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N° 20 | Setembro de 2013 U rdimento

Coralidade 1

Martin Mégevand2

E
xistem termos que sabem, diante da da instalação, que já não se apoiam em
utilização crítica, se tornar indis- textos, a não ser sumariamente (Wilson,
pensáveis, e que os dicionários de Tanguy, Castellucci). Por m, pensar o
retórica ainda ignoram: a coralida- teatro pelo ângulo da coralidade convi-
de é um deles. No espaço de vinte anos, da a explorar o vínculo entre literatura e
essa noção, que Jean-Pierre Sarrazac foi losoa relativamente à questão comu-
o primeiro a se arriscar a propor, em nitária. Outras pistas podem ser relacio-
L´Avenir du drame [O Futuro do drama], nadas com as três áreas esboçadas acima.
de 1981, pouco a pouco se impôs não só Citemos a questão retórica, ainda pouco
como um instrumento incontornável de explorada, da liricização do drama pela
análise dos textos dramáticos, mas tam- função coral: a questão, sociológica, do
bém de certos espetáculos contemporâ- tropismo ritual, ou cerimonialista, que se
neos, a tal ponto que um número valioso observa nas cenas contemporâneas (espe-
de Alternatives théâtrales, publicado em cialmente desde Genet e depois dele); por
março de 2003, é a ela dedicado3: a sua m, a questão, losóca, dos vínculos en-
leitura possibilita medir a vastidão dos tre o drama e a História: a coralidade nas-
problemas abordados por essa noção, e ce onde — por diversas razões que ainda
as contradições que suscita. Tentar des- não foram precisadas (m das utopias e
lindar-lhe o conteúdo ou delimitar-lhe o das ideologias, dissolução da comunida-
campo de aplicação certamente impõe o de e das comunidades) — o coro já não
cruzamento de várias áreas de conheci- pode instalar-se duravelmente nos palcos
mento e diversas abordagens teóricas e ocidentais. Tendo-se a coralidade torna-
técnicas, o que é a fonte principal das di- do uma peça mestra, mas ainda nova, do
culdades e da riqueza do seu emprego. quadro crítico do drama contemporâ-
Assim, para abordar a coralidade, é pos- neo, é inevitável que os contornos do seu
sível associar história das artes do espetá- campo de aplicação ainda sejam ainda
culo e retórica do drama contemporâneo, dicilmente delimitáveis. Aparece então
e até interrogar o devir pós-dramático o risco de uma profusão asxiante, e a
do drama. Interessar-nos-emos, então, necessidade de xar os seus conteúdos: a
pela literatura dramática e pela posição mínima, entende-se por coralidade a dis-
do texto na paisagem teatral contempo- posição particular das vozes, a qual não
rânea. Mas recorrer à noção de coralida- provém nem do diálogo, nem do monólo-
de pode também servir para qualicar go; a qual, requerendo uma pluralidade
e explorar estéticas híbridas, próximas (um mínimo de duas vozes), contorna os
princípios do dialogismo, particularmen-
1 Publicado sob o título “Choralité”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Ter-
te reciprocidade e uidez dos encadea-
ritoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.36-40. Tradução: José mentos, em proveito de uma retórica da
Ronaldo Faleiro.
dispersão (atomização, parataxe, ruptu-
2 Martin Mégevand é docente da Universidade Paris 8 – Vincennes Saint Denis. Seus
campos de pesquisa são o teatro francês e francófono; as literaturas teatrais e a cons- ra) ou do entrelaçamento entre diferentes
trução de comunidade; a poética do drama moderno e contemporâneo. palavras que se respondem musicalmen-
3 “Choralités”, Alternatives théâtrales, nº 76-77, Bruxelas, 1º e 2º trimestre de 2003.

