You are on page 1of 12

Universidade Federal do Ceará - UFC

Doutorado em Sociologia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Disciplina: Tópicos Especiais em Sociologia III – “Abordagens biográficas na pesquisa
sociológica”
Professor: Antonio Cristian Saraiva Paiva
Aluna: Marcelle Jacinto da Silva

"Esse lugar de se assumir mulher": análise das narrativas genderizadas das


criadoras do projeto artístico Lambe Buceta.

Fortaleza

2017.1

1
1. Narrativas genderizadas em uma entrevista à distância

Na manhã de 10 de maio de 2017, mais especificamente às 10 horas e 30


minutos, entrevistei via Skype1 Kelly e Karen, ambas brasileiras, residentes em São
Paulo e idealizadoras do projeto artístico Lambe Buceta. Esse projeto foi tema de
matéria publicada na revista AzMina intitulada “Sua xoxota é linda e pode ser poesia”2
e na revista Trip, por sua vez intitulada “Sua buceta é linda” 3. Ambas as matérias
atentam para o principal alvo de Kelly e Karen: a autoestima das mulheres. As duas
colocam em prática seu trabalho espalhando em vias urbanas lambe-lambes que
consistem em fotografias e/ou ilustrações da genitália feminina que são
complementadas com frases de empoderamento como “Olha, toca, molha, goza"4, a fim
de que a imagem da vulva seja culturalmente naturalizada e representada de forma não-
sexual, mas também como forma de celebrar a diversidade, o autoconhecimento e a
sexualidade feminina. Uma das principais inquietações das duas designers diz respeito à
ambiguidade com a qual o corpo feminino é tratado na mídia ocidental: “Se a nudez
feminina é tão naturalizada pela mídia na cultura ocidental, por que a genitália da
mulher choca tanto?”5 Tanto na conversa online que tivemos como nas matérias às
quais me referi, são mencionadas duas séries do projeto: a primeira trata dos lambes
feita por Kelly e a segunda, uma série fotográfica focada em formas de interação com a
vagina que virou zine feita por Karen.

A conversa, gravada em vídeo com auxílio do software de gravação de


chamadas de vídeo Call Note6, tem duração de 39 minutos e vinte e cinco segundos, foi
guiada por um breve roteiro que elaborei na véspera e transcrita com auxílio do software
de transcrição online Transcribe7. As ferramentas que hoje estão a nossa disposição
como a Internet, as redes sociais digitais, os aplicativos de comunicação instantânea -
que figuram como importantes fontes de difusão de saber e espaço onde se pode dizer o

1
Disponível em: https://www.skype.com/pt-br/.
2
ESCALADEIRA, Bruna. “Sua xoxota é linda e pode ser poesia!”. Revista AzMina. 14 marc 2017.
Disponível em: http://azmina.com.br/2017/03/lambe-buceta-sua-xoxota-e-linda/. Acesso em: 12 de julho
de 2017.
3
Revista TRIP. “Sua buceta é linda”. 13 abr 2017. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/trip-
tv/lambe-lambe-buceta-xoxota-vagina-sao-paulo. Acesso em: 12 de julho de 2017.
4
Revista TRIP. “Sua buceta é linda”. 13 abr 2017. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/trip-
tv/lambe-lambe-buceta-xoxota-vagina-sao-paulo. Acesso em: 12 de julho de 2017.
5
ESCALADEIRA, Bruna. “Sua xoxota é linda e pode ser poesia!”. Revista AzMina. 14 marc 2017.
Disponível em: http://azmina.com.br/2017/03/lambe-buceta-sua-xoxota-e-linda/. Acesso em: 12 de julho
de 2017.
6
Disponível em: https://callnote.net/.
7
Disponível em: https://transcribe.wreally.com/.

2
que parece indizível presencialmente -, facilitam o trabalho de captação do “real” em
vários sentidos, como por exemplo a possibilidade de encontra-las sem que eu tivesse
que me deslocar até São Paulo. A entrevista oral via chat e com vídeo/áudio difere da
presencial não apenas por isso, mas porque dependemos da qualidade da Internet tendo
em vista que a compreensão da fala do outro pode ser dificultada se o áudio não está
bom, se a Internet trava, etc., que podem dificultar a captação da emoção na entonação
da voz, as pausas e as gagueiras, que Portelli (2016) ressalta serem dados de pesquisa
tão importantes quanto qualquer outro.

