandeza dos ob jetos tem, na rea· representação do espaço, Essa representação não é dada como
lidade , algo de invisível. E parece que a tese fundamental de tal numa percepção isolada, não pertence separadamente à visão
Berkcley é assim reduzida ao absurdo, na medida em que se ou ao tato. Tampouco é um estado qualitativo específico que
anuJ a a identificação de esse e de percipi. No âmbito dos fenô­ seria dado tão originariamente quanto a cor ou o som : ela resulta
menos que se nos impõem imediatamente e que não podemos das relações que os diversos dados sensíveis mantêm entre si.
recusar, de maneira nenhuma, apresenta-se-nos algo, portanto, Na medida em que 3 S impressões visuais e as impressões táteis
que ultrapassa as fronte iras da percepção, A distancia que se­ se encontram, no decorrer da experiência, estrei tamente ligadas
para os objetos singulares parece, por sua própria natureza, en tre si, a consciência adquire a capacidade de passar de uma
impossível de perceber, mas, por ou tro lado, ela eonstitu i um à outra segundo regras determinadas com absoluta exatidão; é
elemento indispensável, aO qual não podemos renunciar a fi m nessa p assagem que devemos p rocurar a ori gem da representa­
de construi r a nossa imagem do mundo , A " fo rma" espacial das ção do espaço. Quanto à passagem propriamente dita, é evidenlc
percepçõeS mistura-se à sua " matéria" sensível, sem que seja que temos de entendê-Ia como transição puramente empírica c
dada por ela e , ademais, sem que se lhe deixe reduzir analiti­ de ma neira nenhuma lógica. Não se trata de uma conexão de

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ordem Jógico-matemática e muito menos de um "raciocínio" que a imaginação de cada um de vós apresenLar·lhe·á de maneira
nos conduziria de certas percepções visuais para outras de na­ idêntica os co~os a que essas cores parecem e~tar ligadas. Essc
tureza tátil. ou destas para aquelas_ Somente o hábito e o exer­ julgamento rápido e involuntário que formaram ser-lhes-á útil
crcio estabelecem essa conexão e progressivamente a consolidam. ao longo da vida: pois se tivéssemos que esperar, a fim de ava­
A idéia de espaço não é, pois, a rigor. um elemento da cons­ liar as distâncias, as grandezas e as situações de tudo o que nos
ciência sensível; é a expressão de um processo que se reflete rodeia, pelo exame dos ângulos e dos raios visuais, estaríamos
nela . Só a rapidez com que esse processo se realiza e a regu­ mortos antes de saber se as coisas de que temos necessidade
laridade com que se desenrola permitem que. em nossa auto­ estão a dez passos de nós ou a cem milhões de léguas. se são
observação, saltemos etapas intermediárias e que, desde o come­ da espessura de uma bolota ou de uma montanha ," ~8 A teoria
ço, já possamos antever o fim. ~ necessária a análise psicoló­ da visão de Berkeley foi conhecida e admitida. em seus traços
gica e a crítica mais penetrante para nos recordar a existência essencirus, por quase todos os psicólogos de primeira ordem do
dessas etapas intermediárias. Descobrimos assim a experiência, século XVIII. Condillae e Dideroc 29 modificaram·na em alguns
entre os diversos domínios da sensibilidade, das mesmas rela­ detalhes, indicando ambos que as impressões da vista já contêm
ções que existem entre os signos da língua e sua significação. em si mesmas uma certa "espacialidade". Deixam para o tato
O som vocal não é, de maneira nenhuma. semelhante ao con­ apenas o papel de aclarar e fixar as experiências feitas por inter­
teúdo que ele designa, não lhe está ligado por nenhuma espécie médio da vista; só o consideram indispensável para a elaboração
de necessidade natural. O que não impede o som de cumprir da repre.sent8Çáo do espaço. não para o seu aparecimento. Mas
sua função de designar esse conteúdo e de convocá-lo à cons­ a tese rigorosamente empirisla como tal não ê afetada por essa
ciência. O mesmo pode ser dito a respeito das ligaçõcs que se modificação. Toda a "a prioridade" do espaço é vigorosamente
estabelecem entre impressões de gênero diferente e totalmente rejeitada e assim a questão de sua universalidade e de sua ne­
díspares, do ponto de vista quaJitativo. Nada distingue OS sinais cessidade é colocada sob uma nova luz. Se devemos apenas à
da língua dos sentidos dos da língua {alada, salvo a universali· experiência a percepção das estruturas do espaço, não podemos
dade e a regularidade de sua coordenação. Vohaire declarou. descartar o pensamento de que uma mudança da nossa expe·
ao explicar o pensamenLO de Berkeley: .. Aprendemos a ver pre­ riência - como a que ocorreria ne caso de uma modificação
cisamente como aprendemos a falar e a ler. Os julgamentos da nossa organização psicofísica - não venha a 8tir,gir o pró­
repentinos, quase uniformes, que formulamos numa certJl idade, prio âmago da "nl!:tureza" do espaço. E o pensamento não sa­
a respeito de distâncias, grandezas e situaçõcs, fazem-nos pensar beria deter·se em semelhante declive. O que significa essa cons­
que basta abrir os olhos para ver as coisas da maneira que ve­ tância, essa "objetividade" que temos o hábito de atribuir às
mos. I! um engano. Se todos falássemos a mesma Ungua, sería­ form as da percepção e do entendimento? Exprimirá ela seja o
mos propensos a crer na existência de uma conexão neceSSÃria que for da natureza das coisas ou tudo o que entendemos por
entre as paJavras e as idéias. Ora, todos os homens falam, nesse tal não se relacionará, não se limitará à nossa própria naturezs?
caso, a mesma linguagem : a da imaginação. A natureza disse Para falar como Bacon, 05 julgamentos que baseamos nessa na­
a todos : quando tiverem visto cores durante um certo tempo, tureza valem ex analogia universi ou não valerão antes, de ma­

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neira exclusiva, ex analogia hominís? Com essa indagação, o Cheselàen conseguiu em 1728 cura r, graças a uma feliz operação.
problema da origem da representação do espaço vai muito além um rapaz de cstorlC anos cego de nascença, tudo levou a crer
dos seus limites iniciais. Descobre-se agora a causa que remeteu que essa questão. apresent ada por Molineux como pura hipótese.
incessantemente para esse problema as reflexões psicológica e :lnha encon trado a sua solução experimental. As observaçOcs
epistemológica do século XV III. O conceito cujo destino estava efetuadas com esse r?paz pareciam confi rmar, de fato, todes os
em causa era o de verc!ade em geral. Se o espaço, elemento pontos da tese empirisla. As prediçõcs teóricas de Berkeley c:;.
fundament al da percepção humana, é somente engendrado pela tavam inteiramente corroboradas: verificava-se que o doente, ao
convergência e interação das diversas impressões sensíveis, en· recuperar a luz, não tinha , de m,lOeira nenhuma, adqui rido ime.
tão não pode pretender nenhuma necessidade, nenhuma digni­ diatamente a facu ldade de ver, que, em particular, ele tinha que
dade racional que seja superior à que cabe aos seus elementos aprender, progressiva e penosamente, a distjnguir as formas cor­
constilu:ivos. A subjetividade das qualidades sensíveis, que a porais que se lhe apresentavam à vista . Dessarte se confirms.va
ciência mode:-na conhece e reconhece doravan te, também acar· a tese de que, entre os dados espaciais do se ntido do tato e
reta O espaço em sua órbita, portanto. O que vale .para o espaço os da visão, não existia nenhum parentesco , de que as relações
vale no mesmo sentido e com a mesm a legitimidade em relaçiío entre eles só se est abeleciam na base de uma ligação habitual.
a todos os outros fatores em que assenta a "forma" do conhe­ Entretanto. se essa conclusão é correta, não podemos continuar
cimento. A psicologia an tiga já distinguia rigorosamente entre fa lando de um espaço único, o mesmo para todos os sentidos,
as diversas classes de conteúdos sensíveis, par um lado, cores e servindo·lhes, por assim dizer, de substrato uniforme. Esse
e sons, gostos e cheiros. e, por OUtro lado, os conceitos formais, espaço homogêneo. produto do espírito , segundo Leibniz, do
atribuindo a estes últimos, entre os quais a duração, o número, intellec{lJs ipse, revela não ser mais do que uma abst ração. Os
o movimento e o repouso. um lugar à parte, na medida em que dados que a experiência nos nprcsenta, os únicos que ela co'oca
esses elementos, dizia ela, não dependem de um sentido parti· ao nosso alcance, não se encaminham no sentido da un idade e
cular mas da ala",/,olf!uw 1II'(Xro,. • Nos tempos mo­ da homogeneidade do espaço mas, pelo contrário, no de uma
dernos, a teoria racionalista do conhecimento retomou essa dis· pluralidade de "espaços" qualitativamente diferen tes- e tão nu­
tinção psicológica respeitante à origem das idéias a fim de esta· merosos quanto os domínios sensoriais . Espaço óptico, espaço
belecer uma diferença específica de validade entre essas duas tátil, espaço das nossas sensações motoras, todos possuem sua
classes. As idéias que se costuma atribuir ao senso comum, ao própria estrutura, específica e completa; as conexôcs e as rela­
sensus communis, sustema Leibniz. pertencem na realidade ao ções que eles estabelecem entre si não se baseiam, absoluta­
próprio espírito e provêm do seu próprio fundo: "São idéias mente, numa natureza comum, nu identidade de uma "forma"
do entendimento puro que não têm seu princfpio nos sentidos abstrata. mas tão-só na ligação empírica regula r que existe en tre
mas somente a causa ocasional do seu aparecimento, e que são eles e graças à qual todos esses espaços têm a possibilidade de
por isso suscetíveis de definições e de prOVDS exatas." ~o A aná­ representar-se reciprocamente. Mas, então, uma conseqüência
lise ex.ata ocasionada pelo problema de Molineux veio revelar adicional parece inevitável. A questão de saber a qual desses
que essa doutrina não tinha o menor fundamento. E quando espaços sensoriais pertence a "verdade" autêntica e definitiva

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perde todo o sentido. Eles equivalem-se todos uns aos outros, sobre o mundo fIsico, assim como sobre o mundo intelectual? A
nenhum deles pode exigir um grau mai s elevado de certeza, de existéncia não sofreria para nós uma transform ação radical se
objetividade e de universalidade para si do que para os outros . fôssemos dotados de um novo sentido ou se um dos nossos
Aquilo a que chamamos objetividade, verdade ou necessidade sentidos nos fosse retirado?
só ::=m, por conseguinte. uma significação relativa e não abso· O século XVIII compraz-se em completar e em · ilustrar as
luta . Cada sentido tem o seu próprio mundo, resta apenas com· espeçdaçõcs psicológicas assim esboçadas por meio de espe­
preender e analisar todos esses mundos de maneira puramente culações cosmológicas . Dos Entreliens sur la pluralíté des mon­
empírica, sem tentar reduzi-los a um denominador comum. A des, d~ Fontenelle. até à Allgemeiller Naturgeschichte und
Cilosofi a do Iluminismo não se cansará de recordar essa relati· Theorie des Himme/s [Hist6ria universal da natureza e teoria
vidade. O motivo que se anuncia aqui, não contente por impor· do céu]. de Kant, podemos apreender a continuidade de urna
se sem tréguas ao pensamento cientifico, tornar·se·á o tema mesma tendência e de um movimento iden uco de pensamento.
favorito de toda a literatura. Swift tratou esse tema n'As viagens Talvez toda. a riq!..leza de possibilidades que podemos produzir
de Gulliver, com supremo vigor satírico e uma incomparável em imaginação e construir in abnracto esteja efetivamente rea.
penetração intelectual; daí passou à literatura francesa , encar­ lizada no universo , talvez a cada corpo celeste correspondam os
nando-se em particular no Microm égas de Voltaire. Também habitantes dotados de uma constituição psicossomática parti·
Diderot. na Carla sobre os cegos e na Carta sobre os surdos e cular. "Diz~e que poderia muito bem faltar-nos um 6Cxto sen­
mudos. se compr8.l nas variações sobre esse tema, nas ilustra­ tido natural , com o qual nos seriam ensinadas muitas coisas que
ções multicores. A primeira dessas obras tende essencialmente hoje ignoramos. Esse sexto sent'do está aparentemente em algum
a mostrar, com o exemplo do célebre geômetra cego Saunderson , outro mundo. onde talvez falte algum dos cinco sentidos que
que todo o desvio na adaptação org6nica do homem deve ter possulmos. As nossas ciências têm certOS limites que o esprrito
inevitavelmente por efeito uma mudança completa da sua natu­ humano jamajs pôde ultrapassar. Há um ponto em que elas nos
reza espiritual. Essa mudança, porém, não diz somente respeito faltam bruscamente; o resto é para outros mundos, onde algo
ao mundo sensível , à forma da realidade percebida; encontra·se do que nós sabemos ~ desconhecido." 3 1 Como um fi o vennelho,
a mesma diferença, se levarmos a análise mais longe. em todos esse pensamellto contínua ao longo de toda a literatura psicoló­
os domínios da atividade : tanto intelectual quanto moral, tanto gica e epistemológica da época i1uminista. u E cada vez mais a
estética quanto religiosa. A relatividade chega à esfera superior. lógica, a moral e a teologia parecem estar prestes a resolver·se
a das chamadas idéias puramente intelectuais: não alcança a numa antropologia pura e simples. Johann Chrislian Lossius
idéia e a palavra "Deus", que nno deve significar coisas dife· transpôs a última elapa em seu li vro Physische Ursachen des
ren tes para o cego e para o que vê. Haverá uma lógica , uma Wahren (As causas físicas do verdadeiro], ao explicar que no
metaffsica, uma moral que possam libertar-se e desligar-se da lugar da teoria inútil dos juízes e raciocfnios 16giCQs era neces·
estrutura dos nossos órgãos sensoriais? Não somos nÓs mesmos sário colocar a teoria mais útil da origem das nossas idéias e,
e a particularidade de nossa organização, O que não nos cansa· com esse propósito, classificar as nossas idéias não mais em fun­
mos de exprimir por intermédio de todos os nossos enunciados ção de seu conteúdo e dos objetos a que se referem mas dos

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órgãos que parecem feilos para tais ou tais dessas idéias. Desse mento do seu substrato corporal. As coisas só mudam quando
modo. ape«:eber-nos-íamO$ da verdadeira natureza das idéias passam pelo tato, pois toda a experiência tátil manifesta neces­
humanas, não completamente, por certo, mas em todo o caso sariamente uma dupla relação. Em cada um dos seus fenOmcnos
com uma clareza incomparavelmente maior do que a de todas particulares, ela proporciona.nos, ao mesmo tempo, o conhe­
as explicações que nO! foram dadas desde Aristóteles até Leib­ cimento de uma certa parle do nosso corpo e apresenllHlos
niz. ~ evidente que teremos de renunci ar em absoluto à uni· assim, de uma certa maneira, uma primeira abe rtura pars o
versalidade, à objetividade, mas não se causará mais prejufzo mundo da realidade objetiva. Entretanto, Condillac não pára
à verdade do que à beleza quando se perceber e admitir que nessa primeira solução; procura até expressamente completá-Ia
ambas são "de naturezâ mais subjetiva ·do que objetiva", que e aprofundá·la nu última edição do Tratado das sensações. E a
elas não exprimem uma propriedade dos obj etos mas uma rela­ questão adquire e ntão. para ele, um rumo d iferente e mais ra­
ção das coisas conosco, uma relação das coisas com quem as dical Por um lado. devemos confessar que todos os nossos
pensa .as c;;onhecimen:os provêm dos sentidos; por outro, é visfvel que te­
Dessa perspectiva att ao pleno reconhecimento do " idealis­ das <lS sensações apenas exprimem diferentes maneiras de ser
mo subjetivo" só restava dar um passo; entretanto , esse último do !lOSSO eu . Como poderemos alguma vez "sentir " objetos fora
passo, cu mpre dizê-lo, raramente foi transposto no pensamento de nÓs? De nada adian taria alçarmo-nos até o céu ou mergulhar
do século XVIII e a inev; tével conclusão só foi aduzida a con­ no m.ais profundo dos ab ismos, pois nunca sairemos dos limites
tragosto. 8erkeley não encontra ria inicialmente discípulos ime­ do nosso eu; é a n6s mesmos que reencontramos sempre com
diatos nem sucessores: mesmo os que segulam o seu método o nosso pr6prio pensamento. Portanto, o problema apresenta-se
anal ít ico procuravam evitar as suas conseqüências metafísicas. a Condillac com toda a clareza, mas os meios de resolv!-Io logi·
Esse ponto apresenta·se com particular niti dez no Ensaio sobre camente Calham sempre no método sensuali sta.al Diderot reco­
a origem dos conhecimerltos humanos. de Condillac. bem como nhe<::eu perfeitamente esse ponto fraco : considera ele que Con­
no seu Tratado das sensações. Em primeiro lugar, Condillac dillac acitou os princlpios de Berkeley, ao mesmo tempo em que
acredita que pode encontrar a pova da "realidade do mundo procurava escapar às suas conseqüências. Entrelanto, o idealis­
e:ltlerior". muito simplesmente. na experiência tátil. Tudo O que mo psicológico não pode ser verdadeiramenle superado dessa
os outros sentidos nos mostram , o que nos t oferecido pelo maneira. Diderot vê ar, como Kant ve ria mais tarde, um "es­
cheiro e paladar. vista e ouvido, não seria suficiente para nos cândalo da razão humana": "Um sistema que, para vergonha
ofrrecer tal prova. Em todas as suas determinações , com efeito, do espírito humano, é O mais dirrcil de combater, embora seja
jamais apreendemos outra coisa senão modificaçõcs do nosso eu, o mais absurdo de todos." 36
sem que se encontre a menor indicação fi rme de uma causa ex· Percebe-se a mesma incerteza íntima nas cartos filosófi cas
terior, donde essas modificaçõcs seriam provenientes . Ao ver, dt! Maupe rluis e em suas renexõcs sobre a origem da lingua·
cheirar, provat", ouvir. ela ignora inteiramente a existência de gemoT ambém nele o problema foi exposto com clareza e ousa·
órgãos fís icos para todas essas atividades sensoriais. Ela absor· dia. Não só Maupertuis coloca a extensão, no que se refere 11
se-se no ato puro de perceber sem ter primeiramente conheci­ sua "realidade objetiva", em pé de igualdade absolu ta com as

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outras qualidades sensíveis, não só declara que não se pode con­ tação sensualista por lõIDa ourra puramente nominalisla. E Milu­
ceber a menor diferença de princípio entre o espaço puro e os perh.lis tem plena consciênci.e de que deslocou mas não resol­
fenômenos de cor e de som se considerarmos o seu conteúdo veu a questão. pe sorte Cjuc a sua análise redunda, em defini­
e a sua origem psicológica, mas vai ainda mais longe ao invesügar tivo, numa conclusão céptjca; eló. exprime a existência da ár­
o sentido do julgamento da realidade em geral , o sentido do VOte como objeto independente do eu. Por conseguinte, será
julgamento 'léu ou "há". O que significa esse julgamento? Em difícil encontrar nela algo mais do que 110S julgamentos pre­
que consiste o seu conteúdo e o seu fundamento próprios ? O cedentes, os quais nada mais era~ do que signos afetados a
que significa isso quando dizemos não só que vemos ou toca­ certas experiências perceptivas. Se eu não tivesse tido mais do
mos uma árvore, mas também quando lhe adicionamos a afir­ ql.:e uma única vez a experiência que se exprime na sentença,
mação de que "há" um árvore? O que esse "há" acrescenta "vejo uma árvore, vejo um cavalo", jamais saberia, por muito
aos dados fenomenais, aos simples dados dos sentidos? Pode-se vivas que pudessem ter sido tais experiências, se poderia for­
descobrir uma percepção da existência que seja tão simples e mar o julgamento "há". Além disso, se a minha memória fosse
tão primitiva quanto a percepção da cor ou do som? E se, como tão ampla que eu não recuasse diante da tarefa de amontoar
é manifesto, não for esse o casO, que outra significaçãa o jul­ a bel-prazer simü sobre sinal para cada uma das minhas per­
gamento de existência implica? Ao refletir sobre essa questão, cepções, de munir cada uma delas com um sinal especial, talvez
é-se levado a pensar que entendemos per "existência" não tanto nunca fesse levado a enunciar o julgamento "há", mesmo su­
um novo ser mas um novo SigMO. Esse. signo pennite-nos atri­ pondo que tivesse conhecido as mesmas experiências percepti­
buir um único nome a uma série complicada de impressões sen­ vas que me dão atualmente a oportunidade de formular esse
síveis e fixá ·la assim para a nOssa consciência. 'S. um coni­ julgamento. Não se deve, pois, considerar esse julgamento como
plexo de impressões presentes, de lembranças e de expectativas a síntese de todas as experiências singulares: "eu veio", "eu vi",
o que por esse nome se exprime. A experiência a que ele se "eu verei"? 1M! O progresso aqui realizado consiste no desloca.
refere compõe-se da repetição de experiências análogas e de menta do centro de gravidade do problema da realidade, que
circunstâncias determinadas solidamente ligadas entre si e que passa do domínio da simples sensação para o do julgamento.
desse modo parecem conferir-lhe uma realidade mais firme . A Quanto ao próprio j!.llgamento, não é, de maneira nenhuma,
percepção "vi uma árvore" liga·se a esta outra: "Fui a um ce~~o concebido e reconhecido em sua verdadeira dignidade racional:
lugar, voltei a esse lugar e encontrei de novo a árvore" etc. quis-se fazer dele apenas um agregado, uma vizinhança e uma
De tudo isso nasce uma nova consciência: "De cada vez que sucessão de percepções. Essa questão somente sofrerá uma trans­
vier a este lugar, verei uma árvore", o que, em última análise , formação radical e receberá ~ma solução crítica quando esse
não quer dizer outra coisa senão "há uma árvore". Tudo in­ obstáculo tiver sido abolido, ou seja, quando Kant tiver definido
dica que uma análise estritamente sensualista do problema do o juizo (Urteil) como "unidade de ato", conferindo-lhe, graças
ser é desse modo bloqueada; não se trata, por certo, de reduzir à espontaneidade que nele reside originariamente, o papel de
e de encerrar a idéia de ser numa simples sensação. Mas o g<l­ exprimir a "unidade objetiva da consciência". A "questão da
nho é, a bem dizer, muito escasso; trocamos a nossa interpre­ relação" da representação com um objeto será apresentada,

]66 ] 67
por conseguinte, em novas bases: transierida do simples nível não poderi a haver "faculdade" no sentido ce uma pura pos:.i­
ce uma questão de psicologia para o próprio centro de uma bilidade. de uma "potência " vazia - e ainda menos está em
"lógica transcendental". questão comparlimenlar as diversas aptidões da al ma , hiposw­
siá-Ias em faculdades autônomas. O próprio WoIrf. se bem que
os seus esforços no sentido de distir..guir cuidadosamen te os con­
l ceitos techam podido prestar·se, às vezes, a lal objeção, conser­
va-se sempre rigorosamente fiel ao postu lado da unidade do
Também essa última mudança, ainda quo! expresse uma l ima. A divisão da alma em faculdades distintns, sua definição
"revolução no modo de pensar", não se realiza na história sem e denominação constituem essencialmente nele um modo de
mediações e 'sem preparações. Pois, na Alemanha pelo menos, ap resen tação; em contrapartida, mostra sempre no estudo dos
as doutrinas psicológicas de Locke e Berkeley, de Hume e Con­ próprios fatos que esses poderes não são faculdades separad as,
dillec nunca chegaram a dominar sem contestação. Embora a independentes umas das outras, mas somente as direções e as
influência de Locke tenha podido parecer durante um certo expressões divergentes de uma única potênci a ativa que é a
tempo predominante, certos limites não deixa ram de ser-lhe força de representação (Vorstellul1gskrafi).S7
impostos desde o começo pela elaboração sistemática de que a
Quanto à própria representação, não deve ser aqui en ten­
psicologia foi objeto por parte de Chrislia n Wolff . A psicologia
dica, de ma neira nenhuma, como puro renexo de uma realidade
racional e empírica de Wolff adotou um caminho próprio, em­
bora mantendo-se fie l aos princípios leibnizianos. Ela baseia exterior mas como energia puramente ativa. A natureza da subs­
a sua doutrina da alma na da espontaneidade, na doutrina da tânCia, deciara Leibniz, reside na sua produtividade, ou seja.
autareia e da autonomia da mOnada, a qual, sem receber nada no poder de engendrar de seu seio séries de representações sem­
do ex terior. produz ela própria o seu conteúdo de acordo com pre novas [ Portanto, o eu não é o simples teatro das idéias mas
a sua própria Lei. Há incompat ibil idade entre esse modo de ela­ sua fonte e causa primeira}: ton.s et "mdus idearum pruescriptia
boração e a idéia de il1lfuxU$ physicus, a própria idéia de "im­ lege nasdtllrarum.'38 ê nisso que consisle precisamente a sua
pressão" que persiste nas psicologias inglesa e francesa. Segundo verdadeira perfeição : o eu é lanto mais perfeito quanto menos
Leibniz e WolH, uma psicologia que pretende encontrar na im­ forem ,)s impedimcnl05 e as perturbações com que essa livre
pressão o fundamento essencial do psíquico já frust rou a p0­ produção manifesta-se nele. Escreve Leibniz em Da sabedoria:
sição inicial da própria questão. Menosprezou o fenômeno pri­ "Enlendo por perfeição toda a élevação do ser, pois do mesmo
mitivo da alma , que consiste na ação e não num puro sofrer. modo que a doença é, de algum modo, uma diminuição e uma
A psicologia do "5ensação" opõe-se então uma psicologia pura­ queda da saúde, também a perfeição é algo que se eleva acima
mente funciol1 al. Não se faz jus à verdadeira orientação desta da saúde I .. .] Ora, tal como a doença provém de uma função
última quando é cons iderada e criticada, segundo uma atitude lesada , o q t;e é sabico por quem quer que possua alguns rudi­
muito generalizada, como simples psicologia das faculdades mentos de medici:ta, a perfeição revela-se, pelo con trário , na
(Vermof,ens-Psychologie) . Com efeito, na doutrina leibni zianll., forç a de agir , visto que, consistindo todo o ser numa certa força ,

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quanto maior fOr essa força mais o ser é eminente e livre. Além tética, de filos.cfia da religião. Foi esse ponto de partida origi nal
disso, manifesta-se em cada força, e tanto mais quanto maior ela que preservou a ii1050fia alemã do século XVII I do perigo do
for O múltiplo a par/ir do um e 110 um, na medida em que o um ecletismo. Por mais gravemente que a "filosofia popular" tenha
rege fora dele e I!ele repre:senla·se muitas coisas. Ora. a unidade sido exposta 8 esse perigo, por mais freqüentemente que lhe
na pluralidade nada mais é do que harmonia , e é do fa to de tenha sucumbido, a ciência e a filosofia sistemática nunca dei­
que tal coisa se harmoniza com lal coisa que decorre a ordem, xaram, porim, de reencontrar o seu caminho graÇáS a essas
da qual decorre a beleza, que despena o amor. Por aí se vê, questões de principio que Leibni'l fora o primeiro a expor com
portanto, como beatitude, prazer, amor, perfeição, essência, força, toda a clareza. Assjm é que WolH foi e continuou sen<!o desde
liberdade, harmonia, ordem e beleza ~stão interligados, embora então o pTaeceptor Germaniae, e o elogio de Kant - de que
sejam pouco numerosos aqueles que verdadeiramente se aper­ ele {oi na Alemanha o verdadeiro promotor do espírito de pro.
cebem disso. Portanto, basta que a alma sinta em si uma grande fundidade - assume aqui todo O seu valor. "E também por essa
harmonia . ordem, liberdade, força ou perfeição. e que experi· razão que Kant não só se vincula, como se sabe, ao pensamento
mente prazer nisso, para que nda seja suscitada uma alegria [ ... ] alemão mas, além disso, não poderia verdadeir~mente encontrar
Essa alegria é est~vel e não pode decepcionar nem causar uma alhures os fundamentos da sua problemática e do seu sistema:
tristeza ulterior se se ativer ao conhecimento e for acompanhada porque essa filosofia tinha nitidamente percf!bido e exatamente
de uma luz donde brota, na vontade, uma inclinação para o determinado a possibilidade teórica mais fundamental de cons­
bem que se chema virtude [. .. ] Dai resulta que nada serve mais fituir uma imagem do mundo perfeitamente unificada. Para des­
à bentitude do que elucidar o entendimento e exercer a vontade tacar suas direções essenciais podemos apoiar·nos na oposição
para agir, em todas as ocasiões, de acordo com o entendimento, que já encontramos antes. A fil osofia francesa e a filosofia in­
e que cumpre buscar essa luz, muito especialmente. no conhe­ °
glesa do skulo XVIII punham todo seu cuidado e o seu esforço
cimento das coisas que podem elevar constantemente o nosso na constituição da totalidade do conhecimento filosófico de
entendimento para uma luz mais alta , de modo que daí jorre: modo a nio haver mais a necessidade _ para retOmar uma fór­
um progresso incessante em sabedoria e em virtude e, por con­ mula característica de Locke - de tomar emprestado ou men­
seguinte. em perfeição e alegria, cujo proveito subsiste ainda na digar nenhum dos seus fundamenros. 4o Era necessário que todo
alma após esta vida." 31 esse conjunto assentasse exclusivamente sobre si mesmo e só se
Nesse punhado de fórmulas características, Leibniz traça jUBtificasse per se. Em runção dessa exigência de autonomia é
de maneira sucinta o caminho a ser seguido por toda a filosofia °
que foi rejeitado sistema das idéias inatas: r«arrer ao "inato"
do Iluminismo na Alemanha, define o próprio conceito de filo­ não v.elil!. mais, .!lO q:te ?arecia, do que recorrer a uma instância
sofia do lIuminismo e esboça o seu programa teórico. Essas estranha, do que fundamentar o conhecimento na existência e
linhas realizam em si mesmas uma verdadeira " unidade na mul­ natureza de Deus. Esse recurso apresentava·se em Descartes
tiplicidade", porquanto condensam tudo o que o Iluminismo com a redução do senlido e do valor do inato à potência cria­
alemão continha em germe e devia realiz.ar mais tarde em ma· dora de Deus - sendo as idéias e verdades eternas, para ele,
téria de psicologia. de teoria do conhecimento, àe ética, de es­ os produtos dessa pOtência. t i No lugar dessa causalidade, en.

110 111
contramos em Malebrnnche uma união verdadeiramente subs­ rito faz-se espelho da realidade é sobretudo como um espelho
tancial : a visão das idéias e das verdades ete rnas, a qual deve permanente e vivo da realidad e; não como soma de simples ima.
estabelecer e provar a participação imediata do espírito humano gens mas COOlO totaHdade de forças imaginantes (bildelldetr
na existência divina. Quanto à fil osofia empírica , tendo rejei­ Kriiften) . Revelar essas forças, torná·las conhecidas em sua es.
tado essa forma de transcendê!ncia s6 lhe restava a experiênd ll , trutura especírica e fa zer entender o mecanismo de sua intera­
a "natureza das coi sas ",· ~ para rundamentar o conhedmento. ção, tal é doravante a verdadeira tarefa fundame ntal da psico­
Mas essa "natureza das coisas", por sua vez, ameaça de um e
logia e da teoria do conhecimento. a tarera que o século XVIII
outro lado a au tonomi a do espíri to, que doravante deve desem­ alemão vai empreender e tentar levar a bom termo, graças 8
penhar tão-somen te o papel de um simples espelho e de um pacientes IrabaUlos especial izados. Se é verdade que esses tra­
espelho que apenas pode renetir as imagens, sem as produzir bnJhos tendem para a prolixidade e perdem-se, com certa fre­
ou elaborar j!lfllais por sua própria conta . " Nesta parte, o en· qüência, nessa mesma prolixidade, nem por isso deixam de ter
tendimento é meramente passivo ; e se terá ou não esses come­ sua profundidade especírica : seja qual for a diversidade dos
ços e, por assim dizer, esses materia is de conhecimento, eis algo problemas, trata-se sempre de fazer valer um principio deter­
que está fora do alcance do seu próprio poder ( ... ) Quando ofe­ minado, de elucid~ - Io e de demonstrá-lo sob diversos ãngulos .
recidas à mente, o entendimento não pode mais recusar-se a A espontaneidade do eu, descoberta e defendida como uma
ter as idéias simples nem alterá-Ias quando estão impressas, nem realidade psicológica, prepara agora o terreno para uma nova
apagá-las e fazer ele pr6prio ou t.ras novas, da mesma ronna que concepção do conhecimento, tal como abre novas tarefas e no­
um espelho tampouco pode recusar, alterar ou obliterar as ima­ vos caminhos para a estética .
gens ou idéias que os objetos colocados diante dele a1 produ· E. assim, em particular, que a divisão da àlma em "facul­
zem," ta dades" distintas já não serve agora unicamente para a análise
Leibniz opõe sua própria doutrina a essas duas teorias: empírica dos fenÔmenos; a partir dela inicia-se e esboça·se o
tanto à da " transcendência" metafísica quanto à da forma em· desenvolvimento de uma futura sistemática universal , de uma
pírica da "imanência". Ele salva a e:<igência de imanência : tudo " fenomenologia do espírito" propriamen te dita . Aquel e que
o que pertence à mônada deve provir do seu próprio rundo. percebeu e sustentou essa nova aplicação é preci samente o mais
Mas a importância e o rigor que ele conCere a esse principio original e o mais penetrnnte dos mestres da psicologia analítica.
proíbem· lhe não só de se remeter a Deus mas de recorrer até à Os Ensaios Iilosdlicos sobre a natureza humana, de Tetens,
natureza, no sen tido habitual do lermo. Dei xou de ser poss(vel distinguem« das obras de Berkeley ou de Hume com o mesmo
continuar mantendo uma oposição entre a natureza do espírito título, no plano metodol6gico, pelo fato de que, não contentes
e a natureza das coisas, com uma dependência unilateral da· em classificar e descrever os fen ômenos da vida psíquica indi­
quele em face destas. " Aquilo a que chamamos observação da vidual, eles consideram essa tarefa descritiva um mero preâm­
natureza das coisas nada mais é, com freqüência, do que o co­ bulo para uma teoria geral do "espírito ob;ctivo". Não basta
nhecimento do nosso próprio espíri to e de suas idéias inatas. considerar o entendimento quando ele se ocupa em reunir Cltpe ­
que nâo há necessidade de procurar no exterior." H Se o espi­ riências c em constituir, partindo das sensações, as primeiras

172 173
idéias sensíveis; cumpre também observá-lo quando ele alça monstração, na filosofia alemã do Iluminismo , a arte onde Sé
vôo para as a1turas, quando elabora teorias e or~ aniza as ver­ concretizam justamente a manifestação e o desenvolvimento desse
dades em forma de ciências, poi s é aí que se manifesta a energia microcosmo. e nesse ponto que in ter vém, em particular, a da li
superior do pode! de pensar. Portanto, é aí que se deve formu­ trina das fac uldades da alma, de Mendelssohn, a qual procede
lar a questão das regras fu ndamentais segundo as quais o en­ também por reconstrução, produzindo imagens mentais diversn­
tendimento edifica obras tão gigantescas quanto a geometria , mente especificadas- a partir das forças que estão na origem
a óptica e a astronomi a. Tetens considera a contribuição de dessas imagens. Para distinguir de modo claro e seguro o objeto
Bacon e de Locke, de Condillac, de Bonnet e de Hume perfei­ da arte do do conhecimento teórico, para separar o belo do ver­
tamente inadequadas para a solução dessa questão; eles não en­ dadeiro, M endel~sohn vê-se obrigado a dedicar· lhe uma classe
xergaram, sustenta Tetens, O problema do conhecimento racional especial de fenômenos psíquicos. O objeto belo não é nem o
em sua importância específica: negligenciaram-no quase intei­ objeto do simples saber nem o objeto do simples desejo. Esca­
ramente em proveito do problema do conhecimento sensível!~ pa-nos das mãos se quisermos tratá·lo como obj eto de saber,
A mais importante inovação por ele introduzida na doutrina torná-lo acessível pelo método do saber, pelo processo de aná­
das faculdades da altnn , a idéia fundamental com que a enri­ lise e definição, pelas distinções e explicações conceptuais. Mas
queceu , desenvolve-se igualmente nesse mesmo sentido. Quando a sua natureza não nos escapa menos quando O consideramos
elCige uma definição precisa do sentimento, que o distinga com apenas de um ponto de vista puramente " prático", quando o
nitidez da sensação, não se traia de uma idéia que tenha ido abordamos pelo querer e agir: assim que o objeto é visa do pelo
buscar à observação interior; ele é levado a essa distinção pela desejo ou esforço, deilCa imediatamente de ser um objeto "·belo" ,
consideração de que nos encontramos, num caso e no outro , objeto de contemplação e de fruição artísticas. Part indo dessas
diante de dois modos inteiramente diferentes da relação com o considerações, Mendelssohn é levado a postular uma faculdade
objeto. Se atr~bu(mos a nós mesmos a sensação, a sua função da alma específica e autônoma a q ue deu O nome de " faculdade
essencial não consiste, porém, em elCprimir o nosso próprio es­ de aprovação" (Billigunsgsvermogens). À avaliação e aprovação
tado mas uma qualidade do objeto. No que se refere ao senti­ do belo não se mistura nenhuma excitação do desejo: " Parece.
mento, pelo contrário, ele comporta uma relatividade muito antes, ser uma warca distintiva da belo:za que seja contemplada
diversa, muito mais radical e puramente subjetiva ; tudo o que com um prazer sereno, que nos agrade mesmo q uando não nos
sabemos por intermédio dele é que se produziu uma mudança pertence e ainda estamos muito distantes do desejo de a possuir.
em nós mesmos, e aceitamos essa mudança tal como ela se dá Só áepois, quando consideramos o belo em sua relação conosco
imediatamente, sem relacioná·la a nenhum objeto elCterior. e percebemos sua posse como um bem, é que desperta em nós
Em contrapartida , essa relação nada tem de "subjetiva", o desejo de tê-Ia. de arrebatá-la , de possu í-Ia: um desejo que é
no sentido de puramente arbitrária; contém em si, pelo con­ muito diferente da fruição da beleza." 4~ Assim, a doutrina das
trário, a sua própria regra e a sua própria legalidade, e o senti­ faculdades - é nisso que consiste o seu verdadeiro valor teórico
mento constitui assim um verdadeiro microcosmo, um mundo - . não entende fazer pura e simplesmente da psicologia Utn"
per se: é o privilégio de o fenômeno da arte proceder à sua de­ teoria dos elementos da consciência, sensações e " impressões ",

174 175
mas uma teoria que abrange todas as atitudes c condutas psf· nhuma significação autÔnoma que possl! convir 11 esse sinal: ele
quicas . São as energias anímicas que se trata de reconhecer e representa somente para a memória, ulterior e indiretamcntt:, o
de descrever em sua realidade específica e não meramente mo que foi originariamente dado na percepção. E quando no lugar
conteúdos psíquicos como dados estáticos. "E fácil perceber. desse das idéias das coisas levamos em conta as idéias de relaçãcs,
ponto de vista, os estreitos vinculas que unem agora a psicologia nada ioi mudado nessa si.uaçeo, tx>rquanto o espírito nâo pode
à esMtica, ou seja, à disciplina onde. depois das Réflexio/ls cri­ es tabele<:e~ nenhuma espécie de conexão que não tenha sido ex·
tiques SUT la poésie. la peinlUre et la musique (1719), de Dubos, perim~nta da primeiro na realidade nem pensar verdadeiramente
prevalece esse mesmo ponto de vista energético. Nas reflelt.ães em nen h um~ unidade nem em nenhuma diferença que não tenha
e observações de Dubos é permitido ver·se uma confirmação sido antes comprovada nos fatos. "E justamente essa concepção
direta da doutrina leibniziana. segundo a qual toda a alegria que n crítica d!!. psicologia funcional ataca. t ainda Telens
estética está fundamentada na "elevação do ser", na vivacidade c:; uem contesta com extraordinário vigor essa teoria do pensa·
e recrudescimen to da intensidade das forças ps íquica~. O prazc,r mento corno simples "substituição de fantasmas" . f. possfvel.
ge rado por esse puro sentimento de viver pode superar ampla· admite ele, que o pensamento seja suscitado pela impressão
mente a aversão pussível de resultar, digamos, de uma conside­ sensfv el, pelo dado empírico; contu do, jamais se contentará com
ração do ob jeto como tal. Escreveu Lessing a Mendelssohn: esse dado r:.err:. permanecerá nesse nível. Não lhe basta constituir
"f. inútil dizer-vOS que o prazer que está ligado a uma deter· idéias como simples agregados ; precisa elevar-se ao nível dos
minação mais fort e da nossa energia pode suplantar de longe o ideais que é impossível compreender sem a participação da
desprazer que nos causam objetos para os quais n ui essa ener· " rorça de criação plástica " (bildenden DichtkraftJ. "Os psicó­
gia, ao ponto de deixarmos de ter consciência disso." H E, no logos elt.plicam comumente a criação poética pela decomposiçiio
seu tratado V Olt der Krafl in den Werken des schOnen Künste e recomposição das representações que foram captadas na sen­
(Do vigor nas obras de arte], Sulzer expõe por sua vez a mesma sação e convocadas pela memória . Sendo assim , 8 criação poé.
doutrina, esforçando-se, nessa perspectiva, por distinguir a tica seria apenas uma substituição de imagens e nenhuma
energia do pensamento teórico das da contemplação estéticlI e representação elementar nova poderia nascer dar para a cons­
do movimento voluntário. ciência." Essa elt.pHcação continua sendo, portanto, insuficien te
E eis que a teoria estética intervém uma vez mais, por um para toda e qualquer verdadeira obra de arte. Não se faz jus.
outro lado, na teoria do conhecimento. Ao impor de modo de· tiça a um KJopstock ou a um Milton "ao pretender-se que as
cisivo os direitos da "imaginação" pura, ao esforçar-se por mos­ imagens criad as pela vitalidade de SUa linguagem poética não
trar que a " faculdade poética" é uma faculdade não simples­ são ou tra coisa senão um amontoado de idéias empfricas ele·
mente combinat6ria mas originariamente criativa, ela provocou mentares ligadas pela vizinhança ou sucessão imediata ". E o
uma profunda mudança no seio da problemática lógica, na mesmo pode 5Cr dito a respeito dos ideais científicos, como os
teoria dos sentidos e da origem das idéias. Para Berkeley, para que encontramos nas matemáticas e em toda a ciênci a exata .
Hume, para Condillac, a idéia é apenas um acúmulo de im­ Esses ideais tampouco se expli cam por adições Ou subtraçõcs
pressões ou sua sorrn;. ou o sinal que a representa. Não há ne· de sen sações individuais, por combinação ou pOr abSlração; são

176 J77
"verdadeiras criaturas da faculdade poética". "Vimos se.r real­ venais da física nunca são, evidentemenle, demonstráveis u
mente esse o caso das id~ias gerais da geometria. Mas , na rea­ prior;, a partir de simples conceitos. Mas só fundamentando-sc
lidade, todas as outras são da mesma natureza." O processo de numa fal sa alternativa é que se ir.laginará poder concluir-se se i'
generalização empírica não basta, portanto, para elevar à cate­ necessário que eles nasçam exclusivamente da indução, ou sejll,
goria de idéia pura o que apenas era, no inicio, uma imagem de uma simples sucessão de observações singulares. Nem mesmo
sensível. As representações gerais sensíveis ainda não são idéias uma lei como a da inércia poderia ser inteiramente deduzida
gerais nem conceitos da faculdade poética e do entendimento. e compreendida dessa maneira . "A idéia de um corpo posto em
Nada mais são do que a matéria-prima, e a forma dessas idéias movimento, o qual não age sobre nenhum oUlro nem sofre a
não poderia ser compreendida nem deduzida a partir daí. No ação de nenhum outro, leva o entendimento a representar-se
entanto, é nessa forma que assenta o verdadeiro rigor, a exatidão que o seu movimento prossegue sem mudança, e mesmo que
de um conceito. "Seja, por exemplo, a representação de uma tenha sido preciso ir buscar às ser.sações essa última idéia, a sua
linha curva, fechada sobre si mesma , tomada das sensações vi· associação com a primeira não é menos a obra da faculdade de
suais; ela recebeu a SUB forma característica de cada uma das ptm8r que, em virtude da sua pr6pria natureza, realiza em
aparências sensíveis que a produziram por sua associ ação. Mas nós 'a relação entre essas duas idéias; e a associação realizada em
isso não é tudo. Temos em nosso poder a representação da nós pela ação do entendimento é rouito mais a causa da con­
extensão e podemos modificar à vontade essa extensão ideal. vicção que temos de que o nosso julgamento ~ verdadeiro do
Portanto, a imaginação dispõe a imagem da linha circu lar de que a associação de idéias prcduzidas pelas sensações."~' De
modo que cada ponto se encont re a igual distância do centro, um modo geral, pode-se dizer que onde quer que urna relação
que nem um só esteja mais distanciado nem mais próximo desse determinada entre id~ias seja pensada, o recurso à simples sen­
centro. O último retoque é proporcionado nessa imagem pela sação, à impressão passiva, é insuficiente para conceber a idéia
faculdade poética, e o mesmo pode ser dito de todos os nossos de uma relação como tal em sua natureza especmca e para
ideais." ·n fundamentá-la em !>ua própria espécie. t inegável que tal natu­
E essa extrapolação do dado da impressão sensível, essa reza específica existe: é absolutamente impossível reduzir todas
faculdade de "imaginação", não limita de maneira nenhuma o as relações e conexões entre os conteúdos de consciência à iden­
seu poder ao domínio da matem.ática pura. Maniresta-se com tidade e diversidade, à unanimidade e contradição. A sucessão
clareza não menor na elaboração dos conceitos da experiência: das coisas, sua contigüidade, o modo particular de sua coexis·
os conceitos em que se baseia a física teórica não se explicam ttncia, a dependtncia de uma coisa em relação a uma outra,
apenas, com deito, por "combinações de aparências sensíveis". todas essas formas de relacionamento implicam, evidentemente,
Partem, é certo, de tais aparências mas não se detêm aí; ligam­ algo mais· do que simples uniformidade ou diversidade. Assim
se-Ihes mas transrormam-se sob a ação espontânea do entendi· é que se manifestam por toda parte formas de relacionamento
mento. Essa atividade espontânea, não o simples hábito nascido específicas, rigorosamente distintas umas das outras, em que se
da regularidade das sensações, constitui o verdadeiro germe e a pode reconhecer em cada uma delas uma certa direção do pen­
substância das primeiras leis do movimento. Os princípios uni· samento, um caminho que, por assim dizer , ele adola espon­

118 119
taneame:n.te, ~m ser forçado a isso desde o exterior, pela p:es­ estabelecer um sistema das formas do pensamento e por subor­
são mecânica das impressões e 00 hábito, Aquilo e que dinar a cada uma dessas formos uma língua de sirwis compará­
chamamos julgar e associar, deduzir e concluir é, porla!"lto, 2.lgo vel ao algorllmo do cálculo infjnjte~imaJ. Nenhum pensamento
distinto de colocar as idéias na seqüência umas das outras, a!go rigoroso será possível enquanto não conseguir fazer com que a
mais, inclusive, do que perceber entre elas semelhança e har­ toda associação de conceitos corresponda nos sinais uma deter­
monia. "Mesmo se o racioc(nio se explica como o alo de minada operação, com regras universais para todas as operações.
deduzir a semelhança ou a diferença entre duas idéias de sua lamberl quis estender o domínio desse modo de pensamento
semelhança ou de sua diferença respectivas a respeito de uma muito além das fronteiras da geometria pura. pois é um pre­
mesma terceira, essa dedução da semelhança ou da diferença conceito, segundo ele, ter acreditado que as idéias de ex.tensão
a partir de Qulras relações da mesma espécie não deixa de ser e de grandeza emn as únicas suscetíveis de explicações rigG­
uma alividade própria do entendimento , produção ativa da rosas e de desenvolvimentos dedutivos. A certeu e o rigor des­
idéia de uma relação a partir de uma alma que representa algo ses desenvolvimentos não valem apenas para o dom(nio da quan­
mais ( ... ] do que li mera percepção de duas relações, uma após tidade mas pedem ser igualmente obtidos onde só relações
a outra." U qualitativa~ estão em causa. A partir dessa problemática geral.
No ponto em que nos encontramos, manifesta-se nitida­ Lambert acredita poder marcar também com toda 11 nitidez os
mente a unidade interna, a consistência sistemática que o pen­ Iimtte6 da filosofia de Locke e de sua análise das idéias funda ­
samento alemão da época iluminista conservou, apesar de sua mentais do ccnhecimento. Não se dispõe a contestar a "analo­
aparente fragmentação em mil problemas especiais. Com efeito, mia das idéias" realizada por Locke; admite que as idéias pelas
de dois lados diferentes, tanto do lado da psicologia quanto do quais queremos exprimir os elementos da realidade nio podem
da lógica, não eslamos sendo agora remetidos de volta para um ser produzidas só pelo pensamento mas devem ser descobertas
mesmo problema central? As duas disCiplinas convergem para a na experiência. O verdadeiro conhecimento da realidade não
mesma questão, a da natureza e da origem da "idéia de rela­ pode fundar-se sobre um princípio puramente formal, simples­
ção". Enquanto Telens expõe a questão como psicólogo ana· mente "pensáve'" (gedenkbarenJ, como o "princfpio de razão";
lista , Lambert faz dela a pedra angular da sua lógica e da sua essa "pellssbilidade" (GedenkbarkeitJ, ou seja, o perfeito acordo
metodologia geral. Vincula-se igualmente a Leibniz e sua tarefa das partes num todo lógico, pode pertencer igualmente ao sim­
histórica essencial Foi a de redescobrir, de algum modo, certas ples possível. No conhecimento da realidade, pelo contrário,
idéias leibnizianlls básicas, em sua originalidade e profundidade lida-se com determipaÇÕts materiais, "com sólidos e com for­
próprias, Longe de contentar-se com o quadro tradicional dessa ças", e. para afirmar a existência e a natureza de cada força
filosofia apresentado por Wolff e sua escola, ele retoma à pro­ específica, não basta construí·la com a ajuda de conceitos, sendo
blemática inicial de servir a Ltibniz de ponto de partida para neccs.sário npoiar-se no testemunho da experiência . Para ela,
constituir o seu sistema. Antes de tudo, é o plano da "caracte­ cumpre renunciar, portanto, a toda verdl!deira definição e dar­
rística universal" que retém duradouramente sua atenção; liga­ mo-nos por satisfeitos com a descrição, Devemos, "como bons
lhe diretamente O seu projeto de "semiótica", esforçando-se por anatomistas", reduzir pela análise o dado a seus elementos pri­

160 161
mitivos, sem I?retender chegar ao esclarecimento destes últimos que não 8i!0 contingentes mas necessárias. Sobre todos esses
pela explicação das idéias. Uma explicação, na medida em que pontos, a teoria da verdade de Lambert é, em suma, o co rrel ato
ela é, de um modo geral, possível, s6 pode ser dada pelo cami· lógico do que Tetens tinha estabelecida, como psicólogo, da na.
nho que Locke desbravou , não levando mais longe a elaboração tureza das idéi<~s de relação. Como essas duas correntes distin­
lógica mas demonstrando a origem das idéias simples. Mas as tas da filosofia alemã iluminista conjugam-se finalmente em
cois~ encaminham· se de um outro modo assim que essas idéias Kant, pode-se dizer que é um pensamento que chegou a uma
fundamentais são estabelecidas e que adquirimos, pelo método cooclusão rel&tiva, a qual significa, evidentemente, ao mesmo
prescrito, alguma luz sobre o seu número e a sua ordem, por· tempo o seu fim e li sua ·ultrapassagem por um novo princfpio
quanto se verifica então que cada uma dessas idéias envolve, e uma nova problemática.
na sua simples compreensão, na sua natureza partkular, uma
multiplicidade de outras determinações que são inerentes à sua
natureza e dela decorrem imediatamente. Por conseguinte, não
é indispensável, para desenvolver inteiramente essas determina­
ções, recorrer uma vez mais à experiência. Vamos aperceber­
nos, com efeito. de que essas diversas idéias estão entre elas
em certas relações de compatibilidade ou de incompatibilidade.
de dependência etc., as quais é possível estabelecer pela simples
consideração de sua "essência". O conhecimento dessas rela­
çôes como tais é, pcrtanto, um conhecimento rigorosamente in­
tuitivo e apriorlstico, em total contraste com o conhecimento
empírico-dedutivo. E essa espécie de aprioridade, segundo Lam­
bert, nâo vaIe somente dentro dos limites da geometria pura.
O que raltou a Locke loi a idéia de procurar para cada uma
das idéias elementares o que os geômetras procuraram para O
espaço, a demonstração de suas propriedades estruturais por via
dedutiva.'1 E ao que se aplica a "aletologia" de Lambeu, que
quer ser, a exemplo da mathesis universalis, uma teoria geral
da verdade, ou seja, uma tecria das relações e cone~ões entre
idéias elementares. Além da geometria, ele vale-se, sobretudo,
da aritmética , da cronometria e da forometria puras, extraindo
dar exemplos e documentos em apoio a um certo tipo de ver­
dade que, embora ele deva a sua matéria à experiência, de-­
monstra com bôise nessa matéria a existência de determinações

182 183
NOTAS

I Vollairc, LenTes sur fes angllli!. uttre XlI[, Oeuvres, Paris., Le­
quico. 1821 . XXVI, p. 65.
1; cr. • esse respeito especialmente a carta de D(:$I;.TltI .i condeua
palalina Elisabelh, de 21 de maio de 164) ; De /I " rel. ed. Ada m·Tan;lcry,
m, p. 66'.
3 Par. um estudo mais dclalh~d o da idéia de "ex len~o iOlcli.f"el"
em Ma lcbranche. d. E,lunnlnisproblem, vol. T, pp. 573 c i:i.
t Malcbranchc, Enlreliuu s/Ir la nritapllyslque, v, sec. 12 (Em fn. u­
cí!s no original : ":I:; um clarão da 5ubsll llCia luminosa do DOI~ mestre
comum", N. do T.)
~ Carta a MarcuI Herz. de 11 de feverei ro de 1772, Wl!'rk,. {ed.
Cassircr}, vol. LX, pp. 104 c M­
·Cf. Le sikle de Louis X I V, Oeu",~s (Lequie o) , vol. XIX, p. 140.
1 Voltaitc, Poisie sotyrique: ús S)'sfl!mu. OClfvru, vol. XlV, pp. 23 1.
e 55., mim como Toul en Dieu. comt nroire lur Malt:brOJl(:he (1769):
Oeuvrts, vol. XXXI, pp. 201 e 55.
e Hume, Treatil/: of human "'lIure, parte In., seco 2.

11 Didero!, Apologie de I'abb~ d, Prades, seC . xn.

10 Cf. Locke, ESJ(ry on human undu JIIlfIding, Uvro 1. capo I, &cC. 2.

U "Imediatamente depois de Aristóteles vem Locke; pois 010 ae deve

contai: os oultOS filósofos que escreveram $Obre o mesmo a"unto." Con­


dillac, "Erlrail rai.wnn~ dJI Traill des sensalions" (ed. Georaet Lyon,
Paris, 1921, p . 32).
12 Ct Maupuruis, EIarnen philosophlque de la preuve de ,. erlslenu
de Dieu employle dons fEssai de Cosm%gle, Mimoire de l'Acadimie de
Bcrlin, 1756, S XlX e 55.
II Locke não ccnbcceu alé Que ponlO temos neCCMidade de apreoder'
a locar, a ver, a o uvir ele. ''Todas as qunlidades da alma pareccram-lbc
q~idades ioatas e não suspeilou de que elu poderiam inferir l ua ori&em
da própria sensaç1o." Coodillac, ErtroU rrdsoflllé, loe. cit., p. 3] .
14CoodiUac, Traifl des animaur (1755) , capo 2.
1$ Erfroit rOlsom1i, loco cit., p. 31.
a Locke, &so)' on human Itndustanding, Livro !l, capo 21, seco
30 .. S5.
l1 "Faltavll demo:18tra ~, portanto, que essa inquietude. ~ o primeiro
pri ncipio que nos dá os hábitos de locar, ver, ouvir, senlir, provar ,
comparar, julgar, refletir, desejar, amar, odiar, lemer. esperar, Querer;
que ~ por intermldio de la, numa palavra, que nascem todos OI h'bilos
da alma e do corpo." E:rfT(Jit loIJonnl. p. 34.

185
l' Condillat:, Traiti du antmaur, pp. 395 e 55. 3e Maupertuis. R I/laions philosophiques sur rorigine des langue.f t"f
la sigllifica/ion de:f mOIS. S«. XXIV e $l.; Oeuvru, I, pp. 178 c s.~.
19 Sobre a ligllçio do ç.artesiaoismo com o teatro de Cor~eille, cf.
G. Lansoo, L'/nfluence de la philoJophif cartbienm sur /0 Ulllra lu re 31 Ci. por e}(emp:o Wolff, P~cl!olo8io raliofUllis. f 184 e 1iS.; Psyc/w­
logia empírico, § 11 e passim .
française (cf. acima !'. ISO).
33 Leib niz, carta a De VoIder , ~ de março de 1699, Philos. ScMiftell
20 Para a distioção de perceplio e de percepturitio e :"Jl uibniz. cf.
em particular a cOlTupondéocia com Chrisliao WolH, e m edição de (Gerbardt), lI, p. In.
Gerbardt, Halle, 1860, p. 56. 39 Leiboiz, Von der W elslleil, escril OS alemães selecionaôos e editados

21 Voltaite, TraiU de mltaphyYique (l134), capo VlH; Oeuvres (Le­ por Gahrauer, I, pp. 422 e SS.
quico ), XXXI, p. 61. toC{. Lod:e, Essay on h,mla" undtrSland/ng, Livro I, capo IV,
2! Diderot, PenJü s phifosaphique:f (1746), scç. I e ~.
§24 ess.
oi1 Cf. Descartes, Cartl< a Mersen ne, maio de 1630, OeIlVrI:S, ed.
la E. imposs!vel peneirar aqui mais fundo no problema dessa busca
de deta lhu; por i,3D me contento em remeter o leitor para as e;l\posiç6es Adam-Tallnery, I, p. J SI : "PCTellntais-me in quo genere causae Deu$
mais compJelas do problema do conhecimento, as qU6;is serão encontra· di5posuit ae/ernas veri/ates. Eu vos respondo que é in eodem genere causae
d as num OUltO yoJ ume que dedicarei ao mesr."lO tema. qu e ele criou todas as coisas, isto é, 111 elJicicns el lulalit causa. Pois é
certo que ele é o Autor tanto da existência quanto da essência das cria­
2t Ellments de la phifosophie de Newton, capo VIr; Oeu~'el. vol.
turas; ora, essa essência nadll mais é do que essa.! ve rdade! eternas, as
XXX, pp. 138 e 55. quais não concebo emanando de Deus, como OS raio! do Sol; mas ~i
2$ Condillac, Traiti deI Jensaliq.ns, ed. Lyon, p. 33. que Deus é Actor de todas as COis2S, e que nus ve.dades são alguma
M Cf. Bcrkeley, PrincipieI of human knowledge, sec. 34; D(alogueJ coisa, e por con~guinte que ele é o seu Autor."
between HylaJ tJM PhilonO/u, UI c passim. ~2 Cf. acima p. 89 e SS.
'1 New Ih eory 01 vision, § 11 [Em ioglâ no original: "Em ma pró­ i! Locke, Essay on humon undeUlaruJing, üvro n, cap. I, !iCe:. 25.
pria natureza a distAncia é imperccptivel e, no eotan!o, ela é percebida
H Leibniz, Nouveaux eJsais, Livro J, capo I , § 21.
pela vista". N. do T.]
.s Telens. Phifos. VerJUc/IC íi~er die m ensdlllche Natur UM ihre
"Voltaire, 2/imenls de (a philosophle de Newton, capo VIII (Oeu­
Entwickfung, Risa, j777, I, PP. 421 e $S. (Reediçâo da KantgesellschtJft,
vres, xxx, p. 147). Berlim, 19 13, PP. 416 e $5.)
29 Cf. Dide.rot. Lettrt sur [es aveugles, e Condil1ac, Trairi de! Sln·
46 Meodelswho, M orgcnsttmden, Abscho. VII.
sations, parte I, capo 7, capo 11 e 5S.
4. A. Mendewobn. 2 de feve reiro de 1757, Wtrke (Lac:hmann­
301eibniz, Nt)'IIOS ensaio:f sobre o entendimento humano, livro 11, Munckerj XVII, p. 90.
capo $. t 8 Cf. para o conjunto, Tetens, I'hi/OJ. Vtrsuche über die m enschl.
u Foot.eneUe., Enl1elien.s sur la pluralili des monda , "Troisi~me NaJur . . ; Primeiro Ens.aio, Uber d/e Na/ur der Vorstellungen, n. o XV,
soi~" , Oeuvru, Paris, 1818. 11, p. 44. reediç!o da Kont-G esellschofl, pp. 112 e 55. Cf. também Erkenntnis­
32 Pc:de-sc cilar, no âmbito do Iluminismo ale~ão, B. Sulzec, por probtem, n, pp. 567 e ss.
cxc..mplo; cf. Zerglledtrung du BegriJ/:f der Vemu,,!' (1758 ) ; Vermisc.h:e n Teteo~, Philos. Versuche ... , Quarto Ensaio: Ober die D enkkroft
prulosopbische Scb.riflen, I , p. 249: und das Del1ken, IV (e op. cH., pp. 310 e ss.).
n LoMius, Physi.sche Uoachen des Wohnn, Gi>tha, 1775, pp. 8 e ss., 600p. cit., Quioto Ensaio: VOn der Yeruhiedenheit der Verhiiltnisse
56 (d. Erkenn/niJproólem , vai. n, pp. 575 e ss.). und der al/gemeinen VerlUi/In/$ocgr/fle Cpp. 319 e s~).
!H Sobre a atitude hesitante dc Condillac: a respeito do problcmo. dt 6: Cf. Lambert, An/age tur Archiuclonic oder Thearie deJ Einfachen
"~ca!idade do mundo exterior', vcr para maiores d etalhes a introdução 'md ErSlen in der plzilosopmschen und mathematisc:ht!l1 Erkennlni:f, Riga,
de Qeorae Lyon à sua eeição do Trai/l des :fensa fions, pp. 14 e SS. 1771, § 10. Para uma expo$ição mais completa do método de Lamber!,
U Dide.rot, úttre sur lu a~euglu, Oeuvret, ed. Naieeon. D, p. 218. cf. o oosso Erkennlnisprob!em, 11, pp. 534 e 58.

186 187
IV

A /DtlA DE RELIGIÃO

Qual t o traço mais característico do Século das Luzes?


Nada parece mais fácil de responder, segundo a idéia tradicional
que àele se fez: a atitude crítica e céptica em face da religião,
eis o que caracteriza a própria essência do Iluminismo. Mas
desde que se queira relacionar esse ponto de vista rotineiro com
ratos históricos concretos, imediatamente surgem as hesitações.
86 dúvidas e as mais sérias reservas, pelo menos no que se
refere ao pensamento alemâo e iogl!s. Essa idéia ora pode pas­
sar por dcicnsável a propósito da fil osofia francesa do século
XV III . ora representa uo: erro grosseiro em relação às outras.
Adversários, inimigos. admiradores e aduiadores do Iluminismo,
tod", estão de acordo, porém, ne~se ~n[o . Em su as obras, assim
como ~m sua epislolografja, Vohai re não se cansa de IRnçar seu
velho grito de guerra: .. Ecrasez l'inJfJmer [Esmaguem a infa­
me!]. E acrescenta pruden temente nâo ser a fé o que ele com­
bate mas a superstição, não a religião mas o uso solerte que deln
faz a Igreja; entretanto, a geração seguinte, que reconhecerá em
Voltaire o seu mestre espiritual, não se deterá nessas distinções .
O enciclopcd ismo francês declara guerra aberta à religião, à sua

189
validade, à sua pretensa verdade. Censura-lhe não s6 ter freado natureza, o código da soc iedade e o código da religião. Cada
desde sempre o progresso intelectual mas, além disso, ter se reve· umR dessas leis tolhe as outras e a si mesma impõe-se restriçócs;
lado incapaz de fundar uma verdadeira moral e uma ordem po­ por isso jamais se conseguiu estabelecer uma verdadeira harmo­
Ihica e sodal justa. Em sua Politique naturei/e, Holbach retoma nia entre elas. Por consegu inte, em nenhum tempo e em nenhuma
constantemente a esse ponto. A piaI" das malfei.orias que ele nação é possível apresentar um homem íntegro, um cidadão
atribui à religião é a de fazer dos homens, na medida em que os íntegro ou mesmo um verdadeiro cre nte" .~ Uma vez adquirida
leva a temer invisíveis tiranos, verdadeiros lacaios e covardes consciência desse precário estado de coisas, nenhuma reversão,
diante dos potentados terrestres, sem força s para tomar nas nenhum compromisso, nenhuma conciliação é mais possível. 1!
próprias mãos a direção de seu destino. 1 O deísmo é, por sua preciso escolher entre a liberdade e os grilhões, entre a lucidez
da consciência e a obscuridade das paixões. entre a ciência e
vez, rejeitado como posição híbrida, um meio-termo ambíguo .
a crença . E tal escolha não oferece, evidentemente, a menor dá·
Por mais que o deísta, declara Diderot, se esforce por cortar
vida para o homem dos novos tempos, o homem da Era da
uma dúzia de cabeças da hidra da religião, outras tantas volta­
Razão, o homem do Iluminismo. Ele renunciará sem hesitação
tão a brotar daquela que ele deixou iJesa.2 Extirpar de maneira ao socorro vindo do alto, desbravará ele próprio o caminho
absoluta toda e qualquer crença, seja qual for o argu.nento em para alcançar a verdade, não pensará que possui essa verdade
que ela se apóie e a form a de que se revista, tal parece ser, em se não a ti ver e:draído e provado graças às suas próprias forças.
definitivo, o único meio de libertar O homem dos preconceitos Entretanto, seria uma atitude irrefletida e equivocada con·
e da servidão e de abrir-lhe o caminho da verdadeira felicidade . siderarmos o Século das Lu zes, baseados apenas nas declarações
" Em vão, ó supersticioso," - assim faz Diderot a naluraa falar dos seus protagonistas e porta·vozes, uma época profu ndamente
ao homem - " buscas o teu bem-estar nos limites do mundo irreligiosa e hostil a toda cre nça. Essa prevenção nos faria correr
onde a minha mão te colocou. Emancipa-Ie pois do jugo da o risco de ignorar o que ela realizou positivamente de mai s
religião, a minha soberba rival , que ignora os meus direitos; elevado. O cepticismo como lal é incapaz de realizações dessa
renuncia a esses deuses usurpadores do meu poder para voltar ordem . O século XVlIl não assenta seus propósitos intelectuais
a viver sob O amparo das minhas leis. Retorna, pois, à natureza me:is vigorosos e seu carac terístico dinamismo espiritual na re·
de que desertaste. Ela te consolará, ela expulsará do teu coração jeição da fé, mas no novo ioeal de fé que ele promove e na
esses temores que te angustiam, essas inquietações que te dila­ nova forma de religiãc em que ela se encarna. Ao Século das
ceram, esses transes que te sacodem, esses ódios que te separam Luzes aplica·se. portanto, em toda a sua profundidade e sua
dos teus semelhantes. a quem deves amar. Quando te entregares verdade, a palavra de Goethe acercli da fé e da descrença. Ao
à natureza, à humanidade, a ti mesmo, espalharás flores ao apontar o conflito da fé e da descrença como o tema de maior
longo do ca minho de tua vide". "Se percorrermos a histÓria de profundidade , até mesmo o único tema da história do mundo
todas as nações através dos sécdos, verificaremos que o homem e dos homens. ao acrescentar que toda época em que reina a fé
encontra-se submetido sempre a três leis distintas: O código da é, para os seus contemporir,eos e para a posteridade, brilhante,

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fecunda e estimulante , ao passo que aquela onde a descrença o dogma do pecado original e o proble0t8 da teodkéia
proclama o seu mfsero triunfo naufra@3 aos olhos da posteriori­
dade porque a ninguém interessa dedicar-se ao conhecimento
.
Em toda essa abc ndante e rreqüentemente con{u6a literatura
da esterilidade - diante desse dilema goethiano nem por um que o século XVlll dedicou à teologia e à fil osofia da religião
in ~t ante se pode duvidar de q ue lado convém situar a época - somente sobre a questão do defsmo o número de panfletos
iluminista . O sentimento que por toda parte a domina é um trocados de uma parte e de oulra é inimaginável - ainda é
sentimento profundamente criador, uma confiança absoluta na possfvel, no entanto, definir O ponto de convergêncie teórica em
edifi cação e renovação do mundo . t: essa renovação que se tomo do qual o debate gravita. O l1uminismo não teve que
espera e exige agora da própria religião. A hostili dade super· tomar a iniciativa desse problema . porquanto já o encontrou na
ficial em face da religiõo que nos impressiona na época do herança espiritual dos séculos precedentes e contentou-se em
Iluminismo ·não deve dissimular aos nossos olhos qt:e tOGaS os abordá-lo com os novOll instrumentos lntelectuais que adquirira
seus problemas intelectuais ainda estão intimatr.ente :nist'urados nesse meio-tempo. Iá a Renascellça pretendera ser não só uma
com os problemas relí~io~ . que destes recebem constantes e restauração da Antiguidade Clássica e do espírito científico mas
poderosos impulsos. ClJlo. cídlO, quanto mai s se sente a insu' também uma transformação, uma renovalio da religião. A reli·
fici ência das r~spos fas fornecida s até en tão pela reli gião parfl gião que ela tinha em vista era uma religião de adesão ao mundo
as questões fun damenta is do conheci mento e da moral , mais (Weltbeiahung) e de afirmação do espírito, concedendo a ambos
essas questões se impõem com inten sidade e paixão. A luta que seus respectivos valores específicos, descobrindo o verdndeir<'
se trava já não gravi ta somente em tomo dos dogmas e de sua selo do divino não na depreciação ou no aniquil amento do mun­
in terpretação mas em torno do modo de certeza da religião, não do e do espírito mas em sua exaltação. Assim se estabeleceu esse
apenas em tomo do conteúdo da fé mas das modalidades e da deísmo univer!.lll que se propagaria um pouco por toda a parte
direção da fé como ta l. Portanto. nio é à dissolução da religião na teologia de inspiração humanista dos séculos XV I e XV l1 .
que se dedicam com todas as suas forças, principalmente no Essa teologia tem raizes na idéia de que a essência do divino só
quadro da filosoria alemã , mas a fundamentá-la e a aprofu ndá-Ia pode se r apreendida no conjunto de suas ·manifeslaçôes e de
num sentido " transcendental". Esse esforço explica a especifi· que , per conseqi.!ência. possui um sentido e um valor inalienável
cidade da religiosidade da época iluminista, suas tendências e autÔnomo . O ser absoluto de Deus não pode ex primiNe em
tanto negativ<ls quanto positivas , tanto a sua fé quanto a sua nenhuma forma e er.t nenhum nome, porquanto Cormas e nome.~
descrença . Cumpre, antes de tudo, apreender a unidade que liga são modos de limitação, inadequados, nesse sentido. para a essên·
esses dois momentos, reconhecer 8 sua reciprocidade. para per­ cia do infinito. Mas a reciproca, justamente , não t menos verda­
ceber·se em sua unidade real o dcsenrolar hi stórico da filosofia deira: urna vez que toda a (arma particular está igualmente
da religião no sécu lo XV III : um movimento que parte de um distanciada da essência do absoluto, todas as suas formas, por
foco de pensamento bem-estabclccido para atingir um fim ideal outra porte, estão igualmente próximas dele . Toda e qualquer
perfeitamente determinado . expressão do divino, desde quc seja em si mesma autêntica e

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verídica, deve medir-se, aferir-se pelas outras; elas são equiva­ divina : devia accntecer no seio do trabalho e do desenvolvi­
len tes entre si , na med ida em que, em vez de d~i g na r a própri a mento de espírilo humano.~
essênda, indica m-na somente em riguras, em símbolos. t: possível, Mas essa religião humanista encontrou na Reforma um
de Nicolau de Cusa a Marsflio Ficino, e deste a Erasmo e a adver.;ário implacável. A Reforma . parece, condiz com a Re­
Tomas More, acompanhar o desenvolvimen to e o constante re­ nascença r:o tocante a conferir em novo valor e uma nova sanção
forço desse espírito religioso humanista. Nos primeiros decênios reUgiosa li. vida terrena. Tende igualmente para uma interiori­
do século XV I, parecia que esse desenvolvimento tinha chegado zação, para uma espirítuaiil.ação do conteúdo da f~ . E essa espi­
a seu termo. que estava fun dada uma "religião dentro dos limi­ ritualização não se limita ao eu, 2:0 sujeito religioso: ela estende­
tes da humanidade ". Ela não opunha hostilidade alguma nem se ao ser do munde, coloca-se numa nova ~el3 ção com o centro
cepticismo algum, em face do dogma cristão. esforçando-se, pelo de certeza da fé. Eis que o mundo deve ser agora justiricado
contrário, por compreender e interpretar o próprio dogma de pela certeza do fé. À ex igência ascética de negação do mundo
rnllneira a fazer deh! a expressão da nova consciência religiosa. opõ-se doravante a exigência de transformaçâo do mundo, Essa
e na própria idéia do Cristo que Nicolau de Cusa vê realizada transformação deve realizar-se pelo trabalho no seio da profis­
a sua concepção fu ndamental da humanilas. A humanitas do são, na ação exercida no âmbito da ordem social secular, Mas se
Cristo converte-se no vínculo do mundo e na prova suprema da Humanismo e Refcrn:a se encor, tram, em certo sentido. num
sua unidade interior. visto que s6 ela lançou uma ponte sobre terreno comum, conservam-se. po=-ém, muito Stparado! em suas
o 'abismo entre o infi nito e o finito, en tre o princípio criador e razões profundas. A fé do refotr.lador permanece, em sua origem
o ser criado. O üniversalismo religioso assim fundado permite. e em seus fins. estranha aos ideais religiosos do Humanismo_
portanto, envolver o universo em novas formas de vida inte­ O âmago do confli to pode-se definir numa expressão: o pecado
lectual, as quais nasceram no decorrer da Renascença, e reinter­ original,' a propósito do qual o Humanismo e a Reforma têm
pretá-tas de um ponto de vista filosófico. Ele abre-se do mesmo posições radicalmen te diferen tes. O Humanismo. bem entendi·
modo para as matemáticas, as novas ciências e a cosmologia, ao do, jamais usou atacar frontalmente o dogma da queda original,
mas toda a sua orientação espiritual tende a abrandar O rigor
fundar - contra Santo Agostinho C 11 Idade Média - uma
do dogma. a privá-lo de su.:! força . Com uma nitidez cada vez
doutrina profund amente nova do sent ido da história. Tudo isso
maiOr. percebe·se no pensamento religioso do Humanismo a
parecia então possível com base na re ligião. parecia realizado
penetração do espírito pelagiani s!a: de um modo cada vez mais
não contra a religião mas graças a ela . Com essa nova ampli­
consciente, esforça-se por ~ejeitar o rude jugo da tradição agos­
tude, parecia que a religião revelava. finalmente. sua verdadeira
tiniam!. O retorno à Ani!guidade não devia tardar em alimenta r
e essencial profundidade. O problema da reconciliação do ho­
o conflito: recorre-se à doutri na platÔni ca do Eros e à doutrina
mem com Deus, que tinha sido o que estava em jogo na luta estóica da auta reia da vontade contra a doutrina agostiniana
dos grandes sistemas escolást icos e de toda a mística da Idade da corrupção radical da natureza humana e de sua inca p~cidadc
Média, apresen tava-se agora sob uma nova luz . Essa reconcilia· para voltar de moto próprio ao divino. O universalismo religioso
ção deixou de ser esperada exclusivamente da eficácia da graça para o qual o Humanismo tendia não podia ser salvo numa

