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DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO:

IMPLICAÇÕES CURRICULARES
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Anna Maria Marques Cintra

Editora da PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente)
José Rodolpho Perazzolo
Karen Ambra
Ladislau Dowbor
Lucia Maria Machado Bógus
Mary Jane Paris Spink
Miguel Wady Chaia
Norval Baitello Junior
Oswaldo Henrique Duek Marques
Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Diversidade na educação:
implicações curriculares
ALÍPIO CASALI
SUELY CASTILHO
organizadores

São Paulo
2016
Copyright © 2016. Alípio Casali, Suely Castilho. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP

Diversidade na educação : implicações curriculares / orgs. Alípio Casali, Suely


Castilho. - São Paulo : EDUC, 2016.
224 p. : 23 cm
Bibliografia.
ISBN

1. Cultura afro-brasileira - Estudo e ensino. 2. Currículos - Leis e legislação - Brasil.


3. Pluralismo cultural - Educação. 4. Brasil - Relações raciais. I. Casali, Alípio. II. Castilho,
Suely Dulce.
CDD 370.981
375.001
379.155

EDUC – Editora da PUC-SP


Direção
Miguel Wady Chaia

Produção Editorial
Sonia Montone

Preparação e Revisão
Siméia Mello

Editoração Eletrônica
Waldir Alves
Gabriel Moraes

Capa
Equipe Educ

Administração e Vendas
Ronaldo Decicino

Rua Monte Alegre, 984 – Sala S16


CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br
Site: www.pucsp.br/educ
Apresentação
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva1

No contexto da implantação da política pública curricular estabelecida pelas


leis 10.639/2003 e 11.645/2008 – obrigatoriedade do ensino das histórias e
culturas afro-brasileira, africana e dos povos indígenas – pesquisas, como as
que constituem a presente obra, põem em evidência diversidade de inter-
pretações enraizadas em distintas visões de mundo, pontos de vista culti-
vados a partir de grupos sociais e suas culturas que, embora constituintes
da sociedade brasileira, têm sido ao longo dos séculos desvalorizadas.
Currículo é lugar de poder, de transmissão de expectativas que a
sociedade cria em torno de pessoas, dos grupos sociais e de lugares que
devam nela ocupar. Políticas públicas curriculares visam corrigir distorções
de objetivos e metas da educação, sempre que estes declarada ou tacitamente
prejudicam, desvalorizam uns e privilegiam outros. A política curricular de
reconhecimento e valorização das histórias e culturas dos afro-brasileiros,
dos africanos, dos povos indígenas, que visa a corrigir distorções e desi-
gualdades persistentes ao longo de séculos, “está fundada em dimensões
históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca
combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os
negros” (Brasil, 2004) e também, é claro, os povos originários do nosso
país.
Os estudos que constituem a obra, aqui apresentada, mostram que
a diversidade nos jeitos de ser, construir a vida, próprios de alunos e das
comunidades das quais são oriundos, bem como o entendimento do que
seja ensinar e aprender da parte de seus professores, em diferentes níveis
e modalidades de ensino, ajudam a repensar o propósito da escolarização,
a entender que ser diferente não impede de ser, enquanto cidadão/ã, igual.
Mais ainda, incentivam os leitores/as a ter presente que as diferenças entre
as pessoas e os grupos sociais é realidade cotidiana na vida dos brasileiros/
as, por isso precisam ser compreendidas e vividas positivamente. Também

1 Professora emérita da Universidade de São Carlos, SP. <http://lattes.cnpq.br/5770245673371690>


mostram que o meio, para tanto, é o convívio respeitoso e atento, como
ensina o professor Fiori (1986): “Nossos caminhos pessoais são os mais
diversos, num horizonte necessário de comunicação”.
A comunicação acolhedora, construída com respeito e paciência
é, pois, meio indispensável para a reeducação das relações étnico-raciais,
conforme prevê o Conselho Nacional de Educação nas Diretrizes Curricu-
lares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em sua Nota 1. Respeito aos
sistemas de conhecimentos, à cosmovisão próprias a indígenas, a afro-brasi-
leiros, a asiático-brasileiros, a euro-brasileiros, manifestado na proteção,
divulgação em pé de igualdade e valorização de suas produções, enraizadas
em pertencimento étnico-racial próprio. E também, é claro, valorização
daquelas produções que vão resultando da comunicação entre distintos
pertencimentos étnico-raciais.
Os artigos que seguem indicam alguns canais e incentivam para
que se criem outros, a fim de se estabelecer necessária comunicação entre
pesquisadores, professores, estudantes, famílias dos alunos, comunidades
das quais são oriundos. Os entendimentos de uns hão de incidir, afetar,
confirmar, opor-se aos dos outros. Dessa forma, a experiência de cada um/a,
os entendimentos que tiver colhido e construído no convívio podem contri-
buir para uma educação enraizada no jeito de ser e viver dos brasileiros,
que longe de ser uniforme é ricamente diverso.
A presente obra, conjunto de significativos estudos, ao mesmo tempo
que celebra a diversidade da população brasileira, denuncia o projeto de
sociedade excludente, ainda predominante entre nós; argumenta com vigor
no sentido de combate ao racismo; convida a repensar a educação dos brasi-
leiros e brasileiras; propõe encaminhamentos para reeducação das relações
étnico-raciais.
Que a sua leitura fecunde nossos pensamentos e iniciativas de
educadores!
REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Educação (2004). Parecer CNE/CP 3/2004.


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana. Brasília.
FIORI, E. M. (1986). Conscientização e Educação. Educação e Realidade,
v. 11, n. 1, jun./jul.
Sumário

Introdução....................................................................................................11
Alípio Casali e Suely Castilho

1. FUNDAMENTOS DA DIVERSIDADE CURRICULAR:


TEORIAS PARA PRÁTICAS

O reconhecimento mútuo como conceito


e como política curricular..........................................................................19
Alípio Casali
Sueli Borges Pereira

A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito


à diversidade étnico-racial ........................................................................41
Kátia Régis

Currículo e filosofia nativa ........................................................................59


Janina Sanches

Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas


no campo do currículo................................................................................75
Marinês Viana de Souza

2. FUNDAMENTOS DA DIVERSIDADE CURRICULAR:


TEORIAS EM PRÁTICAS

Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso:


contexto, texto e análise............................................................................97
Suely Dulce de Castilho
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações
da educação escolar indígena .................................................................117
Alexandre Herbetta

Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso:


avanços e desafios ....................................................................................137
Darci Secchi

3. PRÁTICAS CURRICULARES DA DIVERSIDADE

Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca


no município de Inhagapi – Pará/Amazônia .........................................159
Salomão M. Hage
Ricardo Augusto Gomes Pereira

Noções de currículo da educação integral


nos processos formativos em Mato Grosso...........................................175
Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta
Ozerina Victor de Oliveira

Letramento crítico para a diferença: repensando o currículo e


a formação de professores de inglês no curso de Letras....................191
Danie Marcelo de Jesus

4. SEGURANÇA PARA PRÁTICAS CURRICULARES


DA DIVERSIDADE

Currículo e culturas na formação policial.............................................205


Ronilson de Souza Luiz
Introdução
Alípio Casali
Suely Castilho
(orgs.)

O reconhecimento do valor irredutível da diversidade humana é


fenômeno contemporâneo. Depois de estar assujeitada ao monocultura-
lismo colonialista pós-iluminista, desde os primeiros relatos da nascente
antropologia cultural, a diversidade ganhou reconhecimento filosófico
com a fenomenologia e encontrou a plenitude de sua validação nas teorias
contemporâneas de ética e moral e nos estudos culturais das últimas três
décadas.
Desde então, o olhar sobre a condição humana, para além do essen-
cialismo, tem explorado o feixe infinito dos modos de ser e de se pensar
a cultura. As práticas interculturais puderam então desenvolver-se inten-
samente nos diversos campos – econômico, político, social, estético – em
que pese a força centrípeta de homogeneização cultural atuando em sentido
contrário no movimento de globalização do capital. E tem sido no campo da
educação e especificamente dos estudos curriculares que o tema da diversi-
dade vem encontrando as mais surpreendentes novas formas de se pensar e
interagir com o diverso.
É no âmbito desses estudos curriculares que a presente coletânea
se insere. Seu objetivo é apresentar fundamentos e experiências de currí-
culos organizados a partir da (e em função da) diversidade cultural. Isso
implica de partida problematizar o monoculturalismo, decorrente seja
da ênfase sobre as bases universalistas da educação, seja de projetos de
dominação (política, de mercado, confessionais, etc.), tanto no campo da
educação formal quanto não-formal, a fim de se ressaltar o valor estraté-
gico das práticas pedagógicas interculturais para o desenvolvimento social.
O que se pretende é oferecer um conjunto de reflexões contributivas para
o avanço da educação comprometida com o desenvolvimento humano em
sua plenitude.
12 Alípio Casali, Suely Castilho

