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PRELÚDIO – O QUE ARMANDO CORRÊA DA SILVA PENSARIA?

Armando Corrêa da Silva, sala de aula 1998. Fonte: www.grupogeobrasil.com.br

PRELÚDIO: pre·lú·di·o, subst. masc., latim præludĭum, 4. Música: “Introdução


instrumental ou orquestral de uma obra musical, podendo ser absolutamente
independente e não ter caráter introdutório;”

***

Em seu livro “De Quem É o Pedaço? Espaço e Cultura”, Armando Corrêa


da Silva (1986), desafiou o campo científico da geografia apresentando uma
proposta ousada. Em suas próprias palavras “ao leitor”:

“O tema substantivo deste livro pretende ser uma contribuição


não sistemática sobre a noção contemporânea de território. O
autor expõe O TERRITÓRIO DA CONSCIÊNCIA [parte um], A
CONSCIÊNCIA DO TERRITÓRIO [parte dois] e pergunta-se: O
ESPAÇO NO LUGAR [parte final]? Em livro anterior (O espaço
fora do lugar, HUCITEC, 1978) punha-se o problema da
consciência da fragmentação da cultura e do conhecimento; a
questão da unidade do objeto geográfico. A estrutura, como
método, apresenta-se à mente sem ser rejeitada. Era entendida
como um momento de análise, necessário, mas não suficiente.
A unidade aparecia, então, através da possibilidade da
montagem. Montagem de partes que devem articular-se. No
fazer e no pensar aparecia a questão de se a unidade é a reunião
dos especialistas ou a reunião das especialidades em cada
cabeça. Não se conseguia, então, ir além disso. A solução
apresentada neste livro avança o entendimento da questão. Por
quê? Por que o autor procura enfrentar todos os seus fantasmas.
Isto é, mente dividida é resultado do mundo dividido. Pensar e
fazer é, por isso, reproduzir e montar.” (p. 9)
As dificuldades de um projeto de tal alçada são antecipados ao iniciarmos
a “Parte I – O TERRITÓRIO DA CONSCIÊNCIA”:

“A sobre-reflexão do território da consciência apresenta


dificuldades singulares. Pois é preciso ir além da máxima
consciência possível. O saber, então, põe-se como subjetividade
plena na construção das imagens que remetem à busca das
predeterminações e pré-ideações. O modo possível de sua
realização é, portanto, o projeto. (...) A subjetividade deve expor-
se à consciência dos outros. Por isso, exponho o trabalho
realizado em sua sequência positivada, como escolha do
caminho, que remete à consciência do território. ‘A
Paranormalidade: Sugestões para Pesquisa’ é um texto de
1967. Foi redigido, inicialmente, numa perspectiva sociológica
que, aqui, muda de significado. Trata-se da investigação
sociológica do espaço mental, referida a uma experiência
pessoal (evidentemente, não desejada), que se defronta com o
‘espaço da loucura’.” (Idem, p. 11-12)
Paremos por aqui, já temos o suficiente. É possível uma contribuição
geográfica genuína para a compreensão da subjetividade humana (ou os
“territórios da consciência”)? Uma Geografia da Paranormalidade1? Quais os

1 “A definição que se encontra para a paranormalidade é a que ela é um fenômeno que está fora
dos limites da experiência normal, ou que não pode ser explicado cientificamente. Nem uma
coisa nem outra. O limite da normalidade é traçado por instituições existentes, relativas a um
modo de produção historicamente determinado, ao qual correspondem formações sociais
específicas de manifestação. Então, cada modo de produção possui sua propria normalidade
e patologia institucionalizadas.” (SILVA, 1986, p. 15)
(des)limites subjetividade-espaço?2 Pode a “consciência do território” permitir
uma abertura à consciência do Outro?3

Chegou a Professor Titular, na década de 90. Nesta mesma época,


trabalhou por alguns anos no Programa de Pós-graduação em Geografia da
Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, em Presidente Prudente, onde
escreveu sua “outra” tese de livre docência – esta sim, aprovada4.