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outra base; não !'e podia fundamentar de outro modo uma reve­ Ihará perante Deus: pelo contrário, arrogo-se direitos. (lU cspcr:t
lação que não fosse safda de uma pregação singul ar, limitad a ou, pelo menos, deseja a ocasião, o tempo e a obra que lhe
no espaço e no tempo, da palavra di vina,1I Mas O protesto in­ permitirão atingi r fina lmente a salvação_ Mas aquele que não
Iransigente do sislema reformado levanta-se contra ~ssa ampli a­ duvida de que tudo depende da vontade de Deus, esse não
ção doulrin:tl A fé na qual vivem e morrem os reformadores é deposita mais a menor esperança em si mesmo, não escolhe nem
a fé no caráter único e absoluto da palavl:a bíblica, O interesse elege mais os homens mas espera tudo da efic~cia divina : esse
que dedicam ao mundo em nada podia atenua r essa fé: a ré e é o que está mais perto da graça que deve salvá-lo ."
o mundo são postu lados, ambos, por essa mesma palavra, A Assim, o veredicto da fé reformada abateu-se sobre a fé
Bíblia, em sua transcendência, sua autoridade sob renatu ral e humanista - e foi em vão que o 5&:ul0 XVTlI tentou lutor
absoluta, é o único objeto a que se pode assoc iar a certeza da cont ra esse julgamento_ Sem dúvida , os ideais da Renascença
salvação. O "in dividualismo" religioso representado pela Refor­ continuavam vivos; ainda encon travam , sobretudo no domínio
ma permanece, portanto, inteiramente OI'denado em função de da filosofia , defensores e campeões. Mas todos os grandes mo­
realidades puramente objeti vas que o ligam ao mundo sobre· vimentos reJigiosos da época contrariavam suas tendências. Toda
nalma1. e E quan to mais tende a confirmar essas ligações , mais esperança estava perdjda de uma religião universal como a con­
se vê conduzido de volta à interpretação agostiniana do dogma, cebida por Nicolau de Cusa c expressa em De pace lidei: no
o qual retoma, tanto em Lutero quanto em Calvino, seu lugar lugar da paz da fé sobreveio a mais rude e ma is implacável das
na base e no ceme do sis tema da teologia. A ruptura com O guerras rel igiosas. E a vitória, por toda parte. nessa guerra,
Humanismo é então inevitável. Consuma-se com um rigor c uma parecia decretar um retrocesso para o mais inexoráveL dogma·
lucidez implacáveis no De ser ~o arbitrio, de Lutero. Ao defen­ tismo_ Se é verdade que Hugo Groti us na Holanda e a Escola
der, ainda que com certa prudência , a liberdade humana , ao de Cambridge na Inglaterra tentavam ree ncon trar o esp(rito da
bater-se pela au tareia e au tonomia da vontade, a qual não tcri a Renascença, o efeito imediato desses esforços niio foi além de
sido inteiramente corrompi da pela queda original. Erasmo expri· um quadro relativamenla cstreito _ Grotius sucumbe ao ataque
me nada menos, segundo Lutero, do que o mais óbvio cepticismo do gomarismo, que pretendia derrotar o arminianismo holandês ;
religioso. Não existe erro mais perig0!5o do que cru numa inde· Cudworth e More não podem resistir mais à pressão do purita­
pendência do homem, que seria considerado uma potênci a autô­ nismo e do calvinismo ortodoxo. Sem dúvida , a obra desses pen­
noma a respeito da graça divino , sem o menor poder para sadores não foi estéril, quer no plano da religião quer no plano
opor-se ou cooperar. Cumpre distinguir rigorosamente entre a da histó.ria das idéias: ela abriu o caminho pa ra a teologia do
Iluminismo. A teologia do século XVII I está , com efeito, clara­
potência dc Deus e a nossa. entre a obra de Deus e a nossa,
mente consciente dos seus vfnculos com a história universaL A
pois dessa di stinção depende o nosso autoconhecimento, assim
ob jeção que se opõe com tania freqiiência ao século XVllI , a
como o conhecime nto c 11 glória de Deus. "Enquanto um homem
de que ele se autoproclomoll o "começo dos tempos", a de que
estiver convencido de que ainda pode fazer algo por sua salva·
menosprezou e subestimou as grandes reoli7.ações do passado.
ção, por pouco que seja, ele manterá a confi:tnça em si mesmo
cai aqui no vazio. SemJer, um dos mais influentes teólogos da
e não alimentará o desespero em seu (nt imo; tampouco se hum; ­
197
196
época na Alemanha. manifesta um verdadeiro espIrito de crítica Jansênio sobre Agostinho, a problemática pascalianu lLI11:-SC ao
histórica - cujos elementos descobriu na investigação bíbli­ agostinismo. Ent retanto, O que .separa Pascal de Agostinho, o
ca - ao reconhecer e exprimir os vínculos históricos que o unem que o faz ser reconhecido como um pensador dos te mpos, é II
aos seus predecessores. Em SUB luta contra a ortodoxia , ele fOrma e o método da demo nstração. Esse mé tooo está impreg­
vale-se diretamen te de Erasmo, a quem considera o verdadeiro oado do ensino de Descartes, tenta levar até os de rradeiros mis­
fundador da teologia protestante. De novo são apresentadas, com té rios da fé o seu ideal raciona l. o ideal da verdade clara e
toda a clareza, as velhas questões: nutareia da razão, autonomia distinta . Daí provém a paradoxal mistura de temas: o conlerido
do querer mo ral. Mas ex igem dorava nte respostas independentes doutrinai que Pascal pretende demonstrar r..::>s Pensamentos fuz
de toda a autoridade exterior, da Bfbli a e da Igreja. Somente o mais extremo contraste com o modo da demonstração. A tese
então se quebrou o poder do dogmatismo medieval: o agosti­ q ue ele sustenla é a da impotência radical da razão, incapaz por
nísmo dei xa de ser atacado em suas conseqüências, em seus si mesma da menor certeza. que só j>Ode chegar à verdade re·
efeitos imediatos, passando a sê·lo em seu princípio , em se u nunciando a el a própria e submetendo-se ime irame nte, sem re­
centro vita\. A idéia de pecado origina! é, com efeito, o alvo servas, à fé. Mas, justa men te, Pascal não pretende exigir ou
comum que une em sua lut<! as diversas tendênc ios do pensa­ pregar a necessidade dessa submissão: quer prová-la. Não se
mento iluminista. Hume bate·se ao I ~do do deísmo inglês, Rous­ dirige ao crente mas ao descrente; aborda-o no seu próprio ter­
sesu ao lado de Voltaire: parece q ue, por algum tempo , a Cim reno, fala na sua \fngua e se rve-se das suas armas. Todo o equi­
de abate r esse ini:nígo cornU!D , nada resta das diferenças e di­ pamen to da modeTna lógicn a nalflicn, que Pascal domina melhor
vergências . do q ue ninguém, q ue ele mesmo utilizou e levou à sua perfeição
Consideremos, em primeiro lugar, o problema no seio da suprema nos seus trabalhos motemátjcos , deve ser agora adaptado
vida in te l ectu~l francesa, onde e le adq uiriu seu aspecto mais à exposição e ao desenvolvimento dos problemas da religião.
agudo e encontro u Sl>3S fórmu las mais expressivas. Com uma Avança para 11 solução desses prob lemll s com os mesmos meios
perfeição que só pedia ser alca nçada pelo espírito analítico fran ­ que já utili zara na solução de problemas geométricos, a prop6­
cês, todos os aspectos q ue o problema con tinha fo ram destuca· sito das seções cônicas, de um problema de fisica experimental,
dos e cada um deles desenvolvido até as suas extremas conse­ no seu Tratado do vácuo. A observação exata dos fenômenos e
qüências . As diversas abordagens possíveis são dispoEitas {nce a o poder do hipótese devem uma vez mois, no presente caso,
face, forman do uma ant[tese muito simples, e dessa antítese re­ delerminar a decisão. Não temos outro meio , não necessitamos de
sultou, como um desfecho óbvio. a solução dialética. O problema qualque r o utro meio para resolver o de bate. O físico , a fim de
do pecado original é apresentado. urna vez ma is , na rilosoria solucionar o problema apresen tado por uma força da nlltureza,
fra ncesn do skulo XVIU , por um de seus pensadores mais pro­ não dispõe de nenhum outro recurso senão examino r as suas
fundos. Descobrimo-lo, exposto com ex.traordinária clareza, uma manifestações, fazê-Ia s dar seu tes temunho o rdenando-os siste­
austeridade e uma força ímpares, nos Pensamentos de Pascal. maticamente; não existe o utro método para deci frar o mistério
Dificilmente se pode dizer que, depois de Agostinho, o seu con­ da natureza humana. A primeiro coisa que se deve exigir de uma
teúdo se haja modificado: graças à mediação da grande obra de hipólese é que se ha rmonize com os fenômenos e os explique

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todos. Esse postulado, "salvar os fenômenos " (uwCet v t'a A natureza humana só é concebível por esse inconcebível com
tpO.lVÓJ.U1lQ ), não vale menos para ~ teologia do que para a que nos deparamos em sua profundidade. Assim são invcrlidos
astronomia. E é aí que PasC2:1 espera o seu adversá rio, que aguar· todos os critérios respeitantes à forma lógica, "racional ", do c0­
da o céptico e o desc rente. Se estes rejeitam a solução da reHgião, nhecimento. Logicamente, explica·se o desconhecido reduzindCH:l
se se recusam a admitir a doutrina do pecado original e da .. dupla ao conhecido : aq ui, é o conhecido, o dado, a existência imedia­
natureza " do homem, é a eles que cabe então fornecer uma eX'· t a~e nte vivenciada, que se explica mediante uma causa inteira·
plicação mais verossímil No lugar do duplo devem colocar o mente desconhecida. Mas precisamente esse retorno dos instru­
simples, no lugar da discordância, o acordo. Mas essa pretensa mentos e dos critérios racionais nos ensina que atingimos um
l!nidade, justamen te, e esse acordo logo eorram em conflito ra· limite, limite não contingente mas necessário, não subjetivo mas
dical com tudo o que a existência humana nos oferece. Onde objetivo do conhecimento. Não é uma debilidade do nosso en·
quer que o homem, com efeito, apresente·se a nosses ol hos, o tendimento, da nossa compreensão intuitiva das coisas (unserer
que vemos? Não um ser completo, em harmonia consi go mes· Einsicht), o que nos impede de chegar ao conhecimento ade·
mo, mas um ser dilacerado, dividido, vergado ao peso das con· qu ado do objeto: é o próprio objeto que desafia toda a raciona·
tradições. Essas contradiçõcs são os estigmas da natute"l.8 hu· lidade, q:Je contém em si urna ant inomia absoluta. De fato, todo
mana. Desde o momento em que quer compreender a sua posição O critério racional é, como tal. imanente: o que significa que a
no mundo, o homem vê-se colocado en tre o infini to e o nada, na forma racional da nossa compreensão das coisas consiste em
presença de ambos, im potente parR decidir se pertence a um Ou concluir ce urn a essência determinada e constante, da "natureza"
ao outro. Ergu ido acima de todas as coisas, desce abaixo de cada de uma coisa , as propriedades que neçessariamente lhe perten­
uma delas; é o ser mais sublime e o mais rejeitado: ludo nele cem. Nesse caso, porém, estamos lidando com uma natureza que
conjuga potência e impotência, grandeza e miséria. A sua cons· de imediato se nega a si mesma; aqui, é a imanência que, a par­
ciência não se cansa de propor-lhe um fim que, em sua condição , tir do instante em que tentamo5 llpreendê-Ja pura e simples­
ele jamais pade Ettingir: nessa vontade de se superar e nas perpé­ mente, nega-se a si mesma e converte-se em transcendência.
tu as recaídas consome·se toda a sua existência. Não poderiamos "Quem destrinçerá este imbr6glio? A natureza confunde os pir·
escapar a esse conflito que se mnnifesta em todos os fen ômenos tônicos e a razão confunde os dogmáticos. Em que te converterás,
dn natureza humana, e o único meio de explicá·lo consiste em pois, 6 homem, que procuras apurar qual é a tua verdadeira
transpô-Jo do plano fenomenal para a sua fonte inteligível, dos condição através da tua razão natural? [ .. . ] Reflete, pois, sober­
fatos para o seu princfpio. O problema da dupla natureza irre· bo, sobre o paradoxo que tu mesmo és. Humilha·te, razão impo­
dutível do homem só se resolve se se recorrer ao mistério da tente j cala-te, natureza imbecil: aprende que o homem trans·
qu eda . De súbito, por esse mistério , toma-se claro tudo o que cende infinitamente o homem, e escuta do teu mestre a tua
no começo parecia mergulhado em impenetrável escuridão. Se verdadeira condição, que ignoras . Escuta Deus!" ,
é verdade que essa " hipótese" continua sendo em si mesma um Essas fórmula s pascalianas iriam apresentar à filosofia fran­
mistério absoluto, também const itui. por outro lado, a única cha· cesa do século XV III o mais difícil e o mais radical dos pro·
ve que nos pode ab rir as verdadeiras profundezas do nosso se:-. blemas. Os filósofos defrontavam-se aí com um adversário a sua

200 201
altura, com o qual nio podiam evi tar medir-se se quisessem dar que possa parecer, à primeira vista, a atividade humana , incnpllz
um passo adiante, por menor que foss~. Se era impossível que­ de eter-se a um resultado adquirido, passando sempre de um fim
brar nesse ponto a vertigem da transcendência, se o homem de· a outro, saltando incessantemente de uma iniciativa para outrn,
via ser e manter-se "transcendente em relação a si mesmo· , toda não é nessa diversidade, entretanto, que ela revela a sua verda­
explicação "natural" do mundo e da existêncie estava de ante· deira intensidade e toda a potência de que é capaz? ejusta­
mão prejudicada. Compreende-se, nesse caso, por que a filoso­ mente na extensão, no desdobramento espontâneo de todas essas
fia francesa do Iluminismo voltava incessantemente aos PensQ­ forças diversas que ele sen te em si mesmo que o homem é tudo o
mentos de Pascal , como sob o efeito de uma compulsão interior, que pode 'e deve ser: "Essas pretensas cont.rariedades, a que
para fazer com tanta freqüencia dessa obra c teste de suas fa­ chamais contradições, são os ingredientes necessários que en·
culdades críticas. Através de todas a~ etapas da caneira de es­ tram no com~to do homem. que t, como o resto da natureza, o
critor de Voltaire teve prosseguimento a crítica de Pascal. Inicia que deve ser."
essa crJ!ica com n sun primeira obra filosó(ic.e:. as Cortas sobre Mas essa filosofia do senso comuna não é a última palavra
os ingleses; meio século depois, ele retoma a esse trabalho de de Voltaire sobre a questão . Por pouco que ele se debruce sobre
sua juventude para completá-lo e expor novos argumentos.' En· os argumentos de Pascal, percebe-se claramente que estes nunca
frentando o desafio pascaliano, ele proclama que vai s ustentar a deixam de perturbá-lo. De fato , no ponto em que estamos, a
causa da humanidade contra o "sublime misantropo " . Entretan· simples negação deixa de ser suficiente: espera-se da filosofia
to, quando se examina um por um os seus ergumentos, chama das Luzes, exige·se dela, uma decisão clara e positiva. Uma vez
a atenção o (ato de que ele procura evitar a luta aberta. Vo!taire, que rejeita o mistério do pecado original, ela é solicitada a situar
com efeito, tem o cuidado de não seguir Pascal até o centro pro­ alhures a causa e a origem do ma!, a reconhecer e demonstrar
priamente religioso do seu pe:lsamento, até o mais profundo da sua fonte mediante, exclusivamente, as forças da razão. Diante
sua problemática . Ele quer manter-se à superfície da exist!ncia do problema metafísico como Ia/, parece que, sobre esse ponto,
humana , mostrar que essa superffc ie basta-se a si mesma, ex­ não existe, de fato, escapatória possível: duvidar do dogma só
plica-se a si mesma. A seriedade pascaliana , ele opõe suas con­ nos faz mergulhar ainda mais prorunda e inexoravelmente no
siderações irônicas e jocosas, ~ prorundidade mistica, a volubi· enigma da teodicéia . Esse enigma subsis te para o próprio Vai­
lidade do mundano. Recorre a um .. senso comum" , que converte 1a ire, pa:<I ql!em a ex istência de Deus é uma verdade rigorosa­
em juiz das sutilezas da metafísica. Aquilo a que Pascal cha· mente demonstrtveL Eu existo, logo olgo necessário e elemo
mava as contradições da natureza humana é apenas, para Vol· exiMe é uma proposição que nada perdeu, para ele, de sua rorça
taire, a prova de sua riqueza, de sua plenitude, de sua variedade e de sua evidência.' Assim, uma vez q:J.e o nó górdio da teodi­
e mobilidade. Sem dúvida, ela nada tem de "simples", no sentido eéia perménece il:tato, como poderemo~ escapar à conclusão de
em que se poderia atribuir-lhe uma existência determinada, preso Pascal de que"o n6 da nossa condição faz seus entrelaçamentos
crever-Ihe uma carreira fixa , porquanto se abre incessantemente nesse abisrr.o "? IO Volt aire sempre rechaçou o otimismo como
a novas possibilidades. Mas essa versatilidade quase ilimitada doutrin a metafísica e via na solução de Leibniz e Shaftesbury
não é, para Voltaire, a sua rraqueza mas a sua força . Por díspar apenas uma ficção mitológica. um " romance" .Jl Quem pretender

202 203
que tudo está bem é um charlatão: confessemos a existência do L. .a verdadeira sabedoria

mal sem acrescentar ainda aos horrores da vida 11 absurda com­ E sa be r fug ir da tristeza

placência de negá-lo .l : Se Yoltaire decl ara-se aqui favo rável ao Nos braços da vol úpia.]

cepticisJ1lo teórico. contra a teologia e a metafísica, nem por isso Voltaire ainda não quer ser ma is do que o a pologista do
deixa de ser atingido, ainda que indiretamente, pelos golpes da seu tem po: apologista do luxo req uintado, do bom gostO, d a
argumentação pasealiana a que ele se propunha refutar. Em todo volúpia liberada de tOdos os preconceilos. H Mais tarde , sem dú'
caso, se se considerar o resultado a que Yoltaire chegou, vemo-Io vida, voltou atrás a res peito dessa glori ficação do prazt;r - por
exatamente no ponto onde se encontrava Pascal , cu ja concl usão ocasião do terremoto de Lisboa de 1755, ret ratou-se ex pressa­
pessoal. incansavelmente aprofundada. era de que a filosofia mente. O axioma /Oul esl biclI . como ta l, como enunci ado dou­
como lal, de que a razão, desde que queira con ta r exclusivamente trina i, é rejeitado em termos absolutos.a Insensata ilusão . a de
con sigo mesm a, sem o mínimo apoi6 da n:velação . desaglwr!Í fec har os ol hos para os males cuja presença nos açossa de todos
necessari amente no cepticismo: "O pi rroni smo é o verdadeiro, "H os lados; niio há outra saída senão (ixar o olha r no fut uro. es­
Tcnuo·se assim despojado ele próprio de todas a~ suas armas perar que este nos traga ti solução de um cIligma que. de mo­
contra o cepticismo 5Obn:: a questão da ori gem do ma l. v;':-se mento, nos é impenetrável : " VII jour IOUi .~ era büm, voilit notre
agora empurrado para os seus últimos entl"incheirnmcrnos. Re­ espél'ance; 101/1 esl bicn aujounnwi, voilà ('iI] usion." {Um dia
gistn! todas as respostas ciliadas re jeilll. Schopenh auc r \'ule\l-st" tudo c~t <!rá bem, eis a no~sa esperança : luclo está bem hoje. eis a
com certa predileção do Callílide de Yoltaire. do qua l quis fazer il usão.! Yoltaire adere aqui. portanto, a UIU compromisso ­
a arma pOr excelência da luta con tra o oti mismo. i\'las. na ver· comprom isso que ~e impõc tanto em tcoria qu anto no plano
dflde, Volla ire nâo é mais um fe6rico do Ix:stlimi smo do que um ético. O mal moral também é inegável: sua ju sti ficação consiste
teórico do otimismo. A sua posição so br~ O prubkma do mal em ser i nev jl~vel, dada a própria natureza do homem. Sem RS
não surgiu de nenhuma dou /rilla dcterminadu; d a não pode e fr aq uezas huma nas. a nossa vida eslariu condenada à imobili­
não quer seI· mais do que a expressão do humor passagciro com J ade, porquanto os mais vivos impulsos da nossa exist ência nas­
o qual ele aborda o mundo e o homem. Esse humor admite toda cem. precisamente, dos nOS50S instin tos e das nossas paixões,
a espécie de mlJtizcs - compntz·s.; prcd sull1ente nesse jogo de portanto, de um ponto de vis ta ético, dos nossos defeitos. Vol·
1aire encon trou a fórmu la mais impress ionante de sua visão do
matizes . Em ~UlJ juvenlude, Volta iro: ignora todo o acesso de
mundo e da vida no seu conto fi losófico Le monde com me il va,
pessimismo . Odende uma [i loso(;a purumen te hedonista, para a
vi~ioll de lJabouc (1746). Babouc recebe do anjo h uricl a ordem
qual a "jll ~ tificm;iio" da e:\i stência cons istc em a bandonar-se a
ue ir à capi tal do reino para observar aí lJ vida c os costumes: o
todos os prazeres e em esgotá-los uté o rim . Parece-lhe tão pe­
seu julgamento decidirá se a cidade deve ser arrasada ou pou­
noso quantu fút il esfo rçar-se pur auquirir uma outra sabedoria:
pada. Ele descobre a cidade em suas fraquezas , seus defei tos, suas
[ . .. ] /a vérilub le sages.~e

mais graves defidê ncias morais mas. ao mesmo tempo. em lodo


Est de se/Foir f llir la frislesse
o brilho de sua civili zação t: todo o refi na mcnlO de sua vida
Dom fes bras de la volllpl é.
sodul . E. emite a sua scnten(,: a. Pelos mai~ hábeis ourives da cio

204 20\

.
dllde, manda forjar uma estatueta composta de todos os metais, rua, estabelecer uma escala determinada pela qual se possa afe·
desde os mais preciosos aos mais vis. para levá-Ia a lturieL " De­ rir os diversos valores de prazer e de desprazer. No ponto em
sejarias quebrar esta bela estatueta, porque ela não é inteira· que se es lava, a questão consistia toda ela em realizar a síntese
mente feita de ouro e diamantes? ", perguntou a Ituriel. O an jo metódica dessa bipolaridade : orientar o curso dissimulado das
çompreendeu: " Decidiu nem mesmo cogi tar de corrigir Perre. sensaçõcs de prazer e desprazer para a racionalidade, encontrar­
poli3, e deixar correr o mundo como ele estd; pois, disse ele, se lhes uma fórmula exata . Tudo o que faltava, aparentemente,
nem tudo vai bem, tudo é passável. Mesmo no Candide, onde
H para que esse objetivo fosse alcançado era a associação da psi·
ele esmiuçou o otimismo em todos 0$ seus traços, Voltaire não cologia e da matemática. da observação empírica e da análise
se desviou desse senlimento. Não pOdemos eSCl!par ao mal riem conceptua1. Essa é a síntese tentada por Maupertuis no seu
podemos extirpá-lo. Mas devemos deixar o mundo seguir o seu Essai de phitosophie morale. Partindo de uma certa definição de
curso, tanto o mundo ffsico quanto o moral, e adotar nele uma prazer e desprazer, ele procura representá-los de tal forma que
posição tal que nunca possamos deixar de lutar contra ele: pOis seja possível atribuir-lhes diretamente um valor quantitativo de·
essa é a (ante de toda a felicidade de que o homem 6 capaz. terminado, compará-los em tennos numéricos. O conhecimento
Essa mesma incerteza , que se evidencia na atitude de Vai· do mundo f{sico depende do princfpio da redução das diferen­
taite a respeito do problema da teodicéia , é igualmente obser· ças quali tativas que assinalamos entre os fenômenos a diferenças
vada nas outros pensadores do século XVIII . A literatura a res­ puramente quantitativas: o princfpio é o mesmo para os fenô­
peito desse problema é quase inesgot6vel: ele continua sendo menos psfquicos. A heterogeneidade que os dados imediatos da
visto como o verdadeiro problema fundamen tal que deve decidir experiência vivida manifestam nAo nas dispensa de estabelecer
da sorte da metafís ica e da religião. t por isso que se está sem· sua homogeneidade conceptual. Do mesmo modo. por diversas
pre voltando a ele, sem que, em boa verdade, o problema tenha que sejam as modalidades de prazer e desprazer, algo de co­
sido muito enriquecido, no fund o, com esses múltiplos debates. mum, en tretanto, lhes pertence: uma certa intensidade e uma
Retoma-se constantemente os argumentos de Leibniz , reinter· certa duração detenninadas que elas possuem, tan to umas quan­
pretados de mil maneiras , mas não se fa z nenhum esforço para to ou tras. Se conseguirmos submeter à medição esses dois ele­
oompreendê-Ios na unidade viva dos concei tos e dos principios mentos , estabelecer a relação segundo a qual a grandeza do todo
fundamentais da sua filosofi a_ O espírito sistemático desemboca manifes ta uma dependência da grandeza dos seus elementos eons·
no ecletismo com uma freqüência cada vez maior.te SUfl'!e um tituintes, o caminho estará aberto para uma solução; seria pos­
novo tema : a psicologia empírica apodera-se do problema e pf1> sível, nesse caso, proceder a um cálculo das sensações e dos
cura tratá·lo com os seus próprios meios. Parece abrir-se um sentimentos que nada teria a invejar ao rigor dos cálculos efe­
caminho: a questão de sabeT se o prazer ou a dor predomina na tuados em aritmética, geometria , Hsica . Assim , o problema de
existência humana despoja-se de sua antiga nebulosidade e as· uma "matemática das grandezas intensivas", de uma mathesis
senta agora numa base científica mais sólida. Se se pretende intensorum, aquele que foi concebido por Leibniz a propósito
resolver, em deCinitivo, essa questão, é impossfvel contentar-se da questão da nova análise do innnito, apresenta·se agora até no
com uma apreciação vaga ; é necessário encontrar uma medida dom ínio da psicologia . A lei que Maupertuis procura formular

:106 :107
aqui t rigorosamente análoga aos princfpios da estática e da di· das emoçõcs.u A ob jeção verdadeiramente decisiva de Kanl con
nâmica . Para fazer um c4lculo dos elementos de prazer e des· tra esse método só se manifesta de form.!! válida , en tretanto, em
prazer, é necessário partir do fato de que sua grandeza depende , sua própria funda mentação da ética . De fato , a crítica kantiana
por um lado, de sua força e, por outro, do tempo durante o qual devia minar de uma vez por todas o edifício argumentativo da
eles estão presentes e atuam na alma. Uma dupla intensidade filosofia popular do século XVIII. no tocante ao problema da
numa duração simples pode, portanto, apresentar globalmente leodicéia. Ao rejeitar o eudemonismo como fundamento da ética .
o mesmo resultado de uma in tensidade simples numa dupla priva o cálculo do prazer e do desprazer de toda significação
duração. De um modo geral, pode·se definir a grandeza de um posiliva . mo ra~ ou religiosa. Dor3vante, é em outra esrera que
estado feliz ou infeliz como o produto da intensidade do prazer se debaterá a questão do valor da vida. ' .~ muito fácil decidir
e do desprazer com a duração de um e de outro. Apoiando-se sobre o valor que teria a vida se ela fosse unicamente avaliada
nessa fórmula , Maupertu is tratou então de avaliar logo, em ter­ em :ermos de fruição (ou sej.!! , do fim natural da soma de todas
mos comparativos, os sistemas éticos segundo o seu valor de as inclinações, a felicidede). Esse valor ca iri a abai",o de zero;
verdade. Tudo bem considerado. esses sistemas só se distinguem com efeito, quem iria querer recomeçar uma vida nas mesmas
pelo tipo de cálculo de felicidade em que cada um deles se ba­ condições, ainda que mesmo de acordo com em novo plano
seia. Todos nos querem oferecer uma prescrição sobre a melhor elaborado por si (mas em harmonia com o cu rSO da natureza) e
maneira de chegar ao "bem supremo ", que consiste em fazer e",dusivamente assente na fruição? [' .. J Portanto, subsiste ape­
produzir na vida a maior soma possível de felicidade. Mas uns nas o valor que nós próprios atribulmos à nossa vida, não sim­
querem alcançar esse resultado através do aumento e acumula­ plesmente porque o fizemos mas porque o rizemos. de maneira
ção de bens, ao passo que outros querem evitar os males e infor­ intencional, independentemente da natureza, de tal modo que a
túnios. O epicurista esforça-.se por aumentar a soma de prazeres, própria existência da narureza só possa constituir um fim sob
o estóico por reduzir 8 de desprazeres ; um ensina que a finali­ essas condições." 10
dade da existência é alcançar a felicidade; o outro, que é a de A filosofia popular da época do Iluminismo n50 tinha a
evitar a infeli cidade." Esse c4lculo, como um todo, levou Mau­ maturidade necessária para pensar em tal finalidade para al~m da
pertuis, de resto , a um resultado pessimista : na vida comum, dimensão de prazer e desprazer. Somente dois pensadores se­
verifica-se que a soma dos males prepondera constantemente tecentistas conceberam essa mesma idéia . proveniente de duas
sobre a dos bens.tI Numa de suas obras pre-crfticas . o ENsaio direções diferentc s, que assim prepara ram indiretamente a pro­
para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, blemática kantiana e que, num certo sentido, pressentiram-na .
Kant remete-nos para o cálculo de Maupertuis, sem deixar de Graças a eles, o problema da tcodicéiR não 56 loi tratado de uma
lhe combater tanto os resultados quanto o método. O problema nova maneira mas, sobretuJo, adqui riu uma nova significação
assim apresentado, aCima ete, é insolúvel para o homem por­ tcórica. A metafísica tinha, nesse ponto, esgotado todas as suas
que só podem ser levadas em conta as sensações da mesma es­ possibilidades numa série de tentativas estéreis; atingira um li­
pécie, ao passo que nas condições complexas da vida todos os mite em que não havia, para ela. qualquer futuro nem um recuo
estados afctivos súo diferentes por força da própria divcrsidade possível. Para evitar remeter-se uma vez mais o saber A fé, para

208 209
não o mergulhar de novo no abismo do irracional de que falava nização determinada , em ~ eu devir e em seu movimento um;!
Pascal, s6 restava um caminho: convocar li ajuda de outras for­ ordem e uma regra rítmicas: eis o fenômeno primordial que
ças intelectuais e confiar-lhes a sorte do debate. Para chegar ao prova de imediato a sua origem puramente espiritual, "super­
centro do problema da teodicéia, o pensamento do século XVIII sensível ". Os sen tidos como tais não são capazes de explicar
deve realizar, pois, uma espécic dc desv io. Em vez de partir de esse fenômeno e ainda menos de compreender a sua origem
uma explicação metaHsico.-teológica, da análise da essência di­ última. Ar onde os sentidos agem sozinhos, cnde as relações
vina para daí concluir, por vis dedutiva, os diversos atributos que estabelecemos entre o mundo e nós próprios assentam uni­
de Deus, em vez de se mergulhar, portanto. na essência do ab­ camente nas necessidades e impulsos sensíveis, o reino das for­
soluto . ela dedica-se doravanle a desenvolver in teiramente todas m!lS aind a não é acessível. Assim, todo o conhecimento da
as energias constituintes, criadoras, que o eu contém em si. -e o for ma da~ coisas é vedado ao animal , porque os objetos do seu
único caminho de que se pode esperar uma solução imanente ­ meio só agem sobre ele como excitantes, paTa despertar-lhe os
uma solução que não force o espírito a ultrapassar seus próprios instintos e ocasionar·lhe certas reações. Com efeito. esse conhe­
limites. E eis que de novo se manifestam os dois temas funda· cimento não é nele despertado sob a ação do desejo , da ativi­
mentais que irão adquirir, no movimento das idéias do século dade imediata, mas pela força da intuição pura - uma intuição
XVIII , uma importância cada vez maior e uma consciência cada que permanece pura de toda e qualquer tentativa de apossar-se
vez mais clara de sua especificidade. Por um lado. é o problema do objeto, de monopolizá-lo. Shaftesbury viu nessa faculdade de
estético, por outro, o problema do direito e do Estado que assu· pura contemplação, nesse prazer que se conserva puro de todo o
me a liderança desse movimento . Nenhum dos dois parece estar, "interesse", a força primitiva em que assenta toda a fruição da
nem um pouco, em estreito contato ou em ligação com o pro­ arte, assim como toda a criação arHstica. l! nela que o homem
blema da teodicéia e, no enlanto, verifica-se que a partjr de am­ é verdadeiramente ele próprio, é graças a essa faculdade que ele
bos produziram-se uma transformação característica e um apro­ participa na felicidade suprema , a única felicidade que lhe ~
fund amento desse mesmo problema. O primeiro pensador a atra­ outorgada. Assim foram radicalrr:ente subvertidos todos os cri·
vessar aqui a ponte foi Shaftesbury. Fundou uma filos ofia que térios, todos os valores que temos o hábito de aplicar ao exame
não s6 comporta uma parte estética de grande importância teó­ do problema da teod:céia . Vé-se, como efe ito - e vê-se por
rica mas , sobretudo, uma filosofia em que a estética constitui quê - , que o simples cálculo dos bens e dos males no mundo
a verdadeira chave do conjunto. Segundo Shaft esburv . a questão fica necessariamente muito aquém do sentido autêntico e pro­
da natureza da verdade não se separa da da beleza: as duas fundo desse problema . O conlcúào da vida não deve definir-se ,
juntam-se em sua raiz e princípio último. Toda beleza é ver­ a esse propósito, por sua matéria, mas por sua forma. Não de·
dade _ . do mesmo modo que toda verdade, em sua pr6pria pende do grau de prazer que a vida nos concede, mas da ener­
substância, percebe-se e concebe-se graças ao sentido da forma , gia puta das (orças criadoras pelas quais ela se dá um conteúdo.
ou seja , ao sentido dI) beleza . Toda a realidade participa na for· S nessa direção que Shaflesbury prOCura a verdadeira "teodi.
mil ; longe de ser uma massa informe e desordenada, ela possui céia", isto é, a justificação derinitiva da existência; não na esrera
uma proporção interior, conserva em sua existência uma orga­ do prazer e da dor mas na do livre esboço interior, da criação

210 211
regida por um protótipo c ~;;:;. :lr'quéti po puramente espirituais. o ponlo onde a q,.uest50 da verdadeira signiFicação da cxistênci ..
Essa criaçiio promeléica, que supc:rtl de longe a simples fruição humano , de sua felicidade ou de sua miséria, pode ser rinal­
e em nenhum ponto lhe é comparável, revela·nos a verdadeira mente sclucionnda . Tal é a visão das coisas que ele encontrou
divindade do homem e, por conscQuin tc, a divindade do todo .2 1 no estudo e na crítica das instituiçõcs políticas. Diz ele !las
Mas é por um outro caminho. nllma direção perfeita.mente Confissões: "Vi que tuào dependia rad icalmente da política c
origina1 do pensamento do século XV III , que somos conduzidos que, rosse qual fosse c ponto dc vista que se adotasse, nenhum
desde que consideremos a posição de Rousseau 8 respeito do povo jamais seria senão aquilo que a natureza do seu governo
problema da teodicéia. n t um personagem da estatura de nada o fizesse ser; assim, essa grande q uestão do melhor governo
menos que um Kant para reconhecer expressamente em Rous. possrvel parec ia-me reduzir·se a isto: qual é a natureza do go·
seau o mérito de ter, nesse domínio , transposto a última etapa. verno próprio para formar um povo que seja o mais virtuoso,
"Newton foi o primeiro a ver 11 ordem e a regularidade unidas o mais sensato, enfim, o melhor, se tomarmos essa palavra no
à perfeita simplicidade onde. antes dele, não se descortinavam seu sentido mais am pl o?" Uma nova norma foi assim aplicada
senão desordem e confusa diversid ade: e. desde en tão, os come. à existência humana: em vez da simples exigência de felicidade,
tas deslocam·se em trajet6rias geomét ricas. Rousseau foi o pri· a idéia de direito e de just iça socia l, reconhecida como a ver­
meiro a descobrir, sob a divenidade das formas convencionais, a dadeira medida da existência humana, como a escala de valores
natureza profundamente escondida do homem e a lei secreta se­ em função da qual ela deve ser vivida. E o emprego desses
gundo a qual suas observações justificam B Providência. Antes , novos critérios levou primeiro Rousseau a um julgamento extre­
tinha-se por válidas as objeções dc Alphonsus e de Manes. De­ mamente negativo. Todos aqueles bens que a humanidade ima­
pois de Newton e Rousseau, Deus está justiricado e daqui em gina ter adquirido no transcorrer de sua evolução, esses tesouros
diante a dou trina do Papa é verdade ira".:s Essas rórmulas são, pretensamcnte acumulados, os da ciência, das artes, as alegrias
à primeira vista, difíceis de interpretar : não se encontra em de uma ex.istência nobre e requintada, tudo isso é reduzido a
Jean-Jacques Rousseau. por assim dizer, nada que possa ser in· nada pela crftica inexorável de Rousseau. Ao invés de esses bens
terpretado como um debate expHeito, como urna explicação ra· terem podido renova r o valor e o con teúdo da vida, eles apenas
cional do problema da teodicéia, compurável à qu(' encontramos a distanciaram cada vez mais da sua {ante primeira e, em deCini­
em Leibniz , Shaftesbury ou Pope . A originalidade. l\ verd aôo!i~a tivo, aHenaram·na inteiramente do seu sentido autêntico. Desse
importância de Rousseau , reside num outro domín io muito dife­ ponto de vista, no .quadro que ele traça das formas de vida
rente: não é ao problema de Deus mas ao problema do diTCito tradicionais e convencionais. da existência do homem na socie­
e da socied ade que o seu pensamen to, como um todo. se dedica. dade, Rousseau concorda surpreendentemente com Pascal. Ele
No entanto, foi precisamente através dele que Rousseau nos foi o pr imeiro pensador do século XVIII que, de novo, toma a
apresentou uma perspectiva e uma abordagem novas. Foi o pri­ sério as acusações pascalianas. que Jhes avalia todo o peso. Em
meiro. sem dúvida, a elevar o problema acima do plano da vez dc as enfraquecer, de as lançar na conta, como fez Voltaire,
existência individual para situá·lo expressamente no nfvel da do humor masoqu ista de um misantropo jrrealis:a, Rousseau re­
existência social. Foi ai que Rousstau acredita ler descoberto toma ao âmago da questão. A descrição apresentada pelos Pen­

2[2 2 [3
sarnentos de Pascal da grandeza e da miséria do home!TI reencon­ Portanto, Rousseau concede a Pascal todas as prem issas (!m
tra-se) traço por traço , nas primeiras obras de Rousseau) no que este fundamen tou a sua argumentação. Jamais procurou em­
Discurso sobre as artes e as ciências e no Discurso sobre a de­ belezar ou enfraquecer: tal como ele, descreve o esta do presente
sigualdade. Tal como Pascal, Rousseau apenas vê nas bagatelas da humanidade como o estado da mais profunda degradação .
com que a civilização dotou os homens futilidades e bens ilu­ Contudo, ora reconhece o fenómcno donde partiu Pascal, ora se
sórios. Como ele, insiste no fato de que toda essa riqueza apa­ recusa a admitir as explicações propostas pela metafísica mís­
ratosa não tem outro papel senão o de cegar o "!:lomer:t para a sua tica e religiosa de Pascal. Seus sent imentos, tanto quanto seu
pobreza interior. O homem só se refugia no mundo, na socie­ pensamento, revoltam-se con tra a hipótese de uma perversão
dade, numa multidão de ocupações e divertimentos díspares original da vontade humana. Para ele, como para toda a sua épo­
porque não suporta a sua própria presença, porque ver-se, con­ ca, a idéia de pecado original perdeu toda força e todo valor.
templar-se a si mesmo o espanta e o enche de medo. Toda essa Sobre esse ponto, ele não comb~teu o sistema ortodoxo menos
agitação incessante e vã é fruto do pavor que o repouso lhe severa e radicalmente do que o fizeram Voltaire e os pensadores
caWla. Pois se ele pudesse ficar quieto por um instante a fim de da Enciclopédia. Foi justamente a esse propósito que se pro­
adquirir verdadeiramente consciência de si mesmo, de reconhe­ du ziu entre ele e a doutrina eclesiástica um conflito implacável e
cer tudo o que é, o homem cntregar-se-ia ao mais profundo de­ um rompimen to definitivo. No julgaDen~o que pronunciou sobre
sespero. Quan to às forças que no estado atual , empírico, da so­ a obra de Rou sseau, a Igreja logo destacou, com toda a lucidez,
ciedade aproximam e unem os homens, o julgamen to de Rousseau essa questão central como o único ponto verdadeiramente crí­
tampouco é diferente do de Pascal. Insiste continuamente nesse tico. A carta pastoral por meio da qual Chrístophe de Beaumont,
pon to: em nenhuma parte existe um ethos primitivo, uma von­ arcebispo de Paris, condena o Emílio, enfatiza, com efeito, que
tade de viver em comum nwna unidade verdadeira, nenhuma a tese de Rousseau , sustentando que os primeiros instintos da
simpatia natural une os homens entre s::. Todos os vínculos natureza humana são sempre inocentes e bons, encontra-se em
absoluta contradição com tudo o que as Escrituras e a Igreja
sociais não passam de mera ilusão. Amor-proprio e vaidade, von­
sempre ensin aram a respeito da natureza do homem. Rousseau
tade de dominar o cutro e de estar sempre em posição de des­
enfrenta, com efeito, um dilema a que, aliás, não tenta escapar .
taque) tais são os verdadeiros grilhões que retêm a sociedade
Pois se reconhece o fato de que o homem é "degenerado" , se des­
humana. 24 "Todos, com um belo verniz de pallivras, empe­
creve essa degeneração eom um rigor cada vez maior e cores
nham-se em ludibriar os outros sobre os seus verdadeiros propó­
cada vez mais sombrias, corno não lhe reconhecer a causa, como
sitos; ninguém é enganado e nem um só é tão 1010 que se iluda, furtar·se à conclusão de que o homem é " radicalmente mau"";'
embora todos falem como ele. Aparentemente, todos buscam a Rot;.sseau desfaz-se desse dilema com a introdução da sua dou­
felicidade , ninguém se preDcupa com a realid<lde. Todos empe­ trina da natureza e do "estado de natureza". Em todo o jul­
nham seu ser na aparência; todos) escravos e víti mas do amor­ gam en to que formulamos sobre o homem , cumpre-nos distinguir
próprio, não vivem para viver mas para fazer crer que vi­ • sempre com o maior cuidado se o nosso enunciado refere-se ao
veram."2;; homem da natureza ou ao homem da cultura - se se trata do

214 215
"homem natural" ou do "' homem artificial". Enq uanto Pascal J responsabilidade exclusiva por essa espécie de amor-próprio. n
explicava as contradições insolúveis que 11 natureza humana nos ~!a que faz do homem um tirano contra a natureza c cOntru si
mesmo. Desperta necessidades e paixões que o homem natural

apresenta dizendo que, de um ponto de vista metafísico, está·


vamos lidando com uma dupla natureza, para Rousseau essa jamais conheceu e coloca·lhe nas mãos os recursos sempre novo~

dupla natureza e o conflito que daí resuha residem no próprio para saci á·las sem limites nem freios . A sede de dar o que falar

seio da existência empírica. no desenvolvimento empírico do hO­ cle si, a ânsia de se distinguir dos oulros; ludo isso nos torn<1

mem. Foi esse desenvolvimento que obrigou o homem a sub· 'incessantemente estranhos a nós . mes m~, tudo isso nos trans·

meter-se ao jugo da sociedade, condenado-o assim a todos os porta, de certo modo, para fora de nós mcsmos. 2tl Mas essa

males morais, alimentando nele todos os vícios, orgulho, vai­ alienação esta rá verdadeiramente inscrita na natureza de toda

dade, sede inextinguível de poder. "Tudo está bem" - diz sociédade? Não será possível conceber uma comunidade real·

Rousseau no começo do Emílio - "ao sair das mSos de Autor mente humana que não tivesse necessidade de recorrer à força,

das coisas ; tudo degenera nas mãos dos homens." Portanto, Deus à cupidez e à vaidade, que se ali cerçasse inteiramente na sub·

é desculpado e a responsabilidade dos males cabe unicamente I missão de todos a uma lei reconhecida interiormente como coer·

ao homem. Mas essa c..lpa pertence a este mundo, não ao "além", civa mas necessária? Tais são as lndagaçõcs que Rousseau for·
não é anterior à existência histórica empírica da humanidade, mula e que tratará de resolver no Contrato social. Na suposição
apareceu ao mesmo tempo que esta: por isso é que devemos de que desmorone a forma opressiva de sociedade que prevale·
buscar exclusivamente nesse terreno a solução e a libertação. ceu até os nossos dias e de que no seu lugar surja uma nova
Nenhum socorro vindo do alto, nenhuma assistência sobrena­ forma de comun idade ética e política, uma sociedade em cujo
tural pode propiciar·nos essa libertação: somos nós próprios seio cada um, em vez de estar submeüdo à arbiuariedade dt
quem deve concretizá·la e enC'"1ntrar a resposta . Essa conclusão outrem, somen te obedecerá à vontade geral que ele conheceria (.
indicará a Rousseau c novo caminho que ele percorrerá até reconheceria como sua - não teri a soado a hora da libertação?
o fi m em suas obras polfticas, sem se desviar jamais do rumo Mas é em vão que se aguarda ser emancipado desde fora. Ne·
traçado. A teoria ético-política de Rousseau situa a responsabi· nhum deus nos trará 8 alforria : todo homem deve tornar-se o
lidade num lugar onde, até então, ninguém imaginara sequer seu próprio salvador e, num sentido ét ico , o seu próprio criador.
procurá·la. O que coõlstitui a verdadeira importância hist6rica e A sociedade, sob a form a que ainda prospera , infligiu à huma­
o valer sistemático de sua teoria é o fato de que ela criou um nidade suas fer idas mais cruéis: é ela quem pode e deve curar
n
novo sujeito de Uimputabilidade , que não é o homem individual essas mesmas feridas pela sua própria renovação. Tal é a solução
mas a sociedade humana . O indivíduo como tal, ao sair das que a Filosofia do direito de Rousseau oferece para o problema
mãos da natureza, ai nda não está em condições de escolher entre da teodi céia.: T Foi ele, de fato , quem situou o problema num
o bem e o mal. Abandona·se ao seu instinto natural de conser· terreno inteiramente novo, fazendo-o passar do plano da metaf(·
vação ; é dominado pelo U amour de soi", mas este aindll não se sica pa ra C centro da ética e da política.
converteu em amor·próprio (amour propre), o qual só se com­ Detenhamo-;!Os aqui por um instante a fi m de cJC:aminor,
praz e s6 se mitiga na opressão de outrem. A sociedade tem a uma vez mais, em seu conjunto. o desenvolvimento do problema

216 21 7

da teodicéia no século XVIII: um traço fundamental, simultA' f OnDa especUica de cedo. uma delas, 8 contribuir para 11 !sua
neamente muito genético .e muito caracterfstico do pensamento determinação com uma participação decisiva . Portanto, nfio se
dessa época, logo se destaca, a saber, que o século XVIII não rompeu totalmente a re lação entre a idéia de Deus, por uma
formul ou espontancamente o problema da tcodicéia . E um pro­ parte, e, por outra, as idéias de verdade, moralidade e direito,
blema que ele herdou dos grandcs sislemas do século XVII e mas o sentido dessa relação foi medado. Produziu-se, de ce rto
que lhe fo i tra nsmitido sob uma fonna con dicionada por csses modo, uma "muda nça de sinal": a idéia fundadora passa à con·
sistemas. De fala, parece que Leibniz, muito especialmente, ti­ dição de fUlldada (Begrütldelen) e o que até então servia para
nha esgotado todas as possibilidades conceptuais - a filoso fia justificar é agora o que exige uma justificação. E, finalmente,
do Iluminismo nada acrescentou de essencial às suas idéias nem a pr6pria teologia do sécuJo XV III é an·astada nesse movimento.
às suas perspectivas teóricas. E por isso que ela ai nda fala intei· Ela renuncia de mola próprio ao primado que até então reivin·
ramen te a litlguagem da metafísica, serve·sc de conceitos elabo· dicava para si: em vez: de situar no absolu to a ordem de valores,
rados pela metaffsica. Mas dentro dessa concha formal instau­ submete·se a certas normas provenientes de outros domínios, for­
ra·se progressivamente um conteúdo novo. Pari indo do clomínio necidas pela "razão" na medido em que esta representa a tota·
da teologia e da metafísica teológi ca, o problema adq u.i re uma lidade das forças espirituais independentes. Assim se consumou,
orientação intc1ectuill especificamente novlI. Essa mudança in­ nesse domínio, a ruptura com o dogma do pecado original. A
lema realiza·se à medida que o conteúdo concreto da cultura rejeição desse dogma constitui 8 marca característica da nova
espiritual da época iluminista penetra no problema e transíor­ orientação da teologia do Iluminismo, tal como se desenvolveu
ms.a a longo prazo. Assim se realiza, no domínio das ciências
OI especialmente na Alemanha, onde se encontram os seus repre­
morais · , o mesmo processo de "secu larização" que já observa· sentantes mais importantes. Todos consideram a idéia de um
mos no do-:ninio das ciências da natureza. As idéias te6ricas peccatum ariginale transmitindo-se de geração em geração como
elaboradas pela metafísica do século XVII ainda estão forte­ perfeitamente absurda, uma ofensa aos prindpios mais elemen­
!Dente lastreadas no pensamento teológico , com toda a sua orl· tares da lógica e da ética. O que é deveras notável é que, de um
ginalidadc e independência. Para Descartes e Malebranche, para modo geral, eles não abandonaram nem um pouco o terreno da
Spinoza e Leibniz, não existe nenhuma solução do problema do dogmática como tal. Mesmo naqueles que tentam salvar 03 ele·
verdade ql:e não tenha a mediação do problema de DeuJ: o c0­ mentos constitutivos dessa dogmática à custa de algumas modi­
nhecimento da essência divina constitui o princípio supremo do ficações e reinterpretaç6es, a idéia de que o homem perdeu todo
conhecimento donde decorrem , por via dedutiva, todas as outras :;) poder por sua queda, que sem a graÇA divina ele é. incapaz de
cer.ezas. Ora, no pensamento do século XVIlI , o centro de gra­ exercer o bem e a verdade, é rechaçada sem hesitação. A polê­
vidade da questão desloca·se : a física, a história , O direito, o mica contra Santo Agostinho prossegue, pois, ao longo de toda
Estado, a arte escapam cada vez mais à dominação e à tutela essa literatura "ncoI6gica" , cujo tom sobe à medida que o tempo
da metafísica e da teologia tradicionai s. Essas disciplinas dei­ passa .u Reimarus, em sua Apologia, empenha toda a sua energia
xaram de esperar que a idéia d~ Deus as ratifique e legitime; para sustentar que o ato de pecado reside nos pensamentos, nos
peJo cont rário, são propensas a modelar essa idéia segundo a tiesejos ou nas obras, que ele está rigorosamente ligado, porton·

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to, à consciência do ~ LI}e lto aiuante ~ não poderia transmitir-se samente na presença de nossa incerteza e de nossas lacunas. Mas
fi sicamente. passar de um sujei to a outro. E a mesma coisa vale essa limitação não apresenta, na realidade, nenhum perigo ­
para a salvação e a justi fi cação: assim como outrem não pode por muito pouco que tenhamos consciência dela . A ciência corri·
cometer por mim uma falta grave, tampouco pode adquirir por ge por si mesma as faltas que comete, em virtude do seu pro·
mim o mérito moral. No desenvolvimento interno do protestan­ gresso interno, e os erros em que ela pode envolver·nos eliminam­
tismo uma importante mudança foi assim realizada. Num certo se naturalmente, desde que a deixemos seguir seu curso de
sentído, o combate prossegue entre Lutero e Erasmo mas, dessa maneira espontânea. Muito mais graves são os erros que, em
vez, pendendo a favor do último. A profund a ruptura que tinha vez de surgirem de uma insuficiéncia de saber, têm por causa
oposto 8 Renascença e a Reforma, o ideal humanista de liber· uma falsa direção da pesquisa. O que mais se deve temer não
dade c de dignidade humana, vê-se dessarte reparada. A época é a falta mas a perversão. E essa perversão - invcrsão e fnJsi ·
iluminista ousa de novo valer-se desse postulado fundamental ficação dos verdadeiros critérios científicos - sobrevém quando
que deflagrara, sob a égide da Renascença. a luta contra os gri­ pretendemos antecipar o objet ivo a alcançar, Hxá·lo an tes da
lhões da Idade Média. Assim se realiza essa concepção em que investigação. O inimigo da ciência não é 8 dúvida mas o dogma.
Hegel. em sua Filosofia da história, vê a essência autên tica e a O dogma não é a ignorância pura e simples mas a ignorância
verdade do protestantismo. Ao reconciliar-se com o Humanismo, que se arvora em verdade, que quer impor-se como verdade:
o protestantismo converteu·se na religião da liberdade. Enquan­ eis o perigo que ameaça verdadeiramen te o conhecimento em
to o conflito em torno do dogma do pecado original devia con­ suas estruturas mais profundas. Pois já não se Irala, nesse caso,
durir na França a uma rigorosa separação da religião e da filo­ de um erro mas de uma imposlura, não de uma ilusão involun­
sofia, a idéia de protestantismo podia transformar-se na Alema­ lária mas de uma mistificação na qual o espírito cai por sua
nha até absorver as novas correntes intelectuais e as atitudes própria culpa e na qual se enterra cada vez mais profu ndamente.
mentais que as tinham engendrado, até de'iffiontar e ab,lOdomn E essa regra não é válida apenas para a ciência mas também
a forma histórica do protestantismo herdada do passado para para a fé. Com efeito, o que verdadeiramente se opõe 11 fé não
melhor valorizar a pureza do seu ideal primitivo.211 é a incredulidade mas a superstição; pois esta afela as próprias
raízes da ré, polui a fome donde jorra a verdadeira religião.
Vemos, portan to, que a ciência e a fé enfrentam um adversário
A idéia de tolerincia e a fundaç lo da "religiio natural" comum : não existe tarefa mai s urgente do que a luta a travar
contra esse adversário. e necessário que ciência e fé estejam
:e um princípio geral da fil osofia iluminista, centenas de unidas nessa luta: somente na base de seu mútuo acordo será
vezes citado sob diversas fonnas e com diversos propósitos, que possível repart ir seus respectivos val o r~ s e determi nar suas fron­
OS mais graves obstáculos com que nos deparamos na busca da teiras respectivas.
verdade não são as imu fi ciências do nosso saber. Por outro lado. 13ayle é o primeiro pensador a adotar nitidamente essa p0­
não há dúvida de que O nosso saber sorre com tais insuficiên­ sição. No seu Dictionnaire hístorique et critique, ele realizou
cias, de que cada passo em rrente da ciência nos coloca peno­ a obra fundllmental na qUil1 todos os trabalhos ulteriores dev iam

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ir buscar seus princfpios e suas justificações. 1: aqui que o Eles já aparecem nitidamente em Descartes, ao lançar as pcdras
ceptidsmo de Bayle se enraíza e que ele revela sua verdadeira fundamentais do racionalismo. Descartes, com efeito, parte do
fecundidade, sua sign ificação eminentemenle positiva : "Não sei princípio de que o conhecimento humano está sujeito às mais
se não se poderia assegu rar que os obstáculos de um bom exame diversas ilusões, mas tcm a obrigação de evitar q ue essas ilusões
vêm menos de que o Espidlo está vazio de Ciência do que de o desviem do caminho da verdade e o façam mergulhar no erro.
estar repleto de preconcei tos." Dessa frase, que Se encontra no Pois a ilusão provém dos sentidos OU da imaginação, ao passo
verbete " Pelli son" do Dictionnaire, poder-se-ia fazer a divisa de que o erro significa uma falta de julgamento, e que o julga­
toda a sua obra . Bayle acha por bem não locar no conteúdo da mento é uma livre operação do entendimento, a quem cabe toda
fé - evita toda e qualquer crítica explícita desse conteúdo. A a responsabilidade pelo ato de julgar. Só do ent endimento de­
atitude que ele combate com todas as suas forças é aquela para pende ceder ao impulso dos sentidos, abandonar-se às seduções
a qual lodos os meios são bons para consolid ar a fé, aquela que da imaginação ou recusar-se a anuir àq uel e ou a estas. Ele pode
amon toa confusa mente ycrdades e qu imeras. lucidez e precon­ e deve, se os dados de que dispõe são insuficien tes para consti­
ccito, razão e paixão , pondo como única condição que sejam uti­ tuir um verdadeiro julgamento e atingir uma perfe ita certeza,
lizáyeis, de um u maneira ou de outra , no interesse superior da deixar em suspenso a sua decisão. Somente no caso de julgar com
obra apologética . Com tais procedimentos, o con teúdo da fé oão precipitação, de deixar-se levar a pronunc iamentos sem dispor
é salvo mas destruído, porquanto esse conteúdo só pode subsisti r de premissas completas, é que irá fatalmente cair no erro e na
em sua p ureza. O mal fundamental que cumpre combater não incerteza, que não são apenas defeitos do entendimento mas
é, portanto, o ate ísmo mas a idolatria, não a descrença mas a refl etem, sobretudo, uma vontade defeit uosa . ! à vontade que
su perstição. Essa máx.ima de Bayle é uma antecipação da tese cabe dirigi r o curso do conhecimento, e a vontade possui o meio
cen tral do enciclopedismo francês em matéria de crítica religiosa. de evitar lodos os passos em ralso, que é ter sempre presente
Diderot refere-se-Ihe assi duamenle. No artigo " Pirronisl1lo " da essa regra uni versal e absoluta de só pronuncia r julgamentos ali­
Enciclopédia, ele declara q ue Bayle tem poucos concorrentes na cerçados em idéias claras e dist intas. Ao reassumir O princípio
arte dos raisonnemenrs e, sem dúvida, nenhum que o supere. cartesiano, o Il uminismo é levado a postular a regra que, segun­
Embora acumule dúvidas sobre dúvidas, não pára de progredir do Kanl, contém a essência autêntica da Aulkliirung: "O Ilumi­
segundo um plano melódico ; um artigo do seu Dicionário é um nismo representa o homem saindo da condição de menoridade
pólipo vivo que a si lllesmo se fragmenta numa porção de outros em que se mantinha por sua própria culpa . A menoridade é a
pólipos, lodos vivos e que se geram uns aos outros. O próprio incapacidade de servir-se do seu entendimento a não ser sob a
Diderot niio se ca nsa de repe ti r que a superstição é um pior des­ direção de uma ou tra pessoa. Diz-se que está em condição de
conheci mento de Deus ('. uma ofensa mais grave contra Deus do menoridade por sua própria culpa quando a causa não é o defei·
que o ateísmo, no sentido de que a ignorância está menos longe to do entendimento mas s6 lhe falta a decisão e a coragem
da verdade do que o pr econceito. ~o Compreender-se-á melhor o para usá-lo sem ser dirigido por quem quer que seja . Sapere
sentido e o conteúdo desse enunci ado se recordarmos os pressu­ aude ! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimen­
postos metodológicos e epistemológicos em que ele se baseia . to! Tal é a divisa do Ilum inismo." 3l Essa divi sa explica por

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que a filosofia do lIuminisrno julga e aprecia de modo direreme última orde.m, é possível encontrar uma lorma de defesa da tole­
as diversas circunstâncias suscetíveis de engendrar o erro. Todos rância que se resolve num indiferentismo puro e si.mples. No
os fracassos que o conhecimento sofre não são faltas: há aqueles conjunto, é a tendência inversa a que predomi!la : o princípio
que apenas exprimem os limites da nossa própria natureza e de liberdade de crença e de consciência é a ex:pressão de uma
que, portanto, são necessários e inevitáveis. Esse ser a quem o nova força religiosa positiva que, para o Sécuio das Luzes. é
próprio Dcus impôs certos limites intransponíveis, como poderia realmente determinante e característica. A consciência religiosa
ele responsabílizá-Io por manter-se dentro dos limites que assim adquire uma nova form a, a fim de se afirmar de modo claro e
lhe foram designados e por não almejar a onisciência? Temos firme. Essa {onna não podia realizar-se sem uma inversão com­
que responder, não por tai s limi tações do nosso saber mas, pelo pleta do sentimento religioso e dos fins da religião. Essa mudan­
contrário, pela loucura de pretender libertarmo-nos delas e de ça decisiva produz-se no momento em que, no lugar do palhas
ousar, com uma segu rança dogmática, fonn ular julgamentos so­ religioso que agitava os séculos precedentes, os ~cul os das
bre o universo e sua origem . A verdadeira descrença não se guerras de religião, surge um pUtO ethos religioso. A religião não
manifesta na dúvida - pelo contrá rio, na dúvida exprimem-se deve ser mais algo a que se está submetido: ela deve brotar da
a prudênci a, a humi ld:lde simples e sincera do conhe<;imento - , própria ação e receber da ação suas determinações essenciais. O
mas naquela segurança afetada que se vangloria de sua própria homem não deve ser mais dominado pela religião como por uma.
força estranha; deve assumi·la e criá-Ia ele próprio na sua liber~
opi ni ão e tripudia sobre todas as outras. Num sentido ético e
dllde interior. A certeza religiosa deixou de ser a dádiva de uma
religioso, essas lacunas do saber, até mesmo as fa lhas e imper­
potência sobrenatural, da graça divina ; somente ao homem com­
feições do pensamento. não contam aos olhos do Se r supremo.
pete eJevar-se até essa certeza e nela permanecer. Desse princípio
Diz Diderot: "O Au tor da natureza, que não me recompensará
teórico decorrem, como de si mesmas, por uma ncessidade in·
por ter sido um homem de espfrito. tampouco me condenará às
terior, todas as conseqüências que o século XVIll dele extraiu,
penas eternas por ter sido um néscio. " 3:! O que conta, em con­
todas as exigências concretas e práticas que assumiu. Apresen­
trapart ida, o que deve figurar no registro ético, é essa fé "cega~
ta·se, porém, uma conseqüência que deve parecer bizarra a todos
que se fccha deliberadame nte a toda investigação e se coloca em
os que partem de uma concepção rotineira da época iluminista .
posição defensiva contra todo espírito de livre exame; uma fé Se existe um predicado de que o Ilumini smo se vê atribuído ou
que não se contenta em limitar o conteúdo do conhecimento mas que ele mesmo se atribui com perfeita convicção, é o de ser, se·
quer ainda destruir nele a natureza, a forma e o princípio. gundo parece, a época do infelecttuJ/ismo puro, subscrevendo sem
Vê-se, pois, que se desconhece, que se interpreta de modo reservas ao primado do pensamen to, da pu ra especulação teórica.
totalmente errôneo a tolerdnda cuja necessidade é proclamada Essa visão das coisas não é canCionada, en tretanto, pela forma­
pela filosofia iluminista, atribuindo-lhe um sentido pu ramente ção e desenvolvimento de seus ideais religiosos . Muito pelo
negativo. A tolerância é uma outra coisa muito diversa d,} reco­ contrário, é a tendência oposta a que nitidamente domina: sem
mendação de uma atitude lassu e indiferente a respei to das ques­ dúvida, o pensamento iluminista esforça-se por fundar uma" re­
tócs religiosas. Somente em alguns pensadores insignifica ntes . de ligião nos li mites da simples razão~, mas busca também, por

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outra parte, e com empenho não menor, emancipar-se da domi­ esse rema e converte-o no argumento supremo a (avor do rato
nação do entendimento. O que é que ele não se cansa, justa­ de que o próprio âmago da religião e da moralidade não depende
mente, de censu rar no si stema dogmático que tanto combate? das representações particulares da fé . Nas Cartas persas. de
De que lhe falta o próprio núcleo (Mittelpunkl) da certeza reli· Montesquieu, a comparação entre o Oriente e o Ocidente rara­
giosa, aO considerar que a fé consiste em ter por verdadeiras mente se decide em favor deste último: a observação cândida e
determ inadas teses doutri na is e ao pretender encerrar a fé nos o senso crítico do persa descobrem por loda parte o arb jtrârio,
dogmas. Tal limitllção não é possível nem desejável: fari a da o convenciona l, O contingente, no que, segundo a 6plica do
religião urna simples opinião, privando-a de sua virtude própria, próprio país. passa por ser o próprio modelo da sabedoria c
que é prática e moral. Quando essa virtude é aluante, quando da santidade. Por esse meio foi criado um certo gênero literário
eLa se manifesta em sua força e em sua verdade, estamos muito que serviu depois, inúmeras vezes, para a crítica e a polêmica.
além das representaçóc:s e dos conce itos religiosos. Essas repre­ Mas essa polêmica não pretendia ser, de manci ra nenhuma, ape­
sentações e esses conceitos nunca devem ser tomados por outra nas destrutiva; ela quer servir-se da destruição como de um
coisa se não O manto ex terior de que se reveste a certeza religiosa. meio de construção. Partindo da estreiteza e das Iimitaçõcs do
São complexos e ambíguos, mas não temos por isso que deses­
perar da unidade da religião. pois a diversidade apenas diz. res­
~ dogma , o homem avança para a liberdade de uma consciência
religiosa verdadeiramente universal. DiderOl, em seus Pensamen­
peito aos sinais sensíveis, não ao conteúdo supra-sensível que tos filosóficos, forneceu desse sentimento da época a fónnula
bu sca nesses sinais uma figuração necessariamente inadequada. mais vigorosa e mais n(tida : " Os homens baniram a Divindade
A teologia do Iluminismo professa , portanto, O mesmo princrpio dentre eles; relegaram·na para um san tuário; as paredes de um
'que Nicolau de Cusa form ulou três séculos antes; adere com templo limitam-lhe a visão; nada existe do outrO lado. Que in­
toda a firmeza ao partido de uma religião única dissimulada sob sensatos sois! Destruam esses recIntos que cerceiam as vossas
a diversidade dos ritos e conflitos de representação e de opinião. idéias; ampliem Deus; vejam-no por toda parte onde ele está,
Mas, a partir da Renascença, o horizonte ampliou-se muito e é ou digam que ele não existe." U Essa luta peja "ampliação" da
um círculo ainda mais vasto de fen ômenos religiosos que ela idéia de Deus em que o século XVlll reuniu todas as suas forças
quer englobar nesse mesmo princípio. Já no De poce fidei, O intelectuais disponfveis não preci sa ser aqui descrita em deta·
combate pela verdadeira religião desenrola·se não s6 entre cris­ lhe. Basta indicá-Ia em seus gra ndes traços, destacar· lhe os ternas
tãos , judeus e muçulmanos, mas também com os pagãos, os tilr­ gerai s. As armas dessa luta já tinham sido forjadas desde o
taros e os citas, que não pretendem menos do que os outros século XVI( : é uma vez. mais o Dicion6rio de Bayle que abastece
participar do verdadeiro conhecimento de Deus. Entretanto, no o arsenal de toda a filosoFia il uminjsta. Nos escritos que publi­
século XVIII, são OS povos do Oriente que retêm a atenção e cou contra Luís X IV por ocasião da revogação do -edito de
exigem a igualdade de direitos para as suas convicções religio­ Nantes, Baylc começa por uma reivind icação especial: o reco­
sas." Leibniz já cítara a civili zação chinesa; Wolff. num discurso nhecimento da liberdade de crença e de consciência para Of
sobre a fil osofia chinesa, celebra Confli cio como um profeta de adeplos da Reforma ; tal foi o primei ro objetivo da sua lUla. M a~
grande pu reza moral e coloca-o a par do Cristo. Voltaire retoma a amplitude da demonstração que ele consagra a essa reivindi­

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cação supera de muito a sua tarefa imediata ; suas posições tor­ seu conteúdo; bastava aplicá·la a t~ as suas últimas conseqüên­
nam-se tão contundentes que geram o escândalo até entre os seus cias para se atingir o objetivo. No entanto, restava ainda uma
aliados e asseguram·lhe o surgimento de um adversário fanático tarefa por realizar, da qual Voltaire se encarregou : a de trazer
na pessoa de Jurieu. um dos mestres da teologia reformada. para a luz o tesouro soterrado no Dicion4rio de Bayle sob uma
Bayle, com d eito, insiste em afirmar que a sua apologia da avalanche de erudição histórica e teológica . O principio da cri­
liberdade religiosa não pretende servir a uma fé particular mas tica ética da Bíblia, que tinha sido tão veementemente comba­
propõe-se a um rim universal . puramente filosófico. e que o tido no século XVII e tão severamente condenado pelos doutri­
princípio que ela proclama vale imperativamente para todos . nários ortodoxos, tanto do lado protestante quanto do lado cat6­
sem a menor disti nção de convicções religiosas. Ele denuncia 11 lico , pertence doravante, graças a Bayle, ao acervo comum das
restrição como absurda e intOlerável num sentido puramente aquisições do século. Quando, mais tarde, Volta ire fizer um
ético. em runção dos critérios da razão moral: nenhuma auto­ exame retrospectivo desse conflito, em 1763, no seu T ratado
ridade religiosa tem, de uma vez por todas, o direito de reco rrer· sobre a tolerância, isso ocorrerá com O sentimento inabalável de
lhe. Cumpre manter uma disti nção radical entre moralidade e uma vitória alcançada, enfim, após luta acesa. Vivemos numa
religião. Quando elas entram em conflito, quando o testemunho época, declara ele em substância, em que a razão penetra cada
das Escrituras contrad iz di retamente o da consciência moral, dia mais nos palácios dos nobres e nas lojas dos burgueses e
convém resolver o problema de tal maneira que seja mantido dos mercadores . Esse progresso não podia ser impedido: os frutos
um primado absoluto pn ra a consciência. moral. Se esse primado da razão alcançarão sua plena maturidade. Pois é uma lei do
ror abandonado, terá que se renuncia,' também a todo critério mundo intelectual que a razão só existe e subsiste se for re­
de verdade religiosa e ricamos, nesse caso , desprovidos de toda criada dia após dia. "Os tempos passados são como se nunca
e qualquer rererênci a pat'" o julgar o valor de . uma pretensa reve· tivessem existido. l! preciso partir sempre do pontO onde se está
loção e até mesmo , no interior da religião, para distinguir a e daquele a que as nações chegaram ." Em seu laconismo e em
verdade da impostura. Portanto, importa rejeitar o sentido lite· sua exatidão, essa fórmula é daquelas que só Voltaire sabe im­
ral da Bíbli a toda vez que aI se encontra expressa a obrigação provisar: ela condensa , em seu brilho. todas as convicções e
de um ato que contradiz os princfpios elementares da moral. tendências da filosofia iluminista. Aliás. o T rotado sobre a tole·
f; nesses princípios e não na simples transmissão do sentido lite· rand a é notável pela seriedade, seren idade e realismo absoluto
ral q ue residem as verdadeiras máximas imprescri tíveis da exe­ com que Voltaire trata o assun to, qualidades em que ele não é
gese, aquelas que jamais devem ser descartadas em provei to de pródigo nos seus outros escritos sobre a religião. Corno ele tem
um sentjdo li teral pretensamente assegurado. " I! preferível re. em vista, nesse caso , um objetivo perreitamente concreto, e ao
jeitar o testemu nho da critica e da gramática do que o da razão." qual pretende servir, porquanto luta por uma revi são do pro­
O fio condutor de loda a interpretação da Bíblia será, portanto . cesso de Jean Calas , o seu estilo adquire uma austeridade e uma
esta regra : " Todo O sentido literal que contém a obrigação de força muito especiai s. Renuncia a fazer espírito e enttega-se
praticar crimes é falso." as A máxima reguladora está assim poso menos do que em out ros escritos às digressões polêmicas. O
tulada, a filoso fi a do Il um inismo nada tinha a acrescentar ao ethos pessoal que se esconde atrás das invectivas satíricas de

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Voltaire raramente foi levado a uma expressão tão pura e tão o que agI!; a verdade de sua essência só se realiza no sentido c
vigorosa qua nto nesse es<: rito da velhice. A tolerância . que os na ação. Tal é a pedra de toque que atesta a autenticidade dt:
fanáticos da religião ousam denunciar como um erro perigoso toda religião. Diderot retomará esse argumento capital pura
e uma exigência momtruosa, ! apresentada por Vohaire como provar a superioridade da religião natural sobre todas as reli­
"o apanágio da razão " . Não se trata de uma exigência especial giOes "positivas ". ~ ocioso, observa ele inicialmente, esperar um'l
que seria apresentada pela filosofia ; exprime o próprio princípio decisão direta da competição que opõe as diversas religiões his­
da filosoria, contém sua essência e sua justificação. Ora, ! justa. tóricas, pois cada uma delas reivindica SÓ para si uma superio­
mente sobre esse ponto que a fil osofia se irma na à religião. -e. ridade absoluta que redunda na rejeição dogmática de todas as
obra da fil osofia e o seu maior triunfo que o tempo das guerras outras crenças. Mas essa simples negatividade tem, não obstan te,
religiosas tenhlt agora findad o, que o ju deu , o católico, o lute­ seus limites . Por muito exclusiva , por mais profundamente hos­
rano, o grego, o calvinista e o anaba tiSlfl vivam juntos frater­ til que toda religião possa ser em relação às outras, nenhuma
namente e sirvam de maneiro análoga ao bem comum. A filoso­
li
tem, contudo. O poder nem a vontade de romper completamente
fia, só a filosofia, essa irmã da religião, desarmou as mãos que os vfnculos que a unem à religião natural. A essa terra natal de
a superstição mantinha por tanto tempo e.nsangüentadtl s: e o toda religião, cada uma sente-se ligada de algum modo e nenhu­
espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se ma jamais se deixará desenraizar de fodo . Apresentemos, pois,
com os excessos fi que fora arrastado pelo fanati smo." 36 Ainda a uma ou a outra das diversas doutrinas reli giosas a questão de
em nossos dias, não faltam os iluminados e os fan áticos ; mas saber à qual das ou Iras doutrinas. abstração feita, bem enten·
deixem a razAo agir e o mal será curado. lenta mas inexoravel­ dido, da 5U.!! própria supremacia, ela atribui o segundo lugar.
mente. "A razão é suave, ela é humana; ensina-nos a tolerância A resposta que obtemos então é perfeitamente esclarecedora; esse
e aniquila a discórdia; reforça a virtude e torna amável a obe­ segu ndo lugar nunca é reservado a uma qualquer das outras
diência às lei s, em vez de lhes obedecer pela coação." religiões positivas mas sempre e unicamen te à religião natural.
Por esse lado, uma vez mais se manifesta, portanto, que os A causa é, portanto, julgada, para quem . pelo menos, quer consi­
valores intelectu ais puros são progressivamente sentidos como derá-Ia sem prevenção, desde um ponto de vista puramente fil o­
insuficientes. A verdade da religião não pode ser estabelecida sófico. Sabe-se agora onde residem a universalidade e a etern i·
dade verda deiras: "Tudo o que começou terá um fim; e tudo
segundo critérios puramente te6ricos ; não se pode decidir sobre
aquilo que não teve começo não findará . Ora , o cristi anismo
o seu valor pondo de parte a sua eficácia moral. -e. esse o signi­
começou; ora, o judaismo começau; ora, não existe uma só re­
fi cado em Lessing do ap61ogo do anel: a verdade última e
ligião sobre a terra cuja data não seja conhecida, exceto a reli­
profunda da religião só se prova desde o interior. Toda a de­
gião natural; portanto, somente ela não acaba rá, e todas as
monstração extrínsecn é insuficiente, quer se trate de uma
OULTas passarão". Judeus e cristãos, maometanos e pagãos, Lodos
demonstração empíri ca , llpoiando-sc em fatos históricos, ou de
são os herét icos e os cismátü;os d2: religião natural. Esta última
uma demonst ração lógico-metafísicn . escol'ada em razõcs abstra­ é, portanto, a única suscetível de uma verdadeira prova , pois a
tas, visto que, em definitivo, a religião é sempre e tão-somente verdade da religião natural está para a religião revelada como

230 231
o testemunho que me dou a mim mesmo está para o testemunho teóricas da existência de Deus sobre as quais a teologia c' 11
que recebo de outrem, e aquilo que sinto imediatamente em metafísica do século XVII tinham alicerçado o seu sistema: o
mim está para o q'.le .::::nheci através de outrem; "como o que centro de gravidade da certeza religiosa desloca-se ptltil 11m
se encontra em mIm escrito pelo dedo de Deus está para o que ponto onde esse gênero de prova é inaplicável e não aprcsentu
homens fút eis, supersticiosos e mentirosos gravaram no perga­ mais, aliás, qualquer espécie de interesse.
minho e no mármore; como o que contenho em atim e por toda A mesma tendência fundamental manifesta-se, no essencial,
parte encontro inalterado está para o que se encontra fora de
no cesenvolvimento do delsmo inglbs, apesar da complexidade
mim e muda com os climas; como o que aproxima o homem
e das flutuações das diversas argumentações. O deísmo é, em
°
civilizado e o bárbaro, cristão, o infiel e o pagão, o fi1ósofo
pr!meiro lugar, um sislema rigorosamente intelectualista que quer
e o povo,. o sábio e o ignorante, o ancião e a criança, eslâ para
banir os mistérios, os milagres, 05 segredos da religião a fim de
o que, por outro lado, distancia o pai do (ilha, arma o homem
contra o homem, ex põe o s.ébio e c erudito ao ódio e à perse­ colocá-la sob a luz clara do saber. Christianity no! mysterious,
guição do ignorante e do ranático ". E; em vão que se objetará o simples título da obra de Toland (1696), basta para indicar o
ainda que, sendo a mais antiga, a religião natural também deve tema que passou a ser incessantemente debatido no seio do
ser a mais imperfeita: donde veio a idéi'a de que o primitivo não movimento deísta. A importância filosófica do deísmo depende,
é o mais puro, o autêntico - o a priori de toda religião? sobretudo, do novo princípio que sustenta na posição do pro­
E mesmo admitindo o princípio de uma efetivação cabal, de um blema religioso . A ql!eslão do conteúdo da fé , declara·se logo
aumento de perfeição no transcurso da história , não ~ coisa certa de início, é indissociável da questão de sua forma : as duas
que o debate desenrole-se para vantagem dessa ou daquela reli­ questões devem ser resolvidas simultaneamente. A questão não
gião positiva e de seus artigos de fé. Onde poderiamos obter a se estriba apenas no con teúdo da verdade desse ou daquele
certeza de que chegamos ao fim desse desenvolvimento? Se é dogma; ela envolve também o modo da certeza religiosa como
verdade que a lei natural pôde ser efetivada pela lei mosaica e tal. ToJand pensa poder apoiar-se em Locke, poder introduzir
a lei mosaica pela lei cristã. por que esta última não seria, por diretamente suas idéias e os princípios da teoria do conhecimen­
sua vez, eFetivada por uma outra que Deus nuo teria ainda reve­ to de Locke no problema da religião. O que vale para o conhe­
lado aos homens? S1 Tais são as teses de Diderot em Da sufi­ cimento em geral não deve, com efeito, aplicar-se igualmente ao
ciência da religiãc natural: vê-se a que ponto elas estão aparen­ conhecimento religioso em particular? Locke definia o ato de
tadas com as que Lessing sustentará. I! igualmente em Lessing conhecer em geral como O ato de adquirir consciência de um
que Diderot nos faz pensar quando distingue estritamente entre acordo ou de um desocordo ex.istente entre as idéias. Resulta
provas históricas e provas racionais, e ao insistir cuidadosamen­ dessa definição que o conhecimento contém, por sua própria
te em que os testemunhos de facto, por muito seguros que pos­ natureza, uma relação e que, por conseguinte, os termos dessa
sam parecer, jamais alcançam um grau de certeza suriciente para relação devem, antes de tudo, ser dados à consciência e clara­
serem usados como provas de verdades eternas e necessárias.38 mente compreendidos sob uma forma ou OUlra. Se os termos que
Assim se encontra cada vez mais abalada a força das provas a fundamentam não são compreendidos, a própria relação perd~

232 233
todo o seu significado. Essas considerações puramente metodo­ niclade. A idéia de revelação (OltellbarulIgi não se opõe, por­
lógicas fornecem, segundo Toland , aos obietos da fé religiosD tanto. à de religião natural no sentido em que uma e oulra se
um prindpio essencial e uma limit ação necessária. Está excluída distinguiriam por seus conteúdos específicos. Não é o conteúdo
a transcendênci a absoluta desst:s objetos: como poderia a nossa °
que elas manifestam o que as distingue mas a natureza e modo
consciência cognoscente, crente e judicativa manifestar-se a res­ dessé! manifestação. A revelação não é uma causa cspecífica de
peito de um objeto se esse objeto não estivesse, de alguma ma­ certeza mas, simpksmcnte, uma forma particular de comunica­
neira, presente, se não fosse representado por um fenômeno ção de uma verdade, cuja prova fi nal cumpre buscar na razão.
qualquer? O "irracional" absolUlo, uhrapDssando o entendimen· Em Christianity as old as lhe Creu /iotl (1730), T indal parte
LO humano, não comporta justamente uma lal " presença" : logo. do mesmo pri ncípio. Começa por salient.r:r que religião natural
é tão impossível afirmar que ele é quanto determinar o que de é. e religião reveiada não se di stinguem absolu tamente por suas
Se se objeta que se pode perfeitamente estar seguro da existência respectivas substâncias mas tão-só pela maneira como elas são
de uma coisa sem conhecer um só predicado dessa coisa, sem conhecidas dos homens: uma é a manifestação interior; a Qutra,
que se possa dizer nada acerca de sua natureza. tal argllmcnto Il munifestação exterior da vontade de um ser onisciente e in fj ·
não se sustenta, visto que, mesmo que essa espécie de conheci­ nitamente bom. Para que um tal ser possa verdadeiramente ser
mento fosse poss(vel, qual significado poderia ele ter para nós? pensado, temos que nos desfazer de todas as restriçõcs , de todas
A menos que se pretenda que a fé resulte em si mesma total­ as lim itações do antropomorfismo. Se Deus dissimulasse uma
mente vã e absurda, é imprescindível que o seu objeto possua parte qualquer da sua essência e da sua potência, se reservasse
um sentido qualquer, ou seja, que comporte certas determina­ uma e outra para um tempo e um povo determinados, à custa
ções que se "compreendem" . que são claramente inteligíveis. O de outros , não estaria ele justamente nesse caso manifestando
que é misterioso, de todos os pon tos ele vista, o que escapa por tal limitação? Uma vez que Deus é eternamente o mesmo e que
princípio a toda a compreensão deve . portanto, permanecer es­ a natureza não é menos una e imutável, é necessário que a reve­
tranho tanto à fé quanto ao saber . "Quem poderia vangloriar-se lação dissemine sua luz igualmente por todos os lados. Deus não
de ser mais sábio do que o seu vizinho porque sabe de ciência seria Dcus se pudesse, c_orno quer, por exemplo, o dogma da
infalível que existe na natureza algo que tem o nome de Rlie/ri, "graça eletiva", dis~imular de algum modo a sua própria natu­
ignorando, porém, no que consiste esse Blie/ri"? 39 Toland con­ reza ao esclarecer apenas uma parte da humanidade, abando­
clui que o mistério só pode existir num sentido relativo, nunca nando a ou tra às trevas e à cegueira . O mais importante e
absoluto. Quer indicar dessa maneira um conteúdo inacessível essencial critério para a auten ticidade de toda revelação só pode
a um certo modo de entendimento, não um conteúdo que ultra­ ser, portanto, a unive rsalidade que a eleva acima das limitações
passa, em geral , todas as possibilidades de entendimento. Quan­ locais e temporais. O cristianismo é verdadeiro no sentido e na
to à palavra "mistério", deve ter signjfi cado originariamente medida em que preenche essa condição primordial. Ex.i ste e
uma doutrina que, sem contradizer por isso a razão, continha subsi ste por não estar vinculado a nenhum espaço nem a ne­
em si uma verdade conhecida que , entretanto, por um motivo nhum tempo particulares - e por ser tão velho quanto O mundo.
qualquer, deveria manter-se secreta para uma parcela da huma­ Entre a lei cristã e a lei natural não existe, quanto ao conteúdo ,

