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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

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Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes
Sub-Reitora de Pós-Graduação Monica da Costa Pereira L. Heilborn
Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques
Diretor do C. de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos
Diretora do Instituto de Letras Maria Alice Gonçalves Antunes
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

I19 Idioma / Centro Filológico Clóvis Monteiro. Ano 1, n.1 (jun. 1981) - - Rio de Janeiro: UERJ,
Instituto de Letras, Centro Filológico Clóvis Monteiro, 1981 - .
v.

Semestral.
Periodicidade irregular 1981-2012.
ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico)

1. Filologia – Periódicos. 2. Língua portuguesa – Periódicos. I. Centro Filológico Clóvis


Monteiro.

CDU 801
IDIOMA

Nº 27, 2º semestre de 2014


ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico)

CONSELHO CONSULTIVO
Antônio Martins de Araújo – UFRJ / ABF Iremar Maciel de Brito – UERJ
Benjamin Abdala Júnior – USP Luiz Cláudio de Medeiros – UFRRJ
Bertha Rojas López – Universidad Nacional del Centro del Magda Bahia Schlee Fernandes – UERJ
Perú Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ
Bethânia Mariani – UFF Maria Teresa Gonçalves Pereira – UERJ
Bruno Bassetto – USP Mariângela Rios de Oliveira – UFF
Castelar de Carvalho – UFRJ / ABF Marina Machado Rodrigues – UERJ
Claudio Cezar Henriques – UERJ Mário Eduardo Viaro – USP
Cristina Rigoni – UNIRIO Monica Rector – University of Noth Carolina, Chapel Hill
Darcilia Marindir Pinto Simões – UERJ Nadiá Paulo Ferreira – UERJ
Dieter Messner – Universidade de Salzburgo Ofélia Paiva Monteiro – Universidade de Coimbra
Dora Riestra – Universidad Nacional del Comahue Regina Silva Michelli – UERJ
Edwaldo Machado Cafezeiro – UFRJ Sérgio Nazar David – UERJ
Evanildo Bechara – ABL / ABF Vania Lucia Rodrigues – Dutra – UERJ
Ieda Maria Alves – USP Victor Quelca – Universidad Autônoma René Moreno

CONSELHO EDITORIAL
Profª. Drª. Claudia Amorim
Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques
Prof. Dr. Flávio Barbosa
Profª. Drª. Tania Maria Nunes de Lima Camara

EDITORAÇÃO E REVISÃO
Elir Ferrari
Maíra Barbosa de Paiva Melo
Renata Flávia Marcolino de Souza

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA


Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ – CEP 20559-900

A MATÉRIA DA COLABORAÇÃO ASSINADA É DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES

NIHIL SINE LABORE


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................... 5

PROVOCAÇÃO E IMAGINAÇÃO
Diálogos entre descrição e narração na literatura infantil
Celia Abicalil Belmiro ........................................................................................................................................... 6

SUBVERSÃO PROVERBIAL
Uma estratégia discursiva
Denise Salim Santos ................................................................................................................................ 19

PONTO DE VISTA, MESCLAGEM E CONTRAFACTUALIDADE


Da narrativa cotidiana a um poema de Drummond
Lilian Ferrari e Diogo Pinheiro ................................................................................................................ 27

A SOLDADEIRA E SEUS CLÉRIGOS


Para uma leitura feminista de Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B 1455/V 1065), de João Baveca
Henrique Marques Samyn ...................................................................................................................... 39

A NORMA LINGUÍSTICA
Reflexão e análise em uma gramática do século XIX
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda e Cynthia Elias de Leles Vilaça ................................................................... s49

A CONSTRUÇÃO COMPLETIVA COM “SER + ADJETIVO AVALIATIVO”


Nilza Barrozo Dias ................................................................................................................................. 62

“IMITAÇÃO DA ÁGUA”
A “tortura” da referenciação
Soraia Farias Reolon Pereira ................................................................................................................... 81

A PRODUÇÃO DE TEXTOS E O TARÔ


Vera Cristina Rodrigues Feitosa ............................................................................................................... 103

Normas para publicação de artigos ......................................................................................................... 127


APRESENTAÇÃO
O número 27 da Revista IDIOMA traz novidades de grande interesse para os estudos de Língua,
Literatura e Filologia Portuguesa.
Em Língua Portuguesa, Celia Belmiro dedica-se à literatura infantil, observando características da
leitura de livros ilustrados e sua importância para a fruição estética e a formação literária das crianças. Denise
Salim enfoca os provérbios em seus aspectos fraseológicos e expressivos, atentando para o uso lúdico e até
mesmo argumentativo dessas unidades. Lilian Ferrari e Diogo Pinheiro investigam, de um pouco de vista
cognitivista, textos poéticos e enunciações orais, lidando com sua expressividade a partir de processos
cognitivos gerais. Já Nilza Dias trata da estrutura ser + adjetivo avaliativo e lança mão de princípios funcionais
e cognitivos para tecer análises sobre elementos sintáticos, semântico-discursivos e pragmáticos de textos
jornalísticos e discursos políticos. Também usando embasamento funcionalista, articulado ao da linguística
textual, Soraia Pereira estuda os mecanismos de referenciação observáveis em sintagmas nominais e sua
importância para produção do efeito de coesão textual. Vera Feitosa, por sua vez, apresenta uma proposta de
metodologia de ensino de produção textual baseada na simbologia de cartas de tarô, indo da concepção e
planejamento do texto a cuidados formais, atenção a destinatários e aspectos de veiculação.
Em Literatura Portuguesa, Henrique Samyn desenvolve uma leitura feminista para a cantiga
trovadoresca Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, do jogral galego João Baveca, considerando recursos
estilísticos e representações sociais, de relações de gênero no mundo medieval.
Em Filologia Portuguesa, Priscila Lacerda e Cynthia Vilaça abordam a Grammatica Philosophica da
Lingua Portugueza, de Jerónimo Soares Barbosa. Com base em um estudo do conceito de norma linguística,
as autoras evidenciam critérios aplicados pelo autor para o estabelecimento das prescrições registradas nas
seções de ortografia e ortoépia da gramática.

Profª. Drª. Claudia Amorim


Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques
Prof. Dr. Flávio Barbosa
Profª. Drª. Tania Maria Nunes de Lima Camara
Coordenadores Editoriais e Organizadores

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 05, 2º. Sem. 2014 | 5


PROVOCAÇÃO E IMAGINAÇÃO: diálogos entre
descrição e narração na literatura infantil

Celia ABICALIL BELMIRO 1

RESUMO
O livro ilustrado abarca uma variedade de propostas e tendências e indica a necessidade de aprofundar os
estudos acerca dos modos de leitura desses livros de literatura infantil. As lacunas que os textos literários
contêm convidam o leitor a recorrer aos seus conhecimentos prévios para dar-lhes sentido. Este artigo enfatiza
a distinção entre enredo e discurso, para separar a voz do narrador e o ponto de vista literal, que seria o da
criança. Explora ainda características discursivas encontradas em três livros de literatura infantil da produção
brasileira, apontando o modo como propõem articulações entre o enredo e o discurso, com vistas à
construção da competência estética dos leitores. Para isso, o texto pretende apresentar alguns graus de
provocação que as descrições criam nas narrativas de livros ilustrados, convocando o leitor a se tornar sujeito
da produção de sentidos, mais do que fazendo-o acompanhar simplesmente o enredo. Dois conceitos
embasarão e darão apoio à análise: 1°) ekphrasis, através do qual se propõe pensar a descrição e como ela se
relaciona com a narração, seja de modo sutil ou explícito; 2°) iconotexto, pelo qual é possível a passagem
entre significantes de naturezas diferentes, linguístico e verbal. A esses dois conceitos é atribuída larga parcela
da realização do efeito de expansão do texto (LOUVEL, 2006) que caracteriza as sequências descritivas e tem
decorrências importantes para que a narrativa literária assuma contornos próprios, explore diferentes pontos
de vista e traga a voz do narrador como instância discursiva.

PALAVRAS-CHAVE: Livro ilustrado. Descrição. Narração. Iconotexto.

ABSTRACT
The picturebook comprises an array of proposals and trends, and points out the need of in-depth review
studies about the reading modes of these children´s literature books. The gaps found in these literary texts
invite the reader to resort to his/her previous knowledge so that they may acquire meaning. This paper
enhances the distinction between plot and discourse, in order to distinguish the narrator´s voice and a literary
point of view, which would be of the child. It also explores discursive features found in three children´s
literature books made in Brazil, standing out the way they articulate between plot and discourse, with the aim
of constructing readers´ esthetic competence. For this purpose, this paper intends to present some
provocations created by the descriptions in picturebooks narratives, inviting the reader to become the subject
of providing meaning, rather than simply making him/her follow the plot. Two concepts will provide ground
and support for the analysis: 1º) Ekphrasis, through which we propose to think about the description and how
it relates to the narrative, either subtly or explicitly; 2º) Iconotext, by means of which it is possible to allow the

1 Doutora em Educação, com Pós-doutorado pela University of Cambridge-UK, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita – CEALE, da Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e
Inclusão Social em Educação da Faculdade de Educação/UFMG. Organizadora das obras Livros e Telas e Onde está a literatura:
seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras; coeditora do livro The Routledge Companion to International Children’s
Literature, da série Routledge Literature Companions. Autora de artigos e capítulos de livros sobre literatura infantil e mídia, e
sobre livros ilustrados na contemporaneidade. Coordenadora de grupo de pesquisa sobre literatura infantil, especialmente livros
ilustrados; membro do Grupo de Pesquisa do Letramento Literário – GPELL/CEALE-UFMG.

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Provocação e imaginação

emergence of signifiers of different natures, either linguistic or pictorial. A large part of the accomplishment of
the text expansion effect (LOUVEL, 2006) is attributed to these two concepts. This effect characterizes the
descriptive sequences with important consequences to make literary narrative assume its distinct traits, explore
different points of view and bring forth the narrator´s voice as a discursive instance.

KEY WORDS: Picturebook. Description. Narrative. Iconotext.

INTRODUÇÃO
Como a literatura pode tratar de temas relevantes para a sociedade sem perder o caráter literário que
constitui o seu texto? As produções culturais vêm propondo interfaces interessantes entre linguagens, sistemas
semióticos e mídias, de maneira a nos surpreender, a cada dia, com hibridizações e formas que não cabem
dentro de recortes teóricos que estamos habituados a considerar.
Um desses gêneros é o livro ilustrado, que abarca uma enorme variedade de propostas e tendências.
Não temos ainda, na língua portuguesa, um termo que contemple, por exemplo, uma obra cuja especificidade
só tenha significado se acolhermos duas linguagens, no mínimo, a verbal e a visual, para produzir narrativa.
Dessa forma, poderíamos dizer que a interdependência entre ambas é que constitui a natureza própria desse
gênero. Chamamos a tudo que contém imagens de livro ilustrado. Indo mais além, teríamos subdivisões que
alcançariam os livros de imagens ou livros-álbum, em que a narrativa é feita somente por imagens.
A produção brasileira do livro ilustrado é rica, variada e vem incluindo cada vez mais artistas na
concepção da obra. Ida e Volta, do artista plástico Juarez Machado, cuja primeira edição deu-se em 1976, foi
um marco na produção brasileira e conta as peripécias de um personagem identificado apenas pelas marcas
das passadas de seus sapatos e pés. Passamos a conhecê-lo através do seu trajeto, de com quem anda, o que
come, sua atitude elegante com os mais velhos, enfim, da inscrição do personagem numa narrativa totalmente
explícita, apenas indicada por imagens. As estratégias de construção de leitor já estavam indicadas pelos
índices das passadas do personagem. Depois dessa obra, muitas outras se seguiram e fizeram do chamado
livro sem texto uma categoria específica.
Não estou incluindo aqui os excelentes trabalhos de xilogravura que caracterizam a literatura de
cordel. Também no momento não vou me aprofundar na imensa divulgação de obras de artistas plásticos
nacionais e internacionais, a exemplo de Portinari, Picasso, Van Gogh, que tiveram seus trabalhos
comentados por escritores, com uma clara orientação de uma educação pela arte.
Um trabalho marcante em país de língua portuguesa é o do artista plástico africano, o moçambicano
Malangatana, que dialoga intensamente com a palavra poética de seu conterrâneo Mia Couto. São imagens

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Celia Abicalil Belmiro

autônomas que repercutem a temática do livro e que são apresentadas em recortes no seu interior. Ao final da
narrativa, vemos os quadros na sua totalidade, um conjunto de telas que explicitam a africanidade do artista e
que dão a ver a independência da sua produção, uma obra por inteiro.
Outro aspecto importante na realização contemporânea dos livros ilustrados é sua aproximação com
a linguagem cinematográfica. Aproximações com o close, panorâmicas, ponto de vista de cima para baixo ou
ao seu reverso, construção da narrativa ao modo dos quadrinhos, aproveitamento da técnica de cortes
inerentes à montagem cinematográfica para a dinâmica do enredo, acelerando o tempo narrativo, voltando ao
passado, ou resumindo um evento em verdadeiras metáforas visuais, caso, por exemplo, do livro Vizinho,
Vizinha, de Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani.
Mídias que se interpenetram e que criam uma linguagem própria nos confrontam com sua novidade
e deslocam paradigmas aos quais nos habituamos e que nos confortam. Ler um livro ilustrado digital tem os
mesmos efeitos de sentido que ler um livro ilustrado impresso? O movimento, o som, o cromatismo adaptado,
os enquadramentos, a perspectiva alteram o processo de compreensão e influenciam a interpretação do
leitor/espectador.
Assim, a leitura dessas obras cada vez mais vem organizando modos de olhar e de ler através de
estratégias por vezes sutis, mas de grande impacto na criação de novos horizontes de leitura.
Um componente da narrativa que considero fundamental nos livros de literatura infantil é a presença
de sequências descritivas e suas decorrências na construção do discurso ficcional. Decidi, então, mostrar
como essas sequências interferem e movimentam a narrativa, a partir de uma pequena parte das investigações
de relações entre imagens e textos verbais em três livros: Vizinho, vizinha, de Roger Mello, com ilustrações de
Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Melo; Poeminha em língua de brincar, de Manoel de Barros, com
ilustrações de Martha Barros e O Beijo da Palavrinha, do autor moçambicano Mia Couto, com ilustração do
artista também moçambicano Malangatana, publicado no Brasil e, posteriormente, em edição portuguesa com
a ilustradora Danuta Wojciechowska.
O ponto de partida para a reflexão é uma questão apontada por Nikolajeva (2010, p. 150) a respeito
de “ler e interpretar”. As lacunas que os textos literários contêm permitem ao leitor implícito “[preenchê-las]
com base nos seus conhecimentos cognitivo, social e cultural.” Se essas fendas não estimulam a interpretação,
eles se aproximam dos chamados didáticos. Mas se abrem para uma participação ativa, elas ajudam no
desenvolvimento da competência literária do leitor. É claro que esse trabalho de interpretação vai depender
também do número e da natureza desses espaços dados. A autora destaca que, historicamente, as abordagens

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Provocação e imaginação

sobre a literatura infantil “[têm] oscilado entre extremos pragmáticos e estéticos” e que “o entendimento das
características pragmáticas e estéticas dos textos literários é um componente da competência literária”.
Este texto pretende apresentar alguns graus de provocação que as descrições criam nesses três livros,
convocando o leitor a se tornar sujeito da produção de sentidos, preenchendo esses vazios, mais do que fazê-
lo acompanhar simplesmente o enredo.
Dois conceitos dão a medida da importância da descrição: o primeiro deles é EKPHRASIS, segundo
as abordagens de Louvel (2006), Cordeiro (2003), Nikolajeva (2010). A palavra grega EKPHRASIS significa,
por sua origem, descrição ou: ek (fora) + phrasis (frase) = fora da frase. O termo define, a partir de trabalhos
poéticos, o modo de coexistência entre dois sistemas de significação, suas mútuas influências e apropriações e
suas transposições intersemióticas. Por esse conceito, propõe-se pensar a descrição e como ela se relaciona
com a narração, seja de modo sutil ou explícito.
Outro conceito é o de ICONOTEXTO, segundo Louvel (2006, p. 196) e Nikolajeva (2001, p. 63).
Louvel prioriza a descrição como forma de explorar variados graus de saturação pictural: “diferentemente da
tradução linguística (passagem de um significante a outro, de mesma natureza, linguístico), efetua-se a
passagem de um significante (pictural) a outro significante (linguístico) de natureza diferente”, por isso
considerado por duplo “desligamento”.
A esses dois conceitos é atribuída larga parcela da realização de efeito de expansão do texto
(LOUVEL, 2006) que caracteriza as sequências descritivas e com decorrências importantes para que a
narrativa literária assuma contornos próprios, explore diferentes pontos de vista e traga a voz do narrador
como instância discursiva.

1° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: O ESTILO


O livro Vizinho, vizinha, com texto de Roger Melloe ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani e
Roger Mello, propõe uma leitura múltipla, aberta. São três ilustradores que assumem, individualmente, cada
um dos três protagonistas do livro e definem seus modos de ser através de cores, de traços, de volumes, enfim,
de um estilo único: rosa fúcsia para a página do homem, amarelo ouro para a página da mulher. Uma
dominante na proposta do livro é a complementaridade permanente entre a imagem e o texto como legenda;
muito do que dizem as imagens não tem paralelo no texto escrito, e vice-versa. O traço, o desenho, a técnica,
a mistura de técnicas – como a colagem –, as cores das páginas, os elementos selecionados, tudo isso
constitui o campo de significações dos personagens. Embora os conteúdos semânticos estejam presentes tanto

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nas palavras quanto nas imagens, a existência de cada personagem nos é dada pelo elo dessas duas
dimensões.
Mas outra proposta igualmente relevante é o diálogo entre as imagens, como que demarcando, pela
descrição constante, as personagens, seus modos de ser, seus atributos físicos e psicológicos, uma composição
visual que amplia as conotações e implicações assumidas pela plasticidade das imagens. Por exemplo: “O
vizinho do 101 toma café enquanto observa gravuras de bichos.” Esse texto/legenda é ilustrado por um
cenário com cacto, vitrola, rapaz com suas calças largas e listradas, blusa folgada, descalço – o ambiente mais
perfeito para estar com os pés em um tapete rústico e relaxado. A simplicidade do rapaz opõe-se à
extravagância da mulher do apartamento em frente, cujos vestígios são percebidos pelo tênis jogado no chão
e uma silhueta ao fundo tomando banho: “A vizinha do 102 já voltou da maratona.”
Figura 1 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani
e Roger Mello.

Vale destacar um aspecto nessa obra, lembrando o que Perry Nodelman (1988, p. 251) sinaliza
como uma atividade da relação entre o texto e a imagem, que são as pausas de leitura criadas pela presença
de imagens e que dão um ritmo particular à leitura. O autor acrescenta que a batida rítmica da sentença,
desenvolvida pela presença da imagem e pela pausa por ela criada, se aproxima da organização rítmica da
poesia. Nesse livro, composto por ilustrações com fortes e variadas cores, o texto é apenas uma sentença em
cada página, com poucas indicações que descrevem as personagens. Portanto, não há tensão e,
consequentemente, não há clímax, próprio da narração, mas acúmulo de informações. Não queremos virar
rapidamente a página para seguir com o enredo, mas observar a quantidade de elementos que vão compondo
as personagens em suas moradias. O olhar do leitor não precisa seguir certa ordem para virar a página. Mas as
frases, tanto na página da esquerda quanto na da direita, vão começando a ritmar a leitura com a mesma
cadência e estão sempre em paralelismo, criando contrastes entre os personagens.

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Provocação e imaginação

O tempo verbal é o presente do cotidiano, que se desdobra indefinidamente nos mesmos atos
diários: ele passeia com o passarinho às quatro e quarenta, ela leva o relógio para consertar às vinte para as
cinco, ou alimenta um rinoceronte debaixo da pia – formas verbais que dão a dimensão do modo de estar no
mundo de cada vizinho. O presente, que do ponto de vista filosófico é a ausência de tempo, marca as
histórias pessoais, contrastando o modo de ser de cada um; além disso, não promove a transformação dos
sujeitos. Esse recurso linguístico do tempo verbal expõe as tarefas dos personagens no seu mundo interior,
como círculos que se repetem. Por isso, o texto se assemelha à estrutura de um roteiro cinematográfico: cada
enquadramento é uma cena; cada cena, uma descrição. E o conjunto de descrições dá vida à narrativa.
Todavia, ao apresentar os personagens: “ele passeia com o passarinho às quatro e quarenta”, na
página da esquerda, em oposição a “ela leva o relógio para consertar às vinte para cinco” as marcas de uma
organização discursiva vão além de uma descrição objetiva, destacando a tranquilidade do homem em
relação à agitação da mulher: ele já passou em muito das quatro horas, mas ela está adiantada em relação às
cinco horas.
Figura 2 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani
e Roger Mello.

Além disso, o acúmulo descritivo convoca o espectador a dar consecução e, portanto, a fazer
narrativa. A marca temporal e suas conexões entre as ações são recursos necessários para manter a coerência
temporal entre os fatos. Dessa forma, vemos: “O vizinho do 101 toma café, enquanto observa gravuras de
bichos.” Na página da direita “A vizinha do 102 já voltou da maratona.” (grifos da autora) Isso também
acontece quando entram outros personagens para acelerar o movimento do tempo. O homem recebe uma

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sobrinha e a mulher recebe um neto: “ Outro dia, a sobrinha do vizinho fez uma visita.” “ Justo no dia em que
o neto veio passar o dia com a vizinha.” (grifos da autora).
Pode-se retomar a noção de estilo, que o poeta norte-americano Bukowski tanto preza, ao dizer que
“tudo é uma questão de estilo”, e que Bakhtin aponta como marca da subjetividade autoral, indício da
enunciação. Ora, é o estilo dessa obra que determina sua leitura, sua agilidade na montagem das personagens
e a tensão na constituição plástica do jogo de sentidos.
São três ilustradores que imprimem a sua marca na caracterização de cada personagem (o vizinho, a
vizinha, o faxineiro), construindo seus mundos particulares e propiciando uma leitura em contraponto. O
conjunto personagem/casa ou personagem/corredor é apresentado por traços inteiramente distintos: o rapaz,
porta de sua casa, máscara na parede, poltrona, peixe e até passarinho que leva para passear. Ao contrário, a
definição da pintura dos objetos do apartamento da vizinha e as colagens mostram uma concepção de vida,
uma energia diferente, que muitas vezes é sentida pelo leitor/espectador sem tomar consciência dessas
marcas/índices que modelam os protagonistas.
A paginação dupla, portanto, é dividida em três partes, pois o que está no centro, o corredor, é que
determina o fluir do tempo cotidiano, marcado pelas ações do faxineiro do prédio, personagem que limpa,
lava, descansa, ouve a música vinda do apartamento da vizinha e avança para outros andares. O lugar de
interações é o corredor, um espaço dinâmico dos encontros, das trocas e das expectativas de transformação.
Quando as crianças lá se encontram, as portas ficam abertas e permitem o fluxo de vivências e de
intercâmbios, com a leveza e a vivacidade já esquecidas pelos mais velhos.
O texto verbal acompanha as rupturas impostas na organização da vida dos adultos, num acúmulo
de palavras sem pontuação, sem verbos. A sequência descritiva é apresentada em ritmo acelerado, como uma
desordenação do mundo, mas que, no fundo, denuncia a construção de um espaço novo. “café com
quadrinhos regador todos os livros do mundo manual do químico moderno monte de coisas velhas plantas
bichos clarineta discos da velha guarda roupas de maratona máquina de fazer chover rinoceronte fotos do
mundo inteiro gravuras gravuras gravuras escafandro cidades de papel”. Esse efeito de expansão do texto,
próprio da descrição, tem no livro a função de transformar o apartamento da esquerda, o corredor e o
apartamento da direita em espaço de convivência comum a todos.

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Provocação e imaginação

Figura 3 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani


e Roger Mello.

Por isso, também, se observa a troca permanente de tapete da porta do apartamento da mulher. A
mudança da cor e de padrão vai resultar, ao fim e ao cabo, como o lugar da palavra, do aceno: “bem-vindo”.

2° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: A METONÍMIA


O livro O Beijo da palavrinha, do escritor moçambicano Mia Couto e com ilustração do artista
plástico africano, o moçambicano Malangatana, é um encontro que se realiza no campo da estética do
discurso literário. Uma menina de família pobre, chamada Poeirinha, está doente e sem forças. O enredo se
encaminha para a conclusão com a morte da criança. Entra em cena seu tio, que convence a família a levá-la
para a costa, para que ela “renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras
praias dentro dela”. Entra-se na realidade ficcional com o apoio da estrutura clássica da narrativa, com a
apresentação dos personagens e do problema.
“Era uma vez uma menina que nunca vira o mar.” Porém, aos poucos o leitor vai sendo levado para
uma outra dimensão, junto com Zeca Zonzo, irmão da menina e desprovido de juízo e que, por isso mesmo,
conseguiu salvar a irmã. Com ele constrói-se outro olhar, outra compreensão de mundo. Fraca e
impossibilitada de ir de corpo ao mar, a salvação da menina começa pela escrita:
– Vou-lhe mostrar o mar, maninha. Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano.
Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como
vela de bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a
palavra ‘mar’. Apenas isso: a palavra inteira e por extenso (grifo da autora).

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Celia Abicalil Belmiro

A sua desrazão consegue guiar os dedos da maninha para a leitura de um mundo que ela
desconhece e que vai construindo aos poucos pela relação tátil com o papel onde a palavra está escrita:
“Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a
decifrar a lisa brancura do papel”. A sequência da narrativa é um momento mágico de construção e de
apropriação de um mundo que, aos poucos, envolve a todos e passa a formar sentido (fig. 119). Nikolajeva
(2010, p. 277) “emprega o conceito de ekfrase emocional: isto é, o discurso verbal, visual ou multimodal
usado para descrever uma emoção. Ekfrase emocional pode propor uma expansão do estado mental… ou
uma explicação do que [alguma coisa] significa.” Poeirinha, a menina doente, já em degradante estado físico
e mental, retoma o contato com o mundo através de uma conexão emotiva com seu irmão.
As letras m, a, r ganham a força de uma realidade ideogramática das ondas, da gaivota e da rocha
que se distinguiam pelos dedos da menina: a letra m “é feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem”.
Já o a é uma gaivota pousada nela própria, enquanto que os dedos da menina se magoam “no ‘r’ duro,
rugoso, com suas ásperas arestas”. Mais que uma metáfora, a existência das letras torna-se uma realidade para
a menina que se salva quando cria o mar e suas ondas, a rocha e as gaivotas. É um prolongamento físico do
mundo, metonímia que faz aproximar o mundo representado do corpo representante. Passar os dedos nas
letras é como passar as mãos nos objetos, uma relação física, tátil que vai descrevendo e dando realidade aos
objetos, como se o movimento esculpido pelas suas mãos trouxesse o mar da sua salvação.
Por isso, a menina que precisava da salvadora viagem em direção ao mar, de sentir e respirar a
maresia para sobreviver, fez do passar os dedos a sua viagem, da escrita o seu mar e todos se calaram para
escutar o marulhar: “Foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha”. A imagem reconhecida do mar está
presente como um estado do pensamento, como a potência do fotográfico que se concretiza na escrita do
irmão Zonzo. As letras são o índice da presença do objeto. E o índice é a mais primitiva relação como o real,
a marca do objeto e da sua existência. Quase cega, sua mão é a expressão tátil que a faz conectar-se com o
entorno, dando à dimensão do sensível a possibilidade de leitura e reconhecimento do mundo.
Por outro lado, essa possibilidade de contar com a presença do mar através dos dedos da menina se
aproxima do modo como Samain (1998) entende a visualidade originária:
Tinha, primeiro, avistado o mar. Foi muito mais tarde que consegui nomeá-lo e dele
falar e precisei de muitos outros anos de alfabetização, para que, enfim, pudesse
escrever seu tão pequeno nome... Dessa maneira, falar do fotográfico será,
necessariamente, procurar situá-lo na perspectiva e no traçado de uma visualidade
originária e constitutiva do ser humano... Samain (1998, p. 13)

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Provocação e imaginação

Philippe Dubois2 afirma a respeito do fotográfico: “Como um estado do olhar e do pensamento”.


Essa compreensão da imagem ajuda a entender o diálogo do texto com os quadros do artista plástico
Malangatana para seu processo de ilustração, uma vez que ele vai buscar essa visualidade originária e
expressar o fotográfico que há no artista por meio de uma plasticidade étnica, vigorosa como o texto. Seu
trabalho é um exemplo da influência das raízes populares africanas de Moçambique.
Na edição brasileira, dez telas ilustram cenas da narrativa. A opção de apresentar todas elas por
inteiro ao final do livro permite admirar o trabalho do artista de uma forma autônoma, mesmo que em
pequeno formato, e libera a arte gráfica para compor e propor, ora com partes dos quadros, ora com a tela
inteira, diálogos entre o plástico e o verbal, iluminando aspectos para dar sentido à leitura. O design gráfico
do livro brinca com frases, com o branco aberto para o infinito, ou escrevendo sobre a tela, mas fica claro que
são duas obras que se apresentam por inteiro para leitura: literatura e artes plásticas.
Na edição portuguesa, as ilustrações de Danuta Wojciechowska dialogam intensamente com o texto,
acompanhando o desenrolar da narrativa e interferindo em momentos-chave. Sua proposta destaca o lirismo
entre os dois irmãos, através da seleção das cenas e do seu estilo. A perspectiva étnica, que é o pano de fundo
da narrativa e que sustenta a verossimilhança da história, é apresentada pelo conjunto das cores e dos
elementos selecionados do cenário.

3° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: A LEVEZA


O texto de Manoel de Barros é uma narrativa poética, ou uma poesia narrativa, tão ao gosto da
mestiçagem de gêneros, estilos e linguagens que caracteriza a produção literária contemporânea. As
fronteiras, em Manoel de Barros, se tornam impuras, o que faz da sua aparente simplicidade uma arma contra
o lugar-comum. O livro Poeminha em língua de brincar se organiza com poucos elementos, sem muitos
adereços paratextuais, e com imagens que fazem uma releitura do texto de Barros, mostrando que caminham
juntos, texto e imagem, com a mesma finalidade, como diz ele, de “chegar ao grau de brinquedo para ser
séria de rir”.
O texto começa pelo pronome pessoal ele: “Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada. Falava
em língua de ave e de criança”. Esse pronome pessoal ele, elemento linguístico anafórico que busca um
referente no texto para lhe dar sentido, causa uma grande perturbação, pois não há nada que lhe anteceda,
nada que o explique, nada que esclareça quem é o herói. Essa narrativa, que mantém uma estrutura clássica

2
Apud Samain, 1998, p. 11.

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Celia Abicalil Belmiro

do gênero conto e que se consagrou infantil, possibilita subentender o “Era uma vez um menino”. Todavia, o
enigma continua, pois essa sequência descritiva ainda impede a imediata compreensão de quem é o herói. O
que é ter no rosto um sonho de ave extraviada? Ou como é falar em língua de ave? Com essa descrição,
Barros anda por um difícil caminho, o do imaginário. E obriga (ou liberta) o ilustrador e o leitor para
construírem um diálogo renovado, em que, como diz o próprio autor, “dispensava pensar” e, no caso dele,
bastava sentir.
A elaboração de sua linguagem dá consistência discursiva ao seu texto, com o frescor de
deslocamentos inesperados para alimentar a existência de seus personagens: “E jogava pedrinhas: Disse que
ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado na telha”. Essa outra
ótica, que dispensa pensar, permite sentir, extravasar o encantamento das palavras livres. São imagens do
texto poético que orientam um modo de entender o mundo. Por isso é possível compreender, nessa outra
ótica, “que certa rã saltara sobre uma frase dele e que a frase nem arriou. Decerto não arriou porque não tinha
nenhuma palavra podre nela”.
O desenho, altamente conceitual, traduz em seus traços a manifestação de um ‘Nada’ significativo,
como que tocando levemente a lembrança de um figurativismo. As imagens mostram que compreendem o
projeto discursivo da obra, pela plena interação com a proposta: a técnica e o material dos desenhos, além de
não reproduzir um modo escolarizado de expressão infantil, expõem a liberdade da livre expressão. Vale a
pena notar a única vez em que a ilustração interrompe o fluxo narrativo e abre espaço para o destaque da
enunciação: o comentário do narrador quer justificar e dar coerência à existência do seu personagem –
“Decerto não arriou porque não tinha nenhuma palavra podre nela”.
O projeto editorial trabalha com o intuito da essencialidade, o que permite um enxugamento de
elementos visuais e uma concentração no texto verbal. Este, sim, é o resultado de uma leveza que faz acordar
os sentidos. Calvino (1990, p. 28) lembra uma passagem de Paul Valéry, para quem é necessário ser leve
como um pássaro, não como a pluma; por isso, acredita que a leveza “está associada à precisão e à
determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. Descartando a fuga para o sonho ou para a irracionalidade,
acrescenta (p. 19) que “as imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e
futura, dissolver-se como sonhos...”
E apresenta três acepções distintas da leveza: 1) um despojamento da linguagem; 2) qualquer
descrição que comporte um alto grau de abstração; 3) uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor
emblemático...

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Provocação e imaginação

Como descrever mentalmente uma senhora chamada ‘Dona Lógica da Razão’, um nome e conceito
abstratos? Como ilustrar o ‘Nada’ que, para o autor, é língua de brincar? Nesse caso de Manoel de Barros, as
imagens verbais caracterizam um mundo que deve ser ainda construído, são imagens inaugurais, fluidas e
abertas para interpretação do leitor. Essas duas linguagens não funcionam como espelho, um assemelhando-
se ao outro em características. As imagens não intentam explicar nem descrever coisa alguma, não se
interessam em fazer o leitor compreender ou assimilar, mas incentivam uma postura frente ao ato criador. Esse
mundo particular da linguagem, em que o Nada é língua de brincar, é, como diz o autor, a própria casa do
jabuti, a poesia, onde o menino se interna e ali se salva: “E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti
se interna”.
A natureza da obra de Manoel de Barros é de um labirinto em direção ao Nada, ao enfrentamento
que elimina a lógica e a razão, ou, como ele diz, a Dona Lógica da Razão, para ir em direção à compreensão
das coisas na sua natureza irrestrita. No caso desse livro de Barros, o questionamento do autor sobre a lógica
da racionalidade supõe uma crença na fratura irredutível da lógica que sustenta o discurso.
Do ponto de vista da construção das duas instâncias, verbal e plástica, texto e imagem caminham
juntos brincando com os sentidos, com as percepções, nos convocando ao estado de criação.

CONCLUSÃO
Os procedimentos descritivos que foram aqui apresentados pretenderam oferecer uma visão mais
dinâmica dos processos de caracterização de cenas, cenários, personagens, com vistas a interagir com leitores
de diferentes idades e diferentes competências literárias. A importância da interferência de sequências
descritivas no fluxo narrativo resulta em consequências positivas na formação do gosto e da apreciação
estética das obras.
Nos livros analisados, e em tantos outros, o jogo verbal e visual de identificação ou de
estranhamento com o mundo e seus personagens pode trazer para perto de si um leitor ávido pela ligeireza do
fluxo temporal das ações; ou fazer com que nos identifiquemos com essa ou aquela experiência; ou, ainda,
dar ao leitor o prazer de uma leitura em que estabeleça elos estéticos e reconheça o processo de criação
literária.
Às vezes, somos apenas um deles, ou somos os dois, ou todos, muitas vezes. De todo modo, somos
sempre leitores que se abrem para mundos desconhecidos, imaginários, marcados pela escrita, pelo discurso.

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Celia Abicalil Belmiro

REFERÊNCIAS

CALVINO, Ítalo. Leveza. In: ______. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia.
das Letras, 1990. p. 13-41.
CORDEIRO, André Teixeira. Ismael Nery: o olho no telescópio. Dissertação (Mestrado em Letras)- Centro de
Letras e Artes. Universidade Federal do Pará, Belém, 2003. 159 p.
DEBRET, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Trad. Guilherme Teixeira.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1993.
LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (Sel. e Org.).
Poética do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras, UFMG, 2006. p. 191-220.
NIKOLAJEVA, Maria. How picturebooks work. New York, London: Routledge, 2001.
______. Literacy, competence and meaning-making: a human sciences approach. Cambridge Journal of
Education, 2010. 40:2, 145-159.
NODELMAN, Perry. Words about pictures: the narrative art of children’s picture books. Athens: University of
Georgia Press, 1988.
SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, CNPq, 1998. p. 13.