A situação até hoje é recontada (sempre com “novos” detalhes). A


reprovação da primeira tese de livre docência de Armando Corrêa da Silva é
relatado por Sposito (2011, p. 114):

Flashback. Em 1989 assisti à reprovação de Armando em seu


exame de livre docência. Ele apresentou um texto intitulado
Quatro paralelos e um meridiano. Contrastou sua ousadia, seus
termos com forte apelo teórico e o conservadorismo (mesmo que
com a competência de estar por ali) dos membros da banca. Ele
pagou o preço de desafiar a banca, que o havia prevenido para
que ele não fosse para o exame, mas ele pediu que fosse
reprovado publicamente, na presença de seus pais, alunos e
amigos. Alguns membros da banca, com comportamento irado,
não aceitaram o desafio. Reprovado, Armando reapresentou-se
para um novo exame de livre docência dois anos depois, quando
foi aprovado. Aí ele apresentou, no novo texto, um mapeamento
do espaço relacional de um estudo empírico que realizou no
bairro da Consolação, em São Paulo.

2 Fazendo um balanço do meu próprio texto enquanto escrevo esta introdução acabo refletindo
sobre a seguinte questão: frente ao vigor intelectual desta alçada de Armando Corrêa da Silva,
uma investigação acerca dos desafios de uma abordagem territorial para a Saúde Mental me
parece bem pouco ousado... Talvez “Simplesmente Armando” pensasse: “é preciso ir além,
meu rapaz...” (((DEVANEIOS)))
3
Conforme o “Dicionário dos Geógrafos Brasileiros”3, elaborado pelo grupo GeoBrasil3, Armando
Corrêa da Silva, o “geógrafo-filósofo” (SPOSITO, 2008), nasceu em Taquaritinga/SP, estudou piano
na juventude e mudou-se para Goiânia/GO, onde passou a tocar profissionalmente. Retornou para São
Paulo, onde bacharelou-se em Ciências Sociais na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, sendo aluno de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique
Cardoso. Enquanto trabalhava como “copydesk” no jornal Folha de São Paulo, estabeleceu contato
com a Geografia universitária através do professor Dirceu Lino de Mattos, que “buscava auxiliares
para uma pesquisa em Geoeconomia na Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA)”.
Como aluno de pós-graduação, cursou uma série de disciplinas de Geografia Física, “a fim de
preparar-se para lecionar Geografia das Indústrias, na FEA”. Doutorou-se em Geografia na mesma
instituição, que veio a lecionar na área de Geografia Humana
4 “Credenciado no Programa de Pós-Graduação em Geografia, não quis orientar ninguém:

permaneceu responsável por sua disciplina, cujo tema era diferente a cada ano, enfatizando,
sempre, o que ele pensava da Geografia por meio de temas como modernidade e pós-
modernidade, cultura, ideologia e cotidiano, principalmente, com ênfase constante no que ele
concebia como o método.” (SPOSITO, 2011, p. 114)
Armando Corrêa da Silva, considerava-se “um bem sucedido, mas não
um sucesso”, tendo em vista que atingir o sucesso trata-se de uma pressão do
mercado e que, desta forma, pode levar a caminhos inesperados, crises e
situações trágicas5.

O ecletismo marcou sua trajetória pessoal e profissional. Pianista


profissional, poeta, militante comunista, pesquisador e professor universitário,
atuou como presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros no biênio 1990-
92, sendo um dos grandes responsáveis pela reestruturação da entidade e figura
importante junto com Milton Santos, Ruy Moreira e toda a “nova geração” do
movimento de “Renovação da Geografia”, que marca uma virada ético-política,
epistêmico-ontológica e teórico-prática do campo científico da Geografia, ao
longo das décadas de 1980-90.

