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FETICHE NEO-ORIENTALISTA

Laísa Marra de Paula Cunha Bastos1

Resumo: O trabalho apresenta as conclusões de minha pesquisa de mestrado sobre as relações, aparentemente
contraditórias, entre autobiografias best-sellers de mulheres muçulmanas e o crescimento da islamofobia nos Estados
Unidos e Europa ocidental. Examinando o processo editorial de produção das autobiografias selecionadas, observa-se
que a autorrepresentação das autoras muçulmanas se dá de maneira domesticada pela estratégia da coautoria de uma
"informante nativa" com uma escritora ocidental, pelos discursos paratextuais que acompanham os livros, e pelos
horizontes de expectativas que os circunscrevem. Desse modo, trajetórias de vida e posições políticas tão diferentes
como as da paquistanesa Malala Yousafzai e da somali Ayaan Hirsi Ali são apresentadas ao público leitor dentro do
mesmo discurso neo-orientalista, segundo o qual o "Ocidente", construído no texto por oposição a "Oriente", ambiciona
levar a "liberdade", que lhe seria intrínseca, às "oprimidas" mulheres muçulmanas. Observa-se que esse discurso dialoga
diretamente com a geopolítica contemporânea pós-11 de setembro de 2001, sendo necessária sua problematização
enquanto estratégia para contribuir com uma crítica feminista atenta à conjuntura política na qual emerge o neo-
orientalismo, o que se torna ainda mais urgente em um cenário no qual o presidente estadunidense eleito é Donald
Trump, quem buscou no terrorismo e na islamofobia o alicerce de parte de seu discurso e propostas de campanha.

Palavras-chave: Autobiografia. Gênero. Islã. Neo-Orientalismo.

Inicio este texto com uma das questões que mais me provocaram durante minha pesquisa
sobre autobiografias best-sellers de mulheres muçulmanas, ou seja, qual é a relação entre uma
aristocrata saudita, uma menina pachtum no Paquistão e uma mulher somali cuja vida foi marcada
pelo deslocamento provocado por guerras? O mercado editorial, segundo demonstrei em minha
pesquisa de dissertação (Bastos, 2015), bem como no livro Fetiche Neo-orientalista (Bastos, 2016),
responde a essa pergunta de um modo simplista: são todas mulheres oprimidas pelo islã. Nesse
sentido, produzir (auto)biografias das histórias de vida de Sultana Al-Saud (Sasson, 2005), Malala
Yousafzai (2015) e Ayaan Hirsi Ali (2009) se apresentava como uma aliança de caráter feminista
entre essas mulheres, não-ocidentais, com os ocidentais co-autores(as) dos livros, editoras e
leitores(as) na luta contra a opressão de gênero.
O motivo de minha suspeita com relação à boa vontade das grandes editoras norte-
americanas e europeias – que, na realidade, são partes de poderosos oligopólios conhecidos como
"conglomerados de multimídia" (Bastos, 2016, p. 107-108) – para libertar as mulheres muçulmanas
assentava na percepção de que, segundo apontam algumas autoras, dentre elas Saba Mahmood
(2008) e Lila Abu-Lughod (2013), principalmente desde os atentados ao território estadunidense,
em 11 de setembro de 2001, manifestou-se nos países industrializados do Ocidente uma crescente
discriminação contra homens e mulheres muçulmanas(os), vistos como terroristas potenciais no
contexto da chamada Guerra contra o Terror. Desse modo, se fez notável um (aparente) conflito de
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Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFMG
(Belo Horizonte, Brasil).