Para isso, entra na discussão sobre novos conceitos e novas polí-


ticas curriculares educacionais em termos de reconhecimento, afirmação
de identidades étnico-raciais, respeito a diferenças culturais, valorização
de saberes locais, dentre outras. Os textos problematizam teorias e práticas
curriculares que ainda insistem em adotar referências monoculturais tecni-
cistas, eurocêntricas, etnocêntricas, sexistas e racistas, portanto, exclu-
dentes. Apontam, denunciando, as variadas dissimulações ideológicas desse
monoculturalismo, destacando-se dentre elas os dispositivos redutivos de
qualidade na educação, mormente o conceito de competências, reduzido
ao cognitivo e, pior, ao aplicável às demandas do mercado de trabalho. Ao
mesmo tempo, estes textos apontam para a possibilidade (e necessidade)
de revisões, reformulações e avanços curriculares, que aliás já vêm sendo
conquistadas por essa parcela da população que cada vez mais se percebe,
sente-se e declara-se, implícita ou explicitamente, alijada de seus direitos.
Os textos desta coletânea foram elaborados por pesquisadores-
-educadores que se movimentam sobre o chão de suas vivências e experi-
ências pessoais de solidariedade e compromisso prioritário com os deser-
dados da escola e com os nela precariamente incluídos, cujo direito de dela
usufruir foi e continua sendo forjado em interstícios inquietos, pungentes
e agonísticos da sociedade “moderna”, investida na diluição das assimetrias
sociais, das desigualdades raciais, étnicas, de gênero, de sexualidade e de
estética.
Os artigos que compõem esta coletânea se encontram divididos em
quatro blocos. No primeiro bloco, estão aqueles que exploram fundamentos
da diversidade curricular a partir de teorias, ainda que sempre mirando
possibilidades de novas práticas.
Nesse primeiro conjunto, apresentam-se inicialmente Alípio Casali
e Sueli Borges Pereira, que trabalham, a partir de Paul Ricoeur (2006), o
reconhecimento mútuo como conceito e fundamento para uma política curri-
cular intercultural, em diálogo com Taylor (2000) e Honneth (2003). Casali
e Pereira procedem a uma discussão analítica de como a legislação de polí-
ticas curriculares para a educação étnico-racial vem traduzindo esse termo
e propõem a inscrição da identidade étnico-racial na lógica do reconheci-
mento mútuo.
Na sequência, Kátia Regis toma o mesmo conceito de reconheci-
mento, agora na perspectiva do direito à diversidade étnico-racial, e o faz
tendo como referência a lei 10.639/2003. A autora problematiza alguns
Introdução 13

desafios epistemológicos postos às políticas públicas para que as Diretrizes


Nacionais Curriculares para a Educação das relações étnico-raciais e demais
legislações sejam efetivas para a realização do direito, o fortalecimento das
identidade, as ações educativas de combate ao racismo e discriminações na
sociedade e no cotidiano escolar. Concluindo, discute a responsabilidade
do Estado em relação à diversidade étnico-racial, apontando as políticas
públicas como indispensáveis para induzir mudanças concretas nas insti-
tuições educacionais que se pretendem antirracistas e multiculturais.
Em seguida é Janina Sanches quem adentra o caminho de Hermes
na floresta para tecer uma mitohermenêutica do currículo e ressignificar
os direitos humanos na educação. Com base em estudo e experiência de
pesquisa sobre a educação intercultural e direitos humanos, aprofunda
reflexões, propondo a inclusão da filosofia nativa no currículo nacional.
Recorrendo à metodologia mitohermenêutica (Ferreira-Santos, 1998, 2003)
que é ao mesmo tempo mitológica, hermenêutica, antropológica (Durand,
2002), com base na teoria da dinâmica dos instintos de Szondi (1970) e nos
direitos humanos, defende a valorização da maneira de pensar dos povos
nativos do Brasil e da América Latina, visando contribuir para a percepção
dos valores espirituais da nossa maneira cultural de conhecer e ser sensíveis
às necessidades de Ser na diversidade, com confiança no convívio humano
em diversidade.
Fechando o primeiro bloco, Marinês Viana de Souza, com sensibi-
lidade artística, repensa as articulações teóricas no campo do currículo,
fazendo uma revisão crítica desse conceito e do de diversidade, tendo
em vista o ensino da arte em ambiente de diversidade cultural. Esta, para
realizar-se como prática curricular crítica, deverá superar os modelos e
estereótipos eurocêntricos e abrir-se à arte nacional em sua exuberante
diversidade.
Em seu conjunto, esses autores do primeiro bloco procuram trazer
alternativas teóricas inovadoras para se pensar o caráter multicultural da
paisagem humana e escolar e os fundamentos de um currículo formativo
intercultural.
O segundo bloco prossegue com a exploração dos fundamentos
da diversidade cultural, agora, ao revés do primeiro bloco, demons-
trando a presença de arcabouços teóricos dentro de práticas curriculares
interculturais.
14 Alípio Casali, Suely Castilho

Esse bloco se abre com Suely Dulce de Castilho e sua propositura


de referências para a elaboração de políticas curriculares para a educação
quilombola, a partir de uma experiência concreta de pesquisa realizada
em um quilombo mato-grossense. Castilho procura demonstrar como
os estudos pós-colonialistas têm franqueado uma lente epistemológica
renovadora, abrindo novas possibilidades de releituras críticas, do ponto
de vista dos colonizados ou dos herdeiros desse processo, produzindo
conhecimentos em que se alicerçam outras vozes: mulheres, colonizados,
quilombolas, negros em geral, portadores de sexualidade não-hétero, entre
outros. Teoricamente, persegue encontrar os pontos convergentes entre os
discursos de Fanon (2008), Bhabha (2003) e Freire (1987), com vista à
construção de uma teoria crítica, pós-colonial, elucidativa das discussões
sobre afirmação identitária e cultural do povo negro brasileiro diante de
uma escolarização patologicamente e idilicamente branca. Parte do pres-
suposto de que os mitos narcísicos criados, tanto da negritude quanto da
supremacia branca, representam uma alienação. Portanto, ambos os mitos
devem igualmente ser desconstruídos com o mesmo empenho e rigor.
O fluxo crítico segue com Alexandre Herberta, que, igualmente a
partir de uma experiência pedagógica concreta, pensa sobre a dinâmica
dos temas contextuais e repensa a educação escolar indígena. Herberta se
posta, em seu escrito, como uma voz extensiva à dos indígenas de diversas
etnias que participam do curso de Licenciatura Intercultural Indígena ofere-
cido pelo Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena – NTFSI,
da Universidade Federal de Goiás – UFG. Ele revela o que os alunos-
-professores indígenas pensam sobre a educação escolar indígena e como
constroem suas experiências curriculares por meio da dinâmica dos temas
contextuais – método de ensino que parte da cultura cotidiana (local) para
o entendimento de novos saberes (intercultural, contemporâneo). Trata
também das transformações por que passam os professores indígenas, suas
escolas indígenas, o NTFSI, a UFG e os professores não indígenas, a partir
das experiências construídas em conjunto, nesse curso.
Esse segundo bloco se fecha com Darci Secchi que, também em
terreno de prática curricular intercultural concreta, repensa a construção
coletiva do currículo das escolas indígenas. Secchi problematiza a atual
concepção hegemônica acerca das escolas indígenas as quais se resumem
nos quatro adjetivos – específica, diferenciada, bilíngue e intercultural –,
apontando as controvérsias, equívocos e dissonâncias entre as políticas
Introdução 15

curriculares que as propuseram e os anseios das próprias comunidades. O


autor relata também sua experiência vivida ao participar da construção de
currículos específicos que assegurassem o “marco nacional”. Enfim, Secchi
descreve como foi encaminhado esse processo, de forma inovadora, recen-
temente, em Mato Grosso. Por se tratar de uma iniciativa inédita, poderá
ensejar replicações em outras regiões.
No terceiro bloco, encontramos a descrição crítica de três práticas
curriculares de diversidade. O conjunto é aberto por Salomão M. Hage e
Ricardo Augusto Gomes Pereira. Mediante investigação bibliográfica,
documental e pesquisa de campo, esses autores analisam a relação entre a
educação e a identidade cultural de jovens na comunidade quilombola de
Itaboca, localizada no município de Inhangapi, no estado do Pará. Revelam
a trajetória de uma experiência de reconhecimento que reflete a memória
individual e coletiva dos sujeitos dessa comunidade, demonstrando como
o processo educativo permeou a experiência individual e social de viver
a ancestralidade no território. Apontam para a necessidade de todos que
fazem parte da comunidade se envolverem na construção das políticas e
práticas curriculares para a região.
Maria Anunciação P. Barros Neta e Ozerina Victor Oliveira prosse-
guem com uma reflexão sobre as noções de currículo que tem subsidiado
processos formativos de professores comunitários, articuladores, monitores,
voluntários, dentre outros profissionais da rede pública municipal e esta-
dual de educação do estado de Mato Grosso que desenvolvem atividades
de educação integral do Programa Mais Educação. Apresentam as temáticas
selecionadas pelos professores participantes do curso de especialização, a
partir do que consideraram necessário para formação. Relatam a rica expe-
riência de construção coletiva de currículo em que os professores-cursistas
ganham vozes preponderantes.
A terceira descrição crítica de prática curricular é de Danie Marcelo
de Jesus, que focaliza os modos concretos de realização de currículos. O
autor, a partir de observação da existência de um número expressivo de
discentes que se manifestavam com identificações homoeróticas, tanto no
ensino médio como na universidade, e também após perceber a negação dos
professores em trabalhar essa temática em sala de aula, propõe uma reflexão
sobre a importância de um currículo que acolha as diferenças como algo
16 Alípio Casali, Suely Castilho

inerente à natureza humana e que lhe confere uma qualidade irredutível.