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te (estilhaçamento, superposição, ecos — Guerriers), à seriação (Novarina), a uma


efeitos de polifonia, todos). Portanto, o disposição das palavras por patamares
termo permite apontar com ecácia um (Vinaver).
modo, que varia conforme cada autor, de Podendo fazer as vezes de princí-
suprir as brechas do diálogo: evocar a co- pio único de composição, a coralidade
ralidade de um dispositivo é inicialmen- dramática permite associar forma lírica
te considerá-lo pelo ângulo da difração e conteúdo épico. Consequentemente, a
das palavras e das vozes, num conjunto noção é particularmente operante para
refratário a toda e qualquer totalização a análise de um teatro que visa menos a
estilística, estética ou simbólica. Nesse contar do que a expor os limites do estar
sentido, a coralidade é o inverso do coro. junto, e que propõe a expor a memória a
Postula a discordância, quando o coro — partir das feridas da História e dos des-
pelo menos como o entendiam os gregos moronamentos do vínculo social (Weiss,
— sempre carrega, mais ou menos expli- L´Instruction; Vinaver, 11 septembre 2001;
citamente em seu horizonte, o traço de Groupov, Rwanda 94). As três obras co-
um idealismo do uníssono. rais aqui assinaladas apresentam, todas,
No entanto, do ponto de vista do de- um vínculo estreito com a música.
senrolar temporal, a coralidade desem- A aparição recente da noção no dis-
penha, no tecido dramático, um papel curso crítico assinala tanto uma evolução
muito próximo daquele de que o coro de das formas dramáticas quanto uma mo-
teatro estava investido. Ela produz diver- dicação do olhar dos especialistas sobre
sos efeitos sobre a temporalidade dramá- as obras. De fato, parece inevitável hoje
tica: retardando o desenrolar do diálogo analisar o texto dramático numa relação
como veículo da ação, impõe uma mo- com as estéticas que lhe são próximas.
dalidade temporal de um tipo mais para Transversal por denição, o recurso à
o suspensivo, ainda que a esse respeito noção de coralidade pode possibilitar a
possam ser observadas variações de or- convocação, junto a obras dramáticas, de
dens muito diversas. Portanto, a noção é objetos estéticos relacionados com a mú-
particularmente operante desde o “dra- sica, com a dança, com as artes plásticas,
ma estático” e oximórico de Maeterlin- e a reconsideração, por exemplo, das pa-
ck. Se ela se aplica ecazmente às formas lavras brechtianas sobre o papel de des-
dramáticas modernas desde que o drama vinculação/desarticulação trazida pela
foi posto em crise, é dicilmente dissociá- música para um espetáculo. Em suma, a
vel da estética do fragmento, e das várias coralidade constata a dispersão das esté-
modelizações da forma aberta: desmulti- ticas e da supressão das fronteiras entre
plicação, e até desaparecimento da tríade as artes.
exposição-conito-desfecho em proveito Vista como um campo cujos desvios
de uma retórica da disseminação, da mi- e acidentes ainda estão por ser medidos,
croestrutura ou da composição por meio a coralidade permite explorar as diferen-
de quadros. O torrão expressionista é, tes modalidades estéticas das novas ma-
pois, particularmente propício às ora- neiras teatrais de compartilhar a palavra,
ções corais. Mas parece difícil atribuir e, transitivamente, de questionar o estar
uma certidão de nascimento da corali- junto. Como propõe Christophe Triau
dade na história das formas dramáticas: no artigo liminar da revista precitada4, é
tratar-se-ia preferencialmente de uma pertinente analisar a coralidade não so-
tendência, cada vez mais apoiada histori- mente sob as espécies de um zumbido
camente, para variar o diálogo em todos de vozes anônimas, mas também como
os tipos de guras que se aparentam ao
estilhaçamento (Maeterlinck, Les Aveu- 4 Christophe Triau, “Choralités diffractées: La communauté en creux”, in Alternatives
gles), à dispersão aleatória (Minyana, Les théâtrales, nº 76-77, op. cit., p. 5-11.

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processo dialético, ou tensionamento, de


duas forças contrárias, patentes tanto no
jogo cênico quanto na espessura da “per-
sonagem” coral: assim, seria coral uma
tendência de composição, pertencente a
um jogo dramático ou a uma escrita, que
consistisse ora em singularizar a indivi-
dualidade, ora em incorporá-la ao coleti-
vo. Pelo que se vê, o paradigma temporal
é central no tratamento da coralidade.
Surge, porém, a questão que consis-
te em saber se, na hora em que os para-
digmas formais são facilmente abolidos,
mais do que evocar “a” coralidade, não
seria preferível singularizar uma corali-
dade de Novarina, distinta da de Vina-
ver, e sem muita relação com a de Gabily,
a tal ponto a paisagem do drama contem-
porâneo está semeada de formas corais
irredutíveis.

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