O primeiro contato com elas, além do acesso à conta do instagram


@lambeb_ceta (que foi onde as conheci) aconteceu dia 23 de março via e-mail, ocasião
na qual me apresentei como pesquisadora em processo de escrita de uma tese sobre
embelezamento íntimo, autoestima vaginal e projetos que ressignificam a vagina para as
mulheres e, além disso, mencionei que gostaria de adquirir um dos zines produzidos por
elas, o Buselfie, uma série fotográfica que mais tarde descobri ter sido produzida por
Karen. Passamos a trocar e-mails a respeito do zine e combinamos de conversar sobre o
projeto delas em março, mas alguns contratempos aconteceram e só tivemos a
oportunidade de conversar no mês seguinte.

Portelli (2016) assinala que uma entrevista é “primordialmente uma situação de


aprendizado para o entrevistador” (p. 24), situação esta que diz respeito “a duas pessoas
olhando uma para a outra” (p. 35), que se percebem, mas que não são em nenhum
momento pessoas neutras e nem devem se comportar como tal, tanto é que o observador
também nos observa e nos julga tanto quanto nós pesquisadores os observamos e
julgamos de acordo com a fala, o gestual, o comportamento, bem como é uma relação
que pressupõe uma “autoridade” que pode se deslocar em decorrência do caráter do
conhecimento trocado. Entende-se que não há necessariamente a obrigatoriedade de um
solo comum, ou seja, de identidades compartilhadas posto que em geral observado e
observador estejam ambos “separados” por classe e/ou idade e/ou gênero e/ou etnia, etc.
(p. 27), mas que haja “uma disposição compartilhada de ouvir e de aceitar o outro,
criticamente” (p. 14).

A conversa (sinto-me mais confortável em definir essa situação de pesquisa


assim porque para mim parece um termo mais horizontal) sucedeu sem muitas
interferências minhas e de forma não linear: iniciei-a a fim de instruí-las sobre como

3
gostaria de proceder falando brevemente sobre os temas sobre os quais tenho pensado
desenvolver, que havia um roteiro a partir do qual eu me guiaria e que elas poderiam
interromper a comunicação a qualquer momento caso não quisessem responder a
alguma questão ou precisassem encerrá-la. Eu havia elaborado o roteiro de acordo com
algumas informações que observei no perfil do Instagram8 e nas matérias de revistas
mencionadas; quis aprofundar algumas das questões que achava pertinente, tentar
conseguir alguma informação nova que lançasse luz sobre a temática e encontrar pontos
comuns e divergentes dos outros projetos que havia observado na Internet até então.

Nessa ocasião, eu me dirigia a duas pessoas desconhecidas, eu também uma


desconhecida que as interrogava sobre coisas que provavelmente sejam as mesmas
coisas que outras pessoas as questionavam para elaborarem matérias para revistas, como
as duas que mencionei, porque em alguns momentos percebi que as respostas eram as
mesmas. Minha preocupação foi tentar não interromper as falas e tentar conseguir
alguma informação diferente, e foi assim que durante a entrevista, comentei sobre
minha experiência com a oficina sobre Autoestima vaginal e Masturbação feminina
tanto para quebrar com qualquer impressão de neutralidade que eu tenha passado para
elas, por apenas ouvi-las, como para sugerir uma aproximação minha com o tipo de
ativismo que elas fazem, como que para me incluir no que Portelli chama de
“comunidade de sentimento e ação” (p. 22), porque é algo que tentei começar em 2016.
Senti que a partir desse momento, de alguma forma, a conversa ficou mais “natural”,
pois parecia que havia ali um solo comum em que nós três tentávamos pisar, junto de
tantas outras mulheres.