Sugere, nas aulas de inglês, o que ele designa de letramento para as dife-
renças, articulando a questão de gênero, da sexualidade e da diversidade.
O quarto e último bloco da coletânea consiste exclusivamente no
artigo de Ronilson de Souza Luiz, que aborda o currículo de formação
do policial militar ante a proteção aos direitos humanos e à cidadania em
ambientes de diversidade cultural. Alicerçado em pesquisas com poli-
ciais militares de São Paulo e análises da Matriz Curricular Nacional para
Formação da Polícia Militar, o autor lança um olhar crítico sobre o caráter
tecnicista e conteudista presente na concepção de formação e no modelo
de currículo e de gestão da formação policial. Argumenta em favor de polí-
ticas de formação capazes de humanizar a formação do policial em todos os
níveis e em todos os estados da federação, tendo como uma das referências
do conceito de humanização o reconhecimento da sua inerente diversidade
cultural.
Esse conjunto de textos, como se percebe, são ao mesmo tempo
uma exaltação da diversidade e uma convocação para a continuidade do
compromisso histórico dos educadores pela justiça cultural que ampare a
dignidade inerente a todos os indivíduos em suas diferenças e a todos os
grupos em sua diversidade.
1. FUNDAMENTOS
DA DIVERSIDADE CURRICULAR:
TEORIAS PARA PRÁTICAS
O reconhecimento mútuo como
conceito e como política curricular 1

Alípio Casali2
Sueli Borges Pereira3

Neste artigo abordamos o modo como Ricoeur (2006), em diálogo com


Taylor (2000) e Honneth (2003), concebe o tema do reconhecimento, tendo
em vista que o referido tema é crucial para a completa compreensão da
diversidade no currículo, assim como para sua prática apropriada, particu-
larmente no que se refere à educação para as relações étnico-raciais. Ainda
que reconheçamos a importância de Taylor (2000) e Honneth (2003) sobre
o tema, nossa posição pessoal se identifica com a concepção mais próxima
a Ricoeur (2006). Assim sendo, adotaremos o reconhecimento mútuo como
um conceito suficientemente consistente e operativo para pensar critica-
mente a legislação, as políticas e as práticas curriculares para a educação
para as relações étnico-raciais.
A análise do tema, neste artigo, está exposta em dois itens, a seguir.
No primeiro, abordamos como Ricoeur constrói o seu conceito de reconhe-
cimento mútuo. No segundo, usamos o tema do reconhecimento para reler
criticamente a legislação sobre a educação das relações étnico-raciais, nota-
damente as leis nº 10.639/2003, o parecer CNE/CP nº 3/2004 e a resolução
a ele correspondente, a resolução CNE/CP nº 1/2004, de modo a destacar
as concepções de currículo implicadas na questão, em seus aspectos ideoló-
gicos e culturais.

1 Este artigo se originou da tese de doutorado intitulada O currículo como percurso de reconhecimento
da identidade negra: políticas e práticas curriculares no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Maranhão, pelo Programa de Educação: Currículo da PUC-SP, defendida em dezembro de 2013,
sob a orientação do professor Alípio Casali.
2 Graduado em Filosofia. Mestre, doutor e pós-doutor em Educação. Professor da Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo – PUC-SP. <http://lattes.cnpq.br/7969272872511400>
3 Graduada em Filosofia. Mestre em Filosofia e doutora em Educação. Professora do Insti-
tuto de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Maranhão – IFMA. <http://lattes.cnpq.
br/1705315745590200>
20 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO
DE RECONHECIMENTO MÚTUO

Há muito Ricoeur merecia estar mais presente nas teorias curricu-


lares. Seus escritos, referidos pela relação entre fenomenologia, existen-
cialismo e personalismo, movem-se sobre um solo de compreensão da
existência humana enquanto existência cultural, com forte ênfase nas expe-
riências de alteridade, pluralidade, reciprocidade, mutualidade e, agora sob
especial interesse nosso, experiências de reconhecimento mútuo.
Tal abordagem permite aportar importantes elucidações acerca das
potencialidades de funcionamento do currículo. O próprio título de uma
de suas mais importantes obras, justamente esta trazida aqui como refe-
rência – Percurso do Reconhecimento – já assinala seu parentesco semântico
com nosso campo de estudos curriculares enquanto “estudos de percursos”.
Neste artigo, Ricoeur será trazido na companhia de Taylor (2000), dialo-
gando sobre o multiculturalismo e a política de reconhecimento, e de
Honneth (2003), dialogando sobre os níveis de reconhecimento.
Nosso estudo deve partir da obra ricoeuriana Percurso do Reconheci-
mento (2006), principalmente em seus segundo e terceiro estudos, intitu-
lados respectivamente de “Reconhecer-se a si mesmo” e “Reconhecimento
mútuo”. Convém delinear de modo mais minucioso qual a problemática da
obra e como ela se desdobra em torno do tema.
O Percurso do Reconhecimento é proveniente de três conferências
proferidas pelo filósofo francês, feitas no Institut für die Wissenschaften
des Menschens, de Viena, a qual é retomada de forma mais elaborada nos
Husserl-Archiv de Friburgo (ibid.). É constituída de três longos estudos:
o primeiro, “O reconhecimento como identificação”, o segundo, “Reco-
nhecer-se a si mesmo”, e o terceiro estudo, “O reconhecimento mútuo”.
Eles correspondem às três ocorrências da palavra “reconhecimento”, cujos
significados são de ordem epistemológica, antropológica e política.
Tais estudos correspondem ao percurso do reconhecimento nos quais
o filósofo francês destaca o que ele chama de três “picos” de pensamento:
momento do reconhecimento como identificação, que tem como expoente
Kant; momento do reconhecimento de si, centrado na filosofia de Bergson; e
o momento do reconhecimento mútuo, cujas ideias originais advêm de Hegel.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 21

Tanto Ricoeur, como Taylor e Honneth, reconhecem que a intuição mais


original acerca do papel central do reconhecimento mútuo na sociabilidade
humana deve-se a Hegel.4
Ricoeur não reivindica a elaboração de uma teoria do reconhecimento;
opta antes pelo simples uso da expressão percurso, e justifica sua escolha a
partir do questionamento que está na origem do seu trabalho, qual seja:

existe uma contradição entre a ausência na história das doutrinas filosó-


ficas em matéria do reconhecimento comparável à do conhecimento e a
coerência que, no plano lexicográfico, permite colocar sob o único verbete
no dicionário a variedade de acepções do termo reconhecimento. (Ibid., p.
9)

Com efeito, segundo nosso autor, “a pesquisa foi suscitada por um


sentimento de perplexidade concernente ao estatuto semântico do próprio
termo ‘reconhecimento’ no plano do discurso filosófico” (ibid.). Para ele,
existe, portanto, uma lacuna no plano filosófico que contrasta com o dicio-
nário Le Grand Robert, sua principal fonte lexical sobre o tema, pois neste,
apesar da multiplicidade de acepções atribuídas à palavra reconhecimento,
o termo figura envolvido numa notável unidade lexical. Mas Ricoeur aqui
chama atenção para evidências de que a dispersão da palavra “reconheci-
mento”, no plano filosófico, seja apenas aparentemente aleatória. Isso equi-
vale a dizer que existe uma relação interna entre as três ocorrências filosó-
ficas: a kantiana, a bergsoniana e a hegeliana, por ele identificadas.
Nesse sentido, ele pretende “conceder à série de ocorrências filosó-
ficas da palavra ‘reconhecimento’ a coerência de uma polissemia regrada,
digna de oferecer a réplica à do plano lexical” (ibid., p. 10). Acrescenta
nosso autor:

a dinâmica que inspira a pesquisa consiste em uma inversão, no plano


próprio da gramática, do verbo “reconhecer”, de seu uso na voz ativa para
seu uso na voz passiva: eu reconheço ativamente alguma coisa, pessoas, eu
próprio, eu peço para ser reconhecido pelos outros. (Ibid.)

Na introdução do Percurso de Reconhecimento, o filósofo se dedica a


demonstrar em que consistem os significados lexicográficos do vocábulo
“reconhecimento”, manejando dois dicionários da língua francesa: o Dictio-

4 Em páginas posteriores abordaremos a problemática hegeliana do reconhecimento.


22 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

nnaire de la Langue Française, publicado por Émile Littré de 1859 a 1872, e o


Grand Robert de la Langue Française, sob a organização de Alain Rey, datada
de 1985. No primeiro dicionário citado, são constatadas 23 significações.
Cabe destacar que, de acordo com a primeira significação, reconhecer
é conhecer, ou seja, o que se colocou novamente na mente é a imagem, a
ideia; e na última, o reconhecimento figura como gratidão. Em comparação
ao dicionário de Littré, ele busca inovações no Le Grand Robert. Os signi-
ficados da palavra “reconhecimento” neste último se enquadram numa
“arquitetura hierárquica dos empregos em forma de ramificação” (ibid.,
pp. 21-22). Vejamos o percurso dos sentidos da palavra em três movimentos:

I. Apreender (um objeto) pela mente, pelo pensamento, ligando entre si


imagens, percepções que se referem a ele; distinguir, identificar, conhecer
por meio da memória, pelo julgamento ou pela ação.
II. Aceitar, considerar verdadeiro (ou como tal).
III.Demonstrar por meio de gratidão que se está em dívida com alguém
(sobre alguma coisa, uma ação). (Ibid., pp. 22-23)

Diante dessa polissemia regrada da língua natural, a preocupação de


Ricoeur (ibid.) consiste em compreender como fazer a passagem desta para
a formação de filosofemas dignos de figurar em uma teoria do reconheci-
mento. A preocupação em fazer a progressão ordenada do termo “reconheci-
mento” inevitavelmente se estenderá para o de “identidade”.
A esse respeito, ele anuncia o percurso da identidade, começando
com “a identificação do ‘alguma coisa’ em geral, reconhecido como ‘outro’
de todos os outros, passando pela identificação de ‘alguém’, por ocasião da
ruptura com a concepção do mundo como representação [...] e identidade
na mutualidade” (ibid., pp. 261-262).
No que se refere às acepções filosóficas, Ricoeur primeiramente
aborda Descartes e Kant. O ponto de partida é o reconhecimento como iden-
tificação e, em Descartes, encontra-se que “reconhecer” significa “distinguir
o verdadeiro do falso”; diferentemente de Descartes, em Kant, “reconhecer”
significará “ligar”.
Não obstante, argumenta Pellauer (2009), Ricoeur vê de pronto que
temos que ir além do reconhecimento das coisas como coisas e passar ao
reconhecimento de nós mesmos e dos outros como sujeitos.
No segundo momento, do reconhecimento de si, cujo ápice é
Bergson, Ricoeur busca a contribuição da memória para o reconhecimento
de si, na expectativa de sua contrapartida na promessa. Assim, memória
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 23

e promessa se encontram na ponta da problemática do reconhecimento.