Livros de literatura infantil:

BARROS, Manoel de. Poeminha em língua de brincar . Ilustrações: Martha de Barros. São Paulo: Record,
2007.
COUTO, Mia. O Beijo da Palavrinha. Ilustração de Malangatana. Rio de Janeiro: Língua Geral Editores, 2006.
______. O Beijo da Palavrinha. Ilustração de Danuta Wojciechowska. Alfragides: Editorial Caminho, 2008.
MELO, Roger; MASSARANI, Mariana; LIMA, Graça. Vizinho, vizinha. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2007.

___________________________
Data de submissão: jan./2015.
Data de aprovação: jan./2015.

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SUBVERSÃO PROVERBIAL: uma estratégia
discursiva
Denise SALIM SANTOS 1

RESUMO
Este artigo dedica-se ao estudo dos provérbios e a possibilidade de servirem como elementos de ludicidade e
de argumentatividade. Para isso, trazem-se as ideias de Gressilon, e Maingueneau (1984) a respeito dos
détournements proverbiais. Trata-se da descristalização dos provérbios como instrumento para veiculação de
uma visão crítica a partir dessas unidades fraseológicas em diferentes gêneros textuais.

PALAVRAS-CHAVE: Fraseologismo. Provérbios. Détournement. Discurso.

ABSTRACT
This is a study of proverbs and their potential to be used as elements of ludicity and argumentativity. To that
end, it brings up the ideas of Gressilon and Maingueneau (1984) about the proverbial détournements. The
decrystallization of proverbs is a tool which is used in different genres for the expression of critical views.

KEY-WORDS: Phraseologism. Proverbs. Détournement. Discourse.

1
Doutora em Língua Portuguesa. Professora Adjunta de Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Integrante do GT de Lexicologia, Lexicografia e Terminologia da ANPOLL.

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Subversão proverbial

O hábito não faz o monge, e há quem,


vestindo-o, seja tudo, menos frade
(François Rabelais)

Por mais que o falante, em alguma situação discursiva, se empenhe em cuidar para que sua fala seja
neutra ou vazia do que não seja a informação pretendida, é difícil crer que tal nível de neutralidade seja
atingido. O próprio planejamento do dizer tendo tal objetivo já faz pressupor escolhas, máximas ou mínimas,
mas sempre escolhas, sempre seleções. E, se assim o é, o distanciamento almejado pode tomar outros rumos
que não o desejado pelo produtor, principalmente se lembrarmos o papel da interlocução na construção
textual.
A partir dessa consideração, voltamos nosso foco para o estudo dos provérbios e as consequências
semânticas que podem acarretar quando encaixados em um texto particular. Dessa forma, compartilhamos
das ideias de Silva (2014, p. 285) quando afirma que o recurso a provérbios evidencia
“subjetividade/emotividade/argumentatividade perceptível em arranjos linguísticos reveladores de uma
interdependência semântica entre a forma cristalizada e o que se intenta produzir em matéria de efeito de
sentido”.
Pertencentes ao campo dos estudos lexicais, os provérbios incluem-se nos estudos fraseológicos.
Segundo Xatara (2013, p. 48),
pode-se dizer que a Fraseologia é um ramo da Lexicologia, assim como a Fraseografia
é um ramo da Lexicografia. Em outros termos, o léxico, que é o conjunto de palavras
de uma língua, é estudado pela Lexicologia, mas as especificidades das palavras
pluriverbais, ou unidades lexicais complexas, são estudadas pela Fraseologia.

E, nesse campo, incluem-se sob o termo “unidades fraseológicas”, ou seja, “combinações de


palavras que apresentam certa fixidez, de forma e de significado, cristalizadas ou semicristalizadas, entre
outras características morfossintáticas, semânticas e pragmáticas” (SANTOS, 2014, p. 75.).
O valor discursivo das unidades fraseológicas costuma ser discutido por aqueles envolvidos com as
práticas textuais. Alguns consideram que a frequente recorrência a esse recurso lexical leva ao esvaziamento
semântico, passando a ser visto como clichês ou fórmulas desgastadas.
Rodrigues Lapa, didaticamente, distribui os grupos fraseológicos segundo sua natureza: i) séries e
unidades fraseológicas; ii) grupos fraseológicos arcaicos; iii) séries verbais; iiii) séries usuais de intensidade;
iiiii) clichês. Em especial, Lapa (1999, p. 65-71) comenta que o uso do clichê – “uma locução estafada de

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Denise Salim Santos

imagens corriqueiras que não enriquecem o texto” – pode denunciar pouca competência de quem o utiliza
apenas para preencher lacunas com lugares comuns, atribuindo certo tom pretensioso e falso ao texto. No
entanto, o mesmo autor acredita que a boa aplicação de um clichê, e por extensão, de um item fraseológico
cristalizado, pode revitalizar o texto. Ou seja, aquela expressão opacificada em seu teor semântico,
discursivamente bem explorada, pode valorizar o que se quer transmitir.
Apesar de haver consenso quanto à estrutura básica dos fraseologismos ou de unidades fraseológicas
– outra forma de se designarem as formações desta natureza –, esse termo recobre várias modalidades que se
distinguem umas das outras, às vezes, por tênues traços. Em função disso, há múltipla terminologia referente
aos diversos tipos fraseológicos: provérbios, ditados, máximas, locuções, expressões idiomáticas, clichês,
anexins, refranes etc., cada um deles com alguma especificidade sintática, morfológica, semântica, discursiva
e/ou pragmática. Segundo Guilhermina Jorge (2012, p. 61), a falta de precisão ou mesmo de coerência
terminológica tem retardado o avanço dos enquadres da pesquisa no campo.
Diz-nos a pesquisadora Ana Belém Garcia Benito que “na verdade, trata-se de unidades de difícil
classificação. Por um lado, partilham com os outros fraseologismos as características definitórias, tais como o
caráter pluriverbal, a fixação, a idiomaticidade ou a institucionalização” (BENITO, 2009). Na literatura, a
respeito do tema, por exemplo, encontra-se, pelo menos, uma distinção mais evidente entre provérbio e frases
feitas proposta por Benito (2009). Estas têm uma evidente funcionalidade pragmática, pois são “empregadas
para”, ou “usam-se quando” e uma clara dependência da situação de uso, o que implica serem determinadas
por situações e circunstâncias muito concretas, dependência que as afasta do acervo proverbial, pois
considera-se o provérbio uma unidade plena de sentido, independente de algum contexto ou situação
específicos. A existência ou não de autoria é outro critério apontado para distinguir, por exemplo, os
provérbios das máximas. Há quem afirme que um traço distintivo entre tais fraseologismos seja a identificação
de autoria, de que são exemplo as “Máximas do Marquês de Maricá”.
Incluem-se entre os fraseologismos as fórmulas (religiosas, rituais, diretivas, de caráter pragmático) e
as locuções (frases feitas e expressões idiomáticas), que muito interessam às atividades de ensino de língua
estrangeira ou português como segunda língua, assuntos tratados em Krieeg-Planque (2010) e Motta e Salgado
(2011).
Guilhermina Jorge, buscando simplificar o excesso terminológico existente nos estudos fraseológicos,
situa a fraseologia como um subdomínio da lexicologia em que se incluem vários tipos de sintagmas que
selecionam alguns dos traços a seguir:

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Subversão proverbial

constituídos de duas ou mais palavras; não composicionalidade (lexia complexa


indecomponível); sentido idiomático/metafórico/moralizante; não substituições
pragmáticas, lexicalização; enunciados consagrados pelo uso; possibilidade de
existência de um duplo sentido – literal e figurado (JORGE, 2012, p. 59)

Mas, ainda que apresentem especificidades, muitas vezes tais terminologias se alternam para tratar
de um mesmo objeto, tal como ocorre com o emprego de ditados/provérbios/ditos. O irrefutável, no entanto,
é que esses itens lexicais sempre marcaram presença como elemento relevante da cultura humana, por
apresentarem o mundo real, as experiências do dia a dia em um puro reflexo da sabedoria popular na
apreensão do mundo como produto de seu conhecimento. As inscrições egípcias, a Bíblia Sagrada, os textos
da Antiguidade confirmam a longevidade dessas formas, que continuam circulando entre os falantes de
qualquer língua como recurso expressivo para demonstrar sentimentos, emoções, visões de mundo. Em Silva
(2005) encontra-se um inventário de fraseologismos que têm registro na literatura latina e resistem ao tempo
sem perder a vitalidade semântico-comunicativa:
A César o que é de César (Quae sunt Caesaris, Caesari)
A Deus nada é impossível (Nihil est quod Deus efficere non possit)
A exceção confirma a regra (Exceptio regulam probat)
A ocasião faz o ladrão (Occasio facit furem)
Amor com amor se paga (Amor amore compensatur)
Quem o feio ama, bonito lhe parece (Suum cuique pulchrum est)
Quem procura, acha. (Qui bene perquirunt, promptius inveniunt)

Os recursos fraseológicos são instrumentos de alta eficiência crítica e irônica, a partir de um ludismo
léxico-semântico que atenua ou acentua o impacto crítico ou denunciativo a que se propõe como ocorre em
“Nem todo dia é dia (de) santo”, “Quando os gatos não estão em casa, rato passeia em cima da mesa” ou em
registro mais informal “Quando o gato sai, os ratos se espalham”. Segundo Maingueneau,
em matéria de expressões cristalizadas, os provérbios ocupam uma posição singular,
não só porque constituem frases, com verbo (‘à noite todos os gatos são pardos’) ou
não (‘Tal pai, tal filho’), mas também porque são as únicas sequências cristalizadas
que fazem parte da língua, que relevam. (MAINGUENEAU, 2011, p. 42)

Este comportamento linguístico, de o falante se apropriar de uma expressão tradicional em uma


língua para provocar a adesão do interlocutor, é possível a partir da substituição de um dos componentes do
enunciado, pois os provérbios inserem em um texto uma ideia de partilha, de igualdade entre todos os que
usam determinada língua (JORGE, 2012, p. 60), facilitando a comunicação. Desta forma, os provérbios
apresentam outra propriedade: são reconhecidos pelos falantes seja pela construção, forma ou conteúdo,

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Denise Salim Santos

abastecidos nos valores universais e ligados ao homem no seu estar no mundo. Ressalte-se ainda a
transparência semântica que neles se apresenta. Neste aspecto admitimos que os provérbios assumem caráter
de fraseologia universal: “Sua autonomia, a maior transparência semântica e a sua pertença a um legado mais
universal conferem-lhe um tratamento individual” (JORGE, 2012, p. 77).
Afirma-se ainda do significativo repertório de provérbios, sobre os quais nos debruçamos para este
estudo, que todos os seus elementos apresentam, pelo menos, dois traços comuns: um, já citado, é refletirem
uma cultura em determinado tempo-espaço. Em um de seus estudos sobre aforização, Maingueneau nos
informa que a citação de um provérbio deve ser reconhecida pelos alocutários, sem que haja necessidade de
o locutor indicar a fonte ou empregar verbos que indiquem citação: o caráter de citação é marcado apenas
por um desnível interno à enunciação, que pode ser de natureza gráfica, fonética, paralinguística.
(MAINGUENEAU, 2011, p. 43). Tal reconhecimento consagra a formulação proverbial como pertencente ao
Thesaurus de uma língua, isto é, ao conjunto de enunciados que circulam em dada comunidade linguística e
dela é indissociável.
O outro aspecto a ser observado no emprego dessas unidades fraseológicas é o de serem adotados
pelo gosto popular dos falantes de uma língua, no seu mais amplo espectro, a tal ponto que essas unidades, à
exceção, talvez, dos fraseologismos bíblicos, têm a origem apagada (no caso dos fraseologismos autorais
como as máximas) e passam a circular como uma expressão simples, corriqueira, mas ainda bastante eficiente
nos atos de comunicação. Essa apropriação, pelos falantes, das frases cristalizadas atribuídas à “sabedoria
popular”, de acordo com Greimas, permite ter-se “a impressão de que o locutor abandona voluntariamente
sua voz, tomando outra de empréstimo a fim de proferir um segmento de fala que não lhe pertence
propriamente e que ele está unicamente citando” (apud MAINGUENEAU, 2011, p. 45). O analista do discurso
denomina tal comportamento discursivo como hiperenunciação, efetivada por um hiperenunciador que
domina os dois interactantes envolvidos no processo de comunicação.
Grésilon e Maingueneau (1984) propuseram a noção de détournement (originalmente détournement
des proverbes): “produção de um enunciado que possui marcas linguísticas de uma enunciação proverbial,
mas que não pertence ao estoque de provérbios reconhecidos” (GRÉRISON; MAINGUENEAU apud KOCK;
BENTES; CAVALCATE, 2007, p. 45). Pelo conceito de détournement, provérbios corrompidos ou
descristalizados podem ter finalidades discursivas diferenciadas, ora servindo apenas para explorar a camada
de superfície do enunciado (a sonoridade, por exemplo, ou o jogo de palavras) na enunciação, ora para,
argumentativamente, exteriorizar uma crítica, uma ironia, a serviço de manobras políticas ou ideológicas.

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Subversão proverbial

É bom que se destaque que tal deslocamento semântico só surtirá o efeito pretendido pela
preservação, ou o não apagamento, do conteúdo original do provérbio, a que chamaremos de sentido de
base. A presença do já cristalizado garantirá o efeito de sentido na alteração da unidade proverbial
retextualizada. Na distribuição dos modos, como pode ser explorado discursivamente o détournement,
encontramos o tipo lúdico (o primeiro apresentado) e o tipo militante, que pode se redistribuir em “militante
por captação” ou “militante por subversão”. Sobre a bipartição inicial – détournement lúdico e militante –,
Kock, Bentes e Cavalcante (2007, p. 25) se associam à ideia apresentada no início deste artigo, opinando “que
todo e qualquer exemplo de détournement é “militante” em maior ou menor grau, visto que ele sempre vai
orientar a construção de novos sentidos pelo interlocutor”.
Não só em textos publicitários ou no gênero jornalístico o détournement se apresenta. A
construção/desconstrução dessas unidades lexicais cristalizadas permite explorar o ludismo, com o
surgimento de formações híbridas inusitadas, mas que devem atender à coesão interna de seus elementos e à
associação ao provérbio original. Bartolomeu Campos Queirós, premiado escritor brasileiro, desconstrói
provérbios em Ler, escrever e fazer conta de cabeça (1996), em que se destaca o aspecto lúdico do
détournement, que interpretamos como a reflexão pura, ingênua, inexperiente de uma criança, personagem
principal do livro, diante de um enunciado tão complexo, tão abstrato, se deixando levar apenas pela
literariedade
“Contei ao avô e ele me pediu segredo: ‘Quem fala muito dá bom-dia a cavalo’
afirmou. Fiquei na maior vontade de encontrar um cavalo para cumprimentar.”
“Um biscoito duro de roer.”
“Como eu aprendi que para bom entendedor meia palavra basta, eu tirava o fim das
palavras e criava adivinhações.”
“Na terra de cego quem abre cinema é doido.”
“Matar duas sopas com um mosquito só.” (QUEIRÓS, 1996)

O détournement militante pode ser obtido por captação ou subversão. O primeiro – “militante por
captação”, abrange as alterações proverbiais em que se mantém a “autoridade original do provérbio”, ou seja,
a mensagem original se mantém presente para que, a partir daí, o interlocutor apreenda o resultado obtido por
efeito da alteração proverbial como ocorre em “Quando um não quer, os dois não compram em outro lugar.
Só nas casas Bahia”, em que a ideia de solidariedade, parceria, bom senso, compreensão se mantém, apesar
da substituição do verbo brigar por comprar. Isso observa também ao se comparar o provérbio “O castigo vem
a cavalo” às suas retextualizações em “O castigo vem a jato” ou “O castigo vem em tempo real”, estratégia
recorrente, por exemplo, em textos publicitários. Neste caso a ideia de velocidade, rapidez se atualiza nas

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Denise Salim Santos

expressões “a jato” e “em tempo real” de acordo com a necessidade enunciativa de seu produtor. A vitalidade
semântica proverbial se afirma, pois busca-se um item lexical cristalizado de longa existência no universo
fraseológico para dar autoridade aos avanços tecnológicos.
Na época do julgamento dos acusados de participarem do mensalão, a mídia impressa muito se
valeu de fórmulas discursivas e de outros fraseologismos para manter aceso o interesse dos leitores. Isto pode
ser exemplificado com a manchete de primeira página publicada no jornal O Globo à época do julgamento
pelo STF: “A ocasião faz o mensalão”, enunciado derivado do dito popular “A ocasião faz o ladrão”,
fundamentado no princípio moralizante do provérbio original, aplicado muito apropriadamente para
desmoralizar os indivíduos envolvidos no julgamento (quem participou do mensalão é ladrão), um bom
exemplo de détournement militante por captação.
Já o détournement “militante por subversão” vai pôr em xeque a própria autoridade do que está
posto no provérbio, como ocorre em “O hábito não faz o monge” em cotejo com o título da matéria “Sim, o
hábito faz o monge, mostra pesquisa”. Estudo americano comprova que significado social das peças que
vestimos interfere nos processos cerebrais”. A afirmação em lugar da negação subverte o argumento presente
no item fraseológico original.
Na composição de Chico Buarque de Holanda, Bom conselho, os versos “Está provado, quem espera
nunca alcança” e “Faça como eu digo/Faça como eu faço, Devagar é que não se vai longe” são,
rigorosamente exemplos de détournement “militante por subversão”, em que o viés ideológico se sobrepõe ao
provérbio original, definindo uma outra forma de se posicionar no mundo.

Concluímos esta reflexão sobre os provérbios como unidades do léxico trazendo o pensamento de
Maria Luiza Ortiz Alvarez (2012, p. 358), que afirma ter
o provérbio um caráter de fraseologia universal; esta ideia é crucial para o provérbio e
denota uma abordagem específica, considerado à parte dos outros tipos de
fraseologia. A autonomia do provérbio, a maior transparência semântica e a sua
pertença a um legado mais universal precisamente pelo seu caráter mais moralizante,
conferem-lhe tratamento.

E é exatamente essa solidez de conteúdo que permite a transgressão da materialidade desses


enunciados em novas retextualizações, os détournements, em favor do ludismo ou da argumentatividade que
se apresentam nos mais variados gêneros textuais, comprovando sua produtividade. Eis a razão de
enfatizarmos o trabalho com os provérbios em aulas de língua portuguesa para os falantes nativos ou para
estrangeiros interessados em aprender português.

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Subversão proverbial

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, M. L. O. Estudos fraseológicos no Brasil: estado da arte. In: ALVAREZ, Maria Luiza Ortiz (Org.)
Tendências atuais na pesquisa descritiva e aplicada em fraseologia e paremiologia. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2012. p. 355-375.
BENITO, A. B. G. Na periferia da fraseologia: estudo contrastivo dos enunciados fraseológicos do português e
do espanhol nas aulas e LP. In: MARÇALO, M. J. et al.. Língua Portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar
colunas. Évora: Universidade de Évora, 2009. Disponível em: <www.simelp2009.uevora.pt/pdf/sig49/01.pdf>.
Acesso em: 20 jun 2013.
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2013.

___________________________________
Data de submissão: dez./2014.
Data de aprovação: jan./2015.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 19-26, 2º. Sem. 2014 | 26


PONTO DE VISTA, MESCLAGEM E
CONTRAFACTUALIDADE: da narrativa cotidiana
a um poema de Drummond

Lilian FERRARI 1
Diogo PINHEIRO 2

RESUMO
Alinhando-se ao referencial teórico da Linguística Cognitiva, este artigo busca demonstrar que fenômenos
linguísticos podem ser explicados a partir de processos cognitivos gerais, e não apenas especificamente
linguísticos. Neste sentido, focalizamos processos cognitivos de perspectivação associados ao estabelecimento
de ponto de vista, evidenciando suas articulações com estruturas linguísticas específicas. Em especial,
enfocamos estruturas relacionadas à contrafactualidade e à inversão de ordem vocabular que ativam
processos subjacentes de sinalização e projeção de ponto de vista, bem como mecanismos de mesclagem
conceptual. Para destacar o papel inerente de tais processos na construção cognitiva do significado,
selecionamos dados de gêneros textuais distintos, analisando tanto um excerto de fala espontânea (uma
narrativa oral) quanto um poema de Carlos Drummond de Andrade ( Um boi vê os homens). Em ambos os
casos, evidenciou-se o caráter estruturante da noção de ponto de vista, incluindo-se a capacidade do
falante/poeta de acessar pontos de vista múltiplos em relação à mesma cena.

PALAVRAS-CHAVE: Ponto de vista. Mesclagem conceptual. Contrafactualidade. Fala espontânea. Poesia.

ABSTRACT
This paper seeks to investigate the interaction between language and general cognition from the perspective of
Cognitive Linguistics. In this vein, we focus on perspectivization and construal operations such as viewpoint,
which have been claimed to involve the ways speakers structure their experience through language. More
specifically, counterfactual and subject-verb inversion structures are analyzed with an eye to identifying the
linguistic cues that prompt underlying cognitive processes of viewpoint projection and conceptual blending. In
order to highlight the fact that viewpoint phenomena are pervasive in different data genres, we analyze both a
spontaneous oral narrative produced by a native speaker of Brazilian Portuguese in interview situation and a
poem written by the Brazilian modernist writer Carlos Drummond de Andrade. In both cases, we show the
existence of more general strategies of viewpoint allocation, including the speaker’s (and the poet’s) ability
of accessing multiple different viewpoint affordances on the same scene.

KEYWORDS: Viewpoint. Conceptual blending. Counterfactuality. Spontaneous speech. Poetry.

1
Doutora em Linguística (UFRJ), professora nível Associado IV do Departamento de Linguística e do Programa de Pós-graduação
em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Linguística Cognitiva
(LINC).
2
Doutor em Linguística (UFRJ), professor Adjunto I do Departamento de Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade

1 INTRODUÇÃO
As relações entre língua e real inspiraram uma vasta tradição de reflexões filosóficas e linguísticas.
Se, por um lado, as línguas garantem um mínimo de estabilidade intersubjetiva, funcionando como uma
espécie de acordo coletivo para que possamos nos referir à nossa experiência com alguma chance de sermos
compreendidos por nossos interlocutores, a ideia de que as estruturas linguísticas estabelecem referência
direta a entidades e fenômenos do mundo (ou de mundos possíveis) tem sido cada vez mais questionada e
redimensionada.
Propostas recentes em linguística destacam que escolhas relativas aos níveis mais básicos da
estrutura linguística afetam, de modo crucial, os processos cognitivos de emergência, construção e
negociação do significado, entre os quais se destaca a sinalização de ponto de vista (LANGACKER, 1987;
1991; LAKOFF, 1987; DANCYGIER, 2012).
Dentro dessa perspectiva, o presente artigo pretende argumentar que o caráter inerentemente
perspectivado (viewpointed) da linguagem pode ser observado em diferentes gêneros textuais, incluindo
desde usos linguísticos espontâneos na modalidade falada até usos mais elaborados, no âmbito da literatura.
Para ilustrar o fenômeno, propomos um breve exercício de análise, envolvendo uma narrativa espontânea e
um poema.
O artigo está organizado em quatro seções principais. As duas primeiras seções abordam fenômenos
linguísticos que serão retomados na análise. Na seção 2, as estratégias linguísticas normalmente associadas à
sinalização, projeção e flexibilização de ponto de vista são apresentadas. A seção 3 detalha aspectos
relacionados à codificação linguística da contrafactualidade, em que se verifica o estabelecimento de uma
perspectiva contrária aos “fatos”. Nas duas seções seguintes, desenvolvem-se as análises propriamente ditas. A
seção 4 enfoca a alocação de ponto de vista em uma narrativa cotidiana oral, descrevendo os recursos
linguísticos que permitem o estabelecimento de pontos de vista alternativos. Por fim, a seção 5 discute a
articulação entre contrafactualidade e ponto de vista no poema Um boi vê os homens, de Carlos Drummond
de Andrade, destacando os modos pelos quais as estruturas linguísticas operam essa articulação.

2 COGNIÇÃO CORPORIFICADA E FLEXIBILIDADE DE PONTO DE VISTA


Um dos pressupostos básicos da Linguística Cognitiva (LC) é a noção de que a linguagem reflete a
cognição corporificada (LAKOFF e JOHNSON, 1999). Isso significa que os conceitos criados pelos seres

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Lilian Ferrari & Diogo Pinheiro

humanos não são apenas produções de uma mente desconectada do corpo, mas são necessariamente
moldados pelas experiências corporais e cerebrais e, em especial, pelos sistemas perceptual e sensório-motor.
Sendo assim, um dos aspectos cruciais da cognição corporificada é seu caráter necessariamente
perspectivado, já que nossa experiência em relação ao mundo é inevitavelmente estruturada a partir de um
ponto de vista corporal no ambiente físico real. Como esse ponto de vista pode se alterar, também somos
capazes de apresentar flexibilidade cognitiva, ou seja, acessar múltiplos pontos de vista sobre a mesma cena.
Além disso, de forma bastante característica da espécie, a flexibilidade cognitiva não consiste apenas na
habilidade de adotar pontos de vista diferentes em momentos distintos. Como bem destacou Sweetser (2012),
há uma impossibilidade de fixarmos um único ponto de vista quando outros seres humanos estão presentes.
Nesse caso, é inevitável estarmos conscientes não apenas daquilo que nosso corpo pode fazer, como também
daquilo que o outro pode alcançar, ver, e assim por diante.
Esse fato, por sua vez, pode ter reflexos na linguagem. Estudos recentes têm demonstrado que a
estrutura linguística não só reflete implícita ou explicitamente o ponto de vista do falante, como também é
capaz de indicar, de forma interessante e complexa, a capacidade do falante de acessar múltiplos pontos de
vista com relação à mesma cena. Essa flexibilidade tem sido apontada como especificamente humana e
característica dos integrantes típicos da espécie (TOMASELLO, 1999; 2008).
Exemplos cotidianos da flexibilidade de ponto de vista podem ser encontrados no uso de dêiticos,
em que se leva em conta a perspectiva do ouvinte. Por exemplo, em inglês, a expressão I´m coming (lit., Estou
vindo) pode ser usada por alguém que pretende se deslocar de sua casa para visitar um amigo. No caso, ao
invés de adotar seu próprio ponto de vista, dizendo I´m going (lit., Estou indo), o falante opta por adotar o
ponto de vista do interlocutor. No português brasileiro, embora não se verifique esse tipo de flexibilização no
mesmo contexto, é comum o uso da expressão “Chega aí” (ao invés de “chega aqui”) como um convite para
que o interlocutor se aproxime. O advérbio locativo “aí”, nesse caso, adota o ponto de vista do ouvinte para
indicar o lugar em que o falante se encontra.

3 SEMÂNTICA COGNITIVA E CONTRAFACTUALIDADE


Embora a visão linguística tradicional tenha tratado o significado em termos de condições de
verdade, enfocando a adequação ou não das sentenças ao mundo descrito, propostas mais recentes ressaltam
o caráter essencialmente criativo da construção do sentido. Com base na semântica cognitiva 3, esse novo

3
Ver Fillmore (1975, 1977, 1982), Lakoff (1987), Langaker (1987, 1991, 2008), Talmy (2000).

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Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade

olhar prenuncia que os seres humanos só têm acesso à realidade a partir de sua própria experiência, ancorada
em esquemas corporais, perceptuais e sensório-motores (ainda que a existência da realidade enquanto tal não
seja necessariamente negada). Do ponto de vista linguístico, a semântica cognitiva tem pleiteado que a
linguagem “(re)constrói” o mundo, ao invés de simplesmente refleti-lo.
Para ilustrar esse ponto, basta pensarmos na nomeação de objetos e eventos. Não apenas há
diferentes modos de categorização, como evidenciam as diferenças morfológicas, sintáticas e semânticas
entre línguas, como há também infinitas maneiras de se criarem mundos imaginários e, em termos de
compartilhamento intersubjetivo, inexistentes. Essa última possibilidade está diretamente associada a
estruturas linguísticas denominadas contrafactuais que, grosso modo, descrevem situações contrárias aos
“fatos”, permitindo o estabelecimento de raciocínios válidos a partir de premissas consideradas falsas.
Nos termos do modelo dos espaços mentais, Fauconnier (1994) propõe que a contrafactualidade
sinaliza uma incompatibilidade forçada entre espaços mentais, em que aquilo que se estabelece no espaço
contrafactual é incompatível com o que se manifesta na base4.
Para ilustrar essas noções, relembremos o início da canção “Lígia”, de Tom Jobim:
(1)
Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba
Não vou a Ipanema
Não gosto de chuva nem gosto de sol
E quando eu lhe telefonei, desliguei foi engano
O seu nome não sei
Esqueci no piano as bobagens de amor
Que eu iria dizer, não... Lígia Lígia

Como os termos em negrito destacam, a contrafactualidade pode ser imposta por diferentes
estruturas linguísticas. Vejamos alguns dos recursos:

(1) estratégias fortes de negação estabelecidas por advérbios e verbos, tais como não, nem, nunca,
não passou de.
(2) usos de tempos verbais impõem contrafactualidade em construções gramaticais que autorizam
essa interpretação, como o futuro do pretérito em “ as bobagens de amor que eu iria dizer”.

4
O espaço Base inclui os parâmetros da situação comunicativa em curso: falante, ouvinte(s), local e momento do evento de fala.

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A contrafactualidade também pode ser apontada por orações condicionais, em que o introdutor de
espaço se ocorre associado a combinações modo-temporais específicas nas orações antecedente e
consequente. Para continuarmos com Jobim, basta nos lembrarmos do clássico Se todos fossem iguais a você,
que cria um cenário contrafactual:

(2)
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

Nos termos de Akatsuka e Strauss (2000), a inferência sugerida nas leituras contrafactuais pode ser
tanto a de desejabilidade quanto a de indesejabilidade do evento imaginado. Em (2), a condicional cria uma
situação que é desejável do ponto de vista do poeta (“todos serem iguais a você”), cujas consequências são
também desejáveis (“existir a verdade que ninguém vê”). Pela incompatibilidade do cenário criado com a
situação real, o poeta exalta, de modo indireto, o seu amor. As estruturas contrafactuais, portanto, servem
muito mais para avaliar uma situação que o falante concebe como real, em contraste com outra situação
possível, do que como mero exercício de imaginação em que o falante examinaria em detalhes uma situação
imaginária e diferente daquela que conhece.
Como sugerem canções como (1) e (2), as estruturas contrafactuais são recorrentes na linguagem
cotidiana, e costumam partir do ponto de vista do falante, na Base (o “aqui-e-agora” do evento de fala).
Entretanto, nada impede que espaços mentais sejam criados a partir de outros pontos de vista, que não o do
falante. Nesse caso, ocorre o que se convencionou chamar de projeção de ponto de vista, e o que as
estruturas linguísticas sinalizam é uma projeção mental do falante para um ponto de vista diferente do seu.
Essa possibilidade pode ser percebida em atividades simples do nosso dia a dia, como gravar um
recado na secretária eletrônica. Quando se grava uma mensagem do tipo “No momento, não posso atender”,
a expressão “no momento” sinaliza uma projeção de ponto de vista: ao invés de se referir ao momento em
que o falante produz a expressão, indica o momento em que a pessoa que faz a ligação ouvirá a mensagem.
A contrafactualidade (“não posso atender”) é estabelecida a partir desse ponto de vista projetado no futuro.
Em suma, pode-se concluir que as línguas não só disponibilizam recursos para que se estabeleçam
espaços contrafactuais, como também para que se criem espaços a partir de pontos de vista projetados. Essas

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Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade

possibilidades serão discutidas a seguir, com base na análise de uma narrativa espontânea e de um poema de
Carlos Drummond de Andrade.

4 UMA NARRATIVA COTIDIANA: FLEXIBILIDADE DE PONTO DE VISTA


O exemplo a seguir é o relato de uma experiência pessoal em que o falante narra o episódio de um
acidente de carro em que se envolveu, estando alcoolizado:

(3)
(i) aí bati num Voyage
(ii) perdi a direção do carro e fui raspando o carro pelo paredão do túnel assim...
uns cem metros
(iii) aí eu parei o carro e pô
(iv) a garota que tava comigo
(v) desesperada
(vi) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito
(vii) o carro quebrou tudo
(viii) aí... pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né?
(ix) aí eu comecei a andar...
(x) aí na minha frente ((riso)) tinha um Voyage parado...
(xi) batido também...
(xii) aí eu fui conversar com os caras do carro... né?
(xiii) pô... vem ((riso)) eu doidão...
(xiv) não me lembrava de nada da batida mais...
(xv) aí eu cheguei pros caras e perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui
também? que coincidência...”
(xvi) aí o cara veio pra cima de mim...
(xvii) querer me bater...
(Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)

A narrativa, embora aparentemente corriqueira5, apresenta uma dimensão nem sempre apontada nas
análises da fala espontânea: a existência de processos complexos de mudança de ponto de vista, indicados
por estruturas sintáticas específicas.
Assim, nas sequências (i) a (xii) o falante/narrador utiliza o pronome de 1ª pessoa (“eu”) para
referência a si próprio, sinalizando que é o protagonista da narrativa6. No final desse trecho, em (xii), ao

5
A narrativa é parte do Corpus Discurso & Gramática, e foi coletada na década de 80.
6
Há algumas digressões no trecho, que se referem à garota que acompanhava o falante (iv-v) e ao carro (vii). Entretanto, tais
digressões caracterizam o background narrativo (fundo), e estão subfocalizados em relação à sequência de eventos narrados em 1ª
pessoa como figura (“bati”, “perdi”, “parei”, etc.).

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relatar que saiu do seu carro em direção ao outro carro no qual bateu, o falante produz “pô...eu fui conversar
com os caras do carro”. Interessantemente, nesse momento, o falante usa uma construção de inversão de
sujeito (vem eu doidão), bastante peculiar. Vejamos:

(a) O sujeito (eu) é posposto ao verbo, contrariando os achados relevantes na literatura sobre inversão
de sujeito, de que há uma preferência por posposição de sujeitos quando o referente é novo e não
mencionado anteriormente no discurso como, por exemplo, em “chegou uma carta” (FERRARI,
1990). No caso do sujeito “eu”, não há novidade, já que o falante é sempre pressuposto no discurso.
Esse exemplo contraria ainda a hipótese de que sujeitos pospostos teriam necessariamente baixa
topicalidade (NARO e VOTRE, 1999). Este não é o caso aqui, uma vez que o referente de “eu” já
estava estabelecido como tópico da sequência imediatamente anterior.
(b) O verbo de movimento é “vir”, e não “ir”, como seria de se esperar pela sequência anterior em que
o falante relata o afastamento de um local e o deslocamento em direção a outro.
(c) O verbo “vir” aparece conjugado na 3ª pessoa do singular, e não na 1ª pessoa, como seria de se
esperar se concordasse com o sujeito “eu” (ex. vim eu doidão).
(d) O verbo “vir” ocorre no presente do indicativo, e não no pretérito perfeito, que manteria a estrutura
temporal da sequência narrativa anterior.

Todos esses fatores indicam que a cláusula “vem eu doidão” marca uma espécie de ruptura da
sequência narrativa. Entretanto, não se trata de uma ruptura em relação à sequência temporal dos eventos
narrados ou em relação à cadeia referencial no fluxo de informações. Na verdade, trata-se de uma mudança
de ponto de vista, em que o falante decide se projetar para o ponto de vista do seu interlocutor. Assim, a
sentença é construída a partir da mesclagem de dois pontos de vista: o do “cara do outro carro”, em direção
ao qual o falante “vem doidão”, e o seu próprio, através da referência a si próprio como “eu” 7.
Tendo em vista que a ordem VS é um importante mecanismo de sinalização de mudança de ponto
de vista em português, como já foi demonstrado por Pinheiro (2013), a posposição do sujeito pronominal “eu”

7
A Teoria dos Espaços Mentais prevê que elementos nos espaços podem estabelecer contrapartes em outros espaços. Assim, o
pronome “eu”, nesse caso, é uma projeção do falante na Base para o espaço passado da narrativa. O que, de fato, é interessante é
que se o ponto de vista do “cara do outro carro” tivesse sido integralmente adotado, o pronome “eu” teria que ter sido substituído
por uma expressão que pudesse codificar o falante sob o ponto de vista do outro (ex.: o cara que provocou a batida). Essa
estratégia, entretanto, impediria que o ouvinte acompanhasse a mudança de ponto de vista. Se a sentença fosse “vem o cara que
provocou a batida doidão”, buscaríamos outro referente, que não o falante, para associar ao “cara que provocou a batida”. Sendo
assim, a mesclagem de pontos de vista acaba sendo o recurso adequado para garantir a integração do ponto de vista de um outro
participante ao discurso.