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discursos e ações que, por um lado, ao publicar e consumir essas autobiografias enquanto denúncias
de opressão de gênero, se colocavam como aliados das mulheres muçulmanas em suas lutas por
igualdade e liberdade; e, por outro, as tomavam como parte da ameaça à civilização ocidental.
Significante desse segundo discurso foi o Patriotic Act, lei proclamada nos EUA, logo em
2001, objetivando "Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required
to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001"2. Na prática, esse decreto incentivava a vigilância
e a denúncia, por parte da sociedade civil, de qualquer sujeito que parecesse terrorista. Uma vez
acusado, com base em qualquer (pre)conceito do que seria um terrorista e sem necessidade de
provas ou de autorização judicial, o Estado teria a possibilidade automática de investigação do
suspeito. Sabendo que pelo menos desde a Guerra Árabe-Israelense de 1973 a representação do
árabe passou a ser difundida em termos de fanatismo religioso e violência (Said, 2007, p. 382), não
foi difícil para o discurso neo-orientalista equacionar a aparência terrorista com o idioma árabe,
uma determinada cor de pele (não-branca) e, principalmente, a fé no islã.
Ligada a tensões políticas, a análise do campo de autobiografias best-sellers de mulheres
muçulmanas demonstrou que, a partir da década de 1990, coincidindo temporalmente com a Guerra
do Golfo (1990-1991), emergem narrativas de vida de mulheres oprimidas por suas culturas e
religião, fenômeno editorial que se intensifica significativamente pós-11 setembro de 2001. De certa
forma, essa constatação acerca da relação bélica entre países industrializados e Oriente Médio na
virada do século XX ao XXI, responde minha pergunta inicial, isto é, o que liga as narrativas de
vida estudadas em minha pesquisa não são as histórias pessoais dessas mulheres, mas o cenário
geopolítico no qual elas estão imersas.
Mencionada ou não na narrativa, o conflito contemporâneo entre Ocidente e Oriente Médio
é mediador incontornável dessas autobiografias, o que pode ser visto em seu processo de produção
desigual. Refiro-me ao fato de que a autobiografada tem pouca voz sobre o resultado final do livro,
sendo a formatação de sua história uma responsabilidade da editora (Bastos, 2016). Ademais,
conforme aponta Dohra Ahmad (2009, p. 108), livros de/sobre sujeitos não-ocidentais tendem a ser
recebidos pelo público ocidental inseridos no que a autora chama de "práticas de leitura"
essencializantes, como se a trajetória de um indivíduo não-ocidental pudesse ser totalmente
explicada por sua cultura. Em outras palavras, uma autobiografia de uma mulher branca como, por
exemplo, Simone de Beauvoir, costuma enfatizar sua individualidade, seu caráter extraordinário, e
não é jamais lida como uma história exemplar da vida das francesas. No entanto, o contrário é
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"A união e o fortalecimento da América provendo os instrumentos apropriados e necessários para interceptar e obstruir
o terrorismo". (tradução minha).

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válido para Malala Yousafzai, cuja história singular é, a priori, lida como uma espécie de pedagogia
sobre a cultura e mulher muçulmanas.
Ao examinar o processo de composição desses livros, verificou-se que, via de regra, eles são
escritos em situação de coautoria entre uma informante nativa ideal e um(a) escritor(a) profissional
ocidental (que pode ou não ser mencionado); são publicados incialmente em línguas anglo-saxã ou
latinas por editoras ocidentais em países ocidentais; e visam a leitores ocidentais. Assim sendo,
argumento que se desenvolveu no mercado editorial transnacional uma espécie de fôrma para contar
a história de uma mulher muçulmana através do gênero confessional. Enfatizo a palavra fôrma,
porque, além das características citadas acima, os aspectos peritextuais (capas, abas e contracapas)
que circunscrevem essas autobiografias best-sellers têm uma identidade notavelmente neo-
orientalista. Aqui vale enfatizar que o espaço do peritexto é de responsabilidade objetiva das
editoras, as quais trabalham no intuito de atrair o máximo de leitores. Sobre isso, observe-se, por
exemplo, a seguinte capa (Sasson, 2017):