Baseado em Bergson, Ricoeur concluirá que o ato concreto por meio do
qual reconhecemos o passado no presente é o reconhecimento.
Essa etapa do percurso se constitui uma referência importante para
se pensar que a dignidade dos sujeitos passa pelo seu reconhecimento e
pelo reconhecimento dos outros como sujeitos, ainda que nessa relação
esteja presente uma “persistente dissimetria”. Esse autoreconhecimento
está ligado à nossa capacidade de imputar responsabilidade a nós mesmos
e aos outros.
Para exemplificar tal assertiva, nosso autor recorre tanto à história
de Ulisses quanto à de Édipo Rei. Por que a recorrência a esses persona-
gens? Em virtude de que eles se constituem como “verdadeiros centros
de decisão”5. Diz ainda que ele recorre aos antigos gregos porque nesse
contexto estão presentes as “ideias de responsabilidade na ação de justiça e
das motivações que conduzem os indivíduos a realizar atos que serão admi-
rados e respeitados” (Ricoeur, 2006, p. 88).
Ainda nesse segundo momento do percurso, o filósofo desenvolve
a fenomenologia do homem capaz. A noção de capacidade é fulcral para
a hermenêutica do si, propugnada por Ricoeur. O homem capaz se define
pelo uso da palavra, pela ação, pelo ato de narrar e narrar-se e de poder
assumir as consequências de seus atos (imputabilidade).
É na capacidade de narrar e narrar-se que o filósofo coloca a questão
da identidade pessoal, a qual está ligada ao ato de narrar que se projeta
como identidade narrativa. Sobre ela, pondera Ricoeur:

A ideia de identidade narrativa dá acesso a uma nova abordagem ao conceito


de ipseidade, que, sem a referência à identidade narrativa, é incapaz de
desenvolver sua dialética específica da relação entre duas espécies de iden-
tidade, a identidade imutável do idem, o mesmo, e identidade do móvel do
ipse, do si, considerada em sua condição histórica. (Ibid., p. 116)

Desse modo, a identidade narrativa coloca em dialética a identidade


enquanto mesmidade com a ipseidade, que podem ser assim caracterizadas:

Ao primeiro tipo de identidade [...] todos os tipos de permanência no


tempo, desde a identidade biológica assinada pelo código genético, balizada
pelas impressões digitais, a que se acrescentam a fisionomia, a voz, o jeito,

5 Aqui Ricoeur (2006, p. 87) se baseia nos estudos de Williams (1993) e sua tese sobre o “reconhe-
cimento da responsabilidade”.
24 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

passando pelos hábitos estáveis até as marcas acidentais por meio das quais
um indivíduo se faz reconhecer, ao modo da grande cicatriz de Ulisses.
Quanto à identidade-ipse, pertence à ficção produzir uma série de varia-
ções imaginativas graças às quais as transformações do personagem tendem
a tornar problemática a identificação do mesmo. Há casos extremos em que
a questão da identidade pessoal se torna tão confusa, tão indecifrável, que a
questão da identidade pessoal se refugia na questão nua: quem sou? (Ibid.,
p. 117)

Ademais, a fenomenologia do ser humano capaz envolve tanto a


atestação quanto o reconhecimento, porém ambos têm sentidos diferentes.
Enquanto atestação pertence à família do testemunho; o reconhecimento,
pois, está ligado mais aos processos de identificação e autoidentificação. Os
dois, a atestação e o reconhecimento, fazem intersecção, mas na certeza e
segurança com que dizemos “eu posso” (Pellaeur, 2009).
Além disso, também, dizemos e experimentamos que podemos
imputar nossos atos ao nosso eu e assumir responsabilidade por eles.
E ainda, por nos distinguirmos entre nós e os outros, ao dizermos “eu”,
já surge a questão do reconhecimento por parte dos outros que imputam
meus atos a mim. Pois,

O reconhecimento mútuo pode ser gerado à medida que perguntamos em


que medida nosso autorreconhecimento requer e mesmo depende desse
reconhecimento pelos outros. Tal reconhecimento alheio, segundo Ricoeur,
é necessário para alcançar um sentido pleno de nós mesmos como sujeitos
responsáveis, mesmo que ele não seja sempre concedido e até se por vezes é
deliberadamente contido ou negado. (Ibid., p. 173)

Ainda sobre a problemática do reconhecimento de si, Ricoeur


arrola a capacidade de poder lembrar-se e a capacidade de fazer e cumprir
promessas. A primeira volta-se para o passado e a segunda, para o futuro.
Nesse sentido, para Bergson,6

[...] o ato concreto por meio do qual reconhecemos o passado no presente


é o reconhecimento. Nossa lembrança [...] permanece ligada ao passado
por raízes profundas, e, se, uma vez realizada, ela não fosse sentida em
sua virtua­lidade original, se ela não fosse, ao mesmo tempo que um estado
presente, algo que se decide sobre o presente, jamais reconheceríamos como

6 Ricoeur (2006, p. 135) recorre a Bergson a partir do seu tema do “reconhecimento das imagens”.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 25

uma lembrança. É o enigma completo da presença da ausência que é reafir-


mado: decidir sobre o presente, reconhecer como uma lembrança. (Apud
Ricoeur, 2006, p. 137)

Sobre a promessa, Ricoeur destaca que esta envolve tanto a dimensão


linguística quanto a questão moral. As promessas envolvem a capacidade de
assumir compromissos utilizando a língua, como também colocam em jogo
a relação de uns com os outros como possíveis beneficiários das promessas.
No entanto, a ênfase deve ser revertida. Pellauer (2009, p. 173) explora
o que significa essa reversão: “é necessário reconhecer que nós mesmos
somos capazes de fazer promessas apenas pelo fato de já termos sido benefi-
ciários das promessas e ações alheias”. Essa inversão introduz a ideia de que
temos uma dívida para com os outros.
Até agora foram tratadas as formas individuais das capacidades; falta
mencionarmos as formas sociais que fazem a transição entre o reconheci-
mento de si e o reconhecimento mútuo. Se as capacidades individuais são
atestadas unicamente pelos indivíduos, as capacidades sociais são reivindi-
cadas por coletividades e submetidas à apreciação e às provações públicas
(Ricoeur, 2006).
Nesse sentido, o conhecimento-atestação cede espaço a formas de
justificação ético-jurídicas que colocam em causa a ideia de justiça social.
Para fundamentar a passagem do reconhecimento de si para o reconheci-
mento mútuo, Ricoeur se reporta ao conceito de capabilidades,7 sendo este
a junção das capacidades sociais e do direito.
Para uma melhor compreensão do trajeto dos significados filosóficos
do reconhecimento, no primeiro e no segundo estudo, convém demonstrar
em quadro sinótico os referidos significados.

7 Para fundamentar essa passagem, o filósofo francês recorre ao economista Sen (1999, apud
Ricoeur, 2006, p. 147). Esse autor defende a reintrodução de considerações éticas na teoria econô-
mica. Discute desenvolvimento atrelado à questão da liberdade, isto é, a liberdade de ação, segundo
ele, é condicionada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas.
26 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

Quadro 1 – Sinótico dos significados que antecedem o reconhecimento mútuo


Filósofos Acepções filosóficas
Reconhecimento como identificação de qualquer coisa em
geral. O sujeito pretende efetivamente o domínio intelectual
1º estudo: Descartes
sobre o campo das significações e das afirmações significativas.
Reconhecimento significa “distinguir o verdadeiro do falso”.
Reconhecimento como identificação de qualquer coisa em
geral. O sujeito pretende efetivamente o domínio intelectual
1º estudo: Kant sobre o campo das significações e das afirmações significativas.
Reconhecimento significa “ligar no tempo”, este concebido não
apenas como sucessão, mas como cumulativo.
No segundo estudo, destacam-se as características (capacidades
que modulam o poder de agir do sujeito, o seu agency, ou seja:
o homem capaz se define pelo uso da palavra, pela ação, pelo
ato de narrar e narrar-se e de poder assumir as consequências
2º estudo: Bergson
de seus atos).
Reconhecimento de si mesmo implica memória. Reconhecimento
significa “o ato concreto pelo qual reconhecemos o passado no
presente”.
Fonte: Os autores.