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Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade

na cláusula (xiii) não deve causar estranheza. Da mesma forma, o verbo “vir” se mostra mais adequado para
refletir a mudança de ponto de vista, ou seja, a percepção do outro participante da cena em relação à
aproximação do falante. Por fim, o uso de presente simula a cena de percepção no momento de sua
ocorrência, em que o falante é o “outro” em relação ao interlocutor (portanto, o verbo é conjugado na 3ª
pessoa).
Como demonstra o caráter familiar do exemplo discutido nesta seção, a projeção de ponto de vista
não só é fenômeno frequente nas narrativas cotidianas, como é sinalizada pela conjugação de diferentes
recursos linguísticos, como ordem vocabular, morfologia verbal e recursos lexicais.
Na seção a seguir, o fenômeno de projeção de ponto de vista será ilustrado com base em um poema.
O objetivo é demonstrar que a noção de ponto de vista, inerente ao modo como pensamos, é responsável
pela enorme complexidade de nossas produções linguísticas, desde as mais básicas e não planejadas até
aquelas de elaboração mais refinada, como os textos literários. No caso do poema a ser analisado, esse
refinamento pode ser observado na articulação entre ponto de vista e contrafactualidade.

5 UM POEMA DE DRUMMOND
O poema Um boi vê os homens, de Carlos Drummond de Andrade, constrói, a partir de sua tessitura
linguística, espaços contrafactuais. Vejamos:

Um boi vê os homens
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,

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certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem


perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade

Como se pode perceber, o poema apresenta elementos que indicam contrafactualidade, nos moldes
descritos na seção 3. Em primeiro lugar, há uma série de marcas linguísticas associadas à negação, como as
destacadas a seguir:
(i) Falta-lhes não sei que atributo essencial
(ii) dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno
(iii) como também não parecem enxergar o que é visível e comum no espaço
(iv) Nada nos pelos
(v) Impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.

Se os espaços contrafactuais introduzidos pela negação marcam a inexistência de determinadas


características na entidade observada, isso sugere que aquele que observa apresenta essas características. É
possível inferir, portanto, que há um ponto de vista implícito, a partir do qual é natural escutar o canto do ar e
os segredos do feno, enxergar o que é visível, ter muitos pelos e se organizar em formas calmas, permanentes
e necessárias.
De forma análoga ao que ocorre com as estratégias de negação, as estratégias de intensificação e
comparação também contribuem para a sinalização de um ponto de vista implícito. Vejamos:
(vi) Tão delicados (mais que um arbusto)
(vii) E correm e correm
(viii) Toda a expressão deles mora nos olhos
(ix) Espantosamente graves, até sinistros
(x) Extremos de inconcebível fragilidade
(xi) Que secura
(xii) Que reentrâncias
(xiii) Tão pobres e carecidos de emitir sons agudos e agônicos

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Ponto de vista, mesclagem e contrafactualidade

Os recursos linguísticos destacados acima sugerem que, a partir do ponto de vista da Base, aquele
que estabelece os julgamentos comparativos é forte (vi), calmo e lento (vii), expressivo em várias partes do
corpo (viii), alegre e despreocupado (ix), com extremidades resistentes (x), úmido (xi), retilíneo (xii), rico e sem
carências (xiii).
Considerando-se as características (i) a (xiii), a questão que se coloca é: de que Base se trata? Como
estabelecido pela Teoria dos Espaços Mentais, a Base default no uso linguístico é o evento de fala, que
envolve falante, ouvinte(s) e parâmetros espaço-temporais, a partir da qual se estabelece normalmente o
Ponto de Vista.
O poema, entretanto, abre dupla possibilidade de ponto de vista. Por um lado, o título – “um boi vê
os homens” – sugere que se trata do ponto de vista de um boi; por outro lado, quem de fato escreve é o poeta.
Trata-se, portanto, de um caso de mesclagem de pontos de vista em que o poeta vê os homens pelos “olhos”
do boi. Ou melhor, o poeta vê os homens pelos “olhos” do boi-poeta. É a partir daí que se constituem os
espaços contrafactuais, em que a humanidade se apresenta como inapelavelmente carente de “atributos
essenciais”.
Em termos linguísticos, é interessante notar que, no título, o boi é codificado como uma entidade
indefinida genérica (“um boi”). O artigo indefinido aqui não remete a um único boi, mas na verdade a um boi
qualquer. Esse recurso, inclusive, garante a imprecisão necessária para que a compressão de ponto de vista
boi/poeta se sustente. Por outro lado, o objeto da percepção é codificado como definido ( os homens), mas
também genérico. Não se trata aqui de enfocar homens individuais e específicos, mas de flagrar a inexorável
semelhança que resiste à nossa pluralidade.
Ao promover a mesclagem de pontos de vista, o poema nos convida a experienciar uma espécie de
des-centramento, uma reconstrução do mundo, a partir de uma alteridade não humana. Não se trata de tentar
reproduzir, de fato, o ponto de vista de um boi (obviamente, inacessível aos humanos). Mas, ao exercitar outra
possibilidade de percepção da realidade humana, o poema expõe o caráter perspectivado e, ao mesmo
tempo, intersubjetivo daquilo que se convencionou estabelecer como realidade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há pelo menos 35 anos, um dos principais objetivos associados à Linguística Cognitiva tem sido o de
demonstrar que fenômenos linguísticos podem ser explicados a partir de processos cognitivos gerais, ou seja,
não especificamente linguísticos. Sob essa ótica, a estrutura gramatical – que inclui, por exemplo, ordem

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vocabular, recursos lexicais e elementos morfológicos – é vista como a materialização superficial de


mecanismos conceptuais subjacentes (e em larga medida inconscientes).
Neste artigo, procuramos flagrar e descrever a operação desses mecanismos inconscientes tanto na
fala espontânea quanto em um texto poético. Para isso, focalizamos estratégias linguísticas associadas à
sinalização, projeção e mesclagem de ponto de vista, evidenciando ainda a capacidade do falante/redator de
acessar pontos de vista múltiplos em relação à mesma cena. Ao analisarmos produções linguísticas
representativas de diferentes gêneros textuais, esperamos ter oferecido uma demonstração convincente de que
as relações entre processos cognitivos e fenômenos linguísticos são inerentemente estruturantes do intrincado
processo de construção online – e intersubjetiva – do significado.

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__________________________________
Data de submissão: jan./2015.
Data de aprovação: fev./2015.

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A SOLDADEIRA E SEUS CLÉRIGOS: para uma
leitura feminista de Mayor Garcia ssenpr' oy[o]
dizer (B 1455/V 1065), de João Baveca
Henrique Marques SAMYN 1

RESUMO
O artigo apresenta uma leitura, desde uma perspectiva feminista, de Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B
1455/V 1065), uma das oito cantigas d'escarnho e maldizer compostas pelo jogral galego João Baveca, ativo
no segundo e no terceiro quartos do século XIII. Baveca produziu duas cantigas satíricas sobre as soldadeiras –
mulheres que acompanhavam, como dançarinas e cantoras, os trovadores e jograis galego-portugueses, cujo
trabalho era desvalorizado pela sociedade patriarcal medieva: o nome soldadeira era também utilizado para
designar as prostitutas, estigmatizadas e vistas como “mulheres caídas”. A interpretação proposta de Mayor
Garcia ssenpr' oy[o] dizer enfatiza o uso de topoi misóginos frequentes nas cantigas satíricas sobre
soldadeiras, figurando a mulher como diaboli ianua e como sexualmente insaciável. O artigo está dividido em
três partes: a primeira apresenta a relação de João Baveca com outros jograis peninsulares, como Pero
d'Ambroa e Pedro Amigo de Sevilha, que também compuseram cantigas satíricas sobre soldadeiras; a segunda
e a terceira partes desenvolvem a leitura da cantiga, analisando alguns de seus aspectos retórico-poéticos.

PALAVRAS-CHAVE: Soldadeiras. Cantigas de escárnio e maldizer. Trovadorismo galego-português. Crítica


literária feminista.

ABSTRACT
The article provides a reading, from a feminist standpoint, of Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B 1455/V
1065), one of the eight cantigas "d'escarnho e maldizer" composed by Galician jogral João Baveca (second
and third quarters of the 13th century). Baveca composed two satirical cantigas on soldadeiras, female dancers
and singers that accompanied Galician-Portuguese trovadores and jograis, whose work was devalued by
medieval patriarchal society: the name soldadeira was also used to designate the prostitutes, stigmatized and
seen as "fallen women". The proposed interpretation of Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer emphasizes the use
of misogynist topoi common to satirical cantigas on soldadeiras, portraying the woman as diaboli ianua and as
sexually insatiable. The article is divided into three parts: the first part outlines the relation of João Baveca to
other peninsular jograis, as Pero d'Ambroa and Pedro Amigo de Sevilha, both of whom also composed
satirical cantigas on soldadeiras; the second and third parts offer a reading of the cantiga, with an analysis of
its poetical-rhetorical devices.

KEYWORDS: Soldadeiras. Satirical cantigas. Galician-Portuguese troubadour poetry. Feminist literary


criticism.

1
Doutor em Literatura Comparada (UERJ), com Pós-Doutorado em Literatura Portuguesa. Professor Adjunto de Literatura Portuguesa
da UERJ.

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A soldadeira e seus clérigos

INTRODUÇÃO: DO MALDIZER SOLDADEIRAS


Muito pouco sabemos sobre João Baveca, embora um número significativo de suas cantigas, não
menos de três dezenas, tenha sido preservado nos cancioneiros medievais galego-portugueses – uma
produção que, diga-se de passagem, contempla os três principais gêneros peninsulares: são 7 cantigas de
amor, 13 cantigas de amigo e 8 cantigas de escárnio e maldizer, além de uma tenção e um partimen. O que
se pode deduzir sobre a sua biografia é precisamente o que sugerem essas composições: a tenção com Pero
d'Ambroa e o partimen com Pedro Amigo de Sevilha permitem supor sua presença nas cortes de Fernando III
e Afonso X, o Sábio, provavelmente por volta do segundo terço do século XIII (OLIVEIRA, 1994, p. 358;
TAVANI, 2002, p. 400-401).
A inserção de Baveca no ambiente cultural medievo pode ser estimada pelas referências, em suas
composições, a outros agentes do meio trovadoresco: Bernal de Bonaval é provavelmente o "Bernal Fendudo"
(B 1453, V 1063) contra quem ele, ao lado de Pero da Ponte e Airas Peres Vuitorom, desfere ataques visando
à desqualificação da virilidade, a partir de topoi associados aos “sodomitas”; alusões no mesmo sentido
surgem numa das cantigas que dirige a Pero d'Ambroa (B 1456, V 1066; B 1457, V 1067), ademais
aparentemente pondo em questão, em uma composição que nos chegou bastante incompleta, uma suposta
peregrinação à ermida de Santa Maria de Rocamador (LOPES, 2002, p. 200).
Todavia, não apenas a seus pares João Baveca dirige sua verve nas cantigas de escárnio e maldizer;
de fato, ele é um dos muitos compositores peninsulares em cujo corpus de produção satírica encontramos
ataques à discriminada categoria das soldadeiras – aquelas companheiras de ofício de trovadores e jograis que
estavam entre os principais alvos da misoginia medieval. Com efeito, embora desempenhassem um papel
fundamental no espetáculo trovadoresco, dançando, cantando e tocando instrumentos, não é por acaso que
esse segmento profissional de mulheres surge assim denominado nos documentos medievais, ainda que
ocasionalmente encontremos nomes como "jogralesas" ou "cantadeiras": para além de designar o profissional
que vivia da soldada diária, o termo "soldadeira" designava "a mulher que vendia ao público seu canto, sua
dança e seu corpo mesmo" (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 31; trad. nossa). Desse modo, em uma mesma
categoria se reuniam todas aquelas mulheres que desafiavam as rígidas determinações que, a partir da
exigência de castidade, cerceavam o comportamento feminino.
No conjunto de oito cantigas de escárnio e maldizer compostas por Baveca, metade tem por alvo
essas mulheres. Se uma trata do diálogo de duas soldadeiras anônimas que encontramos "dizendo bem, a gran
pressa, de si", do que resulta um catálogo de atributos vistos como indesejáveis nos corpos femininos (B 1458,
V 1068), as outras três, eventualmente mais próximas do maldizer, dirigem-se a duas pessoas nomeadas no

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Henrique Marques Samyn

texto poético e imediatamente reconhecidas por qualquer um afeito à literatura satírica trovadoresca: uma
cantiga tem por objeto a famosa Maria Peres Balteira, aqui furiosa por sentir-se deostada pelos insultos que
João Baveca direcionara a uma velha (B 1460, V 1070); as outras duas têm por alvo Maior Garcia, soldadeira
que foi igualmente visada por aqueles jograis que comparecem ao lado de Baveca nas composições
dialogadas – o que permite supor a formação de uma tríade masculina de fundo homossocial disposta a
exercer o poder simbólico que lhes concediam as estruturas patriarcais por meio das práticas trovadorescas.
Com efeito, e de modo, aliás, bastante previsível, nesse conjunto de cantigas de escárnio e maldizer
dirigidas a Maior Garcia se repete um mesmo conjunto de motivos, erigindo uma estereotipada efígie da
soldadeira. Pero d'Ambroa figura uma mulher omiziada, que – alegadamente, para melhor guardar-se – em
canto algum se detém, que qualquer homem só poderá achar “quando se quiser levantar”, evidentemente
aludindo a uma reprovável agitação sexual (B 1578); Pedro Amigo de Sevilha, em cantiga que sobreviveu
incompleta – a última do Cancioneiro da Vaticana –, fala de Maior Garcia como uma mulher que, vendo-se
pobre, não hesita em recorrer aos favores do arcediago e do deão (V 1205). Como se poderia esperar, João
Baveca percorre o mesmo território que seus companheiros, fazendo ressoar o riso masculino a partir de um
compartilhado temário misógino: como Pedro Amigo, fala de uma Maior Garcia empobrecida, mas que dessa
vez busca auxílio junto a um judeu e a um mouro (B 1454, V 1064); como Pero d'Ambroa, apresenta uma
soldadeira que conta, entre os parceiros sexuais, figuras do clero – precisamente na cantiga que analisaremos
neste artigo (B 1455, V 1065).
O caráter estereotípico desse jogo de representações não nos permitirá obter uma visão concreta de
quem foi Maior Garcia, essa mulher que, no século XIII, viveu e atuou no meio trovadoresco peninsular;
contudo, talvez devamos indagar se mesmo seus coevos não se limitaram a enxergá-la por meio das lentes
que reduzem a alteridade ao clichê, sobretudo quando marginalizada desde um referencial estável e vasto
como aquele composto pelo sistema de valores patriarcais. A esse propósito, pode-se notar que a cantiga de
João Baveca apresenta notável similaridade com a única peça satírica de Fernão Velho que chegou até nós (B
1504), conquanto aquela se dirija à Balteira: Maria Peres, ao decidir confessar-se, “hun clerigo filhou /... / e
diz que o terrá, mentre viver”; Maior Garcia, como veremos, precisará de um pouco mais para satisfazer-se,
de modo a atualizar o lugar-comum da mulher sexualmente insaciável e carente de qualquer solidez moral.
Em todo o caso, uma e outra aparecem como reflexos de uma feminilidade estereotipada, abrigadas sob a
alcunha genérica de “soldadeiras”.

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A soldadeira e seus clérigos

LEITURA PRIMEIRA: DA RECEPÇÃO INGÊNUA


Transcrevemos a mencionada cantiga de João Baveca (B 1455, V 1065) conforme a edição proposta
pela equipe coordenada por Mercedes Brea, compilada em Lírica profana galego-portuguesa (1996, p. 417;
LPGP 64, 15):
Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer,
por quen-quer que [se] podesse guisar
de ssa mort' e sse bem maenffestar,
que non podia perdudo seer;
e ela diz, por sse de mal partir,
que, enquant' ouver per que o comprir,
que non quer ja ssem clerigo viver.
Ca diz que non sab' u x' á de morrer
e, por aquesto, se quer trabalhar,
a como quer, de sse d' esto guisar;
e diz que á ben per hu o fazer
con o que ten de sseu, sse d' alhur non;
dous ou tres clerigos, hun a sazon,
…....................... [-er].
E Mayor Garcia, por non perder
sua alma, quando esto oío, foy buscar
clerigo et non ss' atreveu albergar
…....................... [-er]
e ja tres clerigos pagados tem,
que, sse [é] hũu d' elles, sabede vós bem
que a non pode a morte tolher.

À guisa de etapa preparatória à leitura interpretativa da composição, podemos ensaiar uma


exposição meramente parafrástica da cantiga, assim reconstituindo o que poderíamos considerar como
dimensão imediatamente acessível a um leitor ingênuo – ou, ao menos, não preparado para a percepção do
aspecto obsceno presente na composição. Assim, dispensando a tarefa de expor uma rígida tradução, verso a
verso, da cantiga de João Baveca – o que nos faculta a possibilidade de tentar expor, de modo mais claro, o
sentido do texto –, e já aproveitando algumas poucas informações anteriormente expostas, temos a seguinte
leitura: (I) Maior Garcia – que, já sabemos, é uma soldadeira – sempre ouviu dizer, sobre quem quer que
pudesse cuidar da própria morte e se confessar, que não podia deixar de lado essa oportunidade; e, para
afastar-se do mal, afirma que, enquanto tiver meios de cumpri-lo, não quer já viver sem ter consigo um
clérigo. (II) Pois, diz a soldadeira Maior Garcia, não sabe quando há de morrer; assim, quer esforçar-se, a todo
custo, para cumpri-lo; e assegura que tem como fazê-lo com o que já tem de seu, se não de outro lugar –

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Henrique Marques Samyn

passagem talvez obscura ao olhar ingênuo, mas que será facilmente preenchida por uma leitura maliciosa –:
dois ou três clérigos, um por estação, haverá de conseguir. (III) E Maior Garcia, para não perder sua alma,
quando isso ouviu, foi buscar um clérigo; mas não se atreveu a abrigar apenas um; e tem já consigo três
clérigos satisfeitos, pois – sabeis bem! – sem um deles não quer arriscar-se a morrer.
Essa "versão ingênua" da cantiga, a bem da verdade, encerra já um reconhecível potencial cômico,
cuja leitura buscaremos sintetizar nas próximas linhas. Cabe observar, antes de tudo e como clave
fundamental para a leitura, a posição de Maior Garcia como soldadeira; ainda que a medievalística mais
recente venha enfatizando a necessidade de rechaçar a vigência de um discurso clerical unívoco, abrindo
espaço para que se percebam as nuances dos debates medievais em torno do gênero, no caso das soldadeiras
parecem especialmente visíveis as tensões entre a noção teológica de uma possibilidade igualitária de
salvação e a ordem social hierarquizada que sustentava a subordinação das mulheres (MURRAY, 1995). Por
conseguinte, além do lugar subalterno que lhe cabia ocupar enquanto mulher, a soldadeira ainda ocupava
uma posição marginal dentro do próprio ambiente trovadoresco, cuja élite era já constituída por ocupantes de
posições subalternas no próprio seio da nobreza; isso, particularmente no caso peninsular, fazia dessas
mulheres objeto de chacota compartilhado por trovadores e por jograis, sem que lhes fosse facultado, em
qualquer momento, o direito à réplica. Considerando-se esse conjunto de relações de poder no âmbito de
uma sociedade permeada por estruturas ideológicas teocêntricas, torna-se possível perceber a condição da
soldadeira como inevitavelmente propensa à perdição, o que condiciona a leitura ingênua da cantiga de João
Baveca.
Consoante essa perspectiva, assim poderíamos explicitar a comicidade da cantiga: Maior Garcia, a
quem tantas vezes foi dito – pois ela “ssenpr' oy[o] dizer” – que aquele que pudesse cuidar de sua própria
morte deveria fazê-lo, de uma hora para a outra resolve tomar as devidas providências. A insinuação de uma
decisão súbita, legível na utilização do advérbio, é importante, uma vez que já caracteriza a protagonista
como moralmente obtusa: se "ssenpr' oy[o] dizer", porque só agora faz aquilo de que já deveria ter cuidado
há tempos? Não lhe teria, talvez, ocorrido a possibilidade de que algum dia poderia morrer – o que, para além
da inconsequência que pode sugerir nossa mentalidade contemporânea, no âmbito medieval implicava um
inexplicável alheamento de um dos temas mais presentes nas discussões cotidianas. Com efeito, na Idade
Média a morte não era um assunto tabu, sendo constantemente evocado para tratar da renúncia aos interesses
materiais e do destino da alma, especialmente nos discursos religiosos; como afirma Shulamith Shahar,
“pregadores urgiam com pessoas para que estivessem prontas para morrer a qualquer momento e não

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A soldadeira e seus clérigos

postergassem o arrependimento até que estivessem velhas, uma vez que a morte poderia chegar a qualquer
idade” (1997, p. 22; trad. nossa).
De todo modo, e ainda que tardiamente, Maior Garcia resolve tomar uma providência que lhe
permita "de mal partir", quando enfim se conscientiza de que não pode saber ao certo quando morrerá – e
que, portanto, sua alma corre sérios riscos. O leitor ingênuo poderá então entender que, ao contabilizar
quantos pecados acumulou ao longo da vida, a soldadeira percebe que todo cuidado será pouco; que será
preciso cercar-se de todas as precauções, de olhares vigilantes que lhe permitam não mais cometer deslizes
que coloquem em risco o seu destino. Assim, primeiro decide ter consigo algum clérigo; mas apenas um seria
suficiente para dar conta de seus pecados e impedi-la de recair em novos erros? Importa perceber como João
Baveca obtém o efeito cômico ampliando a cada estrofe essa conta: a soldadeira que na cobra inicial “non
quer ja ssem clerigo viver” passa a demandar “dous ou tres clerigos, hun a sazon”; todavia, no momento final,
“ja tres clerigos pagados tem”, sempre com o objetivo de “non perder / sua alma”.
Por conseguinte, ainda que admitamos a possibilidade de haver um leitor incapaz de perceber a
dimensão obscena da cantiga, a potência do escárnio é ainda reconhecível, sobretudo quando se mobilizam
topoi da tradição misógina ocidental: a irresolução de Maior Garcia pode figurá-la como stulta mulier, que
tem entre as mais influentes fundamentações aquela presente na Physiognomonica pseudo-aristotélica (1955,
809b, p. 110-111); por outro lado, sua condição pecaminosa não a diferencia das demais mulheres,
percebidas por autores e clérigos medievais como especialmente propensas a emular Eva, isso quando as
mulheres não serviam como personificações para o pecado (BARDSLEY, 2007, p. 176-177). Assim, a lição
cômico-moralizante é clara: a estultice de Maior Garcia impede que perceba a perdição que encerra sua
própria natureza; quando finalmente se dá conta disso, nada lhe resta, senão o gesto desesperado de procurar
os clérigos – ou seja, as autoridades masculinas – que possam providenciar a sua salvação.

LEITURA SEGUNDA: DA PERCEPÇÃO DA MALÍCIA


A anteriormente proposta leitura para Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, conquanto possa ter o valor
de explorar alguns aspectos da comicidade da cantiga, torna-se implausível precisamente pela condição
específica de Maior Garcia como soldadeira – termo que, como anteriormente destacamos, era utilizado
também para designar as prostitutas. Desde uma perspectiva feminista, não é difícil perceber que a
ambiguidade dessa denominação está relacionada às estruturas patriarcais medievas: ainda que as soldadeiras
não tenham sido, de fato, prostitutas – e não podemos ter certezas definitivas a esse respeito –, o papel por
elas desempenhado era bastante para que assim fossem pejorativamente qualificadas diante de olhares para

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Henrique Marques Samyn

os quais a “natureza feminina” parecia sempre próxima demais da luxúria. Essas mulheres, afinal, desafiavam
ostensivamente as regras de decoro prescritas ao seu gênero como forma de resguardar a castidade; invertiam,
portanto, o que determinava a ordem patriarcal – e, como se isso não fosse suficiente, ainda eram
financeiramente recompensadas por fazê-lo, mesmo que recebessem muito menos do que aqueles homens
que as acompanhavam nas apresentações. Não havia, portanto, lugar para as soldadeiras entre as mulheres
“honestas”.
Como que a espelhar na estrutura poética a natureza transgressora do ofício da soldadeira, João
Baveca situa na metade da cantiga os versos que incitam à “leitura maliciosa” da composição. De fato, ao
longo da primeira estrofe e dos primeiros versos da cobra intermediária, a leitura ingênua permanece
plausível; todavia, a partir do décimo verso, ela se torna cada vez mais problemática. Enfim decidida a cuidar
de sua alma, Maior Garcia resolve adotar as providências necessárias, e assegura que dispõe de meios para
fazê-lo “con o que ten de sseu, sse d' alhur non”; mas onde lhe seria possível encontrar outros recursos? É
nesse momento que a intervenção do leitor se faz necessária, preenchendo os silêncios do texto: não restam
dúvidas sobre o que essa mulher estaria disposta a fazer para atingir seus objetivos quando se considera a
posição que ocupa, ou seja, quando se evoca a sua condição de soldadeira; como não supor que sua
natureza venal, mais cedo ou mais tarde, viesse a revelar-se? É aqui que João Baveca oferece ao leitor a
confirmação de suas expectativas.
Com efeito, essa clave de leitura encerra novas possibilidades interpretativas para a relação que se
estabelece entre Maior Garcia e os clérigos de que se rodeia. Não se trata mais de ler a soldadeira apenas
como a mulher que vive em pecado, mas sim como aquela que, através do corpo, torna-se a porta de entrada
para a vida em pecado; ou seja: aquela que, além de perder a si mesma, também arrasta os outros para a
perdição. Embora a imoralidade clerical seja um tema comum no corpus das cantigas satíricas peninsulares,
na composição de Baveca esse não é um assunto explícito; de fato, se a cantiga nada permite concluir acerca
das intenções dos clérigos que passam a viver com Maior Garcia, isso talvez não ocorra por acaso: há nisso
menos relevância do que na caracterização da soldadeira como aquela capaz de corromper toda e qualquer
intenção, visto que disso decorre o potencial cômico do texto que escapara à leitura ingênua. Ainda que os
“dous ou tres clerigos, hun a sazom” convocados por Maior Garcia efetivamente pretendessem salvá-la, uma
vez ao seu lado não lhes restaria qualquer escolha: como poderiam escapar à malícia dessa filha de Eva?
Vale destacar mais uma eventual demonstração da mestria poética de João Baveca, compatível com
a leitura que vem sendo proposta. Se é correta a percepção de que, ao longo da primeira cobra, a leitura
ingênua tem alguma plausibilidade, e que é na segunda cobra que surgem os versos que determinam a leitura

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A soldadeira e seus clérigos

obscena da composição – podendo-se, a princípio, supor que haveria efetivamente alguma chance de
salvação para a soldadeira, algo arruinado pela evidência de que Maior Garcia não apenas está condenada ao
pecado, como também arrastará para a perdição aqueles que tencionavam salvá-la –, isso pode estar
materializado na superfície textual pelo hábil recurso às cobras capcaudadas, que confere destaque a dois
vocábulos legíveis como indícios das inclinações à salvação ou à perdição: viver/morrer. É suficiente evocar,
a esse propósito, o versículo da epístola paulina aos romanos (Romanos, 5, 12) que produziria ampla fortuna
teológica, sintetizada na lapidar fórmula vieiriana: “o pecado tira a vida espiritual, tira a vida eterna e também
tira a vida corporal, porque do pecado nasceu a morte” (VIEIRA, 2008, p. 190). Ao fim, a vida de que se priva
Maior Garcia acarreta a morte não só para si, mas também para aqueles que são por ela conduzidos para o
pecado.
Por outro lado, importa perceber que tudo isso encerra um processo de inversão da ordem
normativa: operando como diaboli ianua – para evocar a emblemática imagem proposta por Tertuliano –,
Maior Garcia é quem sugestivamente arrasta os clérigos para a perdição, em vez de permitir-se lograr a
salvação por seu auxílio; trata-se de algo especialmente transgressor se consideramos o significado desse gesto
no contexto medieval. Se, para os homens da Idade Média, o afastamento do pecado é um modo de assegurar
o caminho para a vida eterna, essa soldadeira que não apenas despreza sua própria salvação, como ainda
desvia aqueles que poderiam retificar seus erros, constitui uma figuração daquilo que há de mais perigoso na
feminilidade: Maior Garcia compartilha com suas pares uma essência lasciva que, em última instância, atenta
contra a condição humana. E o risco que não apenas ela, mas todas as mulheres representam está patente na
desmesura que a leva a ter consigo não apenas um, mas três clérigos, cujas demandas certamente satisfaz
com gosto: se, como pensam os medievais, uma marca da sexualidade feminina é a insaciabilidade
(SALISBURY, 1996, p. 86), decerto a soldadeira não encontra dificuldades para mantê-los “pagados”, e será
incapaz de afastar-se deles até o fim de seus dias – porque seu corpo não o permitirá. Ao fim, quantos homens
não serão desviados do reto caminho, seduzidos por mulheres dessa estirpe?
Uma síntese dessa leitura maliciosa da cantiga de João Baveca, buscando enfatizar sua potencial
comicidade, pode orientar-se pelo modo como nela é empregado o recurso das cobras capdenals – que,
ocorrendo na primeira e na última estrofes, confere ênfase a alguns de seus elementos basilares. Assim, o que
temos é uma estrutura poético-retórica que pode ser assim figurada:

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Henrique Marques Samyn

(I.) Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, (→) que non podia perdudo seer;
↕ ↕
(") (→) que non quer ja ssem clerigo viver.
↕ ↕
(III.) E Mayor Garcia, por non perder [/ sua alma] (→) que a non pode a morte tolher.

O que enfatizam os segmentos destacados por esse expediente anafórico? Que a estultice de Maior
Garcia faz com que imediatamente procure um clérigo que a acompanhe, e que não se permitirá morrer sem
tê-lo consigo, supostamente para assim não perder sua alma; no entanto, sabemos que não é isso o que ocorre
– uma vez que são os clérigos, já três em lugar de apenas um, que acabam por perder-se, arrastados para a
perdição pela soldadeira. O risível, ao fim, deriva da própria “natureza feminina”, conforme concebida pelo
misógino imaginário medievo, cuja inclinação para o desvio acaba por desestabilizar a ordem correta das
coisas: sempre próximas demais do pecado, sempre conduzidas pelas baixas forças que em seus corpos
encontram abrigo, não estão as mulheres condenadas a repetir o erro de Eva, como filhas gêmeas dessa mãe
que delas em nada difere?

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A soldadeira e seus clérigos

TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis: introdução à poesia medieval galego-portuguesa. Lisboa: Caminho,
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__________________________________
Data de submissão: jun./2014.
Data de aprovação: set./2014.

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A NORMA LINGUÍSTICA: reflexão e análise em
uma gramática do século XIX
Priscila Brasil Gonçalves LACERDA 1
Cynthia Elias de Leles VILAÇA 2

RESUMO
Este texto tem por objetivo trazer reflexões acerca da constituição da norma linguística, ilustradas pela
Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza , escrita pelo filólogo e gramático português Jerónimo Soares
Barbosa, em 1822. Para tanto, retomamos algumas concepções de norma linguística, delimitando por
contrastes e associações o conceito de norma como prescrição. Além disso, explicitamos os principais
critérios usados para legitimar essa norma de caráter prescritivo, quais sejam: o histórico, o social, o de
autoridade, o racional, o estético e o natural. Em seguida, por meio de uma análise das seções de Orthoepia e
de Orthographia constantes da referida gramática, detemo-nos no trabalho de investigação de como esses
critérios seriam aplicáveis. Assim, verificamos que, embora a gramática em análise esteja assentada em uma
perspectiva de olhar sobre a língua a partir dos preceitos da lógica, doses de norma linguística prescritiva
ainda se revelam na obra e se legitimam por critérios distintos, entretanto, esse controle se faz sub-
repticiamente.

PALAVRAS-CHAVE: Norma linguística. Legitimação de normas. Gramática do século XIX. Jerónimo Soares
Barbosa. Ortoépia. Ortografia.

ABSTRACT
This text aims to make some reflections on the constitution of linguistic norm illustrating this process by the
Philosophical Grammar of the Portuguese Language , written by philologist and grammarian Portuguese
Jerónimo Soares Barbosa, in 1822. On this way, some conceptions of linguistic norm were revisited and
defined by contrasts and associations. In addition, it was underlined the main criteria used to legitimize the
linguistic norm prescription, namely: the historical, social, authority, rational, aesthetic and natural ones.
Then, through an analysis of Orthoepia and Orthographia sections of the reported grammar, the attention of
research was focused on how these criteria would be applied. Thus, although the grammar in analysis is
inserted in a logic perspective of looking on the language, prescriptive norm doses still are revealed in the
work and it is legitimated by different criteria, however, this control is subtly done.

KEY-WORDS: Linguistic norm. Legitimation of norms. Grammar of the nineteenth century. Jerónimo Soares
Barbosa. Orthoepy. Spelling.

1 Doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela UFMG. Professora substituta da UFMG.

2 Doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela UFMG. Professora visitante da UERJ.

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A norma linguística

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE NORMA LINGUÍSTICA


Diversos são os pontos de vista a partir dos quais os fenômenos linguísticos podem ser observados
segundo o objetivo estabelecido pelo pesquisador e o aparato teórico de que ele se vale na abordagem de seu
objeto. Diversos também são os recortes possíveis para a delimitação do fenômeno linguístico a ser
considerado. Quando a pretensão é descrever a língua em si mesma, pensa-se logo em estruturas fonológicas,
morfológicas e sintáticas, consideradas como sustentação de aspectos semânticos da língua. Por outro viés,
pensa-se nos estágios em que as formas da língua se encontravam em determinados períodos de sua história,
seja pela circunscrição de outras sincronias, seja por uma perspectiva diacrônica, isto é, pela consideração do
percurso que resultou nas formas observáveis da atualidade da língua. Há, também, perspectivas que buscam
explicar a língua em funcionamento, abordando, por exemplo, questões relativas a gênero e discurso. E, mais
evidentemente do que os estudos estruturais, essas abordagens colocam a língua em interface com elementos
que não são ela mesma, mas que lhe são pertinentes.
Ao menos em tese, contemporaneamente, todas essas perspectivas de estudo da língua, estando elas
mais ou menos restritas à estrutura em si, lidam com o fenômeno linguístico tal como ele aparece, ou melhor,
tal como os investimentos teóricos o recortam enquanto fragmentos empíricos. Distante dessa abordagem da
língua enquanto objeto de pesquisa está o olhar dos próprios falantes. Em primeira instância, a distância entre
as visões leiga, que é a do falante, e científica, que é a do pesquisador, existe porque o falante, naturalmente,
não pensa sobre as dimensões mais estritas da língua, ou seja, ele não pretende definir a língua enquanto
objeto. Para o falante, a língua se apresenta como idioma, instrumento de comunicação do Estado em que ele
se encontra. A língua enquanto objeto é algo a que ele tem acesso na escola, onde é mensurado o seu
desempenho em uso, e que está retratada em um compêndio que indica as suas formas corretas. Nesse
sentido, a língua enquanto tal se apresenta ao falante como algo submetido a erro e a correção. Em outras
palavras, a consideração sobre a língua já se apresenta submetida a uma norma e, tendo em vista que o erro é
por vezes apresentado como não língua, a língua para o falante acaba sendo a própria norma.
Considerando a língua como instrumento de comunicação natural dos homens, considerando ainda
que por meio dela as pessoas lidam com a construção de sentidos e, assim, se mostram enquanto seres
sociais, e tendo em vista que a sociedade está organizada por estratificações que delimitam recorrências, isto
é, que descrevem normalidades, podemos dizer que, imersa no âmbito social, a língua está sujeita a normas.
O que nos interessa aqui é discutir qual é a natureza dessas normas, ou melhor, em que medida elas estão
vinculadas ao sentido de normalidade ou de normatividade.