Princesa (Sasson, 2005) foi publicado inicialmente em 1992 e se tornou um best-seller,


inaugurando o gênero de autobiografias de mulheres muçulmanas oprimidas pelo islã (Whitlock,
2007). O livro foi escrito em inglês pela estadunidense Jean P. Sasson (2005), quem narra a vida de
Sultana, pseudônimo de uma saudita pertencente à família Al-Saud – aristocracia dirigente na
Arábia Saudita. Segundo o subtítulo do livro, ele contará "the true history of life behind the veil in
Saudi Arabia" (Sasson, 2017)3, sendo que "por trás do véu" transparente vê-se a imagem
sensualizada de uma jovem bonita. Na contracapa da edição brasileira de Princesa (Sasson, 2005),
lê-se o seguinte:

Casamento forçado, mutilações e violências sexuais, execução pública por apedrejamento

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"A verdadeira história da vida por trás do véu na Arábia Saudita." (Sasson, 2017; tradução minha).

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ou confinamento pela família, censura, proibição de dirigir, de viajar ou de mostrar o rosto
– estas são apenas algumas formas de opressão com que as mulheres muçulmanas ainda são
tiranizadas no Oriente Médio. Num depoimento contundente, uma autêntica princesa da
Casa Real Saudita revela, sob risco de vida, a intimidade dessa terra fechada,
fabulosamente rica, onde o respeito aos direitos e à qualidade de vida das mulheres
continua lhes sendo negado. Uma terra onde ainda imperam os homens, o sexo e o dinheiro.
(SASSON, 2005, contracapa; grifos meus).

Se na capa predomina uma mensagem de erotismo, na contracapa são destacadas as opressões com
que "as mulheres muçulmanas ainda são tiranizadas no Oriente Médio" (Idem, ibidem), havendo,
portanto, uma aproximação tipicamente (neo)orientalista entre sexo e violência como elementos
pelos quais se pode narrar e compreender o mundo árabe.

O que escondem os véus?

Além disso, a própria escolha do gênero confessional como o mais adequado para denunciar,
via indústria cultural, a opressão a que são submetidas as mulheres muçulmanas é algo que merece
reflexão. De fato, pode-se dizer que esse gênero literário, a priori, pressupõe certo componente
voyeurístico, a depender de quem é o objeto central do livro. No caso de Princesa (Idem, ibidem),
explicita-se uma promessa feita leitores de que eles terão a oportunidade de penetrar numa "terra
fechada", e assim ter acesso à "intimidade" de uma "autêntica princesa" árabe (Idem, ibidem).
Assim sendo, é construída no peritexto do livro uma espécie de sensação de harém, esse topos
altamente sensualizado e cristalizado no pensamento ocidental pelas representações orientalistas
feitas por pintores e viajantes europeus, especialmente nos séculos XVIII e XIX (Dib, 2011).
A representação orientalista do harém, bem como o peritexto de Princesa, opera
principalmente com imagens de sexo e opressão. Logo, o harém, bem como o véu, e a própria ideia
de Oriente são imaginados como uma prisão sensual, um local libidinoso cujos mistérios são
interditos ao homem branco. Para Meyda Yeğenoğlu (1998), a prática orientalista, de investigação e
dominação do oriente, esteve tão mergulhada na figura da mulher nativa porque ela era interpelada
como metonímia do Oriente. Nessa perspectiva, o obstáculo que a odalisca do harém ou a mulher
velada impunha ao desejo branco e masculino de descobri-la em sua intimidade e essência
corresponde com as barreiras político-culturais encontradas pelos europeus ao colonizar o Oriente
nos séculos XVIII-XIX.
De modo análogo, na primeira metade do século XX, a colonização francesa na Argélia
elegeu o véu, e suas variações, como metáfora do atraso civilizacional da população nativa, a qual
deveria se adaptar aos ideais progressistas do colonizador através da desvelização das mulheres.