Ainda, a partir do relato de Sposito (2011, p. 114),

Flashback. Lembro-me de Armando proferindo seu discurso de


posse como presidente da Associação dos Geógrafos
Brasileiros, em Salvador, em 1990. Ele lembrou que (posso ter
forçado a memória) “Marx morreu, Jesus Cristo morreu,
Nietzsche morreu e ele mesmo não se sentia muito bem”. Ao
tentar justificar por que não tinha plataforma elaborada para sua
gestão de dois anos à frente da AGB, colocou-se na própria
dúvida, afirmando que “não sabia se era pós-marxista,
pósmoderno ou pós-ele mesmo!”
Este período marca a introdução no Brasil de uma reflexão crítica e
filosófica acerca do próprio campo da Geografia, impulsionando tendências
epistemológicas outras6.

Responsável pela aproximação do pensamento Geográfico com o


pensamento de alguns filósofos que produziram grandes mudanças nas ciências
sociais como um todo, apoiado na ideia de crise do pensamento geográfico, o
autor encabeçou grandes críticas a falta de reflexão filosófica por parte dos
geógrafos.

5 No documentário “Prof. Armando, seu piano e sua Geografia”, dirigido por Olindo Estevam,
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=r9v_quY6Wkg (acesso dia 19/11/2016).
6 De acordo com o verbete “Teoria da Ciência” do Dicionário de Filosofia, de ABBAGNANO
(2007), enquanto teoria do conhecimento, a epistemologia envolve a exposião sistemática
dos princípios fundamentais em que se apoio as ciências, ou seja, “a disciplina que considera
as formas ou os procedimentos do conhecimento científico”.
Spósito (2008) afirma que Armando Corrêa da Silva buscou em Luckács
o conceito de práxis e as bases de uma discussão ontológica para a Geografia.

De Sartre,

Ele tomou a importância da compreensão do ser. Tendo como


partida o real enquanto totalidade do ser, ele admite o nada
como elemento do processo de fundamentação do ser que leva
à percepção da espacialidade. Partindo do pressuposto de que
o nada se conforma na relação entre o ser e a exterioridade
imediata, a formação da consciência ocorre quando ocorre a
negação do que é exterior ao ser. O exterior, por sua vez, pode
ser percebido como fundo e forma que, em consequência, estão
presentes na consciência do espaço – este como algo em
constituição. (p. 159)

Para SOUZA (2014), a pedra angular do pensamento de Armando Corrêa


da Silva é uma ontologia do espaço geográfico que “contém, ou envolve o
homem por inteiro”:

considerando o espaço como ‘Ser’, o referido professor geógrafo


tratou de entender a essência do espaço para com o homem a
fim de mostrar como o homem busca organizá-lo. (...) Para Élvio
Rodrigues Martins, ‘há uma Geografia outra (ontológica) nos
escritos deste autor’7. Não obstante, a geografia tanto de Milton
Santos quanto de Armando Silva são de uma riqueza fascinante
quando compreendida do ponto de vista da renovação no
pensamento geográfico brasileiro que, sem dúvida, podem ser
consideradas geografias ou ideias inovadoras, bem como
ousadas.
Armando Corrêa da Silva alcunhou seu próprio método como uma
“fenomenologia ontológica-estrutural” (SILVA, 2000) cuja vertente (a qual
denominou “ontologia analítica”) envolve a articulação de ontologias plurais,
integrando da teoria estruturalista do conhecimento marxista-leninista e a
fenomenologia (SILVA, 1994). O princípio consiste no conhecimento que se
orienta à teoria como uma afirmação sobre o real, “é uma descrição teórico-
prática da categoria e permite elevar o pensamento do abstrato (que seria o nível
empírico) ao concreto (que se definiria pela essência do real)” (SPOSITO, 2008,
p. 159).