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Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça

Comecemos então discutindo a noção de norma no sentido em que Coseriu (1973) compreendeu
esse termo ao propor a distinção entre sistema, norma e fala a partir da dicotomia entre língua e fala
estabelecida por Saussure. Segundo Coseriu, podemos inferir que a noção saussuriana de língua comporta os
conceitos de sistema e de norma. Em sua dimensão de sistema abstrato de oposições funcionais, a língua seria
chamada sistema; mas, enquanto instituição social (ligada a outras instituições sociais), que se compõe
também de elementos não funcionais, podemos chamá-la de norma. Esta, portanto, corresponde à realização
coletiva do sistema. Tal realização contém o próprio sistema investido de elementos funcionalmente não
relevantes, mas normais, no sentido de recorrentes, na fala de uma comunidade. A norma é, com efeito, um
sistema de imposições sociais e culturais que variam, evidentemente, segundo a comunidade. A distinção
entre norma e sistema, nas palavras de Coseriu, esclarece melhor o funcionamento da linguagem, a atividade
linguística que é, ao mesmo tempo, criação e repetição (re-criação) dentro dos limites e segundo as
coordenadas do sistema funcional. Podemos dizer então que a atividade linguística, que se concretiza na fala
(terceiro elemento da divisão tripartida proposta por Coseriu), realiza um movimento direcionado pela norma
dentro das livres possibilidades oferecidas pelo sistema.
Diante desse quadro, podemos afirmar que o que se impõe ao falante não é o sistema (que se
oferece a ele), mas a norma. O falante tem consciência e se vale do sistema, conhecendo ou não a norma,
obedecendo-a ou não. Além de uma norma estabelecida, há sempre outras possibilidades permitidas pelo
sistema3. Ainda que o conceito de norma apresentado por Coseriu a estabeleça em termos de imposição, esse
autor não entende norma como normatividade. Para esse linguista, a norma se impõe aos falantes a partir dos
elementos socioculturais que estão no entorno da fala, não enquanto regra a se manter dentro dos limites da
língua. Dito de outra maneira, uma mudança em relação àquilo que seria normal não quer dizer que a fala
transgrediu o sistema, antes quer dizer que houve um movimento além do que seria previsto pelas tendências
da norma social, uma espécie demonstração de produtividade do que é previsto pelo sistema.
Outros linguistas também fizeram considerações a respeito de norma linguística. Rey (2001), por
exemplo, trabalhou com as noções de norma objetiva e norma avaliativa, associando-as, respectivamente, ao
normal e ao normativo. Podemos dizer que a norma objetiva guarda, em linhas, certa coincidência com o que
Coseriu chamou simplesmente de norma, ou seja, ela figura no âmbito das estatísticas das variantes de uso da
língua socialmente determinados. A norma avaliativa, por sua vez, diz respeito aos juízos de valor atribuídos a
essas variantes de uso da língua, isto é, aos comportamentos linguísticos que perfazem as normas objetivas.

3 Neste trecho, parafraseamos ou transcrevemos literalmente alguns fragmentos do texto de Coseriu (1973). A tradução a partir do
espanhol é de nossa inteira responsabilidade.

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A norma linguística

Segundo Rey (2001, p. 131), há “uma tendência ao julgamento linguístico coerente para o conjunto da
sociedade, refletindo a estrutura social (socioeconômica)”, determinada pressão social que conduz à
unificação das normas subjetivas em uma única norma avaliativa. Esta última, refletindo uma ideologia
dominante, fundamenta o que conhecemos sob o signo de norma prescritiva.
A norma prescritiva, em sua natureza restritiva, tende a colocar-se como única forma legítima de uso
da língua e sustenta essa legitimidade por um discurso que pretende escamotear o seu caráter arbitrário,
induzindo à confusão na consciência linguística dos falantes. Explicitando melhor, o discurso da norma
prescritiva a identifica ao ‘uso correto’ da língua e, ao fazê-lo, acaba posicionando a prescrição no próprio
lugar da língua, tomando como erro os usos que a ela não se alinhem. O falante, por sua vez, assimilando o
“peso ideológico da norma estabelecida” (REY: 2001, p. 134), subsidia a proposta pedagógica dos
compêndios gramaticais ao julgar-se pouco proficiente em sua própria língua materna.
Outra visão sobre o uso da língua sustenta a normatividade – obviamente é nesse sentido de norma
que devemos entender o conceito de norma prescritiva – veiculada pelos compêndios gramaticais. Trata-se da
perspectiva purista. Definindo um modelo de língua, que coincide com a norma prescritiva das gramáticas, o
purista luta pela sua conservação sob pena de que a língua se perca em meio às variações de uso que ele
considera como “erros”. Os puristas, posicionando-se como se ignorassem que “a mudança é um processo
inexorável (que alcança todas as variedades em múltiplas direções)” (FARACO: 2004, p. 44) e que a
incorporação das mudanças mais frequentes no uso seja um processo natural de evolução das línguas,
recusam a mudança histórica e lutam por um certo imobilismo linguístico, agarrando-se às correções e aos
preciosismos da gramática normativa.
Ainda uma contribuição importante a respeito de norma linguística que consideraremos aqui nos foi
concedida por Faraco (2004) ao discutir norma culta e norma-padrão. Conhecida a relação estreita que há
entre norma, no sentido dado por Coseriu (1973) a esse termo, e sociedade, Faraco nos diz que a norma culta
[...] deve ser entendida como designando a norma linguística praticada, em
determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por
aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em
especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder
social [...] (FARACO: 2004, p. 40).

Isso significa que a norma culta é uma entre as demais “normas implícitas” (ALÈONG, 2001) que
caracterizam um grupo social de falantes. Se em torno da escrita se agrupa um estrato social privilegiado, o
avanço da escrita em si mesmo desencadeia a necessidade de uma norma estabilizada, a que chamamos de
norma-padrão. Diferentemente do que se poderia pensar, essa norma-padrão, embora esteja mais próxima da

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norma culta do que das demais, não coincide com ela. Explicitando melhor, a relativa estabilidade da norma-
padrão faz com que ela não tenha coincidência nem mesmo com a norma culta que, enquanto norma em
plena utilidade social, está também sujeita a variações suscitadas por interferências de outras normas. Ou seja,
a “[...] relativa estabilidade do padrão cria um natural descompasso entre ele e a fala culta” (FARACO: 2004,
p. 49). Na verdade, é possível dizer que o descompasso é entre a norma-padrão e qualquer variedade de uso,
o que a caracteriza como artificial.
Enfim, retomando diversas concepções de norma linguística, pudemos observar que, se por um lado
o uso real da língua se dá na relação entre os fenômenos sociais e linguísticos, que impõe aos falantes uma
norma em acepção de normalidade, por outro lado, diante da variedade de usos e, portanto, de normas, se
sobressai uma variedade de língua que é associada ao prestígio socioeconômico e que se impõe sobre as
outras sob o signo da correção e do bon usage. Em linhas gerais, podemos associar essas duas concepções de
norma linguística ao que Alèong (2004) chamou de norma implícita e de norma explícita, respectivamente.
Em suma, diríamos que as normas implícitas (no plural, porque seriam múltiplas) se assentam nas
diversas atividades de linguagem e conformam, por exemplo, o teor de formalidade ou informalidade do
registro apropriado para uma comunicação proferida em uma mesa de simpósio ou em uma mesa de
botequim. Em alguma medida, as normas implícitas estariam consubstanciadas, então, na estabilidade relativa
dos gêneros de texto orais ou escritos. A norma explícita, por sua vez, seria aquela que se impõe enquanto
normatividade, parâmetro de correção, e que, subsidiada pelo complexo de ignorância linguística que assola
os falantes nativos da língua portuguesa no Brasil, por exemplo, se impõe enquanto parâmetro de língua. Essa
norma é a que se encontra, como já dissemos, em nossos compêndios gramaticais e que, quando não se
apresenta como verdade natural, se vale de argumentos para se justificar.
Esboçaremos a seguir o perfil dos argumentos utilizados para legitimar uma norma prescritiva. Vale
dizer que, doravante, ao utilizarmos o termo norma somente, estaremos nos referindo à norma em sentido
normativo.

NOTAS SOBRE OS CRITÉRIOS DE LEGITIMAÇÃO DE UMA NORMA


Nesta seção, apontaremos a natureza de alguns critérios de legitimação das normas prescritas em
nossos compêndios gramaticais. Tais critérios ou argumentos são os fundamentos apresentados por um
gramático para a escolha de uma forma em detrimento de outra, isto é, são o que legitima as formas
entendidas como corretas ou como preferíveis a outras. Enumeremos e caracterizemos então alguns desses
argumentos:

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A norma linguística

1. Argumento histórico: propõe-se a fazer prevalecer “[...] um uso atestado há muito mais tempo que
seu concorrente” (REY: 2001, p. 134). Arriscaríamos a dizer que a origem desse critério está nos
estudos alexandrinos, que já se interessaram por linguística histórica com o objetivo de fixar o texto
genuíno de Homero, uma vez que foram encontradas variações nos testemunhos. Mas as
justificativas dessa natureza, presumimos, conquistaram espaço de fato no período romântico.
Primeiramente, porque esse período é caracterizado por um desejo de retorno ao passado como
tentativa de resolução dos conflitos presentes. E, em segundo lugar, porque foi nessa época que se
desenvolveram os estudos comparatistas que visavam à reconstrução da protolíngua, o que ofereceu
subsídios para a remontagem histórica das formas.
2. Argumento racional: também chamado de argumento lógico, ele procura “[...] fazer coincidir
semântica do discurso e regularidade, lutando, por exemplo, contra os idiomatismos desmotivados,
como eu custo a crer ou há anos atrás” (REY: 2001, p. 134). A origem desse argumento está em
Aristóteles, que “[...] funda a lógica gramatical, condição da adequação do enunciado a seu objeto”
(CASEVITZ; CHARPIN, 2004, p. 30); mas é com a gramática especulativa dos escolásticos que esse
critério ganha novo fôlego, retomando a doutrina de Aristóteles e estabelecendo como objetivo
central a reflexão teórica, o pensamento sobre os fundamentos lógicos das regras e conceitos
gramaticais (ROBINS, 1983).
3. Argumento de autoridade: muito recorrente, esse critério baseia-se na consideração de que os
autores clássicos possuem um grau de proficiência linguística mais elevado e que, por isso, seus
escritos servem de parâmetro de correção. Sob certo aspecto, podemos remontar a raiz desse critério
à Grécia, porque, segundo Casevitz & Charpin:
[...] a norma na gramática grega, nascida do sentimento da unidade da língua apesar
de sua diversidade e de uma certa consciência de sua regularidade, se desenvolveu
num esforço pedagógico por fixar a língua um certo estado de pureza e por permitir
[justamente] o estudo dos escritores da ‘época áurea’ (CASEVITZ; CHARPIN, 2001, p.
31-32).

4. Argumento social: esse critério, especialmente, coloca em conflito as acepções de norma implícita e
norma explícita. Tendo em vista que a norma implícita é resultante da interface entre as dimensões
social e linguística que norteiam o uso da língua, fundamentar a norma explícita sobre a variante de
um determinado grupo, privilegiado do ponto de vista socioeconômico e cultural, agride a
normalidade das demais variantes de uso da língua. A despeito disso, admitimos que, pela
recorrência, esse critério está no cerne da legitimação construída na gramática que analisaremos a

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seguir. Podemos dizer ainda que a justificativa social pra a legitimação de normas linguísticas teve
grande impulso no período renascentista, já que nesse período “[...] a língua escrita das classes
cultas foi a base dos estudos gramaticais” além do fato de que
[...] o Renascimento anunciou uma época de mudanças na sociedade inglesa: a
cuidadosa preservação das normas linguísticas próprias das classes superiores e a
aquisição de tais normas [era tida] como passo imprescindível para qualquer
promoção social (ROBINS, 1983).

5. Argumento estético: segundo esse argumento, usos e elementos são apreciados ou “[...] depreciados
por razões complexas de eufonia [ou] de conotações” (REY, 2001, p. 134), ou seja, no escopo deste
critério, a norma é legitimada por justificativas demasiado relativas e fluidas. Ele denuncia, mais do
que os outros, que a escolha entre determinadas formas é, por vezes, motivada em primeira ordem
por um gosto pessoal do gramático.
6. Argumento natural: este critério justifica a norma simplesmente por uma questão de natureza ou de
convencionalidade dos próprios fatos linguísticos.

A fim de ilustrarmos a aplicação de alguns desses critérios, analisaremos o trabalho de legitimação


de normas no âmbito da ortoépia e da ortografia, presente na gramática de Jerónimo Soares Barbosa (1822).

GRAMMATICA PHILOSOPHICA DA LINGUA PORTUGUEZA (1822):


ANALISANDO A LEGITIMAÇÃO DE NORMAS NAS SEÇÕES DE ORTHOEPIA E

DE ORTHOGRAPHIA

Filiada à concepção logicista que norteou a Gramática de Port-Royal dois séculos antes, a
Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1822), de Jerónimo Soares Barbosa (doravante J.S.B.),
privilegia a explicitação teórica e a descrição dos fenômenos linguísticos enquanto vinculados às categorias
de pensamento. Dessa forma, os lances de normatividade não se mostraram tão numerosos e, quando estão
presentes, raramente se apresentam com nitidez. Apresentaremos abaixo trechos da referida gramática,
extraídos da parte dedicada a Ortoépia, que se ocupa do estudo dos caracteres fônicos e da boa pronúncia
das palavras, e da parte de Ortografia, que aborda questões relativas à correção da representação escrita das
palavras. Os trechos são acompanhados de uma breve consideração a respeito da justificativa dada à norma.

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A norma linguística

a) Orthoepia
Após um longo trecho em que descreve a pronúncia das palavras da língua portuguesa, J.S.B. inicia
suas considerações sobre o que ele denominou de “vícios de pronunciação” (p. 50). O gramático justifica de
antemão o seu posicionamento, as preferências que serão apontadas na sequência, declarando a
superioridade das pronunciações da Corte, isto é, por um argumento de natureza social e, em seguida, se vale
também de um argumento estético, dizendo que as formas em descarte são “desagradaveis ao ouvido” (p. 50).
Vejamos abaixo o trecho em que ele se justifica por um critério relacionado ao prestígio social.

Figura 1 – Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B., 1822, p. 50)

E sob essa perspectiva, são abordados os seguintes fatos linguísticos (J.S.B., 1822, p. 51-55):

 Troca das vozes


Nas palavras do gramático, os Brasileiros costumam, na pronúncia, trocar o “a” grande em pequeno,
dizendo vadio [breve] em vez de vadio [longo]. Também costumam trocar o “e” grande e aberto pelo
pequeno e breve e, ainda, trocam este último pelo “i”. Dizem, por exemplo, pregar [breve] no lugar do aberto
e longo.
Os Algavios, por sua vez, costumam trocar o “i” em “e” dizendo dezer no lugar de dizer. E os
Minhotos trocam o “u” oral pelo “u” nasal, dizendo hua [com u nasal] no lugar de huma. Além de trocarem o
“o” grande fechado pelo “o” [til nasal], dizendo bõa no lugar de bôa.
Entretanto, segundo o autor, os Rusticos são os que mais cometem erros de troca de vozes, dizendo,
por exemplo, rezão no lugar de razão ou precurador no lugar de procurador, entre outros. E não só os
Rusticos, mas também muita gente polida, cometem o engano de pronunciar o plural tal como o singular,
como “ô” fechado, quando o “o” deveria ser aberto: soccôrros no lugar de soccórros ou gostôsos no lugar de
gostósos.

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 Troca das Consonâncias


Aos Brasileiros, é atribuída a impropriedade de se pronunciar o “z” no lugar do “s” líquido como,
por exemplo, dizer mizterio no lugar de misterio.
Os Rusticos, por sua vez, tendem a colocar “g”, “l”, “v”, “x” e “l”, respectivamente, no lugar de “z”,
“d”, “x”, “s” e “r”, ou às avessas. Também mudam frequentemente o lhe/lhes dizendo le disse/les disse no
lugar de lhe disse/lhes disse.

 Troca de Diphtongos e de Syllabas


Os Minhotos trocam sempre o ditongo nasal “ão” por “om”, pronunciado, por exemplo, sujeiçom e
razon no lugar de sujeição e razão. E ainda articulam “ou” como “ão”: Estão bem no lugar de Estou bem.
Já os Algavios e Alemtejãos trocam “êi” por “êu” ao dizerem mêi pai, por exemplo; enquanto os
Rusticos da Provincia e dos arredores de Lisboa trocam por “ãe” os ditongos nasais “ão” e “õe”, pronunciando
tostães e grães no lugar de tostões e grãos.

 Acréscimo, subtração ou inversão de vozes


Segundo o gramático, os Beirões, compartilhando este vício com os Algarvios e com os Alemtejãos,
descaracterizam muitas palavras com acréscimos supérfluos. Eles tendem a juntar um “i” ao “ô” grande
fechado, ao “a” e a 3ª pessoa do verbo “ser há”, ao “é” grande aberto e ao “u”, dizendo côive no lugar de
couve, ai agua e hay alma, héi justo e fruita.
O chamado Povo rustico costuma errar pelo excesso acrescentando um “a” ao início de muitas
palavras, dizendo alanterna, avoar... Em contrapartida, também costuma subtrair as vozes das palavras,
dizendo calidade no lugar de qualidade ou masginação no lugar de imaginação; ao passo que os Brasileiros
também cometem o erro de subtrair o “a” do ditongo “ai” dizendo, por exemplo, pixão no lugar de paixão.
Há ainda os vícios que correspondem à inversão dos sons das palavras, uma perturbação da ordem
de suas sílabas, como dizer frôl no lugar de flor ou percissão no lugar de procissão. Nos termos do próprio
gramático, este é o pior vício, sendo o que mostra mais a rusticidade.
Podemos observar com nitidez que o critério utilizado por J.S.B. para legitimar a norma no âmbito
da ortoépia é o critério social. A pronúncia da corte lisboeta é claramente tomada como parâmetro de
correção em detrimento da pronúncia de outros estratos sociais, considerados de maneira depreciativa como
rústicos. Ao final da seção, o gramático firma a sua avaliação negativa a respeito das variantes de pronúncia

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A norma linguística

propondo, como vemos na Figura 2 logo abaixo, uma metodologia de ensino de pronunciação realizada a
partir da leitura de textos impressos, o que, mais uma vez, atesta como parâmetro de correção o uso
linguístico das classes socioeconômica e culturalmente privilegiadas, isto é, das classes que estão imersas em
uma cultura letrada. Vejamos em seguida a consideração da norma no âmbito do estudo ortográfico.

Figura 2 – Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 54)

b) Orthographia
 Ortografia dos ditongos nasais
J.S.B. coloca como norma que, nos ditongos em que houver confusão entre os sons “o” e “u” nas
prepositivas, deve-se escolher sempre a grafia em “o”, e naqueles cuja sonoridade oscilar entre “e” e “i”,
deve-se optar por “e” nos ditongos “õe” e “ẽe”, e por “i” caso sejam os ditongos “ãi” e “ũi”. Segundo o autor
(p. 63), assim o atestam as escrituras mais autorizadas dos antigos escritores.
Em contrapartida, o gramático afirma que as más escrituras cometem o equívoco de escrever os
ditongos nasais, sem qualquer confusão de pronúncia, como se fossem ditongos simples, escrevendo irmam

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Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça

no lugar de irmão, por exemplo. Tais escrituras de má qualidade ainda cometem o erro de grafarem com “n”,
sinal de nasalidade, nomes que deveriam ter o til sobre a prepositiva do ditongo. Assim, escrevem saons no
lugar de sãos ou tostoens no lugar de tostões (p. 64). Nesse caso, podemos perceber que o gramático legitima
a norma ortográfica que está a ser apresentada, tomando, enquanto contraexemplos, escritores avaliados
negativamente, o que não deixa de ser uma justificativa construída às avessas sobre o critério de autoridade.

 Ortografia de palavras de origem grega


Segundo J.S.B., o uso já tem autorizado a escrita de palavras como salmo e salteiro no lugar de
psalmo e psalteiro. Nesse ponto, vemos a sobreposição do critério estético sobre o critério histórico. O autor
afirma que a forma sem o “p”, apesar de produzir um distanciamento da origem do vocábulo, é melhor
porque privilegia a docilidade da pronúncia (p. 71).

 A grafia do som de “ô” seguida de consoantes líquidas


Adotando novamente um critério estético, J.S.B. afirma que ao escrever o som do “ô” grande fechado
como “o” ou “ou” é indiferente aos ouvidos, sendo pertinente tanto a escrita louvár quanto lôvar. Porém,
acrescenta o gramático, quando ao “ô” se seguem as consoantes “l”, “r” ou “s”, na medida em que são
consoantes líquidas, é melhor grafar em “ô” do que em “ou”; isto é, prefere-se louvôr, sôldo e gôsto a louvour,
souldo e gousto (p. 78).
Podemos perceber então que, no escopo das regras ortográficas, o critério social não foi
prevalecente como na apresentação das regras em ortoépia. Em compensação, embora as justificativas sociais
não tenham sido relevantes para a atribuição de preferência entre duas possibilidades, na seção dedicada à
ortografia, por diversas vezes, J.S.B. sugere que os demais falantes da língua estão em um estágio deficitário de
domínio das regras ortográficas se comparados aos falantes cultos. Ou seja, o gramático acaba manifestando
que os falantes não pertinentes ao círculo social privilegiado não sabem a própria língua e, assim, ressalta o
propósito pedagógico da gramática. Vejamos nas Figuras 3 e 4 dois trechos em que o autor reproduz essa
ideologia que sustenta a própria normatividade da gramática.

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A norma linguística

Figura 3 – Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 78)

Figura 4 – Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (J.S.B.: 1822, p. 82)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando inicialmente as concepções de norma e verificando o mecanismo pelo qual uma
dessas normas, a prescritiva, é legitimada no discurso gramatical, pudemos perceber que, a despeito da
consideração de que as normas linguísticas são variantes de natureza social que se alinham às possibilidades
do sistema, essas normas estão sujeitas a avaliações, também sociais, que acabam por lhes conferir um caráter
paradoxal de não língua. Nessa posição, sustenta-se uma ideologia que confere poder de autoridade àqueles
que dominam a variante escolhida como representante única da verdadeira língua, os social e culturalmente
privilegiados. E a gramática normativa, então, firma a sua posição pedagógica: ensinar a língua portuguesa
àqueles que a corrompem pelo mau uso. Nesse contexto, o conceito de norma implícita ou norma objetiva,
vinculada a um estrato social, mostra-se completamente esvaziado. Podemos ver isso em evidência,
considerando a definição dada por Jerónimo Soares Barbosa às duas partes da gramática que consideramos
aqui: a Orthoepia ensina a distinguir, e a conhecer os sons articulados, proprios da Lingua, para bem os
pronunciar (p. 01) e a Orthographia he a Arte de escrever certo (p. 56).

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Priscila Lacerda & Cynthia Vilaça

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ROBINS, Robert H. Pequena história da linguística. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1983, p. 7-160.

____________________________________
Data de submissão: dez./2014.
Data de aprovação: fev./2015.

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A CONSTRUÇÃO COMPLETIVA COM “SER +
ADJETIVO AVALIATIVO”

Nilza BARROZO DIAS 12

RESUMO
Este artigo aborda as construções impessoais com verbo ser + adjetivos avaliativos no português do Brasil,
numa abordagem centrada no uso de base funcionalista e com contribuições da semântica cognitiva. A
construção completiva impessoal é constituída de oração matriz seguida de oração completiva na função de
sujeito oracional. Embora haja a expressão do sujeito oracional, podemos perceber que a unipessoalização da
estrutura predicadora (ou oração matriz), geralmente em 3ª pessoa do singular, imprime um valor semântico
impessoal à construção. Verifica-se a manifestação da (inter)subjetividade na avaliação e na ordem em que a
oração matriz ocorre na sentença. Podemos também observar que a construção completiva impessoal é usada
para contrastar informação com o entorno discursivo. E, finalmente, o controle do falante sobre o sujeito da
completiva não se efetiva, de modo categórico, nas construções com a forma infinitiva.

PALAVRAS-CHAVE: Impessoalidade. Completiva. Avaliação.

ABSTRACT
This article discusses the impersonal constructions that employ the verb ser (to be) + avaliative nouns within
Brazilian Portuguese. Herein, the analysis of these verb constructions focuses on their use from a functionalist
perspective, which includes insights on the issue from the field of cognitive semantics. The impersonal
completive construction is composed of a matrix clause followed by a completive clause that functions as a
clausal subject. Although the clausal subject is expressed, one can perceive that the unipersonalization of the
matrix clause, commonly in the third person singular tense, imbues the structure with an impersonal semantic
quality. It is possible to note the influence of (inter)subjectivity in the avaliative modality and in the order in
which the matrix clause occurs in the sentence. One may also note that the impersonal completive
construction is employed in order to contrast information with the discourse that surrounds it. And finally the
speaker´s control over the subject of completive clause does not occur in categorically, in constructions with
the infinitive form.

KEY-WORDS: Impersonality. Completive. Avaliative.

1
Doutorado em Linguística pela Unicamp e Pós-Doutorado na Universidade Católica Portuguesa/Braga. Atua na Universidade
Federal Fluminense/Niterói/RJ. Desenvolve pesquisa nas áreas de Linguística Funcional e Semântica Cognitiva.
2
A aluna Thaís Santanna Marcondes participou como colaboradora de pesquisa, recebendo bolsa de Iniciação Científica da
FAPERJ.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

INTRODUÇÃO
Objetiva-se analisar as construções completivas constituídas de uma oração matriz com verbo ser +
adjetivo avaliativo, que seleciona uma oração com função de sujeito. As orações matrizes expressam uma
modalidade avaliativa, podendo os adjetivos serem factivos ou não factivos (DUARTE, 2003, p. 602).
Considerando-se as abordagens de Neves (2002, p. 151) e Castilho (2010), tais construções fazem parte do
grupo das orações encaixadas completivas, para a primeira, e do grupo das orações subordinadas substativas,
para o segundo. Para Langacker (2011), a construção em estudo faz parte do grupo das construções
impessoais. Desse modo, nossa análise se apoiará no suporte Funcionalista com contribuições da Linguística
Cognitiva. Isto posto, denominaremos as construções em foco de completivas impessoais.
Consideramos que as construções completivas impessoais apresentam uma oração matriz com
realização morfossintática unipessoal e verbos em 3ª pessoa do singular, o que imprime um valor semântico
impessoal à construção. O verbo ser seguido de um adjetivo avaliativo expressará subjetividade do falante ou
jornalista em relação à oração ou sentença completiva. E a construção completiva será utilizada pelo falante
para contrastar, semanticamente, a impessoalidade da construção versus o entorno discursivo mais pessoal.
As sentenças completivas poderão realizar-se no modo subjuntivo ou na forma de infinitivo. A forma
primeira projetaria o fato expresso na oração completiva como no mundo irreal e a segunda forma projetaria
para o mundo potencial. Decorrente da forma verbal utilizada, podemos considerar o controle do falante
sobre o sujeito sintático da completiva impessoal. Assim, espera-se que o sujeito da forma infinitiva seja
correferencial ao sujeito da sentença maior ou ao próprio falante.
E, finalmente, pretende-se verificar (i) algumas relações que podem ser estabelecidas entre os
adjetivos selecionados na predicação e o entorno linguístico, marcado pela evidencialidade; e ainda (ii) da
interferência do entorno linguístico no continuum estabelecido pelo falante da construção completiva que
seja assinalada como mais impessoal até aquela com características menos impessoais. Podemos considerar
que, quanto mais detalhado e específico for o entorno evidencial, menor grau de impessoalidade haverá na
construção completiva.

1 A CONSTRUÇÃO COMPLETIVA
A combinação de orações pode ocorrer nas formas paratática, hipotática ou de encaixamento
(HALLIDAY, 1985). O nosso foco está na combinação de orações, quando uma ou mais delas funcionam
como constituintes de uma oração predicadora, aqui denominada de oração matriz. Selecionamos para a
nossa análise a oração matriz constituída de [é + adjetivo], com foco nos adjetivos de avaliação (NEVES,

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Nilza Barrozo Dias

2000), ou adjetivos avaliativos factivos/não factivos (BRITO, 2003). A oração matriz é + adjetivo avaliativo
projeta um argumento na forma oracional de sujeito. São as orações encaixadas completivas subjetivas para
Neves (2002, p. 151) e subordinadas substantivas para Castilho (2010). Entram no grupo das completivas com
argumento oracional em relação de constituência com a oração matriz ou principal.
Mathiessen e Thompson (1988) apontam os diferentes tipos de dependência no tratamento da
subordinação. Destacam as orações dependentes que representam opções organizacionais e orações que
estão ligadas à função de constituência. No primeiro grupo, temos as orações adverbiais, as participiais e as
adjetivas apositivas e, no segundo grupo, temos as orações relativas restritivas, as orações com função de
complemento. Embora haja a função de constituência da oração em estudo, que exerce uma função de
dependência gramatical, podemos considerar que, em termos pragmáticos, todo enunciado é dependente, já
que requer contexto para interpretação plausível com o uso em foco.
Neves (2000, p. 340-341) considera, no estudo das conjunções integrantes, as orações substantivas,
que são encaixadas ou integradas em outra oração matriz ou principal, equivalendo a um sintagma nominal.
Ao tratar dos subtipos semânticos de orações substantivas, a autora aborda um grupo significativo de
completivas que apresenta natureza factual, isto é, tem predicado do tipo denominado factivo. A oração com
função de sujeito, de modo mais evidente, “corresponde a um sintagma nominal, já que, na maioria dos
casos, ela está por uma estrutura do tipo de ‘o fato de’”, como em ‘É lamentável que os grupos folclóricos se
profissionalizem no mau sentido’, por ‘É lamentável o fato de os grupos folclóricos se profissionalizem no
mau sentido’. Essa mesma correspondência poderá ser observada no caso do sujeito oracional estar na forma
infinitiva, já que é muito comum que predicados com sujeito oracional apresentem factualidade na oração
sujeito. Mas podemos encontrar, na construção completiva, uma interpretação factiva menos nítida e, nesse
caso, a decisão será feita pelo modo do verbo da oração sujeito. Assim, segundo a autora, “a pressuposição de
factualidade é obrigatória se o modo verbal da oração completiva for o finito, mas é opcional ou ausente, se
for o infinitivo”.
Castilho (2010, p. 359-362) destaca, na análise da Língua Portuguesa do Brasil, as construções com
sujeito oracional como subordinadas substantivas, cujas sentenças matrizes (ou principais) apresentam a
propriedade de projeção de argumento sujeito. O autor propõe uma classificação com base nas propriedades
semânticas dessas sentenças. Assim, o adjetivo ou verbo da sentença matriz (ou principal) poderá indicar as
seguintes possibilidades: modalizadores epistêmicos asseverativos (o falante apresenta o conteúdo da
proposição numa forma afirmativa ou negativa, ou ainda numa interrogativa), modalizadores epistêmicos
dubitativos (o falante expressa dúvida em relação ao conteúdo proposicional), os modalizadores deônticos (o

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

falante considera obrigatório o conteúdo proposicional) e, ainda, o autor destaca a sentença matriz com
modalização pragmática (ou avaliativo para alguns autores).

2 A REALIZAÇÃO DA ORAÇÃO MATRIZ


A construção completiva com matriz ser + nome avaliativo apresenta uma morfossintaxe bastante
peculiar. Encontramos o verbo ser em 3ª pessoa do singular, no modo indicativo. Há uma potencialização do
descomprometimento semântico do falante em relação à informação expressa na oração completiva sujeito.

2.1 O significado avaliativo

O juízo avaliativo tem suas primeiras tentativas de definição na filosofia analítica da moral.
Detalharemos alguns pressupostos teóricos deste tipo de filosofia baseados no trabalho de Lima (1989).
Um dos nomes mais significantes dessa corrente que se aprofundou em avaliação foi C. L.
Stevenson. Este deu continuidade à teoria emotivista fundada por Ayer, que consistia em tomar as palavras
avaliativas como termos que expressam emoções e servem para despertar essas mesmas emoções no
interlocutor. Em resumo, seriam estímulos para a ação.
Desenvolvendo essa teoria, Stevenson esboçou o que ficou conhecido como “modelos de trabalho”
(definições aproximadas do significado dos termos). Nestes modelos, teríamos uma parte assertativa (aprovar
ou desaprovar algo), que descreveria a atitude do falante; e uma parte imperativa (aprove ou desaprove você
também) – que ficou sendo chamada, posteriormente, de parte emotiva, pois, segundo Stevenson, os termos
deveriam exercer uma influência apenas sutil –, que modificaria ou intensificaria a atitude do ouvinte (apud
LIMA [1989]).
Sendo assim, um termo avaliativo seria composto por dois componentes: o descritivo, que se referiria
ao estado psicológico de aprovação/desaprovação do falante; e o emotivo, que residiria no poder destes
termos de manifestarem emoções ou atitudes do falante e/ou evocarem tais emoções ou atitudes no ouvinte.
O autor designou os componentes como “significado descritivo” e “significado prescritivo”.
Para Lima (1989), a razão pela qual existem expressões avaliativas está relacionada com o fato de
nós nos encontrarmos frequentemente perante situações em que necessitamos fazer uma escolha. E, mesmo
nos contextos em que não há a questão da escolha, avaliar seria expressar se o objeto teria tido ou não a
nossa preferência se o contexto fosse de escolha. Esta seria a explicação para a existência da parte prescritiva
de um termo avaliativo, que nos permitiria recomendar ou condenar algo ou alguém.

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Nilza Barrozo Dias

O autor também observou que um juízo avaliativo não prescreve só para o momento, mas indica
qual seria o sentido de qualquer prescrição do falante em qualquer outra situação semelhante à primeira nos
aspectos relevantes. Portanto, os juízos avaliativos envolvem prescrições universais.
Já a parte descritiva de um termo avaliativo pressupõe que o objeto a que se aplica satisfaça certa
descrição, possua certas propriedades que constituem o critério para adequadamente recomendar ou
condenar algo.
Ao traçarmos um paralelo com a Linguística Sistêmico-Funcional, encontramos o trabalho de Martin
e White (2007), que discutem a avaliação na interação comunicativa. Os autores focam o interpessoal na
linguagem, ou seja, o modo pelo qual os falantes se posicionam diante do mundo e diante daqueles com
quem se comunicam. A teoria trata, principalmente, dos recursos linguísticos relacionados ao poder
(igualdade ou não de acesso à possibilidade de realizar escolhas, tomar decisões e comunicar-se) e à
solidariedade discursiva (disponibilidade maior ou menor de significados para troca numa interação e
explicitação maior ou menor desses significados), subdivididos em três grandes categorias: a atitude, o
engajamento e a gradação. Nossa pesquisa se concentrará na categoria atitude, através da qual o falante
avalia entidades, estados de coisas e acontecimentos. É subdividida em apreciação, afeto e julgamento.
Na Apreciação, os autores/falantes tomam uma posição em relação a coisas, forma, artefatos;
expressam reações a determinados elementos de valor agregado; emitem um valor intersubjetivo ou uma
avaliação para participantes e para processos por referência tanto a respostas emocionais quanto para sistemas
culturalmente determinados.
No Afeto, encontramos respostas emocionais, realizadas através de reações de processos mentais e
através de relações atributivas de afeto. Cada significado está alojado em uma escala de força, que vai do grau
mais baixo para o mais alto.
Já no Julgamento, há a realização da avaliação de comportamento humano, positivamente ou
negativamente, em referência a normas institucionalizadas, determinadas por valores sociais e culturais.
Então, o falante emite uma avaliação das ações dos participantes da interação, com base nas regras de padrão
comportamental, que definem regulamentos, expectativas sociais e sistemas de valores. O comportamento
pode ser visto como moral/imoral; legal/ilegal; aceitável/não aceitável.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

2.2 Os adjetivos

Para Neves (2000), os adjetivos de valor semântico avaliativo estão na subclasse de adjetivos
qualificadores:
Esses adjetivos indicam, para o substantivo que acompanham, uma propriedade que
não necessariamente compõe o feixe das propriedades que o definem. Diz-se que
esses adjetivos qualificam o substantivo, o que pode implicar uma característica mais,
ou menos, subjetiva, mas sempre revestida de certa vaguidade. (NEVES, 2000, p. 184-
185)

Além disso, para a autora, os adjetivos qualificadores possuem características ligadas ao próprio
caráter vago que se pode atribuir à qualificação. Eles podem ser graduáveis e intensificáveis. Podem ser
usados pelo falante para expressarem diversos valores semânticos: qualificadores ou qualificativos e
classificadores ou classificatórios. Os valores semânticos expressos pelos qualificadores são: (a) de
modalização deôntica e epistêmica; e (b) de avaliação, ou avaliação psicológica, na direção da coisa
nomeada para o falante e do falante para a coisa nomeada. Se considerarmos a avaliação de propriedades
intensionais, os adjetivos exprimem propriedades que descrevem o substantivo em qualidade (eufóricos:
indicação para o positivo, para o bom, ou disfóricos: indicação para o negativo) e em quantidade (eles são,
em princípio, neutros). (NEVES, 2000, p. 186-190)
Em outra perspectiva, Castilho (2010) considera que os adjetivos avaliativos estão no grupo dos
“predicativos”. Porém, o autor não os insere na subclasse de adjetivos qualificadores, mas na subclasse de
adjetivos modalizadores. Nesta divisão, teríamos que os modalizadores podem ser de três tipos: epistêmicos,
deônticos e discursivos. E os avaliativos estariam incluídos neste último tipo:
Certos adjetivos, também descritos como psicológicos, têm a propriedade de predicar
o substantivo expresso no enunciado, e também um dos participantes do discurso não
expresso no enunciado, em geral o próprio falante. Esses adjetivos atuam
bidirecionalmente, ou seja, são biargumentais. Tanto numa direção quanto na outra, o
que se observa é que o usuário está emitindo através desses adjetivos um juízo sobre o
sentido do substantivo e sobre um participante, tendo como pano de fundo o referente
dado pelo substantivo. (CASTILHO, 2012, p. 525)

Brito (2003, p. 376-387) classifica os adjetivos em duas grandes categorias: os adjetivos


modificadores ou qualificativos que expressam qualidades, estados, modos de ser de entidades denotadas
pelos nomes (menino lindo, casa grande, vestido vermelho, etc.) e os adjetivos relacionais, ou seja, os
adjetivos temáticos e referenciais, geralmente denominais, que representam argumentos dos nomes com que

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Nilza Barrozo Dias

são combinados, recebendo papéis temáticos diversificados: de Agente; de Experienciador; de Tema e de


Possuídor. Os qualificativos geralmente apresentam antônimos, os relacionais não. A autora destaca que há
adjetivos modificadores do significado ou intensão dos nomes, não os qualificando propriamente, mas
exprimindo valores ligados à quantificação e intensidade (principal, mero, pleno) e adjetivos negativos e
conjecturais (falso, presumível). Há ainda os adjetivos modais e os temporais-aspectuais. Quanto aos
modificadores ou qualificativos, pode-se fazer a distinção entre graduáveis e não graduáveis. Esta distinção é
importante para fazer a diferença entre adjetivos que designam qualidades ou propriedades que admitem uma
escala de valores e os que não possuem essa propriedade, sendo denominados por Demont (1999, p. 144-
146) de adjetivos absolutos (apud, BRITO [p. 377]). Os modificadores ou qualificativos podem ocorrer em
posição atributiva como adjetivos adnominais ou em posição predicativa.
Duarte (2003, p. 602) propõe que as completivas selecionadas por adjetivos tenham três classes de
adjetivos: a) os avaliativos factivos: agradável, angustiante, bom, impressionante, justo, lamentável,
desagradável, etc.; b) os avaliativos não factivos como benéfico, complicado, difícil, fácil, simples, etc.; e c) os
modais como impossível, necessário, obrigatório, possível.