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a menor oposição: a lei cristã quer apenas ser a reproclamação do ethos delsts. "A nessa época" - assim escreveu no scu
do que a lei natural tinha estabelecido e prescrito. Essa nova comentário contra a revogação do Edito de Nanles - " e~ t r.
proclamação (a repub /icatiol1 of the law of nature) dirige-se ao repleta de espíritos fort es e de deístas. Há quem se surp rccndu
conhecimento do homem; mas, sobretudo, tem em vista a sua mas, quanto a mim, O que causa surpresa é que não existam
moralidade. Por oonseguinlc, o cristianismo representa a reve­ mais, em face tias devastações causadas no mundo pela religião,
lação verdadeiramente infaUvel, aquela que supera todas as e a extinção que ela acarreta pelas oonseqüências quase inevitá­
outras em valor e em certeza. Assim, Tindal avizinha-se da defi­ veis de toda sorte, ao autorizar para sua prosperidade temporal
nição que será ulteriormente retomada ipsis verbis por Kant em todos os crimes imagináveis, o homicídio, à extorsão, o exílio,
Religion jnnerhalb der Grenzen der h/assen Vernunft [A reli­ o rapto etc., os quais geram uma infinidade de outras abomi­
gião nos limites da simples razão1. Segundo Tindal, a religião nações: a hipocrisia , a profanação S<lcrflega dos sacramentos
oonsiste em · reconhecer nos nossos deveres os mandamentos de etc." 4 l Na origem do deísmo encontramos, primeiro, uma ati­
Deus, em relacionar normas morais de uma validade e de um tude de revolta em rel ação ao espírito das guerras de religião
alcance universais com o seu uutor, con siderando-as a expressão dos séculos passados; uma nostalgia profunda dessa pax lidei
da sua vontade. Portanto, mesmo .no desenvolvimento do deísmo que a Renascença tanto ambicionara e prometera mas não
inglês, o centro de gravidade está agora deslocado no plano lograra estabelecer em parte alguma . Não é, eviden temente, nas
puramente intelectual para o da "razão prática" : o deísmo " mo­ guerras de religião que Deus se nos revela em sua essência e em
ral" tomou o lugar do deísmo "construtivo" .40 sua verd ade mas unicamente na paz da fé - segundo a sólida
A extraordinária influência que o deísmo inglês exerceu convi cção deísta . Deus é bondoso demais para ser o autor de
sobre o conjunto da vida intelectual do século XVIII assenta coisas tão perniciosas quanto as religiões positivas, as quais oon­
essencialmente nessa nova orientação. A considerar apenas o seu têm a semente inextirpável da guerra , dos massacres, das injus­
conteúdo te6rico, a intensidade dessa influência é dificil mente tiças - , conforme reconhece a argumen tação de Bayle . Na Ale­
concebível. Entre os mai s destacados pensadorcs desse movimen­ manha, é também a esse tema que o defs mo deve a continuidade
to , nenhum possui , com efeito, uma verdadeira profu ndidade, de sua penetração ; na hi stória das idéias alemãs do século XVIII,
um cunho verdadeiramente original - e os argumentos pura­ pode-se acompanhar de ano a ano o avolumar da onda deísta.
mente teóricos pelos quais O deísmo trata de apoiar a defesa dos Nas revistas, a bibliografia e as resenhas criticas das obras dos
seus pontos de vista são, com freqüência, oontesláveis e restrin­ "livres-pensadores ingleses" passam a merecer um capítulo es­
gem-se a meias verdades. Mais do que todos esses argumentos , o pecial e regular Y Mas é verdade que a luta pelos direitos da
que causou uma fortíssima impressão na atitude do deísmo foi "religião na tural " e pelas relações a estabelecer entre razão e
a sincera vontade de verdade e a seriedade moral com que abor­ revelação nunca se revestiu na Alema nha da acuidade q ue co­
dou a crítica do dogm a. l! aí que reside a sua potência especí­ nheceu nOs círculos intelectuais franceses. Encontrou , porém ,
fica, aquela que lhe incute um impulso interior. Bayle, que se um outro adversá rio na Alemanha: não apen as uma ortodox in
situa no ponto de partida do movimen to deísta, já tinha reco­ e uma hierarquia eclesiástica esforçando-se, com toda a sua auto­
nhecido com nitidez essa situação, e por isso profetizou a vitória rid~de e toda a sua sede de domioação, por reprimir o livr..:

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movimento do pensamento; sua tarda consiste, anies, em dar monstração desse mesmo conteúdo, afastando do dogma tooos os
nex ibilidude a um sistema religioso que j á contém os numerosos elementos que não são suscetíveis de ser assim demonstrados
germes de um novo modo de pensar. A fil osofia le ibniziana de· e esforçando-se, através de pc:iquisas de história dogmática, por
sempenha na Ale manha o papel de um meio inte lectual onde se denunciá-los como aditamentos ulteriotts, estranhos à pureza ini­
realiza a evol ução do pensamento religioso e esse meio tem o ciai da fé. O conteúdo da revelação é assim substancialmente
pode r de abarcar os pensamentos mais antagônicos, de aproxi. reduzido, ao mesmo tempo em que a pr6pria idéia de revelação
má-los e de reconc iliá-los. A tendência profunda da filosofi a de ainda permanece intata. Entretanto, ela já nio tem outro papel
Lcibn iz, a tendência para a "hu nno nia", permanece viva nesse senão o de confirmar e sa ncionar pttcisamente aquelas verdades
sentido . No sistema de Christian \Volff tampouco se chega nunca que são evidentes para a razão e se ha rmonizam ple namente com
a umu separação brut ul entre o conteúdo da fé e o do saber, esta. De resto, à demol1straçiio s/rielo scnsu, à prova propria·
entre revelação e razão. Tralll-se sempre, pelo contrário, de pon­ mente si logística, opõe-se cada yez mais a prova emplr ica q ue,
derar euidadosamentc os respecliyus direitos de um lado e de do seu lado, tende a procura r seus fu ndamentos mais nas certezas
outro e de os destrinçar. Scm dllyida, chega-se II contestar, como íntimas do que em tal o u tal fato histórico. A minha expcrienci a
H

em Loeke e Lcibni z, o cont-.:tklo da fc por liua inacion alidade, é a mi nha p rov!l", diz JenlSlIJcm. E a expe riência essencial, na
mas ninguém pretendc jamais que esse conte údo possa ser ob!!! qual devem apoiar-se todas as provas da religião. é essa paz da
exclusiva da razão e não comportar nenhum c1 emento supr a­ a lma que nos torna mais ditosos do que ja mais poderia ser con·
racional. Razão e revelação süo reconhec id as como fontes origi­ seguido por essa fac uldade puramente teórica que é a razão. H
náriu do conhecimen to: longe de se comba terem, elas devem A autoridade dessa instância pretensamentc "objetiva" é recusa­
completar-se, persuadir·se de que, de sua cooperação, resultará da pelo apelo à subjetividade como princfpio autên tico e verda­
e m conjunto completo, uma si,!l.ni ficação única da verdade reJj. deiro de toda a certeza religiosa, de modo quc há apenas um
giosa. Não se tralit de incitar e5sas duas forças a combaterem-se passo ma is a dar para eliminá-la explicitamente . Esse passo será
ou a rivalizattm mas de associá-las a fim de que seu acordo se dado pelo subseqüente racionalismo teológico, que chegará a in­
torne manHesto. No seio da escola wolffian8 havia, portanto, timar o conteúdo da fé, como um todo, a comparecer perante o
amplo espaço para uma ortodoxia que conservava uma fé inaba­ tribunal da razão e a negar a necessidade da revelação como
lável na revelação, a inda que pouco a pouco se modificasse a fo nte especffica de conhecimento. Tinha sido assim que a exi­
forma sob a qual essa fé era apresentada e cada vez ma is se im­ gência fundamental do deísmo vencera a resistência da pr6pria
pusesse a necessidade de um método demonstrativo_" A tendên­ teologia e a penetrara totalmente . Q uando Sack declarou, certo
cia dos autên ticos teólogos" modernos" na Alemanha - a cha­ dia, q ue a revelação era o "telescópio da razão", sem o qual
mada "neologia " representada por homens como Semler, Sack, esta jam ais poderia, ou sÓ obscuramente poderi a, di scernir as
Spalding, Jerusalem e outros - vai muito além, sem dúvida, verdades mais importantes da religião , Reimarus pôde retorquir·
desse simples rCliultado. A razão não serve apenas para sustentar lhe q ue até mesmo essa comparação tem seus li mites . Se é certo
e provo !' formalmen te um conteúdo de fé já dado e confirmado que os ó rgãos da percepção tomam-se mais penetrantes graças
por outras fon tes ; (l ela se recorre também para efetuar a de­ ao telescópio e ao microsCÓpi o, é 6byio que não podem ser su­

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plan tados por esses instrumen tos, os quais são perfeitamente inú­ ral ", o deísmo parte, com efeito, da idéia de que existe umu
teis sem o dom natural da visão; da mesma fonoa, no domínio "natureza humana H, por toda parte idêntica a si mesma, dot<ldo
espiritual, todo saber deve , em definitivo, ser relacionado e afe­ de certos conhecimentos fundamen tais tanto do gênero teórico
rido pelas faculdades naturais do espírito .~ s quanto prático, que são parQ ela absolutamente certos. Contudo,
Foi assim que o movimento deísta rompeu finalmente todos onde iremos encontrar essa natureza? Será um fato empirica­
os diques e levou de roldão todas as defesas que se tentava mente dado? Será que não passa, talvez, de uma hipótese? E
opor.lhe. Sua vitória parecia não poder tardar, apesar de todos o defeito fundamental do de{smo não consiste em confiar. seJT
esses erloryos coligados contra ele e o crescente fluxo de lite­ prévia reflexão. nessa hi pótese e em guindá·Ja, por sua parte, ti
ratura polêmica e apologética . Mas eis que de súbito o sistema categoria de um dogma? l! contra esse dogma que se ergue a
ameaçado da ortodoxia recebeu uma novôJ e inesperada ajuda. crítica de Hume. Etc r.ão ataca o delsmo nem do lado da razão
Um dos adversários mais obstinados desse sistem a foi quem, ino­ nem do laco da revelação: resolve simplesmente apreciá-lo se­
pinadamente, pa ssou a fazer causa comum com ele. Com efeito. gundo o critério da experiênca, do puro conhecimento dos fatos .
não é o dogmatismo teológico que rechaçn os assaltos do deísmo Convence-se então de que o orgulhoso edifício do deísmo assen·
e detém seus avanços, mas o mais radical cepticismo filosófico . ta em alicerces de barro: a "natureza human a" sobre a qual se
Na Inglaterra, Samuel Clarke acabava de em pregar toda a sua pretendia fundar a religião natural não passa de mera ficção. A
acuidade intelectual para deduzir rigorosamente de princípios experiência revela·nos essa natureza sob uma luz muito diferente
universais o conteúdo inteiro da fé cristãY' O próprio Voltaire daquela que inspirava os esforços construtivos do deísmo: não
não escondeu sua admi ração pela sagacidade do autor: Clarke, um tesouro de conhecimentos fundamentais. de verdades a priori,
declara ele em sua Carta inglesa. é uma "verdadeira máquina de mas um fervilhar confuso de instintos, não um cosmo mas um
raciocinar" (une lIraie lnt1chil1e à raisonnemems), aprOpriada caos. A medida que se vai penetrando mais profundamente nessa
para as tardas mais difíceisP E Voltaire jamais desdisse essa SU2 naturezA . humana, à medida que a descrevemos com maior exa
apreciação: não chegou até. no Tratado de metafísica, a coloCár tidão, vemo-Ia perder toda a aparência de ordem e de raciona·
Clarke a par de Lock.e como um dos primeiros "artesãos da ra· lidade . Hume já chegara a essa conclusão no domínio das nossa&
zão"? ~& ! bem ve rdade que todo esse lu,,"o àe provas parece representações teóricas. Temos o costume de considerar o "prin·
resvalor sobre o defsmo sem O arranhar. e torna mais visíveis, dpio de causalidade " como a regra suprema de todo o nosso
pejo contrário, as fra quezas da ortodoxia. Na sua defesa do conhecimento teórico, acreditamos que esse princípjo confere a
"livre pensamento", Anthooy Collins observa ironicamente que todo o nosso saber sua coesão e seu rigor internos. Mas. quando
ninguém duvidara jamais da existênci a de Deus antes de Clarke se analisa mais precisamente os conceitos, essa pretensão re­
ter decidido provar essa existência. 4 ' Entreta nto. onde o lógico duz-se a nada, dado que a própria idéia de causa, que deveria
e o mctaffsico fracassara m, vai triunfar o adversário irredutível garan tir o mais firme ponto de apoio para o nosso conhecimento.
de todo dogmatismo lógico e metafísico. !:. Hume quem vai c0­ é incapaz de produzir por sua própria conta O mínimo funda­
locar o deísmo diante de uma nova dificuldade e desse modo que· mento objetiv<? Ela não pOssui nenhuma evidência imediata. ne·
brar seu predomínio. Para Cundar o conceito de "religião na tu· nhuma significação nem necessidade a priorj; ela própria não

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passa de ser o produto do jogo das nossas representações, as quais, tando as religiões superiores, puramente " esp!:rituais~, que se
longe de se interligarem segundo princípios objetivamente ra· el evam tão alto acima das representações "primitivas" de Deus:
cionais, limitam·se a acompanhar em conjun to o jogo da imagi· esse argumcDto é reduzi clo a zero desde que, em vez de consi·
nação, a obedecer às suas leis mecânicas. A mesma crÍl ic3 vale, derar a religião em sua transposíção racional, sob sua indumen·
U /ortiQri, para as nosaas representações religiosas. Seu conteúdo tária idealista , a vejamos em sua pros{lica realidade empírica. A
pretcnsamelllc objetivo, $Cu sentido sublime redundam em pura religião por toda parte oferece o mesmo rosto, desde os seus
ilusão a partir do instante em que as relacionemos com suas ver· primórd ios até a sua mais recente realização, desde os seu s piores
dadeiras fontes, em que nos representemos de q ue man eira elas av il tamentos alé o seu ápice. As mesmas forças psíquicas que
surgem e desenvoLvem·se. Não descobri remos entâo nelas nem prevaleciam quando das primeiras manifestações da religião ain­
con teúdo especulativo nem con!eúdo él ico original. Não é a me­ da estão agindo em seu curso subseqüente, mantendo-se vivas em
ditação sobre os princípios do Ser e as causas da ordem do lodo o seu desenvolvjm ento. A superstição assume fonnas dife­
mundo nem a devoção a um Ser de um a sabedoria e de uma ren les , mais el aboradas, mas sua natureza íntima não mudou.
bondade infinitas o que provocou as primeiras rc prescn\<lções Ousemos erguer o véu de palavras, de conceitos abstratos, de
de Deus , o que as fundmnc ntou e justi ficou. Essa cspt': cic de idéias morais com que se cobrem as religiões "superiores" e cons­
considerações "filosófi cas " níio tem poder nenhu m sobre as mu i· tataremos q ue a religião tem por toda parte o mesmo rosto. O
tidÕes. O homem não começoll como filósofo : é ilusório e ocio­ credo quiu absurdum impõe sempre e em toda parte o seu anti­
so esperar que ele acabe filósofo. Ele nada enk nde de um reino go poder. Ex iste pior absurdo lógico do que o dogma da tran·
onde predomina a " razão " abstraia , porquanto está submetido substanciação? Algo moralmente mais funesto, mais pernicioso
ao poder de seus instintos e de suas paixões. São estes que engcn· para 8 sociedade hUIT"I " ~ , do que os artigos de fé das religiões
dram e alimentam os pri meiros dogmas e as primeiras represen­ positivas? Nada di:stingue uma religião " superior" das inferia·
tações religiosa s, e nel es permanecem du radouramcnte enraiza· res, a não ser que um terceiro md iio se junte à esperança e ao
dos. Nem o pensamento nem a vonlade moral os formomm, e medo, motivo esse oriundo, sem dúvida, de um certo refina­
muito menos os alimentam. Foi pe la esperança e pelo medo que mento intelC(;tual, mas que, de um ponto de vista moral, repre·
os homens foram inicialmente conduzidos à crenca e nesta fi· senta mais um retrocesso do que um progresso. 1! o motivo da
caram constnntcrnente retidos. Por aí penetramos, enfim. na ver­ adulação (Scllmeichlei) que impele os homens a elevar seus
dadeira camada originária da religião. Não e"i ~ t\! fu ndamento deuses acima de toda medida de perfeição terrena, a atribuir· lhes
racional nem ético para a religião: ela é, pura e simplesmente, predicados ca da vez mais sublimes. Entretanto, numa análise
uma causa antropológica. Nasce do medo de potê nci as sobrena· mais minuciosa, interrogando mais a conduta dos homens do que
turai s e do desejo do homem de congraçar·se com elas, de aco­ !>U8S idéill s, verifica-se que, deixando de lado toda essa subli·
modar-se à vontade delas. O jogo de paixões e de imaginação d-o­ mid ade espiritual e mora l, tudo permanece no estado antigo. O
mina e di rige as engrenagens da nossa vida religiosa. A supers­ De us, todo bondade, sabedoria e justiça do cri stia nismo, tom ou­
tição , o medo dos demônios constituem as verdadeiras raízes da se, no retra to que o calvini smo del e traçou, um tirano tão cruel,
idéia de Deus. E não se creia poder escapar a essa concl usão ci­ pérfi do e arbitrário quan to todos aqueles que as rel igiões primi·

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tivas sempre temeram e adoraram. A deisidaemonie, o temor dos se estenda o nosso olhar até as superstiçôcs mais diversas l.l fi m
dtmÔnios, está na base de todas 8$ representaçõcs religiosas su­ de colocá· las em conflit o umas com as outras, enquanto n6s pró­
periores, e esse senlimento nada ganhou, JXlr certo. ao deixar de prios. durante essas furi osas desavenças, vamos encontrar a nos­
manifestar-se abertamente, ao tentar dissimular de modo insi­ sa felicidade na fuga para as regiões aprazfveis, embora um tanto
diOso - e ao dissimular-se a si mesmo - todas as fraquezas obscuras, da Wosofia ." IH
que as religiões primitivas ingenuamente divulgam .1SO Na realidade , o método adotado por Hume e por ele segui­
Tal é a "h.ist6ria natura1 da religião" esboçada por Hume, do até as suas últimas conseqüências não é caracterfstico , de
que assim pensou eliminar de uma vez por todas a idéia de maneira nenhuma , do século XV II[ . Esse século tinha confiança
"religião nat ural denu nciá-Ia como simples divagação filosó­
H, demais no poder da razão para renunciar ao seu uso a respeito
fi ca . Em suma, era 8 própria fil osofia que livrava o sistema da fé de ponto tão vital. Não tinha a menor intençúo de abandonar-se
revelada do seu mais perigoso adversário. Mas, para esse mcsmo à dúvida . insistindo sempre , pelo contrário, numa decisão clara
sistema, () análise realizada por Hume rerresentava uma esto­ e segura . Por isso é que a História natura[ da religião de Hume
cada não menos mortaL. O cepticismo tinha , evidentemente, a permaneceu um aconteci mento isolado no C\1rso das idéias da
última palavra tanto em relação à religião revelada quanto em época do Iluminismo. Com efeito, um outro caminho cra ainda
relação à religião natural. "Nobre privilégio da razão humana praticável. o qual, longe de levar a uma ruptura brutal da razão
o de cbegar ao conhecimento do Ser supremo, o de poder con­ e da experiência, como na doutrina de Hume, parecia combinar
cluir. mediante as obras visíveis da natureza, peta existência de e reconciliar as aspirações de uma e de outra . Para enrrentar os
um principio tão sublime quanto o do supremo Criador! Ma~ ataques cépticos dirigidos contra ele. era imprescindfvel que o
observemos o reverso da medalha . Atentemos para a maior partt. conceito de "religião natural " recebesse um conteúdo defin itivo.
das nações e das idades. Examinemos os princípios reli~iosos qUl Não pod ia continuar subsistindo JXlr mais tempo como pura as­
prevaleceram, de fato, no mundo. Teremos grande dificuldade piração; era necessário mostrar que as exigências e as afirma'
em persuadir·nos de q ue sejam ou tra coisa senão o fruto dos de­
ções desse conceito tinham seu lugar na realidade da vida reli
vaneios de espíritos doentes . . . Não há absurdos teol6gicos, por
giosa. O conceito de religião natural não devia procurar seu
mais fl agrantes q ue sejam, que nito tenham sido alguma vei acei­
fundamento apenas do lado da razão , mas também do lado da
tOS por homens de uma inteligência tão vasta e cultivada quanto
hist6ria, Graças a essa tarefa, com a qual se viu a braços por
possfvel. Não há preceito religioso, por mais rigoroso e austero,
uma necessidade interna. o pensamento do século XVI II depa­
que não tenha sido adotado pelos mai s voluptuosos e perversos
dos homens ... Tedo isso é um quebra·cabeça, um enigma, um rou·se com um problema de ordem geral que deve abordar agora
inexplicável mistério. Dúvida, incerteza, abstenção de iul$!'amen­ com rodo o equipamento pr6prio do seu método. T rata-se de
to, é tudo O que parece resultar de um exame mais profundo compreender a rclaçiio que une a religião e a hist6ria, de con­
dessa questão. Mas tamanha é a fragi li dade da razão IllImar.a e ceber a determínação recíp roca dos dois termos, de ver como, no
tão irresistivel é o contágio da opinião, que temos gra nde difi­ seio dessa reciprocidade. desenvolve·se a real idade autêntica e
culdade em manter essa dúvida tão deliberada , a menos que :onereta da religião.

244 245
Relig.ião e história deve acompanhar passO a passo o exame da maneira como eSSDS
regras desenvolveram-se historicamente, como se realizaram no
Essa idéia largamente disseminada e, ao que: parece, inex­ decorrer do desenvolvimento empírico·histÓrico. O verdadeiro
tirpável, de que o século XV III pennaneceu alheio e cego à rea­ " Iluminismo" do espírito SÓ pode resultar da cooperação e do
lidade h istórica, de que o seu pensamento foi absolutamente conf ronlO entre esses dois modos de análise. A certeza da exis·
a-hist6rico, já foi refutada, de maneira direta e decisiva, por uma tência do espírito é parte integrante e indispensável do seu devir;
observação, mesmo superficial, do processo de desenvolvimento mas, inversamente, esse devir não poderia ser percebido nem
da sua problemática religiosa. A mutação in terna que in tervém a reconhecido em seu sentido autêntico sem ser relacionado e me­
esse propósito caracteriza-se jus tamente pelo rato de que a reli­ dido por uma existência imutável (ein unveriil1derliches Sein).
gião emancipou·se do jugo do pensamento metafisico e teológioo A primeira e mais severa prova que a nova concepção tinha
e um novo critério, uma nova regra de apreciação se criou. Essa que enfrentar era o confron:o com o põóprio rundamento de
regra nãc é simples: baseia-se, pelo con trár io, em dois eleme ntos toda certeza religiosa, 0 0 seja, a !arefa de determinar, de deli·
distintos que ela une e procura concilLll r. O espírito racional e o mitar clara e mctodicamente, o conteúdo de verdade da Bíblia,
esprrito histórico sâo os dois elemen tos cuja síntese é assim pro­ Ali ás, o simples fato de susci tar a questão e de pretender resolvê-­
posta. A razão é relacionada com a história, a história com ara· Ja já representava uma espéçie de revolução do pensamento re­
zão: essa reciprocidade fornece-nos uma nova visão religiosa e ligioso. visto que impli cava um rompimento deliberado com um
um novo ideal de conhecimento religioso. Razáo e história, niti· principio que a própria Reforma jamais contestara , que ela , pelo
damente distintas, 5110 mantidas num estado de tensão mútua, no con trário, procurara impor mais rigorosa e implacavelmente que
qual assenta todo O movimento in terno do pensnmento religioso nunca: o prindpio da inspiração verbal. Todo o esforço da Re·
do século XVIII . Muito longe ele se camjnhar para um simples rorroa tendia justamente a provar que a verdade das Escrituras
nivelamento que sacrificaria a história 11 razão, que a aniquilaria, era integral e única, sem lacunas e sem limites - e que só se
vamos encontrar uma polaridade reconhecida e elaborada com podia proclamá.la em sua integridade e validade absoluta se o
e~tremo cuidado. Essa relação polar, entretanto, de acordo com o texto bfblico não comportasse nenhuma distinç1l0 nem divisão.
espírito da filosofi a iluminista , não exclui um equilíbrio ideal Cada palavra, até cada letra da Bíblia, devia igualar todo o eon·
entre as duas forças opostas: trata·se, com efeito, de uma exis­ junto em valor e em samidade, reivindicar para si o. plena vali·
tência e de uma verdade que se desvendam, sob formas diferen­ dade da certeza da revelação. Mas já no sé.culo XVIII essa
tes, é certo, mas perfeitamente concordantes quanto ao seu con· pretensão tinha grande dificuldade em impor·se contra os pro·
teúdo essencial, na razão e na história . Trata·se, portanto, de gressos do espírito filosófico. O princípio cartesiano da dúvida
uma parte, de erguer diante da história O espelho da razão, de metódica não podia deter·se em táo propicio caminho. Sem dú­
observar nele a sua imagem; de outra parte, de discernir toda
vida, o próprio Descartes não se cansara de garant ir que as no­
racionalídade existente no ponto de vista da hi stória. Em suas
vidades da 5ua dout rina diziam respeito à ciência e não à fé, de
tendências e orientações respectivas, as duas visões coincidem.
proclamar expressamente, para tudo o que pudesse penetrar no
A convicção de que as regras da razão são etern as e imutáveis
247
246
terreno dos dogmêl.'> u" u,ul ('~ ~, ~U d Inteira submissão à auton­ especificameme histórica. O firo ulti mo e o principio de seu pen­
dade das Escrituras e da Igreja. Ele não impede, porém . que seus same nto são o ser puro. não o devif; não a mudança empírica
discípulos e sucessores imediatos não tardem em abandonar essa mas a causa imutável e a unidade essencial das coisas. encerradu
prudente reserva. Mesmo os pensadores que são inspirados pela e sustentada em si mesma_ ~ esse o único objeto do conhecimento
mais pura religiosidade pessoal, que querem sobretudo servir-se adequado; a existência nnita, derivada, particular, s6 é cognoscf­
dos princfpios cartesianos para o despertar e o aprofundamento vel pOr intermédio da "imaginação"'. O mesmo ocorre com o
do espírito religioso, não podem escapar a esse movi mento. A conhecimento do tempo e das relações temporai s. Jamais a ima­
primeira obra cujo titulo já subentende uma históri a crítico dos ginação poderá alçar-se ao plano do conhecimento fil osófico, do
livros blblicos saiu dos círculos ora tori anos. Seu autor, Richard conhecimento sub specie aeterni/atis. o qual, pelo contrário. deve
Simon, inspira-se em Malebranche. de quem é amigo pessoal. su perá-Ia. despojar-se do imaginário, para atingir a sua perfeição.
Começa por examinar a au tenticidade dos diversos livros da Bí­ Desse ponto de vista, o reconhecimento de uma verdade "histó­
blia. por formular hipóteses sobre 11 sua origem, numa série de rica" no sentido próprio parece estar excluído; em rigor. essa
diligências que aba lam os fundam entos da ortodoxia . Sublinhe-se idéia s6 pode ser urna contradictio in adiecto. No entanto , Spi­
que esse primeiro exame ainda estava rese rvado aos meios ecle­ noza foi quem primeiro concebeu com plena luci dez a idéia de
siásticos e pretendia servir indiretamente aos planos da Igreja uma historicidade da Bíblia e quem a desenvo1veu de maneira
Católica. pois a crítica de Simon quer demonstrar que os pro­ clara e positiva. Acompanhando O desenrolar dessa tese a fim
testantes não têm razão em confiar exclusivamente na verdade de mostrar a sua situação no conjunto do sistema spinozista. des­
da Blbli a e em remeter para essa font e única e fu ndamen tal toda cobre-se que ela não provém. em absoluto, de uma orientaç.ão
e qualquer outra autoridade religiosa. A Bíblia, por si mesma, '-listóriea imediata. de um interesse espontâneo pelo método his­
não oferece um abrigo absoluto contra as investidas da dúvida ; tórico como tal ; ela nada mais representa senão uma das conse­
ela deve ser completada e apoiada por ou tras instâ ncias. pelo qüências mediatas das premissas lógicas do sistema. I! O monismo
testemunho concordante da tradição da Igreja. l2 Assim, não che­ de Spinoza que se recusa a adm itir a situação di st inta da Blblia.
gamos ai nda a uma concepção, a uma apreciação hist6rica mais Até mesmo a 5i tuação distinta do espiritual em geral. Extensão e
livre das Escrituras. A hist6ria, na medida em que se recorre ao pensamen to. natureza e espírito. ordem das coisas e ordem das
seu julgamento, é constantemente anexada aos fi ns particulares idéias não são duas ordens diferentes e fU;ldament almente dis­
da ortodoxia eclesiástica. I! preciso esperar pela audácia de Spi­ tintas. mas duas ordens idênticas. assenles na mesma lei essen­
noza para que seja. enfim , apresentada a questão realmen te inci­ cial. Assim. a consideração da existência histórica não pode ser
siva e decisiva . O seu Trotado teológico-político é. com efei to, separada da da existência natural; uma e outra devem ser estu­
a primeira tentativa de just iricação e de ru ndamentação filosófica dadas desde um mesmo pontO de vista. " Para ab reviar. resumirei
da crítica bíblica. A primeira vista, pode parecer estra nho e esse método dizendo q ue cle em nada difere do que se utiliza na
paradoxal que esse papel tenha tocado a Spinoza. Se considerar­ interpretação da natureza , mas concorda em todos os pontos
mos o conj unto de sua metafísica e dc seu fu ndamento racional, com ele. Com efeito, assim como o método na interpretação da
nada parece menos favorável, na verdade, a uma perspectiva natureza consiste essencialmente em con!'iderar primeiro a natu­

2.r 24~
reza como observador e, depois de ter assim reunido os dados lidade do seu autor. O 1'raclatus theologjÇO·pofiticus quer ex­
certos, em conclui r a part ir deles as definiçOes das coisas natu· plicar a Bíblia dessa maneira . Não há dúv ida que suas explicaçõcs,
rais, também para in terpretar as Escrituras é necessá rio adquirir comparadas aos resultados da crhicll bíblica científica ulterior,
um exato conhecimen to histórico e uma vez na posse desse 00­ apenas produzem, com bastante freqüência, uma impressão de
nhecimento, ou seja, de dados e princíp ios certos, poder-se-á estranheza e arbitrariedade. Mas o pri ncfpio metodológico como
então concluir, com base neles e por via de legítima conseqüên­ lal nâo é atingido por essas fraquezas e esses defeitos manifcslOs:
cia , q ual O pens~mento dos autores das Escrituras_ Desse modo. apesar de todos os ataques que o Tratado de Spinoza sofreria,
çom efeit o (quero dizer, se não se admitirem ou tros princípios e ele não podia mais ser abandonudo da í em diante.
outros dados para in terpretar as Escrituras e esclaret:er o seu Parece que Spinoza não ex:erceu nenhuma influência dirctu
conteúdo a não ser o que possa ser extraído das próprias Escri­ sobre o pensamento do século XVII I. Evita·se cuidadosamente
turas e de sua história critica), cada um pode rá avançar sem pronunciar o seu nome; sua doutrina só é divul gada por canais
rist:o de erro e poderá tentar fazer-se uma idéi a daquilo que ul­ indiretos que carreiam toda espé.:i c de impurczas. Em sua ex­
trapassa a nossa compreensão, com a mesm a segurança de tudo posição e sua cdlica do spinozismo, Bayle fez tudo o que pôde
o que nos é conhecido graças à luz nll turul. " :.a Tul é o prinçÍú; o. para orientar os debates para um caminho fa lso, colocando-os
simples mas dec isivo, e prenhe de conseqüências, que Spinoza numa perspect iva perfeitamente unilateral e errônea. Mas a pr6­
representa : elc decide interpretar não o ser, a "na tureza das coi­ pria idéia de uma crítica histórica da BIbUo. tampouco dei xari a
sas", a partir da Bíblia, mas a própria Bíbl ia como uma parte do
de vingar e de expandir-se incessantemente, apoiando-se menos
ser e como tal submetida às suas leis universais. Ela não é a ch uve
na verdade, em considerações gerai s de método e de fil osofia dt.
da nat ureza, é um dos seus elementos; por isso ela deve ser tra­
que no grande modelo do H umanismo e no ideal de saber que
tada segu ndo as mesmas regras que valem para todas as espt­
o caracteriza. O mestre espíritual desse movimento não é Spinoza
cies de conhecimen to empírico. Por que se deveria, além disso,
mas Erasmo. As convicções religiosas e o ethos do Humanismo
esperar da Bíblia verdades absolutas, intuições melafísicas acerca
tinham, com efeito, encontrado sua primeira expressão clássica
do princípio fu ndament al das coisas, acerca da fla/ura naturaflS ,
quando ela própria é apenas uma real idade condicionada e se­ na edição crítica do Novo Testamento publicada p:>r Erasmo.
gunda, quando ela própria pertence integralmente à natura natu­ Partira eSle do princípio de que, ao restabelecer o texto autên­
rata? O método que se impõe para a interpretar e compreender, tico da Bíblia, devolvia-se ao mesmo tempo à doutrina cristã
para chegar à sua verdade relaliva consistirá portanto. necessa­ toda a sua pureza original. Que se decan te esse texto de todos
riamente, em tratá·la , em interrogá-Ia com os meios da investi­ os acréscimos tardios, de todas as fa lsificações arbitrárias, e a
gação empírica. As dificuld ll d e~ que ela contém, as contradi ções imagem do cristianismo puro se destacará par si mesma, em sua
evidentes que comporta, resolvem-se desde que cada texto seja subli me simplicidade, em suu significaçiio t tica primeira e fun­
colocado de novo em seu contexto ; quando, em vez de consi­ damen lal. Essa conv icçiio devia inspirar a obrll do maior dis­
derar cada passagem da Bíblia uma verd ade lll temporal, ela é cípulo de Erasmo, Hugo Grotiu s. Foi no esplrito extraordinaria­
explicada pelas particularidades de sua origem e pela individua­ men te amplo e ulimentado em todas as fontes da erudição hu­

250 ?51
manísta e teológica de Grotíus que nasceu o primeiro plano com­ de conceitos antropom6riicos. Ela foi assim excluída definitiva­
pleto de crítica bfblica; suas Annotationes ao Antigo e ao Novo mente do domínio da ve rdade filosófica, a qual não poderiu ser
Testamento traçaram nos mínimos detalhes O caminho a ser se­ apreendida na imagina tio mas apenas concebida na ratio e na
guido pela investigação do século XVlI I. Ernesti fala com a iniuitio. O que o espírito religioso considera ser a garantia su­
maior admiração dessa obra, e vale-se dela expressamente como prema de toda "inspiração" é, portanto, pelo contrário, para
de um modelo. No Tratado da livre jnvestigação do cdnone Spinoza, a sua fraq ueza e a sua defjciência radical. A violência
(1771) , de Semler, esse desenvolvimento obteve a sua primeira com que a inspiração apossa-se do indivíduo e submete", intei­
e concludente realização . A crítica filosófica pouco tem a acres­ ramente, a maneira como faz dele um instrumento sem cons­
centar a esse trabalho: ela contenta-se , de um modo geral. em ciência e sem vontade nas mãos de uma potência estranha, apa­
remeter para os seus resultados e em aduzir deles as conseqüên­ rentemente superior: todos esses traços excluem a possibilidade
cias lógicas. No artigo "Bíblia " da Enciclopédia, Didcrot esboça de uma verdade autêntica e rigorosa, pois toda verdade está
um q uadro quase completo das tendências e tarefas essenciai s da ligada à condição da liberdade interior c da intuição racional.
crítica bíbl ica. Estabelece os diversos critérios q ue permitem Ela só pode ser alcançada se a potência das paixões e da imagi­
apredar 3 auten ticidade dos livros das Escrituras; exige que se nação fo r represad a e subm etida ao comando rigoroso da razão.
analise cuidlldosamente o conteúdo desses livros, que se averigúe A intensidade da paixão, a força da imaginação que se manifes­
as condições em que eles Coram escritos, que se detennine exa­ tam no visionário religioso, no proCeta , são a prova mais certa.
tamente a data de sua composição. O princfpio da inspiração porta nto, de que suas visões nada têm a ver com a descoberta
verbal foi assim rejeitado de uma vez por todas: o método de de um conteúdo de verdade objetiva nem com a proclamação de
interpretação histórica penetrou até o cerne do sistema teológico. uma vontade divina universalmen te coerciva, e de que toda essa
predicação permanece vinculada à subjetividade do profeta que,
Mas, apesar de todas as negativas, não foi um abandono
embora pretendendo falar em nome de Deus, na verdade somente
do verdadeiro espírito desse sistema o que assim se produziu?
fala em seu próprio nome e somente divulga o seu próprio estado
O senso histórico recém-despertado não foi um verdadeiro vene­
interior. O capítulo de in trodução do Tratado teológico-polftico
no que a teologia recolneu em seu seio? Voltando a Spinoza, não
o qual trata da profecia, desenvolve essa tese com perfeita niti­
pode naver nesse ponto nenhuma dúvida: a idéia de historici­
dez. Ele mostra que a imagem de Deus muda com cada profeta,
dade da Bíblia só comporta-um sentimento essenciaLmente nega­
que ela recebe a fo rma de sua imaginação e a cor de seus humo­
tivo, pois todo O saber que se liga e se limita às relações de tem­
res. Segundo o temperamento do profeta, a força da sua imagi­
po osten ta, em definitivo, a marca da ~im agi n ação". Semelhante
nação, segundo os even tos por ele vividos anteriormente, a men­
saber nunca nos poderá fornecer uma idéia adequada, uma in­ sagem transforma-sc. "Conforme for o homem, assim será o seu
tuição estritamente objetiva . Mantém-se confinado no domínio Deus"; suave para o suave, colérico para o colérico, sombrio e
da subjetividade, do puro antropomorfismo. Reconhecer e tratar severo para o oprimido e o melancólico, bom e misericord ioso
a Bíblia como uma reali dade cond icionada pelo tempo, eis o para o espírito sercno. M Para exprimir o pensamento profundo
que significa exatamente para Spinoza considerá-Ia uma coleção da crítica bíblica de Spinoza na língua do seu sistema, que o

2"2 253
Tratado teol6gico-político não pode c não deve evidentemente noza inttoduz na religião a considereção da história, essa ini­
falar, digamos que a " substânci a", a natureza e a ess:;neill de ciativa só pode e deve servir pa ra limitar-lhe o alcance , pura
Deus, não pode ser dada em nenhuma visão profética, mas que cvidenci2r os limites intransponíveis de sua certeza, e não para
nessas visões é sempre um certo "modo" que se exprime e a si justificá-Ia filosoficamente.
mesmo se anuncia. E mais do que em qualquer outra pDrte im­
Mas fo i ent:io que ocorreu uma prodigiosa virada na hist6­
põe-se aqui a tese de que toda determ inação é negação. Longe
ria das idé i a~ do século XVIII : o prime iro grande pensador que
de tal forma de ex.pressão poder trazer para a luz o âmago e o
realmente compreendeu Spinoza , que profu ndamente meditou e
sentido do divi.no, ela é, ~Io contrá rio, a sua aniquilação. A
compartilhou do seu pensamento, irá agora ultrapassa r as con­
caracterfstica do divino é a sua universalidade , a qual exclui
clusões do seu mestre . Lessing .: quem dará ao spinozismo a sua
toda limitação ao individual, todo vínculo com o ind ividual.
verdadeira fisioncmi<i , libertandv-o das caricaturas com que o
Os mil agres e as visões profét icas da Brblia ferem essa certcza
ht:villm sobrecarregado os teólogos e filósofos seus adversários.
primordial da filosofia. E procurar Deus no ocasional e no con­
Foi e.te o primeiro a enxergar a doutrina de Spinoza sob a sua
tingente. em vez de procurá-lo no universal e no necessá rio. O
verdadeira luz, e entregou-se a esse pensamento sem reservas
milagre, como usurpação (Eingrilf) da ordem natu ral. como rup­
nem preconceitos; pertc do fim de sua vida , nada mais tinha,
tura com SUBS leis universais. ~ absolutamente ontidivino . pois
segundo parece, de essencial, de decisivo, a opor ao seu rigor ló'
nessas leis consistem a verdade e a essência de Deus: constituem
gieo e à sua necessidade tn tetn:! . A entrevista com Jocobi mos­
o seu testemunho. " Mas uma vez que. necessa r i .:;mcnt~. nada ~
verdadeiro seniio por um decreto divino, as I<,":s un iversais da tra em Lessing, desde o começo, um spinozista convicto: "As
natureza são simples decretos divi nos decorrentes da necessi­ concepções ortodoxas da Divindade nada mais significam para
dade c da perfeição da natureza divina. Portan to. se alguma mim; não es tolero. Ev xo' 11ã" : não conheço nenhuma outra ."
coisa ocorresse na natureza em con tradição com as suas leis uni­ Mas toda a grande:za de Lessing, sua soberba imparcialidade, sua
versnis. isso também estaria em con tradição com o decreto. com receptividaàe. assim como sua originalidade c profundidade, re­
o entendimento e a natureza de Deus; ou, se admiti rmos que velam·se ainci~ por esta caracterrstico: foi ele quem , sem deixar
Deus age con lrariamente às leis da natureza, seremos obrigados de reconhecer Spinoza como seu mestre, tomou a iniciativa de
a admiti r também que ele age contra a sua pt6prja natureza, e ultrapassa r aS suas conclusões, segundo uma lógica puramente
nada pode ser mais absurdo." U A crença nos milagres. no sen:i­ imanente, metodológica. O ca ráter essencialmente produtivo da
do próprio, ~ portanto para Spi noza ti perversão do sentido re, crítica de Lessing é aí não menos evidente do que no dornfnio
ligioso: pregar os milagres significa negar a Deus. A situação da critica estélica e literária , Verifica-se que ele aceita a visão
não ~ direrente no tocante a todas essas profecias e revelações de Spinoza sobre os pontos mais importantes. os mais essenciais;
religiosas subjetivas que provêm de indivíduos isolados e so. sem dúvida, mas pel:!o manei ra Como os acolhe, impregna-os com
mente exprimem essas naturezas pa rticulares. Toda particulari­ o seu próprio caráter e o seu próprio pensamento, ao ponto de
dade ~ negação da universalidade: toda historicidade restringe. os reformar por completo. Lessing, tal como Spinoza, nega ao
perturba e oblite ra o racional. Na medida, portanto, em que Spí. milagre todo o valor probatório no plano religioso. Por canse­

254 255
guinte, o milagre autênlico reside no universal, não no parti. poralidade como tal não constitui O cont rário do ser, porquanto
cular, não no contingente mas no necessário . Os "ntilagres da só nela o ser pode aparecer e manifestar·se em sua pura essen·
razão", como lhes chamava l..eibniz, são para ele o testemunho cialidade. Ao levar .essa idéia fund amental parti! o domínio da
autêntico e o selo do divino. Lessing adere, portanto, com Spi. religião, Lessing tem pela frente um problema inteiramente novo
noza, à unidade e à universalidade da idéia da natureza c, ao e uma solução não menos nova : do ravante, não mais se recor·
mesmo tempo, derende o postulado da pura imanência. Deus é retá somente à historicidade das fontes da reUgião para criticá·
uma petaneia intramundana (eine inllcrweltliche Macht), não ex. la, até mesmo para refutá·la; agora, li historicidade enraíza·se no
terior ao mundo; não uma violência que irrompe no mundo da sentido fundamenta! e originário da religião. Ao passo que Spi·
nossa experiência, mas uma força que o impregna e o elabora noza, ao eltammar a sua história. só pensa em contestar o valor
in teriormente. Lessing, entretanto, vê o modo como se processa absoluto da revelação, Lessing quer, pelo contrário, executar
tal elaboração sob um prisma diferen te de Spinoza. Onde este através desse mesmo exame a restituição (R estitution), o resgate
só via decepção e ilusão, Lessing entreviu uma verdade nova e da religião . A verdadeira, a única reli gião "abscluta" é aquela
essencial. As relações entre Htodo" e " parte" , entre "universal" que abriga em si a totalidade das formas fenomenais do rcHgiosQ.
e "part icular", enrre universalidade e individuaJ idade são, com Nada de individual está absolutamente perdido nela; nenhuma
efeito, mu ito diferentes nele do que eram para Spinoza . A sigo visão tão particular, inclusive nenhum erro, que não sirva, num
nificação do particul ar e do individual não é puramClHe ncga. sentido, à verdade e não lhe pertença. Desse pensamento funda·
tiva; ela também é, por outro parte, eminentemente positiva. mental nasceu Erziehung des Mel1$Chengeschlechts [A educação
Por esse traço, reconhece·se em Lessing o partidár io firme e cons. do gênero humano). de Lessing, que transfere para um novo
tante de Leibniz que nunca deixou de ser. Mens nOIT pars est, domínio o conceito leibniziano de teodicéia: ao conceber a te-­
sed simulacrum divinitatis, rcpraesentativum univeTsi: dessa f6r. ligião como um plano divino de ed ucação, Lessing elabora uma
mula leibnizíana característica Lessing está em seu pleno direito tcodicéia da história , ou seja, um sistema de justificações que
de apropriar-se. A individuaJidade tampouco represen ta para ele aprecia a religião não em runção de um ser estável, dado no co-­
uma limitação simplesmente quantitativa , mas uma determinação meço dos tempos, mas em função do seu devir e da finalidade
qualitativa, incom paráve l e insubsti tuível: não um rragmento do desse devir.
real, mas uma representação perfeita, autêntica e exaustiva do Descobre·se toda a dificuldade que eJSB nova idéia teve em
real. Desse modo, a ex istência temporal adquire uma outra ex. impoNe se compararmos, sobre esse ponto, Lessing e Men·
pressão, um aspecto muito diverso do que linha em Spinoza. delssohn . Por muito próximos que estejam esses dois pensadores
Tendo defi nido a mônada como "expressão da multiplicidRde na pelo conteúdo de seu ideal religioso, 8 sepa ração entre eles é
unidade", Leibniz podia igualmente defini ·la como expressão do muito nítida no plano do método. Sem dúvida, Lessing e Men·
temporal no imutável. A mOnada s6 é à medida que se desenvolve Jclssohn estão, por seus pressupostos teóricos, estreitamente apa·
progressivamente, e não existe em seu desenvolvimento nenhuma rentados : ambos aderem às concepç6es leibnizianas. No início,
rase separada que não seja absolutamente indi spensável ao todo, apenas havia entre eles uma diferença de orientação: enquanto
que nôo lhe pertença necessariamente. Portanto, a fonna da tem. MendelssohD se contenta, em geral. com a in terpretação tradi·

256 257
ciom~{ que essas concepções encont raram no sistema de Chris tian entre as verdades necessárias ou e n~re as ve rd&des contingentes?
Wolíf, Leslõ il~g , e:n contrapartida, movido por seu senso crítico 11Iàscia-se num princípio raciona l intemporal o u num princípio
e por seu interes$C pela nIosofia da história, preferia remontar temporal histórico? LeSSiilg debateu-se longamente com esse pro­
incessantemen te às ronles. O esquema geral do pensamento é o blema e parece ler, por vezes, desesperado de resolvê-lo: ele
mesmo, portanto, para l..essing e Mendelssohn : é fornecido pela não pode renunciar à " rac ionaJidade" da religião ne m pôr em
distinção leibniziana das formas fundamentais da ve rdade." A ~Iúvida a particularidade, a própria sjngula ridade de suas for­
teOl ia leibniziana do conhecimento tinha, com efeito, traçado mas, a realidade de seus vinculos com uma te rra e uma tpoca.
uma fronteira rigorosa com o objetivo de separar as verdades O cerne da fé· não consiste em admit!r. em te:- por verdadeiro
~ eternas" e as verdades .. temporais", as verdades "necessárias JJ um sistema conceptual intrinsecamente válido e absolutamente
e as "contingentes". As verdades eternas e necessárias ex primem Intemporal; a ré não pode deixar de estribar-se numa verdade
as relações que regem as idéias puras, quer essas idtias possuam singular, única no seu gênero. acerca de um evento individual e
ou não, ereUvs me nlt, um o bjeto na realidade, no mundo e mpí­ IoCm retorno . Entre esses dois caminhos naturalmente separados,
rico real. Os teoremas da geome lTia o u da a ritmé tica puras não existirá uma terceira solução'! "As verdades hist6ricas contin­
slio menos eterna e necessariamente verdadeiros mesmo q ue não gen tes jamais podem provar as verdades necessári as da razão."
exista na realidade espaço-temporal , no mundo dos corpos {fsi­ ~Se nada tenho a objetar, historicamente. ao fato de que o
COS, ne nhu ma rorma singular que corresponda exatamente aos Cristo ress uscitou 1.:111 morto , deverei aceitar iguulmentl: por ver­
rigorosos conceitos estabelecido! pelas matemá ticas para os núme­ dadeiro que Deus tem um fi lho da mesma natureza que ele? Se
ros e as diversas fi guras geométricas. E o que vale para as ver­ nada tenho a objetar historicamente ao fato de que o próprio
dades matemáticas não vale menos , segu ndo Leibniz, para as Cristo ressuscitou dentre os mortos , deverei aceitar igualmente
verdades da lógica , da ética e da metaHsica. São, com efeito, por verdadeiro que esse Cristo ressuscitado era o filho dc
ciências q ue não se valem somente do mundo reaL d lldo aqui e Deus? [ ... I Saliar dessa verdade histórica para uma o utra classe
agora. mas tam~m de todo e qualquer mundo possível. Elas n50 muito dlver!>a de verdades, exigir de mim que mude, por essa
se referem li tal existência singular no espaço, a tal evento único razão, todas as minhas concepções metafis icas e moráis [ ... ] se
no tempo; nelas se exprime a forma absolutamente universal da isso nâo é uma pn&.fJCUft, ,lç 4.Uo -ytJ'O, , então
própria razão - da razão sempre e por toda parte idêntica 8 si ignoro o que Aristó teles poderia entende r por essa f6nnuJa [. . .]
mesma, que ignora toda a possibilidade de mudança, de movi­ T al é o abismo horrivelmente prorundo q ue não pude reso1ver­
mento, de alter ação, pois que toda alteração significaria declínio me a tra nspor, apesar de ter tão freqüente e seria me nte tentado
de sua natureza o riginária, suprana tural e eterna . Partindo dessas o salto . Q ue aquele qce pude r acudir-me o faça, eu lhe peço e
definições leibnizill nas da verdade e das di st.i nçoes específicas Ihc imploro. E que Deus lhe conceda a merecida recompensa." n
que elas impli cam, cai-se inevitavelmente na qucstiío de saber Nem a teologia ne m a metafísica especulativa do século
de que modo são a plicáveis ao problema da ce rteza religiosa e XV II[ continham em si um princípio q ue permitisse responder
quais as conseqüências de q ue se revestem para esse problema . verdadei rame nte à indAgação de Lessing e satisfazer suas exigên­
A que espécie de ce rteza pertence a fé religiosa? A fé tem lugar cias. Ele precisava encont rar O seu próprio caminho, descobrir o

258 259
meio de entulhar a seus pés o "abismo horrivelmente profundo". lnaccitável que a realização do fim supremo da humanidade pu­
Foi essa, de fato, a tarefa realizada por Lessing em sua última desse ser confi ada a um guia tão duvidoso quanto a história.
obra de filosofia da religião. O histórico não se opõe ao racio­ com todas as suas irracionalidades e contradições, seus prós e
nal: é o caminho para a sua realização, o lugar autêntico, o contras sem ohje!ivo e seu repouso, com suas rtutuaçóes e erros
único lugar, a bem dizer, de sua efetivação. Os elementos que perpétuos. I! por isso que ele foge às mudanças inúmeras para
o espírito analhieo de Lt;.ibniz distinguira com um esmero e llcolher-se nas leis invioláveis e sempre idênticas da razão. Mas,
uma clareza incomparáveis tendem de novo a juntar·se, A reli · no fundo, Lessing já não conhec.e tal "razão·. Isso não significa
gião, segundo Lessing, não pertence absolutamente i\ esfera do tl uC ele não tenha sido, desde o inIcio, o grande racionalista que
eterno e do necessário, nem à esfera do puro contingente e do {oi até o rim , mas substitui a cor.cepção analítica da razão por
temporal. Ela é a un ião de ambas, sua unidade, manifestação sua concepção sintética. a visão estática por uma visão dinãm.ica.
do infinito no liniJo, do eterno racional no devir temporal . Por Se ela nos mostra por si mesma o movimento, a razão quer,
todos os desenvolvimentos que forneceu a esse tema , Lessing já nõo obsta0 te, compreendê·lo sem sua própria lei ima nente . -a ela
se situa, evidentemente, na transição da filosofia do Iluminismo própria quem mergulha agora na corrente do devir, não para
propriamente dita. Tanto o "neologismo " teológico quanto o ra· ~c deixar agarrar e arrebatar por seus redemoinhos, mas para
cionalismo universitário não podiam acompanhá·lo nesse cam i· encontra r, no seio desse devír, a sua própria certeza, para afir­
nho, pois essas duas correntes pensam a razão no sentido da mar sua perenidade e sua constância . Nesse pensamento despon­
"iden tidade analitica";!l8 a unidade e a verdade da razão ba­ la a aurora de uma nova visão do ser e da verdade da história
seiam·se em sua unicidade e em sua uniformidade e não pode­ que não podia, na realidade, brotar , aperfeiçoar·se e afirmar-se
riam subsistir validamente de out ro modo. A atitude adotada 110 âmbito da teclogia e da metaffsica. Coube a Herder dar, nesse
por Mendelssohn a respeito das teses de Lessing é particular­ coso, o primeiro passo decisivo ao formular o problema para a
mente característica e esclarecedora: "Por minha parte -lemos totafidade da realidade histórica e ao procurar uma resposta na
no jerusalem de Mendclssohn - não fa ço a menor idéia deSSII observação w ncreta dos fenômenos históricos. Mas a sua inicia­
educação do gbnero humano que o meu falecido amigo Lcssi ng tiva só aparentemente foi soli tária. Ela não apresenta a menor
deixara que não sei que historiador da humanidade lhe metesse ruptura com o pensamento da ipoca iluminista; desenvolveu·se
na cabeça. O progresso é pura o homem indi vidual , a quem a ten ta e constantemente no seio desse mesmo pensamento, nutriu­
Providênci a concedeu passar na Tcrra uma parte de sua eterni· se do seu solo. O problema da história apresentara-se à filosofia
dade ( .. . ] Mas, que o conjunto da humanidade deva avançar ra­ do Iluminismo. em primeiro luga r, no âmbito dos renômenos reli ·
pidamente neste mundo. na seqüência do tempo, e aperfeiçoar·se, giosos, e roi aí, de foto, que a sua urgência impôs-se. Mas não pc­
não me parece que tenha sido esse o objetívo da Providência: clia limitar-se a esse primeiro aspecto do problemo; por isso se viu
pelo menos, não é. nem de longe. tão certo e tão neccssário sempre arrastada para mais longe, na direçi!o de novas canse­
quanto se tem o costume de imaginar a fim de salvar a Provi­ flU ênci as e de novas exigências. E foram essas conseqüências e
dência divina." Para Mendelssohn, que encarna aq ui O próprio essas exigências que lhe abriram todo o vasto horizonte do mundo
tipo de filósofo do Il uminismo, era em definitivo uma idéia histÓrico.

260 26 1
NOTAS

I Cf. Holbach, PaUliqllt 1lI1111,~lIt, Di~urso 111, em panÍl:ulflf t XII


c M. (reprodutido em Hube rt. D' HQ/burh 1'1 5('J alllls. Paris,. sem data,
flP. 163 e $S. )
2 Diderol . Tra;tl de la tofü(JI!ct , ed . por Tourneux em DidtrO l "
Ca/lrlr/fI' 11, pp. 292 e M.
I Diderot. Supplimcllf Q,. voya!?/: d I! Bougail1 vll/c (171l), OraI/reIS
( i\~zat ) , 11. 'pp. 199 c ".i cf. especilllmente !l, pp. 240 c 5/1.
4 Para uma exposição maÍ3 romp ida, cf. o meu livro Individuum
Jlnd KosmQJ i/l der Phifosop"k dn R, "Qi.uaIlCC, Stud. der Bibl: Wllrbur;
X. Lcipzia. 1927.
1\ Para mais detalhes, cons ultar o meu livro D/ti P/Q/oI1IJ'cIr c R I' ­
/II/f,rJ'/mel! In E'lgland und dil! Se/wl" vOn Cambridge, caps. 2 e 4.
RS. Troe l! sc:: h, RenaiJSlJnce IIlId Reform ulion. CCIl. W uk" vol. 4.
pp. 275 e u .
i Pa~ l , Pl'nI,Ü Il, arl. VIU (ed . ErnUI H avei, S.- edição, P arj~.
1897, T, p. 11 4) .
8 C f. Volta ire, R ~marqu~~ ~I, r In pltnSitS de M. PaS<'al, 1728-78,
Orl/vrf'l (Lequie n, Paris, 1921 ), XXXI, pp. 281 e $S.
'Cf. Addilions au:t remQrqun lur leI "~tlS~~S" de Poscof (1743 );
OI'. cit., vol. XXX], p. 334: " }'r:x-islt, donc qurlqUt chost t l'isle de 'OU /e
"~,,,i,~ est Une proposition evidente."
lOPens~t1. VIII (op. cil. .o. 11 j): "le noeoo de noite condilion
prend .stS replis tt ses tOUU dans «I ;r,bime; de sorte que I'homme est
pJus mconcevable sans te m)'lli:re que cc m)'Stêre n'cst illOOlK'eV'dble li
I' hommc. " [O n6 de nossa condição faz seus entrelaçamentos nesse ab is­
moO: de modo que o bome m e mais inconcebivel $C nJ esse misll!:rio do
IluC C!I.:Se mistüio incoocebivcl ao homem.1
IJ CC em particular, "11 laul prendre un parti ou Ir prínCipe I'aclion"
(1 772 ) ; seco XVII : " Du roman, in ven lQ pour dev iner I'oriaine du <nal ."
(Otuvres, XXXI, p. 177)
12 " 11 faul prcndrc un parti" rE: preciso toma r pa rtidu]. seC o XV I
(Orllvres. XXX I, pp. 174 e ss. ).
1~ Cf. Pe,,~'trj, ed. Havei, XX IV, p. I: XXV, p. 34 (n , !J7, I S6) e
1'1I8sim.
H C f. o poe ma u MOtldain (1736) e D~/cl1..~ du mondai,. ou 1'lI po,
IQHi~ du II/xe, Ot:l/vr~s, XIV, pp. 112 e "'J
122 e u. As análises sciuinll:ll

263
t i Sobre o dese nvolvimento da " neologia" na Alemanha, cf. es pe­

°
cialmente a desc rição e ab undante materia l com pilado por Aner, Th ~u1o­
l/e ckr Vuingui /. Halle, 1929. Sob o II.!p>eCIO bistórico, I~m particu lar
intereMC as rd açõe, exislen tes cnuc 05 "ne6losos" alcm:iu do sêculo
XV III c • filosofia d. rcligião inglcsa do skulo XVll. A idéia de "cxpc·
ri!ncia religiosa". lal co mo está repu:senlada, por c ,;cm plo, cm Jerusalem,
foi prclisurada cln PKrlicular pelos pensado res da "Escolll de Ú1m·
bridge". Detalhes a esse re.' peito em meu liv ro Dir Plalollisch r Rrll/liJ· V
saneI! in t:flIl/alld . .. (cf. acima, p. 119); em c~peda1. PJ'l. 19 c 5~.
U Cf. o Prefácio de Reimarm pa ra o scu AbhandiwIg von drn
A CONQUIST A DO MUNDO HISTÓRICO
vornt' JrmS/ef/ Warhriten du f/atiirlichel/ R e/l6ion .
• n Cf. CJarll:e, A demOn.fll"aliol/ 01 lhe ~ing and a/lrib,fle.J 01 Cod,
Londres, 1705106.
4l Ver a VII Lellrr SUl" les anglais, O euvrts, XXVI, pp. 13 e 5-5.
4 ~ I raili d.. m ~/aph.Hiqlu, capo lI, O"II~'tS, XXXI, pp. 20 e 58.
~~ Collin ~. A Ji.wv/lfu of 1" 'I'I!t;"k ;"1/ QC{'u&iVlled b)' ,Ir" ris" u,rd
grvM"lh 01 11 srel coll,,(1 I,ulhi"kers. Londrc ), 11 13 . PaclI uma informação
mais completa, ver Le~lie StephC'n, op. cit., "'01. I, p. 8U. Essa idéia lão correnlC: de que o século XV III é um século
~ ... Para todo eSte aSSUlllo, cf. H ume, "l"ht 'ldll/ml " Ülo' )' 01 ,eU1/ia", especificamenle "a·histórico" constitui, em si mesma, uma idéia
seco I c 55., seC. Vi, XIII-XV. desprovida de qualquer fu odomento histórico: nada mais do que
~I .Humc, op. cil.. seco XV.
uma palavra de ordem divulgada pelo Romantismo, uma diviso
;)2 Cf. RichanJ S1mon, H islojr e crilique JI/ Vitl/x T....r/llllr r /ll, Paris,
1618 .
para se partir em campanha contra a fil osoria do Iluminismo.
~a Spinoza, TNlClo/l1S IIIeologico-pofilicll.f, capo 17 ; edição alemã coor .
E se examinarmos um pouco mais de perto o desenrolar dessa
denada por C" rl (jebhardt, Lcipzig. 1908. Philos. Bibliotbek. vol. 93, campanha, não se tarda em dC~l.:obrir que foi o próprio Século
p. 13'. das Luzes que (orjou 85 armas . O mundo da cultura histórka ,
11' Cf. especialmente, Tlre%g.·polil. 1'raklfr/, capo 2, edição atemã ao qual se recorre tanto, do lado do Romantismo, conlra a fil <>­
(Gebbrudt ) , p. 41.
sofia iluminista , e em nome do qual se combatem os seus princí­
"Op. tiL, capo 6, pp. 112 e 5$.
~II O leitor encontrará um a expmiç:io mais completa do que se !9tv.uc
pios intelectuais, só foi descoberto graças à eficácia desses
no mcu artigo "Die luee der Rel ision bei Lcs~j ng unu M c nde l ~iW h n" principios, graças às idéias e aos ideais do século XVIII . Se não
(FtSI8<1b., zum z<"lulji"igrn B<'J".hrn d.., A~ u<ll'lIIi" fi; r die Wiss"nwh(j/I se livesse bendiciado da ajuda e da herança intelectuais do Jlu·
,/e:l J/ld"'lIun~r. 8 erlim, 1929. pp. 22 e S!.: uma separata desse arti,o
baseou·$C na supracil.da cxp05içio) .
minismo, jamais o Romant ismo Ieda podido estabelecer e susten­
~1 LcMing, Ob"" drn /J('....eu dl'$ G"iSleJ IIlId d", K,afl, Sch,i/UII
tar as suas posições. Por mais que se aÍ8ste da filosofia das
(ed. lachman n-Munck.er) , XliI, pr. 5 c $l;. Luzes em sua concepção da materialidade da história, em sua
II~ C!. acima capo 1, pp. 35 e 5.~ . " fil osofia da história " substancial, permancce·lhe ligado em seu
método, do qual é profundamente devedor. Com efeito, é aindu
o século XVIlI que, nesse domínio, formulou o problema pro·

266
267
pria:nente fil osófico , questionando aI: condições de possibilidade o caber à época que sucedeu ao Romantismo restabelecer Uln
da história, tal como já queSllonara antes as condições de possi­ equilíbrio mais justo. Ela própria estava saturada de espírito
bilidade da física . Trata-se apenas, eviderHemente, de uni pri­ romântico e aceitava o postulado de historicidade estabelecido
meiro esboço, mas ele esforça-5e por ~t abelece r essas condiç6es c (undamentado pelo Roma ntismo . Mas, ao mesmo tempo, adota­
a fim de apreender o "sent ido" do devir tlistórico, para adq uirir ra em relação ao século XVIII a distância conveniente. o que
uma idéia clara e distinta do que seja esse sentido, para fixar lhe permitiu conceder, em suma , a esse mesmo 5tculo o bene­
as relações entre "idéia" e "reali dade", entre "lei" e "fato", e ficio do ponto de vista historicista. Dihhey roi um dos primei·
para traçar limites estáveis e seguros entre esses termos . Que o rOS, no seu artigo "Das achtzehnte Jahrhundert und die geschicht­
Romantismo tenha, em grande medida, desconhecidc esse Ira­ liche Weh" ro século XVIII e o mundo históricol .l a conferir
balho de pioneiro decisivo, que em muitos casos o lenha recha­ ao Século das Luzes a frui ção plena e integral desse benefício.
çado com desdém, essa atitude não deve con tinuar influenciando Se ele refutou de form a definitiva nesse artigo a Jable con­
H

e perturbando por mais tempo o nosso julgamento . Há uma venue" de um século XVIII a-histórico e anti-hist6rico, os pro­
curiosa ironia no fato de que o Romantismo, na acusação q ue blemas concretos susc itados a tal propósito estão, entretunto,
formula em nOme da história COnl ra a filosoria do lLum bismo, muito longe de ser resolvidos. Pois não se tratu somente de
comele justamente a falta que assaca ao seu adversária . Parece acrescentar um " senso histórico", como um traço necessário e
que, de súbito, os papéis inverteram-se, que se produziu uma indispensável, ao quadro geral da ~poca ilum inista, mas de defi­
completa reviravolta diulética. O Romantismo, que ultrapassa nir o direção própria da nova corrente intelectual que tem aí o
incomparavc:tmente o séc ulo XVIII pela ampli tude do seu hori­ seu ponto de partida e proceder depois ao acompanhamento dos
zon te histórico e por sua capacidade de penetração histórica, seus efeitos especíricos. A visão da história do século XV llI é
perde esse privilégio a panir do in stante em que se trata de colo­ menos a de um edifício acabado, de contornos bem-delimitados.
car esse século numa justa pe rspectiva histórica. Aquele que do que a de uma força agindo em todos os sentidos . Como essa
se entrega ao passado com todas as (orças do coração e do força se comporta, inicialmente , num ponto determinado - o
espírito, a (im de o apreender em sua realidade pura, fracassa domínio dos problemas religiosos e teológicos - c como pros­
diante desse passado próximo com o qual ainda se encontra segue em sua expa nsão, atingindo progressivamente todos os
em relação direta. OI! princfp!~ elaborados para vencer O recuo dom ínios do espírito? De que modo ar se revela c se mantém
do tempo, inclusive o ex tremo distanciamento histórico . revelam­ como um impulso vivo? As considerações que se seguem lenta­
se inaplicáveis à vizin hança histórica. A respei to da geração que rão responder a essas questões.
" precede imediatamente, da geração de seus pais, \foi e conti­
nuou sendo vítima de "cegueira histórica" . Nunca se preocupou
em avaliar o Iluminismo segundo suas nonnas especHicas, não !
soube, em especial , ver c trotar o quadro do mundo hi stórico
eleborado pelo século XV I, a não ser em lennos polêmkos, E A filosofia do Iluminismo considera desde o começo que
não é raro essa polêmica transpor os limites da caricatura . Viria os problemas da natureza e os da história formam uma unidade

268 269
que é impossfvc( des(8:z~r arbitrariamente a fi m de trat ar à parte não se tratava de contar com o apoio da existência de lalo de
de: cada uma das frações. Ela pretende abordar uns e outros uma ciência comparável , por seu grlm de certeza e pela solidez
com o mesmo equipamento intelectual, aplicar à natureza e à de suas razões, à físi ca matemáliea. Era preciso, pelo contrário.
história 8 mesma espécie de problemática, o mesmo método uni­ num só movimento de pensamento, conquislar o mundo da
versal da Hrazão". Ant~ de tudo, é que, sob a sua nova forma, história e fundamentá-lo, assegurar o seu domínio no decorrer
conhecimento ffsico e conhecimento histórico defrontam-se oom da conquista_ l! claro que lal tarefa não podia ser realizada de
o (lle~mo adversário, contra o qual devem proteger-se em comum. repente, porquanto exigia uma longa e árdua preparação. Mas
Nos dois casos, cumpre descobri r um fundamento puramente t justamente essa preparação que convoca pura a luta todas as
"ima nente"' ; nos dois caws, todo o esforço tem por objeto a rorças intelectuais do século e que, de um outro lado, testa-as.
tarefa de estabelecer natureza e história em seus proprios terre­ Era preciso então que a filosofia do Iluminismo se Convertesse
nos, fixá-Ias em suas articulações centrais. A ciência como tal num pensamento efetivamente produtivo: ela não podia conti­
recusa-se a reconhecer q ualquer realidade sobrenatural ou trans­ nuar a contentar-se em reun ir os result ados cicn tlficos que lhe
hislórica. Vimos como nasceram dessa recusa uma nova idéia Cram apresentado~ pelas diversas disciplin as; tinha que pôr mãos
de Deus e uma nova Hciênci a sagrada" (Cottesgelehrlhei/) uma à ob ra e tratar de realizar ela própria, em grande medida , as
nova (onna de religião e de teologia . As concepções dos teólogos tarefas de uma ciência propriamente dita. Voltaire. no domínio
inovadores, dos Hne6logos" setecentistas , apóiam-se sobretudo nll da física, é apenas aquele que desbravou o caminho para Newton
idéia e na exigência de uma critica histÓrica das fontes da reli­ na literatura. o divulgador de suas idéias e de seus princfpios;
gião. Na Alemanha, Mosheim e Michaelis . Ernesti c Semler tor­ mas, no domínio da hi stÓria , é uma concepção original e inde­
naram-se os verdadei ros " mestres da geração neologista" . Aqui. pendente, uma nova abordagem metodológica que Voltaire assu­
a história é quem ergue o Facho do Século das Luzes, quem me o risco de inaugurar , abrindo-Ihe O caminho no seu Essa;
liberta os " nOOlogos" dos grilhões da interpretação dogmática sur fes moeurs ( Ensaio sobre os costumes] . Todos os grandes
das Escrituras e da ortodoxia dos stculos precedentes.!! Mas a ensaios históricos que o século XVIII produziu estão agora sob
situação não podi a, evidentemente, ser tão simples e unívoca em a influência dessa im?teSsionanle façanha filosófica. Assim como
história quanto na Hsica, onde a filosofia do século XVI II vi a influenciou na França Turgot e Condorcet, Voltaire influencia
um domínio reconhecido e cOfl5olidado há muito tempo. Na na Inglaterra Hume. Gibbon e Rohertson. E Hume é. ao mesmo
física, o conhecimento já dera, depois da Renascença, o passo tempo, a prova direta da estreita união pessoal que existe dora­
decisivo, a nuolla scienza de Galileu reivindicara e obtivera sua vante entre a história e a fil osofia . A épocll úa ~ hi s tori og rafia
dignidade própria e sua independência como pensamento cien­ filosófi ca" que começa no século XVII I procura realizar um
tífico. Tal como Kant . toda a rilosofia do Ilumini smo podia, por­ equi líbrio enlre esses dois elementos . Não quer. de maneira algu­
tanto, çonsiderar a físicn matemática um " fa to", cujas condições ma , submeter unilateralmente a hi stória aos imperativos cons­
de possibilidade podiam, evidentemente , ser debatidas, mas cuja truti vos da fil050fia, mlls separar imediatamen te dela própri a,
realidade se impunha sem contestação nem reserva. Para a his­ da riqueza c da visão pal pitante do detalhe hist6rico, novas
tória . em contrapartida , ainda havia todo um trabalho a realizar ; ta refas e novos problemas nlosóficos. A permuta de idéias que

270 271
desse modo se instaurou e que não parou de crescer em inten· niio só o testemt.;nh o da experiência sensivel mas todo o saber
siàade e amplitude é prove itosa para ambas as partes. Assim que não seja rigorosamente demonstrável, que nâo seja redutfvel
como a matemática se tornou o protótipo das ciências exalas, u axiomas evidenlCs e à demonstração racional. Daí resulta que
também a história é agora o modelo metodológico a que o século a dimel1siia da história fica intcirameme fora do círculo do ideal
XVII I conferiu uma nova e profunda compreensão da tarefa de saber çartesiano. Não existe o menor conhecimento de um
universal e da estrutura específica das ciências humalla$. O pri· fato que possa conduzir a esse ideal. à verdadeira wpientia
meiro passo devia se r ainda libertar o conjunto dessas ciências ""illersa[is. Em suma, a dúvida cartesiana apenas comporta um
da tutela da teologia. Ao aceitar, numa escala crescente, a intro­ çoráter negativo a respeito da hist6ria: ela rechaça e recusa.
dução do método histórico em sua própria esfera, ao constituir-se Ora, em vez de recusar os fatos como tais, Bayle foz deles, pelo
ela mesma história dos dogmas da Igreja, a teologia era reco­ contrário, o verdadeiro tipo e o modelo de toda a sua teoria da
nhecida, ao mesmo tempo, como uma aliada que não tardaria ciência. Estabelecer fatos perfeitamen te segu ros, inabaláveis, tal
em revelar-se mais poderosa do que ela e em contestar-lhe final ­ é, para ele, o pon to de apoio arquimed iano, o pon to de amarra­
mente O domínio do seu próprio terreno. A competição amistosa ção de toda ciência. Assim é que, em pleno século rigorosamente
redundari a em connito, o qual deveria engendrar a nova forma racional e racionalista, ele será o primeiro "pos iti vista~ conv icto
da hist6ria e das ciências humanas em geral. c conieqüeote. A opinião de O'Alembert , de que a metaffsica
De um ponto de vista puramente filos6fico, as origens desse só pode ser uma ciéncia de fatos se não quiser converter-se numa
movimento remontam ao século XVII. O cartesian..ismo, com sua ciência de quimeras, poderia ter sido pronunciada por Bayle.
orientação estrita e e"cJusiva para o "racional ", mantivera-se es­ Ele renuncia a todo O conhecimento das primeiras "causas"
tranho ao mundo histórico propriamente dito. Segundo ele, o absolutlls do ser e s6 quer considerar OS fenômenos como tais:
conhecimento de um fato nunca pode tcr pretensões à verda· é na quadro do mundo fenomenal que Bayle quer operar a
deira certeza, nem compa rar·se em valo r ao saber claro e distin to distinção clara e nítida do certo e do incerto, do "provável" e
da lógica, da matemática pUra e das ciências exatas da natureza. do errôneo e ilusório. Portanto, aplicD a dúvida à realidade
O pensamento de Malebranche não se afasta um milímetro se­ hist6rica, serve-se dela como de uma ferrame nta para descobrir
quer dessa regra : só pertence ao domínio do saber autêntico. a verdade da história , para atingir uma forma de certeza que lhe
"filosófi co", declara ele, "aquilo que o próprio Adão teria podi­ seja própria e adequada . Nessa investigação, ele é infatigável
do conhece r". Em seus começos de filóso fo, Bayle ainda é um c insociável, impelido pelo instinto sempre desperto para exami.
cartesiano convicto, que nunca deixou de testemu nhar, em espe­ nar os dados do mundo fático, hist6rico, e adotar urna posição
cial. sua admiração pela física cartesiana. Mas a dúvidg met6di­ em relação a eles. Nesse mu ndo hist6rico nada cx.iste para Sayle
ca assume nele , porém, uma outra direção e atribui·sc uma outra de indiferente ou de insign ificante: dificilmen te se vislumbra
finalid ade. A dúvida de Descartes é determinada pelo princípio ncle algu mas nllanças de valor e de significação. Não é por
de que não podemos confiar em nenhuma {ante de certeza que acaso que ele escolheu para li sua obra crítica a forma de um
nos tenha iludido urnA vez ou que contcnha em si a possihilida­ Dictionflaire /listarique et critique. Ao im'és do espírito de su­
de de nos iludir . Med ido por esse critério, cumpre-nos rejeitar hord inação que rege os sistemas racionais, O DiciotUfrio faz pre­

272 273
vaJeccr o pri ncípio da simpl es sucessão por vizinhança. Nunca até dessa realidade. A ce rteza , 8 indi scut ível validade forma l da
se encontrarão nele jdéias h.ie rarquizadas, deduzidas umas das demon:urac;fto ma temá tica, não pode resgatar o caráter rundamen·
Qul ras. mas sempre a mera acumulação de ma te riais , lodos no talmente duvidoso de sua aplicação à realidade conc reta das
mesmo pla no, todos pretendendo o mesmo direi to a serem inte­ coisas. A história depende de um outro "genero de certeza"
gralme nte expostos e tra tados com profundidade. Não sc observa (genre ele certilude) que n ma temática, mas é suscet ível de ser
sequer um princípio de seh.:çiiu na maneira como ele armazena infi ni tamente aperfeiçoada no interior desse g~ ne ro. O fato de
esses materiais. Apenas aqui e ali se surpreende um toque de que um indivíduo chamado Cfcero existiu é metafisicameote
escrúpulo ou uma pon ta de dúvida; mas em nenhum momento mais certo do que a existênci8 real, ill natura rewm, de um
elc age de acordo com um plano metódico que perm ita fixar objeto como aq ueles que a matemática pura define. 4
limites aos di versos conteúdos, sepa ra r o import8n1e do secundá­ Todas essas consideraçócs d ão acesso. efetivamente, ao
rio. o essencial do acessório. Acontece com freqüência q ue o mundo dos fal OS; mas não fornecem nenhum espécie de princi­
não·essencial ou mesmo o inteiramente insignifi can te encontra pio que permita obler vcrdudeiramcnte o dom ínio desse mundo.
lugar no Diciondrio, que nesse seja objeto de desenvolvi mentos assegurar O seu controle int elec tual. O conhecimento histÓrico
circunstanciados e de atenções cuidadosas, ao passo que o impor­ ainda não consiste em muis do que um si mples agregado_ um"
tante é entregue ao abandono. Nõo é o peso das coisas que deci­ soma de deta lhes sem víncu los entre eles e sem lógica interna.
de a escolha dos assuntos, mas a prefe rência contingente, indi­ A reaUdade histórica apresenta-se a Baylu como um amontoado
viduaI. o interesse subjetivo que a e rudição de Bayle manifesta monstruoso de escombros e [alta m todos os meios para se assc·
justamen te pelos objetos mais longfnquos , as antiguidades mais nhorear pelo pensamento dessa massa de materiais. Era neces­
ruras, as curiosidades históricas. Bayle tem perfeita consciênci a sá rio o inesgotável poder de assimil ação de Bayle para cnfrcn tHr
dessa sua ca racterística pessoa l e refere-se-Ihc freq üentemente O caud al crescen te e inv 8$Or do 5aber espcciulizlldo . A própri a
nas descrições que faz de si mesmo em seus escritas e nas suas mol dura do Diciondrio explode. O núcleo original d05 artigos
cartas ín timas. Escreveu ele certa vez a seu irmão: "Ie vois bien independe ntes encont ra-se agora n anqueados par um verdadeiro
que mon inSil.l;abilité de nouve/les est une des ma/adies opiniDtres exército de comentários. observações e notas. que acabam par
conlre lesquclfes IOLlS tes remMes blanchissent. C'esl une hy­ sufocá-lo inteiramente. E, na maioria das vezes, 8 ayle apaixona­
dropsie loule pure. rlus 011 lui 10urn ll. p/us elle demallde." 3 O se mui to menos pelos artigos rundamentais e pelas "questões
omor ao rato pelo fato, a " devoção ao min úsculo" atingem nele essenciais" q ue aí são tratadas do que por aquelas que nos pare­
uma vivacidade intlodila. E essa concepção do saber opõe-se cem justamente ser "acessórias". Não só ele se entrega alegre­
conscie nte e ex pressamente ao ideal do saber racional rigoroso. mente ao não-essencial mos, além disso, v@ aí a expressão da
Como efeito, por maiores que sejam as vantagens qoe este últi · nova tarda que lhe incumbe como hisloriador. Não se orende
mo saber tenha, em exa tidão e ri gor. sobre o saber puramente com 8; censura de futilidade ne m com o título de minutissimarum
empírk:o do historiador, essa conc ep~à o deverá pagar tais van­ rerum minutissimfls scrutalor que lhe conferem . Não é por incli­
tagens com um dcfeito essencial. O lieu caráter estri tamente ra­ nação pura, ex plica ele, mas por re fl exão, por uma intenção
cional veda·lhe todo o contoto direto com a realidade , excluj-a metódica conscienle, que optara por essa maneira de lIabalbat.~