Os insights que as meninas tiveram durante nossa conversa mostram que elas
são narradoras que tem plena consciência do caráter histórico e político de suas
experiências pessoais e do impacto que o projeto tem na sociedade e na vida de outras
mulheres (inclusive nas delas e na minha também), e dessa forma lançaram luz sobre o
material da minha pesquisa e um dos aspectos que quero explorar na ocasião deste
trabalho é a relação intima entre as dimensões privada/pessoal e público/coletiva,
porque uma das motivações tanto da criação do Lambe Buceta consiste em questões que
tangenciam as experiências de ser mulher na sociedade de consumo, sociedade essa que
hiperssexualiza o corpo feminino nas propagandas, no mercado pornô, etc., ao passo

8
Disponível em: https://www.instagram.com/.

4
que silencia determinado tipo de relação das mulheres com seus próprios corpos,
chegando a proibir que se fale sobre determinados assuntos afins por pudor/tabu. Isso
“nos força a redefinir a geografia do espaço público e do espaço privado, e do
relacionamento entre eles” (PORTELLI, 2016, p. 17) como também remete ao termo
“história das mulheres”, questionado por Joan Scott (1995) no que se refere à eficiência
dessa nomenclatura, demonstrando que “seu uso poderia ser limitador. Seria como se a
história das mulheres tomasse um aspecto de uma história à margem da história
tradicional, conferindo-lhe, assim, um status inferior” (MIGUEL; PEDRO, 2009, p.
243).

Para esta ocasião, elegi alguns trechos da entrevista que considero emblemáticos
nesse sentido e com o intento de problematiza-los sob a luz de Portelli (2016), Rago
(2013) e Plummer (1995). Algumas das inquietações que as duas entrevistadas trazem,
aparecem várias outras vezes no material empírico que reuni de 2015 a 2017, assim
como pude verificar em vários outros escritos acadêmicos e de literatura romanesca9,
que esse é um tipo de investigação que lida com a história dos silêncios, um aspecto da
história das mulheres que é um tanto polêmico e divisor de opiniões até mesmo no meio
feminista. O feminismo, argumenta Rago (2013, p. 24), “introduziu outras maneiras de
organizar o espaço, outras ‘artes e fazer’ (Certeau, 1994, p. 24) no cotidiano e outros
modos de pensar”, além de conferir “novos sentidos às ações das mulheres e à sua
participação na vida social, política, econômica e cultural, tanto quanto na esfera
privada”, desfazendo assim “as tradicionais fronteiras instituídas entre essas dimensões
da vida em sociedade, afirmando que os problemas domésticos deveriam ser
denunciados como questões de domínio publico”, inserindo uma transformação
significativa no que se refere à “imagem de si mesmas que as mulheres podiam
construir”. Em especial desde os anos 1980 o feminino tem sido “recriado social,
cultural e historicamente pelas próprias mulheres” (p. 25).

Dessa forma, nas narrativas de ambas as entrevistadas pude perceber um cotejo


de várias fontes consultadas através de técnicas de coleta de dados orais mas
principalmente em páginas na internet; fragmentei a transcrição nesses breves trechos
que apresento que a meu ver trazem elementos fundamentais sobre muitas questões
relativas às “histórias das mulheres”. São relatos que ora focam em narrativas de si, mas

9
Como quando Kelly cita Hilda Hilst.

5
que evidenciam uma preocupação para além da vida pessoal de ambas, isto é, assim
como observa Rago (2013) em sua pesquisa, são narrativas que “enfatizam e se
comprometem com as lutas contra as formas contemporâneas de controle biopolítico
dos corpos e com as buscas de afirmação de novos modos de expressão subjetiva,
política e social” (RAGO, 2013, p. 56), e tratam da “maneira pela qual essas mulheres
se constituem discursivamente como sujeitos feministas, como recortam o passado, que
experiências valorizam ou silenciam” (RAGO, 2013, p. 30).

2. Do pessoal ao político: narrativas da intimidade e a construção de si


individual/coletiva

A ideia de criar o projeto Lambe Buceta surgiu, de acordo com Kelly, a partir de
um conto da Hilda Hilst que eu tava lendo chamado contos de escarnio que tem uma
personagem que chama Claudia que é uma artista plástica que desenha bucetas. A
personagem chamou a atenção de Kelly pela proximidade com sua formação enquanto
designer gráfica e ilustradora e então ela se propôs a desenhar bucetas também. Foi
nesse momento que Kelly descobriu a dificuldade em desenhar genitálias femininas,
mesmo que tivesse bastante repertório de desenho, acontecimento que fez com que ela
chegasse num lugar muito pessoal, de ver que eu tinha uma questão com meu corpo, e
tinha origem na minha historia, nas minhas experiências. E aí, foi um tempo de reflexão
ate eu me entender um pouco nesse lugar, e achar uma metodologia, um processo pra
eu desenvolver esse desenho. Kelly, então, começou uma busca por imagens que a
inspirassem na Internet, algo que impôs outro problema:

[...] fui buscar referências [e] só achei conteúdo pornô, na epoca não tinha,
cê colocava buceta na Internet a coisa que tinha era foto de revista
masculina ou... ou frame de vídeo pornográfico, e ai não me identifiquei com
aquilo, não funcionava. Era ali que me travava! E achei esses blogs!10 E ai
os desenhos que eu fiz foram em cima desses blogs de fotos, autorretratos de
mulheres, que eram mais naturais, enfim. Um lugar em que eu me sentia
confortável. E ai o primeiro desenho que eu fiz também foi em cima de uma
foto minha, que ai tinha esse lugar terapêutico, me desenhar, me aceitar...

Naomi Wolf (2013, p. 16-17) sublinha que a vagina foi e é alvo de abusos,
violências e controle durante a maior parte da história ocidental. De acordo com a
autora, o “controle social da vagina e da sexualidade” das mulheres tem sido um veículo
para controlar a mente e a vida interior delas, através de muitas ações que
geraram/geram pressões repressivas, dentre elas “comentaristas de jornais, manuais
10
Kelly se refere aos mesmos blogs que eu encontrei no decorrer da pesquisa, o Large Labia Project, o
Pussy Pride Project, etc.

6
médicos e a ascensão da ginecologia como uma especialidade médica” (WOLF, 2013,
p. 162). Ainda de acordo com Wolf (2013, p. 161), “a concepção ocidental ‘moderna’
da vagina, tal como a conhecemos hoje”, carregada de vergonha e hiperssexualização,
foi desenvolvida no século XIX, apontado como sendo o século do controle
“medicalizado da sexualidade em geral”.

Todos esses observadores múltiplos constituem o que Preciado (2014, p. 28)


denomina de “tecnologia social heteronormativa”, ou seja, um “conjunto de instituições
tanto linguísticas como médicas ou domésticas que produzem constantemente corpos-
homem e corpo-mulher”. Esses seriam os pilares mais significativos das regulações que
recaem sobre as mulheres, enunciados “próprios daqueles que teriam lugar privilegiado
na conformação dos padrões estéticos referentes às genitálias femininas” (SCHIMITT,
2014, p. 44-45) e que são mencionados em projetos como o Lambe Buceta como algo a
ser modificado.

O desconforto pessoal de Kelly e a pesquisa na Internet fez com que ela


percebesse que essa era uma questão pessoal dela com o próprio corpo mas que também
era uma questão de outras mulheres mundo afora, e sentisse vontade de transformar essa
questão pessoal, privada, em um projeto11, algo público, coletivo. Depois desse insight,
Kelly convidou a amiga Karen, também designer gráfica e ativista de aceitação do
corpo. Ambas sentiram que deviam seguir adiante com a problematização sobre o lugar
do corpo da mulher na sociedade de consumo, na forma como as genitálias são
representadas e a ausência de identificação feminina com essas representações, e esse
foi então tema da primeira série de lambes que elas começaram a colar pelos muros das
ruas de São Paulo, no começo do ano de 2016. A colagem em via urbana, por sua vez, é
um ponto crucial porque ambas afirmam que essa escolha não foi por acaso.

Kelly: A primeira coisa da colagem na rua é que, assim, a partir do momento


em que eu me toquei que eu tinha uma questão com meu corpo e outro
momento em que eu tive que dizer pra mim mesma que minha buceta era
linda, isso aconteceu logo quando eu fui pesquisar imagens diferentes pra eu
desenhar a buceta, e eu vi que havia o site de auto ajuda de mulheres, que
tinham questões com seu corpo, fotografavam, se e auto fotografavam, sua
vulvas, e vou lá nos blogs de autoajuda, de né nem autoajuda...de ajuda das
manas, assim... de tipo, comparação, de comentários...isso, e ai enfim eu,
eu...e certo momento eu tive que dizer isso para mim e vi que isso já era o
que tava acontecendo no mundo virtual e ai para mim foi uma vontade de

11
Esse trecho corrobora o que Carmuça (2007, p. 1) assinala como fundamental no movimento feminista,
que é a dimensão pedagógica, assim como seu caráter político, “pois o feminismo, como todo movimento
social, tem um desafio político e pedagógico, o desafio da formação”.