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Segundo Franz Fanon (1965), nesse momento histórico, o véu acabou por significar também a
resistência do colonizado quanto à dominação do colonizador. Nesse sentido, travou-se uma
verdadeira batalha tendo o corpo da mulher como campo. Por um lado, o colonizador, em seu gesto
de desvelização, esperava que as mulheres fossem aliadas no processo de aculturação. Por outro
lado, os argelinos, especialmente os homens, viam nas mulheres com véus símbolos de resistência –
cultural, religiosa, política – ao imperialismo/colonialismo.
No contexto de conflitos contemporâneos (discursivos e bélicos) e independente da história
e do perfil pessoais de cada uma das mulheres biografadas pela indústria cultural, justifica-se tratar
essas autobiografias dentro da categoria de neo-orientalismo, porque elas reiteram um tipo de
discurso, orientalista, enraizado no período imperialista. Como analisou Edward Said (2007), esse
discurso foi prolífico nos séculos XVIII-XIX e se caracterizou, entre outras coisas, por ser uma
estratégia de dominação do Oriente pelo Ocidente. A interpretação de Said (2007) se torna ainda
mais pertinente ao demonstrar que essa dominação colonial não se concentra unicamente em ações
militares, nela subsistindo um importante investimento imaginativo.
Ao se fixar, ao longo da história, na imagem da mulher árabe ou muçulmana velada como
uma parte equivalente a Oriente, desenvolveu-se no Ocidente um imaginário fetichista para
representar o tema. Para Freud (1986), o fetiche é uma patologia na qual um objeto (como uma peça
íntima) ou parte do corpo humano (geralmente cabelo) recebe uma atenção obsessiva por parte do
indivíduo. Freud (1986, p. 147-148) explica o problema como provindo da experiência traumática
de um sujeito masculino ao ver, na infância, que sua mãe não tem pênis. A visão dos pelos pubianos
sem a presença do falo causaria no menino um medo irracional de também perder o pênis. O
homem que não consegue lidar de forma saudável com essa experiência se torna um fetichista,
alguém que só consegue se sentir minimamente no controle a partir da posse do objeto de sua
obsessão, o qual funcionaria como um "substituto do pênis" (Idem, ibidem, p. 147).
Tomando essa análise de modo heterodoxo, pode-se interpretar a obsessão (neo)orientalista
por véus como fetichista na medida em que o orientalista se fixa no véu por tomá-lo como um
objeto especial encobrindo algo interdito que, uma vez possuído, poderia apaziguar sua ansiedade e
o medo de perder seu poder inato (o falo na terminologia freudiana), uma vez que o fetiche
incorpora "el signo del triunfo sobre la amenaza de castración y de la protección contra ella" (Freud,
1986, p. 149). A aproximação com a leitura de Freud (1986) permite ainda refletir o porquê de o
véu da imaginação dos orientalistas ser sensualizado, como aquele da capa de Princesa, ou seja,
uma peça de vestimenta que, tal qual uma roupa íntima, antecipa o clímax da visão metafórica da