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Se a historiografia moderna, com efei to, pode e deve suphmtar lulas singulares essas pedras sólidas com as quais O histori ador
a antiga, é pprque não se contenta como esta eru dar apenas o Ikve e rguer o seu edifício: a tarefa que o excita e o apaixona é
esboço das coisas (/e gras des choses) mas prende-se a todas as IU' UUllcnte a at ividade in telectual que perm ite adquirir as pedras
particularidades a fim de fornecer para elas uma detalhada ellpli­ pMa a construção. Com uma cl areza sem precedentes, ele de­
cação critics_· Nada está mais distante do pensamento de Bayle IIl ..mstra o complexo de colldiç3cs a que está justamente vincu la­

do que um projeto de filosofia da hist6ria , do que uma inter­ tio O falo como tal. € esse conhecimento que faz de Bayle o
pretação teleológica da história. Disso ele já loi impedido por lógico da história. O fala já não é ptua ele o começo do conhe­
seu profundo pessimismo, o qual lhe proíbe descobrir em qual­ cimento histórico; num certo sentido, é o seu fim: seu termimts
quer parte da história um pI aDO coerente, um todo racionalmen­ 1111 quem e não mais o seu lerminus a quo. Essa diligência não
te organ izado_ Uma olhada para os fa tos, para a históri a real da parle dele. chega até ele: quer desembaraçar o único caminho
humanidade, deve bastar para curar-nos de todas as especulações que pode cond uzir a uma verdade dos falOS. Não se pense que
e construções apressadas, ensinando-nos que essa histórin nu nca ternos essa verdade ao alcance da mão, que podemos a preendê-la
(oi oulra coisa senão o rosário de cr imes e infortúnios do gêncro de imediato em sua realidade sensívd; pelo contrá rio, ela só
humano.' v e·se que, q uanto mais dirigi,:"os um olhar lúcido e IXlde ser o result ado de uma operação in telectual que nâo deixa­
penetrante para o singular. mais teremos que renunciar ao conhe­ ria nada a desejar em complellidade, sutileza e rigor aos mais
cimento, à compreensão verdadeira do todo, reduzir a nada, pelo diffceis raciocínios matemáticos. e necessário o m ais refinado
cont.rário, toda a esperança de uma ta! compreensão. exame selet.ivo, a mais atenta investigação critica e uma avalia­
E, no e ntanto, essa dissolução e desintegração do mundo ção crrtica dos testemunhos individuais para descobrir e extrair
histórico em Bayle produziram rina lmente uma conce pção nova, tia sua ganga o núcleo sólido de um determinado " fa to " histó­
positiva e altamente proveitosa do todo . As partes separadas rico. O valor especial dessas considerações históricas decorre do
unem-se e cri stalizam-se em torno de um centro de gravidade fa to de Bayle não se ter contentado em apresentar in abstracto
dete rminado preci samen te por esse modo de investigação: Bayle essas exigências mas de segui-las até nas pesqu isas mais concre­
não toma a realidade do "fato" num sen tido ma te ri al mas for­ tas de detalhes. Antes dele. jamais a critica da tradiç.i:o tinha
mal; essa realidade não é somente para ele um problema de sido realizada com taman ho rigor e inexorabilidade, com uma
conteúdo mas , sobretudo, um problema de mélodo. ea essa tão minuciosa exatidão. No levan tamento sistemát icO de suas
nOva orientação que Bayle deve a suo verdadeil"3 originali dade lacunas. de Sllas obscuridades. de suas contradições, Bayle é in·
e a sua importância na história do pensamento. Com efeito, fatigáve l. E é ai que brilha O seu verdadeiro gênio de h istoriador,
dificilmente um só dos fatos coletados por Bayle à custo desSe que consiste, por paradoxal q uc isso pareça, não na descoberta
I.rabalho herói co ainda apresenta para nós , materialmente falan­ do verdadeiro mas na do fa lso. O simples plano extrínseco do
do, um in teresse essencial. Mas existe, mesmo assim, uma cir­ Dicionário, sua concepção literária inicial já seo' totalmente ca­
cunstância que con fere à obra, não obsta nte, o seu valor ines­ racterísticos: Bayle queria , em primeiro lugar, oferecer no seu
quecfve!: é que, peja primeira vez, a idéia de fa lo é concebida Dicionário não uma e nciclopédia do saber mas uma " coletânea
como um problema profllodo. Bayle já não considera mais os de erros". " Por volta do mês de novembro dc 1690" - escreve

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ele numa carta - "formei o projeto de compor um Dicionário ubra com a última das grand-::s concepçôes e consl ruç&:s pun l­
critico, o quaJ con teria uma coletânea de erros que lêm sido mente teológicas da h istória que fo ram tenladas , aq uela que
cometidos , tan lo pelos que fizeram dicionários como por outros UOssuct nos deixou no seu Discurso sobre a história universal.
escritores, e que reduziri a, sob ca da nome de homem ou de cida­ I '.~sa obra oferece-nos um vaslo plano de conjunto, sublime à
de, os erros referentes a esse homem ou 8: essa cidade." 8 A su­ W8 maneira, uma inle rpretaçiío religiosa universal da história.

perioridade intelectual de Bayle, seu virtuosismo erudito e lite­ Mus essa iniciativa tão ousada. se considerarmos os seus funda·
rário encontraram af seu terreno de eleição. Seu instinto de mentos empíricos, os fatos sobre os quais ela assent a, foi verda­
farejador celebra aí seu verdadeiro triunfo; seu júbilo nunca é deiramente edificada sobre areia . A verdade desses fatos só pode
maior do que quando surpreende a pista de um erro secreto que ~r assegurada. com efeito, por um círculo vicioso. Toda aulO­
vinha arras tando·se há séculos. Uma vez mais, a ordem de ridade dos fatos , dos dados históricos. repousa para Bossuet na
grandeza desses erros importa-lhe muito pouco; Bayle está fasci­ Ilutoridade da pa lavra bíblica; mas essa mesma autoridade, ele
nado por sua ex istência como lal e por sua qualidade. e.preci so tem que fund á-l a, por sua vez, na autoridade da Igreja e, por
que o erro seja perseguido até em seus últimos en trincheiramen­ conseguinte, na Irndição . Assim, a tradição torna·se o f unda­
tos, em seus últ imos refúgios, e seja extirpado a todo custo, quer mento de toda certeza histÓrica. Mas no q ue se baseia o con·
o seu objeto seja grande ou pequeno, sublime ou miserável , tcúdo e o valor próprios da trad ição? Em testemunhos hi stÓri­
grave ou insignificante . O fanatismo crítico de Bayle aplica·se cos, nem mai s nem menos. Bayle é o primeiro pensador moderno
igualmente às matérias mais fúteis, é a propósito delas que se fi desvendar esse círculo com um rigor critico implacável c 11

mostra mais constantemente en tusiasmado, pois é nelas que resi­ enfatizar inúmeras vezes as conseqüências (atais. Desse ponto
de por excel ência o erro histórico sob sua forma específica . Aí de vista, Bayle não fez mui to menos pela história do que Gali1cu
se vê como a mais insignificante negligência na transmissão e pela física. Galileu ex ige a independênc ia lotai da física em
propagação da trad ição acarreta as conseqüências mais fatais, relação ao texto bíblico para a interpretação dos fenômenos,
como pode levar até uma fal sifi cação radical da verdadeira si· impc5c e ju,stifica metodica mente essa exigência: Bayle abre o
tuação. Toda negligência dessa ordem deve ser, portan to, des· caminho dessa indepen dênci a em história. Foi ele quem realizou,
mascarada implacavelmente. e esse trabalho puramenle negativo mulatis mulandis. 8 revolução copernicana em história. Em vez
do hisloriador não deve fraquejar em momen to algum nem de basear a "verdade" da históri a num p retenso dado objetivo
recuar diante do mais imperceptível d~ detalhes. Nenhuma in· impos to dogmalicamente pela Bíblia ou pela Igreja, ele retorna
formação alterada deve escapar a eS5a prova; nenhum citação às fontes subjetivas. às condições subjetivas dessa verdade . A
inexata ~ permitida, nenhuma deve ser citada de memória, sem crítica das fontes históricas, que lhe serviu de ponto de partida.
referência à fonte reaP Por todas essas ex;igências Bayle foi o adquire em sua s mãos um a ilmplitude cad a vez mainr até con'
verdadeiro cri ador da " acribia " histórica . Para a sua obra filo-­ verter-se numa espécie de "crítica da razão histórica ". Nada é
sófica , en tretanto , essa acribia é apenas. evidentemente, um mais errôneo e prejudi cial, segundo ele. do que o preconceito
meio c não um fi m em si. Para entender bem a fin alidade para de qlle a verdade histórica poderia c deveria ser aceita como
que tendem as considerações de Bayle, cumpre comparar a sua moeda corrente, na base do crédito. Mas. pelo contrário. a mis·

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são da inteligência consiste em proceder à cunhagem da moeda lIIen to dialético sem igual. Foi no Dicionário que a filosofia do
e em testar cuidadosamente cada peça, anles de pO-la em cir­ Il umin ismo aprendeu a formular os seus próprios problemas,
culaçJo. que encontrou forjadas as armas que deveria ulilizar para a
"TlltlOcipação da consciência hist6rica . E, nesse sentido, 8 ayle
Glaubst du denn : von Mund zu Ohr
lili nno só o lógico da nova ciência roas, além disso, o seu mo­
Sei ein redlicher Gewinnsl?
rulista. ~ o apóstolo e a encarnação viva das virtude! propria­
Obarlielrung, O du Thor.
mente hist6ricas. A hist6ria só pode ser tocada com mãos limpas.
Isl auch wohl ein Hirngespinnst!
MIO se cansou Bayle de proclamar, o relato hi stóri co não deve
Nun gahl erst das Urthcil a1l;
Dich varmag all1 Glallbensk etten "cr imped ido por nenhum preconceito nem dcsrigu rado por ne­
Der Verstand alleill zu retlen, nhuma parcialidade conressional ou política. 10 "Todos os que
Dem du scholl Versicht gethol1. I.: unhecem as leis da Hist6ria estarão de acordo em que um
hIstoriador, se quiser cumprir fieJmente suas funções, deve des­
[Crês, pois, que da boca à orelha
poja r-se do espírito de adu lação e do esp(rifo de maledicência
Haja um lucro honesto?
..: colocar-se o mais possível na posição de um est6ico . a quem
A tradiçiio, 6 insensa to .
nenhuma paixão agita. I nsensível a todo o testo , s6 deve estar
Ainda é uma quimera!
alento para os interesses da verdade, sacrificando 11. essa ores­
e de julgamento que se traia agora ;
Icnti mento de uma injú ria, a lembrança de um beneHcio c até
Dos grilhões da crença
mesmo o amor da pátria . Deve esquecer que está num certo
Só o intelecto pode salvar-te.
IH1!S. que foi ins truido numa certa comunhão. que é devedor de
E/e, a que tu já renunciaste.]
s ratidão a este ou àquele, que tais e tais são seus progenitores
Esses versos do Wesl-ostlicher Divan de Goethe são. talvez. ou seus amigos. Um historiador, enquanto no exercfci o de sua
os que permitem resumir da maneira mais clara e mais perti­ fu nção, é como Melquisedeque, sem pai. sem mãe e sem genea­
nente o papel de Bayle e os que melhor caracterizam a sua logia. Se lhe pergumarem donde veio, deverá responder: não
orientação pessoal. E: a sua inteligência penetrante, jnnexivel­ 50U francês, nem alemão, nem inglês ou espanhol; sou habitante
mente an alítica, a que libertou em definitivo a história dos gri_ do mundo; não estou a serviço do imperador. nem do rei da
lhões da fé e estabeleceu-a sobre fundações metodológicas au­ Fra nça, mas somente a serviço da verdade; essa é a minha única
tônomas. Inaugura essa tarefa pela crítica da tradição teol6gica r/linha, s6 a ela prestei juramento de obediência." Por essa má·
mas, ao invés de fi car por af, estende as suas investigações B xima e o imperativo moral que a fUlldamentnl. Bayle {oi O grande
todo o conjunto da história prorana . e no que precisamente ele mestre da riloso fia do Iluminismo, esboçoll o seu "projeto de
foi o precurSOr do século XV IlI , para o qual o Dictionnaire uma história universal desde uma perspectiva cosmopolita",
historique el critique constituiu não s6 uma reserva cientifica encarnando-a numa obra·prima que é o seu elCemplo e modelo
inesgotável mas também um exercício intelectual, um treina­ clássico.

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2 co lo em suas exposiçãcs d ~ tempos em tempos submergem a linhll
de pensamento e ameaçam torná-Ia quase irreconhccível. Mas,
Bayle nunca nos deu uma verdadei ra liloso/ia da história; quanto ao conteúdo, toda essa riqueza é dominada e validada
a bem dizer, se considerannos a sua concepção geral e as suas por um princípio rigorosamente imelectual. "Examinei prime iro
prem issas metodológicas, ele nem mesmo podia tentar oferecer­ os homens" - escreve ele no Prefácio da obra - "e julguei
nos uma. O primeiro a enveredar por esse caminho roi Ciam­ que, nessa infi nita diversidade de leis e costumes, não e ram eles
battista Vice, cujos Pri/tcipi di una scienza n UOIIQ d 'ill/orno alia oricnlados unicarnenlC por seus caprichos. Coloquei princlpios e
CQmune natura dcIle floziolli constitufram o primeiro esboço sisle­ vi os casos particulares submeterem-se a eles por si m~ s mos, as
mfitico de urnu fil osofia da história. Na verdade, essa o bra, conce­ histórias de todas as nações sercm a pe nas seqüê ncias e cada lei
bida numa perspectiva de oposição deliberada a DeSCa rtes e desti­ particular ligada a outra lei, ou depender de uma outra mais
nada a expulsar o racionalismo da história , essa obra que se apóia geral."
mais na " 16gi1.:8 da imaginação" (La8ik der Phantasie) do que na Assim, para Montesq uicu , li realidade dos falOS como tu l
de idéias "cluras e distinlas", nenhuma influência exerteu sobre não é a finalidade obrigatória da investigação. ~ apenas umu
a fil osofia do Ilu mini smo. PermanCl:CU mergulhada nu ma obs­ etapll a tra nspor com o objetivo de chegar a alguma outra coisa
c uridade donde só viri a a st!r tardiamente retirada por Herder. que é a verdadeira meta da investigação. Pode-se afirma r que
No ilmbito da fil osofi a do I luminismo, a primeira te ntat iva de­ Montesq uieu é o primeiro pensador a conceber e exprimir de
cisiv.a de fundar uma rilosofia da história foi obra de Montes­ maneira clara e prccisa a noção do " tipo ideul " histórico. O
quieu. Nesse sentido, O espírito das leis caracteriza uma nova esplrilo das leis é um:;l teoria polítka c sociológico uQS tipos. A
época; é uma obra que não nasccu diretamente de interesses obra q uer mostrar e demonstrar que Os ...' ~o ni s m ~ls IJulíticos q ue
históricos e que igno ra a pura alcgria do fato estabe lecido em designamos pelos nomes de república. aristocracia, monarquia.
sua unicidade, tão característica de Bayle. O simples título da despotismo não são meros agregados de elementos variados. que:
obra de Montesquieu já indica que se trata do espírito das leis cada um de ntre eles está, por assim dizer, pré-fo rmado, c é ti
e não dos ratos. Ele não averigua, exam ina ou avalia os fat os expressão de uma determ inada estrutura. J! cvidcnte q ue essa
per se mas pelas leis que neles se apresentam e e,;primem. As estru tura permanece escondida enquanto fi Clltmos na sim ples
leis somente são acessíveis numa matéria concreta , não se pode cons ideração dos fenômenos políticos e sociais. Nesse domínio,
descobri-Ias em q ualquer oulra pa rte nem demonstrá-I as de outro nenhuma forma é idênti ca a nenhuma o utra: encontramo- nos
modo. Entretanto, por ou tro lado, essa matéria só encontra seu diante de uma heterogene idade total e de uma 'Iariabilidade
con h.:udo e seu sentido verdadeiros quando tomada como e,;em­ quase ilimitada. Mas essa apa rê ncia desfaz·se desde o instante
pIo, como paradigma de relaçõcs un iversais. Mo ntesquie u ma ni­ em que se aprenda a retrocede r dos fenômenos para os princi­
resta, tanto quanto 8ayle, um amor decidido pelo deta lhe, cuja pias, da diversidade das fo rm as empíricas para as forcas consti·
contcmplação procura adquirir através de estudos profundos e tuintes. Apercebemo·nos então, na abundância de republic as. de
de gnmdes viagens. O prazer que lhe causa o singulflr é tão vivo a repub lica, nas inúmeras monarquias históticns, de a monarqu ia.
q ue a iluslração part icu la r, o acessório anedótico que ele inter­ Montesqu ieu q uer mostrar no detalhe que o princípio sobre o

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qual repouSa a república, sobre o qual se baseia a sua perma­ fi Montesquieu, porém, o mérito de ter descoberto um novo é
nênci a, é a "virtude" (verlu) civica, ao passo que a monarquia fecundo princípio e fundado um novo método das ciênc ias sv·
se aliccrça no princípio da honra c o despotismo, no medo. dais. Ora, é notável que esse método dos "tipos idcais", de que
Compreendemos assim que a verdadei ra diferença, a essencial. é de é o iniciador c que apli ca com perfeita mestria , nunca tenha
a diferença de impulso (An triebe), de motivação intelectua l e vindo a ser depois abandonado c:omo tal c que, pelo conlrário.
moral, que confere a cada sociedade a su a forma e o seu mo­ somente na soc iologia dos séculos X IX e XX len ha encontrado
vimento. Expli ca Montesquicu: "Entre a natureza do governo e O desdob ramento completo de su as múltiplas possibilidades. E
seu princ:pio há esta diferença: a sua natu reza é o que o fa z ser Montesquiell já extrai daí a doutrina de que todos os elementos
COUlO é, e seu princípio é o que o faz agir. A primei ra constitui constitutivos de uma determinada sociedade es tão entre si numu
sua estrutura particul ar e a segunda, as pabr.:6es humanas que o sItuação de estrita correlaçiiQ. Não sâo as pa rcelas de uma soma
movimentam." J1 Montcsquieu tem perfeita consciência da na­ c sim forças interdependentcs cu ja ação rccíproca depende da
tureza lógica particular dos conceitos {undnmenlais que ele assi m for ma do todo . Até nos mín imos detalhes veri(jca-se essa comu­
introduziu. Não vê aí conceitos abstratos que possuíssem tão­ nidade de ação e essa organização estrutural. O modo de: edu­
somente a universali dade de um gênero e apenas pNtcndessem cação, o sistema de justiça, a organização do casamen to e da
destacar certos traços comuns, tal como se encontram nos fenô­ famfl ia, todo o mecan ismo dc políti ca interna e extern a: tudo
menos reais. Para além de tal genera li dade empírica, ele quer isso depe.nde , num certo sen tido, da forma fu ndamental do Es­
estabelecer a generalidade, a universalidade de sentido que se ex­ tado ; é impossível mod ificá-los arbitrariamente. sem afetar lIO
prime na s form as particu la res de Estado; quer tornar visível a mesmo tempo essa forma fundamental e, em úllimll instânci a.
regra interior que domina e governa essas formas . O fato de destruf-la . Com efeito , a corrupção de uma sociedade niio COI11C ÇH
que essa regra nunca se exprima plenamente em qualquer rorma em tal ou tal direção de sua ação mas na dcstru içiio do seu
individual, de que não possa realiza r-se plena e exatamente em princípio interno: "A corrupção de cada governo começa quase
nenhuma individua li dade hi stórica, nada retira à sua importân­ sempre pela dos pri ncípios. " 13 Enquanto o seu princípio se
ci.a . Ao atribui r às diversas form as de Estado um pri ncfpio espe­ mantiver como tal , enq uanto se mant iver saudável, uma forma
cífico, repousando a essência da república na virtudc. ti da mo­ política nada tem a temer sobre o seu futuro ; o próprio enfra·
narquia na honra etc., ele não entende ql1e se possa tomar essas quecimento de suas instituições e de suas leis pa rticulares não
essência s por realidades empíricos concretas. Mais do que um ser, lhe causará nenhum dano. Por outro lado, desde que o princípio
é um dever-ser (ein Sollen) o que elas cxprimcm.12 J:: por isso desmorone , de.sde que adormeça a força que in teriormente o
que os objeções que podem ser suscitadas contra a realização do aciona, as melhores leis deixam de of~1"ecer qualquer proteção :
sistema de Montesquieu não valem fo rçosamente contra suas "Quando os pri ncípios do governo sào corrompidos uma vez.
idéias fundamentois . A infra-estrutura empfr ica na qual ete tenta as melhores leis tornam-se más e voltam-se c.;ontra o Estado :
fundam entar seu sistema pode parecer muito im pe rfei ta nos dias quando seus princípios são sadios, as más têm o d eito das bollS :
de hoje, por causa do nosso horizonte histórico ampliado, da a força do prindpio arrasta tudo ( .. . ] Poucas são as leis que não
nossa problemática sociol6gica mais elaborada; isso não retira sejam boas quando o Estado não perd eu os seus princípios; e

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como dizia Epicuro, referindo·se às riquezas: não é o licor que so de uma batalha, ou s~j a, lima clIusa pa rticular, arruinou um
es tá estrllgado, é O va so," H Estado, havia uma causa geral que fazia com que esse E.s (:ldo
Se acabamos assim de delinear os contornos de uma filo­ devesse perecer através de uma única batalha . Numa palavr<l , a
sofia política, aind a não aprese ntamos, contu do, o menor fun · situação principal arrasta com ela todos os acidentes particula­
damento para uma filosofia da hist6ria. Os tipos idea is descritos res." 111 As condições fís icas agem igualmente sob re esse estudo
por Montesqu ieu são, com efeito, form as puramente c~t áti cas . geral. [ Montesqu ieu é um dos primeiros pensadores a indicar e
Elas estabelecem um princípio de explicação do ser do corpo s0­ assinalar a importância das mesmas, a mostrar o vínculo qu e une
cial sem oferecer nenhu m meio de interpretação do seu devir. a forma poHtica e 115 leis de um país ao seu clima e à natureza
Ent retanto, Monlesquieu não du vida de que o seu método não do seu solo . Nesse ponto , entretanto, recusa a si mples dedução a
possa estender·se li esse problema também com proveito . Est á parti!' de falOre s puramente ffsicos; ele su bordina as causas ma­
convencido de que o devir, à semelhan ça do ser, nada mais é teriais às espirituais. f evidente que nem todo solo, nem todo
do que um simples agregado, um desenrolar de even tos inde· cljma convém a tal ou tal forma política: mas , inversamen te, II S
pendentes e separados, Illas que é poss íve l descobrir aí igual­ condições fís icas nunca siio intci ramente determinantes. J?; tarefil
mente certas orientações típicas. :t. possível, sem dúvi da. que, que compete sobretudo ao legislador estabelecer condições jus·
visto do ex terior, aquilo a que chamamos "história" nunca ma· tas c sãs paTa o Estado. Os mau s legisladores siío aqueles que
nifest e semelhante orien tação e só dei xe entrever um enredo cedem às defi ciências do cli ma ; os bons , aq uelcs quc se aper·
de "acasos". Mas esse <lspecto tende a dissip&l-Se à medida que cebem das defi ciê ncias e con tra elas rea gem com todas as SUAS
se passa da superfície dos fe nômenos pa ra a sua verdadei ra pro­ forças morais e cspiritua is. "Quanto mais as causas físicas levam
fundid adt:. O caos, o connito dos eventos singulares dissolve-se, os homens ao repouso, mais as C8\lSaS morais devem ufastá·los
os fenômenos reduzem·se a uma "razão" que permite expli cá·los. de le." 17 O homem não está simplesmente subme tido às forças da
"Os que afirmaram que wtla fatalidade cega produziu todos os natureza; c1e conhece essas fo rças e, graças a esse COllhecimerlto.
efeitos que vemos no mundo disseram um grAnde absurdo, pois é capaz de conduzi·las para a me ia que escolheu , de estabelecer
que maior absurdo do que uma fatalidade cega ter prodUlddo entre elas um equil íbrio que assegu re a conservação da sociedade
seres inteligentes? Existe, portanto, uma razão primeira e as leis · Se é verdade que o ear<Íler do espíri to e as paixões do coração
são as rel ações que se encontram en tre ela e os diferentes seres, são ex tremamente diferen tes nos diversos climas. as leis devem
assim como as relações desses di versos seres entre si. " 11 1! certo ser relativas à diferença dessas paixões e à dif~ r en ça desses ca·
que, com bastante freq üência. parece que o mero acaso decide racteres. " I S O curso geral c o objeti vo geral J n história estão
do destino de um povo, determina a ~lIa grandeza e 8 sua deca· assim impregnados de uma ordem comparável à das leis da natu·
dência. Uma observação mais penetrante leva , porém, à desco­ reza , em rigor e em ce rleza. No nfvel de desenvolvimen!O em
berta de um outro quadro. "Não é o acaso que rlomina o muno que nos encontramos ainda falta muito . sem dúvida. Datfl (!"C o
do r.. .] Existem cau sas ge rais, quer morais. quer ffsicas, que mun do moral esteja tão bem ordena do quan to O mundo físico.
agem em cada monarqu ia, elevam-na, mantêm·na ou preci pitam­ Se ele também possui leis natmais determinadas e im utáveis . não
na; todos os aciden tes estão submetidos a essas causas; e se o aca· parece obedecer·lhes com tanta perseverança quanto a natureza

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física obedece às suns. A causa disso é que os indivíduos dotados {I um quadro absolutamente rfgido e . inflexfvel. A esse propó­

de razão estão limitados c, por "ia de conseqüência, sujeitos a sito, existe em O espírilo das leis uma fórmula nlOito significa.
e rros, e que, de um outro lado, agem seg'Jndo o seu próprio tiva. Descrevendo a Constituição inglesa , q ue ele reverencia c0­
pensamen to e a sua própria vontade. Q ue r dizer, nâo obedecem mo um modelo político, Montesquieu não sublinha menos o fato
constantemente às leis fundamen tais que por eles próprios fo­ de estar bem longe de querer impor a mesma fonna de governo
ram criadas. JG Montesquieu, entretanto, é filho do seu tempo, é lias outros pafses, de impô-la como termo obriga tório de refe­
um legrtimo pensador da Era do Iluminismo, que espera do pro­ rência: "Como poderia afirmar isso, eu q ue acredito que o pró­
gresso do cOI,hccimenlo desse estado de coisas uma nova ordem prio excesso de razão nem sempre é desejável e que os homens,
do mundo da vomode, uma nova orientação geral da história quase sempre, acomodam·se melho.· no meio do que nas extre­
política e social da huma nidade. e.
O q ue o conduz à filosofia midades?" 21 Até mesmo em suas construções puramente teóri·
da história: do con heci men to dos principios gerais e das forças cas, Mon tesqui eu procura, portanto, descobrir e conservar cons·
motrizes da história, ele espera a possibi lidade de organizá·los tantemente O "meio" certo, assim como quer manter o equilí­
com mais segurança nO fut uro, O homem não está somente brio entre os elementos fund amentuis do pensamento. entre a
submetido à necessidade da natureza, ele pode e deve criar Jjvre­ "experiência" e fi "razão". Graças 8 esse Jom de eq uilíbrio, sua
mente o seu destino, construir o seu próprio futuro . Mas um obra continuou exercendo uma influê ncia muito al~m dos estrei·
simples desejo $Crá impotente se não for conduzido e penetrado tos lim ites da " filosofia do l lum ini smo ". Não só foi o exemplo
por uma visão scgura das coisas. a qua l só pode nascer da união e o modelo da visão histórica dos enciclopedistas mas também
e da concentração de todas as fac uldades do espírito. Ela exige, dominou com seu prestfgio os seus adversários e crfticos mais
ao mesmo tempo, que o espírito observe cu idadosamente as rea­ perspicazes. Embora se empenhasse em combater o método e as
lidades individuais. que ele merguLhe nos detalhes empíricos da premissas de Montesquieu. H erde r nem por isso admirou menOs
história e, por out ra porte , que analise teorica m('n:.:: as diversas esse "nobre e gigantesco empreendimen to" e ambicionou parI!.
"possibilidades" para as situar e distinguir com nitidez umas das OS $Cus próprios projetos situarem-se à mesma altura desse me­
outras. Montesquieu mostra idêntica mestria na solução de ambos deIo.:!:
os problemas, De todos os pensadores do seu meio, ele é o dotado
de mais viva penetração histórica, o que possui a mais pura
in tuição das dive rsas formas da existência histórica, Não disse J
ele um di a, falando de si mesmo, que para falar da história
antiga tentara adotar o espírito da Antiguidade , metend~se na Analisando em 1753, no Vossischen Zeilung, o ESSQ; sur
pele de um antigo? 2., Esse olhar exercitado na apreensão do Ics mocurs de Volta ire, Lessing inicia o seu 8rtigo com o c0­
singu la r e esse gOStO da singularidade preservaram-no igual­ mentário de que a mais nobre ocupação do homem é o homem
men te, em sua cons tru ção teórica, de toda parcialidade dou­ - mas de que podemos ocupar-nos desse objeto de '"duas ma·
tri nária. Sempre se defe ndeu vitor iosamente contra a expo~ção neiras difere ntes"; "'Considera-se o homem quer individualmente
puramelll c esquemlÍt ica, a rcdução da multiplicidade de formas quer de um modo geral. Da primeira maneira, t muito difícil

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inferir que o homem f essa nobilíssima ocupação. Conhecendo políticos, ao surgimento e queda dos grandes i:upérics, aos tro·
o homem individualmenle, o que é que se conbece ? Loucos e nos que desabam. Em vez dc prestar atenção ao gênero humano.
celerados ( . . . ] OUI.ra coisa muito diferente é considerar o hcr lle adotar por máxima o hOl1Jo sum, a maioria dos historiadores
mem em geral. Em geral, ele denuncia 6ua grandeza e sca ori· não tem feito outra coisa senão descrever batalhas. O verdadeiro
gem divina. Considerem·se os empreendimentos áo homem, como ubjeto da história é a história do espírito, nâo o ôelalhe de ratos
ele amplia cotidianamente as fronteiras da sua inteligência, como quase sempre controvertidos. " Em vez dessa enorme acumula·
são sábias as leis que o governam, quanta diligência seus momJ· çõo de fatos, em que um jamais deixa de contradi zer o outro,
mentos testemunham ( ... J Nenhum escritor se dedicou jamais, deve r·se·ia reler somente os mais im?ortantcs e os mais seguros
de forma especial, a esse objeto, de modo que o aU{Qr da pr-...sente a fi m de colocar um fio ccndutor na mão do lei!or e para que
obra tem o direito de proclamar: libera per vacuum posui vcs· ele fi que em situação de formar um ju!zo acerca da ruína , re·
ligia princeps." 2.\ Lessing, o maior adversário e o crítico mais ll uscença e progressos do espírito humano. e desse modo aprenda
penctnmte que Voltaire encontrou no século xvrn, quis nessas
11 conhecer o ca ráter e os costumes dos diversos povos." 2.
poucas linhas render plenamente justiça à importância de sua
Voltaire considera, em suma. que os verdadeiros defeitos da his­
obra histórica . Ele loca de imediato no cerne da obra e caracte·
tória, tal como foi escrihl até o presente, são, por uma parte,
riza a sua orientnção mais profunda: a intenção de Voltaire, efc­
uma concepção e uma interpretação míticas do passado; por
tívamenle , consiste em elevar a história adma do "demasiado
ou lra parte, o culto dos her6i s, ao qual ele não é propenso, em
humano" , do contingente, do sing".Jlar absoluto. Não é sua in·
nbsoluto. Esses dois defeitos estão em correspondeneia; consti·
tençio retratar o individual e o ocasional mas o "espírito dos
tuem a dupla expressão de um único defeito mais profundo. A
tempos" e o "espfrito das naçõesN . Não se interessa pela simples
seqüência de acontecimentos mas pelo progresso da cultura e
°
interpretação mitológica da história produziu culto dos heróis ,
dos Ifde res e dos príncipes, e não pára de alimentá·lo.
pela organização interna dos seus diversos eiemeotos. Sob a
forma que projetava inicialmente Vohaire, o Ensaio sobre os
J'aime peu les héros, ils IOTlt trop de Iracas,
co.stumes era destinado à marquesa de Chãtelet, que se queixava,
le ha;s ces conquéran!s, liers ennemis d'eux·mêmes,
por comparação com as ciêr.cias da natureza , ao caráter betero·
Que dans tes horreurs des combafs
dito e fragmentado do saber histórico. Deveria ser possível rea·
Onl placé le bonheur suprême,
lizar em história uma ci! ncia análoga à de Newton, reduzindo
Cherchanl portout la mort, et la lesant soul/rir
os fatos 8 leis. Mas não seria possfvel, lanto elTo história quan!o
 eenf mille hommes leurs semblabTes.
em quaJquer outra área, chegar·se ao conhecin:en!o das leis sem
Plu$ leur gloire a d '~clat, plus, ils sont luiissables,·
descobrir vm pólo imóvel no flu xo dos fenômenos. Esse ele·
- --
menta imutável c idêntico não se encontra, por certo, no curso • "Gosto pouco dos heróis, são barurll ~ nlos demais/Detesto esse!;
infinitamente múltiplo e cambiante do destino dos homens; ele conquistadores. 31tivos inimigos de si mesmos.lQue nos horrores dos
só pode estar na pr6pria natureza humana. Que se deixe, por· conlbatu/Coloc<lram a felicidade suprema,J Buscando por toda paMe a
mOMe. e fazendo-a sofrerI A (enl mil homens 6eus temd hanles./Quanto
tanto, de prestar unicamente atenção na hist6ria aos eventos mais refulge a glória dele" mais abomináveis são." (N . do T.)

290 291
escreveu Voltaire a Frederico, (I Grande, na carta que Lhe enviou III U/IV , ~ Itua ·se diretanlcnte na linha das idéias e dos princfpios
após a vitória de Cholcsitz,U O centro de gravidade da história do; Voltaire . Como conciliar, porém, essa fé no progresso da
foi assim deslocado, segundo uma intenção metodológica cons­ humanidade - é realmen te essa a pergunta que se deve acabar
ciente, da históri a política para a história do espírito. Aí reside por fazer a Voltaire - com a convicção não menos fi rme de
o troço característico que distingue nitidamente Voltaire de Mon­ \Iue a human idade, " no fundo ", é sempre a mesma, de que a sua
tesquieu. Se o Ensaio sobre os costumes e O espírit o das leis I'~rda de ira " nlllureza " não mudou? Se esta últi ma hipótese preva­
foram publicados, com efei to, quase ao mesmo tempo e num Ir(:c, a substância própria do espírito escapa à ação do devir his­
ambiente cultu ral semelhante, as duns obras perseguem, no en­ tórico, que não pode ating i-la em suas profundid ades ext remas .
tanto, fina lidades muito diferentes. Pura Mon tesquieu, a vi da
Puro quem sabe separar a casca do cerne da hist6ria, são sempre
política con tinua sendo o centro do mundo histÓrico; o Estado
~ por toda parte as mesmas forças que a dominam e di rigem-lhe
é o verdadeiro sujeito. até único, da história universal. O espí­
u curso. Voltaire permanece fiel a essa concepção que já ea rae­
rito da históri a coi ncide com o "espírito das leis ". Em Voltaíre,
tcrizélva o pensamento histórico da Renascença e cujos repre­
pelo contrário, o conceito de espírito assume envergadura maior;
ICn tantes pri ncipais são Maquiavel e fuan Luís Vives; ~B é a
engloba toda a vida interior, todo o conj un to de transformações
concepção que ele exprime nitidamente e sem rodeios em diver­
a que a humanidade deve submeter-se antes de alcançar O conhe­
cimento e a verdadeira autoconsciênci a. A tarefa essencial a que ' os passagens de sua obra histÓrica. "Resulta deste quadro" ­
o Ensaio sobre os costumes se propõe é fazer compreender a lenta t:scrcveu ele resumindo uma vez mais o conjunto de suas desco­
marcha da human idade em direção a esse objetivo e todos os bertas na conclusão do Ensaio $obre os costumes - "que tudo
obstáculos que deve superar, Para realizar essa tarefa, é evi­ " que se rclaciona intimamente com a natureza humana asseme­
dente que niio se contentará em considerar a hist6ri a política ; lha-se de um extremo ao outro do universo, que tudo o que pode
o olhar quererá dominar a hi stória da religião, a da ciência, a depender do cost ume é diferente. c que é um acaso se se parece.
da arte, a da filosofia, e haverá o propósito deliberado de traçar O domínio do costume é müito mais vasto do que o da naIUl'Cza ;
assim o quadro completo das fases particulares que o espírito tstende-se aos hábitos, a todos os usos , e~ p alba a va riedudc no
teve de percorrer e transpor a fim de adqu irir sua forma pre­ cenário do un iverso; a natureza aí difunde a unidade ; ela esta­
sente. i>elece por toda parte um pequeno número de princípios invariá­
Mas justamente a propósito desse plano fund amental. as veis: assim, o solo é por toda parle o mesmo e a cultura produz
considerações de Voltaire sobre a hi stória colocam-noS diante frutos diversos. " 27 Pode haver , sendo assi m, uma história filo­
de uma questão deveras embaraçosa. Ao aprofundar-se essa pers­ sófica no sentido próprio? Toda aparência de mudança, de evo­
pectiva, ao analisar os principias que a embasam, surge um lução, não se dissipa desde que se reverta aos princfpios verda­
curioso dilenla . Voltaire é o entusiástico profeta do progresso : foi deiros que, por trás dos reflexos cambiantes dos fenôm enos,
por esse pensamento que cle mai s fortemente influenciou o I)crmanecem inalteravelmente idênticos? E o con hec i mc n~o filo­
seu tempo e as geraçõcs subseqüentes. A célebre obra de Condor­ .só/ico do processo histórico não seria, no fun do, a supressão
cel, Esboço de um quadro hist6rico dos progressos do espfrito nu­ dcssc processo? Poderá o filósofo deleitar-se com o variegado e

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confuso caa:dal de eventos sabendo que essa di versidade é ilusó­ continuamente imposta através de obstáculos e resistências. J!
ria , que ela nio provém da natureza mas tão-somente do hábito? evidente que a "razão". como facu ldade humana fu ndamental. ê
Sobre todas essas questões, a filosofi a da história de Yoltai re dada desde o infcio e é por toda pa rte uma e idêntica. Mus,
não nos satisfaz com q ualquer resposta explíc ita . Mas a soLução longe de se manifestar exteriormente em sua perenidade e em sua
implícita que nos propõe o Ensaio sobre os costumes é não pec­ universn lidade, ela dissimula-se por trás da multidão de usos e
manecer em parte nenhuma exposto unicamente aos ~con teci­ costumes e sucumbe ao peso dos preconceitos. A história mos­
mentos, vincular pelo contrário diretamente a essa expcsiçãc tra como a razão sob re puja pouco a pouco as resistências, como
uma anAlise intelectua) dos fenômenos que pennita separar o CO!l­ se torn a o q ue é por na tureza. Portanto, o verdadeiro progresso
tingente e o necessário, o duradouro e o passageiro. Desse ponto não diz respeito à razão nem, por conseguinte, à humanidade
de vista, Voltairc concebe c tmbalho do historiador estrita­ como tal , mas somente à sua ex.teriorização, à sua revelação
mente sob a mesma luz que o tr abalho do físico. Hisioriadot e (Siehtbarkeit) empfrico-ob jeti va. E é justamente essa revelação,
fí sico tê m a mesma tarefa. a de descobrir a lei escondida no essa visibilidade progressiva, essa marcha da razÃo para a com­
flu xo e na confu são dos fenômenos. Essa lei nada tem a ver, pleta transparência o q ue constitui O verdadciro senti do do pro­
tanto na história quanto na natureza, com um plano divino que
cesso histÔrico. Não compe'te à história suscita r a questão meta·
atribuiria a cada coisa seu luga r no todo. Devemos renunciar,
física da origem da razão, que ela , de resto, não dispõe de
tantç no conhecimento histórico quanto nas ciências da natureza,
nenhum meio para resolver. A razão como tal é algo de supru·
às ingenuidades da teleologia. yoltaire vê a encarnaç1io dessa te·
temporal, de necessá rio e de eterno que não requer, em absoluto ,
leologia no Discurso sobre a história universal, de Bossuet, que
ave riguar a q uestão do seu começo. T udo o q ue 1\ históri a pod~
ele admira, de resto, como obra-prima li terária, mas censu·
provar é que o e lerno, não obstante. manj/e~lt1-sc temporalmen te.
rando-Ihe te r assim transmudado em ouro o vil chumbo.28 A
tem lugar no transcurso do tempo e revela , pouco 11 pouco. de
histo riografia crítica deve nesse ponto prestar a história O mes­
um modo cada vez mais puro e mais perfe ito, suu con figuraçfto
mo serviço que os ma temáticos prestaram às ciências da naNre2a .
Ela deve liberta r a história do domínio das causas finais e te­ primei ra e o riginal.
conduzi-Ia às causas e mprricas reais. A física foi libertada da Voltai re fixou nessa concepção fundamenta l da história o
teologia pelo con hecimento das leis mecânicas da natureza; é programa tcórico adotado depois por todos 05 historiadores sete­
necessário que a psicologia realize a mesma tarefa no interior do centiSlas. Se não logrou pessoalmente o pleno preenchimento
mundo histórico. E a análise psicológica que dete nnina , em de· desse programa no seu Ensaio sobre os costumes, não há, con·
rinitivo, o verdadeiro sentido da idéia de progresso; ela funda­ tudo. por que deb itar os defei tos de execução que af se obser­
menta-a e justifica-a, ao mesmo tempo que aponta seus limites vam ao sis tema de pensamento do seu autor. ~ UL1la crítica apres­
e mantém seu uso no interio r desses limites. Ela mostra que ti hu­ sada e superficial aquela que pretende dcmonslrar IItravés dessas
manidade não poderia ultra passar as fronteiras da sua "natureza " insufi ciências a " não-histori cidade" fundamenta,l do Iluminismo.
- que essa na tureza, e ntretanto, não é dada de uma vez por As fraqu ezas que se apressaram em opor à obra histórica de
todas , que deve, pelo contrário, ser elaborada pouco a pouco e Volta ire são provenientes muito menos do seu sistema do q ue

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da sua personalidade e do seu temperamento individual. Voltaire abranger com igual amor todas as cuhura~, lI)(.l U;> os tempvs \.
não tem a me-nor propensão para O caminho sereno das investi­ povos. ~las, por outro lado, é inegável que Voltaire possui espe­
gações históricas, para il moderação. a indulgência e a perse­ cificamente r~ .. defeitos de suas virtudes". O que poderia pa­
verança que permitem levá-Ias a efeito. Se ele s~ volta para o recer, objetivamente considerado, uma falta de abertura constitui.
passado, não é pelo passado em si mas no interesse do presente sob outro aspecto, a acuidade desafiadora do relato, O que lhe
e do Cuturo. A hIstória para ele não 6 um fim mas um meio. confere esses traços vivos e pessoais que cativaram e empolga­
um instrumento de educação e de instrução do espírito humano. ram os contemporâ neos. Volta ire foi o primeiro pensador do
Longe de se contentar em elCaminar e investigar, Voltaire exiBe sécu lo XV III que deu vida à grande obra-prima histórica e
e antecipa com veemência o conteúdo de suas exigências. Não encarnou-a num modelo clássico. Aliviou a hi stória do acúmulo
SÓ acredita estar no bom caminho mas vê-se perto do fim , ine­ de erudição, livrou-a do discurso obscu ro e prolixo dos cronistas.
bria-se e exalta-se por atingir. enfim , o seu objetivo após tantos l! desse êxito que eTe se orgulha, aci ma de tudo. é ai que ele
esforços e perplexidades. Esse ambiente, esse pathos pessoal coloca toda a sua dignidade de historiador. Qu:mdo em 1740 c
transparece constantemente em sua exposição histórica . Essa ex· capelão sueco Nordberg publicou sua história erudita de Car­
posição é tanto mais perfeita porquanto Voltai re reencontrou no los XII, assinalando algu ns equfvocos de Vohaire e entregando­
passado a melhor maneira de expressar seu próprio ideal. Por se a algumas críticas um tanto mesqui nhas da sua Hist6ria d~
iMO o momento culminante de sua obra histórica ~ O skulo de Carlos X II, este último nfio tardou em devolver-lhe o cumpri
Luis XIV . Sem dúvida, Voltaire é capa'Z em muitos outros casos men to com ênfase satírica: "Talve'Z sej a uma coisa imporlanll
de vê-los com clareza e de raciocina r com justiça, mas, na maio­ para a Europa" - escreveu ele a Nordberg - "que se saíb '
ria das vezes, .seus julgamentos e seus veredictos são exces­ que a capela do castelo dc Estocolmo, que ardcu há SO anos
sivamente rápidos e brutais para permitir um aprofundamento estava na nova ala do lado norte do palácio c que havia ncl•.
sereno. O orgulho intelectual do filósofo corta a palavra ao dois quadros do intendente Kloker, os quais estão atualmenh'
histori ador. A todo instante, o rel ato empenha-se em proclamar na Igreja de São Nicolau: que as cadeiras cstavam cobertas dv
como a idade clássica da razão ~ superior em saber e lucidez azul nos dias de sermão; que umas eram de carvalho e outra~
não só à Idade Média ma s até a eSSA tão celebrada Antigui­ de nogueira. Também acred itamos ser de extrema importância
dade. Voltaüe sucumbe a essa teleologia rudimentar que ele ficar instrufdos a fundo de não haver ouro falso no pálio que
refut a e combate com tanta energia como teórico. Ele descobre serviu na coroação de Carlos XII; saber qual era a largu ra do bal­
na história o seu ideal rilos6(ico, assim como Bossuet nela en­ daquino ; se a igreja era decorada com planejamentos vermelhos
controu o seu ideal teológico; este mede toda realidade pela ou azuis, e de que altura eram os bancos: tudo isso pode ter seu
bitola da Bíblia , aquele nunca deixa de impor ao passado, sem mérito para aqueles que querem instruir-se sob re os Udimos in·
hesitação nem reserva, a medida da razão. Tudo isso, sem dú­ teresses dos príncipes [ . . . ] Mas um historiador tem múltiplos de
vida, criou obstáculos à reaHzação desse vasto plano de uma veres. Permita-me lembrar-lhe aqui dois que são merecedores dt.:
história verdadeirameme universal que, em seu espírito, deveria certa reflexão: o de não calunia r e o c\e não entcd iar. Desej.

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perdoá-lo do primeiro, porque o seu livro não será lido por nin­ tória, seja criada uma ciência filosórica dos prindpios, cUj05
guém; mas não posso perdoar-lhe o segundo, porque fui obri­ problemas serviriam para tratar a história das ciencias. No plano
gado a Iê--Jo_" 2t Há ar mais do que sarcasmo; está aí expresso um enciclopédico do saber que nos ofereceu nos seus Elementos de
novo ideal do estilo de historiador que Voltaire soube encarnar filoso/ia , D'Alembert definiu ainda nesse sentido a tarefa da his­
e impor como norma_ Lorde Chesterffield dizia a l'(:speito da tória : "A história geral das Ciências e das Artes encerra quatro
obra histórica de Voltaire que ela continha a história do espírito grandes temas; os nossos conhecimentos, as nossas opiniões, as
humano "escrita por um hOl'J'lcm de gênio para uso dos homens nossas disputas e os nossos erros. A história dos nossos conhe­
de espírito". Voltaire, na verci2de, nesse domínio menos do que cimentos revela-nos as nossas riquezas ou, melhor, a nossa real
em nenhum outro, não sucumbe ao perigo de "fazer espírito"; indigência . Por um lado , humilha o homem ao mostrar-lhe o
ele apóia-se em investigações especializadas, amplas e muito pro­ pouco que faz, por outro, enaltece-o e encoraja-o, ou pelo menos
fundas. e a "acribia" do historiador nada tem de estranha para oon50la-o , desenvolvendo nele os usos multiplicados que soube
ele. A sua atenção prende-se. sobretudo, ao detalhe sociológico: razer a partir de um pequeno número de noções claras e certas.
interessa-se muito mais por descobrir e descrever o estado da A história das ncssas opiniões faz.nos ver como os homens, ora
sociedade em tal ou t'al época. as (oonas vigentes de vida fami­ por necessidade. ora por impaciência, subslitufram com êxito
liar, as espécies e os avanços das artes e dos ofícios, do que em diverso a verdade pela ...erossimilhança; ela moslra-nos como o
repisar eternamente a descrição das disputas políticas e religio­ que inicialmeote era apenas provável tOrnou-se em segu ida ver­
sas das noções, suas guerras e suas batalhas. Recorre à filologia dadeiro à força de ter sido retocado. aprofundado, refeito e
e à lingüística, declara que , com muita freqüência, uma etimo­ como que depurado por sucessivos trabalhos de ... ários séculos:
logia confirmada pode propiciar-nos uma idéio correta das trans­ ela oferece à nossa sagacidade e à dos nossos descendentes fatos
formações dos povos, que o alfabeto de que um povo se sern li verificar, pontos de vista a seguir, conjeturas a aprorundar,

testemunna incontestavelmente q:..tem foi o seu verdadeiro edu­ conhecimentos começados que é mister aperfeiçoar [ ... ] Enfim .
cador e quais as fontes primordiais dos conhecimentos da na­ a história dos nossos erros mais notáveis ensina-nos a desconfiar
ção.I O Até mesmo a hisl6rja das ciências teve que se submeter de nós mesmos e dos outros ; além disso, ao mostrar os caminhos
aos imperativos metodológicos assim fixados. Nesse domínio, que se afastaram da verdade. facilita-nos a busca da verdadeira
D'Alembcrt foi um discípulo de Voltaire. A inOuência decisi ... a senda que nos conduz de volte E ela." ai
!:tue exer~eu o Prefácio que escreveu para a Enciclopédia. do O plano aqui traçado por D'Alembert encontrou, no que
ponto de vista filosófico e literário, não repcusa, em definitivo, se refere à histórill das ciências exatas. \lma bri lhante realização
no fala de que. pela primeira vez, a evolução das ciências estava na obra do seu mais genial disC:pulo. A Mecdnica analtlica, de
sendo encarada nessa nova pe~pectiva? D'Alembert não con­ Lagrange, oferece-nos uma amost ra de história da ciência que é
cebe essa evolução como uma acumulação interminável de novos quase insuperável, mesmo em nOSS05 dias. Os trabalhos ulterio­
conhecimentos eruditos mas como O desenvolvimento metódico re5, por exemplo, a Kritische Geschichte der a/lgemeinen Prin­
da idéi:l no próprio Sbbcr. Exige que, em lugar de uma poli·his­ zipien der Mechanik (História crítica dos princípios gerais da

298 299
mecânica], de Eugen Dühring, mantiveram-se fiéis ao modele elaborará sistematicamente e figurará em seu ensiDo." As pri­
metodológico que nos é aqu i apresentado. Mas D'A1embert vai meiras ten tativas de uma história crftica da filosofia estão inti­
ainda mais longe pOI" conta própria; ele confere à história não SÓ mamente ligadas a esses esforços . Os artigos de Diderot na
um valor te6rico mlS também um valor ético, e espera que ela 8nciclopéia sobre diversos sistemas filosóricos ainda possuem
nos proporcione o conhecimento caba1 da humanidade mora1. ftpenas uma escassa originalidade no plano da hist6ria propria­
.. A ciência da história depende da fHosofi a por dois lados: pel ~ mente dita; foram inspirados, de maneira muito visível, por
.princfpios que servem de fundamentos à certeza histórica e pela Rayle, Brucker e a Hutoire critique de la philosophie, de De&­
utilidade que se pode extrair da história. Os homens colocados landes (1756). Um novo esplrito manifestou-se porém nesses
no palco do mundo são apreciados pelo indivíduo judicioso como artigos, em particular nos dedicados à filosofia moderna - a
testemunhas ou julgados como atores; ele estuda tanto o uni­ Hobbes, Spinoza e Leibniz. O enunciado de opiniões cede cada
verso moral quanto o físico, no silêncio dos preconceitos; acom· vez mais O lugar à onnlise, encaminhada tanto no sentido hist6­
panha os relatos dos escri tores com a mesma circunspecção con' rico q uanto no sistemático, visando tanto ao conteúdo doutrinai
que observa os fenômenos da natureza; examina os matizes qur quanto às condições históricas que o viram nascer.
distinguem a verdade histórica do verossímil e o verossímil dL' 1! claro que o predomínio do espírito analftico, tão carac­
fabuloso; reconhece as diferentes linguagens da simplicidade, teristicô do século XVIII, estende-se a todo esse domínio. Esse
da li-soDja, da prevenção e do ódio ; fixa·[hes as características; espírito também implica, em história, uma acentuada insistência
detennina quais devem ser, segundo a natureza dos fatos, os no unifonne à custa da mudança, nos elementos de constlncia
diversos graus de força nos testemunhos e a autoridade nas à custa dos elementos de movimento. Um único pensador do sé­
testemunhas. Esclarecido por essas regras tão sutis q uanto se­ cuto XVIU soube conservar, em face dessa tendência dominante,
guras, é principalmente para conhecer os homens com quem uma posição original e autônoma: Hume, que não se afina mab
convive que ele estuda aqueles que viveram . Para o comum dos com o tipo geral do lIuminismo para a filosofia da história do
leitores, a história é o alimento da curiosidade ou o alivio do que para a teoria do conhecimento e a filosofia da religião. Cotr
tédio; para o indivfduo judicioso, é a compilação das experiên­ Hume começa a abrandar, a flexibilizar-se essa perspectiva está­
cias morais realizadas pelo gênero humano; compilação essa lica, a qual se dedicava unicamente a conhecer as "propriedades"
que seria mois concisa e mais complela se fosse ditada unica­ fixas e imutáveis da natureza humana; ele prefere abordar o
mente por critérios judiciosos, mas que, por imperfeita ou in­ processo hist~.ico como tal, em vez do substrato idêntico que
completa que seja, ainda encerra AS maiores lições; tal COmo a imaginamos subjacente. Não só como lógico mas também como
coletânea de observações médicas de todas as eras, sempre "au­ filósofo da história, Hume é o crítico da idéia de substância.
menlada e sempre imperfeita, forma ni'ío obstante a parte mais Sem dúvida, não des.crevc a históHa como um movimento con·
essencial da erte de curar. " 3~ Assim se desperta. a partir da tfnuo, mas delicia-se com suas mudanças incansáveis, com a
história, na filosofia do Iluminismo a idéia de um estudo filosó· contemplação do devir como taL Não busca umn "razão" nesse
fico do homem, de uma "antropologia geral" como a que Kanl devir. não acredita nisso. Em vez de um interesse racional, é um

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interesse psicológico e estético O que ele vincula ao desenrolar lhe beginning 0/ rime, pass, as it were, in review be/ore us;
dos latos. A " imaginação", que ele opõe à razão abstrata os sua uppearíng in their true c%urs, wiLllout any 01 lhose desguises,
teori a do conhecimento, sublinhando a sua importância. também wlliclz , during Iheir lile lime, 50 much perplexed lhe ;udgemen t
adquire na história um papel preponderante; recorre-lhe como a 01 lhe beholder5. What spectacle carl be imagined, 50 magn;I;'
faculdade fundamental do historiador. "Haverá, na verdade, meis cem, so various, 50 interesting? What omusement, either of lhe
suave arrebatamento para o esprrito do que transportar-se para senses or the imaginotian, can be campared with it?" U Que
as mais recuadas idades do mundo e observar a sociedade hUr:la­ espetáculo - mas, lam.entavelmente, nada mais do que um es·
na em sua infância, dando timidamente os seus primeiros passos petáculo! Pois Hume não acredita mais q~e se possa penetrar
no caminho das arles e das cieilcias; ver a política do governo no sentido dos acontecimentos e descobrir nele o plano geral.
e a civilidade da conversaçio afinando-se gradualmente , e tudo Ele abandona o qu~tiio de sabe r que segredo se esconde no
o que faz O ornamento da vida avança!ldo para a perfeição?'" mais profundo do mundo histórico, desfrutando a simples con­
Em vez de definir de antemão. em suas grandes linhas, a fina· templação sem procurar medir pela craveiro de uma " idéia"
lidade da história, Hume prefere mergulhar na riqueza do seu preconcebida OS quadros sempre cambiantes que a história faz
conteúdo concreto. Para ele, a história é, por muito pouco que refl etir sob os nossos olhos. Mas, uma vez mais, não se faz jus
a inteligênca possa apreendê·la, por muito pouco que possamos ao ceptícismo de Hume se apenas se tomar em consideração os
penetrar em suas" razões" últimas, o mai s nobre e o mais belo seus elementos negativos . At6 nesse papel aparentemente dissol·
"divertimento do espírito " (Unterholtung des: Geistes); oenhum vente ele realiza uma tarefa positiva muito importante. Resisten·
outro se lhe comp.ara . "Como preferir-lhe esses passatempos fú­ te a toda generalização apressada , prendendo-se à materialidade
teis que nos absorvem por tanto tempo? Como considerá· los mais dos fatos, Hume não fornece apenas um alerta metodológico
satisfatórios, mais dignos de reter as nossas atenções? Que per· mas também um verdadeiro ajuste do método . Sua doutrina
versidade deve ser a de um gOS!O capaz de uma tão ruim escolha impõe a especificidade, a legitimidade do individual e rasga o
de seus prazeres!" Contudo, por mais alto que a rust6rie seja caminho para o seu reconhecimento. Para dar a esse reconhe­
aqui erguida, por mais celebrada que seja como O mais nobre cimento o seu verdadeiro status litosdlico era necessário, eviden­
ornamento da existência humana, Hurne nem por i~so abjura do temente, dar mais um passo, que ele não deu nem podia dar.
seu cepticismo. Comparemos esse elogio da ciência histórica com Era preciso que o individual se tomasse não apenas um fato,
as esperanças, as exigências, o idealismo que o século XV III ti­ a maUer 0/ facI, mas um problema . Não bastava chamá-lo do
nha depositado inicialmente na história : o contraste logo nos im­ reino das idéias para o reino des fatos: cumpria definir o lugar
pressiona . Qual é essa vida dramaticamente movimentada q ue faz do individual no re~no das idéias . Essa exigência mais profunda ,
desfil ar a históri a sob os nossos olhos? Que prazer se pode ter à qual era mais difícil responder, consistia em criar uma nova
em acompanhar o nascimento, os progressos, a queda e final· idéia de individuo . extrair dela as divenas sign iJicações , as apli·
mente a destruição dos mais fl orescentes impérios ? Em ver quais caçócs e modificações possíveis. O empirismo céptico de Hume
as virtudes que os levaram ao apogeu, quais os vícios que os não estava equipado para lal empreend imento. O pensamento
cond uziram ao decHoio? "In short, to see aIl human race, Irom do sécu lo XVIII teria que enveredar por um novo caminho e

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confiar-se a um novo guia. Teria que trazer para a 1112: do dia o /I produç§o incessante de seus fenômenos. A totalidade desses
tesouro metodológico cutcrrado na doutrina de Leibniz.: não fora fenômenos está, bem entendido, prerigurada na substância; niio
essa doutrina a que dera ao problema da individualidade, graças produz propriamente nenhuma -epigênese ", nenhuma forma­
ao princípio da "mOnada-, a sua expressão mais penetrante, ao \110 nova, no senlido de que seria determinada do exterior. Tudo
colocá-lo no centro de todo um sistema fil os6fico? u (Iue a substância poderia parecer engendrar sob a ação de
forças exteriores está, na verdade, baseado também na sua
l,r6pria natureza, ai se encontra pré-formado, predetenninado.
4 Ilar outra parte, entretanto, não se trata de imaginar-se uma
determinação rígida e acabada. O ser da 5ubstlneia não está
A concepção leiboiziaoa da substância também s'e propõe Rcabado na plena realização do seu desenvolvimento; o meio e
a distinguir o que permanece sob a mudança. De um outro o fim são lão ~senciais quanto o seu começo. A metafísica
lado , entretanto, a sua originalidade consiste em apresentar a leibniziana fW1damenta o ser da "mônada- em sua identidade,
relação entre o um e o múltiplo, entre a duração e a mudança, lIcm deixar de admitir nessa identidade a idéia de continuidade.
como uma relaçio de pura reciprocidade (Wechselverhiiltnis) . Identidade e continuidade assim reunidas estão na origem da
Tal concepção nio pretende subordinar o múltiplo ao um, o totalidade, ou seja, de sua organização interna em tomo do seu
cambiante ao duradouro: parte do princípio de que esses mo­ próprio centro."
mentos opostos somente se explicam uns pelos outros. Por con­ Essa idéia fundamental da metafísieà leibniziana devia Cor·
seguinte, um conhecimento autêntico não pode ser um conheci. Deter um novo e promissor ponto de partida para a conquista
menta ou do duradouro ou do cambiante: cumpre demonstrar a do mundo histórico. Mas foi preciso esperar bastante tempo até
sua interdependência, apreender a sua correlação. 2 na mudan.
que esse empreendimento cumprisse suas promessas e se desen­
ça incessante que se revela a unidade da lei, a unidade da subs­ volvesse livremente. Sem dávida, o sistema de Wolff não descar­
tância; é aí que ela enCOnlJ'a a única expressão de que é susce­
tou, em absoluto, o problema da história; ele..procurou até defi·
tível. A subst!ncia persiste: essa substância nAo implica, porém,
ni r com nitidez a posição da história em Cace do mundo racio­
nenhuma imobilidade; pelo contrário, essa substância envolve
nal. Segundo a teoria da ci~ncia de Wolff, cada disciplina divi·
a regra constantemente idêntica a si mesma de seu próprio pro­
de·se em duas partes urna concreta, empírica, a outra "'históri­
gresso. A concepção estática da substância cede o lugar a uma
concepçiio dinAmica: a substância só é "sujeito" ou "substrato" ca". A experiência deve conservar a totalidade dos seus direitos
na medida em que ~ força, em que se revela diretamente ativa, na economia do sistema: a cosmologia geral estribar-.se-á na
em que martifesta a sua verdadeira natureza pela sucessão de suas física empirica, a psicologia racional na psicologia empírica. Mas
atividades. A natureza da substAncia não consiste em permane­ o equilfbrio que Wolff esforça-se assim por manter pouco se
cer fechada em si mesma: ela é produtividade, desenvolvimento justifica num plano puramente metodológico e é a pr6pria foma
de uma diversidade sem firo a partir de si. A sua "existên,cia" é :lo sistema. a da dedução, da demonstraç.lo matemática, qu~
precisamente essa "gênese" de um conteúdo sempre renovado, !ntn em conflito com esse equilíbrio. A filosofia . segundo a

304 305
sua própria tarefa, conlinua sendo a ciência do racional , não a humano] , o religioso reconcilia-se com o hist6rico, que assim é
do históricoj a ciência do possível, não a da clCis.\ência de facto: reconhecido como um fator necessário, um momento indispen­
$cientia possibiUum quaatenu, esse possunt. Portanto, uma "filo­ bável do religioso. Contudo, o pensamen to de Lessing não se
sofia da história" propriamenle dita não pode enconlra r lugar estende ao mundo histórico como tal. Que o dedo da Providên·
no sistema de Wolff. já que ela implicaria uma mistura de cia o tenha organizado até os fnrimos detalhes é algo de que
gêneros, uma confusão das fronteiras do saber, uma verdadeira Lcssing não duvida, por certo, mas nem por isso se permite
!,,~rÚptl.tJf~ l.f~ <'i'v.o }'bo!: ." Não é o mundo dos erguer o véu desses mistérios. Foi preciso esperar Herder para
Catas, aquele de que trata a história, o que constitui o objeto da que esse passo decisivo fosse dado. Sua obra, para quem a
filosofi a, mas o mundo das " razões", E, mesmo quando a filo­ lama em sua totalidade concreta, é incomparável: ela não conhe­
sofia se aplica aos Catas empfricos, é ai nda o princípio de razão ce antecipação nem preparação na cultura da época. Parece cair
que permanece como sua má.x ima e seu fio condutor. A univer­ do céu . gerada pelo nada: brota de uma visão da história que
salidade e a necessidade das causas con tradizem o caráter con­ é inigualável em pureza e perfeição. Essa nova concepção do
tingente, eventual e singular que se liga de modo inseparável a mundo histórico jamais poderia fundar ·se, entretanto, e desen­
toda a existênci8 hi stórica . Ntio se trata de atingir dessa forma volver·se sistematicamente sem os instrumentos intelectuais que
o ideal de rigorosa Hclareza" matemático-CiIos6fíca: jamais a já estavam à sua disposição. A "metafísica" da história de Her­
história terá acesso aO san tuário da ciência e da filosofia . der liga-se em todos os pontos às idé ias de Leibniz, se bem que
Ti nha parecido, entretanto, que esse; santuário era suscetí­ a vivacidade das perspectivas a coloque, desde o inIcio, prote­
vel de ent rea brir-se por um oul ro lado. Enquanto a fitosofia. em gida do perigo de aplicar esquematicamen te a teoria.11 Com efei­
sua pureza abstrata , ma ntinha-se à margem do mundo histórico, to, ela não se contenta em buscar o simples contorno da hist6ria;
acreditando poder e dever preservar-se, a teologia toma ra a ini­ quer discernir separadamente cada Conna e apropriar-se dela de
ciativa de deslocar as fronteiras, de recusar a legi timid ade dos dentro para fora. Rompe, em definitivo. com as limitações do
compartimentos estanques que separavam o conteúdo "dogmá­ pensamento analftico, particularmente com o prindpio de iden­
tico" do conteúdo "histórico" da fé. Já vimos qual tinha sido tidade . A história aniquila toda identidade aparente, nada c0­
o ponto de partida desse movimento, que objetivos intelectuais nhece que seja realmente idêntico, ignora todo retorno ao seme­
o tinham determinado. R No âmbito do pensamento alemão , foi lhante . Não pára de engendrar novas criaturas e de dotar os
Lessi ng quem nesse movimento chegou às últimas conseqüên­ seres a que dá vida com uma forma pr6pria e um modo de
cias, foi com ele que o método atingiu seu ponto culminante.
existência autônomo. Toda a generalização abstrata é, portanto,
Em Erziehung des Men schcllgeschlechts [Educação do gênero
impotente em seu domínio. Nenhum concei to especfJico único,
• M ~I(lfxl.,i$ âJ a//(I 1,:nW ( literalmente, transposição para outro g~_ nenhuma norma universalmente coerciva é capaz de engloba r
nero ). Consiste em "falAr de uma outra coisa", i~to é, dar a um termo toda a sua riqueza. Cada situação humana tem seu valor sin­
um significadO distinto por pertencer a uma clllssc diferen te daquela em
que esse termo foi Inicialme nte entendido (Cf. 1. F crrater Mora, Dido. gull!.r, cada fase da história possui seus direitos próprios e sua
ndrio dI! fi/motia, no verbete "sofisma" ) (N. do T.) . necessidade imsnenle . Fases e situações não são isoladas umas

306 307
das oultas, elas só ex.istem no todo e pelo todo. Cada uma delas ,li lugares, abrangê--Ios num olhar, :lum sentimento, numa pala­
é igualmente ind ispensável ao todo. e. em sua heterogeneidade VIII! O discurso, perfil obscuro de um se mimorto! Seriu preciso
perfeita que se constitui . a - verdadeira unidade , a qual não se leonir a{ toda a pintura vi braille do modo de vida. dos castu·
representa rá c:;>mo unidade de um estado de coisas mas como " ":5, das necessidades, dos caracteres da terra e do céu, ou de
a de um processo. 'O , , primeiro esforço do historiador deverá, I" 05 ler percorrido. seria preciso simpatizar com essa nação
portanto, ser, em vez Be subm~ ter o seu objeto ti uma medida plltn senti r uma SÓ de suas inclinações e de seus comportamentos.
uniforme rixada definitivamente, o de adaptar o sua medida à p,lra senti.lo}.. todos juntos, encontrar uma palavra, todo o peno
individualidade do :objeto. "'E uma tolice" - protestou Herder ftll ll1CntO em suo plenitude - ou então que se lê? uma pala­
a propósito dos egípcios - "exumar tal ou tal virtude egípcia vra," 1$ Pora esse gênero de «achado " (Finden) das palavras que
singul ar de sua terra, de seu tempo e dos alvores do espírito evocam para nós. espontaneamente, a imagem concreta que
humano a rim de exprimir o seu valor nas medidas de um outro permite não os distinções analíticas mas a sfntese intelectual e
tempo! [ ... 1 Deixemos o grego equivocar-se to:almente acerca vi~ual . os recursos de Herder são inesgotáveis; é af que eLe dá
do egípcio e o orienta l odiá·lo: o nosso primeiro pensamen to não I!luvas de sua verdadeira mestria. Ele não se conten ta em des­
pode ser ourro senão vê.los , muilo simplesmente, em seus pr6­ \ rcvcr, em caracterizar; ele próprio se insere em cada uma das
prios lu gares, sob pena de os enxergarmos, sob retudo desde a époc.'ls que vivenda, para cada uma delas alimenta o sentimento
Europa. como caricatura grotesca." t preciso que a história re­ Lorreto, o único que convém. Pois recusa também a quimera de
nund"c às Ncaracterizaçõcs gerais", "Faz-se o retrato de um povo lima " felicidade absoluta. autônoma, imutável, tal como o m ó­
inteiro, de uma 6poca. de uma regi!o - mas de quem é esse fO fo a definc" . A natureza humana não é o receptáculo de umu
retraio? Ajuntam-se povos e tempos, sucedend~se e sobrepon­ felicidade dessa espécie: " Mas atrai para si de toda parle tanta
do-se uns aos outras como as ondas do mar - de quem é a ima· felic idade quanto lhe é possível: uma argila fl cxivc\' capaz
gem? Quem encontrou a palavra certa para descrevê-los? [ ... ] nllS muis diversas situaÇÕC5 de se fo rmarem as nccessidades c a~
Quem observou que coisa inefável é a qualidade própri(l de um opressões mais variadas r... ] A partir do instante em quc o sen·
homem , pela qual se possa dizer, 00 apontar tudo o que a dis· lido interior de felicidade. a partir do instantc em que a incli­
ti ngue, como ele sente t como ele vive, como todas as coisas nação mudou: logo que as circunstâncias e as necessidades ex te­
mudam e lhe pertencem depois que seus olhos as viram, que riores adotam esse outro sentido - quem pode comparo r as sa­
sua alma as aval iou, que seu coração as sentiu - que profun· tisrações diversas. de diversOS sentidos. em sentidos diversos"
didade se esconde no caráter de uma 6niea nação que, por Tod a a nação conserva nela o seu cenUo de felicidade. assi m
mais assiduamen te que tenha sido observada e admirada, nem I;OlnO cada esfera o seu cen tro de gravidade!" A própria Provi·
por isso escapa a todo discurso ou, pelo menos, nesse discurso, dênci a não aspirou, em absoluto, à mODotonia e à un iformidade;
é tãc raramelHe recon hec(vel para aquele que a compreende e dfl quis alconçar seus fins pela mudança . a c.riaç50 perpétua de
a interpreta - e isso nada é comparável com o desejo de domi­ novas forças e a destruiçiio das outras: " Filósofo, no teu vale
nar o oceano de todos os povos, de todos os tempos e de todos do norte. B balança infantil do teu século à mão, sabe-o tu

308 309
melhor do que ela? ~ at Vc-se por essas palavras que, sob a NOTAS
influência e com a IIjuda de Hamann, Herder guarda uma certa
distância em r~lação ao seu proprio tempo. f: em vão que se
buscaria em toda a fil osofi a da história do século XVIII um I I'ubhcado originalmente na revista D~uU't;h~ Rundschall , IIgosto­

tão nobre timbre de sino quanto na obra dele ; nada desse gênero II'lI1hro de 1901; faz agora parte de Gt~m . S.h,,/tlm. va i. 111 ( 1927).
tampouco se encont ra em Montesquieu, Voltai~ ou Hume. E, ,'1' !U9 e !i$.
J Cf. adma. pp. t 4S e ~.; para lima upo:siç.ii.o m ai!; detalhada, ver
no entanto, ainda que se eleve muito acima dela , Herdcr não \m'l, ""tologi~ dt, LtJJillgl.~il, pp. 204 e"., 2]), 309 c passim.
rompe abruptamente com 8 filosofi a do lI uminismo. Esse pro­ -Carta ao Irm50 de 27 de feve reiro de 1773 ; em J..tIlff'S dt Buy/~ 11
gresso e essa elevação s6 eram possíveis nos caminhos abertos I jl/llliI/... no Apêndice das Oe'" ''''J D il'l~r.w!f, H ai a. 17'37; vol. I.
peJo século XVI1J , o qual, porlanto, forjo:.! de maneira defini· [Em francês no origino l : "Vejo perfeitamente que a min hlt ills.,dabi­
1I,I,lIle de novidades é uma d~ dOCnÇllli pcninalC:S COnlrll as qua is lodos
tiva I1I S próprias armas que permitiram vencê-lo e fixou, com O terl16iios fracassa m.e u ma hidropsia pu ra. Quanto ml\i~ se lhe dá.
rigor e a precisão que o caracterizam, as premissas donde Her· U,,' ,\ C.hl Jkde." N. do 1'.1.
der extraiu suas conclusões. e nesse sentido que a vit6ria alcan­ 'I'roi~f d'un dicliQmlllir~ crilillll~ (Di55erla tion 11 du RondeI), R Oler·
,1,1, 1692; cL De lvolvé, RdiJrloll. cril iq/l~ t I pllilosopMt pnsi/i"(! "htt
çada por Herder sobre o século XVIII ccnstitui , na verdade,
I'/r"" O'qle, Paris. 1906, p p. 226 e ~s.
uma vitória que o século XV III alcança sobre si mesmo; é uma ~ OissertatiOfl à Du RondeI.
daquelas derrotas que são, talvez, a mais cla ra expressão do 11 Dicllonfluir~, artigo "A rcl1claus", cf. DclvoJv~, cp. cit.. p. 226.
triunfo. Foi ao superar·se a si mesmo que a filosofia do I1umi· 1 DicriQflna lre. artigo "Manichécns", I.;omentár io D.

nismo atingiu o seu apogeu espiritual. "Carta a Na udis de 22 de maio de 1692. Ullrtr d~ 8<1~'I~ à SQ
I,."u/l~. O~uv,u /Ji"'~rs~s, 1, apê ndice. p. 161.
t "li ne faut .D aS iSOuffrir qu'un homme qui dte IIIt~re le InOlnS du
",onde le rappon de son lemoin." {"'Niio se deve <:onSltntir que U I1I homem
'1'11: cita allere 5Cja o que for no deDOiment o da ~ua te~terll u nha."l "Nou·
~fll~ de la républiq ue deli lettres". Otl4'' ''U Div(!fs~s, vol. I, p. no; d.
/11, lIofl1l€1i,~. artigo "pêridcs", oomentáriQ E: para o conjun to, ver La­
~t ... te. lJuy/~. NOl(v~lIislt t I criliqll~ IiIlh uir t', 1>8 ri~ 1929. pp. 27 e :Ii!I.
IlI l)kliOllnaire. artigo "Usso n". comentário f:, vol. IV, foI. 2858.
11 O I'spír;/Q dtLf lâ~, Livro n l , capo I ; d . capo 2 e ss..
l:l Cf. O ..~pi,ilo d€ls lâ~, Li vro 111 , ça p. I J : 'rt'ais do os principias
11u4; três governos, o que não sign ifica que, em determinada rep úbl ica,
oc:'/a·sc virtuoso, mas sim que $C dev~riu sê-Io. hso tampouco prova que
1lI1OU! certa monarquia re ine a honra e qu e. num dado ~tn do despÓtico,
vlllOre o medo ; mas sim qu e a honra e o medo deve riam existir, J~III o
1111; luis formas f/c f(Q "~'1IO S~ri("'1 impt'r/"ilas."
1:11 0 u pirilo dllS leis. VIU, p. 1.
11 Ib,d., V III , p. I t.
I~ O upir{to (iu.~ I~is. I. p. I.

310 :)11
l t Cofl$id&orion.s lur lei cousu de lo arandeur du romains el de n Cf. acima cap. I, pp. 51 e $,S.

leurs dkodence, capo XVIII. 10 Ver acima pp. 246 e 55.

11 O upfrilo dlU lâs, XIV. p. 5; cf. em particular, XVI, p. 12­ '1 Pata • relaçlío entre Il fi losofia da história de Herder e 05 con·

!aIbid.,XIV, p. I . ce itos fuDd.ameolals da nIosof.ia de Leiboiz, d. li pormenorizada u:po­


18 Ibid ., I. p. I. ,içio DO meu ensaio Frtihefl ufld Form. Sfudil!fI zu r dtlllschtn GeisttS'ge·
t1l Cf. lo esse respeito Sord, Monlf!Jq//leu, Paris, 1887, pp. 151 e 118. schich/t, 3.- edição. pp. 1&0 e ".
21 0 espfrito dQJ' leis. XI, p. 6. n H erder, Auch eine Phi/osophil! der Geschichlt zur BildUIIg deI
M m .schheil (ldEias para uma filosofia da hÜltória. da . humanidade),
22 Cf. Herder, Auel! elne PhilO$ophie du Gesel!lcl!te tur 8i1du118 da
Werkt (Suphan), V. pp. 489 eIS., 501 e 5S.
MelUChheit, W e,ke (SuphaD) V, p . 565 .
lfHerder. op. di., V, pp. S01 e ss.
23 "Fui o primeiro a caminhar com puso livre nessa terra vazia."
Lessinl. Sehrilten (Ed. l.acbma.nn·MllDCker) V. p . 143.
U Cf. Voltaire, Remarques pour seflllr de supplémenr li fEuDi sur
le, tn(Hurs. Oeuvrts (Paris, Lequien, 1820), xvm, pp. 420 e S.I .
20 Carta de 26 de maio rk 1742. Oeuvres, ed. Lequien, U, p. 119.
U Sobre eMeS diversos pontos, cf. o meu livro DDS Erkt!!ln lnisproblem
in du Philosophie und Wisseruchalt der neuten Zei/, I, pp. 164 e 8$.
27 E.smi IS/U leIS rr!Qeurs, capo CXCVII, Dellvf es, xvnl. p. 425.
n Voltaire., Le Py"honisme de l'htstoir. (1768), capo 2; Deuvru,
XXVI, p. 163.
:t Carta a Nordbe.r,. DO prtiádo da Dova edição da H !staire de
ChaTks xn (l741)i Deuvr.s, XXJt, pp. 12 e ss.; sobre Nordberl e sua
crítica a Voltairc, ver Geara Brandes, Vollalft, I, pp. 182 c as.
80EnDl ISIlT lu moeurs, "Introduction", DeuI·res. XV, 110; sobre
Voltaite historiador, ver Gustave Lanson, J/alIDiTt, capo 6; 6." edição,
pp. 107 e 6$.
11 D'Alemtxrt. eUmell1$ de philolophl" seco 1/ (Mélanaes de liné­
ratu re etc., vol. N, pp. 9 e SI. ).
12 D'Alemtxrt, Elimellls dI! phlfosoph/~ 111; IIX. e:I.., pp. 16 e SI.
n Cf. em particular as indica!rÕC5 de Kant sobre a orjentaçio do!;
'eus curso~ durante o .semestre de inverno de 1765·1766, W"kt (ed.
Cauirer). D, pp. 319 ~ U .
'4 Em inglês no original : "Em fe5unlO. ver :OCa a raça bumana,
desde o começo do tempo, desfilar, por usim dizer, diante de no. .
olhos; apruent.a.lldo-M em sUaJ vtJ'dadeins cores, .sem qualquer daqueles
d.isruc« que, durante suas vidas, tanto de5COnurtaram O ju!&amento
dos espectadores. Que esPetáculo pode ser imaa.inado que seja tio m8Jor.
fico, lão variado e interessante? Que eotretenimento, dos sentidos 011
ds imaginaçlio, lhe pode ser comparado'" (N. do T.) Hume, OI lh e
SfUdy 01 His/ory. Essays mOfa/, polillcal Dnd li/uary. ed. GTeeD &:
Grose, nova impressão, Londres, 1898, "OI. lI, P1l. 388 e SI.