No terceiro estudo do percurso do reconhecimento, Ricoeur (2006)


identifica o “reconhecimento mútuo”8, que, segundo ele, é a forma de
reconhecimento mais autêntica; o que faz as pessoas serem o que são, e
seu modo de ser implica a solicitação de serem reconhecidas. Na acepção
do filósofo, o reconhecimento como “gratidão” surge apenas no final
do percurso dos significados. Aqui também, o abordaremos apenas ao
final do texto.
Ricoeur (ibid.) acrescenta que, no plano filosófico, o desejo de “ser
reconhecido” é o horizonte do tema hegeliano da luta pelo reconhecimento,
que, para ele, é a grande revolução conceitual do tema, algo não previsto
por Littré. Ricoeur parte da hipótese de que a Anerkennung9 hegeliana é
uma resposta na qual o desejo de ser reconhecido ocupa o lugar do medo e
da morte da anterior concepção hobbesiana do estado de natureza.
Considera fundamental retroceder aos escritos de Hegel, em Iena,
em função de que, nos escritos desse período, encontram-se os primeiros
embriões de uma “teoria do reconhecimento” que jamais foi escrita. A

8 O tema da luta pelo reconhecimento, articulada por Hegel, será guiada pela ideia de uma resposta
ao desafio de Hobbes, resposta na qual o desejo de ser reconhecido ocupa o lugar do medo da morte
violenta na concepção hobbesiana do estado de natureza.
9 Anerkennung aparece nos dicionários sob duas significações: 1) reconhecimento; 2) legalização.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 27

questão inicial colocada é se existe na obra O Sistema da vida Ética,10 o que


pode ser considerado um antecedente verdadeiro da teoria da luta pelo
reconhecimento.
O filósofo concorda que essa obra inaugura uma teoria do reconheci-
mento destacando que a presença de tal antecedente pode ser detectada em
duas passagens: “o primeiro vinculado à formalidade do direito, principal-
mente da troca, e o segundo à estrutura da governança do povo sob a égide
da justiça” (ibid., p. 194).
Com efeito, a questão é: a ordem política pode ser fundada em uma
outra experiência moral diferente da proposta de Hobbes?
Em consonância com Honneth, o filósofo francês observa que
o conceito de Anerkennung satisfaz a essa exigência em três aspectos: 1)
garante o vínculo entre a autorreflexão e a orientação rumo ao outro; 2) a
dinâmica de todo o processo procede do polo negativo rumo ao polo posi-
tivo, do menosprezo à consideração, da injustiça rumo ao respeito; 3) a
teoria do reconhecimento extrai seu aspecto sistemático de sua articulação
em níveis hierárquicos correspondentes a instituições específicas.
Em diálogo com Hegel e Honneth,11 Ricoeur interpreta que é da
primeira parte da obra de Hegel que Honneth irá discernir o primeiro de
seus três modelos de reconhecimento. Ricoeur entende que em Hegel a
relação que reconhece é a relação do direito. Dessa forma,

no reconhecimento, o si deixa de ser esse singular; ele é legitimamente no


reconhecimento, isto é, ele não é mais em seu ser aí imediato. O reconhe-
cido é reconhecido, é reconhecido enquanto tal, valendo imediatamente por
seu ser; mais precisamente esse ser é produzido a partir do conceito; ele é
ser reconhecido; o homem é necessariamente reconhecido e é necessaria-
mente reconhecedor. Essa necessidade é sua propriamente, não de nosso
pensamento por oposição ao conteúdo. Enquanto reconhecedor, ele é ele
próprio movimento, e esse movimento suprassume precisamente seu estado
de natureza; ele é reconhecer; o natural limita-se a ser [...]. (Ibid., p. 197)

À vista disso, afirma Ricoeur, o reconhecimento igualiza o que a


ofensa tornou desigual.

10 Ricoeur, nessa passagem, diz que toma essa obra de Hegel a partir de Taminiaux, em seu livro Nas-
cimento da filosofia hegeliana do Estado (1984), e a partir de Honneth e seu A luta pelo reconhecimento
(2000).
11 Ricoeur aqui dialoga com Honneth, fazendo observações e considerações complementares para
além dele, como, por exemplo, na ideia de luta para o reconhecimento.
28 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

Mas enquanto, para Hegel, o reconhecimento surge com as relações


de direito, em Honneth, o reconhecimento é afirmado como o momento
do amor, da família e da criança, isto é: no nível afetivo é que ocorre a
primeira experiência de reconhecimento. Honneth aproveita de Hegel os
três modelos de reconhecimento intersubjetivo e faz corresponder a estes
as suas figuras de negação. O primeiro modelo é colocado sob o nome
de “amor”. Cobre a gama das relações eróticas, de amizade ou familiares,
“que implicam laços afetivos fortes entre um número restrito de pessoas”
(Honneth apud Ricoeur, 2006, p. 203). Nesse nível, o resultado do reco-
nhecimento mútuo é a autoconfiança.
O segundo modelo, que consiste na luta pelo reconhecimento no
plano jurídico, resume-se da seguinte forma:

[...] não poderemos nos compreender como portadores de direitos se não


tivermos ao mesmo tempo conhecimento das obrigações normativas às
quais estamos vinculados em relação a outrem. Nesse sentido, o objetivo
do reconhecimento é o outrem e a norma. (Honneth apud Ricoeur, 2006,
p. 211)

Ricoeur adiciona a esse modelo:

o reconhecimento no sentido jurídico acrescenta assim ao reconhecimento


de si em termos de capacidades (segundo as análises de nosso segundo
estudo) as novas capacidades provenientes da conjugação entre a validade
universal da norma e a singularidade das pessoas. (2006, p. 212)

Assim sendo, o reconhecimento jurídico apresenta uma estrutura


dual em que existe um elo entre a ampliação da esfera dos direitos reco-
nhecidos às pessoas e o enriquecimento das capacidades que esses sujeitos
reconhecem em si mesmos.
A ampliação da esfera normativa dos direitos pode ser observada
no plano da enumeração dos direitos subjetivos e no plano da atribuição
desses direitos a novas categorias de indivíduos ou de grupos. Com efeito,
partindo da enumeração de direitos subjetivos como civis, políticos e
sociais, Ricoeur afirma existir, no que concerne aos direitos sociais, um
contraste gritante entre a atribuição de direitos e a distribuição desigual dos
bens, os quais são os meios de exercer todos os direitos.
A repartição desses direitos, a aquisição correspondente de compe-
tências no plano pessoal faz aparecer formas específicas de menosprezo
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 29

relativas às demandas das pessoas em relação à sociedade. Assim, as repar-


tições desses direitos estão implicadas com a questão da sua extensão, na
medida em que “as formas de igualdades conquistadas por alguns têm a
vocação de ser estendidas a todos” (ibid., p. 215).
A negação dessa igualdade gera a experiência do menosprezo,
levando a sentimentos de exclusão, de alienação; e a indignação que deles
provém pode dar às lutas sociais a forma da guerra, seja em forma de revo-
lução, de libertação, de descolonização. Nessa perspectiva, o reconheci-
mento mútuo, no plano jurídico, é uma forma de respeito próprio.
No terceiro modelo de reconhecimento mútuo, a estima social é vista
como o resumo de todas as formas de reconhecimento mútuo, dada a pres-
suposição da existência de valores comuns aos sujeitos. Desse modo, é com
os mesmos valores e com os mesmos fins que as pessoas avaliam a impor-
tância de suas qualidades próprias para a vida do outro (ibid., p. 216).
Então, nesse terceiro modelo, existe um estreito vínculo entre digni-
dade humana e direito, visto que aquela é a capacidade reconhecida de
reivindicar um direito. A dignidade alia-se ao sentimento de orgulho.
Nos três modelos de reconhecimento assinalados, prevalece a ideia
de luta no processo de reconhecimento mútuo. Diante do percurso traçado
do reconhecimento mútuo, emerge o seguinte questionamento:

[...] a exigência de reconhecimento afetivo, jurídico e social por seu estilo


militante e conflituoso, não se resolve em uma exigência indefinida, figura
de um mal “infinito”? [...] Há aqui uma tentação de uma nova forma de
“consciência infeliz”, sob a forma seja de um sentimento incurável de viti-
mização, seja por uma incansável postulação de ideais inatingíveis. (Ibid.,
p. 231)

Diz que é preciso buscar alternativa ao mal-estar causado por essa


“consciência infeliz” por meio das experiências pacificadas, no entanto
ressalva que estas “não poderiam ocupar o lugar da resolução das perple-
xidades suscitadas pelo próprio conceito de luta, ainda menos da resolução
dos conflitos em questão”. (Ibid., p. 232)
Ricoeur está convencido de que a forma de luta que mais contribui
para a popularização do tema do reconhecimento está ligada ao problema
colocado pelo multiculturalismo, cujo termo, segundo ele, é reservado às
exigências de igual respeito provenientes de culturas efetivamente distintas,
desenvolvidas no interior de um mesmo quadro institucional. É uma reivin-
dicação que coloca em jogo a autoestima mediatizada pelas instituições
30 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

públicas ligadas à sociedade civil. Nesse ponto, concordando com Taylor


(2000), ele considera que a percepção errônea que os outros possuem de nós
compromete a imagem que temos de nós mesmos, de forma depreciativa.
Na visão do filósofo francês, o autor canadense não opõe a política da
igualdade universal à política da diferença. O que ele faz é

[...] um deslocamento [...] suscitado pela mudança de definição do estatuto


igualitário implicado na própria ideia de dignidade; seria a igualdade, que
por si mesma exigiria um tratamento diferenciado, a ponto de trazer para
o plano institucional regras e procedimentos de discriminação invertida.
(Ricoeur, 2006, p. 228)

A propósito, a informação de como se originou o discurso do reco-


nhecimento e da identidade vem deste autor canadense Charles Taylor
(2000). Ele aponta duas mudanças que contribuíram para a preocupação
moderna com a identidade e o reconhecimento. Diz ele:

A primeira é o colapso das hierarquias sociais, que costumavam ser a base da


honra. Emprego honra no sentido do ancien regime, em que ela está intrin-
secamente ligada a desigualdades [...]. É também o sentido em que usamos
o termo ao falar de honra alguém concedendo-lhe um prêmio público [...].
Opõe-se a essa noção de honra a noção moderna de dignidade, agora usada
num sentido universalista e igualitário que nos permite falar da dignidade
[inerente] dos seres humanos ou de dignidade do cidadão [...]. Em contra-
partida, a segunda mudança, o desenvolvimento da moderna noção de iden-
tidade, originou uma política da diferença. (Ibid., pp. 242-243)

Em acréscimo a essa marcação originária da emergência do reco-


nhecimento, Taylor sublinha que o discurso do reconhecimento se tornou
familiar a nós no nível da esfera íntima e da esfera pública. Em relação à
primeira, o entendimento é que a formação da identidade e do self12 ocorre

12 “Um fato crucial sobre um self ou pessoa [...] é que ele não é um objeto no sentido comumente
entendido. Não somos um self da mesma maneira como somos organismos, nem temos um self como
temos um coração e um fígado. Somos seres vivos com esses órgãos de uma forma bem independente
de nossas autocompreensões ou autointerpretações, ou dos sentidos que as coisas têm para nós. Mas
só somos um self na medida em que nos movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos
e encontramos uma orientação para o bem” (Taylor, 2000, p. 52).
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 31

num diálogo e numa luta com outros significativos.13 E na esfera pública, a


política de reconhecimento veio desempenhando um papel cada vez mais
importante.
O autor canadense, na citação acima, destaca duas modalidades de
política do universalismo cujo conteúdo tem sido a equalização de direitos
e privilégios e a política de diferença. Com a política da dignidade igual,14
aquilo que é estabelecido pretende ser universalmente o mesmo, ao passo
que, com a política da diferença, é exigido que se reconheça a identidade
peculiar do indivíduo ou grupo. Ainda que ambas estejam baseadas na
noção de respeito igual, “a reprovação que a primeira faz à segunda é de que
ela viola o princípio da não-discriminação. A reprovação que a segunda faz
à primeira é a de que ela nega a identidade ao impor às pessoas uma forma
homogênea que é infiel a elas” (Taylor, 2000, p. 254).
O autor relaciona uma das políticas15 que advogam à do respeito igual
com os princípios da sociedade liberal,16 mas não qualquer liberalismo. Ele
se reporta ao tipo de sociedade liberal que se funda sobremaneira em juízos
acerca do que faz a boa vida – juízo em que tem relevante lugar a inte-
gridade das culturas. Assim, esse modelo de política do respeito igual que
cede espaço à tolerância pode ser absolvido da acusação de homogeneizar
a diferença.
O autor se reporta à exigência de que todos reconheçam o igual valor
de diferentes culturas. A exigência do reconhecimento passou a ser explícita
pela disseminação da ideia de que somos formados pelo reconhecimento. A
ideia de luta que ocorre tanto no interior do subjugado como em oposição
ao dominador, tornou-se fundamental no debate contemporâneo sobre o
multiculturalismo como para certas tendências do feminismo.
A educação é apontada pelo autor como o principal locus de debate
sobre o multiculturalismo, sendo as escolas secundárias um dos focos
importantes como espaços de desenvolvimento de currículos afrocêntricos
para alunos em escolas preponderantemente negras.

13 Mead designa “outros significativos” como as pessoas que têm importância para aquisição das
linguagem que precisamos para nos autodefinirmos (apud Taylor, 2000, p. 246).
14 Rousseau e Kant são considerados os primeiros expoentes desse modelo de política. Para apro-
fundamento, cf. Taylor (2000, pp. 255-259).
15 Taylor (2000) considera que a política da diferença também defende o respeito igual, portanto,
ambas partem de um mesmo conceito diretor, a dignidade.
16 Por sociedade liberal, o autor a entende a partir de suas características: o governo representativo,
o regime de direito, a garantia de certas liberdades, etc. (Taylor, 2000).
32 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

A razão dessas mudanças é de que os alunos dos grupos excluídos estão


recebendo diretamente ou por omissão um quadro desfavorável de si
mesmos, como se toda a criatividade e todo valor fossem inerentes aos
homens de origem europeia. (Ibid., p. 269)

Das questões postas pelos autores acima referenciados, emerge a


oportunidade e necessidade de examinarmos como vem se desenvolvendo
o tema do reconhecimento e, consequentemente, do multiculturalismo
no contexto brasileiro, à luz da legislação educacional, na perspectiva das
relações étnico-raciais. Especificamente, a questão é de como é concebido
o reconhecimento em nossa legislação. Como direito? Como gratidão? É
possível afirmar que já chegamos aos patamares desejados de reconheci-
mento étnico-racial da população negra?
Nesse sentido, aproximamos as questões concernentes ao reconhe-
cimento mútuo desenvolvidas principalmente por Ricoeur, com os termos:
a) da lei nº 10.639/03 (Brasil, 2003); b) do parecer CNE 03/CP/2004, como
os princípios em relação à consciência política e histórica da diversidade,
ao fortalecimento de identidades e direitos, às ações educativas de combate
ao racismo e às discriminações; c) da resolução a ele correspondente, qual
seja, a resolução CNE 01/CP/2004; d) das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais.

O RECONHECIMENTO
COMO POLÍTICA CURRICULAR

A pergunta mais crucial nas teorizações (e nas práticas) sobre currí-


culo é: “Quem decide?”. Essa pergunta nos remete ao que coloca Sacristán
(1998), o qual elenca o processo de desenvolvimento do currículo nas
seguintes fases: a) currículo prescrito; b) o currículo apresentado aos
professores; c) o currículo moldado pelos professores; c) o currículo em
ação; d) o currículo realizado; e) o currículo avaliado. Elas expressam os
âmbitos de práticas do currículo.
Segundo esse autor, o currículo prescrito diz respeito à orientação do
que deve ser seu conteúdo, principalmente em relação à escolaridade obri-
gatória, enquanto o currículo apresentado aos professores e o que é desem-
penhado principalmente pelos livros-textos (ibid.).
Já em relação ao currículo moldado pelos professores, estes o
fazem como agentes ativos e decisivos na concretização dos conteúdos e
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 33

significados dos currículos, visto que, para Paraskeva (2000, p. 116), “se
entendemos o currículo como prática, todos quantos nele participam fazem-
-no como sujeitos e não como objetos”, portanto, os professores têm um
papel fundamental. O currículo em ação se concretiza nas tarefas escolares,
enquanto o currículo realizado diz respeito aos efeitos cognitivo, afetivo,
social, moral, entre outros. Nesse tipo de currículo, realizam-se outros
efeitos que ficarão como efeitos ocultos do ensino. O currículo avaliado,
por sua vez, decorre de pressões exteriores.
A despeito dos contextos de decisão, sem menosprezar outros,
ressaltamos a mediação necessária do contexto político-administrativo na
condução da política curricular, conforme acepção do próprio Sacristán, a
saber:

A política sobre currículo é um condicionamento da realidade prática


da educação que deve ser incorporado ao discurso sobre currículo; é um
campo ordenador decisivo, com repercussões muito diretas sobre essa
prática e sobre o papel e margem de atuação que os professores e os alunos
têm da mesma [...]. O tipo de racionalidade dominante na prática escolar
está condicionada pela política e mecanismos administrativos que intervêm
na modelação do currículo dentro do sistema escolar. (1998, p. 107)

Nesse sentido, reconhecemos o valor social e cultural da implemen-


tação ordenada e institucionalizada das Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação para a Diversidade Étnico-Racial por meio de pareceres, reso-
luções, planos, entre outros, destacando-as como medidas afirmativas que
reconhecem a escola como lugar de cidadãos e afirmam a relevância de a
escola promover por meio do currículo escolar a necessária valorização e
restauração de todas as matrizes que contribuíram para constituir a nossa
diversidade cultural.
Segundo Munanga (2009), a principal tarefa no combate ao racismo
está no campo da educação, e este é um aspecto do problema que não pode
ser secundarizado. O Brasil, em várias conferências que participou, compro-
meteu-se a elaborar políticas e programas para a população afro-brasileira
e valorizar a história e cultura do povo brasileiro; trata-se de exigir que tais
políticas sejam implementadas em sua plenitude.
Dessa participação e mediante as incisivas propostas históricas do
Movimento Negro por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos,
34 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

no que diz respeito à educação, uma parte das demandas históricas passou
a ser atendida com a promulgação da lei nº 10.639/2003 (Brasil, 2003), que
alterou a LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996).
A LDB nº 9.394 foi alterada por meio da inserção dos artigos 26-A e
79-B, referidos na lei nº 10.639/2003. Esta torna obrigatória, no currículo17
escolar, o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, em estabeleci-
mentos de ensino fundamental e médio, e inclui, no calendário escolar, o dia
20 de novembro como “Dia da Consciência Negra”. A lei nº 11.645/2008,
posteriormente, reformulou a nº 10.639/2003 (BRASIL, 2008), ampliando-
-a para reportar-se mais especificamente à análoga questão indígena.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que as referidas leis questionam
o currículo que não considera a diversidade de referências identitárias. Ela
direciona o currículo na perspectiva da diversidade e, portanto, da cons-
trução de processos identitários que ocorram em convivência e negociação
com o outro.
O parecer CNE/CP nº. 3/2004, de 10 de março de 2004 (BRASIL,
2004a), e a resolução CNE/CP nº 1/2004, de 17 de junho de 2004
(BRASIL, 2004b), foram elaborados para regulamentar a alteração da
LDB nº. 9.394/1996, instituindo diretrizes curriculares nacionais para a
educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana, a serem observadas pelas instituições de ensino
que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira e em especial
por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e conti-
nuada de professores.
Pelo visto, existiu e existe a demanda por reconhecimento, valori-
zação e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação. O reconhe-
cimento significa a luta por dignidade, tanto material quanto simbólica
(Neves, 2009). Ou seja, o tema do reconhecimento ganha centralidade na
discussão sobre as desigualdades étnico-raciais no Brasil e é incorporado
nos documentos oficiais que tratam sobre as relações étnico-raciais na
educação. Vejamos mais em detalhes como os documentos, tanto o parecer
CNE/CP nº 3/2004 (BRASIL, 2004a) quanto a resolução CNE/CP nº 1/2004
(BRASIL, 2004b) tratam o tema do reconhecimento.
Da legislação citada, observamos que o termo reconhecimento é
explicitado de forma mais contundente no parecer CNE/CP nº 3/2004 e na