7
gritar isso pro mundo, de falar isso pra outras mulheres. E ai, nesse sentido,
o lamb fazia muito sentido por tá na rua, e justamente não ter controle de
quem ia olhar, de saber que era um ambiente de passagem de muitas
mulheres e que elas iam acessar essa mensagem...

Karen: É, e tem, é isso mesmo, né? Esse lugar da rua, na rua é onde a gente
sofre os maiores assédios. Quando a gente sai na porta da nossa casa. Claro
que pode acontecer dentro da casa, ne? Mas é... bem acontece muito assim,
né? Cê tá parada no ponto de ônibus, é uma coisa meio gratuita, né? Cê tá
parada num ponto de ônibus, o cara começa a mexer com você de dentro do
carro... [...] Meu corpo já tá condicionado a sentir esse medo, então colar
os lambes com a figura do corpo da mulher, né, trabalhando o corpo da...o
nosso próprio corpo, né? Como na rua é uma resposta a isso também, é uma
resposta tanto a essa violência que a gente sofre, dos homens, como também
das mulheres, tipo de tá no lugar de debater isso publicamente...

Esse ponto da entrevista chama atenção para o que os estudiosos de gênero se


referem como os silêncios12 que marcam as “histórias das mulheres”, histórias essas que
por muito tempo foram consideradas menos importante, deixadas de fora da esfera do
público como se o cotidiano/privado não fizesse parte da história tradicional,
hegemônica13. Cada vez mais as mulheres tem reivindicado protagonismo14, abertura
para a relação entre memória coletiva e individual (MIGUEL, PEDRO, 2009, p. 248),
ao ponto de podermos falar nos termos de memórias e histórias sexuadas (MIGUEL;
PEDRO, 2009, p. 252), assim como narrativas genderizadas.

Kelly e Karen, portanto, reforçam o impacto da colagem na rua como uma forma
de estimular o debate, de pensarmos o impacto da violência de gênero nas ruas. Tendo
isso em vista, podemos perceber um sentido político na tentativa de desarticulação de
12
“(...) história das mulheres, em certa medida, é uma história de silêncios. É claro que o silêncio, como
salienta Eni Orlandi (1995), não é sinônimo de um vazio de sentidos, de significados; pelo contrário, esse
silêncio às vezes pode dizer mais do que o que é dito por uma história escrita por poucos, a serviço dos
vencedores” (MIGUEL; PEDRO, 2009, p. 253).
13
“Perrot (2005), referindo-se ao século XIX, nos conta o quanto a memória das mulheres (ou a memória
feminina, como ela utiliza em seu texto) estava associada ao privado, à família, ao lar. Vistas como
inferiores, menos importantes (tal e qual as próprias mulheres), essas memórias eram consideradas semi
oficiais. Seria como se a memória se encontrasse dividida, obedecendo à divisão tradicional dos papéis
sexuais. As memórias das mulheres estão atreladas a segredos, subterfúgios, silêncios. O pouco que se
encontra, especialmente daquelas que viveram no século XIX, está em seus diários íntimos,
correspondências familiares, cartas de amor; isso quando esses documentos não foram destruídos, muitas
vezes pelas próprias mulheres. “As mulheres freqüentemente apagam de si mesmas as marcas tênues de
seus passos neste mundo, como se sua aparição fosse uma ofensa à ordem” (Perrot, 2005:37)” (MIGUEL;
PEDRO, 2009, p. 251).
14
Desde o século XIX, rememorada Naomi Wolf, vemos tanto homens como mulheres produzindo
contranarrativas. “As vitorianas ainda tentavam usar os romances e a arte para representar mulheres em si,
a sexualidade feminina e a vagina – mesmo que obliquamente – em uma vertente positiva e atraente” (p.
173). Mas é a partir do século XIX, complementa a autora, as “iconografias explícitas da vagina passam a
aparecer” na literatura, na pintura, na música e performances de artistas como Gertrude Stein, Edna St.
Vincent Millay, Anaïs Nin, Josephine Barker, Loie Fuller, Georgia O’Keeffe e nas letras do blues do
início do século XX. A autora afirma ainda que a década de 1970 foi uma “boa época para a vagina” (p.
200), em relação à produções do feminismo e das artes, principalmente.