312 313
VI

O DIREITO , O ESTADO E A SOC/EDADE

A idéia de direito e o principio dos direitos inalienáveis

Uma das características essenciais da filosofi a do Iluminismo


é que, ~pesar do seu apaixonado impulso para o progresso,
apesar de todos os seus esforços para quebrar as velhas Táb uas
da Lei e reconstruir a vida sobre alicerces in telectuais comple­
tamente novos, ela nem por isso deixou de voltar incessantemen­
te aos problemas filosófi cos originários da humanidade. Já
Descartes se defendia contra aqueles que lhe censuravam querer
fundar uma fil osofia absolutamente "nova" explicando-lhes que
a sua doutrina , uma vez que assentava em princípios estrita­
mente racionais, uma vez que se apoiava somente na razão,
podia muito bem reivindicar o privil égio da Antiguidade. Quem,
senão a razão, possui com efeito o verdadeiro direito de primo­
genitura? Não domina zla, do alto de sua idade, todas essas
opiniões e todos esses preconceitos que a obnubilaram no de­
correr dos séculos? A Hlosofia do Jluminismo fez sua essa reivin­
dicação. Ela lula em todos os dominio$ conlra o poder do
costume, da tradição e da autori dade. Contudo, não crê estar

,15

d~empc:nhando assim uma t:m;fa puramente negativa e dissol­ *ulo XV1II , qt.:e a aàapta à sua própria vida intelectual. Nesse
vente. Pejo contrário, qu.er varrer o entulho do passado para ponto, ela consegue, por cima de dois mil anos de história, esta·
desembaraçar e instaurar as fundações definitivas do seu edifí· IlIbelecer um diálogo direto com O munelo intelectual antigo que é
cio. Essas mesmas fundações são imutáveis e inabaláveis, tãe tio importante do panto de vista da história das idéias quanto
antigas quanto a própria humanidade. Por ccnseguinte, a filo­ de um pOnto de vista puramente especulativo. As duas teses
sofia do Iluminismo não considera a sua obra um ato de destrui· (u ndamentais r.ustent adas na República de Pl atão por Sócrates
ção mas um ato de restau ração. Até em suas mais audaciosas e Trasímacos entram uma vez mais em conflito. t evidentemente
revoluções, ela quer se r apenas uma restituição: uma restitutio numa outra perspectiva que as reencontramos, é num mundo
in infegrum pela qual a razão e a humanidade devem ser res­ Intelectual fu ndamentalmente diferente que ambas as teses são
tauradas em seus antigos direitos. De um ponto de vista hist~ (t)rmuladas de novo. Mas essa mudança de circunstâncias não
rico, essa dupla tendência afirma-se no sentido de que a fúo60fia ~up rime o parentesco profundo e a comunidade real das teses
do Iluminismo, no decorrer de todos os seus combates con tra ant igas e novas. Na língua de dt:as épocôs diferentes revela·se
a ordem existente e o passado imediato, sempre se compraz em umD só e mesma diatética que nada pe rdeu de sua força e de
voltar aos temas intelectuais da Antiguidade e a05 problemas leU rigor, que .descarta todes as conciliações telHadas preceden·

antigos. A esse respeito, acertou o passo, por assim dizer, com temente para caminhar, sobre novas bases, em direção a uma
o Humanismo renascentista, que lhe transmitiu suas aqwsiçõe5. nftida decisão de princípio.
Mas usa essa herança de um modo essencialmente mais livre A questão platônica da "natureza" do justo, de sua essência
do que o Human ismo lograra fazer outrora, encerrado como própria, não é um problema isolado, parcelar, que requcriria
estava no quadro da investigação puramente erudita . Só extrai Clpenas uma idéia singular e sua explicação fil osófi ca. Na ver­
dessa herança alguns traços fundamentais que se harmonizam dade, ela 6 inseparável da questão universal e fundamental do
com o seu modo de pensar, sem preocupação com o resto, que sentido e da realidade da Idéia em geral e $Ó poderá receber
abandona . Mas ocorre justamente com bastante freqüênci a que esclarecimento e solução definitiva nessa perspectiva geral. Em
a fil osofia do Iluminismo, ao acentuar com tanta nitidez esses nOSS8S idéias tanto lógicas quanto éticas, exprimir·se·á uma reali­
traços, devolva·nos à fonte verdadeira dos problemas. :e um dade objetiva e determinada, existente em si? Ou essas idéias
pouco o papel que ela desempenhou no tocante ao problema nada mais são do que sin ais verbais a que atribuimos arbitra·
do direito. Em nenhum caso pretende manter-se na consideração riamente um certo conteúdo? Existirá o igual em si, o belo em
apenas dos direitos adquiridos histericamente: ela remete-se ao si, o justo em si? Ou é em vão que buscamos, no curso cam­
"direito que lemos de nascença". Mas para fundar e sustentar biante das nossas representações e opiniões, algo que seja autên­
esse direito , ela vinculo-se à mais antiga herança intelectual: tica e verdadeiramente idêntico·, que não seja carreado ao acaso
leva·nos de volta ao problema radica lmente formulado por PIa· e puxado para cá e para lá ao sabor das nossas fantasias (phan·
tão. Com efeito, Platão tinha apresentado a questão fundamentol tasmata)? Haverá uma form a originária e fundamental, modelo
das relações do direitQ e da força : essa questão foi reatada pelo e correlato das nossas idéias? Ou o simples fato de propor a

316 317
questão encerra mal-entendido e quir.lera? Tal é o alcance uni· o pensador mais importante e mais original produzido nos meios
versal da decisão em causa nos profundos deba ..es que se desen­ humanistas. Por isso procura, de múltiplas maneiras, ligar-se d irc­
rolam no G6rgios e na Repl'iblica a respeilo da essência do l umen t ~ às doutrinas da Antiguidade. Em seu tratado Lellre vom
justo. E a propósito da questão da natureza. do eidos da justiça, Ursprung der Geselscho/l und vom Ursprung des Rechls [ Dou·
com efeito, que deve ser resolvida a questão de direito do trina da origem da sociedade e do direito], Grotius remonta
eidos como tal, do seu quid ;uris? próprio. Se se revela que, primeiro a Ari stóteles e deste a Platão. Do mesmo modo que em
examinada mais de perto, a idéia de justiça reduz·se a nada, Platiio a doutrina do direito nasce da interação da lógica e da
que ao invés de conter um sentido essencial e imutável ela ética, também o problema do direito, no espírito de Grotius ,
designa apenas uma representação instável e fugaz, então a liga-se ao problema das matemática s. Essa síntese é um dos
mesma sorte está reservada a toda e qualquer outra reaJid ~ de traços característicos da orientação geral do século XV II . As
que tenha podido aspirar à dignidade de idéia. A idéia só vale, matemáticas con stituem o meio e o instrumento intelectual da
nesse caso, por instituição. IHatl , não por natureza, gNaU; restauração das " idéias" platônicas, Não s6 a física mas também
somente a instituição lhe confere realidade, somente da insti­ as ciênc ias " morais " enveredaram por esse caminho . Entre tanto ,
tuiçi'io dependem seu conteúdo e sua duração rela tiva. Ao atacar. o vínculo metodológico que assim se instala comporia certa·
sobre esse ponto, a solução sofística , ao empenhar-se em pre­ mente para as ciências jurídi cas conseqüências que, à primeira
servar o con teúdo essencial do direito - a saber, O que o direito vista , são sumamente paradoxais e perigosas; o que o direito
"é" no sentido mais puro e o que sign ifica no sentido mais pode ganhar num plano puramente ideal , parece estar fadado a
profundo - de toda mistura com a simples força, ao interditar perdê-lo do ponto de vista da " realidade" , da aplicação empí·
ao direito basear-se na força, Platão apresenta a verdadeira e rica , Abandona o mundo do real , do efetivo , do cfi cien te a fim
crucial questão de sua fil osofi a. T rata-se. para ele, do ser e do de transferir-se para o lado do " possível". Leibniz não fez mai s
não-ser, não só da ética mas também da lógica. O eurso ulterior do que extrai r a conclusão clara e segura das idéias de Hugo
da história levará, sem dúvida nenhuma, a abrandar cada vez Grotius quando declarou que a ciência jurídica faz parte daque­
mais o rigor dessa ligação. A forma metodológica da questão las d isciplinas que não dependem da experiência mas de defi ­
platôDica será , depois, cada vez mais raramente compreendida nições , não dos Jatos mas de provas estritamente racionais. O
em sua significação própria; só o conteúdo sobrevive, e consti· que é o di reito e a justiça em si? Essa questão não pode, eviden­
tui um dos elementos que, de um modo ou de outro, deve ter temente, ser esclarecida pela experiência. Direi to e justiça en·
lugar certo em todas as " teorias" do direito e do Estado. cerram a idéia de um acordo, de uma proporcionalidade e
:e preciso esperar pelos séculos XVH e XVIII para que o harmon ia, que continuaria válida mesmo que nunca viesse a en­
problema seja abordado de novo em toda amplitude de sua uni­ cont rar sua realização concreta num determinado caso, mesmo
versalidade . Foi Hugo Grotius, muito especialmente, quem abriu que não houvesse ninguém pata exercer a justiça e ninguém a
o caminho r.esse domínio, Ele não é apenas homem político e cujo respei to ela tivesse que ser exerc ida . O direi to compara·se
jurista mas também um humani sta de vasta erudição; é mesmo nisso à aritmética: o que essa ciênci a nos ensina sobre a natu­

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reza dos números e suas relações contém uma verdade eterna e meio de elevar-5e acima da contingência, da dispersão e da exte·
necessária, uma verdade que subsistiria intat2. mesmo que o rioridade do mundo dos fatos, a fim de prodtrzir um sistema
mu ndo empfr ico desmoronasse inteiro e não houvesse mais nin­ jurídico tal quc todos os elementos venham a concatem a·se na
guém para ser efetivamente contado, nem sobrasse objeto algum urdidura do lodo, que cada decisão individual receba do todo
a conlar. 1 J:: a mesma comparação e a mesma analogi a metodo· a sua sanção e a sua autenticação .
lógica que Grotiu$ coloca no centro da sua argumentação no Para que essa tese capital do direito natural pudesse dar
prefácio da sua principal obra. Ele declara expressamente que suas provas, era preciso superar dois i.mpedimentos e enfrentar
suas deduções sobre o direito da guerra e da paz (em De jure dois poderosos adversários. Por um lado , o . direitO tinha que
belli ac pacis, 1625) não têm o propósito de fornecer uma s0­ arinnar sua originalidade e sua autonomia intelectual em rela·
lução determinada para esta ou aquela questão concreta. para ção aos dogme.s da teologia e escapar a seu perigoso assédio ;
OS problemas da polhica contemporânea . Pelo contrário, ele des· por outro lado, cumpria-lhe definir e delimitar claramente a es­
carta do debate todas as intenções desse gênero. da mesma fera do jurldico em face da do Eswdo e protegê·la , em sua
forma que o matemát ico tem o costume de considerar as fi gu· especificidade e em seu valor pr6prio, do absolutismo esta ta\.
ras sobre as quais raciocina independentemente de toda reali­ Por conseguinte, o combate para a fundação do direito natural
dade material. No desenvolvimento ulterior da doutrina do di­ moderno travou-se em duas frentes. Deve prosseguir contra a
reito natural essa matematização do direito foi levada ainda doutrina teocrática que deduz o direito de uma vontade divina
muito mais longe. Pl!lendorf chega a adverti r-nos contra uma absolutamente irracional, impenetrável e inacessível à razão hu·
conclusão precipitada: o fato de que os princípios do direito mana , assim como contra o "Estado Leviatã". Em ambos os
natural aplicam-se a certos problemas concretos poderia lançar casos, traia-se de abalar e vencer um s6 e mesmo princípio, o
sobre eles uma certa suspeita; não obstante. el es são de uma slal pro ratione voluntas. Calvino estribava·se nesse princípio
evidência perfeita, lanto quanto podem sê-Io os axiomas da para provar que todo direito se baseia, em definitivo, na oDip<>
matemática . Se a teoria do direito natural relaciona assim o di· lência divina , que essa, porém, 6 absolutamente indetenninável
reito e a matemática, é porque essas duas disciplinas 6ão para e não está sujeita à limitação de nenhuma regra ou norma. O
ela os símbol os de um s6 e mesmo poder espiritual ; ela vê em cerne da dogmática calvinista reside nesse pensfI!Denlo, monnen·
ambas os mais importantes te5temunhos da autonomia e espon­ te o dogma central da predestinaç!io; bealitude e danação aí
taneidade do espírito. Uma vez que o espfrilO é capaz, a partir estão implícitas. Não cabe interroga r-se sobre a razão e o direito
de si mesmo, de gerar suas "idéias inatas" , de iniciar e con· da decisão divina de salvar a alma: fonnular tal indagação já
c1uir a construção do dornlnio das grandezas e dos n(lmeros, não representaria uma impertinência sacrOega, uma exaltação da ra­
poderia possui r um menor poder de construção e elaboração e
zão humana acima do próprio Deus. o poder absoluto de Deus
criadora no domfnio do direito. Ele tem que partir de normas que rejeita a maior parte da humanidade, ao passo que salva c
originais, que cria por iniciativa própria, e abrir um caminho até exalta o pequeno cfrculo dos eleitos: danação..&: salvação ocorrem
a fonnulação do particular Não existe para o espfrito outro sem nenhuma " razão" no seotido humanó do tcrmo, sem a

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menor consideração pela dignidade ou o mérito moral. A pro­ sentido primeiro e originário, no sentido de fex naiuraJis. jamais
blemá tica fil osófi ca do direito natural desenvolveu-se a partir se resolve numa soma de atos arbitrários. Ela não é a totalidade
dessa problemática religiosa . Grotius é um dos campeões inte­ do que (oi ordenado e estatuído: é o "estatuante" originário,
lectuais do movimento que, na Holanda, sob a Iideranço do ardo ordinans e não ardo ordinatus. A idéia completa de lei
bispo Jakob Arminius. opunha-se ao dogma calvinista da graça pressupõe, sem dúvida, um mandamento (Cebot) endereçado à
eletiva. O seu combate nas fileiras dos armi níanos e dos " re­ vontade individual; mas o mandamento não cria a idéia de direi­
monstrantes n não s6 marcou profundamente o seu destino pes­ to e de justiça, sujeita a essa idéia ; coloca-a em execução.
soal - após a condenação do arminíanismo no sínodo de Dor­ Abstenhamo-nos, porém. de confundir essa execução com a fun­
'drecht, ele {oi privado de seus cargos e encarcerado - mas dação da idéia de direito como tal . ~ nos "'Prolegômenos" de
imprimiu igualmente uma orientação a toda a sua atividade eru­ sua obra De jure belli QC pacis, onde Grotius procede a essa
dita e literária. Grotius encon tra-se precisamente na mesma si­ fundação, que se manifesln com maior nitidez o " platonismo"
luação em que Erasmo se encontrara: deCendendo o ideal de da doutrina moderna do direito natural. Sabe-se que o demiurgo
liberdade do humanismo contra a dou trina do servo arbítrio que platônico não é o cri ador de idéias, que ele apenas modela o
Cora restabelecida em toda 8 sua acuidade pelos !(de~ da Re­ mundo real à sua imagem, ao imitar o modelo incriado e sempre
forma. tanto Lutero quanto Calvino. Mas. ao mesmo tempO, existente; o mesmo ocorre. segundo GroUu" com a formação e
vê-se chamado a lutar contra um outro adversário. DeJXlis da ordenação da soc iedade civil. Ao decretar as leis positivas, o
onipotência divina, é contra a onipotência do Estado que Grotius legislador conserva os olhos fi xados numa norma de validade
deve terçar armas, contra o "Deus mortal ", segu ndo a f6rmul a universal, exemplar, coerciva para a sua própria vontade e para
tio eJtpressiva e tão característica de Hobbes.~ Nesse outro com­ todas as outras. 'e nesse sentido que se deve en lender a célebre
bate, ele enfrenta um pensamenlo espe.cificamente moderno que frase de Grotius de que todas as teses do direito natural conser­
vinha, desde a Renascença, ganhando continuamente terreno. variam sua validade mesmo admitindo que não cltista nenhum
Depois de O prlrlcipe. de Maquiavel, e do De Republica, de Deus ou que a própria divindade não ti vessc a menor preocupa­
Bodin , a idéia de que o detentor do poder supremo do Estado ção com as coisas humanas.' Essa proposição não tem a intenção
não está sujeito a nenhuma condição ou restrição jurídica foi de cavar um abismo entre a religião, por uma parte, o direitc
objeto de uma penetrante elaboração. Em contraste com essas e a moralidade, por outra. Grotius conlinua sendo, em loda a
duas correntes, o direito natural sustenta como tese suprema a sua personalidade, um pensador profundamente religioso: põe
existência de um direito que sobreleva todo poder humano ou tanto empenho na renovação moral , na reforma da religião,
divino e que é dele independente. O conteúdo da idéia do direito qUllflto 08 fundação intelectual e no aprofundamento da idéia
como tal não tem sua fonte no domínio do poder e da vontade de direito. A tese de que pode e deve existir um direito sem
mas no da razão pura. Nenhum ato de autoridade pode mudar que se seja por isso obrigado a admitir a existência de Deus
ou retirar seja o que for ao que essa razão concebe como "exis· tem que se r, portanto, compreendida hipoteticamente e nunca
tente", ao ' que ~ dado em sua pura essS.ncia. A lei , em seu "teticamcnlc". Entendida corno a afinnação de uma lese. é

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eviàen te que não signilicari.l outra coisa , como Grotius logo velação e preparar seus caminhos. Mesmo que, numa certo me­
acrescenta, senão uma impertinência e um absurdo. Em contra­ dida, ela seja reconhecida, a lei natural permanece subordinadll,
partida , como simples "hipótese" , na acepção platônica do tenno, portanto, à lei divina. Santo Tomás de Aquino explica essas duóls
ela serve para eliminar ni tidamente as diversas competências no leis como dois raios. da essência divina, uma destinada a fin s
âmbi to da esfera moral e religiosa que Grotius ainda considera terrenos , a outra instituída pela revelação para fins suprater·
uma unidade perfeita (a separação que será efetuada no século renos.· Se Grotiu s ultrapassa a escolást ica é menos, portanto.
XVIII é-lhe absolutamente estranha). O direito não recebe sua pelo conteúdo do seu pensamento do que pelo seu método. Ete
validade da existênda de Oeus; de um modo geral, não deve vai realizar no domínio do direito a mesma revolução que Gil­
alxJiar·se em nenhuma existência, seja ela empírica ou absoluta . lileu realizou na Usica. Trata-se de definir uma fonte de conhe­
Ele decorre da idéia do bem - dessa idéia a respeito da qual cimento jurfclico que não provenha da revelação divina mas sub­
Platão dizia que ele supl an tava tod:ls as outras em força e em sista , pelo contrário. por sua própria "natureza " e evite assim
dignidade ( 6vvcí!4tt xal nes.afJtÍQ. v;rl;f'éxowa ). Essa "trans­ toda mácula e toda falsifi cação. Tal como Galileu proclama e
cendência" da idéia do direito, que eleva a justiça e o bem acima defende a autonomia da física matemática, também Grotius luta
de todo ser ( l;'t,::lt&tva 1'ijç oV(J[a; ), que nos impede de fun· pela autonomi a da ciênci a jurídica. Parece que o próprio Gro­
dar o seu sentido sobre qualquer coisa existente, Grotius analisa·a tius ti nh a uma noção perfeita desse parentesco ideal: manifesta
cada vez mais profundamente. Foi esse, muito exatamente, o por Galíleu a sua mais prorunda admiração e chama-o, numa
seu verdadeiro papel filosófico e histórico. Afinal de contas, a carta, de o maior gênio do século. A palavra e o conceito de
fdad e Média cristã já se ocupara igualmente da idéia de um di­ "'natureza" , na vida intelectual do século XVIII , englobam e
reito natural inspirado, em seus aspectos essenciais. no estoi· condensam dois grupos de problemas que estamos habituados a
cismo. A par da lex divina, o pensamento escolástico não ignora distinguir nos dias de hoje. As "ciências da natureza- nunca
a esfera própria. relatiyamente autônoma, da lex naluralis_ O eram então separadas das "ciências do espírito " e ainda menm
direito não está pura e simplesmente subordinado à revelação, se opunham do ponto de vista de sua especificidade e validade.
não é deduzido exclusivamente desta. Ensina-se então uma mo­ "Natureza" não designa somente o domínio da existência "'f'í­
ral natural e um conhecimento natural do direito que a razão sica ", a realidade "material", da qual cumpre distinguir a "inte­
conservou para <I!ém da queda original e que são considerados lectual" ou a .. espiritual " . O termo não diz respeito ao ser da ~
a razão necessária e o ponto de ligação da restauração sobrena· coisas mas à origem e fun damento das verdades. Pertencem à
tu ral, assente na graça divina, do conhecimento perfeito que o " n aturcza~ . sem prejuiw de seu conteúdo, todas as verdades
homem possuia antes da queda. Apesar de ludo , a [dade Média suscetíveis de um fundam ento puramente imanente, as que não
niio pod ia reconhecer uma autonomia perfeita tanto da [ex na­ exigem nenhuma revelação transcendente, as que são certas e
furalis quanto da .. razão natural" . A razão permanece a criad a ev identes per se. Tais são 8S verdades que se busca não só no
da revelação (tanquam fam u/a ai ministra ). No âmb ito das fa· mundo físico mas também no mundo intelectual e moral, pois
culdades naturais do espírito e da alma, ela deve conduzir à re­ são essas as verdades que fazem do nosso mundo um s6 "'mun·

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do" , um cosmo que repou68 em si mesmo, que ~ui em si as conhece. Portanto, mesmo que 010 eXlstJsse nenhum Deus,
mesmc o seu próprio centro de gravidade . deveríamos amar a justiça e tudo fa zer para nos igualar a um ser
O século XV ltt também aderiu ao princípio dessa unidade. de quem temos uma idéia tão sublime e que, se existe, é necessa­
Montesquieu faz sua es ~ia na área da ciência experimental.' riamente justo. Libertos do jugo da religião, n1l0 estamos menos
Foi por esse caminho que se viu condu lido à sua problemática submetidos ao reino da justiça.' O direito possui. como a ma­
própria : a análise das instituições jurrdico-politicas. Na quali­ temática, sua estrutura objetiva, que o arbitrário nio poderia
dade de jurista, formula a mesma questão que Newton já Cor­ mudar. " Antes de existirem leis feitas, já havia relações de jus­
mulara core:> físico: longe de con!entar-se com as leis empi­ tiça possíveis, Afinnar que nada existe de justo nem de injusto
ricamente conhecida s do cosmo polftico, ele quer reduzir a rora do que ordenam ou defeodem as leis positivas é o mesmo
diversidade dessas leis a um pequeno número de principias de­ que dizer que antes de ser traçado um circulo seus raios não
terminados. O que pa.a Montesquieu constitui o "esprrito das eram todos iguais."
leis " é a ordem, a interdependência sistemática que ex.iste entre A filosofia do Iluminismo vinculou·se primeiro, sem reser·
as normas particulares. Ele pôde assim começar sua obra por vas, a esse "apriorismo" do direito, à idéia de que devem existir
uma definição da idéia de lei que . determina o seu objeto em normlS jurídicas absoluta e universalmente obrigat6rias e imu­
toda sua amplitude, em sua significação universal, ignorando táveis. A investigação empírica e a doutrina empirista não ruem
toda e qua1quer limitação a uma ordem de fatos particulares . nenhuma exceção nesse ponto. A esse respeito, as opiniões de
"As leis, no seu sentido mais amplo," - declara ele - "são Voltaire e Diderot não diferem das de Grolius e Montesquieu.
as relações necessárias que derivam da natureza das coisas." 4 Contudo, não deixam de, ao mesmo tempo, cair num diffcil di­
Ora bem, essa natureza das coisas existe tanto no possível quanto lema. Cama conciliar essa concepção com a tendência geral da
no real, tanto no objeto de pensamento quanto na rea1idad.e dos teoria do conhecimento por eles postulada? Como harmonizar a
Catos, tanto no físico quanto no moral. A heterogeneidade do necessidade e a imutabilidade da idéia de direito com a tese de
dado ' não deve afastar-nos da busca da unironnidade escondida; que toda idéia provém dos sentidos e, por conseguinte, só pode
jamais o contingente nos deve fazer perder de vis!a o necessá­ representar as experiências senslveis sinsulares em que ela se
rio (barrar· nos o acesso 80 conhecimento do necessáric). Partindo baseia? Voltaire percebeu claramente a contradição que se es·
dessas concepções, MontesCjuieu retoma expre..'lsamente, a partir conde sob essa dupla afirmação e parece que uma certa vacilação
das Cartas persas, O princípio sobre o qual Grctius fundara o manifestou-se, de tempos em tempos, nos seus julgamentos. Mas,
direito natural. A justiça 6 uma certa "rel açãc cle conveniencia" no fim das contas, é o racionalista ético, o defensor entusiasta
que pennanece constantemente idêntica a si mesma, seja qual do perseguido e da razão moral , quem leva a melhor sobre o
for o sujeito que a conceba, quer ~eja contemplada por Deus, empirisla e o céptico. Sobre esse ponto, chegará mesmo a tornaI
por um anjo ou por um homem. E, come a vontade de Dews posição contra Locke, seu mestre e suia . Ao mostrar que não
está constantemente ce acordo com o seu conhecimento, é imo existem idéias inat as~ objeta Voltaire, Locke não provou, en l
possível que ele infrinj a as normas eternas do justo, porquanto absoluto, que não pode existir um p d ncipio universal da moral

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o reconhecimento de tal princípio não quer dizer que ele exista pelo qual elas trabalham e alimentam-se juntas e deu no hOJne!ll
em ato e que, desde o começo, atue em todo ser pensa nl'! , mas certos sentimenlos de que não pode desfazer-se, e que são os
tão-somente que todo ser pensante deve descobri-lo em si mesmo. vínculos etern os e as primeiras leis da sociedade na qual Deus
Essa descoberta corrcsponde a um certo periodo, a uroa certa previu que os homens viveriam." o E é ainda à famosa analoglll
etapa do desenvolvimento individual, mas o conteúdo que então das lei,s da natureza que Voltaire recorre para a demonstração
se descobre e se revela à consciência não é o resultado desse dessa doutrina. Seria necessário que a natureza rompesse com
desenvolvimento : ele sempre existiu. "Concordo com Locke em sua unidade, sua crden ação, sua perfeita regularidade, preci sa­
que não existe realmente nechuma idéia inata; segue-se, como é mente quando se trata de sua criatura mais sublime, o homem?
evidente, que tampouco existe em nossa alma qualquer propo­ Deveria ela limitar-se a reger o mundo físico por leis universais
siçiio de moral inata; mas do fato de que não nascemos com e invioláveis, abadonando inteiramente o mundo moral ao acaso
barba , segue-se que n6s, habitantes deste continente, não oas­ e ao arbitrário? Nesse ponto, elevemos romper com Locke e ade­
cemos para ser barbados numa certa idade? Não nascemos com rir a Newton e ao seu célebre princípio: "Nat,ora est semper
força para caminhar; mas quem quer que tenha nascido com sibi consona" . Assim como a lei da gravitação que descobrimos
dois pés caminhará um dia. Assim é que ninguém traz consigo na Terra não está ligada ao nosso planeta, assim como essa lei
ao nascer a idéia de que se deve ser justo; mas Deus conformou nos revela uma força rundamental da matéria que atinge os
de tal modo os órgãos dos homens que todos, numa certa idade, pontos mais longínquos do cosmo e une entre elas todas as par­
concordam com essa verdade. li 8 O historiador da civilização tículas da matéria, do mesmo modo também a moralidade rege
que gosta de expor a diversidade e a contradição dos usos e cos­ todas as nações que conhecemos. Sem dúvida, descobrimos, ao
tumes dos homens , de mostrar sua inteira relatividade. sua de­ analisar essa lei e segundo as circunstâncias, milh ares de dire·
pendência em face de circunstâncias cambiantes e contingentes. renças, mas o rundamento é sempre o mesmo, a saber, a idéia
não estará se desmentindo nesse julgamento? Não, porque Vol­ de justo e de injusto. "Comete-se prodigiosamente a injustiça nos
taire acredita sempre descobrir por trás da instabilidade das furores de suas paixões , tal como se perde a sua razão na em­
opiniões. dos preconceitos, dos costumes, o caráter imutável da briaguez: mas quando a embriaguez se dissipou a raz.ão volta, e
moralidade. "Se bem que o que se chama virtude numa região é essa , em minha opinião, a única causa que faz subsistir a so­
seja precisamente o que se chama vício numa outra, e que a ciedade humana, causa subordinada à necessidade que temos uns
dos outros." 10 A fim de provar a existência de Deus e sua bon­
maior parte das regras do bem e do mal diferem como as línguas
dade, em vez de recorrer a pretensos milagres fisicos, à ruptura
e as indumentárias, entretanto parece-me ce rto existirem leis na~
da ordem natural, dever·se-ia procurar apoio no milagre moral:
turais com que os homens são obrigados a concordar em todo o
universo, mesmo a conlregosto . Na verdade, Deus não disse aos Les miracles sont bons; mai~ ,sou/ager son frere,

homens: 'Eis as leis que vos dou de minha boca, e pelas quais Mais tirer ,son ami du sein de la mi~re,

quero que vos governeis'; mas ele fez no homem o que fez em Mais lt ses ennemis pardonller leurs vertus,

muitos outros animias : deu às abelhas um poderoso instinto C'est IIn p(us grand miracle, et qui fie se fait plus.u

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Também em Diderol a (6 numa natureza moral imutável em capaz. H E deixando a natureza ob.rar por conta própria, sem
si n:::esma e ca ~tabilid8de do princípio de justiça que daí de. cadeias nem obstáculos convencionais, é nes~a realização de si
CCrre permanece inabalável : na sua visão do mundo tão perfeita. mesma que ela realizará simultaneamente o (mico e verdadeiro
mente m6vel e dinAmito. essa fé desempenha o papel do ponto bem, com a felicidade do homem e a pxsper;dade da sociedade.
fix.o de Arquimedes.u Quando Helvétius. em sua obra De I'esprit. Assim, Oiderot percorre todo caminho qL!e vai de uma fundação
resolve abalar essa fé. quando procura desvendar, desmascarar "apriorlstics" da ética a uma fundação puramente utilitária. C0­
todos os pretensos instintos morais como oetros tantos disfarces meça por conceber a idéia do direito e da justiça como uma
do egoísmo, logo Diderot tomou partido e~)t~tra essa iniciativa de idéia pura, intrinsecamente válida e imutável per se; mas, à me­
nivelamenlo. u Ele além·se à essência e!ema e imutável da mo­ dida que ele lhe aprofunda O ·conteúdo e prccura defini-lo com
ralidade, embora dê 8 essa exigência um fundamento que, com­ maior precisão, é nas obras imediatas e concretos da natureza que
parado com as teorias do djreito natural, revela uma direçiio de acredita descobrir a realidade. O puro moralisr.1.o de que fazia
pensamento muito diferente. A gradual mudançé de sentido da profissão de fé na crítica da religião e dos dogmas religiosos
idéia de "natureza" que acompanhamos passo a passo no pen­ converte-se progressivamenle num puro e simples pragmatismo.
samento do século XVIII faz-se sentir cada vez. mais : o centro "Mas, doutor, e o vfcio e a virtude?" - indaga mUc. de l'Espi­
de gravidade passa do apriorismo ao empirismo, do lado da ra. nasse, protestando contra a ética naturalista do médico em O
zão para o da experiência. Não é o comando abstrato da razão sonho de D'Alembert - "a virtude, essa palavra tão sã em todas
que dirige e une os homens; um vínculo mais verdadeiro e mais as línguas, essa idéia tão sagrada em todas as naçõesl" "e pre­
sólido reside na identidade de suas inclinações, de seus instintos, ciso transformá-la" - respondeu o médico - «na de benevo­
de suas necessidades sensfveig. l! aI que nos cumpre buscar a lência e seu oposto na de malevolência. Nasce-se feli zmente ou
verdadeira unidade orglnica do gênero humano, é aí que ela infelizmente ; é-se irresistivelmente arrastado pela torrentc geral
encontra seu verdadeiro ponto de apoio, e não em simples pres­ que leva um à gl6ria, o outro à ignomínia." 11 Assim , Didcrol
crições religiosas ou morais. Toda moral, toda religião que aban­ foi finalmente levado a fundamcntar a superioridade do direito
dona esse ponto de apoio, que rejeita e abandona 05 naturais OInatural " e da moralidade natural em relação à moral teológica
impulsos sensfveis da condu la , não passa de um mero castelo de essencialmente no seu modo de eficácia. O que ele objeta a essa
cartas. Que nenhum "dever" ten1:a a temeridade de negar ou moral religiosa, assim como a toda religião revelada, é tê-lo sido
de transformar radicalmente o ser empírico do homem! Esse ser sempre desastrosa para a vida da sociedade. Ela rompe todos
nunca deixará de renascer e será sempre mais forte do que todo os vínculos naturais que unem o homem ao homem, alimenta a
e qualquer -dever" . Uma moral que se declare inimiga da natu­ discórdia e o ódio entre os amigos mais fntimos e enlre aqueles
reza está desde Jogo condenada à impotência. Para que conser­ que estão unidos pelos laços do sangue; rebaixa os deveres na­
vasse. entretanto, alguma influência, teria que extirpar do ho­ turais ao subordiná-los a uma outra ordem de deveres pura·
Illem, ao mesmo tempo que sua sensibilidade, .Ioda nobreza e mente quimérieos.1& Diderol permanece fie l 8 essa linha de pen­
grandeza moral, todo amor e toda abnegaçêo natural de que é samento em todos os seus artigos da Enciclopéia. assim fome­

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cendo ao conjunto da obra a linha gerai da sua problemática dos séculos XVII e VIII. Ele vê o original dessa Dec\a roção
étíca P D'Alembctt não vê de outro modo os limites metodoló­ nos "Bifls of Right " america nos. em especial oa Declaração de
gicos da ética: urna ética puramente filosófica só pode ter como Direitos promulgada pelo Estado de Virgínia em 12 de junho
rinaJidade indü:ar ao indivfduo a sua posição no seic da socie­ de 1776. Entretan to, mesmo admitindo a perda positiva da tese
dade humana e de lhe ensinar a melhor maneira de consagrar de Jcl1inek - a dependência da Declaração francesa em relação
suas faculdades ao bem-estar e à felicidade de todos. "O que aOS seus modelos americnnos é inegável e demonstrável até nos
pertence única e essencialmente à razão e o que, por conseguinte, detalhes - , não se segue daí, em absol uto. que esse autor tenha
é unifome em todos os povos são os deveres que todos temos razão na parte negativa que se lhe prende. Não são as próprias
para com os nossos semelhantes. O conhecimento desses deveres declarações americanas dominadas pela innuência do novo es­
é o que se chama Moral [ . .. ] Poucas ciências têm um objeto pírito que anima os teóricos do direito natural? Longe de cons­
mais vas to e prindpios mais suscetfveis de provas convincentes. tiruirem a raiz donde brotou a reivindicação dos direitos do ho­
Todos esses princfpios convergem para um ponto comum, sobre o mem e do cidadão, digamos antes que elas são seus ramos late·
qual é difícil alimen tarem-se ilusões; eles tendem a nos canse· rais, um desenvolvimento à pa rte, determi nado por motivos par­
guir o meio mais seguro de ser feliz. mostrando-nos a ligação ticulares e favorecido por certas circunstâncias históricas, das
íntima do nosso verdadeiro inleresse com a plena realização dos idéias do direito natural. Assim é que elas não se deduzem, de
e.
nossos devereb .. 1 a motivos puramente humanos que as s0­ maneira nenhuma, do principio exclusivo de liberdade de crença
ciedades devem seu nascimento; a religião não tem nenhum pa· e dos coonitos religiosos que se desenrolaram em torno desse
. pcl na sua formação inicial [ . .. ] O fil ósofo não se encarrega de princípio na Inglaterra do século XVIII. Trabalhos recentes e
colocar o homem na sociedade e conduzi·lo nela: cabe ao mis­ perspicazes acerca da Declaração dos Direitos do Estado de
sionário atraf·lo em seguida pata os pés dos altares." 1. Virgínia mostraram claramente que, na época em que foi pro­
Sobre as fundações assim preparadas pelos teóricos do di· nunciada essa declaração, a questão da liberdade rcligiosa não
reito natural foi edificada a doutrina dos direitos do homem e desempenhava nenhum papel ou, pelo menos , tinha um papel
do cidadão, tal como a desenvolveu o século XVIIl . Ela cons­ muito secu ndário. 20 Existe, evidentemente , todo um movimen to
titui o ponto de convergência espiritual, a unidade ideal dos múl· de idéias do qual a Decl aração da Constituinte faz parte, no
tiplos esforço!! tendentes a uma renovação moral e a uma reforma seio do q Utl! el a se desenvolveu organicamente e donde caiu como
!>O!ftica e social. f: verdade que tmbalhos recentes de história um fruto maduro; ela af está bem visível sob os nossos olhos,
do direito público tentaram mostrar que a base histórica da dou· muito antes que lenha podido ser uma q uestão de innuência das
tria dos "direi tos do homem" era nitidame!\te mais estreita. .. declaration.s 0/ righ''': esse movimento remonta às origens do
Georg Jellinek, em sul!. muito conhecida obra, Die ErkJiirung der direito natural moderno, até Grotius, e foi depois instituído e
Men.schen - und Bürgcrrechte," sustenta a tese .de que não houve elaborado teori camente, sobretudo 00 âmbito da filosofia do di­
nenhuma relação direta enlre a Declaração da Assembléia Cons· reito do idealismo alemão, em Leibniz e WolfU I Na Inglaterra ,
titui nte francesa de 26 de agosto de 1789 e as idéias filosóficas é principalmente a Locke que cabe o estabelecimento, no scu

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Treatise on government, do princfpio !"f'ltndo o qual o contrato pura ilusão. O simples fenômeno do querer basta, portanto,
social, que é ccnc1ufdo pelos indivíduos eDITe eles, não consti­ para provar a li.berdade: " Querer e agir é precisamente a mes­
tui, de maneira nenhuma , o fundamento único do conjunto de ma coisa que ser livre." Como essa liberdade humana é conci­
relações jurídicas existente entre os homens. Todos os vínculos Jiável com a Providência divina? Essa questlio continua sendo .
contratuais são, pelo contrário, precedidos de vínculos originá­ sem dúvida, um dilema insolúvel : mas essa dificuldade nào nos
rios que não podem ser criados nem ser suspensos por um con­ deve impressionar muito, pois o limite com que nos deparamos
trato. O homem possui direitos nalurais que existiam antes da aqui iremos reencontrá-lo em todos 05 problemas metafísicos e
constituição de vinculas sociais ou civis. e, em face desses di­ é idêntico para cada um desses problemas." Volta ire, mais tarde,
reitos, 2 função própria e o objetivo essencial do Estado con­ rejeitou esse julgamento e declarou-se favor~vel a um fran co
sistem em dar-lhes um estatuto na ordem política, conceder-lhes determinismo: o sentimento da libe rdade, demonstra ele então,
sua proleção e sua caução. No número desses direi~os , Locke não contradiz tal determinismo, pois se r livre, no sentido da auto­
inclui muito particularmente a liberdade individual e o di.reito consciência imediata, não significa absolutamente "poder que­
de pTcp:-iedade. A fil osofia francesa do século XVIII não des­ leI " o que se quer mas" poder fazer" o que se quer. Uma von­

cobriu. portanto, a doutrina dos ditei tos inalienáveis. Mas foi tade sem motivos suficientes scria si mplesmente absurda, pois
ela, sem dúvida, a primeira 8 fazer dessa doutrina um verdadeiro seria a negação da ordem da natureza . "Seria deveras singular
evangelho moral, a aderir-lhe com paixão e a proclamá-la com que toda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas
entusiasmo. E ao proclamá-Ia dessa maneira, inseriu-a verdadei­ e que houvesse um animalzinho de cinco pés de altura que , des­
ramente Da vida polftica real, conCerindo-lhe essa força de cho­ prezando essas leis. pudesse agir como melhor lhe agradasse, ao
que, essa potência explosiva que se manifestou nos dias da Re­ sabor exclusivo do seu capricho. Ele agiria ao acaso. e sabe-se
volução Francesa. Voltaire, claro. não é um revolucionário, nem que o acaso não é nada. Inventamos essa palavra para exprimir
por temperamento pessoal nem por suas preocupações. Contudo, o efeito conhecido de toda causa desconhecida." 2;"1 Mas ti incer­
por trás do tema dos direitos inaliemiveis, ele pressentiu a apro­ teza e a vacilação interior que Voltaire manifesta a respeito do
ximação ineCreável de uma nova época de que se fez o arautO. problema metafísico da liberdade nada mais significa m senão o
O que ele exprimiu como filósofo teórico, wmo metafísico, pouco interesse e a escassa atenção que ele ded ica pessoalmente
sobre o problema da liberdade. é deveras insuficientes e, ali's. a esse aspecto da questão. O debate que conta para ele não é
oastante vago e ambfguo. No seu Tratado de meta/Esica (1734), teórico. não se Ira.la da elaboração de um conceito abstrato mas
ele sustentava ainda, esforçava-se por afirmar, apesar de todas de uma questão eminentemente prática , diríamos até. a questão
as diliculdades, a doutrina de uma liberdade da vontade humana. prática por ex.celência . O ideal voltairiano da liberdade nasceu
Todas as objeções que se fazem contra ela, mostra Vohaire, da I bservação da vida política concre ta, da comparação e da
todas puramente coneeptuais e dialéticas, esbarram no simples apreciação das diversas forma s de governo. Oru, é na Consti­
testemunho da consciência. O sentimento da liberdade, vivo e tuição inglesa que a Europa de então encontrava a realização
imediatamente presente em cada um de nós, não pode ser uma mais prótima desse ideal. porque essa Constituição comportava

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uma pro teção eficaz da propriedade e da segurança pessoal de chl ." te Mas eocuncr8-se ainda uma outra coisa em Condorcct :
cada cidadão. Quem quer que tenha se apercebido uma vez da 1111 fHosofia da história e da civiUução que eJe nos deu cOm o
importância desses bens, quem quer que tenha reconhecido sua .eu Tableau des progrês de l'espril humailr , percebe-se que ele
necessidade razoável, encontrará em si mesmo a força necessária compree ndeu perfeitarr:ente que complexo histórico de motivos
para defendê-los e conservá-los. "No essencial, em sua acepção particulares gerou a idéia de direi lOS inalienáveis. Declara ele,
mais apropriada, a idéia de li berdade coincide com a dos direi­ com efeito, que toda a ciência d:J sociedade humana só pode ter
tos do homem. O que quer dizer, finalmente. ser livre senão c0­ um objetivo : garantir aos homens. na mais ampla medida, o livre
nhecer os direitos do homem? Pois conhecê-tos é deCendê-Jos." 24. uso de seus direitos fun damentais numa perfeila igualdade. Nos
Toda a obra de Volta:re como escritor político t sustentada tempos modernos, é nos Estados livres da América do Norte que
c inspirada pc: e!5e pensamento. Elc está convencido de que esse objetivo esteve mais perto de sua realização, é a esses Es­
basta mostrar aos homen s o verJadei ro rosto da liberdade para tados, por conseqüência , que cabe a glória de ler tornado rea­
despertar e mobilizar neles lodas AS forças necessá rias à sua lidades concretas as grandes idéias do século. Condorc.et atribui,
realização. t: por isso que, para Voltaire, tal como para Kant, POrem. a origem dessas idéias à filosofia dos séculos XVII e
a " li berdade de pena" é verdadeiramente o "paládio dos direitos XVIII e credita especialmente a Rousseau O mérito de ter eleva­
do povo". "Servir-se de sua pena, como de sua língua, tem seus do a teoria dos direitos do homem à categoria das verdades que
próprios riscos. faz parte do di reito natural Conheço muitos li­ daí em diante não poderão ser mai s esquecidas nem por mui to
vros enfadonhos; mas não sei de nenhum que tenha causado um tempo combalidas. 27 Em conclusão. o retrospecto que aprescn­
prejuízo real. " U Conquistar e gara ntir a liberdade de pensa­ tamos sobre o movimento das idéias do 5tculo XVII I mostra-nos
mento dedde tudo: tal é a máxima implantada por Voltaire na uma vez mais como os grandes espfritos da Revolução Francesa
filosofia do seu século, Qssim desencadeando a torrente cauda­ estavam conscientes da estreita conexão que existe entre a teo­
U

losa de idéias que irrompeu na literatura da França revolucio­ ria e a "práxis"_ Neles, pensamento c ação nunca se separaram:
H

ná ria. Proclama-se agora em toda parte que a primeira etapa de estão constantemente certos de que podem traduzir de imediato
toda a Iibe.rtação, que a verdadeira constituição intelectual da o primeiro na segunda e conferir a esta a garantia daquele .
nova ordem política só pode consistir numa declaração dos di­
rei:os inalienáveis, do direito à segurança e integridade ffsica da
A Idéia de contrato e o método das ciências sociais
pessoa, li livre frui ção de seus bens. li igualdade perante a lei e à
participação de todos os cidadãos no Poder Legislativo. " Não é
Se se quiser compreender o novo caminho adotado pelas
no conhecimento positivo das leis estabelecidas pelos homens" ciências sociais nos sécu los XVII e XV III. se se quiser fazer uma
- declara Condorcet - ... que se deve procurar conhecer o que idéia muito clara do novo método que aí se desenvolveu, é indis­
acontece com sua adoção, 6 somente na razão, e o estudo das pensável relacionar, colocar em estreita conexão esse desenvol­
leis institufdas em diferentes povos c cm diferentes séculos só é vimento com o que a 16gica registrou durante o mesmo período.
útil para fornecer ta razão o apoio da observação e da expcriên~ Por parHdoxa l que possa parece. semelhante aproximação, ela

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· aracteriza, inegavelmente, uma cias tendências fundamentai s de; · acredita não ter realizado assim apenas :lma reformn lógica; v!
:la época. Com efeito, desde a Renascença que se assiste à prt>· nesse empreendimento nada menos do Gue uma transform nçCio
gressiva ascensão de uma Dova fonnà de l6gica que, em lugar completa do próprio ideal do conhecimento filcsófi co. O que cle
de se contentar em classificar e ordenar o saber adquirido , quer =ensura l escolástica foi ter acreditado que podia compreende!'
ser um instrumento do saber. Racionalistas e empiristas concor­ o ser tomand<H> por um simples ser, alge passivo, com proprie­
dam com a necessidade dessa nova lógica e rivalizam para im­ dades e características estáveis. Por isso lhe fal tava tanto a ver­
plementá-Ia . Bacon não é o único a querer, por sua filosofia, dadeira estrutura da natureza corporal quanto a do pensamento:
fornecer um organon à ciência; Leibniz também insiste na ne­ ambas 56 são concebfveis, de fato. no Olovimento. N6s apenas
cessidade, para a 16gica, de sair dos caminhos tradicionais, de compreendemos aquilo que faze mos nascer sob os nossos olhos.
superar 85 fo rmas escolásticas, a fi m de se atingir uma real ~-nos vedado conceber o que escapa ao devir; o eterno. o ser
fecundidade, a fim de converter-se numa Úlgica inventionis. O imóvel de Deus ou das inteligências celestes transcende todo o
impulso assim dado influenciou de um modo muito nítido e conhecimento humano. Aquilo que quer verdadeiramente c0­
direto a teoria da definição. O método escolástico de definição nhecer. o homem deve constituí-lo, deve produzi-lo a partir dos
de um conceito por genus proximum e dilferentia specifica é seus elementos. € para esse ato de produção que deve tender
cada vez mais considerado insuficiente . Não basta que a defi­ toda a ciência - ciência das coisas tanto materiais quanto es­
nição analise e descreva o conteúdo de um determinado con­ pirituais. O nde nos faltar a possibilid ade de produzir o objeto
;eito; ela deve ser um meio para a construção do conteúdo dos construindo-o, af se det6m igualmente o conhecimento raciona l,
~once itos e para a sua consolidação através dessa atividade edifi­ o conhecimento estri tamente fiJosófico : uhi generatio nuIla . ..
.;adora. t assim que nasce a teori a da definição gerretica ou cau­ ibi nulla Philosophia intelligitur. u
sal, em cuja elaboração participaram todos os grandes lógicos Com essas eltplicações fundam entais da tarefa e do conceito
seiscenl istas." A verdadeira e fecunda explicação de conceitos geral da filosofia, j~ nos encontramos, entretanto. em plena filo­
não procede de um modo abstrato; ela não se contenta em abs­ ajja social de Hohbes. Na verdade, nio existe nele , de uma l
trair um elemento de um complexo dado de propriedades ou de utra, nenhuma separação, apenas uma transição. Se a teoria do
caracteres e de fixá-lo isolando-o. Pelo contrário, quer seguir a estado faz parte da filosofia , é porque ela se adapta plenamente
lei interna segundo a qual o todo é gerado, ou segundo a qual se ao seu método, porque não pode nem quer outra coisa senão a
pode pensar que O seja. E por essa lei do devir quer tomar aplicação desse método a um objeto particular. Também o Es­
visível O seu ser e o seu modo de ser verdadeiros; não indica tado é um "corpo" - e não há outra solução, por conseqüêncilt,
apenas o que esse todo é mas também por que é. A verdadeira para entender a sua natureza do que analisá-lo até seus ú!timn
definição genérica permite-nos penetrar com o oLhar a estrutura :Iementos e rcconstituf-J o em .seguida. A fim de chegar-se a umu
do complexo; e não s6 essa estrutura como tal: ela penetra ao ;iência efetiva do Estado, basta transferir para a política o m6­
mesmo tempo até a sua cousa. Hobbes foi o primeiro lógico todo de composição e de resolução que Gatileu empregou em
modemo a elucidar a importância dessa definição causal" . E
U flsica ." Em política, assim como em física, é indispensável pari'

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a compreensão do todo retroceder até os seus elementos. às for· (will nur Ilich selbst). O problema da teoria poHtica consistt
ças que DO começo reúnem as diversas pa rtes componen tes e em explicar como, desse isolamento absoluto, pode nascer uma
que continuam mantendo-as associadas. E o fio dessa análise não üssociação e não uma associação destinada a estabelecer entre os
poderá quebrar-se em nenhum ponto; ela só cessará quando se indivíduos conexões fl exíveis: uma associação que deve acabar
tiver chegado aos elementos reais. às unidades absolu tas e inde· por uni-los num todo único. Tal é o problema que Hobbes quer
componívcis . Para compreender verdadeiramente as estruturas resolver mediante a doutrina do estado de natu reza e a do con­
políticas e sociais é preciso que o homem as divida em seus ele­ trato social. Dominação e submissão: nada mais do que essas
mentos últimos. Esse ideal não é realizável por um método pu­ duas (orças para unir num só corpo poUrico o que está separado
ramente empírico; Hobbes não alimenta quaisquer ilusões nesse por natureza e para manter esse corpo em existência. O contrato
ponto. mas essa objeção não o imped irá de aplicar o seu princí· social apenas será, para Hobbes, um contrato de submissão. En­
pio raciona l geral até as suas últimas conseqüências. Onde quer rraquecer de algum modo essa sujeição, impor·lhe qualq uer res­
que encontremos o homem. na natureza e na história. vemo-Io trição, seja ela qual for. significaria privar de seu fundamento a
comprometido em alguma forma de sociedade e não como indi­ ex istência do Estado. devolver ao caos o cosmo polft ico. Eis
víduo isolado. Hobbes não pode esquivar-se a esse limite empí­ como o radicaJismo lógico engendra em Hobbes o radicalismo
rico e é muito conscientemente que o transpõe. Os vínculos político - e reciprocamente. Querer Iimitnr-- de uma (orma ou
efetivos das rormas primitivas de sociedade. por exemplo. os de outra o alcance dC5sas relações de dominação é atacar as raf­
vínculos existentes entre os membros de uma famflia. cumpre zes racionais do sistema. é negá-lo logicamente. O ato pelo qual
desfazê-los. at~ mesmu cortá-los, para compreender o ser social. OS indivíduos desvestem-se de sua vontade própria a fim de trans­
deduzi-lo de. seus princfpios. Não esqueçamos que a filosofia Ceri·la para o soberano, na condição de que os outros façam o
não ~ o saber do quê. mas o saber do porquê, o saber do 6wn . mesmo, não se consuma no interior de uma sociedade já exis­
não do simples ôn. O ra, todo pensamento é, segundo Hobbes. tente: é. pelo contrário, o começo da sociedade, é o ato que a
cálculo. e todo cálculo é adição e subtração. Devemos elevar a constitu i inicialmente. A relação que Hobbes concebe entre as
faculdade de "subtrair", de abstrair conceptualmenle. ao seu duas Cormas de contrato, o "pactum socjetatis" e o .. pactum sub­
mais alto grau , devemos levá·la até o limite extremo de suas jec-ticmis", não deixa subsistir o menor dualismo: só existo uma
possibilidades para ter êxito. em seguida. na adição. ou seja, na
forma de contrato, que é O contrato de submissão. fonte de todas
integração intelectual de um todo. Com efeito. é a combinação
as fo rmas de vida social.31 Os individuas, antes de terem reali­
dos dois métodos que deve engendrar o conhecimento verda­
zado o contrato com o soberano, não são mais do que uma massa
deiro da estrutura de um todo complexo. 1! por essa razão que
desordenada, um agregado que não apresenta o menor indfcio de
Hobbes. inicialmente. procede pela segregação rigorosa das uni­
dades: toma as vontades individuais e serve·se delas como de " totalidade". Só a dinâmica da força soberana procede à fusão
uma moeda de conl a. como unidades pu ramente abstratas. sem do todo poUtico, só ela o mantém coeso por sua autoridade sem
qualquer "qualid ade" Pllrticulur. Cada uma dessas vontades quer limite. O con trato social entendido como contrato de sujeição é.
a mesma coisa - e cada uma delas apenas se quer a si mesma portanto. o primeiro passo que conduz do " status naturalis" ao

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.. status civilis" c:: continua sendo a conditio sine quo non da lese de que a utilidade seja, de algum modo, a mãe do justo e
manutenção desse estado civil. do eqüitativo (uliUlas ;usti prOpe male, et aequi, Horácio, Sá·
Entretanto, o direito natural não pode admitir, em virtude tiras, I, 3): o homem não deixará de buscar, de exigir o direitc
do seu princípio fundamental, que a autoridade do Estado seja pelo direito, mesmo que nenhuma utilidade, nenhuma vantagell
concebida como um poder sem limites, como uma potestas le­ ou proveito esteja-lhe associado." A faculdade de elevar-se até r
gibus soluta. Para salvar esse princípio, a idéia de contrato social idéia do direito e da obrigação jurídica, e de adquirir consciên·
tem que ser ' concebida num outro sentido muito diverso e de­ cia no que já estava implícito no simples instinto de sociabili ·
fendida de uma outra maneira. A sociedade, no espírito de Gro­ dade, na inclinação natural para a vida em comum, é o privi..
tius, não é uma associação de indivíduos com vislas à realização légio do homem e o fundamento de toda a sociedade especifi·
de um certo objetivo; ela baseia-se num instinto ilTtprimlvel da camente humana . Essa dedução não pode deixar de evocar a
natureza, um "appetitus sociefafis", indispensável ao homem união íntima, o casamento, tão ca racterístico da obra de Grotius,
para tornar-se homem. O indivíduo abstrato a que a teoria de do espírito jurídico e do pensamento humanista: o direito não
Hobbes é fo~ada a retomar fica, portanto, segundo Grotius, é uma criação contingente do homem, mas uma determinaçãr
{ora da espécie humana, à margem da forma pura da humani­ essencial e necessária de sua natureza. Grotius vê no direito a
dade. Como poderia ele concluir então um contraro? No ato de fonte originária donde jorra, e onde se reflete em sua máxima
contratar. na promessa como tal. reside justamente um dos Ira­ pureza, a humanítas ipsa. Donde a idéia de contrato, aliás, tira­
ços fundamentais da natureza humana como natu.re:za humana­ ria a sua significação própria e a sua perfeita justificação senão
mente social. Por conseguinte, por sua própria natureza, a s0­ dessa sociabilidade natural? O princípio de respeito incondi­
ciedade não poderia basear-se no contrato, ser gerada pelo con~ cional do contrato que constitui uma das regras suprcmas do
trato; pelo contrário, o contrato é que só é possível e inteligível direito natural requer, evidentemente, quc o Estado não scjo
oa hip6tese de uma " sociabilidade" original. Essa sociabilidade concebido como a soma dos instrumcntos do poder e dos meios
fundamentada na razão não pode ser substituída por um ato de coerção física. O Estado é uma entidade ideal, e SUa natureza
arbitrário, por uma simples convenção. Grotius descarta, por­ deve ser interpretada a partir de suas tarefas, a partir de seu
tanto, tanto para o Estado quanto para o direito, o princípio de sentido e de seu tetos ideais. E esse sentido reside, efetivamente,
uma fundação e de uma dedução puramente utilit'ria . Ele oão na noção de contraiO, mas entendida como a de um livre com­
nega, evidentemente, que o Estado e o direito não tenham por promisso, não como a de uma obrigação imposta por necessidade
missão fundamental proteger a sociedade, mas essa proteção, e por coerção. Nada pode questionar a validade do "contrato
acrescenta Grotius, de acordo com uma fórmula muito expres­ originar, nem mesmo o poder do Estado, porquanto esse poder
siva e característica, deve harmonizar-se com a natureza do en­ repousa justamente nesse antecedente e a revogação do contrate
tendimento humano. Haec sodefa!is cus/odia, humano inlelledui abalaria seu próprio fun damento. O Estado só pode criar e fun·
cOllveniens, tons est ejus iu,is, quod proprie fali nomie appella­ dar o direito na condição de conter, de realizar em si mesmc
tur.u Nessa perspectiva, não se tt2ta mais, portanto, de aceitar a um direito original . Portanto, o caráter obrigatório da te" cillilü

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deve estar cimentado no poder fundamental da lex IUIluraJis. O ativo. O instinto de rapina e de dominação violenta é estranho
direito como tal é anterior e super ior ao Estado; s6 pode forne­ ao homem da natureza como tal; esse instinto não pode nascer
cer um ponto de fixação e 10m fundamento inabalável a partir e ganhar raizes no homem antes que esse tenha ingressll do na
dessa autonomia e dessa independência. 80Ciedade e aprendido a conhecer OS desejos HartificiaisH que a
A doutrina do contrato que encontramos em Rousseau é sociedade a1iments. O elemento mais saliente da constituição
de um outro tipo. E certo que se tem cometido com frcq üênein psíquica do homem da natureza não é a tendl!ncia para oprimir
o erro de tomar a doutrina do contrato social. de Rousseau pOl outrem peJa violência mas a tendência para ignorá·lo, para se­
uma das formas da doutrina do direito natura] e de a interpretaI parar-se deie. O homem da natuma não é incapaz, sem dúvida,
nessa perspe<;tiva; mas falta a essa interpretação c núcleo racio­ de compaixão, segundo Rousseau; mas, longe de enraizar-se num
nal do j>ensamento de Rousseau e trai sua originalidade hist6ri instinto social ~inato". essa compaixão ê apenas um dom da
ca . Sem dúvida , RousseAU integrou à sua teoria certos elementos imaginação, O homem recebe da natu.reza a faculdade de pene­
lornados de Hobbes e Grotíus, mas critic3ndo com toda liber­ trar na ex istência e nos sentimentos de outrem e, em certa me­
dade esses dois pensadores. No tocante a Gro(i;.:s, ele formulou dida. essa fa culdade de "empatia" permi te-lhe vivenciar como
graves objeções contra as suas teses, desde c Discurso sobre a seu pr6prio um sofrimento alheio.3l Mas vai uma grande dis­
origem da desigwddade, e é totalmente ocioso, também, procurar tância entre essa atitude quese baseia numa simples impressão
interpretar O Contrato social como um dos prolongamentos da da sensibilidade e num interesse ativo, numa ação realizada com
doutrina do direito natural. Rou sseau separa-se nitidamente do outrem e para oulrem . Isso é COmeter um estranho VoTt(;lOI'
direito natural, embora con&er"\'c com ele, é verdade, múltiplos npóu(!01' ,uma bizarra inversão do anterior e do posterior,.
contatos, em sua concepção da teleotogia social e, sobretudo, na do começa e do fim, fazer de semelhante instinto a origem da
sua psicologia social. Rejeita expressamente a idéia de um appe­ sociedade. Essa form a de simpatia que penníte superar O puro
!itus societatis, de um instinto primitivo de sociabilidade que egoísmo pode perfeitamente constituir a meta da sociedade, mas
impeliria o homem para o homem. Ele não hesita. nesse ponto, não O seu ponto de partida . No estado de natureza, seri a impos­
~rn voltar a líobbes, em ligar-se diretamente a ele.u Sem chegar sível existir harmonia entre interesse pessoal e interesse comum.
a descrever 0- 1< estado de natureza " corno uma guerra de todos O interesse do individuo, longe de coincidir com o da sociedade,
contra lodos, vê-o. porém. como um estado em que cada um e"cl w-o, pelo contrário, e a recíproca também ê verdadeira.
está perfeitamente isolado e perfeitamente indiferente aos outros. Assim nos primórdios da sociedade. os quais não são consciente­
Os homens nesse estado não estão ligados uns aos outros nem mente elaborados pela vontade mais são o produto fatal do jogo
por um vínculo moral, nem por um laço sentimental, nem pela de forças em íace das quais o homem, ao invés de as controlar,
idéia de dever, nem por um movimento de simpatia . Cada um sucumbe-lhes, as lei s sociais são apenas o jugo q ue cada um
ex~ste para si mesmo e s6 procura o que é necessário à conser. quer impor a outrem sem sonhar sequer em submeter-se-lhe ele
vação da sua própria vida. Segundo Rousseau . o defeito da pt6prio. Rousseau sente o grande peso deSSAS formas de socie­
psicologia de Hobbes é somente o de ter colocado no lugar do dade ampliadas com o tempo, tradicionais e convencionais. e

~..
~gof5m o ,rYlssivo que reina no estado de natureza um egoísmo revol ta·se amargamente contra elas , "Você precisa de mim, por·

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que sou rico e você é pobre. Façamos. pois, um acordo entre ou exige para si, pois só tem existlncia e querer no seio du
nós: permitirei que vod teohtl a honra de servir-me, na condi· · vontade geral". Essa espécie de · contrato" lla única, scgundt
ção de que me dê o pouco que lhe resta, em retribuição do Rousseau, a possuir uma (orça objetivamente obrigatória qu~
trabalho que terei em dar-lhe ordens ." 38 Tal é, segundo Rous­ não seja a coerção ffsica. Daí resulta a estrita correlação estn.
seau , a forma de contrato que dominou a sociedade até os nossos belecida por Rousseau entre a idl!ia autlntica da liberdade e 1\
dias, forma que implicava, por certo, um vínculo jurídico mas de lei. Liberdade significa adesão à lei estrita e inviolável quu
que nem por isso deixava de estar nos antípodas de todos os cada um se impõe a si rncsJr.O. O verdadeiro caráter da liber­
vínculos morais autênticos . dade nlo II a fuga perame a lei ali o simples desprendimento em
E íoqui que começa o protesto de Rousseau e que intervl!rr. relação aos ditames da lei mas a livre aquiescência, o livre con­
a sua vontade de reforma . Contra Hobbes, ele vai insistir vigoro­ sentimento em face da lei. Emancipar o indivíduo não signific..'l,
samente sobre este ponto: o contraro social é nulo. absurdo e portanto, para Rousseau, arrancá-lo a toda e qualquer forma dt
contraditório se , em vez de unir inUmamente as vontades indi­ sociedade, mas encontrar uma forma tal de sociedade que pre·
viduais , coage-as desde o exterior a unir·se por meios físicos de serve a pessoa de todo indivíduo com a força solidária da asse
coerção. Um vínculo dessa natureza carece, de fato, de um d ação política, de modo que O individuo, . tendo concluldo ur
ponto de apoio e é moralmente sem valor. Para que uma auto­ pacto com todos os outros, somente obedece, não obstante, I
ridade possua esse valor é necessário que os indivíduos subme· si mesmo nesse acordo recíproco. "Enfim, cada um dando-se a
ram-se a ela e não que ela submeta os indivíduos. Tal é a form! todos do se dá a ninguém e, não existindo um associado sobr\'
de 8:Jloridade que o Contralo social de Rou$seau quer assegurar o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si
são essas as regras fundamentais que ele qu er elaborar. Enquan­ meamo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde e maior
to os súditos que se unem pelo contrato conlinuam , a despeito força para conservar o que se tem. Enquanto OS súditos só esti­
dessa união, existindo como vontades individ:..:ais - enquanto verem submetidos a tais convenções, néo obedecem a ningullm
I! sempre um , indjvidualmente. quem pactua com o outro, ou mas somente à própria vontade." ~ verdade que OI cidadãos re­
nunciaram de uma vez por todas à incependência natural (indl­
os indivíduos instalam um soberano e submetem-se a ele como
pendance natureIle) que vigora no estado de natureza, mas tro­
a uma pessoa privada - , nenhuma unidade autêntica e verda­
caram·na por um oU,t ro bem mais precioso.n Passaram. agora a
deira foi ainda realizada . Essa unidade jamais será .!!lcançada
ser indivíduos na acepção mais elevada do termo, verdadeiros
pela coerção, II na liberdade que ela deve alicerçar-se. Na ver·
súditos voluntários, enquanto nlo passava antes de um feixe de
dade, a liberdade não exclui de maneira nenhuma a sabmissão; instintos e de apetites sensuais. Somente a adesão à vontade geral
ela não significa arbitrariedade mas, pelo contrário, estrita ne· (varonil générale) constitui a personalidade autônoma. E Rou5­
cessidade da ação. Mas essa submissão já não é a submissão de seQU não hesita em colocar esse objetivo da ordem social esta·
uma vontade individual ou de uma pessoa individual a um belecida por contrato muito acima do estado de natureza, que
outro sujeito voluntário igualmente individua1. Ela quer dizer: ele parecia, inicialmente, glorificar mais do que tudo." Embora
a vontade individual está suspensa CCJTIO 11!:1. nada mais deseja nesse estado, assim afirma ele, o homem se prive de muitas

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vanlagens que frui na natUTeUl, ganha outras de igual monta: divíduo não s6 se dá ao todo mas abdica de si mesmo em bene·
suas façuldadc s exercem-se e desenvolvem-se suas idéias am­ fício do todo : "Ademais, fazendó-se a alienação sem reservas. 1\
?liam-se, seus sentimentos enobrecem·se. Toda sua alma se eleva união é tão perfeita quanto possa ser e a nenhum associado res·
a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degra· tará algo mais a reclamar." 4Z Rousseau é então levado a con­
dassem com freqüência a uma condição inferior àquela donde denar toda resistência individual à lei, mas é porque não existe
saiu, de veria bendizer incansavelmente o instante feliz que dela para ele nenhuma dúvida de que, quando a lei vigora em toda
o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado sua pureza e sua verdadeira universalidade, nenhuma exigência
um ser inteligente e um homem.a9 moral do indivíduo pode efetivamente ficar por satisfazer. Essas
Esse entusiasmo pela força e dignidade da lei caracteriza a exigências são "absorvidas" (auJgehoben) pela lei - no duplo
ética e a política de Rousseau , que ni sso se revela um prede· sentido desse tenno, ou seja, por uma parte. não podem apre­
cessar de Kant e de Fichte. 40 Pretende tão pouco dar lugar no sentar·se como exigências independentes e, em contrapartida, o
seu jdeal social e político ao arbitrário do indivíduo que vê, pelo seu sentido autêntico é integrado na própria lei e por isso con­
contrário, na decisão individual uma espécie de pecado contra o servado e preservado. Quando domina a força bruta, quando
espírito verdadeiro de toda a sociedade humana. Nenhuma hesita­ um individuo ou um grupo de indivíduos reina e impõe suas
ção, nenhuma flutuação sobre esse ponto: desde o primeiro esbo­ decisões e suas ordens a todos os outros, então é evidente que
ço do Contrato social a lei é apont ada como a mais sublime de se requer, que se tcrna razoável e necessário fü:ar limites ao
todas as insti tuições humanas, o dom do céu graças ao qual o poder usurpado. Com efeito, esse poder está exposto ao perigo
homem aprende , desde a sua existênci a terrena, a pressentir os de cometer abusos qce cumpre então prever, tanto quanto pos­
mandamentos invioláveis da divindade. tl E, portanto, um contra· sível. Mas, no fundo, todas as medidas preventivas racionais
senso absoluto, no plano histórico, interpretar, como o fez na continuarão sendo, na realidade, ineficazes; quando está ausente
Alemanlw o período do Sfurm und Drang, o evangelho da nature­ a vontade de legalidade como tal. todas as "leis fundamentais",
za como se signifi casse que era necessário eliminar o reino da lei por mais cuidadosamente meditadas que sejam, através das quais
para retornar à natureza . Se Rousseau ti vesse enveredado por se procura cercear o poder do soberano, não impedirão que este
esse caminho, o Conlrato social teria caído em contradição fla­ as interprete no sentido que mais lhe convenha e manipule-as a
~eu bel-prazer. J! em vão que se limitará o quantum de poder
grante, quase inacreditável, com o Discurso sobre C1 origem da
se não se converter igualmente o seu quale, ou seja , a sua fonte
desigualdade. .. , porquanto é impossível proclamar de um modo
e a sua significação. A teoria do direito e do Estado de Rousseau
mais nítido e mais inexorável O reino incontestável, a soberania
visa nada menos do que propiciar essa conversão qualitativa . Se
absoluta da lei, do que nessa segunda obra . O indivíduo não
ele proclama a soberania absoluta da vontade do Estado, essa
pode opor reservas nem restrições à lei. Toda cláusula que p0­
mesma soberania tem por condição, bem entendido, que o pró­
deria ser inserida no contrato social em benefício de lal ou tal prio Estado tenha·se constituído como Estado, o que pressupõe
direito individual apenas comprometeria o seu sentido e o seu não depender ele de nenhuma outra fonte jurídica de atividade
conteúdo pr6pri0. A verdadeira unidade s6 se realizará se o in­ senão a vontade geral. Esse ponto assente, toda a limitação de

348 349
:;ooerania parecerá não só supérflua mas contraditória, porquan· natureza, tem apenas uma sigoificação administrat iva, perde
to a questão da extensão do poder perde o seu sentido, uma toda legilímidade. Pois a lei pode muito bem ir até o ponto de
vez que se tcata agora do seu conteúdo e do seu prindpio, os Ilrnitar-se em seu exercício, de delegar a outrem uma pnrte Jo
quais não são suscetíveis de "mais" e de "menos". Desde que poder que nela reside, mas não pode chegar ao ponto de alienar­
não tenha de enfrentar mais a simples força física mas a idéia se e aniquilar-se a si mesma. A idéia de "direitos imprescri­
pura de Estado jurídico, o indivíduo não tem mais necessidade tíveis", que apenas tinham por papel, essencialmente, no espí­
de ser protegido : a proteção verdadei ra realiza-se doravante no rito do direito natural, delimitar e salvaguardar a independência
Estado e pelo Estado, de modo que seria absurdo proteger-se da esfera do indivíduo em face da do Estado, tal idéia é agora
dele. Rousseau não renuncia em conseqüência disso ao princípio considerada válida no próprio interior da esfera do Estado. Não
dos direitos inalienáveis , mas faz com que esse princípio jamais é o indivfduo, é a totalidade dos cidadãos, a lJolonté générale,
seja válido contra o Estado, onde ele vê justamente esse princí­ que possui direitos definidos que ela não pode abandonar nem
pio encarnado e solidamente fixado. De um ponto de vista for­ transferir sob pena de destruir-se e de abdicar de sua pr6pria
mal, essa concepção é desenvolvida de tal maneira que Rous­ natureza.
seau - nesse capítulo, ele segue o modelo metooológíco de
Já mostramos antes que força revolucionária reside nessa
Hobbes - rompe com o dualismo que caracterizo até erUão a convenão da doutrina do conerato,H Em primeiro lugar. é o
doutrina do contrato. Ele já não conhece o contrato sob a sua
pensamento que eleva Rousseau acima do seu ambiente histó­
forma dupla, uma pela qual a sociedade constitui-se a partir
rico imediato, é através dele que Rousseau domina o meio inte­
dos indivfduos, a outra pela qual ela se dá um soberano e se
lectual da Enciclopédia. Não é que os contemporâneos de Rous­
submete à vontade deste . Hobbes tinha reduzido todo O processo
seau deixem a desejar quanto à sua vontade resoluta de reforma
de constítuiçiio do Estado ao pacto de submissão; Rousseau, in·
e quanto à importância desses projetos reformadores. Muito
versamente, reduziu-o ao contrato de associação,4~ pura e sim­
antes dele, as graves e incuráveis mazelas do Ancien Rdgime já
plesmente. Todo poder que quer apresentar-se como legítimo
tinham sido reconhecidas . A crítica do Estado e da sociedade
está contido nesse contrato e nele deve enconu'ar seu funda·
memo. De resto, nenhuma soberania , seja -derivada de que prin­ sistematicamente realizada pelo cIrculo da EnciclopMia tinha
cípio for, jamais se elevará mais alto do que constitui, de fato, sido preparada desde o século XVII e começo do século XVIII.
o seu fundamento e a sua justificação original. Todo poder de No caminho claramente assinalado por Fénelon vamos encon·
governo que se encarna num indivíduo ou que seja exercido trar homens como Vauban, BoulainviUiers e BoisguiUebert. O
por uma coletividade nunca passa de ser um po4~r delegado. Exame de consciência para um rei, de Fénelon, focaliza de certo
Não pode abolir nem infringir a soberan ia popular que é a ex· modo todas as objeções que depois foram suscitadas contra o
pressão adequada , o único portador e o único titula,r-.da vontade regime do absolutismo e seus abusos. E tais objeções não ficaram
geral. O poder de governar só é legítimo na medida em que deri· nO plano das decisões abstratas; elas atacam o mal pela raiz,
va do povo e quando é confirmado pelo povo. Assim que expira procurando definir medidas concretas para eliminá~lo. Em todos
o mandato da vootade geral, o poder de governar, o qual, por os domínios, sente-se o impulso de uma vontade resoluta de cc·

350 351
formas, POr !Oda parte exigem-se mudanças radicais, na legisla­ maneira de explicar ~ de argumentar; separa-se do seu século
ção e na administração, no aparelho da justiça e na dislribuiçlo menos pelos idt::aís políticos que defende do que pela dcduçllo
dos impostos, no di~ito penal e no processo penal. E nio são racional e justiJicação que para eles prop6e. Por mais chocado
filósofos, puros "dout rinários", os que travam esse combate; que pudesse estar o século XVIII com a situação política exis­
pelo menos, (oram precedidos por homens práticos em quase tente, jamais teria levado, entretanto, a crítica dessa si tuação
todos os domínios," D'Argenson , em Considérations sur le até uma crítica da existência social como tal. Para ele, essa
gouvcrnemcnt andel1 eJ préset1t de la France, obra composta existência é um fim em si e um rim evidente em si. Nenhu m
em 1739 mas que já circu lava em manuscrito antes de ser im­ pensador da Enciclopédia põe em dúvida que o homem não
pressa em 1764, chama à França um sepu1cro caiado" : o 8lvi­
H pode viver de qualquer outro modo senão nas (omlas da "socia­
oitente brilho exterior em que ela vive dissimula toda a sua bilidade" e da "sociedade" e que seu verdadeiro destino não
podridão ir.terior. Quando D'Argenson, em 1744, é chamado ao pode ser cumprido alhures. A verdadeira originalidade de Rous­
ministério, é aclamado com entusiasmo por seus amigos filóso­ seau está precisamente em atacar essa premissa, em contestar a
fos; os homens do mundo e os políticos designam-no espiritual­ hipótese metodológica que comínuava inspirando implicitamente
mente como o "secretário de Estado da República de Platãc.. ... todas as tentativas de refoma . E verdade que a idéia de comu­
O terreno, em suma, estava perfeitamente prc:parado, tanto no nidade deve ~e r identificada com o ideal de sociedade que c
plano dos fatos 9 uanto no das idéias, para o advento da crítica civilização de século XVIn perfilha com uma cega credulidade?
social de Rousseau, quando ela se manifesta pela primeira vez Não haverá, antes, entre as duas noções uma completa oposi­
com os discursos de resposta às questões apresentadas no con­ ção? Paro conseguir-se estabelecer solidamente a verdadeira
curso para a Academia de Dijon . O próprio D'Argenson, como comunidade nlo é imprescindIvel distingui-Ia com cuidado e
se vé no seu Diário, saúda amistosamente o Discurso sobre a proteg~la dos (dolos da "sociedade"? Foi em face dessa proble­
desigualdade como obra de um "verdadeiro filósofo" ,H Parece, mática que eclodiu o conflito opondo Rousseau aos enciclope­
portanto, que uma continuidade perfeita estabeleceu-se entre distas ; devemos acompanhar o seu desenvolvimento a (im de
Rousseau e o conjunto do movimento das idéias do século discernir, sob sua verdadeira luz, a ruptura que se desenha
XVIII. ~ por isso que se compreende dificilmente que Rous­
nesse ponto.
sesu tenha imagin ado, ao longo de toda a sua vida, que desviou
Em As origens da França contemporanea, Taine censura aos
de forma radical o curso das idéias do século mas também que
enciclopedistas terem sido doutrinários ingênuos. terem elabora­
os melhores espíritos da época, depois de terem tentado em vão
do seu si stema político e _~ocial de um modo puramente sintético
durante um certo tempo atraí-lo para 9 seu círculo, acabaram
por tratá-lo como um tstranho e um intruso, de quem pressen­ e se lhe aferrarem sem levar em conta a rea1idade histórica
tiam sem dúvida a po tência demoníaca , mas ele quem deviam COncreta. Tal censura foi considerada indefensável faz muito
aIastar·~~ para não sacrificar a clareza e a segurança de suas tempo. Ninguém pode contestar nesses pensadores a sede de
visões do mundo.~8 O cerne dessa incompatibilidade reside me­ realidadp., a flexibilidade de seu sentido das realidades. Todos
nos no conteúdo do pensamento de Nou~:.eau do que na 'U I querem colaborar espontaneamente, todos compreendem como é