17 A LDB 9.394/06 incorpora uma visão ampliada de currículo, isto é, além das disciplinas escolares
o conjunto das experiências oferecidas pela escola.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 35

resolução CNE/CP/ nº 1/2004. No texto do parecer, o reconhecimento está


atrelado ao verbo no infinitivo. Lá se registra que reconhecer implica: justiça
e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valori-
zação da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos
que compõem a população brasileira; adoção de políticas educacionais e de
estratégias pedagógicas de valorização da diversidade; exigência de ques-
tionamentos em torno das relações étnico-raciais baseadas em preconceitos
que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, pala-
vras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam senti-
mentos de superioridade na contemporaneidade, desde formas individuais
até coletivas; valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência
africana, sua cultura e história, o que significa compreender seus valores e
lutas, ser sensível ao sofrimento causado a essas pessoas por tantas formas
de desqualificação; que os estabelecimentos de ensino contêm com instala-
ções e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no
domínio de conteúdos de ensino comprometidos com a educação de negros
e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito.
No artigo 1º, parágrafo 1º, da resolução CNE/CP nº 1/2004 consta:

As instituições de ensino superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e


atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações
Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem
respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP
3/2004. (Brasil, 2004b)

Essa resolução, no artigo 2º, parágrafo 2º, refere-se também ao


tema do reconhecimento, de uma forma mais modesta, porém é possível
subtender no texto uma preocupação com o reconhecimento mútuo, visto
que preconiza a valorização de todos os grupos. Prescreve o documento:

O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo


o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-
-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valori-
zação das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, euro-
peias e asiáticas. (Brasil, 2004b)
36 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

É digno de nota também o que preconiza o artigo 3º da referida


resolução:

A Educação das Relações Étnico-raciais e o estudo de História e Cultura


Afro-brasileira e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de
conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas
instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos
sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas,
atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer
CNE/CP 3/2004. (Brasil, 2004b)

Pelo exposto, observamos que os documentos acima referidos


afirmam o valor do reconhecimento e registram sua importância para
mover as políticas e as práticas curriculares. É possível notar que esses
documentos supramencionados incorporam algumas das ideias desenvol-
vidas pelos autores citados (Ricoeur, Taylor, Honneth) que se constituíram
como referências para o tema do reconhecimento.
Ademais, observamos, ainda, com relação à resolução CNE/CP nº
1/2004, que esta reforça a ideia da não obrigatoriedade dos cursos que não
sejam da área das ciências humanas de adotar as diretrizes curriculares para
a educação das relações étnico-raciais, uma vez que ressalta os cursos de
formação de professores, tanto inicial quanto continuada.
Reconhecemos e afirmamos a importância da legislação educacional
como instrumento formal na orientação das práticas curriculares e igual-
mente a autonomia da escola na elaboração do seu projeto político-pedagó-
gico, mas ambos os níveis precisam ser articulados, em prol de uma educação
de mais qualidade.
Por isso, compartilhamos a ideia de que todas as áreas e/ou disci-
plinas do currículo escolar se aproximem de uma linguagem comum.
Consideramos ainda que os projetos didáticos devam conter uma meto-
dologia de ensino e aprendizagem que potencialize o estudo das questões
sociais, entre elas as relações étnico-raciais, tendo em vista um currículo
intercultural.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 37

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste artigo consistiu em delinear o movimento do reco-


nhecimento em Ricoeur (2006), a fim de aproximá-lo criticamente do que
preceitua a legislação educacional brasileira no que diz respeito à educação
para as relações étnico-raciais.
Vimos como Ricoeur identificou e analisou os vários significados do
vocábulo reconhecimento. Nessa polissemia de significados, inclui-se um
sentido particularmente importante e estratégico: o sentido de gratidão.
Dizer eu sou reconhecido(a) é o mesmo que dizer sou agradecido(a). As
definições vão do reconhecimento de algo ao reconhecimento de si e ao
reconhecimento dos(as) outros(as), chegando-se ao reconhecimento da
pessoa pelos(as) outros(as). A chave é que os significados do verbo reco-
nhecer muda, do significado na voz ativa para seu uso na voz passiva. O
que está em jogo no percurso, portanto, não é apenas a ideia de reconheci-
mento, mas a de mútuo reconhecimento.
Diante disso, na última etapa do reconhecimento abordado por
Ricoeur, são enfatizadas questões que se aplicam ao significado de convívio.
Para Ricoeur, a questão da identidade está presente no percurso do reco-
nhecimento e ela também muda de significados. Em última instância, no
reconhecimento mútuo, a identidade autêntica é aquela que nos faz ser
quem somos e quem requeremos reconhecimento.
Vimos como o autor francês estabelece uma relação intrínseca entre
reconhecimento, identidade e gratidão: “Não é em minha identidade autên-
tica que peço para ser reconhecido? E, se por sorte, me reconhecerem como
tal, minha gratidão não será dirigida àqueles [...] que reconheceram minha
identidade ao me reconhecer?” (Ricoeur, 2006, p. 11).
O mútuo reconhecimento tem duas saídas: permanecer como desejo e
sonho não realizado ou requerer procedimentos e instituições que o elevem
ao plano político. Nesse sentido, focalizamos o papel da educação escolar
para o reconhecimento mútuo e sustentamos que ela não deve ser um valor
apenas proclamado e sim também real e efetivo, como direito de todos; e que
a escola é um lugar social de aprendizagem da cidadania e de democratização
do saber (conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais).
Por isso, afirmamos a cidadania como horizonte, certos de que esta
requer que se instaure uma pedagogia para a autonomia, para a liberdade,
para a emancipação e para a crítica, e, ao mesmo tempo, um ensino para a
38 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira

assunção da identidade étnico-racial na lógica do reconhecimento mútuo.


Isso implica desenvolver a capacidade de aceitarmos a nós mesmos(as) do
ponto de vista estético, capacidade de autonomia, capacidade de respeitar
uns(umas) aos(às) outros(as) cotidianamente, capacidade de criar coletiva-
mente a ordem social em que queremos viver, que esperamos seja cumprida
e que devemos proteger.

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que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de
9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obriga-
toriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Diário Oficial da União, Brasília, 10 mar.
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A lei nº 10.639/2003 e a luta
pelo reconhecimento do direito
à diversidade étnico-racial
Kátia Régis1

A desigualdade entre a população negra2 e a branca está presente em dife-


rentes aspectos que integram a vida cotidiana, constituindo-se como um
dos elementos estruturais e estruturantes da sociedade brasileira. Essas
disparidades podem ser evidenciadas, por exemplo, por meio da análise de
indicadores sociais na área educacional que revelam tais assimetrias raciais.3
De acordo com os números da Síntese de Indicadores Sociais (IBGE,
2013), a média de anos de estudo das pessoas brancas de 25 anos ou mais
de idade, em 2012, era de 8,5 anos, enquanto a da população negra era de
6,7 anos. A taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos ou mais era
mais do que o dobro entre a população negra quando comparada à popu-
lação branca: 11,8% e 5,3%. A distribuição percentual por nível de ensino
frequentado da população de 18 a 24 anos de idade também mostrava desi-
gualdade entre brancos(as) e negros(as) que cursavam ensino superior:
respectivamente, 66,6% e 37,4%. Na faixa etária de 20 a 24 anos de idade,
70,9% dos(as) brancos(as) e 50,7% dos(as) negros(as) possuíam 11 anos ou
mais de estudo.