8
certas visões sobre o corpo feminino, convidando-nos a refletir, questionar, rever
interpretações e desenvolver novas hipóteses também a partir da objetivação das
experiências em narrativas.

Karen: Olha, eu espero, ah, eu espero que a gente pelo menos consiga falar
sobre isso... a gente tem que sair do lugar de conforto! O lugar de conforto
que a gente habita socialmente é um lugar construído e que ninguém, é,
questiona ele! O que a gente tá fazendo é questionar esse lugar do conforto,
de mulher pra mulher. Tipo, que lugar é esse? Que construção é essa que a
gente tem sobre as nossas vidas, sobre as nossas pessoas? Quando é que a
gente vai se respeitar nesse lugar? É quase como sair do armário, eu tenho
pensado sobre isso também. Esse lugar de se assumir mulher, se assumir
sexualmente ativa, de assumir o domínio sobre seu corpo, sobre seu próprio
corpo, inclusive questionar o que é esse lugar do hetenormatismo... [...] tem
o seu lugar de conforto nisso. Eu realmente estou nele só por conforto? E
pode ser e tudo bem, isso não é um julgamento, tipo nossa não precisa! Mas
você pode se questionar isso e você pode chegar a conclusão de que sim,
tudo bem, ou que não! Então eu quero experimentar pra saber, ou não!
Enfim! É livre, mas é você ter o direito de questionar, de se questionar!

No que se refere à importância da experiência de se autoconhecer e se assumir


mulher, experiências que para Karen são um “lugar íntimo”, fica mais bem explorado
quando ela fala sobre a produção do zine Buselfie:

Karen: [...] eu falei “bom eu quero usar foto”, e eu fui fazer uma pesquisa de
referências pra entender como é que eu ia fazer, se tinha alguma coisa. E eu
não me senti identificada porque aí eu entendi que era essa questão da
construção do selfie da buceta, que ai vira esse termo “buselfie”, que é a
mesma coisa de como é que a gente faz selfie do rosto. Se a gente faz selfie
do nosso rosto, por que a gente não pode fazer um selfie da buceta e
entender essa composião, entender como é que é a melhor maneira da gente
olhar pra ela? Entender angulo, sacar isso tudo, tamanho de espelho, todas
essas coisas? [...] A gente já tava dizendo que as bucetas eram lindas, e
agora? Né? O que que tinha pra dizer? E ai pensando tudo nisso, do que era
fazer essas fotos, e ai entendi: ah, as mulheres tem que se olhar, mas não é
só se olhar, depois que elas se olham elas podem se tocar, podem ficar
molhadas e podem gozar! Então foi uma síntese do que seria um lugar de
autoconhecimento da buceta, assim, da interação mesmo tátil, de ter todos
esses: tátil, visual, olfativa, degustação, né, que se pode querer saber seu
gosto, enfim15.

Plummer (1995, p. 5) considera que todos nós somos “homo narrans”, isto é,
narradores e contadores de histórias, tendo em vista que as sociedades nada mais são do
que redes de “histórias texturizadas” que fazem funcionar os mundos sociais, e
funcionam também em função de narrativas privadas que se tornam de propriedade

15
Isso significa que as mulheres, ao invés de aceitarem sua posição enquanto objetos da ciência e da
medicina (VIEIRA, 2002) estão resistindo a serem tomada como “objeto”, estão reivindicando o
protagonismo negado a elas por tanto tempo, exercendo formas de emancipação a partir do
autoconhecimento de seus próprios corpos, elaborando a própria subjetividade, assumindo o controle da
própria vida, no caso aqui exposto, de suas genitálias.

9
pública, posto que “os domínios públicos e privados desmoronaram” (PLUMMER,
1995, p. 9). Os exemplos de “narrativas de experiências pessoais do íntimo” (p. 19) que
apresento são histórias sobre como o mundo impacta a intimidade das mulheres, ou seja,
como os enunciados hegemônicos são consumidos e resignificados nas experiências
pessoais, reescrevendo suas próprias histórias estimulando a transformação de outras
histórias pessoais falando por si mesmas, sobre suas inseguranças e necessidades
coletivas, que abre a “possiblidade de invenção de novos modos de existência,
construídos a partir de outras relações de si para consigo e para com o outro” (RAGO,
2013, p. 43).