3 CONSTRUÇÃO COMPLETIVA IMPESSOAL E MARCAÇÃO DA


(INTER)SUBJETIVIDADE
Achard (1993) coloca as construções impessoais separadas das construções com complemento
oracional, com destaque para as construções com modalizadores. As construções impessoais ocorrem, no
francês, com um sujeito il e podem se apresentar3 como impessoais deônticas (o falante indica que um evento
especifico deve ocorrer), impessoais epistêmicas (o falante apresenta a probabilidade de ocorrência de certo
evento), impessoais de reação (o falante apresenta reação a um certo evento) e impessoal avaliativa (o
falante faz avaliação de um evento particular). As duas últimas estão inter-relacionadas. O autor destaca que,
embora haja similaridades entre as construções completivas com modalizadores e as construções impessoais,
as impessoais são diferentes daquelas, porque a cláusula-complemento pode ser conceptualizada pelo falante,
mas pode ser também construída pelo ponto de vista de outro conceptualizador. Tais construções são
consideradas de natureza existencial, ou, mais especificamente, pertencem a eventos existenciais ou a
proposições na concepção de realidade de algum falante.

3
São citados os tipos da língua francesa que estejam mais próximos da língua portuguesa. Há mais dois tipos no francês: existencial
abstrato e “raising constructions”.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

Dias (2013) analisa a construção completiva impessoal com verbo ser + nome no português do
Brasil. Selecionou as matrizes com é preciso e é claro por serem as mais recorrentes nos textos investigados,
numa abordagem Funcionalista, com contribuições da Semântica Cognitiva. Para caracterizar melhor a
compreensão da referida construção, a autora investiga as modalidades deôntica e epistêmica da oração
matriz e a ordem em que as orações se posicionam na construção completiva. Aponta também que, embora
haja sujeito oracional expresso, o falante opta pela forma sintática unipessoal (estrutura predicadora em 3ª
pessoa do singular), que dá um matiz semântico impessoal à estrutura predicadora alçada à posição inicial da
construção. Para a autora, a construção completiva impessoal fortalece a perspectiva do
falante/conceptualizador, que tece um jogo de distanciamento (discursivo e físico/social/temporal) entre a
cena veiculada no complexo impessoal, de valor semântico impessoal, e o entorno caracterizado com valor
semântico mais pessoal. Desse modo, o falante minimiza a sua participação no evento, corrigindo-a para se
descomprometer.

4 AS FORMAS VERBAIS DAS ORAÇÕES COMPLETIVAS COM FUNÇÃO DE

SUJEITO

Para Duarte (2003, p. 599-602), as completivas verbais apresentam a seleção dos modos indicativo e
subjuntivo a depender dos verbos selecionados para as completivas verbais. O modo indicativo pode, por
exemplo, ser selecionado por um verbo epistêmico (como achar, considerar, acreditar, etc.) ou por um verbo
psicológico, no caso das completivas preposicionadas. Já o modo conjuntivo ocorre nas completivas verbais
como argumentos externos de verbos psicológicos factivos e em completivas selecionadas por verbos
inacusativos como bastar e convir. Ocorre, ainda, nos argumentos internos de declarativos de ordem, volitivos
e causativos. As frases completivas nominais não preposicionadas selecionadas por núcleos adjetivais
epistêmicos exibem o modo indicativo. A seleção do indicativo é obrigatória para os derivados de adjetivos e
verbos epistêmicos.
Para a autora, não existe uma relação direta entre a seleção de modo nas completivas e diferentes
tipos de modalidade expressos por certas classes de verbos factivos ou por predicados de crença. A proposta
repousa na distinção entre predicados que introduzem asserções – (a) predicados assertivos – e predicação
que não introduz asserções – (b) predicados pseudo-assertivos. Predicações (b) “não introduzem asserções,
utilizando-se para exprimir avaliações ou para acrescentar conteúdos independentes da própria asserção
como acontece com os predicados factivos avaliativos” (DUARTE, 2003, p. 603). Assim, o modo indicativo é

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Nilza Barrozo Dias

selecionado por predicados assertivos e o modo subjuntivo, por predicados pseudo-assertivos4. Além do mais,
as completivas nominais/adjetivas podem exibir o modo subjuntivo. Este é o caso de completivas selecionadas
por adjetivos avaliativos factivos, tais como “justo”, “lamentável”, “bom”, etc.
Ao tratar das formas finitas e das não finitas de infinitivo (DUARTE, 2000, p. 593-605), nos
comentários a respeito da completiva impessoal, a autora trabalha com construções de controle que podem
denominar-se como controle de sujeito (quando é o sujeito da frase superior que controla a referência do
sujeito nulo da completiva de infinitivo não flexionado), controle de objeto direto e indireto (quando é o
objeto direto ou indireto da frase superior que fixa a referência do sujeito nulo da completiva de infinitivo não
flexionado). A autora considera que as construções completivas com matriz ser + difícil (“É difícil engolir
insultos desses”) apresentam uma oração completiva com função de sujeito – “engolir insultos desses” – e o
sujeito, foneticamente nulo, da completiva sujeito recebe interpretação arbitrária, ou seja, não tem uma
referência definida (p. 635).
Segundo Achard (1998), a diferença no uso dos modos indicativo e subjuntivo das contruções
completivas, de um modo geral, está associada ao grounding, ou seja, à relação entre a cláusula completiva e
a situação discursiva. Flexão de indicativo assinala que a cláusula-complemento é vista como uma
proposição, já que a posição do elemento é vista como relativa à concepção de realidade do
conceptualizador. O modo subjuntivo indica que a cláusula-complemento não é considerada relativa a uma
realidade, mas sim relativa a um espaço mental especifico relevante para o sujeito considerado. Assim, se o
verbo da oração matriz é compatível com a concepção do complemento como uma proposição, a oração
completiva será expressa no indicativo. A diferença entre as formas verbais das completivas está na
perspectiva: os complementos finitos sinalizam uma concepção objetiva da cena e apresentam, como reflexo
desta perspectiva, um alto grau de independência das completivas em relação à cláusula matriz. Já a forma
infinitiva da completiva sinaliza a pespectiva subjetiva da cena da completiva, em particular, do sujeito da
completiva. Nesse caso, os sujeitos S1 e S2 são correferenciais na língua francesa.
Vesterian (2014) aborda a construção impessoal com verbo ser no português europeu. O autor
analisa o valor semântico do conjuntivo nos complementos deônticos e avaliativos. Os impessoais
relacionados a considerações epistêmicas demandam o modo indicativo, enquanto a negação dessas
expressões demanda o modo subjuntivo. As expressões impessoais com ser podem desginar conteúdo

4 As propriedades gramaticais que permitem identificar (a) e (b) são: (i) os predicados assertivos permitem coordenação do tipo
adversativo que afetem as completivas; (ii) os predicados assertivos admitem réplicas elípticas correspondentes à polaridade da
frase superior ou à polaridade da completiva, já as pseudo-assertivos admitem respostas fragmentárias correspondentes à
polaridade da frase superior; e (iii) só os predicados assertivos admitem fragmentos oracionais como complementos.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

conceptual com alto grau de factividade. Ou seja, elas pressupõem o conteúdo conceptual da oração
completiva. O uso do modo subjuntivo pode, em determinadas expressões com ser, expressar um evento
considerado pelo falante como verdadeiro, ou seja, ele pressupõe o conteúdo do evento-complemento. Nas
expressões de natureza deôntica, o modo subjuntivo é motivado pelo fato de que as expressões deônticas
tendem a ter projeção futura (como é o caso do verbo querer). Nos exemplos deônticos citados pelo autor, a
oração principal requer uma ação futura e, logo, o evento da completiva é concebido como não pertencente
à realidade do falante, mas a uma realidade preferida. Embora reconheça as considerações acerca do modo
conjuntivo, o autor propôe a noção de “domínio”, isto é, o modo conjuntivo designa eventos que são
localizados fora do “domínio do conceptualizador”.

5 O ENTORNO LINGUÍSTICO
Observamos, nos corpora examinados, que devemos atentar para a evidencialidade utilizada pelo
falante ou jornalista para justificar o uso da construção completiva impessoal. Assim, encontramos, no
entorno linguístico, elementos que detalham, especificam ou preparam o leitor ou ouvinte para a expressão
geral ou não pessoal da construção completiva impessoal. Ao fazer o contraste entre o específico versus o
geral, o pessoal versus o impessoal, o falante ou jornalista se descompromete, se distancia, de algum modo,
da informação veiculada, marcando a subjetividade, delineando-a em gradação e mostrando uma escala de
acessibilidade.
Chafe (1986) analisa o conceito de evidencialidade de acordo com uma escala de níveis de
confiabilidade do conhecimento. Para ele, o conhecimento é uma informação cujo status pode ser qualificado
de uma forma ou de outra por marcas de evidencialidade. De acordo com tal escala, o falante poderia
transmitir determinado conhecimento de forma mais confiável ou menos confiável.
Para o autor, há diferentes modos de conhecimento, isto é, diferentes formas e fontes de informação,
com as quais o falante adquiriu determinado conhecimento e que podem ser refletidas em seu discurso. Os
modos de conhecimento seriam a crença, cuja fonte é problemática; a indução, cuja fonte é a evidência
propriamente dita; hearsay, cuja fonte é a linguagem; e a dedução, cuja fonte é uma hipótese.
A fonte de informação da crença é problemática porque, segundo Chafe (1986), as pessoas creem
em determinadas coisas ou porque alguém cujo ponto de vista elas respeitam crê também; ou porque, por
qualquer outro motivo que seja, elas simplesmente querem crer naquilo. Ao contrário da crença, a indução é
um modo de conhecimento em que a evidência ocupa um lugar central na informação. Por vezes, notamos,

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Nilza Barrozo Dias

na fala das pessoas, que a indução foi inferida, mas elas não indicam de qual natureza foi a evidência. Essa
pode ser uma estratégia do falante para convencer seu interlocutor da avaliação que ele faz.
Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007, p. 105-114) apresentam a gramaticalização de diz-que e
apontam o comportamento de operador evidencial, ou seja, de codificador da fonte indireta ou menos direta
do conhecimento asseverado na proposição no português do Brasil. Assim, a evidência pode ser feita a partir:
(i) da experiência pessoal indireta (intenção comunicativa que se manifesta na negociação entre usuários da
língua na interação verbal que vai exigir a presença de elementos indicadores da origem do conhecimento
asseverado); (ii) de inferência (o falante observa um determinado resultado no discurso, invoca uma lei (da
linguagem) e infere que pode ser o mesmo caso); (iii) de ouvir-dizer (experiências evidenciais indiretas: o
usuário pode veicular um conhecimento de domínio cognitivo geral, ou uma informação sobre a qual não
pode, não sabe ou não quer revelar a fonte); (iv) de reforço de verdade geral ( a priori, o conhecimento
compartilhado por uma comunidade de fala é uma asserção realis e não precisa ter a origem explicitada
gramaticalmente); (v) de boato (uma informação que não tem origem definida não tem credibilidade); (vi) de
especulação (apenas o enunciador experimenta a evidência, só existe na mente dele).

6 METODOLOGIA
Após a releitura da base teórica do Funcionalismo americano, com a contribuição das
categorizações semânticas da Linguística Cognitiva, levantamos as construções completivas impessoais com
ser + adjetivos avaliativos. Fizemos uma análise qualitativa dos dados que permitisse justificar o uso da
avaliação como um aspecto importante na implementação da subjetividade. Ampliamos a investigação com a
análise dos seguintes tópicos: tipos de adjetivos avaliativos, posição das orações, entorno linguístico, modo
subjuntivo ou forma infinitiva das completivas; controle do falante sobre o sujeito da completiva; graus de
impessoalidade decorrentes do entorno linguístico.
Os corpora, da modalidade escrita, são: (i) revista Veja, do ano de 2009 e 2010; (ii) textos do
português antigo, séculos XIX a XX; e (iii) discursos dos deputados da Câmara, do ano de 2009 a 2010. Estão
em andamento análise de textos do período intermediário.
Para a análise dos textos escritos, selecionamos acervos on-line. O acervo inicial foi o da Revista
Veja, que se deu por acesso ao seguinte site: <www.veja.abril.com.br/acervodigital>. Em seguida, visitamos o
acervo on-line da Câmara dos deputados, que se deu por acesso ao seguinte site:
<http://cmrj2.camara.rj.gov.br/>.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

Utilizamos o programa de computador “Gadwin Print Screen”, disponível no site


<www.gadwin.com/download>, para capturar a imagem, após utilizar a ferramenta localiza do Windows, em
que indicamos ao programa o tipo de oração predicadora a ser localizado.
A análise diacrônica tem como foco textos, especialmente as cartas, retirados do site do PHPB
(<https://sites.google.com/site/corporaphpb>). Este projeto tem como coordenador geral o Professor Ataliba
Castilho/Unicamp/SP, e o capítulo sobre adjetivos faz parte deste projeto.
Buscamos, nos corpora, as construções completivas impessoais com [SER + NOME] e obtivemos os
seguintes adjetivos avaliativos factivos e não factivos (DUARTE, 2003, p. 602) na posição de predicativo:
indiscutível, inegável, melhor, verdade, indispensável, ridículo, forçoso, natural, explicável, justo,
(des)agradável, lamentável, bom, doloroso, fácil, útil, original e difícil. Alguns deles não ocorreram no acervo
da Revista Veja, e no acervo da Câmara. As construções completivas com é + bom e é + justo foram as mais
recorrentes, até o momento. A investigação continua em andamento.

7 ESTUDO DE CASOS
Apresentaremos algumas ocorrências para ilustrar as construções completivas impessoais, ser +
adjetivo avaliativo5. É importante destacar que a ordem em que as orações ocorrem é, preferencialmente,
oração matriz + completiva sujeito. Para Traugott (2010, p. 21), elementos linguísticos subjetivados são
usados em posições cada vez mais periféricas. Normalmente, a mudança é para a esquerda, nas línguas VO,
e, para a direita, nas línguas OV. Em Inglês muitos marcadores discursivos estão associados com a periferia da
esquerda (algumas vezes com a direita), e seu uso nessa posição pode ser correlacionado com a subjetivação
do seu significado (ver, por exemplo, Traugott e Dasher [2002]).
(1) Coube ao deputado Silvio Costa, do PMN (sim é um partido) de Pernambuco,
verbalizar em público o que seus cada vez mais numerosos colegas de baixo clero
conversam às escondidas. Disse ele, sobre as ameaças de proibir as ilegalidades:
“Quando entrei aqui, falaram que a cota era minha. Não é justo [proibir minha mulher
e meus filhos de virem a Brasília comigo]. Querem que eu me separe para continuar
na política? Vamos derrubar essa palhaçada no plenário.” O deputado Domingos
Dutra, do PT do Maranhão, resumiu bem o espírito do baixo clero: “Daqui a pouco,
vão querer que eu ande de jegue, more em casa de palafita e mande mensagem por
pombo-correio.” Não é preciso. Basta se comportar como um nobre parlamentar.
(Revista Veja, 29/04/2009, edição 2110, p. 73, Brasil)

5
As orações completivas impessoais estão colocadas entre colchetes. Poderão ser denominadas de oração ou sentença. A oração
matriz estará em negrito.

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Nilza Barrozo Dias

O exemplo (1) representa a avaliação do jornalista manifestada na oração matriz da construção


completiva. Neste caso, o segmento matriz, constituído de ser + justo, ocupa a primeira posição da
construção, é representado pela forma morfossintática unipessoal, verbo ser em 3ª pessoa do singular, seguida
de um adjetivo qualificativo (NEVES, 2000) ou avaliativo factivo (DUARTE, 2003), manifestando a
modalização avaliativa do deputado Sílvio Costa em relação à informação expressa na completiva com
função de sujeito oracional, com verbo no infinitivo: “proibir minha mulher e meus filhos de virem a Brasília
comigo”. Estamos diante de uma avaliação do tipo “julgamento”, segundo Martin e White (2005), já que o
falante avalia o comportamento humano em referência a valores sociais e culturais. Para o deputado, não é
justo impedir que sua família se afaste dele quando for solicitada a sua presença em Brasília.
E ainda podemos observar que a oração matriz com adjetivo factivo implica, por parte do deputado,
a pressuposição de que a proposição completiva é factual, isto é, o fato expresso na completiva é verdadeiro:
a proibição da ida de mulher e filhos para Brasília na companhia dele será mantida, já que a imposição vem
da Câmara de Deputados que regulamenta o referido impedimento.
Poderíamos traçar ainda a harmonia entre as orações matriz e completiva, já que o infinitivo
pressupõe a correferencialidade gramatical do sujeito. Observamos, contudo, que a completiva funciona
como sujeito da oração predicadora (ou matriz), mas o sujeito da completiva não faz referência ao deputado
Sílvio Costa, embora esteja no infinitivo. O sujeito de proibir é Ø, porém faz referência às restrições impostas
pelo regulamento da Câmara de Deputados.
Notamos, claramente, que a avaliação do deputado faz referência a uma proibição que traz, como
consequência, uma implicação negativa para a instituição familiar. E o deputado tenta oferecer como suporte
à sua avaliação uma pergunta que pretende convencer pelo sentido afetivo: “Querem que eu me separe para
continuar na política?”, funcionando como marca de evidencialidade do tipo indução. Além dessa evidência,
o jornalista aciona mais discurso reportado, aspeado, para dar suporte à construção completiva em foco. Para
Duarte (2003, p. 602-603), as orações completivas de infinitivo, selecionadas pela oração matriz com adjetivo
avaliativo factivo “é justo”, fazem parte do grupo de predicados pseudo-assertivos, utilizados pelo falante para
exprimir avaliações ou conteúdos independentes da própria asserção, por já estarem pressupostos.
A evidencialidade é observada nos discursos reportados, que dão suporte ao deputado – temos o
ouvir-dizer– e nas experiências diretas presenciadas pelo político, que o habilitam, naturalmente, a abordar o
assunto vivenciado (CASSEB-GALVÃO; LIMA-HERNANDES, 2007, p. 105-114).
(2) O paciente de uma cirurgia está sempre em uma circunstância extremamente
vulnerável. Para começo de conversa, ele está sedado, semidespido, longe dos amigos

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

e da família. Não tem testemunhas para acompanhar os procedimentos que vai sofrer.
Já o cirurgião vive a circunstância oposta. Ele está no total controle da situação. Ele
sabe o que fazer, comanda os procedimentos dos quais depende a vida do paciente.
Acho que se submeter a uma cirurgia é a maior demonstração de confiança que um
ser humano pode dar. É justo [que a pessoa em um momento desses tenha a
segurança de saber que tudo está sendo gravado.] (Revista Veja, 14/10/2009, edição
2134, p. 20, entrevista)

Como no primeiro exemplo, também temos a avaliação na oração matriz da construção completiva.
A oração matriz ocupa a primeira posição e representa a avaliação do falante em relação à informação
expressa na oração completiva sujeito, realizada com verbo no subjuntivo: “que a pessoa em um momento
desses tenha a segurança de saber que tudo está sendo gravado”. A avaliação instancia o tipo julgamento
(MARTIN & WHITE, 2007), em que o falante avalia o comportamento humano. Para ele, já que se submeter a
uma cirurgia é a maior demonstração de confiança que alguém pode dar, seria justo para com o paciente ter a
segurança de saber que tudo será gravado. Para Lima (1989), temos um avaliativo de significado prescritivo,
porque o adjetivo evoca emoção ou atitude no ouvinte.
Mais uma vez, o falante oferece, como suporte à sua avaliação, um entorno linguístico marcado por
informações compartilhadas acerca de cirurgia médica. Faz um jogo discursivo de confiança entre
comportamento de paciente versus comportamento de médico, inserindo um epistêmico atitudinal “acho”,
seguido de avaliativo “demonstração de confiança”, que antecedem a construção completiva de valor
semântico impessoal. A construção completiva impessoal representa toda e qualquer pessoa que tenha a
segurança de ter tudo gravado. O jogo discursivo constitui um tipo de experiência médico/paciente dentre
tantas outras experiências que podem ser gravadas por segurança. Com base em Chafe (1986), temos uma
evidencialidade do tipo indução. Para Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007), podemos considerar a
evidência a partir da experiência indireta.
O controle do sujeito da construção completiva não é efetuado. O sujeito da completiva é “a
pessoa”, de sentido genérico, indefinido, todo aquele que possa ter segurança com uma gravação. E este
sujeito não é correferencial ao sujeito da frase superior ou ao entrevistado. Parece-nos que, ao usar “justo”,
temos embutida uma forte questão de afeto.
(3) Agora, quanto à política é que estamos em completo desacordo. Elle diz-me <<que
não devemos ser carneiros de Panurgio, que é bom [mostrar aos chefes de que pau é
feita a canoa], que isto de estar pelo que elles dizem e querem é mau vêso, donde nos
tem vindo os males de que nos queixamos>> e mais umas tantas outras cousas, que

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Nilza Barrozo Dias

não me demovem do propósito feito de acompanhá-los seja para onde for. (Paraná,
Cartas de Leitor, Século XIX, Carta 262)

Temos uma oração matriz ocupando a primeira posição e que representa a avaliação do falante em
relação à informação expressa na completiva com verbo no infinitivo: “mostrar aos chefes de que pau é feita a
canoa”. Neste caso, há uma avaliação do tipo julgamento, em que o falante, presente no texto através de
discurso indireto, avalia um comportamento (MARTIN & WHITE, 2007). Para o leitor, o adequado seria “ele”,
pessoa sem referência definida, se impor diante dos chefes. E, antes de introduzir a oração avaliativa, para
reforçar a própria ideia, o leitor insere uma metáfora: “não devemos ser carneiros de Panurgio”. Vemos
marcada, no texto, a evidencialidade através do recurso do discurso reportado, o que constitui hearsay para
Chafe (1986) e ouvir-dizer para Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007).
O controle do sujeito da completiva não é exercido pelo leitor, ou pelo sujeito da frase maior. Mas
podemos inferir que alguém deve mostrar aos chefes algo, o que não credita ao leitor esta façanha. Assim,
embora a oração completiva esteja na forma de infinitivo, não há correferencialidade do ponto de vista do
locutor entre ele, o leitor, e o sujeito da oração completiva. Observamos que o leitor marca a expressão da
subjetividade através de um grau de distanciamento da cena evocada. Quanto mais potencialmente impessoal
e geral, mais teremos a expressão da subjetividade do leitor.
(4) Depois d’aquelle roubo do artigo O conservador de 1876, é natural [que se desse
um descanso ao façanhudo órgão e que o urso branco que acode pelo nome de Abreu
dormisse repleto sobre a presa que tinha feito]. (Impressos Paraíba, Século XIX, p. 67,
JD80ca, 29/04/1889)

No exemplo acima, temos uma avaliação na oração matriz, ocupando a primeira posição, em
relação às informações expressas nas duas sentenças completivas com função de sujeito, coordenadas entre
si, com verbos no modo subjuntivo: “que se desse um descanso ao façanhudo órgão e que o urso branco que
acode pelo nome de Abreu dormisse repleto sobre a presa que tinha feito”. Podemos considerar que os
conteúdos das completivas são independentes da própria asserção, o que caracteriza um avaliativo pseudo-
assertivo para Duarte (2003). Se aplicarmos a proposta de Neves (2000, p. 340-341): “Depois daquele roubo
do artigo, é natural o fato de que se dê um descanso ao façanhudo órgão; é natural o fato de o urso branco
que acode pelo nome de Abreu dormisse repleto sobre a presa que tinha feito.”, obteremos um valor factivo
impresso na sentença completiva.
Observa-se que há uma avaliação do tipo julgamento, com base em padrões de comportamento
social, segundo Martin & White (2007), em que, visto o que aconteceu (o roubo do artigo), o falante acha

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

naturais os dois comportamentos descritos. Encontramos, dessa forma, segundo Chafe (1998), uma
evidencialidade por indução, pois o falante nos mostra que o ocorrido é natural, devido ao que aconteceu
antes; ou, conforme Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007), temos uma experiência indireta do usuário,
compartilhada por uma comunidade de fala.
O falante não tem o controle do sujeito da completiva, cujos sujeitos gramaticais são representados
pelos sintagmas nominais “um descanso” e “o urso branco”, respectivamente, que apresentam uma referência
definida. O predicado “é natural” leva-nos a uma interpretação factiva das orações completivas, segundo
Neves (2000, p. 341), e a nitidez da interpretação depende, até certo ponto, do verbo da oração completiva.
Assim, as completivas na forma finita desencadeariam uma leitura mais factiva do que aquelas com infinitivo.
(5) [...] hoje devemos valorizar a democracia que temos. Ela é boa para qualquer país
que, neste momento, esteja submetido a uma ditadura. [...] Então, neste sentido, é
lamentável [que a política externa brasileira se paute não pelos valores universais da
esquerda brasileira, que sempre foi contra o fascismo, sempre foi contra a tortura e
sempre foi contra qualquer forma de ditadura militar, antidemocrática, de partido
único, fascista ou comunista, enfim, seja lá como for, mas sim por esses vínculos
promíscuos de compadrio com um regime sinistro como o regime teocrático que
oprime o povo do Irã.] (Vereador Alfredo Sirkis – agosto/2010)

O exemplo (5) instancia uma oração matriz – “é lamentável” – que seleciona uma completiva sujeito
(entre colchetes), constituída por uma estrutura correlata, conforme podem-se observar os correlatores (“não…
mas também”) grifados. A estrutura correlativa serve para colocar em evidência as informações apontadas
pelos correlatores (ROSÁRIO, 2012). A construção completiva impessoal é expressa por uma matriz,
constituída de verbo ser + adjetivo avaliativo factivo (DUARTE, 2003, p. 602), e uma representação
morfossintática unipessoal de 3ª pessoa do singular (NEVES, 1996), seguida de uma sentença completiva na
forma finita de modo subjuntivo.
Tradicionalmente, o modo subjuntivo é associado ao domínio de incerteza, de eventualidade. Com
esta matriz – “é lamentável” –, podemos considerar os predicados pseudo-assertivos (DUARTE, 2003) que não
introduzem asserções, mas são utilizados para exprimir avaliações ou para acrescentar conteúdos
independentes da própria asserção, uma vez que os mesmos já se encontram pressupostos nela. Para
Vesterinan (2014), o uso do modo subjuntivo pode ser visto para expressar um evento considerado como
verdadeiro, ou seja, o falante pressupõe o conteúdo do fato expresso na completiva sujeito. Ou seja, se
aplicássemos a negação ao conteúdo da oração matriz, mesmo assim a informação expressa pela sentença
completiva permaneceria independente.

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Nilza Barrozo Dias

A oração matriz representa a avaliação do tipo julgamento feita pelo falante em relação ao
comportamento das pessoas que exercem a política externa brasileira. Neste caso, vemos a evidencialidade
por indução, no que diz respeito ao modo como o falante pensa e se manifesta sobre os valores da esquerda e
da direita brasileiras. Mas é importante observar que, antes de inserir a oração matriz avaliativa propriamente
dita, é lamentável, o vereador exprime, positivamente, sua crença sobre a democracia, o que constitui,
segundo Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007), uma evidência pessoal direta dos fatos políticos.
(6) os sinais vindos de fora também são animadores. O FMI, o banco central e o
Tesouro americanos fazem eco a alguns dos mais tarimbafos economistas ao garantir
que a recessão nos Estados Unidos acaba até o fim do ano. Com eles concorda até
Noriel Roubini, economista de Nova York que, por ter espalhado o pânico no auge da
crise, se celebrizou com o apelido de “Dr. Apocalipse”. [Acertar na mosca] é bom.
[Acertar prevendo o melhor cenário], como fez VEJA, é melhor ainda. (Carta ao Leitor.
Revista Veja, 22/7/2009, edição 2122, p. 13)

A construção completiva é constituída pela oração matriz “é bom”, unipessoal em 3ª pessoa do


singular, seguida de um adjetivo factivo (DUARTE, 2003, p. 602). A oração completiva “acertar na mosca”
funciona como sujeito oracional. Este exemplo representa um raro caso de ordem, Sujeito oracional + oração
matriz, em que a oração completiva na forma infinitiva instancia uma atividade de “acertar”, que é projetada
como algo em potencial. Uma segunda construção completiva apresenta oração matriz “é melhor ainda” na
posição posposta à oração completiva sujeito, “acertar prevendo o melhor cenário”. Aqui também temos um
adjetivo avaliativo “melhor”, que é graduável pelo advérbio “ainda”.
As construções completivas instanciam um valor semântico impessoal, geral, em relação à
informação que as antecede, por estas representarem exemplos bem específicos do auge da crise financeira
americana. Observamos, então, uma relação opositiva entre a porção textual que especifica, o entorno
linguístico, versus a construção completiva, que instancia uma informação não pessoal e geral. Os detalhes
acerca da recessão nos Estados Unidos são colocados antes das construções em destaque para mostrar
evidências da experiência pessoal indireta do leitor, conforme Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007).
Além disso, as orações completivas sujeito em posição pré-verbal comportam-se como ilhas fortes
(DUARTE, 2003, p. 606), ou seja, não admitem a extração de argumentos ou adjuntos. Para Neves (2000, p.
340-342), a construção completiva impessoal possui valência 1 e a anteposição do sujeito oracional
representa uma construção na qual a oração com função de sujeito vem topicalizada.

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A construção completiva com “ser + adjetivo avaliativo”

CONCLUSÕES
As construções completivas impessoais com ser + adjetivo avaliativo apresentam a manifestação da
atitude do falante em relação à situação perfilada na oração completiva sujeito. Podemos considerar a
expressão da subjetividade na seleção do adjetivo avaliativo da oração matriz; na posição inicial da oração
predicadora em relação à siuação perfilada na oração completiva, que ocorre na posição posposta; no valor
semântico não pessoal, geral, da construção completiva impessoal; no controle do falante sobre o sujeito da
completiva; e na evidencialidade para potencializar ou diminuir o grau de impessoalização da construção
completiva.
Embora considere que, sintaticamente, temos uma estrutura predicadora mais uma oração
completiva sujeito, pode-se observar que o falante utiliza as estuturas predicadoras com verbos em 3ª pessoa
do singular, unipessoais para Neves (1996, pp. 168-169), para facilitar o seu descomprometimento da
informação veiculada. Desse modo, o falante pode contrastar a informação da construção com o entorno
discursivo e minimizar a própria participação ao apontar soluções gerais.
As construções, até agora analisadas, não apresentaram orações completivas nos modos indicativo e
subjuntivo como no português de Portugal, mas no subjuntivo e no infinitivo. Assim, a seleção da forma
infinitiva na oração completiva não licencia o uso de sujeito expresso, com referência definida. O falante,
então, usa outros recursos semântico-pragmáticos para caracterizar o “sujeito da completiva”.
É interessante destacar ainda o recurso da evidencialidade que o falante/jornalista utiliza no entorno
linguístico, a fim de dar uma certa credibilidade ao que ele falará na construção completiva, ou para levar o
leitor ou ouvinte, discursivamente, a participar da informação colocada na construção.
A pesquisa tem nos mostrado que a evidencialidade pode interferir no grau de impessoalidade
expressa na construção completiva impessoal. Parece-nos que, quanto mais os interlocutores especificam o
entorno, menor o grau de impessoalidade da construção. Mas esta é uma pergunta que continua em
discussão.

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______________________________________
Data de submissão: nov./2014.
Data de aprovação: jan./2014.

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“IMITAÇÃO DA ÁGUA”: a “tortura” da
referenciação
Soraia FARIAS REOLON PEREIRA 1

RESUMO
O presente artigo revisita uma velha questão: como a língua refere o mundo? Para tanto, apresenta um
percurso teórico que vai da referência à referenciação, do referente ao objeto-do-discurso. Trata, assim, de
questões relativas a léxico, semântica, sintaxe, pragmática, cognição, para analisar aspectos da textualidade,
notadamente a coesão referencial, passeando principalmente por teorias funcionalistas e da Linguística
Textual. Buscando um aproveitamento prático das questões teóricas levantadas, propõe-se a leitura e a
interpretação de um texto literário, um poema de João Cabral de Melo Neto – cujo modo de organização do
discurso é descritivo – através do acompanhamento da cadeia referencial e do fluxo de informação do texto.
Acompanhar as categorizações e recategorizações das expressões referenciais (presentes nos sintagmas
nominais), a introdução e reintrodução dos tópicos discursivos possibilitam: a) analisar como ocorre, na
interação autor-leitor, a construção dos sentidos e do “mundo de nossos discursos”; b) avaliar a importância
do sintagma nominal na construção do texto, na coesão e coerência.

PALAVRAS-CHAVE: Referenciação. Sintagma nominal. Objeto-do-discurso. Cadeias referenciais dos textos.


João Cabral de Melo Neto.

ABSTRACT
This article deals with an old issue: how does language refer the world? It presents a theoretical line that goes
from reference to referenciation, from the referent to the object-of-the discourse. Thus, it deals with questions
concerning vocabulary, semantics, syntax, pragmatics, cognition, in order to analyze aspects of textuality,
noticeably referential cohesion, visiting, mainly, functionalist theories and Textual Linguistics. Aiming at
putting into practice the theoretical questions raised, it proposes the reading and interpretation of one literary
text, a poem by João Cabral de Melo Neto, whose mode of organizing discourse is descriptive. This reading
and interpretation is carried through following the text’s referential chain and of the information flow of the
text. Following the categorizations and recategorizations of the referential expressions (present in the nominals
syntagmes), the introduction and reintroduction of discoursive topics allows one: a) to analyze, in the author-
reader relationship, how the construction of meanings and of the “world of our discourses” takes place; b) to
evaluate the importance of the nominal syntagme in the textual construction, in the cohesion and coherence.

KEYWORDS: Referenciation. Nominal syntagm. Discourse object. Referential chains of texts. João Cabral de
Melo Neto.