352 353
longo, peDoso ~ díffcil o caminho que vai da "teoria" à "práti­ intelectual , porque esse progresso, em virtude do impulso inte·
ca ". Mesmo um fanático da abstração como Holbach, por exem· rior que o anima e da lei imanente que o governa, dará à ordem
pio, como teórico do "sistema da natureza", está longe de ima­ .social sua nova e melhor (arma . O refinamento dos costumes.
ginar, enquanto pensador politico, a implantação direta na rea· o aumento e a expansão das ciências também transformam, final ­
lidade de suas idéias e exigências. No seu Systeme social, ele mente, a moralidade e conferem· lhe um fundamento seguro. EsslJ
descarta expressamenre toda e qualquer solução revolucionária, fé 6 tão poderosa que, para a maioria desses pensadores, u
declarando que os remédios desse gênero são sempre mais cruéis idéia que buscam e tanto se empenham em fundamentar e justi·
do que os males que pretendem curar. A voz da razão não está ficar, a de comunidade (Gemeinschalt), confunde-$e não só com
sedenta de tumultos nem de sangue; se as refolTOss que ela pre­ a de sociedade (Gesellscha/t) mas também com a de sociabilida·
coniza são lentas é porql.:e são melhor analisadas e ponderadas, de lGeselligkeit). O mesmo ocorre com a expressão francesa
o que as torna mais estáveis e segU1'8s :l 0 Contudo, não é menos sociélé, à qual constantemente se sobrep6em todas essas signi­
evidente para todos esses pen,adores que compete à razão assu­ ficações. Pretende·se criar uma filosofia sociável, uma ciência
mir a direção do movimento de renovação política e social, a soci4vel. Os ideais políticos, é claro, mas também os ideais es·
ela cumpre empunhar o facho . Só se encontrará a {orça bastante peculativos, éticos e artísticos são elaborados pelos salons e para
para vencer o mal se este for totalmente esdarecido, levando as os salons. Mesmo no donúnio das ciências, essa " urbanidade"
"Luzes~ até as suas causas c suas fontes . Nos lide res do lIumi­ social é elevada à categoria de uma medida e de um critério de
nisOlo, essa fé no poder da razão não assenta em bases pura­ avaliação e julgamento genuíno e intuitivo (wirklicher Einsicht)
mente intelectuais. Sem dúvida, ainda se pode a))\)nta!' o puro de relações. Toda idéia que não for exprimível nessa linguagem
intelectualismo de D'Alembert e a fria serenidade do seu espí· da urbanidade não deu provas de clareza e distinção. Fontenelle,
rito matemático, mas Djderot já nos aparece como um persona­ no século XVII, submeteu a essa prova a doutrina de Descartes
gem muito diferente, muito mais imaginativo do que pensador em Entretiens sur Ia pluralité des mondes; Voltaire, no século
intelectua1ista . Mesmo em seus projetos propriamente intelec· XVIII, realiza o mesmo empreendimento a prop6sito dos PrincL·
tuais, ele deixa·se arrastar por sua imaginação e muito além dos pio! matemáticos da filosofia natural, de Newton. O movimento
limite! do demonstrável. Ao referir·se à vaga e ambígua oposição propaga·se à Alemanha e aI se consubstancia num exemplo bri­
entre "racionalismo" e .. inacionalismo", é bom que se diga que lhante, o das Brie/en an eine deulsche Prin%essin (Cartas a uma
Rousseau, comparado a Diderot, surge-nos então, em certa me­ prlncesa alemã>, de Leonhard Euler. Diderot resume todos esses
dida, como um racionalista. Diderot jamais atingiu, nem se es­ esforços e d4·lhes a mais penetrante expressão quando declara
forçou nunca por atingir , no! seus arrigos da Enciclopédia re(1)­ ser uma obrigação moral tornar a5 idéias "populares". O ver­
rentes a questões fundamentai s de ordem poHtica e sacia1, o dadeiro Humanismo é aquele cuja realização passa pela popula­
rigor dedutivo que caracteriza o Contrato social. E, no entan· ridade, cuja realização est4 condicionada por essa passagem pata
to, ainda não é ai que reside a diferença decisiva que opõe um a língua da sociedade. Apressemo-nos a tornar a filosofia po­
U

ao outro. l! que Diderot e os enciclopedistas estão impregnados pular. Se queremos que os filósofos caminhem na frente, aproxi·
da convicç.lo de que se pode confiar no progresso da cultura memos o povo do ponto onde os filósofos estão. Dirão existirem

3S4 355

obras que jamais estarão ao a1cance de todo mundo? Se eles o existir entre consciência moral e consciência cuhurnl em irlr !r
dizem, apenas estão mostrando que ignoram o que podem o bom E, uma vez a questão assim encarada e formulada com IU(i!l ti
método e o longo hábito." ~ Não sio as ciências exatas e as rigor, a resposta não iX>dia continuar duvidosa por r1lL dl~l 1111111
matemáticas que, por sua vez , se recusam a privar-se da ajuda tempo. A harmon ia desmorona enlre o ideal ético e o ideal 1t'6­
e dos encorajamentos do espírito de sociedade (gesclligen Oeist) rico do século. O próprio Rousseau descreveu com gnmdc I~
do século, e até mesmo 05 melhores espÚ'itos acreditam que suas nelração o instante em que e5SC desmoronamento produziu-se
pesquisas só podem obter sucesso e fecundidade nesse meio. No e
neIe. o momen to em que, em conseqüência da questão pOstll
"Discurso preliminar" da Enciclopédia, D'Alembert sustenta que em concurso pela Academia de Dijon, Rousseau encontra-se
a superioridade específica do século XVIII não é ser mais fértil diante do problema de saber "se o restabelecimen to das ciências
do que os outros em gênios, em espíritos verdadeiramente cria­ e das artes contribuiu para depura.r os costumes ". Assim diz ele
dores. A natureza não é sempre igual a si mesma? Todas as em sua célebre carta a Malesherbes: "Se alguma coisa asseme­
épocas não produziram grandes gênios? Mas o que podem Cazer Ihou·se alguma vez a uma inspiração súbita, ela é o movimento
os grandes intelectos quando estão dispersos e entregues à sua que se produziu em mim nessa leitura: de repente, sinto O espí·
própria intutção? OI As idéias que se adquire pela leitura e peta rito ofuscado por mil luzes; um tropel de idéias vivas af se
sociedade são o germe de quase todas as descobertas. l! um ar apresenta simu1l'aneamente. com uma força e uma confusão,
que se respira sem pensar nele e ao qual se deve a vida. OI O que me lançou numa inexprimfv el perturbação." rol Como numa
espírito da Enciclopédia, seu sentimento da vida e do pensamen­ visão slÍbita, Rousseau descobre o horrfvel abismo que perma­
to talvez nunca tivessem sido expressos numa Córmula mais neceu escond ido aos olhos dos seus contemporâneos, que por
justa e mais concisa . A sociedade é o ar vital; a verdadeira ciên­ ele roçaram sem más intenções e sem pressentir o perigo ameaça·
dor. O domínio do querer está separado do domínio do saber.
cia, a verdadeira filos ofia, a verdadeira arte não podem fl orescer
Opõem·sc por seus fins e por seus caminhos. Nessa civilização
em nenhum outro lugar. A Enciclopédia quer instaurar e asse­
do espírito de sociedade em que o século XVI II vê a flor da
gurar essa união; é ela que, pela primeira vez, adqui re consciên­
verdadei ra humanidade, Rousseau reconhece o pior perigo. O
cia da ciência como função social e declara que o seu desenvol· conteado dessa civilização, os seus primeiros passos, o seu estado
vimento só ~ possível na ba$C de uma sólida organização social. atual, tudo confinna sem ambigüidade que ela é desprovida de
Todos os outros esforços políticos e éticos devem também pro­ lodo impulso moral, que se alicerça tão-somente no instinto de
curar aI seus lugares, pois não se pode esperar a renovação da poder e de posse. na ambição e na vaidade. O filósofo da vida
existência poUtica e social senão do crescimento e da expansão social deve então ceder o passo ao filóso fo da história e apurar
dessa cultura do espírito que se adquire em sociedade. por que caminhos a sociedade chegou A sua presente forma. des­
e nesse ponto que intervém a crítica, a contestação radical vendando assim as Corças que continuam a movimentá-Ia e a
de Rousseau . Ete ousa quebrar o vínculo considerado indisso­ governá·la. Entretanto, essa parte de sua tarefa não (oi conce­
lúvel. Ele descobre que ~ problemática e inteiramente contestável bida nem realizada por Rousseau num sen tido puramente histó­
a unidade que se admi tia até então, ingenuamente e de boa·f~, rico. Q ue ele oponha o estado nll tural ao estado civil, que dcs­

"6 357
ereva 11 passagem de um para outro, jamais deixt:. entender que ler rejeitada , o mundo humano que deve mergulhar de novo
se trata de qu ~tões de fato que poderiam ser solucionadas por caos inicial . Rousseau está bem Icnge de tal anarquismo teórico
provas históricas e no âmbito de uma e::\posição de história. e prático, arauto entusiástico que ~ da "lei" e da "vontade
Tanto na descrição do estado de natureza quanto na do "con­ geral ". Tampouco formulou semelh ante conclusão a propósito
trato social", a palavra e a idéia de desenvolvimenfO são toma­ da cultura intelectual, das artes e das ciências. Pelo contrário .
das numa acepção mais lógica e metodológica do que empfrica. nunca deixou de proclamar - e por que não acreditar muito
Se é Hcíto dizer que Rousseau faz nascer e crescer sob os nossos simplesmente nessas declarações. em vez de pô-Ias em dúvida
olhos a sociedade civil, isso não é no sentido de um relato ~p ico como uma espécie de auto-sugestãc? - qce jamais lhe acudira
mas no sentido da "definição gen~ti ca " que 6 o método por 00 espírito, ao atacar as 2rles e as ciências, a rejeição radical
e::\celência da fil osofia do direito e da filosofia polftica dos st­ de todas as suas contribuições para a edifi cação da sociedade.
cuias XVII e XVIII .u Ele precisa apresentar-nos o processo da "Nesses dois primeiros escrites" - assim diz ele, fala.ndo de si
gênese da sociedade porque é Q único meio de revelar-nos o mesmo e dos doi s Discursos - " deõica·se sobretudo a destruir
segredo da sua estrutura, porque as força s que mantêm a socie­ esse prestigio ilusório que nos d6 uma admiração estúpida pelos
dade só podem tornar-se vis{veis em sas ação. Rousseau expli­ instrumentos de 'nossas misérias e a corrigir essa admiração en·
cou-se com muita nitidez sobre os princfpios do seu método no ganadora que nos faz reverenciar cs talentos perniciosos e me­
pref'cio do Discuf$o sobre a desigualdade. Falar do "estado de nosprezar as virtudes útei s. Mas a natureza humana não retro­
natureza" , diz ele, t falar de "um estado que já. não existe, que cede, e jamais se retorna aos tempos de inocência e de igualdade
talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existird, uma vez que nos distanciamos deles. Obstinaram-se em acusá-lo
e do qual é necesSt1rio, porém, ter r.oções corretas, para bem de querer destruir as ciências, as arte!l, os teatros, as academias
julgar o .nosso estado atual". Portanto, Rousseau est~ longe de e voltar a mergulhar o universo em sua primitiva barbárie, quan­
eceitar o estado de natureza como um estado de fato em cuja do ele, pelo contrári o, sempre insistiu na conservação das insti·
contemplação ele absorver-se-ia , à beira do qual suspiraria , com tuições exi stentcs, sustentando qpe sua destruição apenas fari a
o qual sonharia . Serve-se dele ::orno de um crit~rjo ou de uma eliminar 0 5 paliativos e deixar os vícios, e substi tuir a corrupção
norma, como a pedra de toque que permite fazer a prova de pela desordem e n pilhagem." B8 Segundo Roussenu, só se esca­
tudo o que, na forma presente da sociedade, é verdade ou pará a essa desordem, que está no pólo oposto da verdadeira
liberdade, abolindo a ordem vigente, cujas impostura e arbitra­
embuste. o que ~ lei obrigatória em si ou o que apenas ~ con­
riedade são conhecidas , demolindo até as suas fundações o ed i­
venção e arbítrio. O Estado e a soc iedade de hoje devem con­
fício político e social existente para construir em seu lugar um
templar seu próprio I"osto no espelho do estado de natureza,
outro que se erga sobre alicerces mais seguros. O "contrato s0­
devem aprender a ver·se e a julgaJ·se.
cial" encarrega-se dessa nova construção: ele transformará o
Supondo-se que esse julgamento leve à condenação e rejei­ atual estado de coerção em estado de razão. a sociedade que ~
ção de toda a ordem social existente até oS" nossos dias, isso não obra da necessidade cega numa obra de liberdade. O homem
quereria dizer . evidentemen te, que é a ordem em geral que deve não passau do estado natural ao estado civil impelido por umn

358 359
inclinação moral primitiva, como queria mostrar o Discur;ro s0­ então será !feito ao homem ocupar-se na busca da verdade eltlc
bre a desigualdade, e não é mantido nesse estado por forças ori· cior. A ciência náo redundará mais, então, no simples " refina­
ginariamente morais nem pela vontade ou o entendimento, e mento" , não concorrerá mais para enfraquecer e adormecer o
muito mais admissfvel que o homem tenha chegado ao estado sa­ homem. Uma falsa ordem das coisas em ética tinha inclinmJo li
cial impelido por um destino inexorável, pela coerção física da ciência nessa direção, convertcndo-a em simples refinamento in­
natureza exterior e pela de suas emoções e paixões, do que telectual, uma espécie de luxo espiritual. Ela voltará de 01010
tenha livremente decidido criar a sociedade. Não se trata de próprio ao bom caminho quando esses impedimentos forem eli­
recuperar o perdido com essa queda nem de corrigir um estado mi nados. A liberdade do espírito nada pode propiciar ao homem
de decadência. Se o homem deve retornar à sua condição e na· sem a liberdade moral, e essa liberdade só pode ser adquirida
tureza originais, não é para se conservar obstinadamente nelas por uma mudança radical da ordem socio.1 , com a expulsão de
mas para voltar a percorrer todo esse caminho uma vez mais tudo o que é arbitrário e a vitória da necessidade interior da lei.
desde a origem. E que o homem, nesse segu ndo percurso, não A unidade espiritual do século XVIII também se revela
se abandone 80 poder de seus instintos, que escolha e que diri­ aqui sob uma Dova luz, graças ao conflito que eclodiu e à luta
ja, que tome em suas mãos o leme e decida sobre o caminho e o apaixonada que Rousseau travou contra a sua época; pois Rous­
objetivo da viagem, que sa iba para onde vai e por quê. Se o seau . mesmo levantando-se conl ra a fil osofi a do Iluminismo,
ignora, não poderá levar a idéia do direito à sua vitória e reali­ mesmo levando a melhor sobre ela, con tinuou sendo um verda­
zação final. Como se vê, a exigência é inteiramente racional: deiro filho desse Ilumini smo que combatia. O seu evangelho
mas é o racionalismo ético que doravante prepondera sobre o do sentimento não contradiz essa afinidade: os fatores em ação
racionalismo teórico. Essa preponderância, essa repartição de não são simplesmente afetivos . porquanto expressam verdadeiras
forças, uma vez assegurada, nada impede. é verdade, que se convicções intelectuais e morais. Não é uma simples • sensibi­
conceda um certo direito relativo ao saber teórico. A ciência
lidade" que se reflete no "sentimentalisIDo" de Rousseau mas
- tal é a doutrina que Rousseau sustenta a partir do Contrato
uma força moral e uma nova vontade moral. Graças a essa
social - não pode ser perniciosa se, em vez de pretender pairar
inspiração fund amental. a "sentimentalidade" de Rousseau pôde
acima da vida, consentir em colocar-se a serviço da própria vida.
ganhar a arrastar em seu movimento espíritos tão profundamen­
Tudo o que tem a fazer ~ ren unciar a reivindicar para si mesma
o primado absoluto no domfnio dos valores espirituais que se te düerentes quanto, por exemplo, na Alemanha, os espíritos
retacionam com a vontade moral. Assim, na sociedade humana, fundamentalmente não-sentimentais de Lessing e Kant. Talvez
a edificação do mundo do saber deve ser precedida pela elabo­ em nenhuma outra parte a fo rça do pensamento iluminista, a
ração clara e segura do mundo da vontade. Que o homem unidade sistemática de sua visão do mundo manifestou-se mais
encontre primeiro em si mesmo uma lei firme antes de preo­ do que na resistência que após ao seu ma is perigoso adversário,
cupar-se com as leis do mundo, dos objetos exteriores. Quando afirmando contra ele os valorel que lhe são mais próprios. Rous­
o espfrito resolver esse primeiro problema, quando tiver alcan­ seau não destruiu o uni verso do século XVIH , deslocou sim ­
çado, na ordem do universo polftico, uma liberdade autêntica, plesmente o seu centro de gravidade. Por todo o trabalho de

360 361
seu pensamento, ele preparou, melhor do que nenhum outro
NOTAS

pensadcr do seu século, o caminho de Kant. Este pôde apoiar-se


em Rousseau, estribar-se nele para a construção sistemática do
seu próprio mundo intelectual : esse mundo inleledual que ven­
1 Mitteilungen auS úibnir ungedruck./tln Schrifun [Comunicação de
ceu a fil osofia do Iluminismo e que, DO entanto, é a sua derra­ escritos inéditos de Leibni.t], por Geori Molla!., Leipzig, 1893, p. 22; par:!
deira transfiguração e a sua mais profunda justificação. uma ex po~ição mais detalhada, cf. o meu livro úibniz' Syslem ill seinem
....issenschaftlichen GTlld/ugen [O sistema de Ld bniz em seus fundamentos
científicos], Marburgo. 1902, pp. 425 c 55., 449 e 55. Os comentários
&Ciuintes são baseados, em parte, num ar tigo Que publiquei com O titulo
de "Vom Wesen und Werde n des Natu rreehu" em Zeflschrifr tür
Rechtspllilosophie 1/1 Lt:hu IInd Praris, vol. VI , pp. 1 e ss.
:I O mesmo combate Que Grolius trtl va na HolaDda contra o dogma­
tismo clllvi nista e o principio do Estado absolutista será retomado na
In&laterra pela "Escola. de Cambridge" e sustentado em condiÇÕC$ meto­
dológicas e hist6ricas semelhantes. Niio desenvolvo mais essa questão
aqui porque a tratei em detalhe no meu estudo Die P/a/oll /sem RtnaiJ­
J/JIIce in E ng/and UJfd d ee Schllle van Ctlmbridge , Leipzig, 1932, (Stud.
der Bibl. Warburi XXIV).
a D~ jU't belli ac pacis, P,olegomena, 5eÇ. XI.
, I Sobre a$ relaçOes da ler naluralis e da ler divina na filosofia me-­

dieval. ver Gierke, l ohannes Allhu.tius UM die EllIwit;k/ung du na/ur­


rech l/ichen StaaWheorien (1879, 3. 1 edição, Breslau, 1913 ) , pp. 272 e
$S., para uma análise detalhada; na primeira teologia protestante a con­
cepção medieval ainda conservava todo o seu podeI". Ver o~ detalhes em
Troeltsch, Vemun!/ Ilnd Offetrburung bel lohann G uhard UM M e/anch­
Um, Gottingen, 1891 , especialme.ote J)p. 98 e M. Cf. acima pp. 61 e $S.
5 Cf. acima p. 77.

'Montesquieu, O elpírito da.s leis, livro I. capo 1.


r Montesquieu, Cartas penas, Carta LXXXII.
I/. Ca,ltl ao príncipe he,dei,o Frederico, outubro de 1731, Oeuvn~s,
vaI. 50, p. 138.
Q Vo lta ire, Trail l de m ltaphYJique, cap_ IX (Oeu..res, XXXI, pp. 65

e ss. ).
10 Vollaire. Le phi/ruoplu: igno'ant. capo XXXVI, Oeuvres, XXXI,
pp. 130.
11 Voltairc, Discours ClI VeTS SUl I'h omm e, sttimo discurso, Oeu"" ;$,
XII, 91 ("Os milagre'! são bons; mas aliviar seu irmão / Mas arrancar seu
amigo dO seio da mi.stria,l Mas a seus inimigos perdoar suas "irtude~,/É
um milagre maior, e que já nao se faz ma is." a". do T.)]

362
363
43 Para ma is detalhes. ver Gierkc:, JohanMS Althusius, 5Obrc:ruda
pp. JJj e 5$.
H Ver aci roe pp. 212 e 55.
t~ f: agora })OSslvel fazer -se uma idi ia cor reia desse movimento,
graças à coletânea de textos import antes que é oferecida pelas obr:'ls de
Henri Sée, Lu idú! po/iliqll t ! tn FrOrlCI! ou XVl1c siecle, Pa ris, 1923, e
L'évo lulion de In pensü poliliqut e/I France au XVllld sià:/e. Par is, 1925.
Q . ta mbém de Heori Sée " Les idées philosoplliques el la liuérature p ré­ VII
revolutionnaire", Re"UI! de Synth eu H is/oriqu e, 1925. Pode-se consultar
ainda G. Lanron, L e róie de l'erpéritflCt dOlls ia formalion de la p!li/o­ OS PROBLEMAS FUNDAMENTA IS

sophie ali sieck XVIl~ ell France. E:tudeJ d'histclre /il/iraire, Paris, 1930, DA ESTETlCA

pp. 164 e M.
«I Cf. li. carta de Voltaire ao duqu e de Riche lieu de 4 de fevereiro
de 1757; Oeu"'es (Paris, Uquien l, LX, p. 238.
4~ Cf. Henri Sée, L' ivolmion de la peftSée po/iliqlle . . . , p. 98.
48 Para as relações de Rousseau COol os enciclopedistas, ver O meu
artigo Das Problem Jeem-Jacques Rousnoll. pp. 2Q I e M.
•• Holbacb, Syst~me social. lI, p. 2. o
"século da critica"
50 Diderot, De I'in terprlration de la na,lure, sec. XI, Oeu vres (Assb­
zat), lI, 'pp. 38 e 58.
o século XVIII que tanto gostou de proclamar·se o "século
31 Segunda carta a MalC8b.erbcs, de 12 de janeiro de 1762.
da filo sofia" não tem menos direi to ao título de "século da
~2 Cf. acima P.p. 337 e ss.
crítica". Na verdade, essas duas fórmulas constituem apenas a
83 Roussea u jlóge d~ Je(ll1·Jacques, 3 .0 diálogo.
expressão diferente de uma s6 e mesma realidade. Elas tendem
o. caracterizar sob seus diversos aspectos o dinamismo intelectual
com que e época sente-se interiormente animada e que alimen·
tou os seus mais originais movimentos de idéias. Em todos os
grandes espíritos do século manifestam·se os laços intimas que
unem à filcsofia a crítica estética e lilerá ria - e não por acaso
mas sempre na base de uma unid ade probnda e in trínseca dos
problemas. Sem dúvida, existiram sempre relações estreitas entre
os problemas fu ndamentais da fil osofia especulativa e os da crf­
tica literária, a partir desse Renascença que queria ser um "re­
nascer das artes e das ciências" e resultou tania de permutas
diretas e estimulantes quanto de um enriquecimento recíproco.
Mas o Sécu lo do Iluminismo deu um passo a mais; ele deu
uma outra conotação, ni tidamente mais estreita, à reciprocidade

366
367
que deve existir entre esses dois domfnios. El a confere-lhe uma geral : ele só verá na propria "raz80" filosófica uma raculdade
significação que já não é simplesmente causal mas originária e origina l e radica l de determinação de limites. Essa dctcrmina·
substancial; não se trata somente de acreditar que filosofi a e ção manifesta-se como necessid"de suprema quando se trata
crítica encontram-se e concordam em seus resultados indiretos, de separar idealmente dois domínios que não são simplesmente
mas de afinn ar e apurar uma unidade natural entre as duas de estruturas diferentes mas sobre os q uais se pode afirmar
disciplinas. Dessa convicção e dessa exigência nasceu -a esté­ que a diferença eleva-se ao nfvel de uma diametral oposição.
tica tedrica, ciência na qual se conjugam dois movimentos de Da consciência dessa oposição nasceu a síntese intelectual que
origem muito diferen te. Por uma parte, há todo o esforço do devia cond uzir o século XVIII à fund ação da estética tcórica .
século XVIII no sentido de uma vi são clara e segura do indi­ Mas, antes que essa síntese tivcsse recebido na obra de Kant
vfduo, da unificação formal e da estrita coerência racional. To­ a sua forma definitiva, o pensamento filosófico deveria ainda
dos os fios di rerentes que a crítica literária e a ren exão esté­ enfrentar uma série de etapas preliminares com vistas à defi­
tica teceram ao longo dos séculos devem reunir-se num só nição, sob di versos aspectos e várias perspectivas, da unidade
tecido; o material oferecido com abundância pela poética, retó­ que queria estabelecer entre os lermos em conflito. A batalha
rica e teoria das artes plásticas deve, em última instância, ser q ue prosseguiu na estética do século XVIII para a definição
ordenado, distribuído e considerado numa perspectiva sintética . e classificação dos conceitos fundamen tais reflete em suas fa­
Mas essa necessidade de clareza e de domínio racional consti­ ses. por menores que fossem , esse esrorço universal. Quer se
tui apenas o ponto de partida para o empreendimento . Partindo tratasse do conDito entre " razão" e "imaginação", da oposição
dessa problemática puramente racional. a idéia abre caminho entre "gênio" e "regras". de fundamentar o belo no senrimento
até o questionamento do proprio conteúdo do pensamento. En­ ou numa determinada forma de conhecimento . em todas esses
tre o conteúdo da arte e o da fil osofi a procu ra-se agora uma antíteses projeta-se inex.oravelmente o mesmo problema funda·
correspondência, afinna-se agora um parentesco que, no come­ mental. I! como se a lógica e a estética, como se o conheci­
ço. parece ser percebido de um modo obscuro demais para mento puro e a intuição artfstic a tivessem que se medir UII ~
poder ser expresso em conceitos precisos. Mas parece então que pelos outros e compreender·se segundo os seus próprios critérios.
Q verdadeira e essencial tarefa da crltica reside , precisamente , Reencontramos o mesmo processo em todos os esforços. tiio
em tran spor esse limite, em penei rar com seus raios o claro­ diversos Co tão diverge ntes, efetuados no século XVlIl para a
escuro da "scnsação" e do "gosto" que ela deve, sem cometer fundação da estética: ele foi o seu centro de gravidade latcnte.
nenhum aten tado à sua natureza, trazer para a luz do conhe­ o seu Coco espiritual. t evidente que entre os numerosas pen­
cimento. Pois o século XVII I, mesmo quando admite que o sadores que participaram nesse movimento. nenhum delcs tem ,
pensamento esbarra com um limite. quando reconhece a ex is­ no in{cio, a menor consciência do objetivo para o quul ele
tência de um "i rracional", exige um conhecimento claro e segu­ tende, nenhum reconhece de imediato uma linha determinada
ro desse mesmo limite. Sabe-se que o mais profundo dos seus à qual o curso do pensamento liga r-sc-ia. um problema básico
pensadores, Kant , elevará no fin al do século essa existência nitid amente concebido e conscientemente visado no conflito dfls
à categoria de um caráter próprio, constitutivo da filosofi a em múltiplas tendências . A problemática, pelo contrário, mantém-se

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369
em permanente movimento e, segundo o predomínio desre ou marcantes da história das idéias alemãs que uma tal "harmonia
daquele interesse - psicológico, lógico, ético - , assiste-se 8 preestabelecida " fosse posslvel. Disse Windelband a respeito da
um perpétuo deslocamento de sentido das norroas e dos concei­ Critica do jufzo kantiana q ue o conceito da poesia goethiana ai
tos funda men tais que governam a estética nascente. Mas, no se encontrava, de certo modo, construído a priori; que aí se
fi nal, cristaliza-se, a partir desse complexo de tendências de apa­ reencontra na fo rma de obra e de ato o que antes (ora justifi·
rência contraditória , uma nova configuração. Em lace da lógica cado e exigído pela pu ra necessidade do pensamento filosófico.
e da filosofia moral, da física e da psicologia , estabelece-se ago­ Essa un idade do ato e da exigência , da obra artística e da cons­
ra uma nova problemótica q ue , no começo , não se distingue ciência reflexiva, o pensamento alemão do século XV II I não
nitidamente delas. Mil vínculos ligam-na ainda li todas essas dis­ procurou estabelecê-Ia , elaborá-la arti ficialmen te: ela resulta di­
cipli nas . Entretanto, sem que o pensamento fil osófico se esforce retamente do simples encontro , da compenetração e d a coope­
verdadeiramente por desfazer esses vínculos . nem por isso dei· ração dinâmica de suas forças criadoras. São essas forças que
xou de começar a estirá-los aos poucos até conseguir, enfim. engendra m, como seu resultado necessário e imanente, uma no­
se não de fato pelo menos num plano pu ra mente conceptual, va forma de fil osofia , simull aneamente com um novo modo,
rompê-los . Dessa ruptura, desse movimento de li bertação inte­ uma nova " dimensão" do processo de criação artística. Essa
lectual nasce uma diseiplina nova, autônoma: a filosofia esté­ síntese. que assinala a reali zação e O apogeu da cultura elo
tica. Tudo o que podia acontecer na estética setecentista por século XV III , é fruto do paciente trabalho realizado passo a
desvio ou descaminho con tribuí indiretamente, na realidade, pa­ passo duran te a época que estamos estudando. Coube ao Século
ra a ge:itação e a ed iricação dessa forma de pensamento. A do Iluminismo a glória incomparável e imprescritível de ter
história não deve negligenciar nem subestimar nenhum desses cumprido a tarefa de unir, com uma perfeição ioigualada. a
elementos, mesmo que eles a~nas sejam ainda esboços impre­ obra critica à obra criadora, conferindo a cada uma as virtudes
cisos, pois é, sem dúvida , nesse inacabamento que se apresenta da outra.
de maneira mais clara e mais imed iata a nossos olhos a ela­
boração de uma consciência filosófica da arte e da lei que rege
essa consciência em sua gênese . A eslética clássica e o problema da ob;elividade do belo
Mas algo ainda mais maravilhoso se esconde nessa pré­
hist6ria da estética tCÓrica . Não só uma nova disciplina fil osó­ o novo idea l de saber instituído por Desca rtes na origem
fi ca é elaborada com todo o rigor do seu mé todo mas , além da sua filosofi a tem a ambição de englobar nlio só todas as
disso, no fina l desse desenvolvimento, surge uma nova forma partes da ciência mas também todos os aspectos e todos os me­
de criação artística. Contemporânea da filosorla Kanti ana. a poe­ mentos do agi r. Com as ciências. sl riclo sensu, com a lógica,
siâ goethi ana mart:a a sua cul minação espiritu al, constituindo-se as ma temáticas, a física e a psicologia , que vão receber uma
em seu desfgnio profético . E os laços intimas que unem essas nova orientação, a arte é dornv8nte submetida, por sua vez.
dua s obras maiores s6 se compreendem p lcnamen!e nesse con­ à mesma exigência estrita . Ela deve ser aferi da pela " razão",
texto histórico. Sempre foi considerado um dos traços ma i ~ ~er testada de acordo com as regras racio nais: não existe ne­

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nhum outro meio de comprovar se a arte possui um conteúdo aparentemente tão he terogê ncê'~ de modo a defini-las e a dedu­
autêntico, duradou ro e essencial. Tal conteúdo nada [Cm a ver zi·las a partir desse princípio. O C4! minho a ser percorrido pela
com as exci tações fu gidias do praze r que a obra de arte des· estética dos séculos XVII e XVII[ estava , pai!, traçado de
perta em nós. Para ser universalmente válida el ~ quer ser esta· antemão; a natureza, em todas as suas manifestações, é subme­
belecida sobre alicerces mais firm es. se r isent a da mobi lidade tida a certos princípios que o conhecimen to tem por tarefa
infinita de prazer e dcsprazer, ser apreendida em sua rea lidade essencial determinar e enunciar em termos cla ros e precisos;
e em sua necessidade próprias. Pessoalmente, Descal'(es não ju n· ti arte, rival da natureza, não pode deixar de se r afetada pd a
10U à sua filosofi a nenhuma estética, mas na estrutu ra geral da mesma obrigação . A natu reza está submet ida a leis universais
sua obra filosófica já se encont ra implícito semelhante desígnio. e invioláveis; devem existir para a " imitação da arte" leis da
Com efeito, cle estende ao domínio da arte a un idade absoluta mesma espécie e de igual dignidade. E todas essas leis parciais
qeu caracteriza. em seu entender. 11 natureza do saber e que devem , em definitivo. harmonizar·se e estar subordinadas a um
deve supe rar todas as divi sões arbitrárias e cOnvencionais. Ele princípio únjco e simples . a um axioma do imiloção em geral.
niio heSita em ampli ar a sua concepção de uma sctpientia uni­ E essa convicção hmdamental que Baueux exprime pelo sim­
versalis até englobar no postulado universal da razão a arte ples titulo de sua obra principal, Les beaux-arls rlduits à un
em seu conjunto e em todas as suas formas particulares. Quan­ même príncipe [As belas-artes reduzidas a um mesmo princí­
do Descartes, nas Regufue ad c!irectionem ingenii, dá·nos a sua piol. a qual parece proclamar O cumprimento vitorioso de todo
primeira demonstração segundo o método das idéias claras e o esforço dos séculos XVIl e XVII I em matéria de método.
d isti ntas do ideal da Malhesis universatis, ele não deixa dc c0­ Aqui domi na igualmen te o grande exemplo de Newton: da
loca r sob a autori dade desse ideal, compartilh ando, de resto, ordem que de tinha estabeleci do no universo físico devia de­
nesse uspccto, da tradição medi eval, não só a geometria e a rivar a ordem do unive~o intelectual , ético e estético. À ma­
aritmética mas tam bém a música. E quanto mllis se expande neira de Kant, que via em Rousseau o Newton do mundo moral,
o espírito do cartesianismo mais a nova lei é energicamente es­ a estética do século XVIII procura e exige um Newton da arte.
tendida 110 domínio da tcoria estética. Se essa teoria quer afiro E essa exigência não parecia , de maneira nenhuma, oca ou
mar-se e justificllT·se, se ela quer se r outra coisa que não um mero quimérjca depois que Bailcau se arvorara em " legislador do
conglomerado algo confuso de observações empfricas e de regra~ Parnaso". Parecia que sua obra tinha. enfim , elevado a estética
empilhadas a csm<" é necessá rio que ela encarne o cará ter e a ao nível de uma ciência exata , ao substitui r postu[<ldos pum­
missão de uma teoria como tal. que seja marcada çom o cunho mente abstratos por aplicações concretas e investigações espe­
próprio da teoria. Ela não pode deixar-se conduzir nem desviar ciais. O paralelismo das artes e das ciências, q'Je constitui uma
pe l ~ diversidade dos objetos; pelo contrá rio. deve abarcar 8 das teses fundamentais do classicismo francês, parecia agora es­
natureza da criação e do julgamento artístico em Sua unidade e tabelecido com base nos fatos. Desde antes de Boileau, expli­
intcg ridade. Tanlo no mundo das artes como no das ciências só ca-se esse paralelismo pela origem comum das artes e das
desfrutaremos essa visão sintética se submetermos a um só e ciências no poder absolutamente único e soberano da " razão".
mesmo princípio as formas renomenais da arte tão di versas e Ora, lrata-se de um poder que ignora todo compromisso e

372 373
trar das leis da o.:'dem natura\. À convicçãO profunda que está
não sofre ::lenhum desvio. Quem nâo o reconhecer de forma
então v;va em toda parte manifesl2-se num poema didático de
absoluta e inteira, quem não o recol'Jlecer sem restrições por
guia, comete um crime de lesa-majestade . Err. sua Pratique du M.-l. Chénier:
thédtre, de 1769, cinco anos antes da publicação da Arte ~­
C'est te bon sel1S, la ralson qui foi! tout:

rica de Boileau, O'Aubignac escreveu: "Em tudo que depen­


Verfu , génie, esprit, falent el goÚl.

de da razão e do senso comum, a licença é um crime jamais


Qu 'est-ce verlu? raison mise ell p fat iq/Je;

permitido." A " licença poét ica " - assiJ'!1 come a científica ­


é assim repelida e condenada . Diz Le Bossu no início do seu Talent ? raison produile avcc éclat;

Traité du p~mc épique: " As arles têm em comum com as


Esprit? faison qui finement s·exprime.

Le goút lI'est rien qu'ulI bO/l sens déficat,


ciências serem, como estas, fundada s ::a razão, e deverem dei­
xar-se cond uzir pelas luzes que a n8tureu nos deu ." I Vê-se EI lc géllie est tu rajson sublime.
como a c5tética clássica concebe a natureza. Tal como nos [E o bom senso, a razão que tudo faz:

debates em torno da " moral natural" ou ôa "religiâo natura)", Virtude, gên:o, espírito, talento e gosto .

a idéia de natureza tem, no domínio das teoria s estéticas, uma O que é virtude? razão posta em prática :

significação mais funci onal do que substancial. A norma e o Talento? razão produzida com brilho;

modelo que ela propõe não se encontram de imediato numa Espírito? razão que &utilmente se exprime.

categoria de objetos mss no exercício livre e seguro de cerlas O gostO apenas é bom senso delicado,

raculdades cognitivas. Pode-se aceitar " naturezs " como sinô­ E o gênio é a razão sublime.]

nimo de "razão";'l tudo vem da natureza, tudo lhe pertence.


do que não é o produo rugaz do instante , o fruto do humor Mas seria coraeter um grave equívoco a respeito do sentido
ou do artificio , mas funda -se, pelo contrário. nas lei s de bron­ dessa redução do "gênio" e do "goslO" ao bom senso se ape­
ze da ordem eterna . Esse Fundamento é o mesmo para aquilo nas se visse aí um elogio, ume glorüicação do "senso comum".
a que chamamos "beleza" e para o que chamamos " verdade". A teoria do c1assicismc francês nada tem a ver com uma (j­
A partir do momento em que atingimos a camada originaJ da losofi a qualquer do common sense, porquanto não se apóia no
criação inspirada pela raü o, deixamos de poder crer num a uso cotidiano e banal do entendimento mas nas faculdad es su­
lIÍ1uação particular e excepcional do belo. A "exceciio". como premas da razão científica. Pelas mesmas razócs que a mnte­
negação da lei, não pode ser bela nem verdadeira: "Rien n'est nuHica e a física do século XVIII , ela visa ao ideal de rigor
beau que le vrai" [Só o verdadeiro é belol. Verdade e beleza , que constitui o correlato necessário e a condição indispensável
razão e natureza são apenas expn:ssõe$ diversas da mesma de sua exigência de universalidade. Portanto, enconlr:..mos $Cm­
coisa: da ordem única e inviolável do ser que se descobre por pre uma harmonia profunda , até uma coincidênci'l perfeita
inteiro, tanto no conhecimento da natureza como na obra de entre os ideais científicos e os ideais artísticos dessa épOCa ,
arte. O artista só pode rivalizar com as criações da natureza pois a teoria estética não quer ou tra coisa senno adotar oca·
e insuflar em suas obras uma vida ve rdadeira se se compene­ minha já int~iramente aberto pelas matemáticas e pela {{sica .

374 375
Ao aliceryar toda 11 clencia da natureza na geometria pura , supremo e essenci:!.! ::!:: :oda a crítica filosófica. Bem entendido.
parecia que Descartcs preparara um novo triunfo para o c0­ é impossível rechaçar totalmente o concurso da imaginação: ()
nhecimen to intuitivo puro. Com deito, segundo a sua doutrina , conhecimento aí tem seu primeiro impulso e seu ponto dc
todo ser, a fim de ser clara e distintamente pensado. de ser partida. Mas o pior erro. o caminho mais perigosamente errôneo
apreendido cm seu conceito puro, deve ser submetido primei ro que ameaça o conhecimento e contra O qual a crítica deve
às leis da intuição espacial. transposto paro " figuru". Essa es­ adverti·lo, consiste em aceitar por fim esse começo do saber,
pécie de construção e de representação figurativa é ensinada tomá-lo por seu verdadeiro sentido e telos. O conhecimento
expressamente por Descartes como o método fund amental de só poderia atingir seu fim abandonando seus começos, ultra­
todo conhecimento nas Reguloe ad directionem ingcllii. Mas passando-os com uma clara consciência radonal. A própria in­
é só na aparência que ele afirma assim e justirica o primado tuição pura autoriza e e ~ge essa ultrapassagem. uma " trans·
da intuição sobre o pensamento puro, uma vez que logo acres­ cendénda" desse modo: o encaminhamento do pensamento
centa pertenccr o caráter pummente intuitivo à natureza das conduz da ex tensão senslvel, tal como se apresenta nos objetos
figuras geométricos mas não à do mltodo geométrico . E quanto físicos, a essa "extensão inteligível " (inlelligiblen Ausdehnung)
a esse método, faz todo o possível por libertá-lo dos li mit~s que é a única a fundamen tar as matemáticas como ciência
da intuição e torná-lo independente das sujeições da "imagi­ exara .4 E devemos considerar igualmente o mundo corporal por
nação"_ Esse esforço fiJ0s6fico produziu a geometria anaHtica , in termédio da extensão inteligível se que r~mos tornâ-lo acesslvel
cuja tarefa própria e essencial foi descobrir o procedimento ao conhecimcnto, se queremos verda deiramente po.:nctrá-Io com
graças ao qual podem-se representar todas as relações intuitivas a luz da razão. A essa luz: ele despoja-se de todas as suas pro·
entre fi guras sob oi!. {arma de relações numéricas rigorosas que priedades e c8ra<:teristicas puramente sensíveis, que são rejei­
as determinem exaustivamente. ê assim que Del:icsrtes reduz a tadas do domínio da verdade para o da aparência subjetiva . O
"matéria" à "ex tensão", o corpo físico à pura espacialidadei que o objeto conserva como sua natureza autêntica e verdadeira
este, porim, não está sujeito, do ponto de vista do seu conhe­ não é o que ele oferece de si mesmo à intuição direta , 110 pri­
cimento, às determinações da sensibilidade e da "imaginação ", meiro olhar, mas, pelo con trário. certas relações puras que cle
mas às do entendimento purO, às determinações da lógica e da expressa em si mesmo e que se relacionam com regras rigorosas
aritmética. 3 Essa crftica da sensibilidade e da imaginação em­ e universrus. Essas regras, que tratam menos de objetos singu­
preendida por Descartes foi logo retomadu c ampliada por Ma­ lares do que de relações c proporções universais, fornecem a
lebranche. Toda a primeira parte da sua principal obra , Recller­ todo o ser SUIt estrutura corpórea , ou seja, a norma da qual cle
c:he de la vérité, é dedicllda a essa tarefa. Uma vez mais, a ima­ não pode afastar-se e que não pode abandonar sem perder logo
ginação, longe de apresen tar-se como um dos caminhos da ver­ o seu próprio caráter enquanto ser, cnqllllnto verdade objetiva .
dade, é antes a fonte de todns as ilusões a que está exposto A estética clássica é imitada, tr:lço por traço_ dessa teoria
o espírito humano, não só no dornfnio das ciências da natureza ffsica e matemát ica. Ela encontrava-sc. evidentemcnte, para rea­
mas também no do conhecimento moral e metafísico. Controlar a lizar sua conscientização intelectual , dian te de urna nova e mais
imaginação, freá-l a e regê·la conscientemente, tal é o objetivo diHcil tarefa, visto que, a despeito de todas as limitaçõcs e

376 377
restrições de que a "imaginação" tinha sido objeto no dominio A fórmuia conserva aqui toda a sua força: o verd adeiro poctii
do pu ro conhecimento, teria sido deveras contestável e parado­ deve nascer poeta. Mas o que vale a respei to do poeta nào vale
xal interditar· lhe de início o acesso ao limia r da teoria da arte. necessariamente pata a poesia lato semu . Pois urna coisa é o
Semelhante ostracismo seria, na verdâde, equivalente a uma impulso que susci ta o processo criador, que o sustenta inces­
total negação da arle. Uma tal revolução na contemplação do santeme nte e lhe propjcia o pleno desenvolvime nto. e outra coisa
objeto de arle não destruiria esse mesmo objeto e não o desp<>­ muito di.ferente é a obra que é o fruto desse impulso. Uma obra
jaria do seu verd<J deiro sentido? Com efeito, a teor ia clássica, digna desse nome, c ria tura autÔnoma possuindo verdade e per·
por mais nitidamente que se recusasse a basear a arte na ima· fei ção objetiva, deve despojar-se, em sua. pura essência e em
ginação, não fi cou cega, de mane ira nen huma . para a espec ifi­ sua consistência, das forç as subjetivas que eram indispensáve is
cidade da fantasia, do imaginário, nem insensível aos seus atra· à sua gênese. ~ então possível e necessário cortar toclas as pon­
tivas e à sua magia . Já a t radição, a veneração da Antiguidade tes que a reconduziriam aO mundo onde se forjam as ficções ,
impunham desde o começo determinados limites. Essa tradição porquanto a lei que governa a obra de arte como tal náo é um
exigia, para que a obra de arte concretize·se. a uni ão de uma produto da imagi nação, é lima lei efetiva, que o artista não tem
severa form ação prá tica e de uma disposição inata, de um que inventar mas que descobrir. que ele deve ir buscar à natu·
ingenium que não se pode adquirir mas deve esta r presente e reza das coisas. O total dessas leis efetivas não é outro, segundo
a tivo desde a origem , como dom da na tureza. Ego nec studium Boileeu , senão a " razão": é nesse sentido que ele ordena ao
sine dillite lIerw nec rude quid possU, llideo ingen;um : olterius poetD que âme a razão . O poeta não deve buscar llem a pompa
sic attera poseit opem rest ai con;urat amice. E com uma parlÍ­ exterior nem o falso ornamento, deve contentar-se com o que
fra se dessas pa!uvras de Horácio que se abre a Arle poética de o próprio objeto fornece-Ihc. Deve aceitá·lo em sua $imples ver·
Boileau : dade e pe rsuadir-se, além disso, de que cumpre assim todos os
seus deveres a serv iço supremo da belC"l;lI:. Pois a beleza só se
e'es! elt vain ql/ 'UU Pamasse un téméraire au(eur
deixa abordar pelo caminho da verdade, e esse cam inho exige
Pense de l'ort des lIers atteindre la nau/eur:
que não se fique no aspecto exterior das coisas, na lI11pressão
S'iI ne unt poim du deI l'inlluence secrete,
gue elas ca usam nos sen tidos e na sensi bilidade, mas que se
Si son aslre en naissant ne l'a lorm4 ~/ e.
leve cuidadosamente em conta o percurso entre a "essência" c
Dans son gélJje étroit il csl loujours captil.
a "aparência". Não poderfamos conhecer o objeto da natureza
Paur lui P/iébus n! sourd , ef Pégase eS I ré/i!.
pelo que é sem operar uma seleção severa en tre os fcnõmenos
[~
em vão que no Parnaso um temerário autor
que nos assediam incessantemente, sem distinguir entre o variá·
Pensa da arte dos versos atingir 8 altura:
vel e o constante, entre o contingente e o necessário, entre o
Se ele nâo sente do céu a influência secreta,
que só tem valor para nós e o que está fundamentad o na própria
Se seu astro ao na3cer não o formou poeta,
coisa ; o mesmo pode ser dito no tocante ao objeto de arte. Ele
De seu gênio es cas~ será sempre cativo.
não é mais dado e conhecido no absoluto, devendo ser deter­
Para ele Febo é surdo e Pégaso esquivo.]
minado e apreendido por um processo seletivo da mesma ordem.

378 379
A estética clássica deixou·se desencaminhar - por imitadores Part-tout se monlre aux )'eux, el va saisir te coeu r;

de segunda ordem, é verdade, não por espiritos verdadeiramente Que te bien el le mal y sonj pri~s au ;uste;

criadores - até querer estabelecer regras determinadas para a Que jamais un faquin n')' tini un rang augusle;

produção de obras de arte. Mas se pretendeu dirigir esse pro­ fi que mon coeur, touiours conduisanl mon espril,

cesso seletivo, racional izá·lo e controlá·lo em função de critérios Ne dit rien aux lecteurs, qu'à soi-méme i1 n'aíl dit o

lixos, não imaginou sequer ensinar di retamen te a verdade artís· Ma pensée au grand iour por-fout s'otlre et s'expose

tica: ela acreditava poder preservar do erro e estabelecer os EI mon vers, bien ou mal. dit touiours qllelqlle chose.~

critérios do erro. Mais uma vez revela-se o seu parentesco com


(S6 o belo t verdadeiro. só o verdadeiro é Agradável.
a doutrina cartesiana do conhecimento, 80 reger-se pelo pri nci­
Ele deve reinar em toda parte. e mesmo na fábu la;
pio metódico segundo o qual s6 podemos atingi r a certeza filo­
De toda ficção a hábil falsidade
sófica por uma via mediata. ou seja, inspecionando as diversas
Só tende a fazer b rilhar aos olhos a verdade .
fontes de erro, H fi m de superá-Ia~ e de elimi ná-Ias. t nesse se n­
Sabe.s por que meus ve rsos são lidos nas províncias?
tido que, para Boileau. a beleza da expressão poética coincide
São procurados pelo povo e recebidos pelos pdneipes?
com a sua "exatidão" (Richtigkeit); e esse conceito de " ex.ati­
Não é porque seus sons, agradáveis, numerosos,
dão" é cemral em toda 8 sua estética . Ele combate tanto o bu r­
Sejam sempre igualmente favoráveis aO ouvidoi
lesco quanto o esUl0 precioso e afetado porque ambos se afas­
Que em mai s de um lugar o sentido não estorve a medida
tam, em sentidos diferentes, desse ideal. E o méri to supremo,
E uma palav ra qualquer não afronte a ccsura :
senão o único, que Boileau ambiciona para a sua própria poesia
Mas é que neles a verdade, triunfando da mentira,
é que ela se mantenha fiel a esse princfpio, que não impressione
Por toda parte salta aos olhos e vai conquistar o coração ;
o leitor por encantos superficiais mas pela simples clareza do
Que O bem c o mal aí são avaliados com eqüidode ;
pensamento, pela economia e escolha refletida da expressão:
Que nunca um patife aí ocupa um lugar augusto;
E que meu coração, guiando sempre o meu espírito ,
Rien n'esl beau que te vrai, le vrai seul est aimable.
Nada diz aos leitores q ue a si mesmo já não tenha dito.
II doU régner parHaut, et même dans la /able;
Ofereço e exponho o que penso por toda parle, à luz do dia .
De taute fictíon l'adroite /ausseté
E meus versos, bem ou mal, dizem sempre alguma coisa,)
Ne tend qu 'à faire aur yeux briller la vérité.
Sais-tu pourquai mcs vers 50nl lus dons les pro"inces?
A questão fundamental e central da estética clássica, a
Sonl recherchés da peuple, et reçus chez les princes? questiio da relação sistemática entre o "geral" e o "particular".
Ce n'est pas que (eurs sons, agréables, nombreux, entre a regra e a exceção, apresenta-se aqui sob a sua verdadeinl
Sofem tou;ours lt ('oreiffe égalemcnl Ileureux; luz. Nunca se deix.ou de objetar à estética clássica que nlio poso
Qu'en plus d'un fieu le sens /f'y gêne la mesure sufa o menor sentido do individual, que procurava no gerl\1
Ei qu'un 11101 que/que/ois 'l ')' brave la c~s ure: toda a verdade e toda a beleza, deixando que ambas se perdes­
Mais c'est qu'en eux le "rai , du menso/1gc l'ainquellr. sem em puras abstrações . Taine, que sustenta essa tese, fez de!:1

380 381
o ponto de partida de uma crítica que não visa apenas à estética será então estabelecida e solidamente fundada por um uutro
dos séculos XVII e XVII I mas rechaça , ao mesmo tempo, todo caminho. Pura toda fu nção dada, o quociente difel-endul " t)IC
o esprrito do classicismo e pretende arrebat ar-lhe todo o seu senta-nas a " natureza" dessa função, toda a trajetória tltI. curva
brilho de empréstimo, desvendar-lhe a impotência e a pobreza. que lhe eorresponde, com a máxima precisão e tão int..:ligivd·
e evidente que um exame histórico e um julgamen to scm pre­ mente quanto possível. Todos os detalhes que a intuiçiio ti"er
venções deverão orientar-se num .sentido mui to diferentc. Em a possibilidade de descobrir nessa curva af são condensados.
vez de servir-se da estética do classicismo pata manifestar a in­ numa expressão conccptua! única, onde se concenlram os raios
sufjciência e a frag ilidade interna do " espírito clássico", pro­ da evidênci a. Dessa Córmula que coloca à nossa diSpOsição ,I
curar-se-á esse espírito, pelo con trário, em seus pontos fon es, e análise do infinito podemos infer ir imediatamente todas as pro­
o esforço será no sentido de o compreender e interpre tar através priedades da curva e todas as suas ca racterísticas. de um modo
de suas realizações mais aJlas e verdadeiramente centrais. Uma rigorosamente dedutivo. A imuição como tal não poderia chegar
vez mais, impõe-se o paralelismo entre a elaboração da estética a essa forma de un ificação. P rtt~nde ela representar-se um con­
e o desenvolvimento que a lógica e as mateml;hicas conheceram ceito geométrico dado, O conceito de elipse. por ex.emplo? Não
nos séculos XVII e XVIII. Considera Descartes que o único lhe resta mais do que passar em revista e comparar entre si as
progresso verdadeiramente decisivo que realizou em relação ao inúmeras figurações possíveis desse conceito. Dessa comparação
método geométrico dos antigos foi o de ter sido qUem primeiro destaca-se finalmente uma certa " imagem" da elipse que está
dotou .11 geometria de uma independência e de uma suficif ncla muito longe de constitui r um objeto realmente simples e homo­
racionais autêntices. A geometria antiga é, sem dúvida nenhuma, gêneo. Para uma "consideraçãO" pura e simples, com efeito.
uma escola incomparável do espírito, mas não pode _ como segundo o habifu$ concreto, as classes particulares de elipses
Descartes moslnl ao longo do Discurso do mltodo _ aguçar man têm·se nitidamente diferentes. Há as que se aprox.imam da
O espírito sem ocupar incessante e simultaneamente a imagina­ forma circular; há ou lras, estreitas e alongadas. que se afastam
ção at(! exauri-Ia., enfim. por ocupá-Ia em toda sorte de fi guras muito dessa forma. e que, no plano da figuração puramente in­
e problemas particulares. A busca não pode, nesse coso, evitar tuitiva . formam com ela um perfeito contraste. Entreta nto, o
perder-se indefin.idameote na consideração de Casos especiais e conceito geométrico, tal como a anóli se apresenta-o e desenvol·
ser obrigada a inventar e a efetuar uma demonstração especial Ye-O , prova que todas essas diferenças nada têm a ver com 8
para cada grupo de casos específicos. A nova análise cartesiana elipse, que não dependem da sua "natureza" . Do ponto de vista
vai pôr cobro a esses obstáculos: ela cont(!m regras universais do conceito, não cabe procurar essa natureza em toda essa VII­
e desenvolve métodos válidos I!m todos os casos, implicando a riedade ilimitada de particulariuç5es intuitivas da forma elíp­
solução dos casos especiais e sua determ.inação a priori. E mais tica quando ela reside numa há de cotulrução universal: e essa
um progresso na mesma direção se rá obüdo quando as mate­ lei nos I! Cornecida sob sua Corma rigorosamente exala na equa·
máticas transpuserem a fronteira da geometria analítica de Des. ção da elipse. O pensamento matemático apreende, enfim , U
cartes para o cálculo infinitesima l de Leibniz e o ~ lculo dos verdadeira "unidade na multiplicidade". Não pretende negar li.
fluxos newlonianos. A dominação do particular pelo universa l diversidede como tal nem recusá· la , mas, pelo contrário, com­

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preendê-Ia e fund amentá-Ia. A f6rmul J da função sob li sua for· lar-se sem ferir a própria "natureza " e perder seus tÍ!ulo~ !'t
roa geral SÓ contém. bem entendido, a l\.:gra uni versal que pennite verdade arUstíca. Boileau procura destacar essas leis i mp[icita~.
determinar a interdependência das variáveis mas é sempre pos­ baseadas na natureza dos diversos gêneros poéticos, respe itadas
sfveJ reportar-se da fórmula geral para uma figura particular incon scientemente desde sempre na prática da arle, a fim de
qualquer caracterlzadtl , como tal. po r grande7.as determinadas impô-Ias ao conhecimento claro e distinto. Quer enunciá-Ias e
que são as sua s constames individu ais. Toda determinação dessas fonnu l á· l a~ em termos explícitos, à maneira da análise matemá·
grandezas - um comprimento de:crminado, por exemplo, que tica, 8 qual permite uma tal formulação, uma expressão do
atribuímos ao pequeno eixo da elipse - redunda num novo conteúdo próprio e da estrutura fu ndamental correspondente a
caso particula r; mas lodos ess(_~ casos particulares "~ão" , na tal ou tal classe de figura s. Por isso é que o próprio gênero
realidade, o mesmo, na medida em que todos eles têm, para o não é para ele algo que o arti sta deveria elaborar, mui to menos
geômetra, l!ma só e mesma signifkação. I! um mesmo senlido geo­ um meio e um instrumento de criação de que poderia, a seu bel­
métrico, um ser idêntico e uma verdade idêntica da elipse que prazer, apossar-se ou desfazer·se, mas. pelo contrário, algo dado
se escondem para nós na massa heterogênea das figuras parti­ como tal e intrinsecamente necessário. Os gêneros e as espécies
culares e que a fórm ula analítica caracteriza e, de certa maneira, de arte não se comporIam, nesse capítulo, de um modo diferente
desvenda em sua própria essência. das coisas da natureza: possuem igualmente imutabilidade, esta·
Foi na imitação dessa "unidade na multiplicidade " das ma· bilida de, forma e destinação específicas, nada podendo ser-lhes
temáticas que se constituiu a "unidade na multiplicidade" esté· acrescentado ou rctirlHJo. O esteta não é mais o legislador da
tica, exigida pela teoria clássica. E um erro acreditar que o arte que o matemático e o ffsico O são da natureza. Tanto uns
princípio da unidade na multiplicidade como tal é in com patfvel quanto outros não ordenam nem governam, apenas estabele­
com o espírito do Classicismo, que nesse princípio exprime-se o cem o que "é". E não constitu i obstáculo nenhum para o gênio
mais virulento antic1assicismo.r. Pois também no domínio da arte estar Ugado e, de certo modo, submetido a essa realidade obje·
não se trata, para o espírito clássico. de uma simples negação tiva mas, pelo contrário , é uma garantia contra o arbitrário c
da multiplicidade, de sua supressão, de sua extinção, mas da a certeza de elevar·se à única forma possível e verdadeira de
forma, da organizaçiio positiva e sintética a dar-lhe. Na Arte liberdade urtística. Mesmo para o gênio, existem certos limites
poética, Boileau esforça-se por estabelecer uma teoria geral dos intransponíveis, tanto do lado dos assuntos artísticos quanto do
gêneros poéticos, tal como o geômetra uma teoria geral das cur­ lado dos gêneros artísticos : está fora de cogitação tratar não imo
ViIS . Quer in stituir o "possível " fi partir da multiplicidade de porta que assunto em não imporla que gênero; a própria es·
objetos reais. tal como o matemático quer perceber o círculo, Irutura do gênero já efetua por si mesma uma certa seleção nas
a elipse, a parábola, em sua "possibilidade" , a saber, na lei de matérias a tra ta r, excluindo tudo o que não se presta ao único
construção que lhes serve de base. Tragédia e comédia. elegia modo de tratamento que ela aceita, O artista deve , portanto, pro­
e epopéia, sátira e epigrama, todos esses gêneros possuem sua curar alhtltes a sua !iberdade de movimento: não no con teúdo
própria lei de cons trução bem-determinada, que nen huma cria· como tal, o qual. em considerável medida, é fixado e organizado
ção individual está :lutorizoda II violar, da qual não pode afas· de an temão, mas na direção da expressão e da apresentação. I! so­

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mente na expressão que se faz conhecer o que é comum.:nt\! defiO perfeita e univoca. E. esse o seu objetivo; mas desse modo é
minado a "origina lidade'",r e aí que o artista vai empregar suas introduzida uma limitação ime nep..te . A teoria cientffica pode
faculdades ind ivtduais: entre as diversas expressões possíveis de perfeitamente designar. sem dúvida . um SÓ e mesmo objeto por
°
um mesmo assunto, artista verdadeiro dará sempre sua prefe­ diversos símbolos - o geômetra . por exemplo . pode exprimi!'
rê.ncia àquela que suplanta as outras em segu ram;.:! e fi deli dade. a equação de uma curva primeiro em coorden8das cartesianas.
em clareza e concisão. Contudo, ele não va i prOCurar <l novidade depois em coordenadas polares. Mas umo dessas expressões ga­
pela novidade e a todo preço mas, simplesmente. aqueLe dose de nhará, fina lmente. em perfeição relativa porq\õe conduz, para
novidade que convier para satisfaze r a necessidade de simplicida­ o objeto em questão, à rórmula mais sim ples de rodas. Essa
de . concisão, brevidade convincente, numa medida jamais alcan· mesma "simplicidade" é elevada pela estétic.a clássica ao stutus
çada ainda . Um pensamento novo, diz Boileau a certa altura, não de um ideal: a simplicidade vale como corolário da verdadeira
é, absolutamente, um pensamento que jamais tenha sido pensa­ beleza. tal como esta é o corolário e o critério da verdade .
do: " €, pelo contrório, um pensamento que deve ter ocorrido a Os pontos fraCQs dessa teo ria sâo bem visíveis. Contudo.
todos mas que alguém fo i o primeiro a tomar n iniciativa de não foi tanto às deficiências de princípios que o desenvolvi­
expressá-lo." E verdade que nessa Córmula esconde-se um nOvo mento ulterior da estética ficou inicialmente associado. As de­
obstáculo : uma vez alcançada essa adequação perfeita entre fi ciências de execução, aquelas que apareceram quando da
o assu nto e a expressão, a arte chegou a uma meta que já não aplicação dos princípios clássicos à consideração de gêneros
há a necessidade nem a possibilidade de ultrapassar. O pro­ artísticos e de obras particulares. pesaram muito mais . Por
gresso não é um progre~'sus in indefinitum, dctendo-se num muito paradoxaJ que essa idéia possa parecer, pode·se afirma r
certo nível de perfeição. Toda perfeição arUstica significa, ao a esse propósitO que uma àas fraquezas esse nciais da doutrina
mesmo tempo, um non plus ultra, um limite da arte. O século clássica não é ter levado longe dema is a abstração mas não
de Luis XIV, de Voltaire, é um novo exemplo dessa coioci­ ter perseverado nela com suficiente CQnstância . Com efeito .
dência clássica. em certas fonuas de arte, da perfeição inte.rior um pouco por toda parte, misturam-se, no estabeleci mento e
e do fim dos tempos. Também aq\õi se manifeste a analogia defesa da teoria , motivações que, longe de serem logicamente
que li teoria admite entre os problemas artísticos e científicos ioleridas de seus princípios gerais e de mas pressuposiçõs, pro­
e que ela tenta desenvolver em detalhe. Cond illac via o elo vêm do contexto particuJar dessa problemática. da estrulUl'.11
que une a arte e a ciência em sua relação comum com a lin­ inte!ectual histórica do século XV II. Essas motivações i05i·
guagem. São .dois níveis e duas direções diferentes de uma nuem-se no trabalho dos mais eminentes teóricos, à sua revclia.
só e mesma função intelectual que se exprime na criação e uso e levam·nos a afalO tar·se de seus objetivos puramente especu la·
de si"ois. A an e, assim como a ciência, coloca os "sh,ais" dos tivos. A ilustração :nais clara dessa situação encontra-se na
objetos 00 :ugar dos objetos . e s6 se distingue dela pelo uso CQnttovérsia que com lanla freqüência passou por ser o próprio
que fa z dos mesmos.! A van tagem dos sinllls científicos, justa­ cerne de toda a estética clássica, porquanto parece que essa
mente. sobre os da linguagem usual, sobre as 5i.mpies palavras, estética só foi concretamente testada a propósito da doutrina
é serem muito melhor definidos, tenderem para 'Jma expressão das tr~s unidades e que o seu destino' filosófiCQ e teórico lhe

386 lS7
está vinculado. E. no entanto, ·.-.-;.;~;;::a-se justamente que essa a própria estética clássica, de acordo com a sua tendéncia ge­
dout rina não foi criada pela estéti ca do Classicismo, que a pre­ rai, sempre nos preveniu, justamente, contra a confusão entre
cedeu, pelo contrário, e viu-se simplesmente imbricada no siso o q ue é verdadeiro e válido "ptla natureza da coisa" e o que
tema.' E essa inserção jamais produziu uma justificação verda. parece válido a um individuo, do seu ponto de vista particulílr.
deiramente convincente. Ao anunciar a doutrina das unidades, Ela exigia do indivíduo, enquanto sujeito estético, que esque·
Boileau fala, sem dúvida, como legislador da razão e em no­ cesse o seu temperamen to particular, a So.1 "idiossincrasia",
me da razão.
para deixar falar apenas a pura necessidade do objeto. Não
é uma violação dessa ex igência. uma contestação do caráter
Mais nous, que la raison à se:> rcgles engage, estritamente "impessoal" da razão. tal como é sempre afiro
Nous lIoulons qu'alJcc art l'actiO/l se ménage: mado pelos teóricos do Classicismo, usar como medida do dra·
Qu'en /In fieu, qu 'clt UlI jour, Iln seul fait accompU ma as condições aleatórias em que se encontra o espectador
Tienlle jusqu'd la /i/l te Ihéâ/re remptj.'~ e clevá·las à categoria de norma da criação? E esse traço não
[Mas nós, que a razão às suas regralj: obriga,
é único: é sim plesmente o sintoma mais destacado desse deslo­
Queremos que com arte a ação se consiga;
camente característico das motivações que encontra mos por
Que num lugar, que um dia, um só fato consumado
toda parte, até mesmo nos adeptos do classicismo estrito. To­
Manten ha até o fi m O teatro lotado.]
dos se esforçam pela sim plicidade, exatidão, pela simples "na·
turalidade" da expressão, mas vão buscar a medida do na­
Essa uplicação da doutrina, medida pelo cinone da pura tural, sem a menor hesitação ou escrúpu lo, ao mundo em que
lógica , esconde, porém, uma evidente sub-repção: o ideal da vivem, baseiam-se no que lhes fornecem o ambiente imediato, o
razão que ele susten ta em todas as oportunidades é aqui subs. hábito e a tradição. Aqui , de súbito, o poder de abstração de
tituído por 80ileau por uma medida puramente empírica, Nt:sse que estão dotados os fundado res da doutrina clássica começa
ponto, a estética clássica afasta·se nitidamente da sua concepção a faltar-lhes: em vez da renexão crítica sobrevém uma credu­
científica da " razão universal" a fim de enveredar pelo cami. lidade ingênua, uma veneração por todos os dados puramente
nho de uma filosofia do " senso comum". Em vez da verdadc, empíricos da cultura intelectual e art1stica do século XV II. Esse
ela recorre à verossimilhança (Wahrschein lichkeit) e ainda num fascínio pesa tanto mais sobre aqueles pensadores que disso
sentjdo est rilO que tem somente um valor de facto . Uma tal estiverem menos conscientes. Boi lcau não postula somente a
valorização do simples rato é, contudo, rundamentalmente in. equivalência da "natureza" e da "raUio": cle chega mesmo 11
compa tlvel com os verdadeiros c lDais profundos princípios da identificar a natureza propriamen te dita com um certo estado
teoria clássica. !! evidcn te que não se trata de um argumento de civilização (Gesittung). Só é possível chegar a ess..: eswdo
satisratório par.. justi Cicar a necessidade absoluta da un idade cultivando as formas que a vida social criou e levou (l um tão
de lugnr e de tempo repo L·taNie ao espectador, para quem seria alto grau de refinamento . Doravante. li razão e a natureza, n
absurdo ver desrHar no transcurso de algumas horas aconte. corte e a cidade são elevados à categoria de modelo e de idea l
\.i:llentos que preenchem um ano ou uma dezena de anos. Pois estético. "Etudiez {a COur e/ contwisser la vUle; {'une e/ ['aLi/fi'

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~'sf tou;ours en modelES fertile. " [Estudai a corte e conhecei E é exatamente nesse ponto que c-.J.mpre ver a origem do
.1 cidade; u:oa e outra são sempre féneis em modelos.] Sub· movimento de idéias que culminará com a à issolução e derrota
rcpticiamente, as conveniências insinuam-se assim no lugar da das leo:ias do Classicismo. Sem düvida , na primeira metade do
oatureza, as convenções no lugar da verda~e . O tealro . pri­ ~éc ulo XVIII, es ~as teorias ainda dominam quase sem contesta­
mciro, onde se revelam a {arma e a flor da mais nobrc socia­ ção. Volt aire é um espírito penetrante e crítico demais para
bilidade, não poderia afastar-se desse quadro. Em nenhuma par­ não se ape rceber de algumas fr aquezas nelas existentes, mas,
te os preceitos da razão são mais severos e em nenhuma parle . por o utro lado, tem uma admiração enorme pelo " Século de
°
de resto , poe t.!: deve observá-los com tanto rigor e escrúpul o. Luís XI V " , do qu al veio a ser o primeiro historiógrafo, admi­
no receio de contrariar os fins essenciais do fea tro. I! por isso ração bas tante para não se subtrair às suas estritas exigências
que Boileau situa a: a exatidao da regra a que a poesia dramá­ em matéria de gosto. Entretanto . em seus acessos de cepticismo
tica deve submeter-se, no mesmo plano que a sua estreiteza, ao e de pessim ismo, não deixa de criticar a cult ura do seu tempo
ponto de tratar eXc:tidão e estreiteza quase como sinônimos : e procure, no conto O in gênuo (1767) , opor a essa cultu ra
corromp ida o espelho da nalUreza, a simplicidade e a franqueza
Dans un roman !rivo/e aisêmen! lout s'excuse; do pensamento, a inocência dos costumes. Mas justamente a
C'es f asse: qu'en couran! la fie/ion am /lse; maneira como ele apresenta o seu herói mostra com toda clareza
T rop de rigueur alors seroU hors de saisol1 : como ele é devedor eo seu século desse mesmo ideal da natu­
Mais la scime demande une exacte raiWIl reza, como está inteiramente comprometido com esse ideal: o
L'é/ra;te bienséance y veut é/re gardée.J1 rilho da oaturez.a de quem ele nos quer fazer o retrato está muito
{Num romance frívolo tudo é facil mente desculpado;
longe, com efeito, de toda rudeza e de toda barbárie. Não só
Basta que, ao desdobrar-se. nos di vina a fk:ç iio;
ele mostra a maior delicadeza e respeito pela civilização mas
Rigor demais se ria então deslocado:
vai ao pon to de falar a língua da galanteria. Voltaire, portanto,
Mas o palco exige uma exa ta razãc
enquanto esteta, considera que o gosto refinado, autêntico . ba­
O estrei to decoro aí quer ser guardado.]
seia-se no instinto de sociabilidade do homem, o qual só pode
originar-se - é essa a tese do Ensaio sobre o goslO - no âm­
POl" essa última equivalência, a dou trina dussica converteu bito d a vida social. Antes de Rousseau , a cultura francesa sete­
i:lalmente seus ideais estéticos em certos ideais sociológicos aos centista ja mais fi zera uma distinção rigorosa entre o social c o
quais ela os vinculou. " Os diversos gêneros poéticos er:'lrn tra­ natural. Rende-se preito à natureza, devota-se-lhe uma pai.xão
tados " - diz Goethe nos Comentários à sua tradução do r0­ entusi ástica, mas todos os traços do convencionalismo são intro·
mance O sobrinho de Rameuu [de Diderot) - " como outras duzidos no quadro que se faz da belfe nature. Diderot foi o
tantas sociedades nas quais convém obedecer a um comporla­ primeiro na França que ousou abalar essa convenção . Em suas
mento particul ar r... ] O fra ncês não teme falar de conveniências obras manifesta-se um novo palhos revolucionário mas, em sua
ao julga r produtos do espírito, palav ra que , a bem di zer, só ação imediata de crítica e de escritor , em particular na sua obra
pede representar o que se raz em sociedade." U -:le poeta dramático, não se atreve mais do que os outros aram

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pr.r os vínculos. Lessing foi o único a dar O passo yerdadeira. obra, são regras universais, rigorosamente intempornis. A d c~·
mente decisivo, na Dramaturgia de Hamburs o, e a extrair daí razão tem uma " história", não a razão; esta continua sendo o
as últimas conseqüências. Denuncia a confusão indefensável e que sempre foi desde o começo e o que será até o fim dos
fun esta que se produzi.ra na França, no dram a e na teoria dra­ tempos. Mas eis que, de súbito, além das conseqüências que a
mática, entre as exigências da pura "razão" estética e as ex i. estética clássica daí extrafra, as premissas também claudicaram.
gências puromente convencionais, ligadas à época e sem valor Com o surgimento de novas idé ias científicas e (ilosóficas. as­
geral . E procede a uma severa e inexorável seleção, excluindo sim como de novas exigências políticas e sociais, sente-sc uma
do campo das normas estéticas do classicismo tudo o que tem evolução dos padrões estéticos. Os novos tempos exigem, de
sua origem não na verdade e na natureza mas somente nas ilu. um modo cada vez mais enérgico e consciente, uma nova arte.
sões de que toda a época, por brilhante quc seja, faz alarde. Ao patérico e ao culto do herói da . tragédia francesa clássica,
Essas ilusões não podem prod uzir nenhuma forma artística ver. Diderot opõe uma nova sensibilidade social e, concomitante·
dadeira nem nenhum caráter dramático autêntico. Só a varinha mente, estética; defen de a causa de um novo gênero poético, a
mágica do gênio poético, jamais as regras de conveniência de chamada "tragédie domestique". E a crítica estética do século
uma escola estética, pode lograr êxito numa tal criação: "Quan. XVIII já estava pronta para integrar tais experiências, reconhe·
do a pompa e a etiqueta convertem os homens em máquinas, é ct·las e interpretá-Ias teoricamente. Dubos inaugurou o cami·
tarefa êlo poeto fa zer dessas máquinas homens de novo." nho com as suas Réflexions critiques sur la poésie e f la peinture.
A obra de Lessing tinha sido pteparada, sem dú vida, até Foi um dos primeiros a man ifestar interesse de especialista pelo
nos detalhes, pela estftica setect:Qti sta. A força de confu ndir os desenvolvimento de uma arte individualmente considerada e a
prindpios sociais e estéticos, segundo o erro cometido pela dou. revelar as causas desse desenvolvimento sem se ater apenas às
trina clássica, teria que acabar·se por tornar solidário , de ai. causas intelectuais ma s igualmente às causas na turais, climáti·
gum modo, o destino histórico de uns e outros. A pa rtir do cas e geográficas. A par das " causas morais", ele reserva um
instante em que não podiam mais sustentar·se diante de uma vasto campo de ação às " causas físicas". No domínio da esté·
crftica cada vez mais penetrante que denunciava seus pontos !ica pu ra , ele é assim o iniciador da teoria que, mais tarde,
fracos, esses princípios teriam fatalmente que ceder e acabar em sociologia e em ciência política, será brilhontemente susten­
por dissol ver-se. Dessa derrota, a estética do século XV III au­ tada por Montesquieu. Não importa que !IOlo e que tempo pro­
feriu um novo enriquecimento ao tomar plenamente consciência, duzem tal ou tal arte: /'I on omnis feri omnia tetlus. u Essa
por ocasião de um evento histórico concreto que lhe dizia perspectiva marca o abandono da fixi dez do esquema clássico.
diretamente respeito, do vínculo existente en tre a arte e o Pretende--se uma teoria que acolha a diversidade e a mobilidade
"espfr iro do tempo". A poética de Boileau era , como se viu . dos fenômenos estéticos, uma teoria que se veja nascer dessa
profundamel!te determinada pela sua época e, em suma, toda mesma multiplicidade. Em suma, a tendência é para passar das
impregnada dela, mas, na doutrina como tal, esse fato evidente simples fórmulas ao conhecimento da estrutura própria da cria­
nfio linha a menor probabilidade de exprimi r·se. As regras esta. ção artfstica, a qual, como se vê cada vez mais claramcnte,
belecidas por Boileau, no espírito do autor e na perspectiva da não se decifra na essência da obra de arle mas obriga a teoria

392 393
a inserir-se no processo da c ri ação artística a fim de o recons­ partes nessa época a psicologia e a teoria do conhccimclUo, 111
tituir mentalmente . procuranc!o a chave de todos os problemas que a metafísica 1>1'0­
meteca resolver sem jamais o conseguir. Se existe um domínio
onde se impõe tal abordagem do problema t O da estética, a qUIII,
o probleml do goslo e a eonvef$ão ao subjetivismo por sua própria essência, é am fenômeno puramente IH/mUI/O.
A mutação interna qu~ põe fim ao n:inado da doulrinil Toda espécie de "transçendência" está. por esse fa to, segundo
::lássica no âmbito da estética corresponde exatamente, no plano parece, cor.denada de antemão; nenhuma solução lógica ou me­
me todológico, à conversão que, no pensamento físico, foi con­ tafísica t pe nsávei mas so:ne r.le uma solução antropológica
sumadíl pela passagem de Descartes a Newton . E a mesma fi­ Sldclo semu. Psicologia e es tética ingressam, portan to, numo
nalidade que é perseguida, em ambos os casos, por cl'!minhos aswciação tão estreita que parecem, por um certo tempo, fund ir·
e proced ime ntos intelectuais diferentes. Tra ta-se de liberta r-se se U!IlR na outl'a : a passagem da psicologia para a problemá tica
do despotismo .absoluto da dedução, tra ta-se de dar luga r, ao II'anscendenta! , passager.'l essa que proporcionou fina lmente 1:1
lado dela e não contra ela, de maneira nenh uma , aos fatos Krul1 romper esses víp.culos, em nenhum outtO domínio foi mais
simples, aos fenOmenos, à observação d ireta. Não está em ques­ difícil de real izar ; em nen huma parte as d ifi cu ldades teóricas
tão, evidentemente, renunciar 00 apoio sob re princfpios mas, pesaram tanto quanto na área dos problemas estttioos funda­
oUl.J'oosim , elaborar os princípios em função dos fenômenos em mentais.
vez de subordinar os fenOmenos a princípios de rinidos, válidos t claro que o método psicológico, ao procurar na natureza
a prior; e fi udos de umo vez por todas. Assim, o método de humana a origem e o único fu ndamento do belo. nao pretende
explicação e de dedução tende cada vez ma is, também nesse em absoluto dar livre curso a um relativismo ilimitado, elevBr
ebmfnio, a ceder O lugar à pura descrição. U E essa descrição o sujeito individual à posição de um juiz da obra de arte cujas
n~o parte mai~ das obras de arte mas da consciência estética sentenças sejam absolutas e sem apelação. Ele ve., pelo contrário,
cuja natureza eIs quer. em primeiro luga r. reconhecer e derinir. uma espécie de sensus communis no gosto; a natureza e a pos­
Já não são ago!o OS gêneros artísticos que estão em causa, prin­ sibilidade de tal "senso comum" constitue m propriamente o
cipalr.l.ente, mas as atir...des artísticas: a impressão que causa a ponto de partida de sua problemática . Se a forma estética nor·
obra de e rle sobre aquele que a contempla e o julgamento no mativa que vigorava .1I té então está doravan te descartada, toda a
Ciua1 ele procu(a fixa r essa impressão para si mesmo e para espéde de regra não deve. porém . ser eliminada por tal motivo; a
os OUltoS . Essa tendência da estética visa sempre à "natureza-, estética não va i ser e:tlregue ao acaso e ao a rbitrário. A elimi­
tem·na por modelo que o artista deve esrorçar-se por alcança r nação do arbitrário, a descoberta de leis específicas da consciên­
e respeitar em todes os casos; mas o pr6prio conceito de natu­ cia estética constituem, peJo contrár io, a finalidade da estéticl!.
reza acaba de re-aliz.ar uma caracterfstica mutação semâ ntica. O enquanto ciência. Diderot e ncontrou te nnos justos e penetran­
fio cond utor deixou de se r, com efe ito. essa na/ura rerum à tes pa ra exprimir esse princípio fund amental no começo do seu
{IUal se vincul ava O objetivismo cstético pa ra ser agora a na tu­ Ensaio sobre a pintura. Se O gOSlo fosse apenas uma questãu
reza do homem: e&Sa na turcza à qual recorrem de todas as -Ie humN, donde p roviriam essas deliciosas emoções que ema