3. Considerações finais

As estratégias de resistência às versões hegemônicas de vaginas empreendidas


no meu campo de investigação utilizam o corpo como um espaço político. “O pós-
feminismo dos anos noventa”, rememora Bourcier (2014, p. 10) propaga reiteradamente
a “urgência de conceber o sujeito e o agente político não como um encontro autônomo
de soberania e conhecimento, mas como uma posição instável, como o efeito de
constantes renegociações estratégicas de identidade”. Assim, ao lutarem pela
naturalização hegemônica da vagina, desenvolvem-se usos dos estereótipos como
estratégia politica, como por exemplo a ressignificação do que é belo e do que é fora
dos padrões.
A existência desses projetos, o potencial de suas argumentações, as reclamações
das pessoas que estão envolvidas com eles, tanto suas criadoras como as pessoas que os
apoiam (até as repercussões negativas que provocam) mostram como o sistema
normativo hegemônico é falho em representar as mulheres de forma generalizante com
base em modelos de feminilidade nos quais muitas mulheres reais não querem ou não
conseguem se encaixar, como as representações e modelos de feminilidade não as
representam e até as ferem em vários sentidos e como os corpos podem ser vividos de
formas alternativas às propostas hegemônicas de vivencia do corpo feminino. Revela,
nesse sentido, as contradições nas quais estão imbricadas noções de gênero, corpo,
sexualidade, genitalidade e beleza, como são limitadoras e violentas e nos incita a
pensarmos alternativas de modos de vida. Se as mulheres reclamam para si um lugar
enquanto protagonistas de suas histórias, reclamam para si leituras sobre si mesmas
elaboradas por si mesmas, significa que existem lacunas que precisam ser preenchidas a
partir da transformação de modelos/padrões de normatividade.

10
Referências:

BOURCIER, Marie- Hélène. Prefácio. In: PRECIADO, Beatriz. Manifesto


Contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. – São Paulo: n – 1 edições,
2014.

CALLNOTE. Disponível em: https://callnote.net/.

CAMURÇA, Silvia. ‘Nós Mulheres’ e nossa experiência comum. IN: Reflexões


feministas para a transformação social. Cadernos de Crítica Feminista, Número 0,
Ano I, Recife: SOS CORPO, 2007.

ESCALADEIRA, Bruna. “Sua xoxota é linda e pode ser poesia!”. Revista AzMina. 14
marc 2017. Disponível em: http://azmina.com.br/2017/03/lambe-buceta-sua-xoxota-e-
linda/. Acesso em: 12 de julho de 2017.

INSTAGRAM. Disponível em: https://www.instagram.com/.

LAMBE BUCETA. Disponível em: https://www.instagram.com/lambeb_ceta/.

MIGUEL, Raquel de Barros Pinto; PEDRO, Joana Maria. Narrativas de leitoras da


revista Capricho: memória e subjetividade (1950 a 1960). In: Cadernos Pagu (33),
julho-dezembro de 2009:235-264.

PLUMMER, Ken. Telling sexual stories: power, change and social worlds. London:
Routledge, 1995.

PORTELI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz,
2016.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade.


Tradução de Maria de Paula Gurgel Ribeiro. – São Paulo: n-1 edições, 2014.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da


subjetividade. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.

Revista TRIP. “Sua buceta é linda”. 13 abr 2017. Disponível em:


http://revistatrip.uol.com.br/trip-tv/lambe-lambe-buceta-xoxota-vagina-sao-paulo.
Acesso em: 12 de julho de 2017.

11
SCHIMITT, Marcelle. Sinus Pudoris: Conformação de um padrão estético de genitália
feminina através de cirurgias plásticas. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2014.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade
20(2), 1995, pp.71-99.

SKYPE. Disponível em: https://www.skype.com/pt-br/.

TRANSCRIBE. Disponível em: https://transcribe.wreally.com/.

VIEIRA, Elizabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. – Rio de Janeiro:


Editora FIOCRUZ, 2002.

WOLF, Naomi. Vagina: uma biografia. Tradução Renata S. Laureano. – São Paulo:
Geração Editorial, 2013.

12

You might also like