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castração ao sugerir, pela transparência, o que está por trás do véu. Nesse viés, os véus de fato
escondem algo, não os mistérios do oriente, mas o complexo de castração do sujeito ocidental
frente a esse objeto que não se deixa apreender com facilidade.
Ligado a isso e voltando às autobiografias de mulheres muçulmanas, concluí em minha
pesquisa que esses textos não funcionam apenas enquanto representações neo-imperialistas e neo-
orientalistas do Oriente, mas também do Ocidente. Ao estruturar a narrativa em dicotomias como
opressão versus liberdade, como acontece no livro Infiel, de Ayaan Hirsi Ali (2009), essas
autobiografias dão forma a uma ideologia segundo a qual a liberdade é um valor inerente ao
ocidente. Desse modo, aos leitores são apresentadas narrativas segundo as quais o Ocidente é um
lugar mais civilizado, onde as mulheres desfrutam de liberdade, mesmo que essa liberdade seja
reduzida em termos de liberdade para não usar véus. Questões de classe social, cor/etnia,
escolaridade etc. raramente são problematizadas nessas narrativas. É como se, por serem
muçulmanas, aquilo que é dito sobre uma aristocrata árabe valesse para uma imigrante negra e/ou
pobre, pois elas seriam vítimas em busca da salvação ocidental.
Um aspecto cruel implícito nesse discurso salvacionista neo-orientalista (Abu-Lughod,
2013) está em que, apesar de as autobiografias posicionarem o Ocidente como o lugar da salvação e
da liberdade, sabemos que a entrada de imigrantes muçulmanas(os) nos Estados Unidos e na Europa
é cada vez mais dificultada por esses países – o que evidencia a contradição apontada no início
desse texto entre o discurso da muçulmana como aliada a ser resgatada versus a(o) muçulmana(o)
como parte da ameaça terrorista. Assim, mulheres buscando ir à Europa para fugir de um casamento
forçado, como aconteceu à somali Ayaan Hirsi Ali (2009), bem como refugiadas de guerra
recebem, na maioria das vezes, a indiferença e a recusa do Ocidente como resposta.
Ademais, como a história tem demonstrado, o intervencionismo militar, como o que ocorreu
neste século no Afeganistão e no Iraque, estão longe de sufocar o sentimento de ódio anti-
imperialista que move grupos como o Talibã. Em 2013, em encontro com a família Obama na Casa
Branca, Malala Yousafzai aproveitou a ocasião para criticar o uso de drones como parte da
estratégia antiterrorista dos Estados Unidos: "I also expressed my concerns [to Barack Obama] that
drone attacks are fueling terrorism. Innocent victims are killed in these acts, and they lead to
resentment among the Pakistani people. If we refocus efforts on education it will make a big
impact." (Malala to Obama…, 2013)4. Nesse ponto, vale enfatizar que pouco ou nada se diz nas

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"Eu também expressei minhas preocupações [a Barack Obama] de que os ataques de drones estão alimentando o
terrorismo. Vítimas inocentes são mortas nestes atos, os quais conduzem ao ressentimento entre o povo paquistanês. Se

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autobiografias sobre os motivos do ressentimento de paquistaneses e de tantos outros cidadãos de
países que até recentemente eram colônias europeias em relação a suas antigas metrópoles e aos
Estados Unidos. A mensagem principal passada por essas autobiografias best-sellers – mesmo que
as protagonistas discordem – é a de que vivemos em um choque de civilizações, e que o terrorismo
e a violência de gênero são problemas exclusivamente culturais, isto é, a culpa é do islã.
É isso o que defende Wallerand de Saint-Just – integrante do partido francês de extrema
direita, o National Front (partido de Marine Le Pen) –, para quem “Islam has a tendency to create
fanatics more than any other religion.”5 (Hayoun, 2015). O atual presidente estadunidense vai mais
longe. Conectada às suas ideias inconstitucionais de barrar completamente a entrada de
muçulmanos no países (Shariatmadari, 2017) ou de fechar mesquitas (Hauslohner, Johnson, 2017),
está a convicção de Donald Trump de que o terrorismo nos países industrializados do Ocidente se
explica por ser o islã uma religião de ódio: “I think Islam hates us […]”6 (Idem, ibidem), e ainda:
“You have to deal with the mosques, whether we like it or not, I mean, you know, these attacks
aren't coming out of — they're not done by Swedish people.”7 (Idem, ibidem).
Tzvetan Todorov (2010, p. 103) defende, inclusive, que o termo “choque das civilizações” –
título do livro de 1996 do escritor americano Samuel Huntington (que antes havia publicado um
artigo com este título em 1993) – serviu para traduzir as ideias correntes no pós-11 de setembro
sobre os porquês do aparentemente inimaginável atentado aos Estados Unidos. E, uma vez que o
termo (“choque de civilizações”) disseminou-se, o público leitor ocidental vê-se na necessidade de
enxergar mais de perto a outra civilização, já que aquela da qual faz parte parece-lhe muito menos
hostil que a dos outros. Nesse sentido, é possível pensar essas narrativas best-sellers de mulheres
muçulmanas como "autobiografias de tese" (Bastos, 2016, p. 35), na medida em que elas funcionam
de maneira afim aos romances de tese do século XIX, os quais procuravam representar e difundir os
paradigmas das teorias raciais pela via da literatura.
Assim, é comum que essas autobiografias sejam publicadas e reconhecidas na medida em
que ofereçam explicações para o que se considera um fato: a inferioridade do islã e das sociedades
que o adotam como religião oficial, o que resulta em machismo e barbárie – tendo sempre as
sociedades ocidentais enquanto parâmetro de comparação (implícita ou explicitamente). À parte das