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oam do mais fundo do nosso eu de maneira tão súbita, invo­ ser rigorosamente definido, plenamente determinado em todas
lun tária e impetuosa, esses movimenlos da alma que profunda­ as suas características e deve conservar o sentido estabelecido
mente nos sacodem, que ampliam ou constrangem o nosso ser, pela definição ao longo de toda a série de fa ses do pensamento.
que nos arrancam lágrimas de júbilo ou de dor? Esses fenômenos Toda vacilação, toda obscuri dade e toda ambigü idade signi­
que cada um experimenta e vivencia em si mesmo não poderiam fi cam a morte do conceito lógíco-matemático, o qual só recebe
ser recusados por teorias abstratas nem abalados por argumen. seu sentido e seu valor próprios de sua exatidão, e que é tanto
tos cépticos. "Apoge SophiJto" - gritou Diderot _ "jamais
mais perfei to quanto melhor lograr realizar esse ideal. Em es·
persuadirás meu coração de que ele faz mal em agitar·se, nem tética. porém, é uma outra norma que prevalece. Não é diFícil
as minhas entranhas de que fazem mal em comover.se." II encontrar toda uma série de fen ômenos e.x pondo-se claramente,
Essa nova perspect iva metódica s6 pretende fundamentar acessíveis a toda observação imparcial e que , no entanto, es­
racionalmente o julgamento do gosto com reservas expreSS8S , tão tão distanciados da exati dão que esta não teria grande di­
se ainda assim não renunciar a isso in teirameme nem abando­ ficu ldade em destruf·los. Uma idéia estética nüo recebe seu va·
nar, de maneira nen huma, seus direitos à universalidade. Só está lar e seu encanto de su a exatidão e de sua cl areza mas da mul­
agora em questão uma determ inação mais exata dessa universa­ tiplicidade de relações que ela. condensa em seu seio. e csse
lidade assim como o modo segundo o qual sua validade pode encanto não se perde porque não se consegue dominar com o
ser assegurada . A dedução pura e o simples raciocínio revelam. olhar eS911 multiplicidade de relações, resolvê-Ia. analiticamente
se aqui impotentes: a exatidão do gosto não se deixa demon s. em seus elementos constitutivos. A significação estética de uma
trar da mesma maneira que a validade de uma dedução lógica ta l idéia não é diminu fda pelos impulsos complexos, att contra­
ou matemática. ~ necessário fazer intervir aqui outras faculda. ditórios, que ela suscita, pela maneira como ela cintila em mil
des, apostar, por assim dh:er, numa outra cor psicológica. Essa cores. por tudo o que ela comporta de fug az e de f1utuantc.
convicção já tendia a manirestar-se através do edifício da. teori a Em muitos casos. ela só é constituída, na verdade, pelo con­
clássica. A obra de Bouhours intitulada La maniere de bien junto desses traços. Assim como Pascal tinha distinguido o ..cs­
penser dons les Quvrages de I'espr;t [A maneira de bem pensar pírito sutil" do "espírito geométrico ". opondo um ao outro
nos Jabores do espírito] só está sepa rada da Arle poético de numa antítese muito profunda, também Bouhour5 opõe ao es­
Baileau por um século ou pouco mais e quer completar a obra pírito de " rigor" que Boileau tinha elevado ao nível de prin·
de Boilesu sem lhe subverter os princípios. Como o próprio cipio da arte o espírito de fin ura e delicadeza, o espírito de
titulo já indica, trata-se de dar uma "arte de pensar"' estética delicatesse. O que se designa aqui por -delicotesse" é, de certo
como peça anexa do Art de penser de Port·Royal. Mas a fonna modo, um novo órgão que não tende, como o pensamento
do pensamento e do julgamento es tét ico destaca·se com mais matemático, a solidificar, a estabilizar e a fix ar o conceito,
clareza e distinção do que no modelo acima de todas as for­ mas que se exprime, muito pelo contrário, na leveza e mobili­
mas de inferência puramente "'discursivas". A finalidade su­ dade do pensamento, na agiHdade em captar os matizes mais
prema que o pensamento discursivo possa propor-se é a exa. sutis e as transições mais çéleres. São essas transições c esses
tidão e a univoc idade. Todo conceito de quc ele faz uso deve matizes que dão a esse pensamento sua tonalidade especi fica­

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mente estética. Por estranha e chocante que essa idéia possa epigrama, que dependem inteiramente dessa condiçiio. que só
parecer à primeira vista, pode-se dizer que, a par do ideal es té­ funci onam em termos de surpresa. Um epigrama não se ju~ t i·
tico de rigor e exatidão, encontra-se um outro, diametralmente fica. na acepçêo estética, some!1te por sua verdade: poderiu
o!X>sto ; o ideal de inexatidão. O classicismo estrito caractel'iza­ muito bem limita r·se a ser um simples aforismo, faltando· lhe
va como náo--verdadcira em si mesma toda coisa inexata e, por a vida e o mov:rnento da arte. t muito menos graças à verdade
conseguinte, rejeitava-a. Mas a "razão" estética, Bouhours in­ do que por meio da fal sidalk que o epigrama reçebe vida c
siste sob:-e esse ponto, não é prisioneira do "daro e distinto " . movimento. "Os pellsamentos, à fo rça de serem verdadeiros,
Não só ela suporta um.!! certa margem de indeterminação como tOr.lãffi·se por vezes triviais"; esse risco de trivialidade estética
[, exige e provoca. pois a imaginação estétic.!! só se ínn ama e só pode ser evitado por uma certa configuração . uma espéde
desenvolve na presença do que Einda não está plenamente de­ de roupagem do pensamento, por uma guinada surpreendente
terminado, do que ainda não está totalmente pensado. Não se de sua expressão. I! a expressão, não o conteúdo do pensa­
trata aqui do simples conteúdo do pensamen lO e de sua verdade mento I;Or.J.O ta: , que contém cada vez mais a verdadeira carga
objetiva mas do desenrolar do pensamento e da sutileza, da estética. Não é s urpre~ndente, portanto, e muito menos para­
ligeireza, da presteza com que se realiza . Não é o mero resultado doxal, nesse cont exto, que Bouhours exija para todu produto
quo;: é decisivo mas o modo como é obtido, o próprio rato de vJHdo da arte não a verd ade pura e simples mas uma certa
reshltar. Do ponto de vista estético, um pensamento é ta nto mistura expressa de fa lsidade , e que por essa mesma razão
mais valioso quanto mais visível for o encadeamento criador, justifiq ue o equIvoco, porque o (also e o verdadeiro aí estâo
a gênese da ronna inesperada, o "jorro" (He rausspringen). A mi sturados e formam uma unidade.lo Com efeilo, é por meio
16gica exige constância, a estética pede a subitaneidade. A ló' da expressão do falso que Bouhours, que fala reiteradamente
gica deve pôr a claro todas as pressuposições de um pensamento, a língua do clalisicismo, consegue queb rar os grilhões da con­
não perder nenhum dos elos intermediádos que o preparam, cepção clássica da verdade e da realidade e iniciar seu vôo
seg'.Ji-lo em todas as suas mediações; para a arte, pelo contrá­ pa ra a região da "ilusão estética ". A estética como tal não
rio, o i:l1cdiato é a font e onde ela inesgotavelmente inspira·se. n2Sce nem floresce à pura e pslida luz do pensamento; cum­
A estrita "retidão" do pensamento, à qual se ligava a estética pre juntar-lhe o seu contrário, realizar uma justa divisão entre
clássica e que esta erigis em norma , deixou de ser válid a; a luz e sombra. Uma e outra são igualmente essenciais: a arte
linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos somen te não quer ser, a par do mundo natural, uma segunda realidade
na acepção geométrica, não no sentido estético. A estética de igualmente objetiva, mas construí-lo em imagem e nela fixá-lo .
Bouhours, ao basear-se no prindpio da delicadeza, vai ensina r, €. por isso que o ideal puramente racional da "adequação".
portanto. a arte do desvio a justificar sua validade e riqueza. da adaequalio rei et illtellectus, não se impõe à arte no mesmo
Um pensamento esteticamente válido (pensamento delicado, pen­ sentido que à ciência. A estética cl ássica, por ter mantido esse
samento engenhoso) faz quase sempre uso daquele para atingir ideal. tinha sido assim levada a en fatizar decisivamente o "na­
seus fin s: su rpreender o esplrito e imprimir·lhe, por meio dessa turaJ" e o "exato". A .representação era tanto mais perfeÍl2
surpresa, um novo impul so. Existem gêneros poéticos, como o quanto melhor conseguisse retratar O próprio objeto, reneti·k

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sem as turvaçõcs e refrações que a natureza do assunto pode efeito que elas elt.ercem, procurando detenninar desse modo a
ocasionar. Entretanto, essa norma começa agora a eclipsar-se. verdadei ra essência da arte. Mas nessa análise da impressão
A ênfase recai menos sobre a proximidade do que sobre :l di~ estética. o cu e o objeto defront am-se CO m dois fatores iguul.
lineia em relação ao objeto, não no que, na arte, iguala·se • mente necessários c legitimas. A estrutura precisa dessa relação
natureza mas no modo específico de sua expressão e de sua causül e a participação de cada um desses momentos. o "sujeito"
representação. O que ess~s melas de expressão com portam de c o " objeto", não podem ser estabe lecidas de antemão por cons;·
inadequado no sentido racional do lermo, seu ca ráter mediato deraçoo übstratlls; O exame dessa conexão cabe exclusivamen­
e mtafórico, é expressamente admitido e em nada muda sua te à experiência. € em Dubos, portanto, que pela primeira vez,
apreciação. A imagem esboçada pela arte, com efeito, nunca é com todo o rigor. a outo-observação deFine.se como o princípio
igualada ao objeto nem coincide com ele, portanlo não poderia especffico da estética e oposta a todo e qualquer outro método
ser condenada por não-verdade; ela tem sua própria verdade, puramente lógico como fonte autêntica de lodo o conhecimento
autônoma e imanente: "Le figuré n'est pas faux et la méta­ estabelecido. A essência da estética não pode ser conheci da de
phore a sa vérité aussi bien que la fiction." t7 maneira puramente coneeptual; o teórico, nesse domínio , não dis­
O novo tema que se percebe na obra de Bouhours só en­ põe de ou tros meios para comunicar suas intuiçócs de um modo
controu , porém, seu pleno desenvolvimenlo em Dubos. O que convincente a não ser recorrendo à sua própria experiência in·
naquele não passou de simples bosquejo tomou·se nas Réffe· tcrior. A impressão imediata , à qual deve estar associada toda
"íons critiques sur ta poésie et ta peinture, de Dubos, um peno a criação de conceito em estética . e à q ua l deve remeter-se cons­
sarnento sistemático que o autor desenvolve em todos os senti· tantemente, não poderia, de maneira nenhuma, ser substituida
dos. Os fenômenos que Bouhours tinha descoberto, de certa e rechaçadu por deduções. "Eu não poderia esperar ser aprova·
maneira, na periferia da estética, são agora transferidos para do" - diz Dubos no início de seu livro _ "se não conseguir
o centro da leÇlria estética. Não se trata mais de fazer simples­ fazer o leitor reconhecer no roeu presente estudO o que St;:
mente lugar para a imaginação e o sen timento ao fado das passa em si me~mo, nu ma palavra, os movimentos mais íntimos
faculdades intelectuais, mas de prova r que também são facul· de seu coraç:ão . Quase nunca se hesita em rejeitur como um
dades verdadeiramente fundamentais. Se se chamou por essa espelho infiel o espelho onde a pessoa não se recon hece." l t O
razão à obra de Dubos a "primeira estética do sentimentalis­ estético já nno se apresenta agora 8 0 artista tom Sc!U c6difito eOl
010",18 é evidente que se deve fazer reservas, historicamente, a mãos, lal como quer mais impor ao público normas fi xas e
respeito da fórmula , porquanto não se encontram nele, em parte universalmente válidas. Apenas quer ser O espelho onde o au­
alguma, esses traços verdadeiramente "sentimentais", como su r­ lor e o espectador devem contemplar·se c reconhecer-se, aí reen·
girão mais tarde na época da "sensi bilidade" (Empfindsamkeitl. contnmdo sua vida interior e suas experiênc ias mais profundas.
O que ele entende por "sentimento" não significa um mergulho Toda educação. todo refinamento do juízo estético só podem
do eu em si rnesmo, portanto, nesse sentido, uma atitude "subje· consisti!', em ültima instância. em aprender a ver sempre mais
tiva". Sem dúvida, ele parte mais simplesmenle da consideração claramente essas expe rit:: nc ia~ intimas, essas impressões originá·
e da análi se de obras do:: arte e observa, em primeiro lugar, o TÍólS, e em distingu i·las das contribuições arb itrárias e gra t ll i tn~

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da reOt:!xão. Todas as (oonus c 5ulileL!1) !MJbl"'"': ço nceito~ esté li· dos atos de percc:pçeo, ver e ·ouvir, provar e cheirar , perceb..:·S(·
cos que nào servem para esse fi m são rejei t3das: tudo o q ue o caminho q ue Hume va i seguir uté as suas últimas conseq üên·
não possui a ingenu id ade d a ; m p rcs~ ào e n50 reforça a nQSSH cias. A filo sofia de Hurne tem por objeto muito menos , ex pl i.
con fiança nela não a tinge 1.I fi na lidade essencial a que a cSlélica citamente, as questões estéticas do q ue as q uestões de teori n
deve propor·se. O gosto, no sclllido prÓ'prio. não pode ser apren· do co nhecimen to e de psicologia. de ética e de fil osofia da re·
d ido nem $C f suscitado. elaborado verdndeil·umenle por sim pk s ligião. A estética OCupa, no entanto, um lugar importante no
consid\!rações teóricas, assim como a percepção $Cnsivd t3m· seio dessa proble má tica e, de um ponto ·de vista metodológico.
pouco se presta a ta l ensino. "O coração agita·sl! po r si mes· ela apresenta uma contribui ção perfeÍtllmentc original. Com
mo e por um movimento que precede toda a dcli beração quandl' Hu me, de fato, a frente de comba te é deslocada. Por mais ener·
o obje to q ue se lhe apresenta é rea lmenie um o bje to tocante [ . .. J gicamente que os campeões da "estética do sentimento" tenham
O nosso coração está feito, orga nizado para isso. Sua atividade defendido a especificidade do sentime nto e a(irm<!do o seu ime·
precede. portamo, loda5 as conclu:>Ões ( ruiSOIll:('I/IC/lIS), assim diatismo. jamais chegaram ao ponto de contes lar o " ruisonne·
como !1 ati vidade do olho c do ouvido tiS a ntecede em suas scn· menl" como tal, questionar a " razão" em sue função fund amen·
saç~:,. ~ tão raro v.:r homen~ nascidos se m o senti mento de que til l. O confl ito gravi tava em 10(nO da dis;ul1çào ('frennu lIg)
c)(ou ralando quanto é ru ro encOntr.lr cegos de nasccm,:a. Ma~ das racu ldades, não de l,;ma co ntestação ou de um 8viltamenl0
so.:ria impossívd co municá·lo àqu.;l~ que nào o possuem, co mo da razão. Enqua nto facu ldade do pensame nto lógico e da pro­
é imposs ível dllr visão e ouvido li quem nunca os t.:vc r... ) Cho­ va, do raciocínio causlll sobre o qual n:pOuSII todo o n05SO
ra·se numa tru~éd ia anto.:~ de IUI\'c:r discuti do se o obj<.:to que conhecimento da realidade. ela mantinha-se à ma rgem de con·
o poeta ai noo Cipfcsc:nta .: um objeto ..:upaz de comove r por si testação. Foi nessa direção, precisamente, que Hume transpôs
mesmo c se Clilá bem-im itado. O sentimento .:nsina-nos o q ue uma etapa decisiva . Ele ousou leva r a luta a té o próprio coração
há na tragédia antes que tcnhél mos pe nsado em e,,-a miná-la [. , ,1 das defesas do adversário, q uerendo assim demonstrar que, jus­
Se o máitO IIlnis im portante dos POCJl1;'lS c dos qUllllrOS rus~ es· tamenle onde o rac ionalismo colocava seu o rgulho e sua rorça,
tar em confo rmidade co m o~ regras redigidas por esc ri to. po é aí que se encontra , pelo contrário, o ponto fraco de sua p0­
d..:r·st.'-ia dizer que a melhor maneira de julga r dI! sua exec li:nciu sição. Não cabe mais agora ao senlimento justi ficar·se perante
.assim como o lugar que dewm ocu par na t:!Slima do~ hOl\lcn:. o tribunal da razão; a razão é que se vê agora citada perante
se ri a at ra vçs dll di:,c u5s5o e da análise. Mil! o mt!rito mais imo o foro da sensação, da " impressão" pura, a fim de responder
portante dos poi!mas e dos quad ros ..i o de nos agradar ; c IOd o~ aí per suas pret ensões. E a sentença pronunc ia que todo o pode r
os humen:., cum a ajuda do ~c nti Jl1e llt o inte rior quo.: há ndes reivindicado pela razão pura era um poder ilegítimo e contra
conhecem SI!ItI ~aber as regras se ib produçoc'li das anes são a natureza, um poder usurpado. A razão pe rde não só a sua
boas ou ru in:.."::<> posição soberana como d!!ve igualmente, em seu próprio terreno,
Agora que o "gosto ~ já nul.) c coordo.:nudo nem está :.u· no domínio do conhecimento, a bdicar de sua função de lidc r
bord in udo às operaçôes IÓJlka~ da dedução c da prova mas e cede r a primazia à imaginação. Houve, pois, uma permutil
o.:uhx...do no mesmo planu , em :.uu iml!diação (Ullmjllelba rkcl lL de papéis na batalha pelu fundação da estélica. Enquanto , no

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:ameça. a imaginação só linha y'Jt: lutaI' por reconhecimento com efeito, tratar da " coisa em si" e de sua natureza absoluta ;
e a igualdade de di reitos, ei-la agora deOnida como a mais run­ enuncia tã~somente uma relação que subsiste entre os objetos
damental das faculdades da alma, a facu ldade dirigente e do­ e nós próprios, sujeitos perceptivos, sens(veis e judicantes. Essa
minante a que devem sumbeter-se todas as oulras. As conclu· re lação pode, em cada caso particular, ser "verdadeira" sem
sões impõem-se por si mesmas no tocante à edificação da esté­ que por isso seja sempre e estritamente a mesma, pois 8 nalu­
lica, da "filosoOa do belo", e H ume. aliás. aduziu-as explicita­ reza e, portanto, a verdade de uma relação jamais dependem
mente no seu ensaio intitulado OI lhe standord 01 toste [Do pa­ de apenas um dos dois membros que ela une mas da maneira
drão do gosto}. i! verdade que a estética dcve ser entregue ao como eles se detemlinam reciprocamente. A referência ao sujei­
cepticismo se se entender por isso renunciar a nonnas univer­ to valorativo e \Iolitivo não é, portanto. algo de puramente
sais e necessá rias, impondo-se O tempo todo a todo indivíduo exterior ao conteúdo e ao sentido do juízo de vator: SÓ ela pode
pensante. Em nenhuma parte é mais Mcil refutar a pretensão detenninar-I he o conteúdo e constituir-lhe o sentido. Se esse
de regcr ass im a verdade e a necessidade do que no dom[nio ponto é bem entendido. dele resulta para o juízo estético uma
da estética, quando a experiência cotidiana nos ensina que não primazia, um privilégio particular em relação ao juizo lógico.
existe nenhuma escala fixa dos valores estéticOS nem jamais Esse privilégio não depende de O ju ízo estético realizar mais,
existitu. De uma época a outra, de um indivíduo a outro , varia mas de exigir menos do que O juízo lógico . Uma vez que se
o critério que aplicamos à avaliação do belo e é uma tarefa bem opõe a toda falsa generalização, em que quer ser um enunciado
vã pretender extrair desse nuxo e desse caudal de opiniõcs ai· não ace rca dos obje tos como tais mas sobre a nossa relação
gum modelo que ostente o timbre da verdade e da validade. com 05 objetos , ele pode atingi r aquela "adequação" (Angemes­
Mas, embora reconhecendo essa variabilidade, essa relatividade senheit) que as ciências da realidade objetiva esforçam-se em
de julgamento do gosto, convém considerar que ela não COntém vão por alcançar . O sujeito individual , se é evidente quc Il"dO
para a estética os perigos que parece apresentar para a lógica e pode arrogar-se nenhuma jurisdição sobre as coisas, nem por
para as ciências )luramente racionais. Essas não querem nem isso deixa de ser o único juiz possível e autorizado dos seus
podem renunciar a algum critério objetivo dado na natureza próprios estados, e é isso, em última análise, o que o jU[1.0 csté·
das coisas. Ambicionam conhecer o próprio objeto, na pureza tico nos quer informar. Ele pode. em suma , obter muito mais
do seu em si, e descrever suas determinações essenciais. Elas porque ambiciona muito menos. O entendimento pode errar
consideram, portanto, que lhes é sonegado o seu legítimo fruto porque O seu critério não está unicamente em si mesmo , mas
e que estão ameaçadas em suas próprias metas se o cepticismo também na natureza das coisas a que ele se refere e que quer
opuser a tais investigações barreiras fixad as de uma vez por "encontrar" de qualquer maneira . O sentimento n50 está ex­
lodos. No domínio das ciências racionais, o cepucismo só pode posto a semelhantes erros porque lem em si mesmo o seu con·
ser, em todo caso, um princfpio negativo e dissolvente. Mas teúdo e a sua medida. " Todo sentimento está certo; porque
a situação é bem diferente desde que as nossas atenções con· o sentimento a nada se refere além de si mesmo e é sempre
centrem·se na esrera dos sen timen tos e dos puros juIzos de real, onde quer que um homem esteja consciente disso. Mas
!JelIOf. Um juízo de valor que se considere correiO não pretende , nem todas as determinações do entendimento são corretas por­

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que têm uma referência a algo alé m delas mesmas , a saber, aos humana entendida não comu um conceito lógico universol ou
ratos reais, Os quais nem sempre estão em confomlidade com um ideal ético e estético mas, de fala, como 3 que caractcriZél
esse padrão." De mil julgamemos diversos (onnulados a respei­ uma determinada espécie biológica. Se os indivíduos dircrem
to de um estado de coisas obje tivo, só exis te um único que é .Jus dos outros, eles, ·ajustam·se, porém, opesar de suas diver·
o certo e o ve rdadeiro; a gra nde dificuldade está em descobri-lo gências, no sentido de que a própria va riação possui umn amo
e demonstrá· lo. Em contrapartida , mil sentimentos e aprecia­ plitude e uma lei de tenninadas. Daí resulta essa concordância
ções diferentes rela tivos ao mesmo objeto podem ser lodos cor­ relativa que podemos constatar invariavelmente . como 11m fe­
telOS . Com deila, o sentimento não pretende Jpreender e defi­ nômeno dado, entre os julgamentos estéticos. Por mais ocioso
nir algo de objetivo mas exprimir uma ce:ta concordâ ncia (con. que seja querer estabelecer normas absolutas , não deixaremos,
formidade ou relação) ent re o obje to e ~ órgãos e as faculda­ no ent anto, de descobrir uma certa regula ridade empírica, uma
des do nosso espírito. ~ por isso que podemos, num sen tido. média empírica, por assim dizer. A difere nça con tinua sendo
julgar "objetivamen te" a beleza , porque ela é, justamente. algo poss{vel no plano abstrato mas torna-Se desprezível in concreto.
de um abso luto ~ ubjellvisn;o, não uma coisa mas um estado em Quem pre te ndesse situ ar no mesmo nível. sob li relação do
nós mesmos. "BeaUly is no quality in things themselves: íl exisls gênio e do es tilo, Ogilby e Milton, Dunyan e Addison, não se
merely ;n lhe mind which c~m tem p lafes rhem, and each mind exporia, sem dúvida, li uma refutação racional mente (undamen­
perceives a dillerenl beOllly," U tada, mas o seu julgamento não passaria por ser menos extra­
Todos os indícios de va lidade universa l pa~ecem estar en­ vagante do que se quisesse comparar um charco 80 oceano ou
tão inleirameme extirpados do julgamento estético; mas se um mon tículo de térmitas ao pico de Tenerire.2l A conformi­
Hume, tanto na estética quanto na lógica, abandona tod .. uni­ dade a que o gosto, como sensus communis, pode aspirar não
versalidade teórica, nem por isso e ntende privar-se da univer­ se deixa, portanto, deduzir nem demonstrar mas assenta , de
salidade prá tica. Num ? Jano p:.rn:mente conceptual. deve se r rato, numa base melhor e mais sólida do que aquela que a
entendido, em lodo caso, que O sentime::ao esté,ico e a apre­ especulação jamais lhe teria pod ido fornecer. Percebe-se a té,
ciação est~ t ica s6 pode m vaJer no in!e rior de~sa mesma esfera na verdade, que, de um ponto de vista puramente empírico, o
subjetiva. Entretanto, se nesse caso lampouco se trata de uma acordo efetivo entre julgamentos produz·se mais depressa e com
verdadeira conformidade , de uma identidade r.o sen!ido lógico mais segurança no domínio do gosto do que no do conhecimento
do lermo, entre os sujeitos, isso não signiCica a existência de racional e puramen te filosófi co. Os sistemas fil osófi cos não va·
uma uniformidade empírica, a qual tampouco permita às ine­ Iem muito mais do que para a sua época, seu brilho dissipa·se
vitáveis dife renças de senti mento e de julgamento escaparem bem depressa ao ser eclip5ado por um novo astro em ascensão ,
a todo e qualquer critério . Tal c ritério não nos é dado a priori, tiO passo que as grandes obras da arte clássica suportam muito
evidentemente. pela "natureza" do belo, mas como um2 rea­ melhor e com mais segurança o teste do tempo. Por mai s inti ·
lidade de fato pela llatureza do homem. Assim é que os cri. mumente ligadas que pareçam esta r à sua época, por mais
térios do gosto, (;m vez de multipli carem·se ad inJjnilum, mano inexplicáveis que sejam fora das condições espirituais que as
tém-se dentro de limites rixados, precisamente, pela natu reza viram nascer, nâo é menos verdade que essas condições não

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impõem limite nenhum aos efeitos das obras de arte . Pelo con­ sença pura, o gosto não é suscetível , sem dúvida . de nen hum•.
trário, lançam uma ponte sobre os séculos e propiciam o mais outra maneira de defini-lo e de fundamentá·lo, é um "je nc sai.f
seguro testemunho do fato de que , se O pensamento dos homens quoi"; mos teremos um conhecimento indireto de ;'incognosci­
muda. sua vida afetiva e, por conseguinte, sua sensibilidade es­ vel" se relacionarmos essa prese nça com o seu passado. Em
tética permanecem, no fundo, constantemente as mesmas. A todo julgamento de gosto condensam-se inúmeras experiências
pretensa verdade objetiva que devíamos encontrnr !l as obras dos anteriores. Esses julgamentos não são mais redutíveis a consi­
pensadores antigos volatilizou-se , ao passo que o fascínio que a derações especulativas que a um simples "instinto": o " instinto"
poesia an tiga exerce sobre nós não se desfaz e apodera-se de do belo seria apenas uma qualitas occulta, à qual é tão estéril
n6s, como sujeitos sens[veis, com uma força sempre igual. "A ris­ recorrer em psicologia quanto em rrsica - e de igual modo
totIe and PIa/o, and Epicurus, und Descartes, may successively severamente reprovado e excluído, Escapamos a esse duplo pe­
yield to elch olher: bul T erence alld Virgil maintain an univer­ rigo ao enconlrar uma explicação puramente empírica para esse
sal, undisputed empire over lhe minds 0/ men. The abstract pretenso " instinto". reconhecendo-o precisamente como uma rea­
philosophy 01 Cicero "as losl ils credit: lhe vehemence of his lidade derivada, produzida. não-originária e fi xa. Desde o ins­
oratory is slill fhe ubjecf 0/ Our admiration." 23 tante em que abrimos os olhos para a luz do dia, re<:ebemos
Sem dúvida, Hume s6 concede à estética um mlnimo de inúmeras impressões, todas acompanhadas de um sentimento ou
"validade universal" (AlIgemeingüItigkeü), com o q ual a menta­ juízo de valor detenninado, de uma concordância Oll discordOn­
lidade empfrica dos pensadores setecentistas não podia dar-se eia. Todas essas observações e experiências, acumul ando-se em
por satisfeita. Embora reconhecendo a experiência como fonte nossa memória. opoiando-se umas nas ou tras e condensandu-se
do julgamento estético, tentam ainda assim colocar essa mesma numa nova expressão de conjunto, constituem aquilo a que cha·
experiência em bases mais sólidas e conferir-lhe um sentido mamos O sentimento do belo. Esse sentimento é certamente " irra­
"objetivo" determinado. Mas o problema é. sem dúvida, deslo­ cional" no sentido de que, na experiência pura do belo, a leIO'
cado dessa forma , porquanto o estudo não pode limitar-se dora­ brança dessas experiências anteriormente vividas é apagada, de
vante aos fenômenos estéticos como tais e à sua simples des­ que a rtalidade atual (die Ak/Ilalitiit) da experiência não nos
crição: ele deve retornar aos alicerces desses fenômenos e tentar pode dar , porta nto, nenhu ma idéia da sua produçãO, da sua
mostrar seu l undamentum in re. Onde b uscar esse fundamento, origem gcnética.~ 4 Mas para Diderot essa origem, se não é um
onde estabelecê-lo com mais segurança senão vinculando a bele­ renômeno imediatamente demonstrável, constitui , n50 obstante.
za à finalidade, senão mostrando ser ela apenas a expressão ve­ um postulado aduzido das premissas gerais do empirismo.
lada de uma tal finalidade? Foi Diderot quem . na sua doutrina "Qu'est-ce dane que te goút? Un e facilité acquise par des expé­
estética, revalorizou esse lema. Segundo ele, o gosto é simulta­ riences réitdrées, à saisir le vrai ou le bon, al/ec la circonstance
neamente subjetivo e objetivo: subjetivo porque repousa tão-só qui le rend beau ef d'efl é/re promptemt!n t et I/ivemeflt tou­
no sentimentQ individual, e objetivo porque esse sentimento nada eM." n A propria redação dessa definição indica que Diderol,
mais é do que. justamente, o resultado e o eco de centenas de aO esforçar-se por apresentar uma definiçiio empírica do belo.
experiências individuais. Enquanto simples falO, em sua pre­ corte uma vez mais o risco de deixar escapar o seu modo de

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ser específico e de deixá-lo di ssolver-se na perfeição física ou em ambos os casos o critédo utilizado pertence a um out ro
moral, na finalid ade objetiva. "Michelangelo deu à cúpula de plano. diferente daquele em que se situa o fen ômeno da bdczlI .
São Pedro a mais bela forma possivel. O geômetra De La Hire, Como a "razão" na estética clássica, o "entendimento" Icvu ri­
impressionado com essa ronna , traça-lhe a projeção e descobre nalmente a melhor na estéti ca empírica . A imaginação é reco­
que ela contém a Curva de máxima re sistência. O que foi q ue nhecida, por certo , nessa doutrina como uma faculdade autôno­
inspirou essa curva a Michelangelo, entre uma infjn idade de ma, como um poder particular do espírito ; procura-se até ver
outras que ele podel'ia ter escolhido? A experiência da vida aí a poderosa chave. a raiz psicológica de loda atividade, m~s'
c.: otidiana. f ela que sugere ao mestre carpin teiro, tão segura­ mo a puramente teórica. Mas essa elevação aparente ameaça, por
mente quanto ao subli me Euler, o ângulo do esteio com a parede sua vez, nivel{\·la, precisamente: após ter conquistado a esrera
que ameaça ruir; foi el<l que lhe ensinou a dar à asa do moinho teórica, sofre-lhe agora a contominaçii,o. Nâo era o bom meio
a inclinação mais favorável ao movimento de rotação; é ela que de estabelecer a aUlonomia do belo e a autarquia da imagin<l­
fa z freqüentemente entrar em seo cálculo sutil os elementos que ção. O impulso intelectual requerido para alcançar essa meta
a geometria acadêmica não poderia apreender." U Nessa defi · foi recusado tanto ao racionali smo estético quanto ao empirismo
nição empírica e prática, o belo não só correrá o risco de ser re­ estético. Esse impulso s6 podi a vir de um pensador que não se es­
duzido, quanto ao poblema de SUa origem, à "expériel1ce iourna­ forçaria nem por analisar teoricamente o belo nem por reduzi-lo
liere", ao cotidi ano, ao útil , mas também de ser fi nalmen te a regras, nem por descrevê-lo psicologicam<!nte e explicá-lo ge­
confinado nessa esfera? f. assim que Diderot só enxerga na neticamente: um pensador que viveria inteir,i.nente na contem­
beleza do corpo humano a aptidão para cumprir com a máxima plação da beleza, em seu poder e sob o seU jugo. Tal pensador
ericiência as funções essenciais da vida. "Le bel homme est celui só apareceu no século XVJ[{ com Shaftesbury; por isso coube
que la nature a formé pour rcmpTir le plus aisément qu'il est à sua doutrina a tarefa de Iundar a primeira Ji/osofi" verda­
possible deux grandes fonctio ns: la conserva/jon de l'individu, deiramente completa e autônoma da beleza.
~'uj s'bend à bcaucollp de choses, el la propago/ion de I'espece,
qui s'étend à une." 21 Vê-se aqu i que esse empirismo não con­ A estética da intuição e o problema do gênio
seguiu derrotar O perigo que queria superar e que não evitou os
escolhos contra os quais a estética racionalista arriscara-se a A estética inglesa do século XV1]l não enveredou pelo ca­
naufragar. Quando já não se trata apenas de descrever a beleza minho do classicismo fran cês nem pelo de Hume. e evidente a
mas também de fund amentá-Ia . isso só pode ser conseguido inJluência constante dessas du as correntes de pensamento na po­
apoiando-se no "verdadeiro", considerando-se O belo uma forma sição e no desenvolvimento dos probl emas. Como toda a lite­
encoberta do verdadeiro. A norma da verdade, simplesmente, ralura inglesa setecen tista, a estética também tem os olhos vol­
deslocou-se: o seu conteúdo não se baseia mais em proposições lados para o modelo, para o idea l prestigioso oferecido pela tra­
a priori, em princípios universa is e necessários, mas em expe­ gédia francesa clássica; em muitos detalhes. ela ainda é deter­
riências práticas, no wtidiano e no út il. Mas O sentido e O valor minada por esse modelo. E, no que se refere ao movimento
próprios do belo não são afetados pela mudança de dcfinição; empirista, era-lhe tão mais difícil desprender-se dele porque

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seus tem as essenci ais já estavam contidos nas primeiras abor­ Aristóteles. como Plotino, Sêneca, Marco Aurélio c Epilclo . que
dagens do problema estético. De um modo geral , esse problema ShaClesbu ry reinicia diretamente o diálogo em seu d iário. Nadll
vinha sendo abordado e tratado sob o ponto de vista ~ico16- repugna mais ao seu pensamento do que red uzir a Hlosotia a
gi~. Na Inglaterra do século XVIII , parecia não poder haver a um sistema de conceitos lógicos ou a um conjunto heteróclilO
menor hesÍlação nem vacilação no tocante ao verdadeiro método. de idéias cientificas. Ele quer restaurar e encarnar o seu idea l
o único "natural", a aplicar o. essas investigações. Tudo indicava original, o ideal da pura doutrina da $llbedoria. E: por esse ca­
que Locke, Berkeley e Hume tinham vencido definitivamente a minho, não pelo da e5peculação abstrata ou da observação em­
batalha do empirismo radical; agora, já não se tratava mais de pírica , que Sbaftesbury aborda os problemas da estética. ParI!
discutir-lhe os principios, mas de dar a esses mesmos principias ele, são problemas de vida pessoa] muito antes de tornarem-se
a maior extensão, de aplicá-los progressivamente a novos domí­ problemas da estética. Shaftesbury não vê a estética exclusiva­
nios e a fe nômenos cada vez mais complexos da vida da alma. mente, nem mesmo primordialmente, na perspectiva da obra de:
Entretan to, se a estética inglesa logrou li bertar-se e afastar arle, mas tem necessidade de uma estética como de uma ver­
progressivamente a sua problemática do fascin io do empirismo, dadeira regra de vida, como uma lei regendo a organ ização do
é porque ela tinha a possibilidade de vincular-se diretamente e universo íntimo, da person.a1idade espirit ual. A filosofia, con­
alirnentar.se regulannente numa doutrina filosófica que não se cebida como pura doutrina da sabedoria . permanece intrinse·
constituíra sob a influência do pensamento empirisla. Os verda· camente imperCelta enquan to não tiver encontrado numa doutrina
deiros mestres da estética inglesa são discfpuJos e sucessores de do belo a sua conclusão e a sua reali zação concreta. Pois não
Shaftesbury. Contudo, o próprio Shaftesbury não formou a sua pode existir verdade autêntica sem belez.a nem beleza sem ver­
visão do mundo a partir deste ou daquele modelo a que podia dade. A verdadeira chave da filosofia de Shaftesbury revela-se
com toda a clareza: "Ali beauly is lru/h" (Toda beleza é ver­
recorrer facilm ente em su a época. Foi aluno e depois discípu lo
dade). Tomada à letra, essa tese em nada se distingue da exi·
de Locke, mas somente lhe deve certos conteúdos do seu pensa­
gência de objetividade que a estética francesa clássica tinha re­
mento, ao passo que a forma do seu espírito e de sua doutrina
prescntado: quase não parece ser mais do que uma tradução, um
só a ele mesmo pertence. Não sente nenhuma afin idade nem pa­
decalque da tese de Baileau: -Rien fI'est beau que le "ra;" (Só o
ren tesco com a Cilosofia do seu tempo; procura para a sua dou­
verdadeiro é belo). Contudo, essa concordância só é aparente; as
trina outros modelos intelectuais e outras fontes históricas. Basta mesmas palavras exprimem aqui c ali pensamentos inteiramente
folhear O Diário Jilos6Jico de Shaftesbury para perceber-se de diferentes. Ao proclamar que a beleza é verdade. ShaCtesbury
imediato como ele está longe do seu tem po. Dificilmente se sur­ não entende a verdade no sentido de um conjunto de conheci­
preenderá nesse diário uma ressonânci.a, um eco remoto dos mentos teóricos, de lcses e de juizos redutíveis a regras lógicas
problemas que agitam essa época, dos dilemas intelectuais e prá­ lixas, a conceitos e princípios fundamentais. "Verdade", para ele .
ticos que ela enrrenta. Seu pensamen to paira acima de todas as significa acima de tudo a harmonia interna do universo: hOnDo­
questões que agitam a época para retomar um contato direto com nia que não se pode conhecer através de simples conceitos nem
a Renascença e o mundo antigo. ~ com os antigos, com Platão e apreender intuitivamente colecionando e acumulando experiên­

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cios patliculare5, mas com a qual é ,Xl'Ssível adequar diretamente Com o pensamento de Shaft l!sbury, a clotética, Se ii wmp'l
nossas vidas comprecndendo-a íntuiüvamente. Essa espécie de nlt'm o~ à forma qUI! lhe tinham dado o si stema clássico c (1 1) tl,":lI·
adequação da vida e da (;omprecnsão interiOr nos é pro piciada rias empiristas . vê·se transfcrida para um oulro plano. Na VCl
pelo fenômeno do belo. Nesse fenôme no, é abolida toda fronleira dade, atingimos aí um ponto crítico do seu desenvolvimento .
entre o mundo " inte rior " c o mundo "exlerior " ; descobre-se que um ponto em que os es píritos. tal como os problemas, devem
a mesma lei universal rege os dois mundos li! que é essa lei que repartir·se. Bem elllendido, essa separaçJo não se C'.ltabclece ue
eles expressam , cadJi um a sua maneira. Os "'números intuiores'" imediato e, uma vcz consumada , não se impõe com todo o r igor.
(in terior ,rumbers) que encontramos em cada fe nômeno do belo Nos sucessores de Sha rtesbury - em t"tutcheson . em Ferguson.
desve ndam-nos, ao mesmo lempo, os mistérios da natureza e do em Home - os princípios o riginários não se apresentam, em
mundo físico, que só na aparência ~ um *mundo eXl eriar", ou absoluto, numa perfe ita pu reza. uma vez q ue se misturaram c
seja , uma simples coisa dada, um deito material. A vl!rdade au· acomodaram . à sua revelia, a uma série de idéias provenientes
têntica e mais profunda desse mundo reside no principio opera­ de outras font es. Trata-se. porém, de um temH que conservou
tivo que nC'le vive, encarnado e refletido, em eertH medidn c com toda a sua força na insipidez dessa mistura eclética. Sob fi in­
uma (orça diferente. por cada uma de sua ~ criaturas . t essa es­ fluência da doutrina de Shaftesbury, deslocara-se o próprio cen­
pécie de " renexão", despojada de toda c qualq uer m"diação ló­ tro da problemática estética, o seu foco especulativo. Na esté tica
gica, revdando-nos, pelo contrário, o mundo interir,r .:: o mundo clássica, a qlfesliio inic ial estribava·se na obra de arte, que se
exterior estreitamente entrelaçados, que nos é proporciona~a na tralava como uma obra da nlltureza c tinha que ser conhecida
intuição do be lo. Toda beleza fu ndamenta·se na verdade e a ela por meios análogos . Procurava-se uma defini ção da obra de arte
remete-sc. mas, por outro lado, o se ntido pleno, o sentido con· que fosse comparável à defin ição lógica, capaz como esta última
ereto da Vl.'rdllde não poderia manifes tar-se cm ne nhum domínio de definir tal ou tal dado por sua espécie, indicando o seu genu!'
senão o da beleza . Assim , Shaftesbury transpõe o impcrativ, proximum e a sua diJfere/llia specijica. A doutrina da invaria­
estóico - ~ ópolO')lOtI,u':'wç -rfj 9'úau ,1j" "- da ética pano bilidade dos gêne ros e das regras estritame nte objetivas, im pon·
a estética. E por medi ação do belo que o ·humem akança 8 mais do-::.e a cada um dentre eles, nasceu desse esforço para se chegar
perrci:a hamlOnia entre si e o mundo , porque não só (;ompreen­ a tal definição. A esté tica cm pirisI8 distingue·se desse tipo de
de mas experi menta, sabe que toda ordem e toda Icgu laridade. investigações não só por seu método mas também por seu ob jeto .
toda unidade e toda lei repousam na mesma form a originária, Com cfei to, ela não l.ie ocupa direta me nte das obras, de seu
que um só e mesmo todo exprime-se imediatamente tania em si ordenllmen to, de sua classificação e :.ubsunção, mas do sujeito
mesmo quan to em todo ser. A verdade do cosmo lama a palavra , da fruição artística . cujo estado im.;h.... ~ ela quer co nhecer e
por assim dizer, no fenômeno do belo: em vcz de rnanh:r-se fe· descre\'c r por seu meios. Não é a elaboração, a simples {o rmu
chada em si mesma, ela s a nha expressão e discursu, esse dis· da obm como lal que retém aq ui a Q.lcnção mas o conjunto de
curso no qual o seu scmido. o seu logos próprio, revela·se ph: · processos psíquicos nos quais se rt"aH:Lllm a expe riência e u apro·
namente pela primeira vez. priação íntima da obra de art~ ::.sses processos devem so::r cn­

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fatuados até em seus mínimos detalhes e reduzidos a seus elc­ pret.:iso que clt: crie esse mudelo interior q'-le é O pon to de Il.... r·
mentos primordiais. Em Shaft esbury, em contrapartida , se qucs­ lioa de IMa obra de arle autêniica . Descobre-se en tão 110 homem
tões dessa ordem não sâo descartadas dc fo rma nenhuma. pelo a sua V!!rdadeira nCltu reza prometéíca: ele torna-se "segundo !.:Tia·
menos nunca se encontram no centro do seu interesse pessoal, dor depois de Júpiter ".2S O camieho qoe leva à contemplação c
fil os6fico. Nunca se preocupa com a classificação nem com a à comprt~e ns ão da essEncia divina passa necessariamente por essa
análise das obr8$, muito menos ainda com os estados de alma mediução. E ao artista, em primeiro lugar, que dá incessante­
que se desenrolam no individuo que as contempla ; seu obieti v,", mente o mundo à luz em pequeno, que o gCtO, o produz sob
não é a elaboração lógica de conceitos nem a descrição psicol6­ forma objetiva , é a ele que o universo torna-se inteligível como
gica . O belo , para ele, é uma revelação de uma ordem muito obra daquelas mesmas fOrÇas que sente em si mesmo. Todo ser
diferen te , brotando de uma outra fonte e visando a uma fin a­ singular nada mais é para ele do que um signo, um hieroglifo do
lidade fu ndamentalmente diversa . Na intuição do belo cumpre­ di vino : ele lê .. a alma do artista no scu Apolo " .:9
se , para OS homens, a passagem do rnundo das criaturas para o Doravanle, a par do raciocínio e da cxperiência. umu
mundo da criação, do universo como soma de toda a realidade terceira c fun damental forço entra em cena, a qual, segundo
objetiva para as forças criadoras quc o constituíram e susten­ Shaft esbury. supera todas as ou tras e oferecc-nos, enfi m. as
tam-no interiormente. Essa intuição nada deve à simples análi se verdadeiru~ profund idades da estêtica. Nem o pensamento "dis­
da obra dc arte nem à introspecção do processo imita tivo que se cu rsivo", tateando pesudamente de um conceito a outro, nem a
realiza no sujeito senciente quando da contemplação e da fruição observação lúcida e paciente de fenômenos particula res permi·
artfsticas. Com tudo isso, ainda estamos apenas, segundo Shafte5­ tem atingir essas profundezas. Elas s6 são acessíveis a um .. en·
bury , na periferia e não no centro do belo. Não se procu rará esse tendirncnlO in tuitivo " que nâo vai do indivíduo ao todo mas do
cent ro Da fruição e na sensação mas na elaboração e na criação. todo ao indivíduo. A idéia de um entendimento intuitivo, de um
A simples receptividade continua sendo insuficiente e impotente, illlellectu s arche /yptl s, [oi tomad a por Shaftesbury do seu verda­
porquanto não nos conduz à espontaneidade que é fonte pro. deiro modelo fi: osófico, que é a doutrina plotiniana do "belo
pria e original do belo. Mas uma vez descoberta essa fonte, rea­ inteligívcl" . Mas ele: aplica esse pensamento num sentido novo
li za-se a vcrdadeira , a única sfntesc possível, não s6 entre suo (' confere· lhe um ímpeto e uma ênfase que não possuía em
iei to e obje to, entre o eu e o mundo, mas também en tre o homem Platão nem e"1l Plat ino . Com efcito, ele qucr, precísamentl!, de­
e Deus. Pois a oposição entre o homem e Deus é abolida desde sarmar a m a~ : Jravc objeção levantada por PlatãO contra a arte
que pensemos o homem não mais simplesmente em sua ex istên­ ("Ira desqualiIicá-la num sentido filosófi co. A art e não é, de ma­
cia de ~ criatura" mas segundo a força criadora originária que o neira ncn huma. m imesis no sentido em que se alert a ao aspecto
habita, não t;omo ser criado mas como criador. Pa ra que o ho­ exterior das coisas , à sua simples apareocia. procurando copiá-Ias
mem revele-se verdadeiramente criado à imagem de Dcus não tão fielmente quanto possível. A form a de "imitllção" que lhe
basta que. demorando-se no círculo das coi sas criadas, da rea­ é própria pertence a uma outra esfera e, por assim dizer, a uma
li dade empírica. tente copiar-lhe a ordem e os contornos i é outra dimensão. porquanto não imit a simplesmente o produto

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mas o ato de produção , não o que é enge ndradú mas a pr6pria na mc tMonl e n,j figura .~l Mesmo n..::sse processo di vc rsiuniMÕI .
gênese . Poder mergulh ar dire tamente nes~a gênese e participar enlr":Hm to. o i;::nio ne m sempre sai da esre ra da intelect uil lid'ldc .
nela intuitivamente, eis 11 verdadeir a natureza e o mi stério do na \'crtllJtlc . da do "espíri to", muito simplesmente. Todo o ill: C n ·
gênio, segundo Shaftesbury. E fo i assim que o problema do gê­ to recai entáo sobre a sutil eza , a jXnctl'llção e u pn: ~ tela dll
nio se converteu no genu'no problema fundamental da estética. cspíriw . tod<l S eSSHS virt udes combinadas na idéia de del icadeza.
Nem a análise lógica nem a observação empírica podiam con­ Shuftcsbury está igualme nll: d istanci ado de~sa s d uas conce pç&~:
duzir a esse problema ; s6 uma "estética da intuição" podia ele e leva. com efe ito, com a maior lucidez e a mais nítidil c.ollS·
dur-Ihe todo seu peso e seu verdadeiro conteúdo . Uma vez mais. cienci a, a Ilação de gênio ad ma do plano ela simples sensnção e
é prudente abster-se de querer decifrar o desenvolvimento das do simple s juizo. udma do precisc1o. do sent imento. da delicade·
idéias e das doutrinas partindo muito simplesmente da história za, a rim de rcsc rvú-Ia pu ra o do mínio das ro rça~ prod uliv2s.
de uma palavra. Shaftesbury não criou a palavra " gênio": ser­ cQlls litutivas e c rilJdorils. Desse modo . Shaft esbury deu ao desen­
ve-se dela como de um te rmo já con hecido e há muito famili ar volvimento futuro do problema do g~ nio um cen lro filosófi co
em esleuca Mas fo i o primeiro que. não comente em usar , ólido, wnk riu·lhe li ma or ie ntação fundamental cla ramenle ddi­
esse termo, libertou-o da çonfusão e da amb igüidade de q ue vinha nida . que depo is serâ con!>et vllda. de um modo lúcido e lirmc.
sofrendo até en tão para dar-lhe um sentido mu ito nítido e espe­ pelos verdadei ros fundadores da (earia estética. a pesar de toda s
cificamente Cilosónco. Na esté tica clássica , sente-se c ressalw-sc <!l) flulUaçôe ~ dos de bates de fí1 o~ofja e de psicologhl populares. ~

em primeiro lugar o parentesco do conceito de gênio com illge­ Llai que parte o ;::,1I11 illho diret o que leva ao pro bl ema fundamen­
nium, lermo este que equivale à "razão" , ou seja , à faculd ade ta i da histó ria do pensa men to a lemão do século XVII I: à Dral/la­
fund amental e verdadeiramente determinante da vida intelec­ turg ia de Hamburgo, de lcssing, c à Critica do ;uízo, ue Kant.3 ~
tual . O gênio é a sublimação suprema da razão, a pró pria essên­ A do ut rina da espontunc idade da c riação ar tís tic u postU­
cia de todos os seus poderes e aplidõcs: "O gênio é a razão bi ela por Shaftcsbury nào teria podido, entretanlO. exercer a
su blime ." 30 O desenvol vime nto ulterio r da teoria rea lizado por infl uência que se conhece, precisamen te nesse momento, se o
Bouhours e que conduziu a uma nova orientação da estética, desenvolvimento imclcetual puramente te6rico que se realizava
;, estética da d~;'jcatesse, pretende superar essa un il ate ral idade . nda não tivesse encont rado um comple mento e um a poio muito
Ele não vê no gênio a simpl es promoção, o prolongamento di­ firm.: Ollm out ro movimento de iJé i'ls. A pa rlir do instamc em
reto do "bom senso"; a função que lhe atribui é diferente e q llC" . na lit erat ura inglesa do século XV 11 (, lrala-se do problema
nitidamente mai ~ complexa . O seu poder não está lanto em do gcnio e procura-se determi na r a posição do gênio em relação
apreender a si mples ve rdade das c.Jisas, para exprimi-Ias de à~ " regnls ", o cu rso a b, tra to do pc n ~ a mo:n t o Jogo retOma :.1 0
ma ne ira tão preci sa q uanto possível, quanto em saber pressen· !.:OlH: rc to. DOIS nomes, os de Shakespcare c ~Hlton, a presentam­
tir as relações obscuras e escondidas. O pensamen to " genial" ~ c inecssanlemC nle ao nosso espírito . determi nando de eerto
(pensamento engenhoso) é aquele q'le , aba ndonando o caminho modo os "i:tos fi xos em torno d o~ q uais giram lod os os de b(l­
do hábito e do cOl idiano, chega a uma visão nova e surpreen­ h:S leóricos q uo: ..:n1'0 1VC111 o pmb lcmo do "g~ oi O'· . Il com 11
dente das coisas e compraz-se na e:tpressào "imprópria". a saber, lIj\ld n dC~5e s dois gnllldes exemplos que se procura uprccndct

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ü "crdadcira e profund l1 C'~ sê-... ~ J.l genialidade; ~ neh:s que nOssas almas, 80 mesmo tem po em que p.os oCerecem também
se vê rcalizadü o que a tC<,. -j., cü~re\' i ll. como puril pOlem:iali. o meio de conjurá-la e apazigt:ã-la .
dade. Essa rden! ncia , esse rctorno constante a Shakesp.:are e a E, antes de tudo, \.irna elaaoração , uma paciente realização,
Milton. aprescn ta·:.e da manei ra mais conv incente e m CO/ljec­ uma discussão progressiva, me!6dica , e um esclarecimento dos
IUres 011 original comf1osition. de Young. Da meditação dus princípios esttticos proclamados por Shaftesbua-y na seu estilo
u r.gédias shakespea riana) ..: de sua admi ração pelo Purai:so per­ ra psódico-invocatório, tal coma nos é o fereçido por Hutcheson
(íido, extrai Young a convicção de que a criativ idade do g~ nio em seu lnquiry ;1110 lhe original 01 our ideas 01 beauty alld
poétiCO é indescritível e ainda menos analisável, segunda os lIi,tue (1726) . Foi &Iravés desse livro que as idéias de Shaftes­
habituais critérios puramenh,: inlc1c-ct uais_ as critérios pul' assi m bury rizeram sua e ntrada na culturi! geral dos let rados da época ,
dizcr aritméticos do I:nlendimcn to. Desse modelo de cnlcndi. embora não conservassem intatas . evi den temente, no decorrl!t
men ta. o gênio eSlá tão distan tc qUlln to o mágica do a rquiteto. dessa transfusão . o seu verd adeiro sent :do e a sua penetração
You ng resume . com e S~é\ palav ra. o conjulllo da sua doull'ina. original. Com efeito, e m Hutcheson, as frontei ru s que Sha h es­
de 1l1:llle iru muit o denslI c !;IlTact.:rÚ ticl1 . Ele tl!llJ o se ntimenTO bury tj nha tâo C\.iidadosa me nle estabelecido ent re ... receptivi­
forte c profun do dessa Tll ugia qUI: se mantém cx.:ulta em IOda dade" e "espcnlaoeidade", eot re "sensação" e "intuição", c0­
grande obra de arle; é esse )i,:nti menlo que ti SU<i dOu lrina pro­ meça m a apag<lr-SC. A expressão por ele escolhida para carac te­
CU f U vc~ t ir d~' Pilluvras e converter em conhcc imenll.l conC\! plu al. rizar a natureza da belo jé é por si mesma significativa ! ele
Essa magia dá pucsia mio ex ige nem tokru a mcd íaç:io das nâo vê melhor comparação, a fim de expressa r o imediatismo
id éi il ~, pois sua ve rd:ldeiril força re pou~ a. just ll mentc, em seu da percepção da belo. que a da percepção sensível. Exis te um
imedialismo. Shukcspeare não linha recebido nen huma forma. sentido especHioo, o qual não é dcfinivel ou redutível de outro
ção de let rado_ 110 passo que dois livros estava m permllnCIlIC­
modo , para a percepçio da bela , da mesma manei ra que a
mente a bertos dia nte de seus olhos, dois livro) que de "abia
olho é o sent ido esptX:ifico da percepção das cores, a ouvido o
dedfro.r melhor do que ninguém: o livro da natureza I! o liv 1"o
sentido específico da percepção de sons. A quem não o possui
dos homens .u Essa força element ar donde: provi nh am as tra­
não existe ne nhum oulro meio de comunicar-lhe a abjeto por
géd ia:. de Shakespea re pllrcc; a esta r há muita h:mpo extinta na
via indi reta ou por demonstração, da mesma COrOla que a exis­
literatura dramá tica inglesa do sCcu lo XV III , c a :.opro dI.! vida
lênd3 de cotes e de sons só ê demonstrável pela consciência
que ele lhe insu fl ara pa recia apagado : mas a tooria procura
:.empre conjurt: r as grande$ sombras e dar- Ih e ~ a pal avra_ pois efe tiva de sua presença.1t O Cato de que Hutchcson vincula a
e:.t â penuadida de que a vl.!tdadeirll natureza do bdo só e aces­ sentimento do belo, da harmon ia e da regularidade a um "sen­
sível a lima exploração das verdadeira s "obra) originliis ·-. a ~ tido interno" , diferente dos sent idos externas, contrapondo a
,-!u;ris silo as unic.a:. a deter um poder mágico a utênt ico_ t: de estes úllimos suu especificidade e sua independência, nio per­
(Iue naufl há a a prender com im;tadorc ~ e epígonos . Essas obras mite alimenta r ilusões quanta ao nivelamento e à confu são de
não falam simplesmentc ao nos~o e ntendimento c uo nosso gosto : que o pensame nto de Shahesbury começa sendo objeta. Pois o
I;'Iu5 pennit-:m 11 tcmpcs tadl! das pair.õcs daNe li vre curw em ~ gê nio " pode ser agora defin~do, de novo, coma o simples dom

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de um tipo de sensibilidade e assimilado à " delicadeza do Sh a rte~ ury representa, portanto, na sua concepção tanto
gosto" (Jeinen Geschmack). Como, por outra parte, Hutc heson da a rte qua nto da natureza , orna perspectiva pura me nte dinâ­
mostra-se fiel aos princípios fundamentais de Shaflesbury, de. mica. Mas c umpre distinguir com exlremo rigo r esse .. dina·
paa-se, em sua teoria do "sell.to sentido" , com um dilema mismo " de outras perspectivas com as quais poder ia ocorrer a
difíci l, de um simples ponto de vista de método. H einrich von tentação de aproximá-lo. A primeira visla, parece existir a mais
Sle in, em seu EntslehuII8 der ncueren AeSlhetik f Origem da eslreita concordância entre Shaf t ~bury e Dubos, porquanto
nova estética), disse da do utrina de Hu tcheson que el a sofria, as Réflexions critiques sur la poésie et la peinture, de Dubos ,
de certo modo, da cOnlradição de um "sen!ido 3frio ristico", apenas pretendem ju stiricar e desenvolver pl enamente a tese de
uma vez q ue fundamen tava o belo na sensação, ao mesmo tem­ q ue o valo r e o e ncanto do belo consistem simplesmente na
po em que, por outro lado, descartava todn conseqüência em­ estimulação e eievação dos poderes da a lma. Ent retanto, Ou·
pirista e mantinha a validade universal dessa mesma sensação. bos , ao considerar essa " vivaddade H esté tica (aesthetischc " Reg~
Mas a o bjeçiio q ue é aq ui levantada a plka·se a ind a mais, e vj. samkeit ") somente do ponto de vista do observador e não do
denteme nte, à expressilo q ue HUlcheson de u ao seu pensame nlO ponto de vista do arti sta, ao pondera r sobre a a tividade de
do q ue ao seu próprio conteúdo. Essa expressão é deficie nte e contemplação mas nãu sob re a de criação, subve rte todas as
ambfgua uma vez que procura revcsti r COm a linguagem do med idas e todos os valo res em rel ação a Shaftesbury. Ambos
empiri smo uma in tuição o riunda da es té tica intuicionista de estão de acordo apenas na parte negativa e nâo na parte posi·
Shaftesbu ry. O q ue carac teriza o conceito de intuição estética tiva de suas respectivas teses, no que refut am e reje ita m mas
de Sha ftesbury é, justamente, o fato de ele recusar toda e qual­ não no q ue afirmam. Opõem-se a toda tentativa de submissão
que r alternativa entre " razão" e "experiênci a ", entre o a priori do belo a regras precisas, estabel ecidas em termos defi nitivos ;
e o (1 posteriori. A in tuição do belo deve a brir o caminho para concedem ao gênio O direito e o poder de quebrar todas essas
a superação desse conn ito esquemático q ue domina toda a tco. Tábuas da lei a fim de criarem out.ra5 novas, e!Danadas de sua
rja do conhec imento no século XV] fi ; ela deve coloca r O es. própria auto ridade. Opõem-se a toda tentativa de apreensão da
pírito em posição de a rbitrar esse connito. Pa ri) Sha ft esbury, e5$ência do belo peJo simples "raisonnement ~, por definições
o belo oâo é, com efeito, uma idea innala. no sentido carte. conceptua is purame nle discursivas e pela decomposição anal(­
siano , nem um conceito .abstra to da exper iência, na acepção de Hca dos conceitos. Eles ensinam um oulro conhecime nto " jme~
Locke. I! au tônomo e o rigi nário, "'inato" e necessári o, no sen­ disto" do belo, m as a fonte desse imedia tismo I! inteiramente
tido de que não se tra ta de u m simples acidente mas de que di ferente cm Shaftesb:Jry e em Dubos. Para o primeiro reside
perte nce à própria substâ nc ia do espírifO e ex pri me-o segu ndo no pl"ocesso da criação pura, enquanto, para o segundo, deve
um modo perfe itamente específico. O belo não c um conte údo ser procurada em certos modos do perceber e do conceber que
adquirido por experiência nem uma representação (Vorstellung) não comporia m o ulra <!edução. Tod a a frui ção estética deve
que seri a, desde o começo, confiada ao espírito em moedll seu nascimento a certas reações que a visão da obra de arte
scnante : é UnJO direção essencial, especifi ca, uma energia pura t:­ produ z no espectado r, que se sente a rreba tado e extasiado peta
uma fun ção o rigiilal do espírito. obra, empolgado pe lo seu movimento. Quanto mais possante é

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esse movimento, mai$ intensamente o sentimos e melhor se atin­ {rimemo e das paixões. Ele não desenvolve, como Sha ftcsbury,
ge o objetivo a que o anista se propôs. Uma \'ez que Dubos uma estética intuitiva que $e insere r.o centro do processo ar­
pTOCura assim o movimemo pelo movimento, faz da intensi­ lís!ico e lenta revelar seu modo de ser, suas regras e suas mc­
dade de excitação que a obra de arle provoca em nós quase a didas interiores, seu ritmo próprio. Pro~ uma est~lica do
única medida de valor estético. A qualidade da obra, sua na­ "pa t~ tico » que eumina e confronta os estados interiores, os
tureza e sua maneira de ser própria passam, para ele, a se­ puros pathe suscitados no homem pelas obras poéticas e plásticas.
gundo plano, quando não perdem loda a importância. e ca. A exigência suprema que devemos fazer ao artista, a regra por
racterístico que Dubos, desde o infcio de sua obra, ao justi­ exctl!ncia, quando não a única, que podemos impor ao gênio
ficar a tese de que o espfrito tem suns necessidades, lal como não é a 'de submeter-se, naquilo que produz, a certas normas
o corpo, e de que o seu instinto mais potente é O de permanecer objetivas, mas a de estar, como sujeito, em tudo o que cria, cons­
em constante movimento, não coloca em destaque fenômenos tante e inteiramente presente, comunicando e impondo aos es­
puramente artfsticos mas dá a essa lese uma diferente e mais pectadores suas comoções inter iores. "Sejam sempre patéticos e
vasta penetração. Ele não hcsi la em colocar lado a lado a im­ nunca deixem os vossos espectadores nem os vossos ouvintes
pressão que nos é causada à vista de uma pintura ou à audição ficar impacientes", lal é, segundo Dubcs, a primeira máxima de
de uma tragédia e CS3as oulras emoções que sentimos diante, que o esteta deve persuadir o artista. O "polético das imagens".
digamos , da bárbara execução de um criminoso, de combates nilo a sua semelhança com os objetos exteriores, eis onde reside
de gladiadores Ou de espelékulos de tauromaquia. Em um ou o valor dos quadros ou das pinturas poéticas. Ao retornar à força
oul.r o caso, o homem é movido pejo mesmo impu!so: não s6 primordial da paixão, a estética de Dubos exerceu. sem dúvidtl,
ele suporta a visão do pior sofrimento mas chega mesmo ti ·uma influência tonificante e fecunda mas cujos limites não são
procurar tal visão, porque essa o alivia do peso da inalividtlde . claramente perceptiveis. Uma doutrina tão excl usivamente orien­
da OCiosidade. "O t~dio que não tarda em acompanhar a ina. tada para o espectador quanto a de Duhos corre constantemente
ção da alma é um mal tão doloroso para o homem que esse o ris::o de só medir o conteúdo estético da obra de arte pelo
empreende às ve~ trabalhos sumamente penosos a fim de efeito que ela produz sobre o Cl!ipectador, até acabar por con·
evitar que o t~dio O sufoque e atormente l. .. J Assim, acerremos fu ndi-los . A obra de arte ameaça então converter·se em simples
por instinlo aos objetos que podem excitar as nossas paixões, espetáculo. Que e1a satisfaça a curiosidade, que ela despeTle a
embora esses objetos nos causem impressões que nos custam, simpatia do ouvinte, que entretenha e instigue li sua excitação. e
com freqüênci.a, noites inqujetas e dias dolorosos: mas, em ge­ pouco importa, em defini tivo, por que meios é alcançado esse
ral , os homens sofrem ainda mais ao viver sem paixões do que resultado. A simples força do efeito produzido é um critérío
por causa das paixõcs que os fazem sofre:." 3Il estético válido; o grau de excitação atingido decide do :seu valor.
Poesia e pintura nnda mais se propõem senão a agradar e como­
Assim, a dindmica que Dubos quer fundar para compreen.
ver, está aí sua verdadeira grandeza: "Le sublime de la poésie
der a natureza e os efeitos da obra de arte nào é, como em
I!"I de la peinlure esf de foucher et de plaire." "~ Kant objetou um
Shaftesbury, a da criação de imagens e de form as; é a do 50­
diOl à ética do eude:nonismo quando di sse que ela nivelava todos

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os valores morais e finalmente os destruía: aquele que mede o que v ive sob O poder da estimulação c ner.t por um instanle pode
vn!or moral de um Elo apenas pelo prazer qu.e ele lhe propor­ escapar a esse poder absnluto, o mundo das formas puras per·
CitlO8 não se interroga sobre a nalUreza e a origem ele prazer, do manece juslmnente fechado, pcis nunca a forma poderá ser per­
mesmo modo que ao que quer possuir ouro tanto faz que ele cebida e compree:-.dida no seu ~ntido próprio e assimilada se não
seja extraído de umt mina ou da areia lavade . Poder-se-ia fazer se distir.guir ôo efeito que ela exerce e promove no âmbito dc um
30
um3 objeção comparável cOl"!tra a estética de OU.oos que resolve objeto autônomo da reOex.õo, da pura contemplação estética. A
no sentimcntc todo conteúdo estético, e todo sentimento na exci· intuição do belo, que cumpre distinguir cuidadosamente da sua
lação e emoção. O simples fato dess3 emoção torna-se aqui o simples sensação, só é despertada nessa contemplação que não é
único critério seguro que decide sobre o valor cu o r:li.o--valor de uma simples paixão da alma e sim o seu mais puro modo de
uma obra de .arle: "Le véritablc moyell de connaitre le mérite agir, a sua atividade própria.
d'un poeme Sl!ra touiours de cO',sulter l'jmpression. qu'il fait." ar A relação da "beleza" e da "verdade", da "arte" e da " na­
Comparada com a de Shaftesbury, a doutrina do gosto de tureza" , também recebe dessarte uma nova definição . Shaftes­
Dubos manifesta a mesma dilerença característica . No começo, bury exige mais do que um completo acordo entre esses termos:
ele parece estar intciramen te de acordo com Shaftesbury ao ir:sis­ ele parece q uerer aprofundar esse aco!d!.l até o ponto de apagar
tir sobre o imediatismo do gosto e ao explicar que se deve jutgar todas AS di~tinções, até aUrmar sua completa identidade. E, no
a obra de arte "pela via do sentimento" e não " pela via da dis­ entanto, equivocar.se-ia redondamente a resrx=ito da fó rmu la:
cussão".u Mas depois situa o imediatismo em outra parte e jus­ "All beauty is truth" [Toda beleza é verdade) quem pensasse
tirica-o por uma via inteiramente diferente. Enquanto Shahes­ que ela ofende a "imanência" do belo e sua autonomia, pois a
bury procura-o no princípio da intuição estética pura, Dubos harmonia que Shaftesbury afirma existir ectre verdade e beleza
limita·se à comparação com a simples sensação. O "gosto " ca i não significa, em absoluto, dependência de uma em relação à
assim para o nível da allvidade sensorial que tem o mesmo r:O!De: outra; ela deve, pelo contrário, abster·no~ de aceitar uma tal de­
o nosso sentimento, diz Dubos a certa altura, julga a obre de pendên..:ia, um a dependência unilateral. A relação é substancial ,
<irtC como a nossu língua julga a qualidade e a excelência de um não causal; trata-se cle determinar a essência da natureza e da
ensopado de vilela. A esse fundamento da es:ética falta todo arte, não a ordem rio antes e depcis para suas criações respecti­
princípio segu ro para garantir uma distinção entre "sentimento" vas. Segu ndo Shaftesbury, a arte está ligada muito intimamente à
e mera "sensação~, en tre "belo " e o simplesmente "agrac!ável". natureza, nada pode atingir e nada deve lentar que ultrapasse os
Fora Shaftesbury, em contrapartida, essa distinção está no cer.ttO limites da natureza. Mas o íntimo acordo com a natureza que é
de sua meditação, e sua doutrina do "prazer desinteressado" _ exigido da arte não significa que ela estej a envolvida na reali·
o mais importante resultado particular com que ele enriqueceu a dade das coisas empíricas e que deva contentar-se em copiá-Ias.
estética - dela proveio. A essência e o valor da beleza não re· t. na criação, não na imitação, que se atingirá a "verdade" da
sidem, para ele, na estimulação que ela e~e rce sobre os homens, natureza, no seu senüdo mais profundo; não é a totalidade das
môlS r.o (ato de que Ines abre o mundo da forma . Para O animal criaturas roas a força criadora donde promanam a forma e a

426 427
ordem do uni verso. E nesse único domfnio q ue a beleza deve
rivali ~ar com a verd2de, o art ista com a natureza. O verdadei ro jetividade das coisas e dos fatos, que tende a exigência de ver·
artista não se c!edic2 a recolher laboriosamenle na natureza os dade shaftesburiana, e é dessa natu reza que ele faz a norma da
elementos de sua obra : ele imita um exemplo, um modelo p ura­ beleza. Quando Kant, na Critic:a do juizo, definiu o gênio como o
men te in terior que se lhe apresenta Como um todo origina l e talento (o dom natural) que dá sua regra à arte, ele empreendeu,
indivisível. Esse mesmo modelo não é, porém, simples aparência; sem dúvida, o seu próprio caminho para a fundação transcen­
ele hannoniza·se, por certo, se não com a realidade efetiva das dental dessa proposição, mes O próprio conteúdo dessa definição
coisas, pelo menos com a sua verdade essencial. A criação do concordará perfeita mente com Shaft esbury e os princípios e hi­
artista não é o simples prod uto de Sua imaginação subjeHva, póteses da sua "estética in tuitiva".
um " rantasma" vazio ; o ser que ela expri me é um ser verdadeiro. Em meados do sécu lo XV II [ uma nova etapa foi cumprida
ou seja, uma necessi dade , uma lei ve rdadeir<lmente interior. O no sen tido de urna nova e mais profunda concepção da "subjeti­
gê nio nâo recebe essa lei do exterior, ex trai·a , pelo contrário, de vidade " estética, quando os problemas estéticos adq uiri ram ainda
sua própria espontaneidade. Ora, verifica-se que essa lâ, q ue não maior amplitude com o surgi meto. a par da "analÍl ica do belo",
é adotada da natureza, nem por isso deixa de estar em pe rfeita de uma "analítica do su blime " que rapidamente ganhará con tor­
harmoni a com ela, não cOntrad iz absolutamente Suas formas es­ nos claros e consistentes. Sem dúvidu, essa disciplina não trouxe
se nciais mas , pe jo contrário, revela·as e confírma.a~. "A natureza nenhum enriquecimento de con teúdo, porquanto se limitou a des·
está pari:! sempre ligada ao gênio. O que um promete, a outra tacar um elemento cujos traços podemos encontrar até nos pri­
certamen te o rea líza " ; com essas palavras SchHler tal vcl tenha mórdios da estética Hlosófica. A própria dout rina clássica já
dado a mais densa e ma is tópica fórmula da concepção de Sha{. o fora buscar à tradição antiga. BoHeau traduziu e comentou
tesbury das relaçãcs da arte e da natureza. O gênio não tem que trn 1674 o tratado Sobre o sublime, de Dion{sios Lcnginos. 40
ir em busca da natureza e da verdade; tem-nas em si mesmo e, Mas não se encontra nesse comentário a meoor sugestão no sen­
se se ma mi vcr sempre fie l a si mesmo, pode esta r certo de que ti do das novas aplicações e da importância teórica que O pro­
elas jamais lhe ralta rão. O FIJ'incfpio de "subjetiv idade", ao invés bl ema do sublime encontrará na estética do século XVIII. A
dessa fonna de imitação da natureza que a estética clássica ex i­ philosophical inquiry into lhe origin 01 Qur ideas 01 lhe sublime
gia, conserva, portanto, a sua validade mas. por out ro lado, essa
attd beuuliful ( t 756) LUma investigação fil osófica sobre a ori­
subjetividade significará agora algo muito diferente do que é des­
gem de nossas idéias do sub lime c do belo]. de Burke, constitui
crito nos sistemas empiristas e psicológicos. Se o Eu se resume
a primeira abordagem decisiva do problema. Em primeiro lugar.
nessas teorias num simples " feixe de representaçôcs", para Shar­
a obra de Burke não é sistemática ; sua orier.ração é, sohretudo,
tesbury ele é uma totaljdade originária e uma unidade indissolú_
psicológica . Ele não apresenta uma doutrina estética pronta c
vel, essa unidade onde di scernimos, co rreta e imediatamente, a
estrutura fund amental e o sentido do COsmo , ande ap reendemos acabada mas dedica-se li tralar de certos fenô menos estéticos a
por intuição e simpatia o "gênio do Todo" (Genius des AlIs) . e cuja análise procede com clareza metódica, descrevendo-os com
para essa "narureza inte rior ao sujeito", não para a simples ob-­ escrupulosa fide lidade. Mas foi justamente essa simples descrição
que o levou a de~cobri r uma das lacunas da estética teóri ca, tal
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como vem sendo considerada desde então. Embora se tenha o trário, afirmarmo-nos na sua presença, chegar fi exaltação e ao
costume de considerar a ordem, a proporção, a delimitaçãc fi xa recrudescimento de todas as nossas forças: tais são os fatos que
e li simplicidade do contorno como as marcas do objeto belo, se o(erecem no fenômen o do sublime e sobre os q uais repousa a
essas características não tardam em revelar-se insuricientes para mais profunda estimulação estética . O sublime rompe as fron­
abranger a totalidade dos elemer:.tos Gue constituem o valor es. teiras da [ioitude; entretanto, essa ruptura não é vivenciada pelo
tético e a eficáca da arte. Falta a essa definição englobar toda Eu como uma destruição mas como uma espécie de exaltação e
uma classe de' fenômenos cuja realidade impõe-se a cada passo de libertação. Pois O sentimento de inrinito que o Eu descobre
8 toda observação independente que não ofusque nenhurr. pre­ em si mesmo fornece-Ihe uma nova experiência de sua própria
conceito teórico. Os mais prorundos movimentos d<l alma , as infinidade. Essa concepção. essa ddinição do subli me ultrapas­
experiências artísticas mais intensas não são despertados em nós sa , portan to , não só os limites da eSlética cl ássica mas também o
pela contemplação da "beleza" como proporção serena e cOns­ pensamento de Shaftesbury , porque, para estc último, mesmo se
trução rigorosa. Uma excitação mais viva manifesta-se quando no hino à natureza de The maralisls proclama sua profunda seno
estamos em presença não da exa la del im itação da forma mas, sibilidade a todos os encantos do sublime, a idéia da forma
pelo contrário, da sua discordância , inclusive da sua dissolução subsiste como o princípio estético verdadeiramente fund amental.
completa. Tanto quanto a form a. no sentido do classicismo es­ E a ~subie t ividade" , no âmbito da estét ica. também recebe, por­
trito, também o in/arme (Unjam) possui seu valor e sua legi­ tanto, um novo sentido e liga-se a novas finalida des. A impor­
timidade esl~ticos ; tanto quanto o ordenado, o desordenado tância da doutrina do sublime para a história das idéias está, do
(Ungeregelte), tanto quanto o mensurável. segundo certos cri­ ponto de vista da arte, em subli nhar os limites do eudemonismo
t~rios, o incomensurável (Masslose). Esse fenômeno, que des­ e em escapar à sua estreiteza. O resultado que toda a ética sete­
trói o quadro conceptual da estética de então, recebeu de Burke centista se esforçara em vão por alcançar cru aqui como um frut o
Q designação de sublime. O sublime escarnece da exigência esté­ maduro por obra e graça da estética . Para desenvolver a sua dou­
tica da proporcionalidade, visto que a transcendência, a supe­ trina do sublime, Burke deve efetuar uma rigorosa distinção
ração da simples proporcionalidade, constitui o seu verdadeiro entre dois aspectos do conceito de ~praze r" estético. Ele reco­
caráter. Ele consiste nessa mesma transce ndência, age at ravés nhece e descrevt uma espécie de prazer que nada tem a ver com
dela e por meio dela. O que formamos e delimitamos interior­ a simples rruição sensivcl, nem com essa alegria que experimen­
mente na intuição pura não age somente sobre nós; também tamos na con templação do belo , experiência que é de uma natu­
existe aquilo que escapa, justamente, a um tal esforço, aquilo reza espccHicamen te diferente. O sentimento de sublime não
que nos submerge em vez de ser modelado e regido pcla nossa constitui um grau 5upt:rior desse prazer ou dessa alegria: opõe­
própria experiência. Em nenhum momento somos mais vivamen­ se tunto 11 um qt1~ nlo à Olltra. Não se pode caracterizá-lo como
te agarrados do que por esse impalpável, em nenhum momento um simples " prazer" ( pleasure), porquanto é a expressão de uma
sentimos a força da natureza e da arte do que qUilndo nos apre. emoção de mu ito dikrcnte espécie, de um arreba tamento, de um
se ntam c "terrível" . Não sucumbir dianre do terrível , pelo con­ ddcite (úe/ighl) singu lar que não excl ui o temor e o tremor mas.