7 Nota do autor: “Referindo-se ao professor Armando Corrêa da Silva - MARTINS, Élvio


Rodrigues. Anotações de aula. Ontologia e Epistemologia em Geografia. FFLCH/DEGEO-
USP, 2013.”
Para tanto, concebia a Geografia como “a ideologia do cotidiano” – em
suas próprias palavras:

Nunca fiz uma ciência desprovida de uma mensagem de uma


comunicação de um significado para o cotidiano para as pessoas,
aliás a minha postura é uma ideologia do cotidiano8.
E, em outro texto,

A Geografia é uma subtotalidade. Ela pode ser identificada, no


âmbito do conhecimento, como uma ideologia do cotidiano,
expresso pela apreensão da espacialidade do valor relacional
contido no real. Deste modo, apresenta-se, ao mesmo tempo,
com uma essencialidade desse real e como sua manifestação
externa. O que é geográfico está diante de nossa percepção –
aquilo que se “vê” – e possui um significado dado pela
particularidade e pela forma: aquilo que se apresenta como um
momento da existência de uma configuração do espaço e pelo
movimento diferenciado e múltiplo neste. (SILVA, 2000, p. 7)
Armando Corrêa da Silva acreditava que o mundo atual radicalizou suas
contradições tornando-se um desafio para a compreensão – “O mundo de hoje
é muito complicado e a gente vive dentro das estruturas que a gente busca
analisar. Daí a dificuldade de entender o que está acontecendo”9.

Nas suas próprias palavras,

Eu acho que um curso universitário moderno deve começar


pela tela, entendendo-se tela no sentido do vídeo, da televisão,
do cinema. Este é ponto de partida: ver e sentir. E o pós-
moderno deve tentar resgatar a categoria da totalidade através
do desejo, e ai eu citaria Guattari, Deleuze, Bataille, Foucault,
Nietzsche, uma série de atores que tratam de uma situação em
que se encontram hoje um grande número de pessoas que
passaram pela experiência da paranoia e da esquizofrenia –
não no sentido médico clínico, mas nos sentido de um mal-
estar10. Esse mal-estar, acaba sendo uma coisa muito boa,
pois obriga a gente a andar sem andadeiras, sem bengalas,
descobrindo a si mesmo, se observando e não sendo nem
pessimista e nem otimista11.

8 Fala proferida em entrevista para o documentário “Prof. Armando, seu piano e sua Geografia”.
9 No documentário “Prof. Armando, seu piano e sua Geografia”.
10 Mais a frente, Armando afirma que o “mal-estar” está diretamente ligado “a uma certa pressão
do mercado para se ter sucesso”.
11 Em “Prof. Armando, seu piano e sua Geografia”.
O acesso ao seu legado intelectual, contudo, não é tão fácil.
Primeiro, devido a maior parte de seu material produzido estar disperso
em artigos para revistas e capítulos de livros, aos quais o autor e remete em
seus livros, sem, contudo, uma retomada da reflexão daqueles debates de forma
sistemática12.

Segundo, dado a seus debates serem muito pouco lineares - o que


significa na prática que certos temas são retomados ou interrompidos ao longo
de sua produção, esboçando quase que um “quebra-cabeças” – alguns temas,
por exemplo, são problematizados em alguns escritos, mas só são retomados a
fundo anos depois; e, outros, são abandonados e não revisitados, deixando
muitas questões em aberto.

Finalmente, sua linguagem é bem pouco convidativa, posto que envolve


toda uma complexidade imersa em uma erudição e discussões teórico-
metodológicas a partir do linguajar de campos científicos tradicionalmente pouco
próximos da Geografia – como na filosofia, com a ontologia ou no caso da
fenomenologia.

Apesar da riqueza de suas contribuições, concordamos com Spósito


(2011, p. 119 apud SOUZA, 2014) para o qual: “este personagem continua sendo
uma incógnita no pensamento geográfico por sua ousadia, sua simplicidade e
sua negação dos cânones da academia”.