nós reorientarmos os esforços em matéria de educação, isso terá um grande impacto." (Malala to Obama…, 2013;
tradução minha).
5
"O islã tem a tendência de criar mais fanáticos do que qualquer outra religião" (Hayoun, 2015; tradução minha).
6
"Eu acho que o islã nos odeia" (Hauslohner, Johnson, 2017; tradução minha).
7
"Deve-se lidar com as mesquitas, gostemos ou não disso, quero dizer, você sabe, esses ataques não estão vindo de –
eles não são feitos por suecos". (Idem, ibidem; tradução minha).

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características gerais destacadas, pode-se constatar o caráter pedagógico das autobiografias
analisadas na presença de elementos tais como glossário (Sasson, 2005, p. 237; Yousafzai, 2013, p.
329), cronologia de eventos, religiosos ou históricos, considerados importantes (Sasson, 2005, p.
243; Yousafzai 2013, p. 333), bem como fotografias da (auto)biografada, de sua família ou lugar de
origem (Ali, 2009, p. 225; Sasson, 2004, p. 128; Yousafzai, 2013, p. 160). Nesse sentido
pedagógico, a própria dicotomia valorativa entre Oriente e Ocidente é útil, pois funciona como um
atestado de que o mundo estaria dividido em (apenas) duas partes, eles/nós, sendo essa divisão
baseada em valores e costumes; civilização versus barbárie (Abu-Lughod, 2013; Mahmood, 2008).
Para a caracterização dualística do mundo contemporâneo adota-se um vocabulário caracterizado
pelo exotismo, contornado, para tanto, a linguagem mais efetiva e usual da geopolítica.
Dito isso, é preciso deixar claro que não desconsidero o apelo feminista contido nos livros
analisados. No entanto o interpreto como um feminismo neo-orientalista que, a meu ver, é ineficaz
para combater os obstáculos que as mulheres muçulmanas enfrentam por não os examinar em suas
características estruturais; por isolar cultura e religião de outras categorias analíticas; por
domesticar a voz das autobiografadas através das estratégias editoriais destacadas acima; e por
sugerir uma ligação neo-imperialista entre intervenção militar e igualdade de gênero. Sob esse viés,
defendo a leitura crítica dessas produções culturais a fim de que não se esvazie seu componente
político.

Referências

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Neo-orientalist Fetishism

Astract: The paper presents the conclusions of my master's research on the apparently contradictory
relationship between best-selling autobiographies of Muslim women and the growth of
Islamophobia in the United States and Western Europe. Examining the editorial process of
production of the selected autobiographies, it can be observed that the self-representation of the
Muslim women authors is domesticated by the editorial strategy of co-authoring with a Western
writer, by the paratextual discourses accompanying the books, and by the horizons of expectations
that circumscribe them. In this way, life trajectories and political positions as different as those of
Pakistani Malala Yousafzai and the Somali Ayaan Hirsi Ali are presented to the reading public
within the same neo-orientalist discourse, according to which the "West", constructed in the text as
opposed to "East", aims to bring its "intrinsic freedom" to the "oppressed" Muslim women. It is
observed that this discourse establishes a direct dialogue with the post-September 11, 2001
contemporary geopolitics, requiring its problematization as a strategy to contribute to a feminist
critique alert to the political conjuncture in which neo-orientalism emerges, which becomes even
more urgent in a scenario in which the US president is Donald Trump, who sought in terrorism and
Islamophobia the foundation of part of his speech and campaign proposals.
Keywords: Autobiography. Gender. Islam. Neo-Orientalism.

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