1 Doutora em Língua Portuguesa. Pesquisadora Adjunta da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Defendeu em 2013, na UERJ,
tese intitulada A Referenciação e o mundo de nossos discursos: do sintagma nominal à construção das cadeias referenciais do
texto escrito.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 81-102, 2º. Sem. 2014 | 81


“Imitação da água”

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, apresentarei uma leitura do poema “Imitação da água”, de João Cabral de Melo
Neto, a partir da análise da referenciação construída no texto, seguindo metodologia desenvolvida durante
estudos e escrita de minha tese de Doutorado (PEREIRA, 2013).
A escolha de um texto literário está em consonância com os estudos de referenciação, que avaliam a
capacidade simbólica do ser humano expressa pela linguagem e a sua possibilidade de criação de mundos ao
criar discursos.
Segundo Azeredo (2007, p. 175), os textos podem ser classificados em “textos-meio” e “textos-
objeto”. Os textos-meio atendem a objetivos fora deles, como receita culinária, manual de instrução, ofício
etc. Estes textos confirmam a ordem do mundo que está organizado. É como se seus autores intuitivamente
acreditassem que a linguagem é um espelho do mundo, que reflete diretamente a realidade. São discursos
construtores, muito presentes no discurso do senso comum, da ciência e da religião. Geralmente são textos
lineares, convencionais, que tiram proveito da cristalização da linguagem, usam discurso pronto como
clichês. Por outro lado, nos “textos-objeto”, a finalidade do texto está nele próprio. São textos com modo de
organização argumentativo (como editoriais, artigos de opinião assinados), são textos literários, textos
filosóficos etc. Eles criam mundos, oferecendo ao leitor um universo alternativo de experiências; são discursos
desconstrutores, anticonvencionais, que recriam a linguagem e propõem uma nova forma de ver o mundo.
Seus autores têm a consciência de que criam mundos ao recriar a linguagem. Por essa consciência é que
escolhi um poema de um mestre da composição para análise da referenciação. A referenciação também pode
ser analisada em textos-meio, mas seu estudo é mais produtivo em textos-objeto.

1 A LINGUAGEM, O MUNDO E O CONHECIMENTO

1.1 O ser cultural e sua capacidade simbólica

Meu estudo sobre referenciação parte da relação da linguagem com o conhecimento humano sobre
o mundo.
Sabe-se que o homem faz parte da natureza, e como tal é um ser biológico, porém foi o único que
conseguiu se “descolar” da natureza através da cultura e, por seu afastamento, foi capaz de tornar-se sujeito e
tomar a natureza como objeto de observação, reflexão e conhecimento. Os animais são objetos; o homem é
sujeito, um ser cultural, que dá sentido, interpreta, significa e ressignifica o mundo a todo instante.

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Nesse caminho de significar, interpretar e ressignificar, enfim, conhecer o mundo e si mesmo, o ser
humano utiliza a linguagem. Enquanto a relação do animal com a natureza é direta, guiada pelos instintos, a
relação do homem com a natureza tem de ser mediada pela linguagem. Ao homem, não é possível encarar
diretamente o real. A Psicologia estuda que o ser humano vive na representação do real e essa representação
é o imaginário. E o imaginário só existe porque existe uma linguagem que o representa. Ter e usar uma língua
significa ter à nossa disposição um grande patrimônio simbólico para conhecer o mundo e construir discursos
sobre ele.
O ser humano sente a necessidade de organizar, de ter certezas, de categorizar as coisas que existem
no mundo. É como pôr ordem no caos do mundo através da linguagem, o que lhe dá a ilusão de que o
mundo e a linguagem são estáveis, de que há uma ordem. A língua, assim, é uma camada sobreposta à
realidade, e nessa camada está a significação. A língua nos dá a imagem de um mundo organizado que não
existe. Só está organizado na linguagem. O mundo é o que é para todo ser vivo; o homem é que resolveu
organizá-lo, mas não há estabilidade garantida nem na vida nem na linguagem.
Esta organização promovida pela linguagem está ligada ao nosso conhecimento do mundo, ou
melhor, ao nosso modo de conhecer o mundo. A capacidade de armazenar e transmitir conhecimento através
da linguagem é uma característica humana. Somente o ser humano apresenta uma linguagem articulada e
capacidade simbólica. O homem constrói a linguagem para realizar a simbolização do real e também para
representar a fantasia. Uma pessoa pode criar uma frase inverossímil, mas que tem significado e é capaz de
produzir uma referência. Ou seja, o homem é o único ser capaz de produzir realidade que é fruto da
imaginação. A linguagem humana vai além da comunicação, ela é responsável pela criação de mundos. Se a
linguagem fosse só para a comunicação, não poderíamos produzir a frase “Meu vizinho marciano cria um
cachorro verde que se põe a rezar quando ouve Ave Maria”, pois ela não corresponde a nada que exista no
mundo.
Uma língua é um meio de representação do mundo transformado em significação, isto é, a língua
transforma a realidade em significação. Por outro lado, às vezes não existe uma determinada realidade no
“mundo concreto”, mas existe um enunciado representando-a, existe um significado. Assim podemos dizer
que um enunciado dá origem a uma realidade. É o caso do exemplo: “Meu vizinho marciano cria um
cachorro verde que se põe a rezar quando ouve Ave Maria.” Poderíamos pensar que a relação fosse:
Realidade  Expressão. Pelo exemplo, observamos que existe um significado, apesar de não existir a
realidade. Então, a língua é um meio de geração de conteúdos, de realidades, e na verdade, a relação é:
Expressão  Realidade. Um enunciado dá origem a uma realidade.

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“Imitação da água”

Por isso dizermos que a relação do homem com o mundo, com a realidade não é direta. A relação
do homem é com o mundo de signos. Nada significa por si próprio; só significa dentro de um sistema de
referências (que está na cabeça do homem e que ele é capaz de reconhecer). O assunto de nossos textos não
é a realidade e sim o processamento (da nossa cabeça) sobre a realidade. Nem o discurso científico expressa
“a verdade”. A mentira (fuga pela fantasia) e a ficção (categoria da arte) só são possíveis na linguagem
humana.

1.2 Mas o que é mesmo a verdade?

No artigo “A construção do mobiliário do mundo e da mente: linguagem, cultura e categorização”,


Marcuschi (2007) trata de um antigo problema da Filosofia da Linguagem, na análise da relação entre a
linguagem e o mundo, que é a pergunta: “Como referimos o mundo com a língua?” Antes de mais nada,
temos que indagar o que é exatamente “referir o mundo” e o que é o mundo para nós. Seguindo Marcuschi
(2007), adoto a posição kantiana admitindo que o mundo conhecido é um mundo construído. Uma coisa são
os objetos que conhecemos, outra coisa são os objetos independentes de nosso conhecimento. Conforme
Marcuschi, é o caso de perguntar “que mundo dizemos quando dizemos algo.” (2007, p. 128-129) Antes de
dizê-lo, temos de conhecê-lo. Dizer implica em referenciar, predicar e estar diante do problema da verdade,
mas o que é a verdade?
O poema “Verdade”, do livro Corpo (1984), de Carlos Drummond de Andrade, questiona o tema. O
poema nos mostra que há muitas “verdades” e que cada uma é sempre parte, nunca uma totalidade, e reflete
sempre uma escolha, um posicionamento. Marcuschi (2007, p. 126) dá o exemplo de duas proposições sobre
o mesmo referente — “Tiradentes é um herói”, “Tiradentes é um traidor” — e discute se dizer de alguém que
é um herói ou um traidor é explicitar um atributo imanente ou atribuir uma propriedade por um ponto de vista
de nossas crenças:
É um tanto simplista dizer que a verdade é uma relação entre o mundo e o que
dizemos sobre ele. O problema está muito mais na natureza do dito e na natureza do
acesso ao mundo que na natureza da coisa em si mesma. [...] É pouco iluminador
dizer que “é verdade” equivale a “corresponde aos fatos”, pois toma os fatos como se
fossem dados naturalmente e como se a linguagem tivesse a propriedade de dizê-los
naturalmente.
Também não se trata de discutir a distinção entre sentidos literais e figurados, noções
hoje em crise aguda, como mostra Mira Ariel (2002), mas de saber que estamos
construindo modos de existência e referenciação e não apenas comunicando fatos
ontológicos. As coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros. A
maneira como nós dizemos aos outros as coisas é decorrência de nossa atuação

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intersubjetiva sobre o mundo e da inserção sociocognitiva no mundo em que vivemos.


O mundo comunicado é sempre fruto de um agir intersubjetivo (não voluntarista)
diante da realidade externa e não de uma identificação de realidades discretas.

Marcuschi (2007, p.130-132) busca uma teoria da verdade que não seja a visão clássica da
correspondência. Ele afirma que “o léxico não é uma lista notarial do mobiliário do mundo a serviço de uma
relação de correspondência cujo resultado seria a verdade.” (p. 137-138), porém admite a teoria coerencial
da verdade de Davidson (1991/2001) e esclarece que
[...] O essencial dessa teoria é que ela postula a verdade como coerência interna entre
todas as crenças. Assim, a crença torna-se uma condição do conhecimento
(1991/2001: 209). O autor deixa claro que não se trata de um subjetivismo. Pois as
crenças não são individuais ou simples fruto de uma subjetividade privada, mas de
uma comunidade de mentes.
[...] A verdade é constituída pela correspondência coerente entre crenças e não pela
correspondência de uma crença com algo externo [...]
[Segundo Davidson, o] princípio de correspondência permite ao intérprete entender o
falante como respondendo aos mesmos traços do mundo que o intérprete responderia
nas mesmas circunstâncias.
E nessa base pode-se dizer que a objetividade tem sua fonte na intersubjetividade. As
pessoas concordam intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de
forma parecida quando vivem na mesma cultura. Assim, o conhecimento objetivo, a
verdade, a categorização etc surgem como fruto de uma triangulação entre dois
indivíduos e o mundo sem a necessidade de uma relação direta da mente com o
mundo, e sim a coerência de crenças na relação com o mundo. (2007, p. 132)

Desta forma, Marcuschi conclui que a verdade não independe de nós, mas o mundo sim. Tanto a
verdade quanto o conhecimento são produções discursivas, mas o mundo não. Então as verdades (e não “a
Verdade”) são produções discursivas elaboradas na relação intersubjetiva tendo como ponto de intersecção o
mundo empírico e mentes “de tal modo constituídas que podem agir intersubjetivamente com base em
princípios e regularidades que operam de modo similar” (2007, p. 132).
Não há uma Verdade, há discursos. É importante ter essa consciência e perceber que mundo está
sendo apresentado em cada texto. Fazer o acompanhamento dos sintagmas nominais (SNs) e tópicos
discursivos, construindo cadeias referenciais, é uma forma de ver como esses sentidos são construídos.

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“Imitação da água”

1.3 Objetos do mundo/ Referente / Objetos do conhecimento / Objetos de


discurso

É importante ter a consciência de que esse mundo conhecido através da língua é um mundo
construído. Quando nomeamos um objeto do mundo, relacionando-o a um item lexical, seu nome naquela
língua não é uma “etiqueta” daquele objeto. A língua não tem o papel de espelho do mundo. Se pensarmos
bem, a própria noção de referente é delicada. Referente não está diretamente ligado a uma “coisa no mundo”.
Às vezes, o “mesmo objeto” recebe duas designações. Por exemplo, antigamente era comum usar uma
câmara de ar para boiar no mar. Assim, era chamada de “câmara de ar” e “boia”. As designações eram
diferentes pela utilidade, pelo uso em cada situação, o que acabava tornando os objetos diferentes. Afinal, o
próprio objeto do mundo é o mesmo?!? O conceito de referente fica abalado. Na verdade, o referente é
socioculturalmente construído.
Marilena Chauí mostra que, antes de ser objeto de discurso, já é objeto de conhecimento (cultural):
O real não é constituído por coisas. Nossa experiência direta e imediata da realidade
nos leva a imaginar que o real é feito de coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto
é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas
vivências.
Assim, por exemplo, costumamos dizer que uma montanha é real porque é uma coisa.
No entanto, o simples fato de que essa “coisa” possua um nome, que a chamemos
“montanha”, indica que ela é, pelo menos, uma “coisa-para-nós”, isto é, algo que
possui um sentido em nossa experiência. Suponhamos que pertencemos a uma
sociedade cuja religião é politeísta e cujos deuses são imaginados com formas e
sentimentos humanos, embora superiores aos dos homens, e que nossa sociedade
exprima essa superioridade divina fazendo com que os deuses sejam habitantes dos
altos lugares. A montanha já não é uma coisa: é a morada dos deuses. Suponhamos,
agora, que somos uma empresa capitalista que pretende explorar minério de ferro e
que descobrimos uma grande jazida numa montanha. Como empresários, compramos
a montanha, que, portanto, não é uma coisa, mas propriedade privada. Visto que
iremos explorá-la para obtenção de lucros, não é uma coisa, mas capital.[...]
Não se trata de supor que há, de um lado, a “coisa” física ou material e, de outro, a
“coisa” como ideia ou significação. Não há, de um lado, a coisa-em-si, e, de outro, a
coisa-para-nós, mas entrelaçamento do físico-material e da significação, a unidade de
um ser e de seu sentido, fazendo com que aquilo que chamamos “coisa” seja sempre
um campo significativo. [...]
O que dissemos sobre a montanha, podemos também dizer a respeito de todos os
entes reais. São formas de nossas relações com a natureza mediadas por nossas
relações sociais, são seres culturais, campos de significação variados no tempo e no
espaço, dependentes de nossa sociedade, de nossa classe social, de nossa posição na
divisão social do trabalho, dos investimentos simbólicos que cada cultura imprime a si
mesma através das coisas e dos homens. (CHAUÍ, 1980, p. 16-18)

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Anteriormente ao discurso, nós já conhecemos esses objetos do mundo como objetos do nosso
conhecimento e atualizamos a forma de vê-los ao usá-los como objetos-de-discurso em nossos textos. A
primeira aparição do objeto-de-discurso na primeira categorização e depois suas retomadas nas
recategorizações, em diálogo com o gênero textual e o modo de organização do discurso, vão atualizar o
sentido e construir uma imagem daquele ser.

2 REFERENCIAÇÃO: DA FORMA LINGUÍSTICA À CONSTRUÇÃO DO SENTIDO


NO TEXTO ESCRITO

Depois de apresentar o tema referenciação sob um ponto de vista mais filosófico, passaremos à
questão propriamente linguística e discursiva. Como podemos acompanhar a referenciação que vai sendo
criada no texto?
Concordo com Neves quando fala que referenciação envolve interação e intenção, por isso na
língua em uso os participantes de um discurso negociam o universo de discurso de que falam e, em
determinado momento, optam por referir-se a algum ser cuja identidade estabelecem ou não, conforme
desejem ou não garantir sua existência nesse universo. Ao compor seus enunciados, os falantes instituem os
objetos-de-discurso (e não objetos do mundo), o que significa que “a primeira noção de referência é a de
construção de referentes” (NEVES, 2006, p. 75). Como os objetos-de-discurso vão montar no texto a rede
referencial que constitui uma das marcas da própria textualidade, isso resulta em uma “segunda noção de
referência, que é a de identificação de referentes”,. Ainda segundo Neves (2006, p. 75-76), pode-se falar,
então, de dois modos de referenciar textualmente: o construtivo e o identificador.
A construção e a identificação de referentes, como primeira e segunda noções de referência,
lembram-nos o que a Linguística Textual (LT) chama respectivamente de categorização e recategorização
realizadas pelas expressões nominais, quando da sua primeira aparição no texto e depois sua retomada
anafórica, fazendo parte da coesão referencial. Muitas vezes os dois elementos relacionados pela anáfora são
textuais (ou melhor, cotextuais); porém vários estudos observaram que o chamado “primeiro elemento”
poderia ser localizado na situação comunicativa ou através do conhecimento de mundo ou por associação.
Assim, fez-se uma revisão do conceito generalizante de antecedente e Apothéloz (1995) propõe mais um
termo: “desencadeador do antecedente”. A LT passa a incorporar aspectos pragmáticos e cognitivos para a
compreensão dos processos de referenciação.

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2.1 O sintagma nominal e a referenciação

A observação dessa categorização e das retomadas se dá a partir do sintagma nominal (SN) e de suas
formas anafóricas, incluindo a elipse, anáfora zero. Informacionalmente, temos tópicos discursivos que são
recategorizados através dos SNs que vão constituir cadeias referenciais.
Dik (1997, p. 131 apud NEVES, 2006, p. 148) observa que, embora a função de referenciar seja
restrita aos termos que atuam como argumentos e satélites das predicações, o falante, usando um termo, ou
constrói ou ajuda o ouvinte a encontrar um referente para colocá-lo numa predicação, e, assim, outras
representações mentais se acrescem, de modo a ser recuperáveis pelos subsequentes elementos anafóricos.
Neves (2006, p. 37) ressalta que
Para Dik (1985, 1997), todos os itens lexicais de uma língua se analisam dentro da
predicação. Nesse modelo fica indicado que a descrição de uma expressão linguística
começa com a construção de uma predicação subjacente, que é, então, projetada por
meio de regras que determinam a forma e a ordem em que os constituintes da
predicação subjacente são realizados. Desse ponto de partida que é a predicação,
passa-se à expressão referencial, em seguida à expressão relativa à unidade de
informação (o conteúdo transmitido em um ato de fala) e, finalmente, à fala real.

Podemos dizer que as expressões referenciais são entidades que constituem termos das predicações,
estruturados como sintagmas nominais (SNs). Azeredo (2008, p. 238-239) ressalta que a função comunicativa
fundamental de um SN é tornar possível a construção de uma referência:
Servimo-nos de sintagmas nominais, portanto, para designar parcelas de nossa
experiência de mundo concebidas como unidades reais ou imaginárias, naturais ou
culturais, únicas ou genéricas, concretas ou abstratas. [...]
Um dado objeto do mundo real ou imaginário pode, portanto, ser designado por uma
infinita variedade de representações, segundo as relações do enunciador com esse
objeto e segundo as motivações e as necessidades ou peculiaridades comunicativas do
evento discursivo — e do texto — em questão. A seleção dos elementos formadores
do sintagma nominal obedece, assim, à necessidade de tornar o conteúdo
referenciado por meio dele acessível ao interlocutor. A isto damos o nome de
referenciação.

O fato de servirmo-nos de SNs para designar parcelas de nossa experiência de mundo remete às
citadas discussões de Marcuschi sobre a linguagem e a simbolização. O sintagma nominal estabelece a
referenciação não do “mundo como ele é”, mas do mundo tal como nós o conhecemos. Por isso referenciar é
construir o mundo de nossos discursos. Por isso, um texto é a construção de um discurso sobre o mundo
(segundo determinadas motivações ou necessidades comunicativas) e não a “Verdade” sobre o mundo, sobre

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a realidade. E esta construção do discurso é urdida materialmente na estruturação linguística, segundo a


intencionalidade do autor, seu projeto de dizer e fazer-se entender buscando a parceria e a aceitabilidade do
leitor. Assim, formas linguísticas realmente são pistas para a construção dos sentidos.

2.1.1 Três procedimentos básicos da referenciação

Azeredo (2008, p. 239) ressalta três procedimentos básicos de referenciação: o emprego de nomes
próprios, o uso de nomes concretos comuns acompanhados de alguma especificação e o uso de pronomes
substantivos:
Os nomes próprios têm o poder de ativar na memória enciclopédica do leitor um
referente único e inconfundível. Já os nomes comuns se referem a classes de seres ou a
noções gerais, por isso a construção da referência por meio deles depende sempre de
condições ou procedimentos complementares. [...] Quanto aos pronomes, há os que
realizam uma referência independentemente do texto, como ninguém, que é um
quantificador absoluto negativo, equivalente a ‘nenhuma pessoa’; e os que
dependem de alguma informação já disponível como a forma eles, que tem função
estritamente remissiva, pois apenas recupera uma referenciação já construída no texto
[...]

O autor (2008, p. 244) destaca que há três posições, na construção do SN: a base, normalmente
preenchida por um substantivo comum; a porção que precede a base, preenchida pelos determinantes; e a
porção subsequente à base, ocupada por modificadores. Os modificadores são integrados ao SN e
especificam a referência de sua base na função de adjunto adnominal. Esses modificadores são sintagmas
adjetivos, SAdjs, constituídos por: adjetivos (sintagmas adjetivos básicos), locuções adjetivas (sintagmas
adjetivos derivados, na forma de sintagmas preposicionais) e orações adjetivas (orações convertidas em
sintagma adjetivo derivado por meio de um pronome relativo que funciona como transpositor).
Pela análise de textos, observamos algumas particularidades na constituição dos SNs, quanto a seus
modificadores. Após a base de um SN podem aparecer, integrando a sua estrutura, vários SAdjs enumerados,
separados por vírgulas. Muitas vezes são várias orações adjetivas enumeradas, dentro de um enorme SN.

3 ANÁLISE DO POEMA: DO SN À CONSTRUÇÃO DA CADEIA REFERENCIAL

3.1 Metodologia, objetivo e hipóteses

Para realizar a análise da referenciação no poema, realizarei as seguintes etapas:

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 destacarei em negrito, no próprio corpo do texto, todos seus sintagmas nominais (SNs);
 farei breve apresentação do texto e de seu autor;
 realizarei o acompanhamento da cadeia coesiva referencial e do fluxo informacional do texto
(através dos SNs / tópicos discursivos). Para tanto, o texto será dividido em segmentos de sentido
onde todos os SNs daquele segmento serão numerados de forma crescente pela ordem de
aparecimento no texto;
 farei o levantamento de todos os tópicos discursivos do texto. Os que aparecem mais de uma vez
comporão cadeias referenciais;
 registrarei em tabelas as cadeias referenciais relativas a cada tópico discursivo, anotando o número
de ocorrências e todos os SNs a elas relacionados;
 realizarei a estatística dos SNs das cadeias e a análise da referenciação, avaliando os tópicos com
maior número de ocorrências e classificando-os por colocação. As colocações dos tópicos serão
analisadas em relação com o gênero e o modo de organização do discurso daquele texto.

Na descrição dos SNs e das cadeias referenciais, os SNs aparecerão em negrito e entre colchetes. Os
sintagmas dos textos serão apresentados da seguinte forma:

 os sintagmas nominais (SNs) aparecerão entre colchetes;


 os sintagmas adjetivais (SAdjs) integrados ao SN (e ligados ao núcleo desse SN), estarão entre
parênteses;
 os sintagmas adverbiais, SAdvs, (obviamente, os que contiverem SNs) ficarão entre chaves;
 os sintagmas preposicionais (SPreps) que contenham (ou estejam contidos em) um SN aparecerão
entre parênteses.

Sabemos que, estruturalmente, um texto poderia ser dividido em períodos (simples e compostos) e
depois em orações e sintagmas. Apesar de valorizarmos o aspecto formal e sua estruturação linguística, na
construção do sentido, sabemos que os SNs devem ser analisados em paralelo ao fluxo de informação. Assim,
optamos por dividir o poema, conforme Azeredo (2008, p. 123), em segmentos de sentido (que muitas vezes
não correspondem a um período ou estrofe), a fim de descrever melhor o fluxo de informação do texto,
paralelo à construção da cadeia referencial. Para tomar estas decisões, levamos em consideração a análise de
um texto por Azeredo (2008, p. 122-123) e as considerações de Halliday e Hasan (1976)2:
Um texto é melhor visto como uma unidade semântica: uma unidade não de forma
mas de significado. [...] Um texto não é constituído de frases, ele é ATUALIZADO

2 Tradução do Prof. André Crim Valente, na apostila do Curso “Aspectos da textualidade e produção de sentidos”. Doutorado em
Língua Portuguesa. UERJ. 1º sem. 2009. p. 1.

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Soraia Farias Reolon Pereira

POR, ou codificado em frases. Se nós assim o entendermos, não esperaremos


encontrar o mesmo tipo de integração ESTRUTURAL entre as partes de um texto como
encontramos entre as partes de uma frase ou oração. A unidade de um texto é uma
unidade de tipo diferente.

Meu objetivo geral é propor, com o estudo da referenciação, o desenvolvimento de uma


“metaconsciência textual” (RONCARATI, 2010), de uma sensibilidade para uma arquitetura sintático-
semântico-discursiva que revela não os objetos do mundo, mas os objetos-de-discurso que vão construindo
sentidos à medida que vão formando cadeias referenciais ao longo dos textos. Os SNs funcionam como
objetos-de-discurso que vão construir uma trajetória ao longo do texto por conta de suas recategorizações de
um mesmo tópico, as quais vão construindo o sentido e o mundo de nossos discursos.
Trabalho com as seguintes hipóteses: o microtextual (aspectos linguísticos dos sintagmas nominais)
ajuda a construir a significação e a coerência do texto (o macrotextual); a construção das cadeias referenciais
de um texto está diretamente ligada ao seu gênero textual e principalmente ao seu modo de organização do
discurso. Por isso, ao fim do texto, apresenta-se a estatística dos SNs de cada cadeia e a análise da
referenciação, onde se conjugam os dados obtidos com as intenções comunicativas e o modo de organização
do discurso.

3.2 Análise

O poema “Imitação da água”, de João Cabral de Melo Neto, faz parte do livro Quaderna (1960). É
um texto estruturado pelo modo de organização descritivo, no qual a elaborada busca pela justeza da
expressão leva a um sofisticado trabalho de construção das imagens poéticas. Os SNs, marcados em negrito,
constituem quase todo o texto, mostrando a obstinada e laboriosa construção da referenciação de seu objeto
observado: a mulher.

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“Imitação da água”

IMITAÇÃO DA ÁGUA

De flanco sobre o lençol,


paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.

Uma onda que parava


ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava


naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

Uma onda que parara


ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista

e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.

Uma onda que guardasse


na praia cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,

e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas

mais o clima de águas fundas,


a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.

(Melo Neto, João Cabral de. Poesias completas. 4.


ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p. 175-6)

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Soraia Farias Reolon Pereira

João Cabral de Melo Neto é um grande esteta da língua. Nascido a 9 de janeiro de 1920 em Recife,
já em 1941 participa do 1º Congresso de Poesia do Recife, lendo o opúsculo "Considerações sobre o Poeta
Dormindo". Em 1942, publica sua primeira coletânea de poemas, Pedra do sono, e se transfere para o Rio de
Janeiro. No ano seguinte, publica seu segundo livro O Engenheiro, custeado pelo empresário e poeta Augusto
Frederico Schmidt. Em 1947 ingressa na carreira diplomática, porém nunca abandonou a poesia, exercendo
magistralmente seu ofício de escrever.
Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1968, tomando posse em 1969. Em 9 de outubro
de 1999 morreu no Rio de Janeiro, vítima de ataque cardíaco.
Cronologicamente situado na geração de 45, por seu apuro formal e preocupação estética, João
Cabral não aceitava rotulações de estilo literário, acreditando que cada poeta apresentava um estilo próprio
resultando em uma peculiar produção poética. Seu fazer poético está calcado no trabalho intelectual distante
da inspiração e do sentimentalismo, é racional. Isto lembra a comparação de JEAN COHEN (1966, p. 38)
entre um poeta e um artesão: “O poeta é poeta não pelo que pensou ou sentiu, mas pelo que disse. Ele é
criador não de ideias, mas de palavras.” O próprio João Cabral reflete:
[...] o poeta, a partir do momento em que se torna exclusivamente lírico, passa só a
falar dele próprio. Onde está a poesia que fala das coisas? [...] A poesia brasileira é
uma poesia essencialmente lírica, e por isso eu me situo na linha dos poetas marginais
porque sou profundamente antilírico. Para mim, a poesia dirige-se à inteligência,
através dos sentidos. (ATHAYDE, 1998, p. 55)

Em Quaderna (1960), é a primeira vez em que o tema feminino é amplamente representado em sua
poética, porém, como assinala Marques (2010, p.12), é um lirismo “que não transborda, mas que pensa e
produz linguagem”. O poema em questão, “Imitação da água”, de temática lírico-amorosa, enfatiza o
feminino por meio de uma linguagem que cria comparações entre a mulher e um elemento natural, a água,
mas prioriza o próprio fazer poético como fonte de lirismo. Para João Cabral, a mulher (a ser “construída” no
poema) era um tema para a poesia como outro qualquer, era objeto de sua poesia, não tinha biografia.
Cabral considerava o trabalho poético não como fruto de inspiração, mas como resultado de
transpiração, trabalho com a linguagem: “exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de
organização de estruturas verbais”, “rigorosa construção de estruturas formais lúcidas, lúcidos objetos de
linguagem” (MELO NETO, 1999, p. 800). Assim, no seu construtivismo, o poeta se dedicava à sintaxe, à busca
da expressão exata, que se constituía numa racional procura pela referenciação mais coerente com o seu
projeto de dizer, numa total consciência de que o seu mundo poético era construído não pelas coisas em si

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“Imitação da água”

ou pelo seu simples olhar para elas, mas pelo que a linguagem arquitetada fosse capaz de expressar. E nisso,
João Cabral era um mestre. Como disse Leminski (1987, p. 289), as:
línguas amam seus poetas porque, nos poetas, realizam seus possíveis. Um Fernando
Pessoa, um Maiakóvski, um Pound, um Cummings, um Cabral [...] são poetas que
conduzem sua língua aos extremos limites de expressão dela, quase assim na fronteira,
no abismo do incomunicável.

Em “Imitação da água”, João Cabral chega aos extremos limites de expressão. Como poema
organizado pelo modo descritivo, há um objeto a ser descrito, no caso uma mulher “De flanco sobre o
lençol”. O autor vai retratar sua experiência vivida no nível dos sentidos, no caso o olhar, o tato, a audição.
Não se trata de comunicar objetivamente como a mulher é, porém de construir toda uma visualidade,
plasticidade e sensorialidade pela linguagem. E então observamos sua escolha por palavras concretas para
dizer o quase indizível. Na opinião de João Cabral:
Uma palavra concreta é muito mais sensorial que uma palavra abstrata. [...] Eu tenho a
impressão que é muito mais fácil eu dar a ver com palavras concretas, que se dirigem
aos sentidos, do que usando palavras abstratas. (ATHAYDE, 1998, p. 66)

No poema, quem está sendo referenciado é a mulher e não a água. Mais precisamente: a mulher que
imita a água, a mulher onda. No entanto, o importante não é exaltar a mulher (ela não tem biografia), nem o
seu corpo como ele é; mas sim, a partir de uma cena vista, “congelar” o instante como uma foto para poder
explorar através de imagens sensoriais o que essa mulher sugere a ele, poeta, enquanto essência feminina, e
que o move a produzir discurso. O corpo da mulher é motivo para João Cabral mais uma vez exercer o seu
ofício.
O prazer estético é gerado pelo trabalho exaustivo com a linguagem. A eroticidade brota das criadas
associações com a água, com a onda. A escolha do elemento natural água e especificamente da palavra
“onda” tem dupla utilidade:
a) “dar a ver” por uma palavra concreta, que segundo João Cabral é muito mais sensorial do que
uma palavra abstrata: ao ler “onda” imagina-se a curva do quadril da mulher “de flanco sobre o
lençol”;
b) e ligar-se à mulher e à eroticidade enquanto símbolo. A água é fonte de vida; a vida nasceu no
mar. O desejo é pulsão de vida, ligado a Eros, ao amor, e que se materializa no ato sexual, em
ambiência aquosa.

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Soraia Farias Reolon Pereira

Para realizar a minuciosa referenciação da mulher onda, João Cabral constrói SNs com vários SAdjs
que caracterizam essa onda. Os SAdjs, a partir da segunda estrofe, passam a ser orações, pois o poeta passa a
caracterizar a onda pelo que ela faz.

3.2.1 Sequência de SNs dentro dos segmentos de sentido

TÍTULO: No título há um silenciamento do agente: quem imita a água? O SN poderia ser:


[IMITAÇÃO (D[A ÁGUA]) (PEL[A MULHER]) ] ou [IMITAÇÃO (D[A ÁGUA]) (POR[TI]) ]. A palavra “mulher”
ou “tu” (a interlocutora do poeta) não aparece no texto. O texto é enxuto, sem sentimentalismos. O foco é a
comparação com a onda e a investigação, pela linguagem, da natureza feminina.
SN DO TÍTULO) [IMITAÇÃO (D[A ÁGUA])]
PRIMEIRO SEGMENTO DE SENTIDO:
Corresponde à primeira estrofe do poema. No primeiro segmento de sentido, o poeta revela uma
cena que tinha sido vista por ele e que começa a descrever. Ele foca naquele instante como uma foto, o que
vai propiciar o início da descrição, quando faz a primeira comparação da sua interlocutora (o “tu”) a uma
onda: é o SN 3, dentro do SPrep, (a [uma onda (deitada), (na praia)]), que é um SN pequeno, com somente
dois SAdjs.
Logo no SN 1, temos um caso curioso: [*(De flanco sobre [o lençol])], que à primeira vista parece
ser um SAdv, na verdade é um SN com elipse do núcleo nominal, ou seja, o núcleo faz parte do SN em
ausência. O asterisco no sintagma registra a elipse. É a mulher (o “tu”) em uma determinada posição (de
flanco sobre o lençol). Isto se comprova pelo segundo SN, [paisagem (já tão marinha)], que é um aposto,
reduplicação de um núcleo nominal anterior. Observamos que novamente a mulher (o “tu”) não aparece
explicitamente na linearidade do texto. Em “* te parecias” também ocorre a elipse do “tu”.
SN 1) [*(De flanco sobre [o lençol])]
SN 2) [ paisagem (já tão marinha)]
SN 3) (a [uma onda (deitada), (na praia)]) * te parecias

SEGUNDO SEGMENTO DE SENTIDO:


Corresponde ao restante do poema, da segunda à oitava estrofe. Neste segundo segmento, o poeta
reflete sobre a cena vista, realizando uma “tortura” da referência. Com exceção do sintagma verbal “te
parecias” (e do SPrep (a [uma onda (deitada), (na praia)]), que por sinal abriga um SN), todo o resto do poema
é composto apenas por SNs. Isto é altamente sintomático: quase todo o texto é dedicado à referenciação, ao

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“Imitação da água”

exaustivo trabalho de construção e reconstrução da linguagem, criando 4 SNs bem grandes com SAdjs em
forma de orações adjetivas que vão apresentar o que a onda fazia. Como os SAdjs são orações, a predicação
delas também faz parte do grande SN. Assim, para percebermos como João Cabral constrói a referenciação, é
fundamental nesses SAdjs atentar para:
a) os verbos escolhidos e seus tempos e modos: geralmente o primeiro e o segundo verbos estão
no Indicativo, às vezes aparece uma forma nominal, e depois os outros verbos aparecem no
Subjuntivo;
b) o uso de palavras concretas, como “folhas”, “pálpebra”, “pupila”, “montanha”, “praia cama”,
que a partir de sua materialidade permitem a criação de imagens como metáforas para dar
concretude a algo que não é concreto, que só existe e é possível conceber pela construção da
linguagem.