Esquizofrênico, amplamente relembrado por seus surtos e momentos


“anormais”13, tomado ora como “gênio-louco” ora como “louco-gênio”, tem sua
produção intelectual crivada de forma geral por um duplo e aparentemente
contraditório ideário: por um lado, cabe desconsiderar muito de seus
pensamentos, visto representar um intelectual ilógico, inconstante e irregular,

12 Importante problematizar a dificuldade de acesso aos textos políticos de Armando Corrêa da


Silva. Muito de sua militância envolveu a produção de textos e escritos em revistas de
sindicatos (pouca circulação e quase sem registro) e falas em assembléias e reuniões do
Partido Comunista Brasileito – talvez um dos únicos de relativo acesso seja o “Estrutura e
mobilidade social do proletariado urbano em São Paulo”, na Revista Civilização Brasileira, em
1967. Dada a esta dificuldade, constumamos exaltar o caráter militante de sua pessoa, sem,
contudo, conseguir uma caracterização mais concreta de sua ação política.
13 “Considerando algumas explanações de estudantes da época da graduação (em especial na
década de 1990), há comentários de ex-alunos que confirmam exposições do eminente
professor Armando executando, vez ou outra, uma peça de música erudita no pátio do
departamento de Geografia em pleno horário de aula.” (SOUZA, 2014).
“gênio-louco”, valendo a retomada a um ou outro texto, de um ou outro momento
mais marcante, mas específico e pontual de seu legado.

Por outro, a hipervalorização de sua obra como que buscando uma


“verdade escondida e reveladora”, a frente de seu tempo, que o “louco-gênio”
pudesse expressar, sobrecodificando14 seus escritos (soma-se o deslumbre
sobre como uma leitura de ordem mais cronológica de suas obras permitiria “ver”
seus “momentos” e, por tanto, a possibilidade de separação e mapeamento da
evolução entre os “momentos mais sãos” e àqueles “mais afetados pela
loucura”).

Interessante: oscilando entre a banalização e à “folclorização”, o mergulho


no pensamento do intelectual guarda na surdina um denominador comum, nem
sempre explícito, mas sempre presente: a loucura. Ora como aquilo que deve
ser negado, geneticamente chagado pela irrazão (implicando a priori no
questionamento da validade de seus pressupostos); ora como aquilo que instiga,
deslumbra, “revela”.

Em suma, trata-se de um duplo movimento de apropriação dos “ecos da


loucura”. Mas, como ouvi-la?

A loucura, embora flagrada nos discursos, habita nos corpos...

O que Armando Corrêa da Silva pensaria?

Como uma forma de “Ode”15, buscaremos ao longo do texto desacomodar


o estigma “marcado à ferro” acerca da loucura do autor (comum aos “gênios-
loucos” e “loucos-gênios” que influenciaram direta e/ou indiretamente muito da
visão de mundo de nossa sociedade atual. Longe de uma tentativa de afirmar a

14 No vocabulário conceitual de Deleuze e Guatarri, o conceito de código/sobrecodificação


assumem forma ampliada, podendo fazer referência desde sistemas semióticos à fluxos de
energia. Contudo, a sobrecodificação trata-se, para os autores, de uma codificação de
segunda ordem. Ou seja, de forma externa e estranha aos sistemas de codificação que
concernem a certo conjunto de relações. Em, Deleuze e Guattari (1976), os autores nos
trazem como exemplo as sociedades agrárias primitivas que ao mesmo tempo em que
operam segundo seus proprios sistemas e mecanismos de codificação territorializados, são
sobrecodificadas por estruturas relativamente desterritorializadas que lhes impõe uma
“hegemonia militar, religiosa, fiscal, etc.”.
15 Próprio da cultura grega, trata-se de um poema lírico, destinado ao canto, sempre de tom
alegre e enstusiástico. C.f. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia (tradução de
J. Guinsburg); São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
“racionalidade” de Armando, a tarefa é bem mais árdua: trata-se de reapresentar
seus “deslimites” através de suas próprias palavras, registradas em alguns
pequenos contos, relatos e poesias, presentes no livro Saudades do Futuro
(1993) – aqui reproduzidos fiel e integralmente16.

É preciso inflexionar, curvar, dobrar e redobrar nossa figura ilustre.