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pelo con trário, os exige e envolve. Existe. portanto, uma fon le de estética clássica jamais realizara plenarnenle, é verdadt, O seu
praur estético puro que se mantém rigorosamente distin to de ideal teórico: em vez; da "verdade da natureza " p ro~ura Jn, sur­
uma simples exigência de fe licidade, do instinto de fruição e da gira uma verdade social, relativa e contingente; ~m vez :ias leis
sat isfação de necessidades limitadas: "A 50rt 01 delight luU 01 universais da razão. certas convenções sociais.·: .\ teoria do su­
horror. a 50rt 01 trul1quil/ity tinged \Vj/h terror." ti E há ainda bUme reconhece esse perigo. Ela distingue, mais ~s tri tam.:n le do
uma outra exaltação e uma outra libertação que se realizam que aDtes, a "essência" da "aparência" , a naturem do hf.bito, a
graças à problemática do sublime. Já niio se trata ape nas da li. substância do Eu e suas ve rdadeiras profundidades dos s<'1-Is ele­
berdade interior do homem em relação aos objetos da natureza mentos meramente rel ativos e acidcntai s. O prob 'ema do gênio
e da pottncia do destino: o sentimento do subli me libert a além e o do su blime agem aqui na mesma direção: vão' tornar-se os
disso o individuo desses milhllrcs de vínculos que fazem dele temas intelectuais do desenvolvimento e da progressiva etabora­
um membro da comunidade e da ordem soc ia l bu rguesa. Na ção de uma nova e mais profunda concepção da individualidade.
experiência do belo também caem essas barreiras: o Eu possui
seus próprios alicerces , sobre os quais se apóia . e deve afirm ar.se
em sua independência e em sua esponlsncidade contra o uni ve r­ Entendimento e imaginação. Goltsched e os sDiços
so, tanto físico quanto social . Burke insiste exp ressamente em
que existem no homem dois instintos básicos: um que o inci ta Qu ando se compara o desenvolvimento da est4tica alemã do
a realizar sua própria nutureza individual e O outro que o tOl"lla século XVIII com o das estéticas francesa e inglesa , logo surge
propenso a viver em comunidade . No primeiro reside, segundo uma diferença característica nas tendências profundas e no am­
ele. o sentimento do sublime, no segundo o sentimento do belo. biente intelectual. E impossível, por ccrto, se considerarmos sim­
O belo une, o sublime isola. Um civiliza, moJ~lando as fonnas plesmente o con teúdo dos problemas particulares assim como a
convenientes das trocas e das relações soc iais e servindo para O análise e a definição dos conceitos fundamentais, traçar uma
refinamento dos costumes: o outro mergulha até as profundezas fronteira precisa entre as diversas culturas nacionai s, Como é o
caso geral no século XVIII, produziu-se nesse domínio uma inin­
do Eu e coloca-as pela primeira vez à sua plena disposição. Não
terrupta troca de idéias_ Os fios correm por aqui e por ali e
existe nenhuma outra expe riência estética que proporcione ao
entrelaçam-se tão bem que é quase impossível isolá-los da tes­
homem na mesma escula que o sentimen to do su blime a coragem
situra acabada c remontar à sua origem. F. por essa razão que
de ser ele mesmo, a coragem de sua pr6pria "originalidade ", de
não existe nenhum tema intelectual, nenhum princípio ou teo­
sua natureza profunda. Assim é transposto um obstáculo que,
rema especial sobre os quais as~ cntar ia uma atitude original da
como vimos, manifestara-se ao longo do desenvolvimento da es.
estética alemã. Não há, por assim dizer, nenhum conceito ou
tét ica clássiça e que consistiu em crer que as regras apenas ex­ teorema do qual não se possa encontrar o análogo ou O pnr3lelo
primiam a pura e simples "verdade" du obra de arte e não lhe nas li teratu ras francesa e inglesa. E. no en tanto, todas as in­
impunh<l m outros vínculos senão aquelc~ ati nentes à própri,l fl uências franco-inglesas que se exercem na Alemanha a( adqui­
coisa, à natureza dos diversos gêneros artísticos. A práxis da rem logo um novo sentido e outra fin alidade : vê-se pela primeira

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Vt:Z.os problemas estéticos, em seu conjunto, colocarem-se, por o verdadeiro fundador e instiglldor do seu futuro desenvolvi­
aS!lm dizer, sob a dirtção e a tgide do. Jilosofia sistemática. Ne· mento, quem menosprezou e repeliu a coação de lodo sistema
nhum dos grandes mestres da estttica alemã decidi u ate r-se à rilosófico. Shaftesbury linha la nçado esta mordaz sentença: "O
observação e descrição nem encerrar-se no círculo dos fenômenos caminho mais razoável para endoidecer é passar por um siste­
estéticos. A questão que, pelo contrário , é incessantemente ven­ ma." H Na Alemanha, porém, mesmo ao travar a batalha por
tilada é a das relações entre a arte e os outros domínios da vida direitos e independência da imaginação, a estética nunca se er­
espiritual. Procura-se espedficat constantemente as faculdades gueu contra o domínio da lógica. Niio combatia contra a lógica
estéticas em face das outras facu ldades, em face do entendimen­ mas em estreita união com ela; não queria libertar a imagin ação
to, da razão, da vontade. estabelecer fronteiras claras e precisas da supremacia da lógica e exigia e procurava uma " lógica da
de modo a inferir dessas distinções e delimitações o traçado de imaginação " específica. Quando os suíços, defensores da ima­
um quadro de conjunto do espíri to em sua unidade interior, em ginação no conflito en tre "razão" e " imaginação", voh aram-se
sua diversidade e em seus níveis de ser. Esse espírito de sistema contTa Gottsehcd , eles não pretendiam com isso renunciar ao
é o que fo i implantado por Leibniz na filosofia alemã, depois rigor lógico de Wolff. A obra de Bodmcr, Von dem Einjfusse
elaborado e ensinado em toda a sua rigidez pela escola de und dem Gebrauche der EinbildunBskraft, zur Ausbesserung des
Christian W ollf. Nem a França nem a Inglaterra conneceram Geschmackes [ Da influência e do uso da imaginação no aper­
nunca.um tão estrito rigor, tamanha "disciplina" teórica em es­ feiçoamento do gos to], é dedicada a Wolff e, de certo modo,
tética. Na França, desde o começo do século XVIII , com a in­ coloca-se ex.pressame nte sob sua égide: foi a sua " maneira de­
fluência das obras de Bouhours e de Dubos, o espírito estrita­ monstrativa de nlosofar" que permitiu, declara Bodmer, esta­
mente racional da Hlosofia cartesiana tinha sido progressivamente belecer finalmente as artes sobre fundações seguras. De Wolff,
rechaçado. No desenvolvimento ulterior, uma estreita ligação sub­ portanto, os suíços retornam enlão a Leibniz e t ainda à obra
sistiu, sem dúvida, enl re a fil osofi a e a critica estético-Iiterária, do Leibniz 16gico que eles se referem em primeiro lugar. Com
mas é a própria filosofia que rejeita agora, de maneira expressa, efeito. eles declaram que o maior serviço prestado li causa da
a forma sistemática. Depois do Tratado dos sistemas de Con­ fund ação de uma filosofia da arte foi ter " desferido um golpe
dillac, travou-se uma batalha generalizada contra o "espírito de mortol na sensação" pelo sistema da harmonia preestabelecida:
H
sistema .'3 Fal ando de Diderot, considerou-o Lessing o primeiro "Ele despOjou-a de sua jurisdição por tanto tempo usu rpada,
espírito filosófico desde Aristóteles a debruçar-se sobre o teatro. reduzindo-a a ser apenas uma causa ministrans e occasionafis do
E, não obstante, a filo sofia do drama segundo Diderot, conforme julgamento da alma ." ~:; Pela posição central que o problema do
d e mesmo declarJ em seus diólogos sobre a arte dramática, é ;ulgamenlo adquire nos suíços, vê-se claramente que eles não
nada menos do que sistemática. Não é logicamente construtiva, têm a menor intenção de desfazer o vínculo que une lógica e
não está permanentemen te ocupada em deduzir e concluir; não estética. Ocupam uma posição média num desenvolvimento que
se move numa seqüência de observações sumárias (aperçu s), é conduz a lima síntese e a uma sólida associação entre lógica e
espontânea e eclética. E também na Inglaterra foi justamente o estét ica, desenvolvimento que e ncontrou seu ápice e sua con·
pensador mais profundo e o mais fért il no domínio da estética, clusão na Critica do juIzo, de KanL

434 435
Se se considera todo esse conjunto, é evidente que fica ain­ cle cita Shaftesbury e Addison, tendo tomado deste último , ex·
da mais difícil definir O verdadeiro tema do confl ito que opôs plícitamentc, a forma de suas crônicas semanais - e , por ~ulro
Goltsched aos suíços. O próprio conflito agitou apaixonadamente lado, as tcorias sufças estâo repletas de sugestões provementes
os espfritos na Alemanha do século XVIII e temos um teste· da estética ftun cesa. No prefácio de Critischen Díchlkunst [ Arte
munho da profundo. marca que deixou no conjunto da vid a es· poética crflica}, de Breüinger, Bodmcr recorre explicitamente a
piritu al alemã, de sua poderosa influência sobre o desenvolvi · Oubos pa ra mostrar que "os melhores escritos não nasceram das
menta inter.no da poesia alemã, graças à Poesia e ),'erdade, de regras mas que, pelo contrário , as regras é que são extraídas dos
Goethe. Entretanto, os próprios contemporâneos tinham dificu l· escritos". A verdadeira diferença en tre Gottsched e os suíços
dade em separar o vtrdadeiro cerne do problema do estardalhaço niio poderia ser caraçterizada desde o exterior mas só de dentro,
das polêmicas. "Parece·nos" - escrevem Myli us e Cramer no não pelo tipo de influência a que eles são submetidos mas pela
prefáci o dos Halfischen Bcmühungen zur lJejOrderung der Kritik maneira di versa como elaboraram suas respectivas problemáticas.
ul1d des guten Gcschtnack s [ Ensaios de Halle para a promoção E essa diferença s6 é plenamente esclarecida se lançarmos um
da crÍlica e do bom gosto] - U que os escritos suíços sobre a olhar para além do círcu lo dos problemas puramente literálios e
poesia teriam podido ser arrumados num urmário ao lado da arte puramente estéticos, se nos apercebermos de que o conflito que se
poética de Gottsched sem que se desencadeasse uma batalha, reflete aqu i constitui apenas um momento partk ular, uma ação
como escreve Swiít a respeito dos livros dos antigos. Não esta· local num mu ndo intelectual muito mais vasto. Só se pode com·
mOS em condições de responder, quanto ao fundo , àquel,::s que ,reender no Omb it o da situação intelectual de conjunto do sé­
nos interrogam sobre as verdadeiras causas dessa dissensão crí­ culo XV III a tese que Gottsched e os suíços devem fazer triun·
tica. O poeta que algum dia cantará esta guerra terá necessi dade far no interior da poética . Por bizarro que isso possa parecer no
de tanta inspiração, sem nenhuma dúvida , quanto Homero quan­ começo, não se pode deixa r de considerar, para faur historica­
do quis descrever a briga de Aquiles e Agamenon."·' Não pa­ mente toda a luz sobre o antagonismo entre Gottsched e os suí·
rece que as análi ses de história literária e fil osófica que vimos ços, nâo só o estado do problema da lógica mas também da física.
surgir depois tenham sido motivadas pela dita "' inspiração" , Uma nova forma de lógica tinha começado, com efeito, a desen·
porquan to as opin iões uinda se opõem diamctralmeJl te no tocante volver-se 110 século XVJIl na física e graças a esta. Ao idcal de
aos verdüdeiros motivos do conflito e às forças que nele inter­ uma 16gica puramente ded utiva, progred indo do geral para o par­
vieram. Hettner declara que a q uestão decisiva que está em de· ticular, infetindo este daquele , opusera·se o ideal da análise em­
bate sob o véu das querelas pessoais é facilme nte apontada : tra· pírica. Esta não renuncia , de maneira nenhuma, aos axiomas e
tar·se·ia do " pri meiro choque realmente sério na guerra entre as pri ncípios un iversais mas, em vez de afinllá-Ios como inabaláveis
influências fran cesa e inglesa". Gottschcd seria o part idário fer­ proposições a priori. estabelecidas de uma vez por todas, quer
voroso, parcial até o exclusivismo passiontl l, do classicismo fran­ extraí·los da consideração dos fcn6menos e af fundam entar suo
cês. Da( seus acertos e seus equívocos hi st6ricos . Mas os papéis validade. A correlação entre "fenômeno" e ~princíp lo" é assim
não se repartem assim tão fa cilmente porque, por um lado, mantida mas o. ênfase foi deslocada. Os fenômenos não devem
Gouscbed não rechaçou as innuências da literatura inglesa ­ ser deduzidos de ce rtos princíp ios aceitos e fi xados de antemão ;

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são os princfpios que devem ser extraídos e ser sempre demons­ doutrina do "primado do evento sobre o julgamento " . .a evidente
trados por seu intermédioY Na explicação da natureza, é na que não renunciaram à intenção didútica, insis tindo até incan·
passagem de Descartes a Newton que se man ilesta com maior saveh\lc nt~ nessa intenção; contudo, essa deve ser realizada por
clareza essa mudança de espírito metódico; em estética, o seu um outro cuminho, não pelo caminho do entendimento mas pelo
aparecimento mais nftido e mais cerlO está na oposição entre da imaginação. A tarefa da poesia - os suíços, nesse ponto,
Gottsched e os su(ços . A ligação surpreendente que se manifesta concordam com Dubos - consiste em impressionar e comover;
aí entre dois domínios tão distanciados um do outro corrobora o "patético" não é, porém, o seu rim único e supremo. A emoção
uma vez muis essa unidade de eslrutura intelectual que earacte. imaginativa deve, antes, abrir o caminho à intuição racional,
riza o sécu lo XV I tJ . Descartes tinha colocado o plano de sua fazê- Ia penet rar no espírito do ouvinte. Aquilo q ue o simples
física, tal como foi traçado no T ratado do mundo, sob a divisa: conceito c a doutrina abstrata não permi tem deve ser adquirido
"Dêem·me a lTIéttéria e cons truirei um mu ndo." Como físico e pe la escolha correta de metMoras , de " imagens" poéticas (poe.
filó sofo da natureza, ele pode e deve tentar uma tal construção, tischen "Gleichnisse") . t: por isso que a imagem adquire agora
porquanto O plano do universo está claramen te exposto nas leis uma importância decisiva e converte·se no verdadeiro centro da
universais do movimento, Ele não tem a menor nocessidade de poética. O próprio Breilinger compôs um Kri/ische Abhandluns
ir buscar essas leis à experiência: elas são de espécie matemática von der Na/ur. den Absichten und dem Gebrauc11e der Gfeich~
e, por conseguinte, estão envolvidas nas regras fundamentais da nisse [Tratado crítico da natureza, das intenções e do uso das
mathesis universafis que o espírito apreende de si mesmo e per· imagens] ",a a fim de explicar esse uso por exemplos extraídos
cebe na sua necessidade. Gottsched, discípulo de Descartes e de de textos dos mai s célebres autores antigos e modernos. Mas, uma
\VaiH, acredi ta poder int roduzir a mesma exip:ência na área da vez mais, a imagem não tem sentido nem valor autônomo; ela
poesia e submetê·la ao domínio da "razão". u D':~m_me uma ma. constitu i apenas a preparação de outra coisa, o invólucro que
téria qualquer, um tema determinado, e eu lhes mostrarei como reveste essa outra coisa. "Assim como um médico hábil sabe
se forma a partir daí, segundo as regras universais da poét ica, açUCarar ou dourar as pílulas amargas, assim devem proceder
uma poesia perfcitu. U E mais ou menos nesses termos que se também todos aqueles que querem usar da verdade como de
pode transcrever o conteúdo e as intenções prorundas de sua um medicamento para alcançar a felicid ade humana." Em sua
Crilischen Dichtkunst. "Em primeiro Jugar, escolha·sc um juízo Critischen Dich/kunst, Brei tinger proclamará, portanto, que 8
moral instrutivo correspondente às intenções que uma pessoa fábula de Esopo é o gênero poético mais perfeito, porquanto
propõe·se a realizar; em seguida, imagine·se um evento muito cumpre com perfeição essa dupla tarefa. Ela foi inventada para
gerol em que sobrevém um.t ação na qual li máxima escolh ida assegurar a certas "verdades 5ecas demais e amargas dema is" um
tem o seu sentido claramente pronunciado." O "juízo", a ver. acesso ao coração humano, graças ao invólucro artístico de uma
dade teórico ou moral , vem, portanto, em primeiro lugar; o even­ múscara sorridente, de tal modo que ele não possa recusar sua
to poético segue-se, simplesmente, para ilustrá-I a, torná-Ia per. concordãncia.~ n O conceito de "maravilhoso", muito caracterfg.
ceptível graças a um exemplo oonCl"eto. Nos suíços, pelo con. tieo da poética dos suíços , também adguire desse modo, pela
trário, é a relação inversa que prevalece: eles representam a primeira vez, um sentido bem definido. O valor do maravilhoso

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não decorre de que nasce do livre jogo da imagin nção nem dc o fru to do arbilrário ou do cego acaso, que elu na~e ra m , pelo
que tronsgride todas as leis da razão. A invenção mais mauw i­ contrário. da observação atenta do que é verdadei ramente cons­
Ihosa pode não estar ligada a nenhuma realidade dada e sujeilar· tan te na im pressão estética, do que exera: UJDa inDuência deter·
se unicamente às leis do "possíve l ~, mas nem por isso estará minada sobre o espírito. A ciência da natu reza do século X VIlI
menos ligada, para ser ve rdadeiramente poéticlt, às suas ;Ilten· une ex periência e geometria, relaciomtndo-as constan temente cn·
ç&:s. POr tudo o que ela comporta de novo e de surpreendente, Irc si, do mesmo modo que pa rle da experiência e da observação
quer produzir um movimento de alma que conduzirá até o fim sensível para procurar por outra parte, no domínio do próprio
pretendido pelo poeta - uma finalid ade moral. Um mesmo observável, a necessidade matemática: os suíços ex igem do ver·
collflito de tell d~ll'Cias, que não eorrespondc a uma incompatibi· dadeiro crítico de arte que ele satisfaça essa dupl a obrigação.
lidade absoluta, surge igualmente no debate em torno das rela­ Ele deve subscrever a experiência que se Ih.e apresenta sob li
ções entre o " gênio " e as "regras ". Os sufços, já para n50 fa lar forma das grandes obras de arte e deixar-se. guiar por ela. Mas
de GOllsched, estão bem distantes da concepção do gênio que essa direção não significa uma submissão Hbsoluta. Assim como
conhecemos na "estética intuitiva " de Shahesbury . Bodmer e o físico descobre o rigor rnatemá tko no seio do sensível, o crí·
Breitinger não têm a menor in tenção de liberta r o gênio da se­ tico procura nas obras de imaginação uma verdade necessária.
vera disciplina das regras: eles também querem estabelecer nor· ultrapassando todo o arbitrário. Começa pela intu iç5~ e perma·
mas. Procuram, entretanto, descobrir essas normas nos fenôme· nece·lhe fi cl, mas descobre nela as formas específiCAS de deter·
nos, nos dados da arte ~tica, em vez de lhas impor. Partem da minação e a "certeza demonstrativa" de que ela é suscetível,
intuição poética para fe(;onduzi·la em seguida, bem entendido,
aos conceitos e 80S" principias especulativos". A principal supe­
rioridade deles. em relação 8 Gottsched , apóia·se no fato de que Fnndaçíio da estética sistemática - BaumgaJ1eu
eles são capazes dessa intuição num grau incom paravelmentc
mai s elevado e num sentido muito mais profundo. Homero, Quando Kant {ala de Alexander Baurngau en, a quem con·
Dante e Milton rcpresentam para eles verdadeiras experiências fere um lugar particularmente elevado entre os pensadores ale·
poéticas. Para o crítico, entretanto, essas experiênci as represen· miics do seu Icmpo , tem o :ostume de mcncioná·lo como um
tam apenas um começo e não um fim. As regras que aí se en· "excelente analista " (vortrefflichen AnaJysfen). Caracteriza des­
conlram implicitamente contidas, compete·lhe transportá·l as para se modo conciso e pertinente um traço essencial de sua índole
a claridade da consciência ; o qce a na tureza operou pelo gênio espi ritual e de sua obra cientírica. As obras de Baumga rten rea·
poético, a arte do cTÍlico deve "ex traí·lo do tex to" e convertê-lo IIzam no mais alto gr::m a arte da definiçiio e da análise tOn­
numa sólida e segura possessão. ~ assim que a força e a origi n::t· ceptual rigorosa. Entre todos os discípu los de Wolff, ele é aquele
lidadc dessa " análise empfrica " , extraindo do particular o geral, que domina com a maior segu rança a técnica lógica ensinada
da imagem concreta, do fenômeno concreto , a regra escondida, peta mestre que deu assim à fil osofia alemã a sua espinha dorsal
dcram uma vez mais suas provas. No prefácio de Critischcl1 e a fi rmeza de seu conteúdo. Pela precisão de suas formulações .
Dichtktmst, de Breitinger. Bod mer declara que as regras Dão siio pelo cuidado e minúcia de suas definições, pelo rigor das provas.

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a Metafísica de Baumgarten continuará )~en do por muito tempo dc empirismc ~ " .. ~ opõe diamctra1mente à intuição autêntkll,
um modelo admi rado. O próprio Kant referi u-se conStantemclllC verdadeiramente filosóf ica, e que (orma com ela o mais pc rfcilú
a essa obra e nela baseou suas lições de metafísica. Entretanto, contraste metodológico que se possa imaginar. Uma ciência re­
o verdadeiro mérito de llnumgarteo, sua importância histórit:.a cebe o seu conteúdo e o seu sentido filosórico quando com­
decisiva , está em outro ponto. Ele não é somente o mestre da preende o que representa na totalidade do saber. o lugar e a p0­
lógica escolástica, que dominou com brilho em todas as suas sição q ue lhe competem nesse conjunto. Ela .deve situar-se no
partes e que levou ao seu ma is alto grau de perfeição fo rmal ; gênero uni versal do saber e deve, ao mesmo tempo. no interior
o seu pape l intelectual próprio foi o de ter tomado uma forte desse gênero, dedicar-se a uma tarefa específica e cumprir essa
consciência dessa mesma perfeição, dos limites internos e nec~s­ ta refa de maneira caracteristica. O gênero. o conceito específico
sérios dessa lógica. Fo i pelo con sc iência que adq uiriu desses do saber corresponde ao conceito de conhecimento que deve, por­
limites q ue Ba umgarten desem penhou seu papel ori ginal e deu à 1a nto, rigurar na ápice e é Q único que pode constituir-se em
esté tica seus funda mentos filosóficos. t justamente desde que conceito supremo da definição procurada para 11 estética. Mas o
domina a sua tarefa de lógico que ele descobre a sua nova que é mais importante do que esse genus proximum que some nte
tarefa e q ue, ao abordá-Ia e m fun çüo de suas premissas intelec­ deve fornecer o quadro para a definição é o preenchimento desse
tuais, traz para a luz a detenninação dessas prem issas . t. assim quad ro, li diferença específica a precisar. 8aumgarten encontra
q ue a esté tica dcsenvolve-se a partir da lógica e que esse mesmo essa diferença quando determina a estética como a teoria da seno
desenvolvimento revela simultaneamente os limites imanentes da sibi lidade. do "conhecimento sens{vel". Parece , nesse caso, para
lógica escolástica tradicional. BauOlgarten não se restringe a ser julgar ti questão apenas do ponto de vista da escola e segundo os
um " artista da razão ": nele sc real iza de novo esse ideal da filo­ seus critérios tradicionais, que ele teria criado um ser logica.
sofi a que Kant caracterizou como o ideal do "autoconhecimento mente hlbrido, que retira eom uma das mãos à estética o que
da razão" (Selbsterkeltlllnjs der Vernun/l). Ele é e continua sen­ lhe dá com a outra. Com efeito, o sensível não é justamente ­
do um mestre da análise; e essa mestria não o leva a superestimar de acordo com a terminologia que é também a de Baurngarten
o valor mas a defini r claramente e a distinguir com segu ra nça seus - o domínio do confuso. do indistinto, O dom[nio, portanto, que
meios c seus fin s. Essa elaboração superior da análise fomece·lhe se opõe ao conhecimento e que este tentaria e m vão penetrar? A
uma nova fecundidade, ao conduzi-Ia até um ponto onde surgc. estttica poderia afirmar seu status e sua dignidade de ciência
como de si, um novo começo, onde se revela uma Ilo va síntese ligando-se a essa esfera inferior, constituindo-se como gnoseologia
intelectua l. inferior? São considerações desse gênero que impediram O reco­
l! essa síntese eonceptual que dá sua rorça c sua impor tân­ nhccimento fácil da estética de Baumgarten e que retardaram
cia à defini ção da estética como ciência, segundo Baumgar ten. por muito tempo a sua inn uência. Bodmer registra a definição de
A estética n1l0 serja uma ciência nem poderia chegar a ser uma Ba umgarten com espanto e mau humor, com uma contrariedade
se se Hmitasse a fornecer um conjunto de regras técn iCllS para a pessoal a muito custo dissimulada. Em seu comentário crítico da
produção da obra de arte o u um conjunto de o bservações psico­ obra de Baumgarlen , cscre YC elc: " Parece que rer di sseminar-se
lógicas sobre os seus efeitos. Tudo isso fa z parte dessa espécie a opinião de que o gosto é um julgamento inferior pelo qual só

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conhtcemos o obscuro e o confusc. Nesse pensamento, não cons. ç1l:0. 'E preciso que ele estabeleço aí uma certa escala , uma ordem
tituirá grande méri to possuir um gosto a que falta a tal ponto um de valores dos conhecimentos, e à estética, conhecimento do sen­
senrimento de certeza e quase não vale a pena esforçar-se por sível , scrá atribufdo o último lugar. Ela é começo, mas esse c0­
tê·lo." 10 Mas nesse julgamento, a intenção profunda de Baum­ meço parece não ser mais do que uma preliminar. " Pela aurora
garten está provavelmente entendida às avessas. O con tra-senso da Beleza peneiraste na lerra do Conhecimento " : - mas não
lógico de um conhecimento confuso e obscuro está muito longe parece que a autOTa da beleza deve empalidecer do resplendor
do pensamento do "excelente analista" que é Baumgarten; o que do pleno dia? Em face da estrita e pura verdade que, em vez de
ele procu ra e exige é, untes, um conhecimento de o obscuro, de o nos Iigll r à simples aparêncill das coisas, nos colocll na posse de
con fuso. O predicado designa o tema, o domln io objet ivo , não o sua natureza profunda, dissipa·se a beleza que s6 existe e vive
modo de intuição e o tipo de investigação. A ciência não deve IICl aparência. Baurngarten, o melafisico, nunca abandonou com­

ser rebaixada para O domínio da se nsibilidade, é o sens fvel que pletamente essa perspectiva fundamen tal mas o analista, o puro
deve ser elevado ao status do saber, que deve ser pe netrado e " fenomenologisla " , transpOs, é claro, essa barreira . E ao quebrar,
dominado por uma forma específica do sa ber. Com o pretex to ao desvencilhar-se dos grilhões da 16gica e da metafísica tradicio­
de que o sensível, de acordo com a sua matéria simples. é obs­ nais, ele realiza as condições hist6ricas e racionais indispensáveis
cu ro de nome e de natureza. deverá a forma pela qual o conhe­ à estética para conquistar um " luga r ao sol - - para constituir­
ce mos e à qual nos adaptamos pennanecer igu almente obscura se como disci pl ina fil osófica, em sua posição e com seus d ireitos
e confusa? Ou não se apresenta nessa forma. justamente, uma pr6prios.1 1
certa maneiro de conceber a matéria, uma novo e sumamente A doutrina de Leibniz dos graus do conhecimento, exposhl
penetrante maneira de compreendê·la? Tal é o qucstão com em Meclitalion('s ele verilale, C08"iliolle et ideis, constitui o ponto
q ue Baumgarten encabeça a sua estét ica para responder-lhe sem de partida e O qUlldro das investigações de Baumgarten. Mas não
reservas pela arirmativa. Ele estabelece para a sensibilidade um basta rdembrar a letra da doutri no panl. expor as intenções pro­
novo critério que não deve privá-Ia do seu va lor mas, pelo con­ fundas de Baumgarten. Lc ibn iz opõe representação "clara" e te­
trário, assegurá-lo, Confere-lhe um a nova perfeição mas essa é presc ntaçüo " distinta" , at ribuindo a cada uma um sentido e um
condicional , porq uanto deve ser entendida como, um privilégio fim particular . "C lata~ é a representação que basta às neces­
pu ramente imanente. como perfectio phaenomellon. Essa perfei. ~id a des da vida cotid iana e convém-lhes, que permite em pri­
ção fenomena l não coincide, de maneira nenhuma , com aquela meiro lugar dirigirmo-nos no nosso meio ambiente sensível. Para
realização pa ro que tendem a lógica e a matemát ica no elaboração dil'igirmo-nos é apenas necessário que faça mos uma distinção se·
de suas idéias Nclaras e distint as", mas afirma-se conjuntamente, gura entre os objetos que encontramos e que conformemos a
subsiste CO nlO um valor próprio c irredutfveJ. Não foi cerla­ nossa conduta a essas distinções. Para aquele que só vê no ouro
mente sem difi culdades q uc Baumgarlen estnbeleceu essa coor­ um objeto de uso, basta possuir certos sinais sensfveis graças aos
denação. e na expressão de seu pensamento. na terminologia que quais poderá distinguir o ouro " verdad eiro" do ouro falso ou
ele não criou mas foi buscar em grande pan e à Escola. sucumbe ra lsi íicado. Deve alentar para a cor do ouro, sua dureza, maleo­
incessantemente à tentação dii :iubordinação e da simpil:s 5ubsun­ btlidade etc.; pela observação precisa dessas determ inações pu

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ramente empfricas vai encolllrar finalm ente cnlerlOS sufícientcs conhecimento científico. Adere à eXlgencia leibnizia na de: um
para impedi-lo de confundir entre o ouro legítimo e a imitação "aHabeto do pensamcnro", tan to mais vigorosamen te porq uunlO
de ourO. Mas essa verdade não é, para Leibniz, a verdode au­ csse ideal linha dado, nesse meio tempo, um grande passo adiante
têntica e perfeita que o conhecimento cientffico esforça·se por no sentido de sua com:retização, graças ao trabalho de pioneiro
alcançar c que se impõe por si mesmo. Pois o verdadeiro saber, realizado pertinazmen te por Wolrf e sua escol a. Existe . porém.
o saber supremo, não é O do simples "guê" mas o saber do segundo Baumgarten, um domínio em que a redução do fenô­
" porquê". A ciência não quer colecionar simples [atos; tom­ meno à sua "causa " enfrenta um obstáculo. Quando, aplicando­
pouco se contenta em distinguir os objetos por seus "sinais". lhe o método das ciências exatas, expli camos o fen ômeno da cor
por suas marcas sensíveis e em classificá-los segundo essas dis­ reduzi ndo-a a um certo tipo de movimento . não s6 suprimi mos
tinções. Ela tem por finalidade reduzir a multi plici dade das pro­ a im pressão sen sível mas privamo-la também de sua signirica­
priedades à unidade da essência: e só pode descobrir essa essên­ ç;"io estética. Tudo que a cor representa como meio de expressão
cia reconduzindo-nos à razão última donde essa pl uralidA de c da arte, lodo o papel que ela desempenh a na pintura , fica des­
essa multiplicidade provêm. O "princípio de razão " torna-se, truído por essa redução ao seu conceito fís ico-matemátieo: tudo
portanto, a par do princípio de iden tidade e de contradição, a é reduzi do de uma assentada a zero. Não s6 toda memóri a d<l
norma verdadcira de toda ciência rigorosa: compreender as coi­ experi ênci a sensorial da cor mas também toda memória de sua
sas nâo quer dizer pen:ebê·las ti posteriori, segundo suas formas
fu nção estét ica de~ap l!recem desse conceito. Será essa fu nção, na
fenomenais, mas aprendê-las a priori por suns causas . "Conheci­
verdade, algo de insignificante, de totalmente indiferente? Ou
mento a priori" e "conhecimento pela causa" sign ificam para
não possuirá também um valor próprio. não pretenderá, em vez
Leibniz a mesma coisa: ti definição "causa]" é a única expressão
de ser simplesmente rejei tada, conservar sua especificidade e seu
satisfat6ria de toda verdadeira "definição real" . O cami nho do
N caráter próprio? A nova ciência da estética esforça-se por essa
"conhecimento dislinto nada mais seria, ponanto. do que a re·
manutenção. Mergu lha no fenômeno sensível e nbandona-se-lhe
solução de todo fen ômeno complexo em seus elementos sim­
ples, ou seja, nos elementos singulares que o determinam e o sem fazer a menor tentativa para chegar por si mesma a algo de
fundamentam . Enquanto essa resolução nLo se consumar, en~ uma na tureza mui to diversa, às "causas" do fenômeno. Com
quanto encontrarmos ainda num desses momentos uma mullipli­ efei to, essa passagem às causas, longe de explicar o conteúdo
cidade não analisada, o objetivo pr6prio do concepçâo adequa­
lO
estético do fenômeno, não faz mais do que aniquilá-lo, Aquele
da" não te rá sido ainda a tingido . A nosso concepção só está que queria comunicar-nos a imprcssilo que recebe de uma pai·
verdadeiramente em harmonia com o seu objeto quando logra sagem decompondo o espetáculo em seus elementOS essenciais c
não apenas reproduzir esse objeto ma s fazê·lo aparecer sob 05 procurando para cada um desses elememos um conceito distinlo,
nossos olhos, acompanhá-lo até a sua orige m e reconstruí·lo Il desvrcvendo, portanlo, se se qui ser, a paisagem nO idioma e com
partir dai . os re(.:ursos científicos da geologiu, chegar ia, sem dllvidu, II uma
Baumga rtcn reconheceu esse ideal em toda (I wa omp1ihlde nova visão den tí(i~u, mas, rl Cs~a visfio, não ~llbsislidu o menor
e jamais contestou sua significação no interior do domínio do vc;,tígio da " beleza " da pa isagem . Essa beleza s6 ~ orerece à

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intuição indivisa , 11 pura contemplação da paisagem como um {Voltcia em toruu ...... fonte
lodo. E somente ao artista, pintor ou poeta é dodo salvar essa A çambian!c Iibélu\:.l,
totalidade, torná·la viva para nós em todos os traços da sua re­ Por largo tempo alegc8 o meu olhar;
presemação . Uma paisagem pictórica ou pDttica evoca magica­ O ra escura, ora clara ,
meme, num relance, a imagem puro e, na contemplaçâo e fruição Tal quaJ o cam aleão:
dessa imagem, toda a questão de " causa" , como a que a reflexão O ra vermelho , ora azul ,
arlÍstica e a in vestigação conceptual formulam, é prontamente Ora azul , ora verde;
esquecida. Devemos abandonar-nos à im pressão que o fenômeno Oh , que de bem perto
como tal exe rce sobre nós, demorar-nos neJa , prender-nos a ela Percebo agora as tuas cores !
para que não se volatilize , não se dissipe entre as nossas mãos. Ela adeja e plana, nunca pousa!
As impressõcs fenomenai s não constituem, evidentemente, a es­ Sim, ei-!.II pousada agora no prado.
sência metarrsica, mas a essência estét ica pura está vi nculada a Agarrei·a! Agarrei-a!
essas imprc ssões.~~ A obse rvação de um objeto ao microscópio Desta vez observo-a de bem perto
pode permitir ao cientjsla descobrir sua composição e, assim, a E tudo o que vejo é um azul funéreo -
sua verdadeira constituição objetiva mas a impressão estética está Eis o que te espera, tu, que dissecas teu prazer!]
desse modo irremediavelmente perdida . Goethe, num poemo do
Leipziger Liederbuch s, deu a essa idéia uma forma poética: Dc pleno acordo com o ensinamento de Baumgarten, teó­
rico da estético , eis o conteúdo essencial da sua p rópria doutrim.
Es IlaUert um die Quelle convertida numa imagem pura, numa vi são poética que a expri­
Die wec/;sclnde Libelle, me imediata e concretamente. Abre-se-nos agora um domínio so­
MieI: IreuJ sie lange sehon; bre o qual o .. princípio de razão" , princípio e condição de todo
8ald du nkef uru./ bald helle, conhecimento "distinto", não tem nenhum poder. Esse princípio
W ie der Chamaeleon: é o fio de Ariadne que {oi colocado em nossas mãos para nos
8ald rot, bafd blau, conduzir para fotn do labirinto da reali dade aparente c fazer-nos
8ald blau, baJd grün; ascender até à região do "inteligível", ao reino dos "números".
O dass ich in der Niihe Mas a arte não alcança uma tal transcendência, da qual seria ,
Doch jhre Farben sahe! de resto, incapaz. Seu objetivo não é trascender os fenômenos
5ie sehw;rrJ und schwebet, raslef nic! mas, pelo contrário, permanecer entre eles, não remontar nté ~s
Doeh slilt, sie selzl sic1l an der Weiden. suas caU Sas mas apreendê-Ios como dados imediatos e produzir,
Da hab' iel! sie! Da lIab' ieh sie! diante dos nossos olhos, seu ser e seu modo de ser. E não temos
U7ld Il un belrachl' ich sie genau que temer, ao obandonar o fio condutor que o "princípio de ra­
Und seh ' e;n fraurig dunkfes Blau _ zão" fornece-nos, que o nosso mundo intelect ual volte a ca ir
50 geh! es dir, Zerg/iedrer deiner Freudell! no CSlOS. A realidade intuitiva, com deito, não é - de maneira

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nenhuma - confusão pura e possui em si mesma um cri tério estera da lei ~ -.~ equivale à do conceito l6gico mllS extra vasu-a
específico . Toda obra de arte verificável coloca esse cri t~do im\'.­ largamen te', '1:.1'. ~ .. iste um a lega lidade que se eleva acima de todo
diatamente sob os nossos olhos; el a não expõe somente dian te arb itrário " t' \" Ji toda prefer(lncia subjetiva que não se deixo
de nós uma mult idão de intuições - ela domina essa multidão, aprese ntar ~ o b a fo rma de simples conce itos. E a razão como
modela-a e assim nos faz perceber sua unidade interior na forma IUlCllidade recebe ne l ~ esses dois momentos. Ela não se limita
imposta . Toda intuição verdadeiramenle cstt tica nos mostra não ao conceptua l puro, d irig,;;·sc absolutamente a toda ordem e a
ape nas a mu ltiplicidade e a diversidade mas também a regra e toda legalidade, seja qual for a matéria onde a ordem e a lega­
li ordem que ai se escondem. Se :.e pode designar o domínio da lidade e ncontrem sua ilustração e sua realização lil A razão con·
e:;tética pel a expressão percept io co/t/usa, é na condição de en­ tinua senhora desse conjunto sem q ue essa domi nação tenha ja­
tender-se essa expressão segundo o seu signHicado estritamente mais o rigor de um jugo, de lima coerção pu ramente extern a.
etimológico, O que que r dizer que em toda int uição estética se Ra umga!'tcn te m esta (rose feliz e e xpressiva de que a razão
produz uma "confluência " de elemen!OS e que não podemos tcm di rei to ao poder sobe rano sobre todas as facu ldades infe­
abst rair os elementos si ngula res da totalidade dessa intuição, co· riores sem que I!sse poder possa adquirir unicamente a forma
locá-los isoladamente em destaque nem explorá-los um por um. de uma tirania.6~ A s fa culdades sujeitas não devem ser despoja·
Mas essa confluência não produz "confusão " nenhuma, porquan· das de sua natureza própria nem abdicar de nenhuma de suas
to é justamente o todo o que se nos orerece sob o seu aspecto caracted sticas; devem, pelo contrário, ser compreendidas, mano
imediato, como um todo inteiramen te determinado c organizado. tidas e preservadas em sua especificidade. A legitimaçiio das fa·
Essa organização - tal é a tese fundamemal da estética de Baum­ culdades inferiores da alma, não a sua opressão e destru ição,
garten - não é acessível, de maneir~ nenhuma, pelo caminho e tal é o objetivo a q11e a estética se propõe .56
desvio do conceito. Ela perte nce à esfera pré-conceptuaJ. 11 qual
Todos os detalhes da doutrina de Baumgarten já estão imo
não tem que se r conhecida pelo simples f6gica como ta l. uma vez
plíci tos nessa primei ra abordagem do problema ; todas as ca rac·
que a considera, do seu pr6prio ponto de vista, or iunda dns
terísticas da obra t1e arte que ele de monstra, em pnrticuJar o
facu ld ad es "i nferiores " da alma e do conhecimento . Mas essas {n­
modo e o mecanismo da produçi1o poética em todos os seus me­
culdades inferiores do conhecimento também têm seu logos
mentos , deduzem-se da í. Em seu esforço para ir ao fundo das
- têm direito, porta nto, a uma teoria do conhecime nto especi al.
CO; ~H S e não deixa r esca par nada, ele compraz-se em acumul ar
a uma gnoseolog ia inferi or. BaumgArten ainda se incli na in :ei­
ramente pe rante a autor idade rigorosa do raciona l, não conce­ as fó rmu las q ue designa m as característjcas que distinguem a
dendo a menor e~ceção nem procura ndo subtrair a mínima coisn expressão poética da expressão lógico-científ ica. Desta úhi ma
às normas puras da lógica. Mas sustcOla 11 Cllusa da in tl'ição exige luz e claridade, plenit ude c veracidade, riqueza e limpidez;
estética pum perllntc o próprio tribunal da razão. Q uer salva r c q utlll to às n:presentaçõcs de que o poe ta faz uso, é necessá rio
a intuição prova ndo q ue uma lei interior govema·a igualmente . que elus contenham grav idade, força de convicção e vivacidade,
Se essa lei não coincide com 1I ro';z;iío, constitui. não obstan te, Mas t od a~ essas de terminaçõcs , ", berlas e m agn iw do, verilas e
um "alla/agotl " dela. Esse ema/ogou ralionis U prova-nos que a cflJT/tas, lux e (:er/il udl), redu:rem·sc em de fi ni tivo a ",ma única

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ex igência, pora a q ua l 8aumga rtell encontrou a designação ca­
racterística de vita eognitionis. Baumgarten não pensa, portanto, didade de visão, a dispositio naturalis ad pcrspicaciam," Entre·
ta nto, essa perspicácia distingue-se da penctraç!o analítica do
em cortar de forma alguma a poesia da Conte primord ial do
pensamento, pois deCinirá, desde o início, a estética como "a pensador cientfrico uma vez que não olha para além dos apa·
arte de pensar em bcle-la" (ars pu/erc cogitandi).:.r Mas exige rências mas pennanece nestas : pelo contrário, não tem a intenção
quc o pensamento tenha não s6 forma mas também cor, que de reduzi-las às suas "causas " mas tent a abrangê-Ias em si mes·
mas - em sua totalidade e modo de ser ima nenle - e unifí~
nos forneça, com li verdade objetiva, a penetração "sensitiva":
com li imuição justa, a inlUiçõo vil·o. Essa intu ição viva quer cá·las numa imagem intuiti va completa.
que, não contentes em elevar-nos do particu lar ao geral, de Se Baumgarten soube descrever a oposição do espíri to artís·
acordo com as regras da conccptualizoção lógica, apreen damos tico e do espírito científico e dar-lhe. pela pri meira vez, uma
também o geral no p"rticul ar e o pa rticular no geral. A abstru. exp ressão rigorosnmcnte filosOfica, foi porque pôde apoiar-se,
ção q ue oos abre logicamente o ca minho para as espécies mais pura CSSll descrição, numa experiência pessoal (n tima e viva. H.
altas signifi ca sempre, aos olhos da imuição, empobrecimento von Slein mostrou muito bem em Enl slehung der neueren
e dissecação. E q ue o processo de abstração é, ao mesmo tcmpo. Acsthetik como é ralsa e enganadora o idéiu de um l3aumgarten
processo de subtração: para atingir o geral "ncglígencia" o descobrindo e fu ndando a estéti<:o sistemática movido exclusiva­
partic ular e, em defin iti vo, "esquece-o" cada vez mais . Portanto, mente pelo interesse de um teórico do conhecimento e por uma
a generalidade só pode ser alcançada à custa da riqueza das espécie de pedantismo lógico. Baumgarten porte da contempl a­
determinações: o caminho da generalidade e o da determinação ção direta das obras de arte e lenta a poesia. No prefác io das
são em sentido invcrso," A estética é um remédio para essa suas MeditoJiones, decla ra não' ter quase passado um dia sem
laceração, no sentido de q ue não pode atingi r a sua "verdade", com por um poema. Por escassos que fossem os seus reais dotes
nem para além da dtterminaçiio nem con tra ela: ela só se rea­ poéticos, isso demonstra, pelo menos, que ele sabia perfeitamen­
liza no seio e por meio dessa determinação. A beleza não exige te, graças a essa ocupação, o que é um "tema" poético e no
apenas, como o conceito científico, 11 claridade "intensiva", ela que esse difere de um tema lógico. Ele s6 tinha que considerar <I
quer também a claridade "extensiva" . A primeira, a claridade sua pr6pria atividade para descobrir imedia tamen te essa dife·
intensiva, é atingida quando se conseguc redmd r a totalidade de rença. E, do ?Jnlo de vista da filosofia da linguagem c da esté­
uma intuição a um pequeno número de determinaçõcs funda. tico. também foi um grande passo, por parte de Baumgarten.
mentais que revelam sua própria na tu reza. Quanto à c1aridadc ter-se apoiado, em primeiro lugar, pa ra fiX:1\f aquela direrença,
estética, extensiva, não sofre essa redução e essa concentração. no forma e na direção própria da /o(a poética. A fala é o meio
O artista , com efeito. quer percorrer a reali dade intuitiva em on de se encontram as produções científicas e poéticas. Os pen o
toda a sua extensão, abarca r lIun: único olhar o seu centro e sarnentos que o lógico ou o cientista desenvolvem, assim como
a sua per i {e ria.G~ O gênio artístico possui , na dOl1tri na de Ba um.
os sen timen tos e as idéimi que o poeta quer despertar em n6s,
garten, nno só uma ex trema receptividade , a força e a amplitude
também reclamam 11 mediação da palavr(l. Mas um mesmo veio
da imaginação, mas também a perspicácia intelectual. a profun.
culo serve num caso e no outro a obje t i\-'~ muito diferentes .
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Para trata r um lema ci entífico, utiliza-se a palavra como signo desse " disi.:UTso " logo evita c perigo. Oratio sensi fiva perfcc/a
conccptual c todo o seu conteúdo reduz-se it sua significação poema: 62 só merece O nome de poema o discurso que poswi
I:!S/

abstrata. As palavras apenas uesem penham nesse caso, segundo o poder de um:: perfeita ex p re~~ã() sensível , que suscita o lIpa­
a expressão de Hobbes para designar essa relação, o papel de reeimenta de uma intuição viva e nos retém constantemente n3
uma "moeda de conta" do espíri to; e. nas formas su periormen te sua prcsen çll.
elaboradas da língua cie ntífi ca, chegamos li um nível onde são Desse modo encontra-se enunciado , na ri gorosa forma do
el im inados os últimos vestígios indutivos que ainda se prendem pensamento sistemático, um problema que a estética do século
infal ivelmente à palavra . O mundo em que nos movimentamos xvrII agitou incansavelmente . Essa estética sempre insistira,
já não é mnis o das pnl uvras ma s O dos signos, e todo o IIOSSO desde Dubos e os suíços. no caniter infui /iv o de toda obra lluten­
esforço tende a dar. n cada uma dll s opt'"raçõcs do nosso pensa­ ticamente poética. Mas SÓ consegui u dar a esse pensamento uma
mento. uma expressão unívoca tomada nessa simbólica. A scicn­ forma determ inada com a aju da da pintura. O emprego da rór­
tia general is só se aperreiçoa , como sempre foi sustentado por mula 1// piclUra poesis, tão universalmente di vu lgada antes do
Leibniz, pela insta uração e desenvolvimento da charac/eris/ica ú/ocoonle, de l.essing, encontra aí su a causa e sua vcrd adci r<l
gCllcralis. O que seria para a ciência, entretanto, o auge de suu raiz . Bodmer escreve suas consi derações críticas sobre os .. qua­
perfeição. significaria ante,s a morte da arte se pensassem em dros poéticos" , e Breiti nger, em Critischel1 Dichtkunst, im põc-se
aplicar-lhe esse ideal esvaziando-o de todo conteúdo int uitivo expressamente o ob jetivo de "penetrar a fu ndo na pintura poé­
conr: reto . A nova ciência estét ica quer evitar o perigo desse em­ ti cn levando em conta a invenção " e de elucidá-Ia mediante
pobrecimento; niio visa. em absolu to, à perfeição da conh~ci­ exemplos ex traídos dos antigos e dos modernos. Mas uma nova
menta mas, mai s exatamente, à perfeição do conhecimento "sen­ q uestão apresenta·se então . Será verdadeiramente poss1vel ao
si tivo" , do conhecimento intuitivo como tal. A esthetices finis poeta rivalizar com o pintor . ten ta r-nas comunicar com os seus
(!st pcrfect io cogllil iollis sensitivae, qua lalis. Haec aufem esl " sina is arti fici ais" aqui lo que o pintor apresen ta-nos com a ajuda
Plllcril udo.6 1 A fo rça e a grandeza do artista . do verdadeiro poeta, dos "sinais naturajs "? Semelhante rivalidade não se encaminha
estão em insu flar vida na "friald ade dos signos simbóli cos~ , na mai s no sentido de uma mistu ra arbitrária das artes, de uma
qual se movem lu nto a língua da vida cotidi lln a qu anto a língua negação e de uma destruição dos meios estilísticos propri amente
conceptual da ciênc ia , em confer ir-lhe. em suma, a vita <-'Ogni­ poéticos? Baumgarten prev ine essa confusão ao sublinhar em
lionis. As pa lavras de q ue ele se serve, nito há uma que perma­
termos precisos que é por fo rça de um mal-entendido que se
neça morta 0\1 vazia; cada uma delas é vivificada, ,mimada do
exige de urna expressão q ue ela sej a "pictórica ", mal-entendido
interi or, llli mentada de um conteúdo intuit ivo imediato . Tudo
que consiste em tomar a parte pelo todo. Essa exigência é me­
o que é formal desaparece do discurso poético para dar lugar ao
n OS fi losófica c racioDul do que metafórica . Em vez do verda­
figurado da ex pressão. Vê·se que Bau mgarten concebe ai nda o
poema sob o co nceito genérico de " discurso" , I1l11S n~o é pa ra deiro gênero, do conceito superior de cogllilio sellsitiva, apenas
trair o seu pensamen to estético fundament al, para voltar a cair foi estabelecid a uma de suas cspeâes, a espécie dn plást ica pic­
na acusação de retórica : a definição mais exata que ele dá tórica. O pOeta não pode nem deve ~ pintar" <--om palavras: ele

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pode c deve despertar no uuvinte , por Plllavras, representações homines, neque bene JanJam humanae cognitionis partem alie.
c1arus, vivas, baseadas na intu ição sensíve1. Eis o dom poético nam a se putaf.M A aquisição de talentos particulares, sobretudo
fundamental: o dom do i/1gt!tlium Ilenustllm. como l'sc reve 8aum· o talemo de decompor analiticamen te os conceitos, pode convir
garten. Do ponto de vista da históril'l tias idéias, essa fórmu la ao erudito, seduzir o especialista , mas não pode servir em nada
lê·$( como uma profeci a: ela anuncia, 40 anos antes da Crítica ao filósofo para a realização da tarefa que ele se impõe. Essa
do ;uf::o e do Irlltado de Ka rl Phili pp Motitz, Ober die bilde/1de tarefa exige que não se deixe nenhuma terra sem cultivar no
NachalmlllJlg des Schone/1 (Da imitação plást ica do belo), o eampo do saber e que não se deixe secar nenhum dos dons do
"pensamento objetivo" de Goethe. O inge/1ium venusfum não espítito. O esprrito filosófico nâo deve crer·se acima dos dons
quer somen te apreende r os objetos. classificá·los em espécies e da intuição e da imaginação; deve, pelo contrário, impregnaHe
gêneros; ele vi vc na intuição dos objetos. Essa plenitude (1lenllsta deles e colocá· los no mesmo plano que o talen to de julgar e
plenitudo) jamaIs poderá resultar de uma si mples mon tagem de argumentar. Só essa harmonia pode produzir um sistema fil o­
(Zusamme/lsefzu/lg) e jamais se deixará resolver em suas partes. sófico completo e interiormente unificado e, sobretudo, o espírito
O que se exprime nessa es ~cie dc ingenium é, antes, um a ati · filosófico superiormente encarnado num individuo. Sob a sua
tude, uma impressão esp iritual de conjunto q uc comunica su as form a mais alta e mais pura, esse esprrito não poderia adquirir·
próprias cores a tudo o q ue capta ou absorve. Essa disposição se cultivando somente as facu ldades do entendimento, cuja ri·
da alm a entendida como um todo é a marca do espíri to artístico queza elas não esgotam.GG O [iJósofo, por um dos traços mais
como tal: ela cOlTlunica·lhe esse caráter, que Dão se aprende nem profundos do seu pensamento, ~ u a vontade de totalidade, apa·
se adqui re mas que nuscc com o arlista ... Ad eharaeterem jclicis renta·se ao artista. c, E se não poderia rivalizar com ele para a
aesthelici genera/em requiritur Acsthetica noturalis cO/1nola produção do belo. po(kse arriscar. en tretanto, a obter o conhe­
( qNo,;, natura, si'xpvlu ), disposlitiQ nafuralis animae cimento do belo e, graças a esse conhecimento, graças à estética
tobus ad pl/lere cogitandum, quacum nascitur." U teórica, realiza r a sua própria visão do mundo. A nova disciplina
A estética de Bau mgarten supera, portan to, uma vez mais . é assim nâo só legitimada pela lógica mas, de certo modo, im­
o âmbito da simples lógica . Ela quer ser uma lógica das " Cacul­ posta e justificada moralmente. As "belas ciências" não mais
dades de conhecimento illfer i ores~ c quer servir por esse meio conSlituem, doravante, uma fração do saber mais ou menos auta..
não somente a um sistema de filosofia mas, antes de tudo, a nomo: elas " dão vi da ao homem total" , fazem dele tudo o que
lima "dout ri na do homem" , uma antropologia. Não é um acaso pode e deve ser .' 5
se Herdc, reconhece em Baumgsrtcn o " verdadeiro Arist6tdes t: assim que o problema do belo já não conduz apenas à
do /l OSSO tempo" .M l! que cncontrou nele a marca desse novo fundamentação sistemática da estética mas também à de uma
ideal de humanidade a que ele próprio wnsagrou lodos os seus nova "antropologia fi losófica", e uma idéia mui to catacterlstica
esfo rços . Desde o começo da estética encontramos esse novo da cultura sctecentista viu ·se desse modo corroborada. Veri fica-se
imperativo humanista que Baurngarlen atribui à filosofia COlen­ uma vez mais, embora de um outra ponto de vista muito dife­
dida como doutrina da sabedori a. Philosophus homo est inter rente, que uma mudança radical es tá prestes 8 consumaNe, no

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tocante à ordem dos valores no pensamento do século XVIII. Mendelssohn pode valer-se do próprio Baurngarten. Mas neste
e nas relações do entendimento humano com o en tendimento ültimo, essa incompatibilidade estâ invest ida numa out ra tendên­
divino, do intelleclus eclypus ao inlelleclus archetypus, que essa cia de pensamento e aceotuada de um modo diferente. Baum­
mudança se impõe com su perlativa nitidez. Já não se trata, como garten fixa ao belo seus limites mas tra ta-se dos limites em que
nos grandes sistemas filosóficos seiscentistas, como em Malebran· c1e entende reter o homem. Não se traia, e m absoluto, de esca­
che ou Spinoza, de relaciona r simplesmente o finito com o in­ par à finitude mas, pelo contrá rio, de c hegar ao finito em todos
finito e de elminar assim, de um certo modo, a fi nitude. A os senti dos. Ao manter-se aquém do ide;)! do conhecimento di­
tarefa que doravante se impõe ao fi nito é a de afirmar-se no vino, adequado, ele realiza precisamente, portanto, sua na tu reza
seu próprio ser em relação a esse valor supremo, de sustentar .; seu destino. Assim se e.1~ciàa, a través da estética de Baum·
a sua natureza específica como tal , conhecendo-a como tal. Desde garten, nos vlnculos estre itos com a filosofia acadêmica alemã ,
que a fundaçã o da estética teórica sustenta a causa da autonom ia essa mesm a idéia que já encont ra:nos por toda pa~te agindo na
do belo, ela anuncia implicitamente, desse modo, que a natureza constitu ição da ética, da filosofia da religião, da filoso fi a do
fi nita tem fundament almente direito ao seu modo de ser autô­ direi to e da filosofia política de Século do lluminls:no. Cada
nomo. Entre as posições de princípio que a fil osofia alemã her­ vez mais, a época iluminista aprende a renunciar ao .. 30sol',Jto" ,
dou da doutrina leibniziana, eJl:istc uma que nos en sina que o no sentido estritamente metafísico , ao ideal de um conhecimento
ser divino como tal está essencialmente situado acima da esfera "à imagem do conhecimento divino", para substituí-lo por um
onde devemos investigar o fenômeno do belo, a única onde ele ideal puramente humano, que ela procura constantemente definir
encontra sua residência. Segundo Leibniz, é da essência do co­ com maior exat idão e preencher com mais perfeição.
nhecimento divi no jamais se mover no mundo das representa­
Com essa " humanizaç,ão" da sen~ ibilidade, uma outra ques·
ções sensíveis mas unicamente no das id~jas adequadas, ou seja.
tão que o século XV Tn debateu longamente encontrou também
compreender inteiramente o conj unto que esse conhecimento
percebe e, ao mesmo tempo, resolvê-lo em seus últimos elemen­ resposta. A filo sofia setecen!Ísta não defende apenas os direitos
tos constitutivos.oll Para um modo de conheci mento dessa espé­ da "imaginação" mas também os direitos dos sentidos e da pai­
cie, o fenômeno do belo deve reduzir-se a nada. Segundo a xão. A doutrina cartesiana , para a qual as paixõcs eram apenas
expressão de Mendelssohn. em Brie/en über dje Empfindullgen perturbações da alma (perlurbationes animO marca um nítido
(Cartas sobre as sensações), evitemos confundir a "Vênus celeste" r~ uo; as paixões apresentum·se agora como impulsos vitais ,

que consiste na perfeição, na adequação perfeita de todos os as verda deiras forças instintivas que estimulam a totalidade da
conceitos, com a " Vê nus terrestre", com a beleza. Em suma, o vida da alma e mantêm·na constantemente em atividade,u Lan­
belo, de um ponto de vista puramente metafísico, repousa menos ça-se um apelo geral em prol da emancipação da sel1sibilidade,
num poder do que numa impotência da alma humana; a um sobretudo entre os psicólogos e os moralistas franceses, cuja voz
poder cognosci tivo mais perfeito do que o nosso, a experiência se eleva com uma fo rça crescente. O estoicismo do século XVII
do belo niio se ria acessível nem comunicáveJ.l° Para essa incom­ . que, longe de subsistir como simples doutrina filo sófica, surgira
patibilidade rigorosa da beleza sensível e da perfeição intelectual, na tragédia clássica como tema de criação artística, cede agora

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o lugar a uma atmosfera puramente epicurista. Esse epicurismo pouco uma perspectiva para a antropologia de Herder. permi­
recebe as mais diversas formas e mostra as mais variadas tona· te-nos agora apreender a importância das Cartas para a edu­
lidades. Pode deleitar·se , como em L 'arl de jouir. de La Meurje. cação estética de Schiller. Baumgarten é o primeiro pensador que
por exemplo. em exaltar o prazer do sentidos em sua nudez ou se li bertou do dilema do "sensualismo· e do " racionalismo·, ao
em elaborar uma técnica sutil de refinamento intelectual e de criar uma nova e produtiva síntese entre "razão" e "sensibi­
sublimação contínua das alegrias da existência. Os " libertinos" lida de" ,
do século XVII, esse circulo de gente do mundo que se reunia Mas o próprio Baumgarlen não atingiu , sem dúvida, de ma­
no ~ Templ o " ou nos salões de Ninon de l'Enc1os, em Paris, ou neira completa, o objetivo teórico que se impusera ; não foi até
nos de Madame de Mazarin. em Londres, tin ham ten tado levar o fim da estrada que tioha claramente diante dos olhos. t ver­
essa arte à sua perfeição. Encontraram em Saint-e.vremond seu dade que Ilnundou. desde o começo da sua Estética, que sua
representante mai s refinado e mai s significativo.?: Saiu desse obra tinha apenas a ambição de rasgar O caminho para a nova
circulo toda uma série de manuais que pretendia se r uma ver· ciência. não o de percorrê-lo inteiramen te.H Mas. além disso .
dadeira escola do prazer, que queria, num sentido também pu­ de um ponto de vista puramente subjetivo, ele devia inevita­
ramente teórico, ensinar O modo como o prazer pode ser alcan­ vel mente enfrentar certos obstáculos, porquanla sua ob ra foi
çado, como pode ser indefinidamente intensifjcado e como composta no estilo da Escola e perm8nece~I - lhe fi el. O pensa­
esgotá-lo até a última gota."U O refinamento da volúpia que é men to novo que Baumgarten representa não encontrou nele uma
assim ensinado possui também, sem a menor dúvida, importân­ forma adequada. Teve que con formar-se em ser comprimido em
cia estética; mas a estética que se desenvolveu nessa base cons· parágrafos. à maneira das botas espanholas. e parece às vezes
titui uma simples estética da excitação. Ela aguça ao máximo ter perdido toda a sua liberdade de movimento nesse aperto.
a receptividade à exicitação sensível mas falta-lhe totalmen te o Bem entendido. aquele que sabe ler Ba umgarten de modo per­
acesso li fon te autên tica da vida artística, ao domín io da espon· tinente acaba descobrindo. sob n dura casca, o cerne do seu
taneidade. I! a esse defeito fundamental que responde , precisa­ verdadeiro pensamento, com uma apresen tação origi nal que lhe
mente, a estética de Baumgarten. Embora defendendo os direitos
é muito própri a. Quando Herder. em suas Schulreclcn. passa a
da sensi bilidade, ela não concebe a libertação pura e si mples
tratar " da idéia de graça nas escolas". quem menciona ele em
da sensi bi lidade de seus víoculos e de seus grilhões: quer levá-Ia
primeiro lugar a fim de ilustrar esse tema senão Baumgarten?
à sua perfeição espiritual. Essa perfeição não se encontra. por
Foi a própria graça que compôs n estética do seu bem-amado,
certo, no prazer mas na beleza, A beleza é fruição. mas frui ção
o imortal Baumgarlcn: "Em sua elegan te ~jrn plj cidade e repleto
especificamente distinta daquela que provém dos instintos vitais.
des se~ traças minusculos que escapam aos olhos da gente comum
Não é governada pelo poder exc1usivo do descia mas pelo im­
pulso anímico no sentido da intuição e do conhecimento puro. e que paro os prortlOos não parecem mais do que nuvens obs·
e ela quem nos abre o caminho, movimento interior e esponta· curas." 1~ De fa to, 11 influência de Baumgarten fic ou limitada a
neidade pura: graças a ela. penetramos na verdadeira vila cm;m;· um drculo muito reduzido e di[Lcilmente deixou sua marca na
tiolIís sellsitivae. A estética de Baumgarten , que nos abriu há história viva da nova poesia alemã. Lessing foi o primeiro a

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quebrar o tabu. Estava-lhe reservado faze r a síntese do pensa. lógicas dos conceitos como tais, porquanto ele possu i O dom de
menta e da ação, da teoria e da vida, e realizar assim plenamente reconduzir cada conceito às suas fontes vivas, de compreendê-lo
a exigencia da vila cognitionis de Baumgarten. Tudo o que este e de explicá-lo a partir delas. Foi a tarefa que Lessing realizou
conside rava peni:l(mte ao caráter do verdadeiro esteta (ad cha­ para os princi pais conceitos da estética do seu tempo. Os con­
raclerem Jeficis AO$lhetici pertillens) enContra-se reali zado no ceitos assim tratados e considerados perdem tudo o que podem
espírito de l..essing. Nele reenCOnt ram-se todos os elementos da comportar de fonual; eles enchem-se e impre~nam·se de um con­
ubertas, da mogniludo, da verito$, da claTilOS, da cerlitudo, de teúdo concreto e intuitivo. E graças a esse conteúdo estão em
copia e da Ilobililas encarnados num único ser; nele encontra-se condições de intervir diretamente no processo de criação a rtfstica .
a mais feliz mistura de dispositio acule semiendi e dI' dispositio O que é decisivo, na obra de Lessing, não t a matéria dos con'
tJ4turalis ad imoginondum, assim como de dispositio ad saporem ceitos como wis mas sua forma, não o seu quid no sentido da
non pubficum, immo delicalum e de dispos ifio noturalis ad definição mas sua transfonnação intelectual. No cadinho de seu
perspicaciam. l! essa síntese que dá à obra de Lessing o seu espírito realiza·se passa a passo esse processo de mutação , de
caráter incomparável e que lhe gll ran tiu uma influência iflual­ metamorfose, de metem psicose dos conceitos. lcssing renunci.ou
mente incomparável. Qua ndo se tem somente sob os olhos o ao titulo de pOeta no sentido superior e estrito do te rmo porque
conteúdo de todos os conceitos estéticos fundamentais dc Les­
estava consciente de não possuir esse poder mágico origi nárjo
sing, nadll se enxerga que explique suficientemente essa influên­
por meio do qual o poeta, não contente em inven tar ou imaginnr
cia . t que esse conteúdo não foi criado por lessing mas foi -lhe
as formas, confere-lhes uma existência e uma vida próprias. Ele
quase in teiramente preparado. Será difícil encontrar em Lessing
sen tia e sabia que esse modo de criação, cujas maiores obras
um único conceito ou uma única tese que não tenha seu para­
épicas ou dramáticas tinha diante dos olhos, as de Homero ou
lelo exato ns litc=ratura do seu tempo, que não possa extrair-se
de alguma maneira dos textos de Baurngarten ou dos sufços, de de Shakespeare, estava-lhe vedado. Mas se Lessing não é pos­
Shaftesbury, Dubos ou Oiderol. Mas seria um equívoco e um suidor da magia pessoal e profunda de um grande poeta, toca­
desconhecimento total do problema pre tender inferir dessa indi. lhe em contrapart ida a magia de um pensnmento tal como ja­
cação das Jontes de Lessi ng alguma objeção contra a origina li­ ma is. por assim dizer, houve outro com essa força e essa
dade do seu pensllmento profundo. A o rigina lidade de Lessing segurança. Todo conceito, ao penetrar no cfreulo desse pensa­
revela-se menos na "invenção" de novos temas de pensamento, me nlo, logo in icia sua mutação. De simples produtos que eram ,
descon hecidos at~ en tão, do que na ordem e na conexão, na os conceitos voltam a ser forças criadoras originais c impulsos
mestria soberana, no di st ri buição 16gica e na escolha desses espontâneos. Pcrcebemo-Ios mais como seres acabados, como
lemas. A esse respeito, Lcssi ng ~ um 16gico de primeira o~dem; SOlOlItórios de signos de term ináveis c fixad os; percebemos o seu
mas o seu tipo de análise e de seleção, de c rit ica e de arquite­ devir e reconhecemos na modali dodc desse devir, na maneira
tônica, reprc=senta muito maIS, eviden lemente, que as conclusões como intervêm e nos objetivos longínquos, ainda indecifráveis,
e as deduções de um processo ele lógica Corm al. S:J<:s atenções que rumo adotam se-u valor e sen tido próprios . A doutrina de
não se dirigem exclusiva ou 5cletivamenente para as relações Lc:ssing sobre as relações do gênio e das regras, sobre as fron­

462 463
teiras da pintura e da poesia, sobre as "sensações mistas". sobre mergulhara com todas as suas forças na ordem dos falos, no
a importância dos signos para a classificação e o sistema das único, no regu lar, sem sucumbir nunca diante da força material
artes ; tudo isso reencontramos, sob uma forma puramente dou­ da realidade dos {atos, da pura malter of facto O talento funda·
trinai , em várias obras fundamentais da estética do século XVIII. mema! que ele sente e proclama em Herder é o da ~pa lin gene·
Mas a doutrina não encontra em nen huma Qu tra parte uma ver­ sia, a arte de fazer da poeira da história uma planta vicejante ".17
dadeira força viva , em nenhuma outra pa rte ela se incorpora e Essa fra se tem a mesma validade a respeito de Lessing e do
se assimíla assim à vida da arte . A crÍl ica de Lcssing não pre­ caráter próprio de sua obra crftica e estética . Ele possui em
tende apenas agir positivamente ao incentivar e '" excitar" a cria­ relação aos conceilos e teoremas a mesma apt idão que Herder
ção artística , a qual só receberia, em todo caso, essa e:rcilaçiio a respeito do mundo da realidade histórica . Basta que lhes toque
e esse incitamento do exterior: ela é, na sua própria essência, para que se lhes refira ou critique: distinga-os ou ordene-os,
um momento e um eSlaclo imanente dessa criação. Ela é "crítica para que nasça espontaneamente do processo lógico uma vida
criadora " no sentido de que está intimamente ligada à criação nova, pa ra que os pensamentos passem por uma palingenesia
ardstica. Por esse caminho Lessing conduz a estética do lIumi· espedfica . Lessing não procura deliberadamente, de maneira
nismo. embora ele parece recol her-lhe a herança intelectual. nenhuma , essa novidade; jamais se esforça. por obter a origina·
muito além dos objetivos e dos ümites que ela alé então se rixara . lidade pela originalidade . Pelo cont rário, aga rra-se com todas as
Só ele podia ter êxito onde tinham falhado Gottsched e os sur· suas forças à tradição ; dela possui um conhecimento completo.
ços, Voltaire e DiderOt , Shaftesbury e seus discípulos e suces· gosta de seguir·lhe os indícios e os vestígios mais longínquos ,
sares . Não só ele encerra a estética de uma época mas descobre, de enveredar pelos caminhos mais difíceis e mais obscuros. Ma5
projetandO-se para além de todos os dados e realidades da arte. nem por isso deixa de comiderar que a aqui sição é ~a is pre­
as novas " possibilidades" da arte poética. O maior serviço que ciosa do que a possessão . E é por isso que de detém. como
eJe prestou à li teratura alemã foi o de ter reconhecido a legiti­ nenhu m outro em sua época, esse poder criador que não vem de
midade dessas "possibilidades " e de ter-lhes preparado o cami ­ uma oposição aos dados do passado mas sente em si mesmo a
nho. Entretanto, é subestimar profundamente o papel de Lessing força e a necessidade de recriar incessantemente n criaç.:;o "para
despojar sua obra do seu verdadeiro sentido hjstórico, conside· que ela nõo se refugie na rigidez". Lessing liberta as idéias e
rá-Ia - como fez uma obra recente sobre a temia estética de as teorias da estética do século XVIII desse perigo de rigidez,
Lessing 16 - um empreendimento nacional, não "europeu". As de inflexibilidade: é esse o mérito que lhe t'e(:onheceu de ime­
relações entre os conceitos gerais de Lessing e as formas e pro­ diato a jovem geração. Sabe·se como G~ the descreve a influên·
blemas da literatura alemã do século XVIII são inegáveis; mas cia do ÚJocoollfe, de Lessing, em " oesia e verdade: ele vê-se de
{oi justamente nesse quadro que Lessing descobriu uma nova súbito, pela majestade das "graudiosas e profundas idéias" de
visão, um novo aspecto e um flaVO horizonte do mundo da arte Lessing, .. urrebatado da região da indigente contemplação para
em geral. Goethe disse de Herder que sua importânda como o campo livre do pensamento". Essa (orça de arrebatamento
hi storiador e como filósofo da história estribava-se em que ele que Lcssing possui no domínio da poesia , ele a transmitiu a toda

4&4 465
n filosofia do século. Embora o século XVHI se defina em NOTAS
grande parte pelo dom de crítica que o impulsiona e o domina,
ele deve a Lcssing não ter caído numa interpretação pura mente
1 Le Bossu, Traiti da pue,lle épiqu e, 1675; para aprofund,H as teorias
negativa da critica, ter sabido reconduzir a crítica à vida , tê-Ia de D'A ubignac e Le Bossu. cf. H ei nrich vo n Steio, Die Em,le!ulIIg der
amoldado c mam.:jado como ferrame nt a in dispensHvel à vida, neuerell Aeslhelik, Slu lIgart, 1886, pp. 25 e SS., 64 e S5.
assi m como ao desenvolvimento e à constante renovação do ~ C f. ac ima pp. 324 e 55.

espírito. :} Cf. Descartes a Mersc:n ne, julho de 164 1: 'Toda essa ciência que
talvez se pudesse supor a mais submissa à nossa imaj.\inação, porque ela
só considera as grand ezas, as figuras e os movimentos, mio está de ma·
neira nenhu ma baseada em se us fantas mas mas somente nas noções claras
e distintas de nosso espírito ; o que é sobejamente sllbido mes;no por aqu e·
les que pouco a aprofund aram". Oeuvrt"S, ed. Adam·Tannery, lU, p. 395 .
• Cf. acima pp. 138 e 58.
li BoiJeau, Ep ístola IX, O t"uvrn , com um come ntário úe Saint-Surin,
Paris, 182 1, voI. lI, pp. 11 1 e $S .
e T al é a opi nião, por exemplo, de Alfred Baeumler, Kan/s Krilik
der Urláhhafl, ihr~ Gcscliich l~ und Syslcwalik, Hallc, 1923, I , p. 43.
Baeumler comete um erro ao d iz<- r que Crous:lz [oi u primeiro, no seu
Traili da bc/UI (171 ~ ) a utilizar a fó rmula: "varitdade reduzida a aiguma
unidade" num conte xto estético. O sentidu filosófico dessa f órmu la foi
in teiramente desen volvido por Leibniz e estabelecidu siMematÍL',uuen le em
referência ex pressa aos prob lemas estéticos. Cf. Lcibni:.:, V an da Weisheil,
acima pp. 162 e M.
õ No tocanle à limitação da "originalidade" à novidade da " expressão"

na estética clássica, cf. por e.\emplo o livro de Gustave 1anso n, BaileI/li,


Paris, 1892, em particular pp. 131 e :;s.: "O artista tem se mpre que criar
uma for ma. a mais verdadeira. a mais expressiva, a mais bela, enfim,
que puder."
8 Cf. Condillac, Essai 5ur l'origine des connaissances humaille!", e seu
artigo "La langue des ca1culs" .
\O Para o desenvolvimento histórico da dout rina das trh unidades,
d. por el:emplo a exposição de Lanson. Bis/oire de la lilléralurc frall­
çahe, 22. & eúição, Paris, 1930, pp. 420 e ss.
10 Boileau, Arte poética , Canto lI T.
n Arle pollica, Canto lU.
D Goethe, W ",ml/r/'T AIIS!{al"" vol. 45 , p. 174.
13 Dubos, op. dt. vol. 11, seco XIX; para o conjunto, d. vaI. 11,
seco XII e ss.
UCf. aci ma pp . 81 e ~S .
J~ Diderot, E ssai sur lu peíll lllrc, eap. VII, Oeuvres (Assézat), X
pp. ~J7 e ss.

466 467
.- A respeito da oposição que sub3;isle entre a "conceptualiz3ç!io in·
dividualiunte" de Bau mgurtcn e a "oonceplUa liwç:;o abstrllüva" de Wolff,
cf. em particu lar a exposição de Baeumlcr, op. cit., pp. 198 e ss.
~Q Sobre a d istinção entre claridade "intensiva" e "eJ(lé:nslva", ve r
em especial as M t'dflaliQnts de ru,"nullis ad p<xma pt,timmlibus. tf
I) e u.
110 Â.f!Sthel/ca. § 14.
1'1\ Â.Ulhc lica , §14.
U MtdilallOfltS Philosophicat dt flon"ul/is od ~ma ~'tIMlJ/ibIlS, J 9.

~ Â.f!J/lzttlca. J 28.

ft ~ Hcrdcr. F,tlgml!nl fiher dif Ode . W!', kt (Suphan), XXX II, p. 83 ;

em especial; "Voo B;1ll01gartcos Deobrt in K ioen Schr ifteo". W!',kt.


XXX II, pp. 178 c ss., c "Entwllrr 'lU dner DenkM:hrir, lIu f A. G. Btlu m·
lartc:n, J. D. Heilmann und Th. Abbt". Werk!'. XXXII, pp. 175 e M.
G.) Â t'sl hetica, § 6.
" Ver, em upecial, Af'Slhclica, 11 41 eM.

61 Ci. 05 come nUirio~ caTllcleri§l icos de Bllu mgartcn, Mf'dita li(m!'J

t X I V; "Si quis ( . .. ( /fI /Itraqllf' /nc"ltlllis 'Of/:" cnci livac pu"" CXCC/lIlI !'1
quamlib!'t sua odl!ib..,c {oco ditllcu/I. ,w .., iJli s/til! a[I(',ills det,imenlO
od alluam t:raJdundom incwnbn. el A ,islOll'/cm. úibnillllfll nml ~:r'
,-" "Iis /l1ii~- pal/illm louro jtmgerlllblls /1I /sse s!' l1liel pfOdigia. nOrl ",iracllfo."
63 Cf. G. F. Meier, ArI/angslJ,ül1 t!,· aU.., SCIoÕrlefl Wú&ctlS'ChajUII ,
VoI. J, H 5. 13, 1$, 20 e pllssim.
nQ Cf. Lc-ibniz. Medil/lliof1~s ch cogniljQn~. \'~ril(1le t I idl'Ís, PhilOJ.
Scl/ri/letl (Gerhllrdl), rv, p. 423.
lO Mendel$!tObn, 8r;,.fe iib,.r dic Em p/indllngtn (1755) , Quinta Carta.
l i Cf. aci ma pp. 149 e M.
U Para mais detalhes sobre C'Me dn::lllo dos "libertinos", ver Mornet,
IA pmsl e /rançolJl' 01/ XflflJ ~ .ri.lclf, Pllri~, 1929, p. 28 .
a Cf. Saint·l!vremo nd . O!'II~'es m t'sU~J, Amslerdi, 1706; Rémond
k Grec, A gl/lhol! QII Via/ogl/f! de la volllplt (1702) ; ine!uldo 00 Rtcl/ei!
de div!'" ("lu, publicada por Saint·H yacin the; Baudot de l uill y. D ialogue
t il Ir/' ",f. M. Pai", {'I D'AlllaIlCOIITl SlIr lu plllú i,s (1 700); G . Lanson
Il]lu:sentou uma analise penetrante deue$ estritos DO seu artigo; " Le róle
de I'e,,~riencc dans la formation de lo philosophj( du XV I II~ si&:le cn
f'rancc" (Cmdt's ,r"iJ'loi,~ /lI/traiu, Pari~. 1930, pp. 164 e". ).
11 Cf. ac ima pp. 149 e S$.
1l Henlct, Wcrk .. (Suphlln), XXX, PP. 32 e 5$.
w Cc. Folki erski, !I1I(rc le CluJsiciJllle CI le Roma"lis",~. "O mérito PP.OCtoÊNr.IA:jb~.~~

de lessin," - asaim jul ga Folldcrsk.i (op. di., p. S78) - "é nacional e


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não europeu."
, i Goclbc ti Hcrder, malo de 1175. PREÇO~-J~:?Q--_·_·_---··_·K­
472
OA1A·_~-ç:f._J·~f:·- 0\J

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