Vamos à sequência de SNs do segundo segmento de sentido:


SN 4) [Uma onda (que parava) ou melhor: (que se continha); (que contivesse um momento [seu
rumor (de folhas líquidas)] ) ]
Em “parava”  “continha”  “contivesse”, há uma gradação, pois “conter-se” é mais específico do
que “parar”. Parar pode ser ato involuntário, pela presença de um obstáculo, por exemplo. Conter-se indicia
ato voluntário, calculado, planejado e executado. “Parava” e “continha” estão no Pretérito Imperfeito do
Indicativo, como algo mais concreto, que realmente acontecesse na visão e comparação do poeta,
justificando o Indicativo. O quadril, como uma onda, parava, se continha. Acredito que o tempo seja Pretérito
Imperfeito porque é algo que acontecia e se repetia no passado, reiterando o uso da primeira estrofe: “a uma
onda deitada, na praia, te parecias”, também por isso “paisagem já tão marinha”, evocando “já tão
conhecida”.
“Contivesse”, no Imperfeito do Subjuntivo, já está em um nível mais alto de abstração: é como se
contivesse. O verbo anuncia algo hipotético, que só poderia existir como metáfora, algo que realmente não
ocorreria concretamente (conter “seu rumor de folhas líquidas”). A escolha do modo verbal Subjuntivo revela
a total consciência de João Cabral do que é o fazer poético, pois este procedimento está no nível da
possibilidade de criar mundos através da linguagem.
O SN 4 corresponde a toda a segunda estrofe.
SN 5)[Uma onda (que parava {n[aquela hora precisa (em que a pálpebra da onda cai sobre a própria
pupila)]}) ]

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Soraia Farias Reolon Pereira

Aqui é muito interessante a justeza da imagem. De flanco sobre o lençol, a mulher oferece à
apreciação, entre outras coisas, o formato de seu quadril, de lado, que o poeta compara a uma onda, mas tem
de ser uma onda que para “no alto de sua crista”, que para “naquela hora precisa em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila”, justamente para não permitir o movimento completo que levaria a onda a se
desfazer e não se parecer mais com o quadril de lado, com a mulher de flanco sobre o lençol. “Pálpebra” e
“pupila” são palavras concretas que constroem uma metáfora que permite visualizar o movimento
arredondado da onda, da sua crista até sua base. Este SN 5 reforça a ideia de parar, só que especifica mais
que o SN anterior.
O SN 5 corresponde a toda a terceira estrofe.
SN 6)[Uma onda (que parara {ao dobrar-se}, interrompida}), (que imóvel se interrompesse no alto de
sua crista) e (se fizesse montanha {por horizontal e fixa}), mas (que {ao se fazer montanha} continuasse água
ainda).
“Parara” é uma flexão do Pretérito mais-que-perfeito do Indicativo. Uma onda que, ao dobrar-se,
parara, significa que parou antes de dobrar-se totalmente, por isso “interrompida”. Se a onda se dobrasse
completamente, ela se desfaria e se tornaria inadequada à comparação com a mulher de flanco, sobre o
lençol. O SN 6 retoma os conceitos das imagens do SN anterior, através de imagens novas e em maior
número. O SAdj “que ao se fazer montanha continuasse água ainda” mostra aquilo que se faz fixo, mas não
imutável, pois enquanto água poderia se desfazer a qualquer momento.
O SN 6 corresponde a duas estrofes (quarta e quinta).
SN 7)[Uma onda (que guardasse {n[a praia cama, (finita)] }, [a natureza (sem fim) (do mar de que
participa)], e ({em [sua imobilidade, (que precária se adivinha)]}, [o dom (de se derramar) (que as águas faz
femininas)] mais [o clima (de águas fundas)], [a intimidade (sombria)] e [certo abraçar (completo) (que dos
líquidos copias)] ].
“Uma onda que guardasse / na praia cama, finita, / a natureza sem fim / do mar de que participa”
lembra Drummond (em “O mundo é grande”): [...] “O mar é grande e cabe/ na cama e no colchão de amar”.
Como analisou tão bem Senna (1980, p. 100), faço minhas as suas palavras:
Note-se que a qualidade “marinha” da mulher, além de exaustivamente restringida a
uma espécie “x” de onda, é ainda mais uma vez original. Ela não é misteriosa como o
mar, volúvel como o mar, serena como o mar _ todos conteúdos já explorados pela
poética tradicional _ , mas, como certa manifestação finita do mar que lhe contém a
infinitude, a mulher tem a propriedade de, imóvel, anunciar o “abraçar completo”
peculiar a sua natureza feminina.

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“Imitação da água”

E esse anunciar funciona como uma promessa de a qualquer momento (já que sua imobilidade se
adivinha precária) se “derramar” e realizar o “abraçar completo”.
O último SN, 7, enorme, corresponde às três últimas estrofes (6ª, 7ª e 8ª).

3.2.2 Os tópicos do texto

No texto, há 8 SNs (o título mais sete), sendo que 4 deles são enormes, com a presença de vários
SAdjs em forma de orações subordinadas adjetivas que especificam “uma onda”. Os SNs podem ser
organizados em 2 colunas, indo de A até B, correspondendo aos 2 tópicos do texto, citados abaixo:
A- imitação da água; B- tu (a interlocutora, a mulher) = uma onda
O tópico sublinhado “imitação da água” aparece apenas uma vez. Ele não reaparece recategorizado
nos SNs, por isso não forma cadeia referencial, mas funciona como uma síntese de todo o texto. O tópico
“uma onda” apresenta várias recategorizações bem detalhadas do SN, formando uma cadeia.
Apresentaremos, portanto, uma tabela que corresponde à única cadeia referencial desse texto.

3.2.3 Cadeia referencial do poema

1ª E ÚNICA CADEIA – TU/MULHER = UMA ONDA


OCOR-
RÊN- SNs da 1ª CADEIA
CIAS
1 SN 1) [*(De flanco sobre [o lençol])] (* = tu/mulher)
2 SN 2) [ paisagem (já tão marinha)]
3 SN 3 dentro do SPrep) (a [uma onda (deitada, na praia)] )
SN 4) [Uma onda (que parava) ou melhor: (que se continha); (que contivesse um momento [seu
4
rumor (de folhas líquidas)]) ]
SN 5)[Uma onda (que parava {n[aquela hora precisa (em que a pálpebra da onda cai sobre a
5 própria pupila)]}) ]
SN6)[Uma onda (que parara {ao dobrar-se}, interrompida}), (que imóvel se interrompesse no
6 alto de sua crista) e (se fizesse montanha {por horizontal e fixa}), mas (que {ao se fazer
montanha} continuasse água ainda).
SN 7)[Uma onda (que guardasse {n[a praia cama, (finita)] }, [a natureza (sem fim) (do mar de
que participa)], e ({em [sua imobilidade, (que precária se adivinha)]}, [o dom (de se derramar)
7
(que as águas faz femininas)] mais [o clima (de águas fundas)], [a intimidade (sombria)] e [certo
abraçar (completo) (que dos líquidos copias)] ].

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Soraia Farias Reolon Pereira

3.2.4 Estatística dos SNs da cadeia e análise da referenciação

Por meio da descrição da única cadeia referencial do poema “Imitação da água”, conseguimos
acompanhar a progressão dos SNs correspondentes ao tópico discursivo “uma onda”, o mais importante
informacionalmente, pois era a imagem que permitia a descrição da interlocutora que estava “de flanco sobre
o lençol”.

Colocação SNs/tópicos Nº de aparições no texto


1º “tu/mulher = uma onda” 1 categorização + 6
recategorizações

Considerando que o poema possui 8 SNs, pode-se dizer que ele se dedique integralmente a
referenciar o tópico “uma onda” (1 categorização + 6 recategorizações), caracterizando à exaustão o que
seria essa onda, o que é levar às últimas consequências o modo de organização descritivo. A cada SN, o
detalhamento vai sendo maior e os SNs vão aumentando de tamanho por conterem a cada sintagma um
número maior de orações adjetivas como SAdjs. Na primeira estrofe os SNs têm o tamanho de um verso e, a
partir da segunda estrofe, passam a ter o tamanho de uma estrofe, de duas, de três... A sensação que se tem é
que os SNs vão se avolumando como a onda que ao se imobilizar parou um processo e parece que vai se
adensando com mais água. A repetição de “Uma onda” no início de vários versos se constituiu em uma
anáfora também enquanto figura de linguagem, que não tem apenas o valor de retomada, mas o papel
estilístico de enfatizar, de repetir, não como uma redundância, mas como um adensamento da imagem da
“atmosfera marinha”.
Esse trabalho exaustivo de linguagem, a que chamei “a tortura da referenciação”, como uma
extremada descrição, revela o estilo próprio de João Cabral: o de explorar ao máximo o seu objeto poético,
retomando ao longo dos versos os conceitos das imagens e desdobrando esses conceitos em novas e mais
detalhadas imagens, através dos sintagmas nominais com seus sintagmas adjetivais (nesse poema, em forma
de orações adjetivas). Ele realizava a elucubração racional da linguagem para criar o ficcional, já que
considerava que a poesia se dirigia “à inteligência, através dos sentidos” (ATHAYDE, 1998, 55), e não ao
coração, e que era resultado de transpiração. Assim, João Cabral não se permite contaminar pelo
sentimentalismo e realiza uma sofisticada poética (anti)lírico-amorosa, porque difere do lirismo tradicional.
Aqui, a figura feminina é reinventada por um discurso poético que prioriza o laborioso exercício da escritura
como fonte de lirismo. E ele vai quase “ao abismo do incomunicável” para realizar o seu ofício.

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“Imitação da água”

A busca pela referenciação é tão intensa que o texto é quase totalmente tomado pelos sintagmas
nominais, o que pode também ser constatado pela marcação em negrito de todos eles no poema. A
magnitude do sintagma nominal constrói a significação, a coesão e a coerência desse poema.

4 CONCLUSÕES
Pela explanação ao longo do artigo, comprovo que acompanhar a referenciação de um texto,
observando os seus aspectos linguísticos e seu funcionamento discursivo, seja uma forma de detectar que
intenções comunicativas direcionam o enunciador para escolhas gramaticais sintático-semânticas dentre as
opções do sistema da língua portuguesa e, assim, construir em interação com este enunciador os sentidos
possíveis e a coerência deste texto.
Considerando que a textualidade se compõe dos aspectos pragmáticos, semântico-conceitual e
formal, penso que um texto se processe da seguinte forma: o aspecto formal ou microtextual é trabalhado de
acordo com os aspectos pragmáticos (tanto para a produção quanto para a interpretação de um texto) e esses
dois em sintonia é que compõem o aspecto semântico-conceitual, a coerência textual.
O acompanhamento dos SNs permite mesmo o acompanhamento passo a passo do sentido que vai
sendo construído ao longo do texto e permite ver como é dinâmica essa estruturação. Ela é que dá movimento
ao texto: a estruturação do SN recebe influência do ponto em que o texto se encontra e produz o movimento
seguinte do texto. Ela é um reflexo do movimento até aquele ponto e é um prenúncio do movimento que o
texto terá na sequência. Por isso, o papel muito importante da referenciação na coesão do texto e no
direcionamento do sentido. Como consequência, observamos também o papel importantíssimo do próprio
sintagma nominal na coesão. O SN é uma estrutura sintática que, na dinâmica textual, funciona com valor
sintático-semântico-discursivo, percorrendo o texto, realizando recategorizações do objeto-de-discurso e
construindo sentidos. No poema analisado, os SNs, responsáveis pela referenciação da mulher onda,
ocupavam quase todo o texto.
A análise do texto comprovou que há uma grande relação entre a arquitetura sintático-semântico-
discursiva da referenciação, o gênero textual e o modo de organização do texto. No subitem “Estatística dos
SNs da cadeia e análise da referenciação”, constatou-se que o tópico mais importante informacionalmente
tinha maior número de SNs e coincidia com as principais estratégias textuais do gênero e modo de
organização. O poema descritivo apresentou uma única cadeia referencial, que explorava o tópico discursivo
que ocupava todo o poema, mostrando a torturante busca pela referenciação do objeto descrito, em um

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Soraia Farias Reolon Pereira

laborioso empenho de criação artística. As diversas recategorizações durante a progressão do texto, vão
(re)construindo os objetos-de-discurso, as quais constituem um modo de avançar informacionalmente e de o
enunciador revelar o seu mundo conhecido, através de seu discurso. Por fim, considero que esse tipo de
investigação se justifique, pois reconhecer que nosso conhecimento do mundo se dá pela construção
discursiva e aprofundar o estudo dos caminhos da referenciação são atitudes que contribuem para o
desenvolvimento da metaconsciência textual e para a conscientização do papel da linguagem na vida
humana.

REFERÊNCIAS

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IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 81-102, 2º. Sem. 2014 | 101
“Imitação da água”

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.
PEREIRA, S. F. R. A referenciação e o mundo de nossos discursos: do sintagma nominal à construção das
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SENNA, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio: Antares, INL, 1980.

_______________________________________
Data de submissão: nov./2014.
Data de aprovação: dez./2014.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 81-102, 2º. Sem. 2014 | 102
A PRODUÇÃO DE TEXTOS E O TARÔ
Vera Cristina Rodrigues FEITOSA 1

RESUMO
À luz da simbologia das oito primeiras cartas do Tarô – os oito primeiros arcanos maiores –, o processo de
produção de textos é seccionado, propiciando uma compreensão abrangente e holística da atividade
redacional. Ao mesmo tempo, as figuras estampadas nas cartas instigam ao autoconhecimento no exercício da
atividade redacional, pois correspondem a arquétipos da psicologia junguiana. São, portanto, imagens
primordiais, simbólicas, que operam na psique humana iluminando sentimentos, capacidades, habilidades
correspondentes a cada estágio. A partir da libertação de amarras para a aventura do texto, com o Louco,
inicia-se um caminho de sete estágios de experiências, cada um presidido por um arquétipo: a descoberta do
desejo de comunicar, com o Mago; a atenção ao leitor, com a Sacerdotisa; a fertilidade criativa, com a
Imperatriz; o logos, a razão e a ordem, com o Imperador; os ritos dos gêneros do discurso acadêmico, com o
Hierofante; as escolhas discursivas e estilísticas, com o Enamorado; e os cuidados necessários à viagem do
texto, com o Carro.

PALAVRAS-CHAVE: Produção de textos. Textos de trabalho. Etapas da produção. Conhecimento da atividade.


Simbologia do Tarô.

ABSTRACT
In the light of the symbolism of the first eight Tarot cards – the first eight major arcana – the process of text
production is sectioned; this approach provides a comprehensive and holistic understanding of writing
activity. At the same time, the figures printed on the cards instigate self-knowledge in the exercise of editorial
activity, since they correspond to archetypes of Jungian psychology. These are therefore primordial, symbolic
images, which operate in the human psyche and illuminate feelings, abilities and skills that correspond to
each phase. The journey of seven stages of experiences starts with the liberation for text adventure, with the
Fool; each of them is chaired by an archetype: the discovery of desire to communicate, with the Magician;
attention to the reader, with the Priestess; creative fertility, with the Empress; the logos, the reason and order,
with the Emperor; the rites of genres in academic discourse, with the Hierophant; the discursive and stylistic
choices, with the Lovers; and the necessary precautions to text journey with the Chariot.

KEYWORDS: Text prodution. Texts of work. Production stages. Activity knowledge. Symbolism of the Tarot.

1 Doutora em Engenharia de Produção (Coppe/UFRJ), professora aposentada de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras (UFRJ),
consultora da Escola de Textos.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 103
A produção de textos e o tarô

ABRINDO O JOGO
Há uns doze anos, venho me valendo da simbologia das cartas do Tarô para ajudar alunos a
desenvolverem suas dissertações ou teses. Tem dado muito certo: ainda não tive reclamações, ninguém
pedindo seu tempo de volta. Pelo contrário, volta e meia encontro ex-alunos que relatam percepções como
“O Louco mudou minha vida”; “O que mais valeu foi a Sacerdotisa: descobri o leitor”. Vejam o que dizem os
organizadores da coletânea de artigos de fim de curso da turma de 2011:
O tarô nos acompanhou, abriu canais, tirou a caretice da sala de aula, sem prejudicar
em nada o rigor exigido para a execução de um projeto acadêmico. As entidades das
cartas, com seus simbolismos e significados, se tornaram aliados lúdicos, destravando
ideias e libertando as palavras para a composição do texto. (CAMPOS et al., 2012)

A propósito, já de início devo frisar que o que vou relatar nada tem de esotérico, embora o trabalho
que proponho com o texto não se resuma à utilização motivacional dos arquétipos do Tarô. A sequência das
figuras das oito primeiras cartas, ou arcanos, nos permite seccionar o processo redacional com uma
abrangência surpreendente e surpreendentemente holística: estágios e elementos se expõem em sua
singularidade e, ao mesmo tempo, em sua relação com o todo. Como o melhor dos métodos...
Os arquétipos do Tarô são também um eficiente instrumento de autoconhecimento: ajudam-nos a
nos questionar, a relembrar episódios adormecidos, estabelecendo relações antes insuspeitadas. Na psicologia
junguiana, arquétipos são imagens primordiais, simbólicas, que operam na psique humana. Assim, nesta
leitura, cada arcano ilumina sentimentos, capacidades, habilidades, comportamentos relacionados àquela
etapa do processo de produção, levando o aluno a se ver e a se conhecer no exercício de atividades de
escrita, e a conhecer melhor o trabalho de produção de textos.

A VIDA E OS ESCRITOS
“Tudo o que somos, temos, realizamos ou desejamos realizar deve estar legitimado pela palavra
escrita”, ensina Garcez (2001, p. 7-8). De fato, a comunicação escrita domina, inexoravelmente, nosso
mundo dito civilizado. Se nosso nascimento não está registrado num documento, para muitos efeitos, não
existimos. E assim vai, por toda a vida, com projetos, artigos, normas, resumos, comunicados, convocações
etc.
No entanto, a maioria das pessoas chega ao mundo do trabalho com experiência bastante limitada
em comunicação escrita. Na formação acadêmica de quase todas as profissões, fica uma lacuna: o
conhecimento prático e teórico dos tipos de texto que farão parte das atividades de trabalho. E as

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 104
Vera Cristina Rodrigues Feitosa

organizações onde essas pessoas vão trabalhar também falham no (re)conhecimento dos textos que nelas são
produzidos e consumidos. Resultado: pessoas aflitas e textos que não atingem seus objetivos.

PÉ NA ESTRADA
Acho que só alguns profissionais do texto se sentam diante do computador e “vapt-vupt”, lá brotam
as ideias em frases, as frases desdobrando-se em parágrafos, assim naturalmente, sem esforço maior, como é o
ato de respirar para nós, pobres mortais. Mas, possivelmente, eles dirão: “Nada disso, nós sofremos também, a
tarefa é pesada!”
Pôr o pé na estrada exige soltar amarras. E isso é mandatório quando escrever é parte de nosso
trabalho. Artigos, teses, projetos, relatórios, cartas ou e-mails, normas, procedimentos e tantos outros gêneros
do discurso acompanham as práticas cotidianas de trabalho de muita gente e, não raro, são a parte mais
torturante dessas práticas.
A verdade é que há mitos envolvendo – e bloqueando – a atividade de produzir textos, sobretudo
textos de trabalho. “Para escrever é preciso ter dom”, “Português é uma língua muito difícil”, “Só sabendo
muita gramática se pode falar e escrever bem” são assertivas que participam da extensa e equivocada
“mitologia” sobre o escrever e sobre a língua portuguesa (Bagno, 2003). E, além desses
mitos, há os medos... Há muito mais gente sofrendo para escrever – ou sofrendo por
não escrever – do que feliz com seus escritos, e é justamente esse prazer que
precisamos resgatar.
Para ajudar a desconstruir mitos, enfrentar medos e (re)descobrir prazeres, está
entrando aqui um personagem que reúne em si características e predicados de quem,
feliz e sem bloqueios, põe o pé na estrada com cara de “tô-nem-aí”. Neste momento,
ele vai ser nosso mestre – embora essa ideia de ser mestre nada tenha a ver com ele.

LIÇÕES DO LOUCO
Eis o Louco, o indefinido, esse andarilho ubíquo, livre para aparecer em qualquer lugar, nos pegar de
surpresa, perturbar, com suas travessuras, a ordem estabelecida. Perambula, livre, leve, alegre, sem pensar em
chegadas, sem qualquer objetivo, numa incansável busca de coisa nenhuma. Para ele, a vida é só
experimento. Ensina-nos que quem não tem destino traçado nunca poderá se perder. Nosso Louco, em sua
jornada de transformação, passará pelas 21 figuras arquetípicas do Tarô, estágios necessários para sua

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A produção de textos e o tarô

individuação. Seu número é o zero, que, nada sendo, pode vir a ser tudo. É o ovo, são as potencialidades, os
mistérios do devir. Tem também forma de ovo o embornal em que ele, displicente, carrega suas experiências.
O Louco nada teme, pois não conhece riscos, não planeja nem prevê. É puro instinto. Por isso, precisamos
cuidar de nosso Louco, manter um bom relacionamento com ele; afinal, quase sempre bem escondido dentro
de nós, ele está pronto para nos pregar peças. Ninguém pode ser verdadeiramente são se não recuperar sua
criança interior.

O PRIMEIRO SETENÁRIO
Antes de começar a jornada do texto, vale uma breve descrição do Tarô; afinal, o jogo não é tão
conhecido assim! O Tarô se compõe de 78 cartas, ou lâminas: 22 arcanos maiores e 56 arcanos menores,
estes últimos mais utilizados para práticas divinatórias. Só vamos trabalhar aqui com o Louco e os sete
primeiros arcanos maiores, ou seja, com o primeiro setenário, assim composto: Mago (arcano 1), Sacerdotisa
(arcano 2), Imperatriz (arcano 3), Imperador (arcano 4), Hierofante (arcano 5), Enamorado (arcano 6) e Carro
(arcano 7).

VOLTANDO AO LOUCO: OS MEDOS


A primeira providência é aceitar que escrever implica riscos, é entregar nossos medos a nosso Louco
interior. Quando escrevemos, nos expomos, e nem sempre o prazer de comunicar, de interagir, supera o
medo desse risco. Muitas vezes os pretextos para não escrever – falta de tempo, de espaço adequado, excesso
de tarefas – são uma negação de um medo que não queremos admitir. Mas se é o medo que nos bloqueia,
temos de conhecer a cara do vilão, para não ficarmos reféns dele.
No geral, as pessoas “sabem”, de antemão, que terão dificuldades ao produzir textos. Entram no
processo já meio derrotadas – isso quando entram –, pensando que não vão vencer o desafio da página em
branco; que não têm coisas importantes a dizer; que é muito difícil pôr o pensamento em palavras; que não

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Vera Cristina Rodrigues Feitosa

saberão dar ao texto uma boa organização; que vão cometer fatídicos e vergonhosos erros de português etc. E
o medo emperra qualquer movimento criativo.

UM EXERCÍCIO DE SADIA LOUCURA


Uma boa maneira de sair andando no texto é experimentar o exercício que descrevo a seguir. Trata-
se de uma espécie de “ditado silencioso”: enuncio um início de frase, e os alunos devem completar com o
que lhes vier à cabeça. Por exemplo: Quero estudar.../ Neste estudo examino.../ Neste relato vou enfocar... Já
tenho preparado um “baralho” de elos coesivos, que serão as placas de sinalização do Louco (cf. Quadro 1).
Elas devem ser sorteadas, uma após a outra, com intervalos de cerca de um minuto.

Quadro 1: Placas da Sinalização do Louco

aliás por outro lado assim quanto a de fato

por isso isso porque afinal no entanto tanto que

recentemente ou seja prova disso portanto seja qual for

mesmo assim apesar disso como decorrência a princípio até porque

paralelamente não raro de acordo com no intuito de na verdade

por exemplo a propósito enfim à medida que em suma

Sorteio a primeira, por exemplo por outro lado, e os alunos completam a frase com o que lhes vier à
cabeça. Abro outra placa, que pode ser mesmo assim, ou isso porque, ou de fato, ou tanto que etc., e eles
continuam a completar as sentenças, sempre com o limite de tempo. Assim, vou abrindo placas, até sair a que
diz em suma. Confesso: se o em suma sai logo no início ou demora demais, faço uma pequena trapaça, bem
à moda do Louco!

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A produção de textos e o tarô

O resultado do exercício costuma ser bem interessante, às vezes divertido. Muitos se espantam por
ter conseguido um texto “redondinho” e com boas ideias em tão pouco tempo. Transcrevo abaixo a
experiência de uma aluna.
Quero estudar acessibilidade no Museu Nacional da UFRJ; prova disso é que estou
cursando a Pós-graduação em Engenharia de Produção e já me aproximei da
instituição procurando entender seu funcionamento, dificuldades e necessidades.
Quanto ao tema escolhido, tenho profundo interesse e empatia, pois pensar que de
alguma forma meu trabalho possa vir a ajudar parte da sociedade que historicamente
é excluída é muito gratificante. Mesmo assim, às vezes me parece que esse tema já foi
muito explorado. Recentemente descobri que, quando se trata de acessibilidade,
normalmente escolhe-se apenas uma deficiência a ser tratada. Ou seja, como tenho a
pretensão de tratar o assunto acessibilidade de uma forma ampla, descobrindo formas
de inclusão de pessoas com deficiências definitivas ou provisórias ao ambiente
museal, penso poder abordar o tema escolhido por outro ponto de vista. Em suma, ao
escolher um assunto que me dá prazer em estudar, tenho certeza que o caminho de
minha pós-graduação será trilhado com grande alegria, e espero que o resultado de
meus estudos e pesquisas promova a inclusão plena, que é meu objetivo desde o
início.

DESAPEGO
Uma das mais sábias lições do Louco é o desapego. Se quisermos viver e escrever com leveza e
prazer, temos de correr atrás dessa característica. Quando nos desapegamos daquilo que escrevemos, os
ajustes sugeridos e as críticas que recebemos não doem: eles se direcionam ao texto, não a nós. São
contribuições, são bem-vindas. No lado oposto ao do desapego, está o perigoso perfeccionismo. Certa dose
de humildade é ótimo remédio. Não vou deixar de escrever meu texto porque o quero perfeito: vou fazer o
que posso; o melhor que posso, sem perder o prazer da atividade.

ESTÁGIO 1: A ATENÇÃO AO DESEJO


Já furamos bloqueios, soltamos amarras. No flanar de nosso Louco, passaremos por sete estações do
caminho em que desenvolveremos habilidades relacionadas às figuras arquetípicas estampadas nas cartas,
num processo semelhante ao que Jung conceitua como individuação: desenvolvimento de potencialidades,
ampliação da consciência e busca de conhecimento em que a pessoa vai saindo do estado infantil, de busca
de identificação, para tornar-se ela mesma, com personalidade individual, singular, mas com participação
intensa nas relações coletivas. No caminho aqui proposto, estaremos na busca constante de nossa
individuação como autores.

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Em tempo: vamos guardar numa pasta, num arquivo... num embornal, como o do Louco,
experimentos, achados, resultados de reflexões.

LIÇÕES DO MAGO
No percurso inaugurado pelo Louco, surge o Mago. Parado na encruzilhada
diante de sua mesa, onde depositou os instrumentos do espetáculo, dirige a atenção
para os passantes. Com sua varinha na mão, lembra um maestro – concentra as
energias, humanizando-as, e as dirige, para que não se percam. Não é um amador,
como o Louco. É um profissional, um artista sério, preocupado com o sucesso de sua
apresentação. Por isso, busca contato com seus desejos, quer descobrir o princípio
criativo, manipular a natureza, domesticar suas energias. O verbo do Mago é querer;
sua lei, a Vontade. O 1 é a fonte manifesta, princípio masculino, ativo, é o primeiro de
todos os números, o princípio do movimento, da vida. É a centelha que dá início. O conceito de 1 instaura o
“outro”, o 2, o yin, princípio feminino, passivo, receptivo. Mas, sem o 2, o 1 não existe – e vice-versa. Em sua
mão e sobre sua mesa estão objetos que simbolizam os quatro elementos – o bastão (fogo), a moeda (terra), a
taça (água) e a lâmina (ar). Fazendo-os desaparecer ou se transformar, o Prestidigitador às vezes nos engana,
mas sempre nos atrai. Mas, ele sabe, nenhum de seus instrumentos é mais potente em persuasão e fascínio
que as palavras.

PARA QUE ESCREVER?


Deixemos de lado finalidades como “para obter um título”, “para ganhar pontos no currículo”, “para
cumprir uma tarefa”. A energia que delas vem, no geral, é insuficiente para uma boa aventura. Assim como o
Mago – que, quando pega a batuta, tem planos em relação a seu público –, também nós devemos tê-los em
relação a nossos futuros leitores. Podem ser planos de:

 Fazer saber: interferir no sistema de conhecimentos do outro. A partir dessa intenção, produzimos
textos informativos. Alimentos como a batata, o tomate, o pimentão, o morango recebem altas doses
de agrotóxicos.
 Fazer pensar: atuar no sistema de opiniões e crenças do interlocutor, para reafirmá-las ou para
modificá-las. Vêm daí os elementos persuasivos dos textos.
 Poucos se dão conta de que, ao ingerir alimentos comuns como a batata, o tomate, o pimentão, o
morango, recebem doses cavalares de agrotóxicos.”

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A produção de textos e o tarô

 Fazer agir: provocar a transformação necessária para que o interlocutor se lance à ação que dele
pretendemos. Se você não quer envenenar sua família com o alto teor de agrotóxico da batata, do
tomate, do pimentão, do morango, compre alimentos orgânicos: é melhor do que gastar na farmácia.

Ora, podemos ter planos que envolvam essas três dimensões. O que importa é reconhecer nossa
intenção e ter controle dos efeitos discursivos que, às vezes sem querer, causamos. Nada é rígido na banca do
Mago: o lenço, de repente, vira flor.

O MAGO, DESCOBRIDOR DE DESEJOS


Assim, um dos primeiros passos – ou passes – é tirar de dentro da cartola nossos desejos. Se não
tivermos uma vontade bem definida, dificilmente o texto caminhará. Para (re)conhecer o fogo inicial – o
desejo de mergulhar na aventura – pedimos ao Louco que nos empreste seu exercício da Sinalização. Com
ele, faremos a Sinalização do Mago, usando apenas marcadores que indiquem vontade: Com este estudo (esta
pesquisa, minha tese/dissertação, este relatório) sobre..., pretendo..., com o objetivo de..., visando a ..., para
que..., a fim de que..., com o propósito de...., para, enfim, ... Chegaremos a boas e novas ideias se o racional
não embotar a mágica da intuição.

OS INÍCIOS: LUGAR DO MAGO


Como o Mago é o arcano de número 1, ele nos convida a cuidar dos inícios. Não devemos dispensar
o Mago, com mesinha e tudo, escrevendo inícios como Este artigo tem a finalidade de levantar dados e
estudar as implicações de... Os inícios são fundamentais para ganhar e manter a atenção do leitor. O Mago
nos ensina a caprichar nos textos introdutórios, nos inícios de capítulos, de parágrafos e até de frases.
É também nos inícios que nosso Mago nos guia a utilizar estratégias de persuasão, como
recompensa, castigo, sedução, provocação (FIORIN, 1989). Com elas, temos melhores chances de ganhar a
atenção do leitor para nosso texto. Porém, a persuasão deve ser sutil, como neste início, em que há
provocação: Apesar do grande número de organizações sociais existentes hoje no Brasil, poucas mudanças
ocorreram nos indicadores sociais. Ou neste, de recompensa: No cenário atual, progride quem estabelece o
diálogo entre as demandas da sociedade e a proposta de educação técnica .

UM MAGO OBJETIVO

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De seu lugar no início do caminho, o Mago olha para o futuro. São muitas as maneiras de nomear
seu querer: objetivo, alvo, meta, fim, propósito, intuito, finalidade, desejo, pretensão, aspiração, anseio, fito,
intento... Em sua mesinha, estão representados três elementos da natureza: água (taças); ar (espadas); terra
(moedas). O bastão, que simboliza o seu elemento, o fogo, está firme em sua mão. Com eles, vai nos ajudar a
moldar objetivos para nossos textos e a conhecer melhor nossos desejos.
Relacionam-se a água – domínio dos sentimentos, dos afetos, das emoções, dos relacionamentos,
dos valores – verbos como sensibilizar, comover, emocionar; reconhecer ou suscitar sentimentos; infundir,
inspirar, internalizar valores, valorizar etc. Objetivos água tocam os sentimentos e os valores do leitor: Infundir
no jovem o reconhecimento de sua importância como cidadão e como sujeito de sua história .
Ar se relaciona a ideias, conceitos, processos cognitivos de conhecimento e de compreensão:
classificar, compreender, conceituar, conhecer, criar, entender, idealizar, identificar, imaginar, perceber,
reconhecer, relacionar, saber, supor etc. são verbos do elemento ar. Desenvolver o entendimento de que a
conquista dos direitos sociais – particularmente sobre o trabalho – é fruto de lutas históricas dos trabalhadores.
Finalmente, o elemento terra, dos objetivos práticos, realistas: compor, construir, desenvolver,
documentar, elaborar, especificar, esquematizar, estruturar, formular, hierarquizar, integrar, operar, organizar,
praticar, produzir, promover, propor, relacionar, reunir, selecionar, sintetizar, solucionar, viabilizar etc.
Viabilizar o acesso às informações sobre direitos de inserção no mundo do trabalho .

A HISTÓRIA COMEÇA
Costumo trazer inícios de publicações para a sala de aula e fazer esta pergunta: Qual deles convida
você à leitura? Um início tem sido considerado dos mais atrativos:
Produzir textos é uma atividade extremamente necessária tanto na vida escolar como
na vida profissional e no dia a dia. Entretanto, no meu cotidiano docente, tenho
encontrado alunos, jovens e adultos já formados, ansiosos, assustados,
desencorajados, e, principalmente, desorientados quanto às habilidades e atitudes
necessárias ao convívio mais natural e simples com a escrita. (GARCEZ, 2001, p XIII).

Com simplicidade, a autora “ganha” os leitores mostrando que conhece muito bem o que aflige
grande parte das pessoas que precisam escrever. Ora, se ela conhece o mal, possivelmente pode ajudar na
cura... O leitor entende isso como uma promessa, uma recompensa para os que se fizerem leitores do texto.

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A produção de textos e o tarô

ESTÁGIO 2: A ATENÇÃO AO OUTRO


O que é, para você, escrever bem? A resposta a essa pergunta, no mais das vezes, remete para
qualidades intrínsecas ao texto: ter linguagem correta, concisão, boa organização estrutural. Mas a resposta
capaz de sintetizar e superar todas as outras possivelmente é esta: escrever bem é conquistar o leitor. O texto
só se completa no encontro com o leitor, quando ele aceita participar do diálogo proposto. Sem a leitura, a
página escrita não se faz texto, não se abre em sentidos. Agora, a Sacerdotisa, com sua infinita capacidade de
escuta e de compreensão, nos coloca outro desafio: mergulhar fundo nos desejos, anseios e temores do Outro,
do nosso leitor.

LIÇÕES DA SACERDOTISA
O Mago, sem público, não comunica, não persuade nem ilude. Não pode
ser Mago. O 1, sozinho, nada é, nada cria. Esse é o ensinamento primeiro da
Sacerdotisa, a expressão maior do seu saber intuitivo: tudo é dual, ambivalente,
paradoxal. A unidade se faz com a luz e a sombra; a vida e a morte são um só todo.
É na interação complementar autor-leitor que o texto se faz texto. A Sacerdotisa é o
princípio feminino, a paciência persistente e amorosa, a poderosa ação de quem não
se quer mostrar nem precisa se afirmar em disputas. Afinal, quem está sempre em
ação não pode refletir sobre os ensinamentos da ação. Saber é seu verbo; a Atração,
a sua lei. Representa o que não é revelado, o mistério. Tudo ela atrai para sua misteriosa rede, tudo ela
processa num trabalho interno, inconsciente, emocional, recôndito. Está sempre atenta: todos os seus sentidos
perscrutando o que acontece à sua volta. Por isso mesmo, sabe como ninguém se ver no lugar do outro e
imaginar como o outro a vê quando ela o está vendo...

A CONQUISTA DO OUTRO
O olhar para o outro é, para nós, uma inestimável oportunidade de crescimento. A Sacerdotisa nos
ensina a desenvolver a empatia, a trazer o outro para dentro de nós e “conversar” com ele. A situação de
produção de um texto se transforma, pois passamos a ter nosso futuro leitor, ou conjunto de leitores,
participando da atividade de redigir.
Decifra-me ou te devoro! Primeiro passo na resolução do enigma: assumir que nosso texto terá leitor
e definir quem será ele. Isso pode parecer óbvio, banal, mas a descoberta de que há leitor é para alguns o

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aprendizado mais importante em relação à produção de textos. Porém, nessa dança, não basta escolher o
parceiro: sem conhecê-lo, sem decifrar seus enigmas, falhas de comunicação encontram portas abertas.
É bem verdade que monografias, dissertações, teses serão obrigatoriamente lidas pelo professor
orientador e pela banca examinadora, uma vez que fazem parte dos requisitos para a obtenção de graus do
mundo acadêmico. Mas não é a esse tipo de leitor que estou me referindo. Para o texto fluir bem, a pessoa
com quem desejamos conversar não pode ser uma figura que nos vai julgar, avaliar. A Sacerdotisa representa
nosso leitor ideal, aquele que estimula em nós o desejo de comunicar. Trazer o ritual acadêmico para o texto
não é de sua alçada: fica para o Hierofante, no estágio 5.
Uma boa estratégia para encontrar nosso leitor é imaginar vários leitores diferentes e fazer, com cada
um deles, uma “entrevista” imaginária, formulando perguntas sobre conteúdos de interesse, grau de
conhecimento do assunto, formas de abordagem, utilização possível do texto, expectativas em relação a estilo
etc. Veremos que, para satisfazer a esses diferentes leitores, só escrevendo textos diferentes.