Recontar, pela voz do “contador”, suas próprias histórias. Terão loucuras, dele e
nossas. Atenção às nuanças, são elas que nos fazem ouvir por nossos poros.
Para “ouvir a loucura” é preciso se afetar em todos os níveis [como se de fato
fosse possível o contrário...]. Tomemos posição. É preciso que nos impliquemos.
Que sejamos “simplesmente Armando” por alguns momentos, para que
Armando Corrêa da Silva deixa de ser uma fotografia: o refaçamos por
rabiscos...de próprio punho... É preciso transduzir17 o “gênio-louco” e o “louco-
gênio”, em “simplesmente Armando”, cheio de complexidades...

Me lembro dos ensinamentos dos meus ancestrais acerca das formas de


manejo das ervas e plantas...

Comum na agricultura tradicional, a técnica da enxertia consiste na união


dos tecidos de duas plantas, normalmente de diferentes espécies, cujo
desenvolvimento da planta tende a produzir inúmeras vantagens, mas uma me
chama mais atenção: a união da característica das diferentes espécies numa só
planta. Assim, os antigos combatiam pragas e adaptavam cultivos de outras
regiões. Contudo, nem sempre a técnica dá certo. Às vezes, simplesmente, “não
vinga”.

É esta concepção de enxerto que trazemos para a estrutura do texto.


Nossa “forma de ler” Armando: não necessariamente uma leitura linear e
concordante ou adaptada ao tema aqui dissertado, mas de alguma forma

16 No documentário supra-citado “Prof. Armando, seu piano e sua Geografia”, Armando afirma:
“Passei um pouco da minha preocupação com o barzinho, com a mulher, com a música para
o papel e acabei sem ter pensado nisso escrevendo um livro que chama-se saudades do
futuro”; e, mais além, explica que “Saudades do futuro não é uma metáfora. É uma maneira
de eu exprimir o meu antes e o meu depois. Por que sou da geração de 50 (meu antes) e vivi
a década de 60 muito intensamente, a de 70 com muita dificuldade, a de 80 e agora já
estamos numa geração de 90. E saudades do futuro representou pra mim uma forma de
exprimir a minha experiência de vida.”
17 Do substantivo “transdução”, que se trata na Física, da transformação de uma energia em uma
energia de natureza diferente.
integrado e parte de um todo. Os enxertos, devem ser explorados mais como
experimentações, um degustar da loucura, do que propriamente como uma
extensão ou prenuncio dos capítulos. Os enxertos, no texto, são pausas.
Entremeios. Intervalos que ampliam a linguagem e campo de expressão, que
buscam unir lógica e afeto. Armando e Lucas (eu, inventor, ou seu alter-ego?
(((DEVANEIOS)))). As conexões entre os enxertos e o texto devem ir se fazendo
ao longo da leitura, de forma aparentemente caótica e desorganizada, mas,
propositalmente orientada. Não se enganem, este texto também vocaliza minhas
loucuras...

O que Armando Corrêa da Silva pensaria?

Quem seríamos nós para ousar qualquer resposta. Lhe convidamos,


leitor, para que, implicado em nosso trabalho, se aproprie e faça seu este hiato,
preenchendo-o ou não – como achar melhor. Aqui, a pergunta está entreaberta,
posto que, por si só, a preservação de sua presença em “suspensão” (de forma
“elevada”, mantida em outro plano), para nós que vos fala, já sustenta seu valor
e pertinência. Deixa-la entreaberta permite desencarcerar o “gênio louco” e o
“louco gênio”, mantendo “simplesmente Armando” vivo, sendo parte e
preocupação recorrente para nós.

O coração de Armando Corrêa da Silva parou de bater no dia 26 de agosto


de 2000. Não morreu de loucura, afinal, conforme brilhantemente me lembra o
“colega-geógrafo-louco” Renan Nascimento: “loucura não mata”.

[“Uma coisa curiosa a meu respeito é que dizem que eu tenho uma
postura séria que se reflete no rosto, mas isso decorre da necessidade de eu me
concentrar para falar, mas eu sei sorrir também...” – disse Armando em sua
última fala no documentário “Prof. Armando, Seu piano e sua Geografia”, dirigido
por Olindo Estevam, o “Tchê”, antes de sorrir...]

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