AS JUSTIFICATIVAS DA SACERDOTISA NA MESINHA DO MAGO


As justificativas são forte elemento de convencimento e persuasão; por isso, elas são do domínio da
Sacerdotisa e devem ser formuladas em consonância com os valores e as expectativas do leitor. Nossos
desejos de autores devem se “casar” com os desejos dos leitores, para que nossos objetivos de autores se
cumpram.
Uma diferença crucial entre as justificativas e os objetivos é que as primeiras se inscrevem no
presente e no passado, apontando lacunas e oportunidades, ao passo que os objetivos – e, não é à toa que se
relacionam ao Mago – são traçados para o futuro.
Para trabalhar as justificativas de nossos textos, podemos mais uma vez nos valer dos elementos da
mesinha do Mago, transformando as que são de natureza água em outras relacionadas a ar ou terra e vice-
versa. Observaremos, assim, o tema ou problema de diferentes perspectivas. Vejamos alguns exemplos:
Justificativas ar: O tema x é pouco estudado na perspectiva proposta; Os estudos sobre conservação
e biodiversidade tendem a só focalizar dados quantitativos.
Justificativas água: Há milhares de jovens em situação de vulnerabilidade social; Todo cidadão tem
direito ao trabalho e a viver entre os seus.
Justificativas terra: As vagas na pré-escola são insuficientes para atender à demanda da região; As
estradas vicinais estão em péssimo estado de conservação.

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A produção de textos e o tarô

OLHOS PARA LER, OUVIDOS PARA ESCUTAR


A Sacerdotisa, com seu livro aberto, nos diz também que muito já foi pensado e escrito sobre o
assunto que estudamos. Ela nos ensina que escrever bem exige ler muito, para nos inteirarmos do que já foi
dito, para descobrir, através da leitura de textos congêneres, como vamos compor nosso texto. A tese, a
dissertação, a monografia, o artigo, o projeto são construídos sobre o alicerce de muitos outros textos que, por
sua vez, tiveram por base outros tantos, e assim por diante. Ela nos aconselha a copiar ipsis litteris, no nosso
arquivo embornal, os trechos que nos interessam, para que mais tarde possamos citá-los, com todos os dados
bibliográficos, incluindo as páginas.

ESTÁGIO 3: A FORÇA CRIATIVA

Estão aqui a Sacerdotisa e a Imperatriz. Num pequeno filme imaginário, da esquerda para a direita,
podemos assistir ao desabrochar: os braços, antes fechados, se abrem, num gesto de sociabilidade; os cabelos
se desprendem da tiara rígida: ficam soltos, libertos, enfeitados com uma coroa também aberta; em vez dos
véus da misteriosa Sacerdotisa, asas para voar. O hábito de monja é abandonado e, em lugar do livro sisudo,
o escudo com a gloriosa águia. A mulher se mostra em sua plenitude.

LIÇÕES DA IMPERATRIZ
O Mago e a Sacerdotisa cumpriram sua missão, e é a Imperatriz quem, ousada, nutre e revela os
frutos dessa união. Ela proclama a fertilidade do amor, força regeneradora, ao ligar yang e yin, espírito e
carne, céu e terra. Com ela, tudo toma corpo, ganha forma e chega ao mundo sensorial. Sua lei é a Vibração;
seu verbo, ousar. A força criativa da intuição está em seu auge. A Grande Rainha segura displicente o cetro:
ela governa com o coração. Seu poder é o amor. Suas razões, a razão muitas vezes não compreende. A
Imperatriz ativa nossa sensibilidade artística, criativa, impele-nos a buscar todas as manifestações da beleza.

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As ideias nos vêm, generosas, pois nada em seu reino é escasso, contido. “Gente é para brilhar, gente quer
luzir”, muito bem disse Caetano Veloso. E esse brilho vem da força criativa, do potencial que precisamos
desenvolver para viver melhor no mundo. Nossa Imperatriz nos quer criativos, reluzentes, admirados,
parceiros do prazer. Nos quer ousados, cheios de entusiasmo e autoestima.

A PESSOA CRIATIVA
Algumas perguntas ajudam a ver se estamos bem de criatividade em relação ao texto que estamos
escrevendo. Por exemplo: Minha curiosidade sobre o assunto do texto está me levando à busca de novas
informações? Minha motivação para escrever vem de dentro, ou é como a cenoura que faz o coelho correr
atrás? O tema me entusiasma?
Além da curiosidade, da motivação intrínseca e do entusiasmo, são também características da pessoa
criativa a predisposição a correr riscos, a perseverança diante de obstáculos, a tolerância com diferenças, a
abertura para experiências, a coragem para expressar novas ideias, a autoconfiança, a autoestima. Costumo
pedir aos alunos que façam um pequeno texto intitulado Como me vejo no espelho da criatividade.
Transcrevo a seguir meu preferido:

- Espelho, espelho meu, existe alguém menos criativa do que eu?


- Sim, mestra, todas as amebas do mundo.
- Mas espelho, mesmo a ameba é capaz de ser múltipla, dividindo-se em
várias! Ademais, amebas não são pessoas.
- Ora, Milady, neste caso devo responder que não.

E decidiu ela mesma comer a maçã envenenada.

TRAZER IDEIAS À LUZ


Quando chegamos à Imperatriz, já crescemos como pessoas e como autores, com as lições do Mago
e da Sacerdotisa. Entendemos melhor o que queremos da vida e do texto, conhecemos o leitor, seus desejos,
os desejos que temos em comum. Com a Imperatriz, nos sentimos grávidos de ideias, conscientes de nossa
força criativa.
As ideias ou estão no ambiente ou se produzem dentro de nós. Muitas das que estavam no ambiente
já colhemos, movidos pela sede de saber de nossa Sacerdotisa. Agora chegou o momento de encontrar dentro
de nós e trazer à luz as muitas ideias contidas e escondidas, que virão enriquecer nosso embornal. Para isso,
as principais ferramentas que utilizo em sala baseiam-se, sobretudo, no raciocínio indutivo e no dedutivo. Só

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A produção de textos e o tarô

vou tratar aqui das que chamo Série de perguntas e Conversa telefônica. Também trabalho com
brainstorming, técnica bastante conhecida, e com mapas mentais, que estão bem explicados em sites
especializados.

SÉRIE DE PERGUNTAS
Se tivermos forte convicção sobre o tema em estudo, devemos traduzi-la numa frase maga e
responder a algumas perguntas. Podemos assim dar consistência e abrangência às nossas ideias, descobrir e
reforçar argumentos. Mas, para manter o foco, sem digressões, é preciso sempre responder partindo da
assertiva inicial, que responde à pergunta O quê? É ela a frase que nos impulsiona para a comunicação,
proclamando a ideia que queríamos que os leitores conhecessem e com ela concordassem. A partir de cada
pergunta, devemos registrar todas as ideias que vierem, mesmo que pareçam bizarras ou que se repitam em
outras respostas. Um exemplo:
O quê? A obesidade tornou-se um problema de saúde pública.
Quem? Que personalidades, grupos sociais, associações de classe, categorias profissionais,
entidades, setores governamentais etc. se unem à minha voz e defendem ou defenderiam essa ideia? Em
outras palavras, quem são os outros sujeitos desse enunciado? Nutricionistas, formuladores de políticas
públicas, organizações sociais, estudiosos do desenvolvimento local, líderes comunitários...
A quem? A quem – pessoas, comunidades, organizações etc. – a ideia, o cuidado, a medida pode
afetar direta ou indiretamente, favorável ou desfavoravelmente?
Onde? Aqui cabe uma varredura em todas as dimensões de espaço relacionáveis à assertiva inicial:
na casa, no bairro, na cidade, no país, no mundo; nos setores e departamentos de uma empresa; no chão de
fábrica, na central de atendimento etc.
Quando? A dimensão temporal do enunciado: das frações de segundo à eternidade; o ontem, o hoje,
o amanhã; o antes, o durante, o após, o concomitante etc.
Por quê? Esse é o espaço das justificativas: situações a serem modificadas, lacunas em
conhecimentos, valores desprezados, oportunidades a aproveitar.
Para quê? A que se quer chegar com a assertiva inicial? As transformações, os resultados que podem
ser obtidos com sua aplicação, sua realização.
Como? Os métodos, técnicas, estratégias, táticas.
Quais as condições? Os condicionantes físicos, psíquicos, cognitivos que possibilitarão que as coisas
aconteçam; as situações favoráveis, os eventos propícios.

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Quais as consequências? Os efeitos colaterais que se podem vislumbrar, para além dos resultados
imediatos.
Apesar de quê? O difícil, o negativo, o problemático. Normalmente aqui estão os argumentos dos
“adversários” de nossa ideia. É fundamental procurar conhecê-los, em detalhes. Uma das mais potentes
estratégias de comunicação é o “sim, mas”, em que concordamos com o argumento do oponente para
desconstruí-lo em seguida.
Ao final da série, você poderá fazer digressões conscientes, transformar em assertiva inicial respostas
dadas e refazer a série, integralmente ou em parte.

CONVERSA TELEFÔNICA
Para fazer um texto coeso e “redondo” em muito pouco tempo, podemos simular uma conversa
telefônica (MURRAY, 1969). A técnica relaciona-se ao Mago: a novidade deve vir logo no início, para
conquistar a atenção do leitor. Em seis ou sete minutos, podemos escrever algo como um resumo de
comunicação para congresso.
De início, mentalizamos o leitor – o interlocutor na conversa telefônica – e também o assunto de que
vamos tratar. Em sala, faço cada pergunta como se estivesse ao telefone, dando um intervalo de cerca de um
minuto para que os alunos anotem, uma a uma, as respostas que lhes vierem à cabeça. Não vale ficar parado,
pensando!
Qual a novidade? (o que você tem a me dizer de interessante?); Por quê? (por que é/foi assim, por
que você agiu/pensa assim?) Como? (Como você chegou a essa conclusão, a esse resultado?) E agora? (O que
você sugere como desdobramento?)
Ao fim, os alunos têm mais uns três minutos para passar a limpo o texto, tirando fora as perguntas
que fiz. Se for para fazer um texto de maior fôlego, cada frase do texto resultante da Conversa telefônica pode
se abrir em outros e mais outros subtemas.

ESTÁGIO 4: A RAZÃO E A ORDEM


O Louco não nos quer paralisados por mitos e medos. Já marcou nosso encontro com o Imperador,
arquétipo da razão e da ordem, obstinado em realizar. Grande estrategista, ele nos mostrará o que fazer para
atingir os objetivos já traçados.

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A produção de textos e o tarô

LIÇÕES DO IMPERADOR
Sentado em seu sólido trono, as pernas cruzadas em forma de 4, o poderoso Imperador vem
estabelecer a ordem no reino da Imperatriz, marcando o início do mundo patriarcal. Conservador, volta-se
para trás, para o passado, e nos apresenta o lado esquerdo de sua face: sua força está no hemisfério cerebral
esquerdo, de energia yang. Era preciso que ele viesse trazendo o logos, a organização, a hierarquia, o
comando. Pai e defensor da civilização, ele é a autoridade, o administrador imbuído de consciência social e
espírito comunitário. Sob seu domínio, o homem encontra lugar para erguer sua casa, pode construir sua
família e seu lar, relacionar-se com outras pessoas, ter vida comunitária nas aldeias e cidades. Protege todos
os seres de seu reino, legisla e governa com justiça e equilíbrio. Seu verbo é fazer, sua lei é a Realização. Com
seu poder de nomear, instaura a linguagem, linear e lógica. O princípio da razão se impõe, dominador, sobre
a natureza inconsciente. Nossos pensamentos e energias se voltam para a realidade, e passamos a ter senso
prático. Ele olha para a Imperatriz, com quem compõe o par real. Os dois se complementam: ela é a ideia, ele
a invenção; ela, o amor, ele, a razão; ela, a arte, ele, a ciência. Seguro de seu poder, o Imperador comanda
sem armadura: seu reinado é sólido, bem fundado, de paz.

ROTEIRO DE VIAGEM
O Imperador se espanta com a insensatez de quem quer empreender uma
viagem sem ter sequer um roteiro. Para ele, não se pode viver sem planejamento, sem
organização, sem senso lógico. A essa altura do processo, com nosso embornal já
cheio de ideias, precisávamos mesmo do Grande Pai, para ações como selecionar,
hierarquizar, planejar, desenhar estratégias. Para traçar o roteiro, nos perguntamos:
Quem é o leitor? Qual a informação mais importante para ele? A partir daí, vamos
buscar no arsenal de ideias em nosso embornal tudo o que pode se articular numa “espinha dorsal”, que
responda à necessidade do leitor. Um bom exercício é escolher três ou quatro leitores distintos e selecionar,
para cada um, um conjunto de conteúdos.
Da seleção dos conteúdos, passamos à sua hierarquização. Teremos de mobilizar capacidades e
habilidades para nomear conceitos e coisas, reconhecer o que é abstrato e o que é concreto, o que é geral e o
que é particular, as relações de pertinência e de causalidade, a fim de organizar as ideias em bases lógicas. É
preciso estar consciente do teor de generalização ou particularização das escolhas feitas. Não importa se é do
geral para o particular, ou ao contrário. Importa, sim, que saibamos o que estamos fazendo.

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Vera Cristina Rodrigues Feitosa

Vem o Mago nos lembrar de que, para o início do roteiro, devemos programar conteúdos que
possam ser muito importantes para o leitor ou que possam surpreendê-lo. O primeiro capítulo, o primeiro
parágrafo, a primeira frase devem transmitir uma mensagem como esta: Leia, que você vai gostar; são coisas
importantes para você.
Com os três ou quatro conjuntos selecionados, vamos hierarquizar os conteúdos e organizar roteiros
diferentes, que atendam aos três ou quatro leitores distintos, com seus interesses diversos, diferentes situações
de leitura ou de utilização do texto. Como numa viagem turística, um dos roteiros vai nos agradar mais, pois
nele desejos do Mago e da Sacerdotisa se encontram. Algumas dicas para a montagem do roteiro: não pode
haver item 1, se não houver item 2; sem 3.2, nada de 3.1; a numeração das partes, itens e subitens é sempre
em arábicos, sem mistura de letras ou de algarismos romanos; não pode haver título ou subtítulo sem texto
correspondente.
Para fazer um roteiro, podemos também usar as ideias geradas no exercício Série de perguntas. Por
exemplo: Apesar de quê? Nesse caso, aplicamos o “sim, mas”. A seção seguinte traria, por exemplo, os
porquês; a subsequente, as dimensões de tempo (Quando?) e de espaço (Onde?) e assim por diante. Com um
roteiro já bem definido, resumimos o que pretendemos escrever em cada item e subitem. Assim, testamos o
roteiro, que receberá as modificações, e damos um bom impulso no desenvolvimento do texto. Ao fim, o que
foi roteiro – guia para a escrita – se transforma no sumário, guia para a leitura e peça-chave para que o leitor
escolha para ler, entre tantos textos, o nosso.

DA MACROESTRUTURA À MICROESTRUTURA
O Imperador nos deu, com o logos, capacidades como nomear, classificar, definir, argumentar,
hierarquizar. Em troca, exige estruturação e gramaticalidade. Só assim poderemos atingir valores que lhe são
caros, como a coerência e a clareza.
Seguindo sua organização, passamos da macroestrutura do texto – roteiro/sumário – para o exame da
estrutura dos parágrafos. No entanto, ele quer mais que texto e parágrafos bem estruturados. Quer frases
completas e bem formadas, odeia ambiguidades, encavalamentos, falta de paralelismo, palavras vazias,
equivocadas. Parece ensinar: “Aprenda a escrever, aprendendo a pensar”! (GARCIA, 1995)

ESTÁGIO 5: A FORMAÇÃO DO HERÓI


Que impulso é esse, de todos os homens em todos os tempos, em direção ao misterioso, ao
inexplicável, ao transcendente? Por que queremos tanto acreditar que algo em nós é maior que nós mesmos?

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A produção de textos e o tarô

LIÇÕES DO HIEROFANTE
Talvez as duas criaturas façam ao poderoso Guia a pergunta de todos nós: de onde viemos, para
onde vamos? A lei do Hierofante é a da Inspiração, do Sopro Divino, seu verbo é conciliar. O Pontífice – o
construtor de pontes – promove a união, harmoniza os opostos. Partilha do divino e do humano: o homem
pertence ao tempo, mas é, em essência, imortal. O Hierofante anuncia e abençoa todas as uniões: entre os
homens, entre os diferentes países, etnias, classes sociais. Faz a ponte entre a consciência e o instinto, a teoria
e a prática, nosso interior e nosso exterior. Infunde-nos valores éticos. Aponta-nos o caminho da libertação: o
desenvolvimento da consciência e do conhecimento, para encontrarmos nossas verdades, assumir a
responsabilidade por nossa evolução. O Papa preside os rituais da nossa formação, nos ensina a viver em
comunhão com os companheiros das comunidades a que pertencemos. O número 5 representa a quinta-
essência, a substância etérea, imaterial, sutil de que se constituem os céus e os corpos celestes. Representa o
pentagrama, símbolo do homem, que é também a Estrela da Revelação, a que guiou os Magos até o Menino.

GÊNEROS DO DISCURSO
Não estamos desamparados. Temos a quem confiar o desenvolvimento de nossa consciência, de
nossa espiritualidade, de nossos valores éticos. Temos quem nos guie na busca do conhecimento e da
verdade. O Hierofante é o representante maior das instituições, o promulgador e guardião dos sistemas de
valores coletivos. É ele quem preside os ritos a que nossos textos de trabalho devem se conformar para
estarem adequados às situações sociais e comunicativas de que participam, para serem
relevantes, pertinentes e, assim, aceitos pelas pessoas ou grupos aos quais se destinam.
Mikhail Bakhtin, filósofo russo, verdadeiro Papa, propôs a palavra como
símbolo ideológico por excelência, transcendendo a visão de língua como sistema.
Mostrou que aprender a falar/escrever é aprender a estruturar enunciados. É
reconhecer e praticar os gêneros do discurso relevantes para as comunidades
discursivas de que fazemos parte, identificando-nos com seus membros, buscando
orientação dos mais sábios.

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Vera Cristina Rodrigues Feitosa

LEITORES E EXAMINADORES
Até esse ponto do percurso do texto, empenhamo-nos em buscar o que pudesse agregar valor para a
vida e para o trabalho dos leitores que elegemos. O Hierofante vem agora nos lembrar de que o texto da tese
ou dissertação terá outros leitores: os membros da banca examinadora. Eles vão avaliar, sobretudo, se o
candidato faz jus ao grau de mestre/doutor. Para tanto, verificarão o rigor metodológico da pesquisa, a
abrangência da revisão bibliográfica, a relevância das contribuições para a área de conhecimento, a
adequação e suficiência das citações etc. Este é o desafio: fazer um texto que seja atraente para nossos leitores
e, também, que atenda às exigências dos examinadores.

REPENSANDO O DISCURSO ACADÊMICO


Bakhtin (1997) aponta três elementos que caracterizam os gêneros do discurso: conteúdo temático,
composição e estilo. Como exemplo, tomemos uma receita de bolo, gênero do discurso familiar. O conteúdo
temático é naturalmente relacionado à culinária. A estrutura tem dois blocos distintos: a lista dos itens com
quantidades (preparação para a feitura do bolo) e o modo de preparo, que ensina como combinar, misturar,
cozinhar os ingredientes, num passo a passo das ações a serem realizadas. Os ingredientes são apresentados
em listagem de itens nominais, e o modo de preparo, em frases imperativas articuladas sequencialmente.
Mas é preciso lembrar que Bakhtin conceitua gêneros como tipos relativamente estáveis de
enunciados, de modo que a estrutura composicional não se confunde com forma fixa. O gênero receita, com
que exemplifiquei esse tópico, facilita a compreensão do que é estrutura composicional, por não comportar
variações consideráveis.
Mesmo não sendo possível apresentar “receita de bolo” para os gêneros que aqui nos interessam
particularmente, podemos apontar elementos que os caracterizam. A aceitabilidade de uma dissertação/tese
ou de um artigo por parte da comunidade acadêmica pode ser relacionada aos elementos caracterizadores do
gênero do discurso – conteúdo temático, composição e estilo. O leitor tem expectativas a respeito do tema do
texto, da perspectiva em que esse tema é trabalhado, do grau de aprofundamento dos subtemas. A adequação
do arcabouço conceitual e das escolhas metodológicas a essas expectativas é também fator essencial para que
um texto tenha boa aceitação. Em relação à estrutura composicional, as universidades, os centros de pesquisa
e os editores de revistas científicas costumam oferecer instruções ou manuais com as normas a serem
observadas na composição desses textos: os elementos pré-textuais, os componentes do corpo do texto, os
elementos pós-textuais. Recurso relacionado à informatividade dos textos acadêmicos é a utilização de

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 121
A produção de textos e o tarô

figuras, tabelas e quadros, assim como de notas, anexos e apêndices, glossários, índices; aliás, todos
submetidos a normas da ABNT.
No que concerne ao estilo, de que falaremos adiante, há uma exigência de inegável valor e
utilidade, embora nem sempre cumprida: os textos do discurso acadêmico devem ser escritos na variante
culta e formal da língua portuguesa.
A intertextualidade é uma característica particularmente importante nos textos do discurso
acadêmico. Sabemos que todo texto provém de outros textos. Mas, na academia e nos centros de pesquisa, os
textos obrigatoriamente “conversam” com outros da mesma área e de áreas afins. Por isso, nos gêneros do
discurso de que aqui tratamos, a revisão bibliográfica é imperativa. Ora, a ética do Hierofante exige que a
intertextualidade seja explicitada por meio de referências aos autores cujas vozes trazemos para nossos textos:
dar conta do quem-diz-o-quê nesse coro é uma arte e uma necessidade. A explicitação da presença de outras
vozes, que não a do autor, se faz com citações, notas, referências. É preciso conhecer as normas editoriais que
regem cada texto que escrevemos: o sistema de chamada – geralmente autor-data –, a maneira de apresentar
as referências bibliográficas, de utilizar figuras e tabelas etc.

ESTÁGIO 6: O LIVRE-ARBÍTRIO
“Se, em um dia de tristezas, você tiver de escolher entre o mundo e o amor,
escolha o amor, e com ele conquiste o mundo”. (Albert Einstein)

LIÇÕES DO ENAMORADO
Nosso herói agora surge como gente, entre gente como nós. A mulher da
esquerda, mais velha, é a mãe, que o domina; a da direita, representante do amor e do
novo, pretende ganhá-lo pelo coração. No alto, um pequeno deus trama um desfecho:
o jovem decidirá cortar o cordão umbilical, abandonar a casa dos pais, buscar seu próprio caminho. A
situação é conhecida: a encruzilhada e a escolha. Aliás, decidir é seu verbo, e sua lei, o Livre-Arbítrio. Pela
primeira vez, ele enfrenta a dúvida, está em conflito. Para os antigos alquimistas, o conflito é a prima materia:
sem enfrentá-lo não há crescimento. Escolher não escolher seria ficar engessado entre as duas mulheres que o
disputam. Ao se decidir por uma, deixará para trás boa parte de si mesmo. Mas estará firme no rumo de sua
individuação. Ao escolher a experiência desconhecida, desafiante, o Enamorado deixa para trás a confortável

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Vera Cristina Rodrigues Feitosa

zona do já conhecido, o cômodo caminho das repetições. Fez jus ao pleno uso do livre-arbítrio. É dono e
senhor de seus desejos. E responde por eles.

A DÚVIDA E O CONFLITO
No processo da produção de textos, podemos assim traduzir esse conflito: a mulher do lado
esquerdo representa o texto conservador, cioso da “neutralidade científica”, que não se importa com o prazer
na leitura, ao qual (que jeito!) nos acostumamos. Do lado direito, a moça loura representa o texto aberto para
o novo, refletindo o cuidado do autor com o parceiro-leitor, o prazer de comunicar.
Ora, apesar de a neutralidade científica ser um mito há muito enterrado, ainda convivemos com
dogmas como o de que o autor não pode aparecer em seu texto como sujeito enunciador. Mas, a bem da
eficácia comunicativa, o que devemos buscar é ganhar a atenção – e o coração – do leitor. Ao passar pelo
Hierofante, já conformamos nosso texto ao gênero tese/dissertação ou artigo no que se relaciona ao conteúdo
temático e à estrutura composicional. Agora temos de pensar em questões de estilo.

ESTILO E ELEGÂNCIA NO TEXTO ACADÊMICO


Harmonia, proporção, equilíbrio são qualidades atribuíveis à estrutura global do texto acadêmico. O
desenvolvimento das partes deve ser proporcional à importância do tema ou subtemas para o texto e para o
leitor. Nenhum item pode ser excessivamente conciso ou demasiado prolixo. Há que haver equilíbrio na
argumentação, nas justificativas, na exposição de conteúdos.
Mas uma dúvida persiste: Posso ou não posso escrever meu texto em primeira pessoa? Os artigos e
manuais, em geral, ordenam: Use a terceira pessoa – e mais adequado seria dizer a indeterminação. Em
outras palavras: Fuja, sujeito: o autor não deve aparecer em seu texto! Fica então proibido escrever “eu acho”,
“eu acredito”, “nós supomos”. No entanto, tudo bem com “acredita-se”, fórmula que transfere a crença do
enunciador para o geral das criaturas. De fato, quando uma pessoa se assume como enunciador de seu texto,
não tem mesmo que ficar avisando “eu acho/penso que”. Até porque, se for outro o que acha ou pensa, é
mandatório que isso seja sinalizado, com a explicitação do autor e/ou com referência bibliográfica.
O fato é que, quando regras editoriais obrigam o enunciador a se “esconder”, é preciso muito
cuidado com os problemas de regência, concordância, de construção frasal que costumam decorrer do uso
dos principais recursos de indeterminação ou ocultação do sujeito enunciador, como voz passiva,
nominalizações, personificações.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 123
A produção de textos e o tarô

Ocorre que o sujeito enunciador, em vez de fugir, também pode – e deve – se


posicionar. Nossa língua nos oferece amplo leque de recursos linguísticos para transmitir ao
leitor nosso grau de certeza em relação às afirmações que fazemos, nossa maior ou menor
adesão às ideias dos autores cujas vozes trazemos para o texto. No entanto, muitas vezes,
mesmo sem reparar, deixamos janelas abertas que dão a entender significados que,
conscientemente, não pretendíamos transmitir. Usamos modalizadores como “muletas”, ferindo a
credibilidade do nosso texto perante o leitor: “ Creio que é seguro afirmar que a eficiência do Instituto cresce a
cada dia”. Será mesmo? As modalizações devem ser usadas quando de fato temos a intenção de modalizar.
Expressões como “sem dúvida”, “vale dizer”, “cumpre afirmar” são sérias candidatas a ser dispensadas para se
ganhar mais elegância no estilo e a credibilidade do leitor.
A elegância de um texto é fruto, sobretudo, de cuidados. Cuidados de artesão, que ama o que faz:
não é por acaso que estamos no estágio do Enamorado. Devemos prestar atenção aos elos coesivos, aos
modalizadores, à transparência sintática das frases, precisamos eliminar ambiguidades, saltos lógicos. Com a
obstinação de um artesão, devemos buscar imperfeições no uso das palavras – excessos, inadequações,
repetições, construções perifrásticas, pleonasmos etc.
Na verdade, a base e condição do bom estilo é a clareza. Com quebras de paralelismo, frases
truncadas, ligações mal feitas, pontuação caótica, não há artesanato que dê jeito!

ESTÁGIO 7: A VIAGEM
É hora de partir. As principais decisões foram tomadas, o embornal tem quase tudo o que precisamos
na viagem. Coisa ou outra que faltar, será providenciada ao longo do caminho. O que importa mesmo é a
consciência de que a hora é esta.

LIÇÕES DO CARRO
Nosso herói já inicia sua viagem com jeito de vitorioso. Não está mais preso numa encruzilhada,
com o destino sendo tramado à sua revelia. Enfim, toma as rédeas de sua vida... Mas reparem: não há rédeas!
Mesmo assim ele tem pleno domínio dos animais e da situação e segue com autoconfiança, gosto pela
aventura, flexibilidade para conciliar, coragem e disposição, além de muito prazer no empreendimento de se
autodescobrir. O triunfo está à vista, mas não virá de mão beijada: as rodas do carro diferentes, desalinhadas
em relação ao caminho, exigem do condutor muito equilíbrio externo e interno. Os cavalos, também forças

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Vera Cristina Rodrigues Feitosa

divergentes, respondem ao poder mental do condutor, que sabe quando se deve valer da energia física,
simbolizada pelo vermelho, ou da azul, símbolo da espiritual. O número 7 tem forte sentido de completude:
foram 7 os dias da criação do mundo; o processo de que resulta o ouro alquímico tem 7 estágios, com 7
metais, sob a influência de 7 planetas. A lista é enorme: sacramentos, chacras, mares, ventos, notas musicais
etc.

CONDIÇÕES DE TRABALHO
Não raro o texto que temos de escrever parece mais um carro fugindo de nós. Achamos, então, que
nunca vamos ter a energia do jovem da carta 7. Nada grave, mas é preciso refletir sobre isso, pois, no geral,
somos nós que estamos fugindo dos riscos que percebemos na tarefa de trabalho. É bom acordar nosso Louco
e nosso Mago...
A produção do texto – que para nós é trabalho – exige atenção às condições físicas, temporais e
organizacionais em que vamos realizá-la. Escrever exige alto grau de concentração, o que a maioria das
pessoas não consegue num ambiente de entra e sai, com pessoas conversando, telefones tocando, ruídos
diversos, excesso de calor ou de frio. Precisamos observar o que impede nossa concentração e encontrar
estratégias de isolamento. Devemos nos munir de todo o material de que vamos necessitar: para isso
trouxemos para a viagem o embornal repleto de itens já escritos, parágrafos bem adiantados, figuras, tabelas,
trechos para citações etc. É fundamental também dimensionar tempo para a tarefa: certamente já conhecer
nossos ritmos – de quanto precisamos para entrar na atividade de escrever, para permanecer nela sem fadiga.
Para a atividade redacional não se pode dizer que faltem prescrições: são muitos os bons livros e os
manuais detalhados que tratam do que deve ser feito para se elaborar um bom texto. E, mesmo assim,
constata-se uma “epidemia” de problemas, tanto nos textos acadêmicos quanto nos empresariais. O que não
funciona, então? É bem possível que a raiz desse problema esteja mesmo na pouca familiaridade do
trabalhador-redator com os gêneros do discurso inerentes a suas atividades profissionais.

POR ONDE COMEÇAR A VIAGEM?


Dar a partida costuma ser difícil. Mas podemos revisitar roteiros feitos no estágio do Imperador,
aprimorando-os, sem esquecer as lições do Mago, de dar visibilidade para o que mais pode interessar ao
leitor. Sobretudo, não podemos parar em emboscadas. Das respostas à Série de perguntas – é uma ideia –,
escolhemos uma para início, e vamos em frente! O embornal pode também conter um resumo interessante,

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A produção de textos e o tarô

que pode ser melhorado e expandido. A hora é de seguir em frente, deixar o Carro andar, assumir sua
condução e pedir trégua ao senso crítico: só andar para trás se for imprescindível para o avanço. Algumas
paradas serão necessárias, como em outras viagens: é parte do processo a tarefa de reler o texto com olhos de
leitor crítico.
Para melhor resultado, precisamos de um tempo para descansar de nosso texto – e ele de nós. A
revisão deve constituir-se numa leitura muito atenta, feita em voz alta (é preciso mesmo que seja em voz alta!)
para que possamos perceber problemas de pontuação, incorreções de concordância e regência, quebras na
construção de frases, falhas nos elos coesivos, repetições, ecos, aliterações, problemas de ritmo ou prosódia.
Como costuma acontecer com todas as nossas tarefas, também a produção e a revisão têm de ter um
ponto final. Sem aflição: ponto final, no texto, é quase um troféu. A sorte está lançada. E será uma boa sorte,
nos segreda o Carro!

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 20ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1979].
CAMPOS, Cesar; HOLANDA, Claudia; LUSTOSA, Martha (Org.). A aventura de escrever II. Rio de Janeiro: E-
papers, 2012.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto/Edusp, 1989.
GARCEZ, Lucília Helena do Carmo. Técnica de redação: o que é preciso saber para bem escrever. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. Aprenda a escrever, aprendendo a pensar. Rio de
Janeiro: FGV, 1995.

__________________________________________
Data de submissão: out./2014.
Data de aprovação: dez./2014.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 126
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS

A extensão do arquivo deve ser “doc” ou “rtf”, nas versões do MS Word até 2003. O texto deverá seguir as
instruções de formatação apresentadas a seguir:

• O texto deverá ter, no mínimo, 10 (dez) páginas e, no máximo, 25 (vinte e cinco) páginas, em papel
tamanho A4, margens de 3,0cm (superior, inferior, direita e esquerda). A fonte a ser usada deverá ser a Time
News Roman 12, para todas as partes do texto, incluindo-se o título, a autoria, o corpo de texto, as citações,
as epígrafes, as referências e as notas (apenas de rodapé).

• O título (na primeira linha da página) deverá ser em negrito, com todas as letras maiúsculas. No caso de
subtítulo, todas as letras serão minúsculas.

• O parágrafo centralizado, espaço simples de entrelinhas, sem qualquer entrada ou recuo.


• Após o título, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo (recuo de 1,5cm) sem texto (linha vazia logo
abaixo do título).

• Logo após esse parágrafo sem texto, (na linha imediata abaixo da linha vazia) indica-se a autoria (nome
SOBRENOME, exatamente nessa ordem e dessa maneira), sem negrito ou itálico; parágrafo à direita, espaço
simples de entrelinhas, sem qualquer entrada ou recuo (não indicar titulação ou vinculação institucional).

• Junto ao SOBRENOME do autor, em modo sobrescrito (ou índice superior), incluir nota de rodapé,
iniciando em 1. Nessa nota de rodapé, informar a maior titulação acadêmica, os vínculos institucionais de
interesse e demais detalhes que julgue necessário sobre o autor, como, por exemplo, vínculos de
orientação/supervisão, vínculos com projetos de pesquisa, participação em GTs etc.

• Após a indicação da autoria, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto (linha vazia logo
abaixo da autoria).

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o RESUMO, em
parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha. A palavra RESUMO toda em maiúscula, seguida de dois-
pontos <:> e do texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras. Deve-se enviar o
RESUMO em língua portuguesa.

• Após o RESUMO, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto (linha vazia logo abaixo do
RESUMO).

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 103-126, 2º. Sem. 2014 | 127
Normas para publicação

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,
em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE
toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 6 (seis) .

• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.


• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o RESUMO EM LÍNGUA
ESTRANGEIRA (inglês, francês, espanhol ou italiano), em parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha.
A palavra RESUMO, na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:> e do
texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras.

• Após o RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto
(linha vazia logo abaixo do RESUMO).

• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,
em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE,
na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e,
no máximo, 6 (seis).

• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.


• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), inicia-se o texto, que é o CORPO
DE TEXTO.

• O parágrafo de CORPO DE TEXTO deverá ter espaço 1,5 (um e meio) de entrelinhas, ser justificado e
adentrado na primeira em 1,25cm (tabulação padrão do Word).

• O parágrafo de citação (apenas quando a citação exceder em 3 linhas no CORPO DE TEXTO ou for
composta de versos) deverá ter espaço simples de entrelinhas, ser justificado, sem adentramento na primeira
linha e ter recuo de 2,5cm à esquerda.

• As citações no CORPO DE TEXTO devem ser feitas “entre aspas” (não em itálico); as citações em
parágrafo de citação não deverão vir nem “entre aspas” nem em itálico. Após as citações, as referenciações
devem vir entre parênteses, da seguinte maneira: (SOBRENOME: ano, p. XX). Nas REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS, ao final do texto, devem ser incluídos apenas os títulos efetivamente citados ou
referenciados ao longo do texto.

• Nas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, deve-se seguir o modelo padrão da ABNT NBR 6023 2002:
SOBRENOME, Nome. Título. Cidade: Editora, ano.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 127-129, 2º. Sem. 2014 | 128
Normas para publicação

Veja exemplo extraído da ABNT NBR 6023 2002:


GOMES, L. G. F. F. Novela e sociedade no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998.

• Os artigos devem ser acompanhados de breve biografia do autor, e as notas de rodapé devem ser
evitadas.

• Somente serão publicados os textos que seguirem, rigorosamente, essas normas de apresentação do
original, sendo seu teor e redação – inclusive quanto a eventuais erros de digitação, gramaticais ou
conceituais – de inteira responsabilidade do(s) autor(es), não havendo compromisso de revisão dos textos por
parte dos Editores.

Os artigos podem ser enviados como anexos para o e-mail: revistaidioma@gmail.com.


O endereço para correspondência:
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE LETRAS
Secretaria dos Departamentos
Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Bloco B, sala 11.020, Maracanã
Rio de Janeiro, RJ -- CEP 20559-900.
A correspondência deve ser posta aos cuidados dos professores Claudia Amorim, Tania Camara e Flávio Barbosa.
Tel./Fax: +55( 21) 2334-0245 / 2334-0196 / 2334-0165 - e-mail: revistaidioma@gmail.com

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