1 Graduada em História. Mestre e doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do


Maranhão – UFMA. <http://lattes.cnpq.br/6070006731217251>
2 A população negra é composta da parcela populacional que se autodeclara preta e parda nos
censos demográficos. De acordo com Paixão, Rossetto e Montovanele (2010, p. 26), “No estudo das
assimetrias de cor ou raça no Brasil, quando se usam indicadores sociais, já veio se tornando usual a
junção dos grupos preto e pardo a um único grupamento para a finalidade de comparação estatística
com os demais contingentes de cor ou raça, especialmente o branco. [...] Do ponto de vista estatístico,
ocorre uma maior proximidade entre si dos indicadores dos grupos preto e pardo do que ocorre em
relação aos indicadores dos brancos [...]”.
3 O termo raça é utilizado com um sentido político, em suas dimensões históricas e sociais, inse-
rida nas relações de poder, hierarquias e exclusão e a partir das características do racismo brasileiro.
Embora seja inoperante do ponto de vista biológico e que não tenha nenhuma fundamentação natural,
persiste enquanto construção ideológica e política no imaginário coletivo.
42 Kátia Régis

Além das menores possibilidades de acesso e de permanência nos


sistemas de ensino, as desigualdades entre negros e brancos nas institui-
ções educacionais também estão presentes em seus currículos, que omitem
e/ou distorcem a história e cultura africana e afro-brasileira. Todavia,
essa situa­ção não foi/não é aceita passivamente pela população negra que
empreen­deu lutas e realizou proposições para alterá-las, suscitando o
debate público acerca do mito da democracia racial, da ideologia de bran-
queamento e sobre a situação de marginalização dessa parcela populacional.
As ações de organizações e entidades do movimento negro, obje-
tivando a igualdade étnico-racial, também estão relacionadas à preocu-
pação com a educação de boa qualidade social dos(as) negros(as) que seja
realizada em estabelecimentos de ensino com instalações e equipamentos
adequados e com professores qualificados para o ensino nas diferentes áreas
do conhecimento. Essa defesa ao direito à educação implica em críticas e
proposições aos sistemas oficiais de ensino e aos seus currículos, cobrando
do Estado ações efetivas para a alteração das práticas hegemônicos. Segundo
Arroyo (2007, p. 114),

[...] Pressionar o campo legal e as políticas públicas é uma frente que


vem sendo priorizada pelo movimento negro, indo além de estratégias de
convencimento dos docentes e produtores de material didático. Sem dúvida,
é central intervir na superação de imaginários racistas, preconceituosos
que ainda existem no sistema escolar, porém o racismo tem raízes mais
profundas e vai além dos imaginários pessoais e sociais. Traduz-se em uma
permissibilidade legal que penetra até nas escolas, se traduz em uma histó-
rica omissão do Estado e ausência de políticas focadas, afirmativas. Colocar
o foco de intervenções nesses campos revela estruturas racistas onde são
urgentes ações mais compulsórias. [...]
Por aí, o combate ao racismo na sociedade e no sistema escolar adquire
dimensões políticas mais estruturais: comprometer o Estado, suas políticas
e instituições e seus sistemas normativos. Comprometer as estruturas de
poder.

Como resultado do processo histórico de lutas e de resistência do


movimento negro, a lei nº 10.639/2003,4 com suas respectivas formas de
regulamentação (o parecer CNE/CP 3/2004, que regulamenta as diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o

4 A lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, altera a lei no 9.394 de 20 de dezembro de 1996, ante-
riormente modificada pela lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 43

ensino de história e cultura afro-brasileira e africana instituído pela reso-


lução CNE/CP 01/2004), pode favorecer o reconhecimento, a valorização
e a afirmação de direitos da população negra. A lei configura-se como uma
política de ação afirmativa, na qual o Estado abandona a sua postura de
neutralidade e passa a atuar para a concretização da igualdade material
ou substantiva. Ao afirmar a diversidade, a lei oferece subsídios para o
questionamento das relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Uma
política pública nesses moldes tensiona a lógica da igualdade abstrata, ao
tratar de direitos coletivos de sujeitos concretos que historicamente foram
marginalizados.
Neste artigo problematizaremos alguns desafios e indagações para
que o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana seja realizado em
consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (Brasil, 2004), a partir dos seguintes princípios: a) da consciência
política e histórica da diversidade; b) do fortalecimento das identidades e de
direitos e c) de ações educativas de combate ao racismo e as discriminações.

A LEI Nº 10.639/2003:
REPENSANDO OS CURRÍCULOS ESCOLARES

A obrigatoriedade da inserção da história e cultura afro-brasileira


e africana nas instituições educacionais está trazendo questionamento à
seletividade dos currículos escolares ao discutir que eles não transmitem
simplesmente o conhecimento acumulado pela humanidade. Os currículos
serão sempre seletivos, mas podem ser menos parciais em um processo que,
trazendo à tona os conflitos e problematizando as relações de poder que
hierarquizam as diferenças, a diversidade possa ser efetivamente contem-
plada. Esse repensar sobre o currículo hegemônico ocorre com resistências
dos que consideram que a única forma possível de construção curricular é
a existente, como se, naturalmente, fosse à indicação do que é valioso a ser
ensinado e não o resultado de uma construção histórica.
A discussão sobre a inclusão da temática é complexa e contraditória,
ocorre com conflitos e tensões e está relacionada aos processos sociais, polí-
ticos, econômicos e culturais e às especificidades e à complexidade das rela-
44 Kátia Régis

ções étnico-raciais no Brasil, marcadas pelo mito da democracia racial e pela


ideologia de branqueamento. Refletir sobre essas relações nos currículos
escolares faz emergir as desigualdades étnico-raciais na sociedade brasileira.
A garantia do acesso da população negra nas instituições educacio-
nais não é o suficiente, apesar de isso ser fundamental. Prescrever educação
e não problematizar os conhecimentos veiculados pelo currículo hegemô-
nico que contribui para produzir/reproduzir as relações étnico-raciais desi-
guais existentes ajuda mantê-las e não superá-las. A escola e o currículo
não garantem apenas a reprodução social, não obstante, estão implicados de
várias formas nesse processo. Um currículo mais democrático assegurará o
direito à diversidade.
A escola não é o único local e/ou responsável para alterar as desi-
gualdades étnico-raciais vigentes, mas ela pode contribuir, enquanto espaço
formativo legitimado socialmente, para mudá-las, para trazer questiona-
mento a essas relações na sociedade. As instituições educacionais, enquanto
locais de formação dos sujeitos, podem colaborar para mudar comporta-
mentos, imaginários, valores, formas de pensar, condutas.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana (Brasil, 2004, p. 13), a obrigatoriedade da inclusão
dessa temática implica repensar as relações étnico-raciais, sociais, pedagó-
gicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem,
objetivos tácitos e explícitos da educação escolar. O sucesso de políticas que
objetivem reparações, o reconhecimento e a valorização da identidade, da
cultura e da história dos(as) negros(as) brasileiros dependem de condições
físicas, materiais, intelectuais e afetivas para o processo de ensino e apren-
dizagem, executado por meio de ações que articulem processos educativos,
políticas públicas e movimentos sociais.
Para a implementação da lei nº 10.639/2003, os sistemas de ensino
são desafiados a repensarem os seus currículos para a inserção da história
e cultura africana e dos negros brasileiros a fim de que a lei não se restrinja
a simples acréscimos ao currículo dominante, mas que se constitua em um
elemento estruturante das práticas curriculares para a realização de uma
educação que favoreça a igualdade étnico-racial.
Tal legislação auxilia na contestação da perspectiva eurocêntrica que
fundamenta as instituições educacionais, que desconsiderou e/ou distorceu
a participação dos(as) negros(as) na sociedade brasileira como se sua
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 45

atuação se limitasse a pequenas contribuições a partir da perspectiva de


menor valor atribuída à população negra em relação à população branca.
Segundo as Diretrizes (ibid., p. 14) “[...] ainda persiste em nosso país um
imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente
as raízes europeias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as
outras, que são a indígena, a africana e a asiática”.
Nessa perspectiva, o repensar sobre as relações étnico-raciais nas
práticas educativas provoca o questionamento sobre a seletividade dos
currículos escolares ao abordar de quem são os conhecimentos estrutu-
rados nos currículos. Problematizar a exclusão da história e cultura afri-
cana e afro-brasileira implica na reflexão sobre o porquê de seus saberes e
conhecimentos não serem vistos como formas legítimas de estar no mundo
e porque não são considerados como importantes para serem transmitidas
a todos.
A lei nº 10.639/2003 possui o potencial de impulsionar programas
e ações que objetivem reconhecer e valorizar a diversidade na sociedade
brasileira, ultrapassando ações pontuais e/ou descontínuas e traz questio-
namentos e críticas: a) ao acesso e permanência desigual de negros(as) e
brancos(as) nas instituições educacionais; b) às relações interpessoais
no cotidiano escolar que difundem normas, valores, comportamentos e
atitudes preconceituosos e discriminatórios em relação à população negra,
interferindo negativamente em seu desenvolvimento intelectual durante
toda sua trajetória educacional; c) aos livros didáticos que continuam, de
um modo geral, representando a população negra como minoria na socie-
dade brasileira, imersa na perspectiva do universalismo abstrato a partir dos
valores eurocêntricos e com a homogeneização de sua situação na socie-
dade atual.
Dessa forma, esse processo está apresentando desafios para que o
ensino da história e cultura afro-brasileira e africana não seja efetuado de
forma isolada, à margem do currículo hegemônico e restrito a docentes
e/ou gestores sensibilizados pelo tema, mas que seja realizado em conso-
nância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (ibid.), tendo como princípios: a) a consciência política e histórica
da diversidade; b) o fortalecimento das identidades e de direitos e c) ações
educativas de combate ao racismo e às discriminações.
46 Kátia Régis

Esses princípios e seus desdobramentos exigem a mudança de


mentalidades, de formas de pensar e agir dos sujeitos em particular, bem
como das instituições e de suas tradições culturais. Para a concretização da
educação para as relações étnico-raciais e para o ensino da história e cultura
afro-brasileira e africana, destacaremos algumas tensões e indagações que
esses princípios trazem aos currículos escolares.

CONSCIÊNCIA POLÍTICA
E HISTÓRICA DA DIVERSIDADE

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das


Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana (Brasil, 2004), o princípio da consciência política e histórica da
diversidade deve orientar para:
• A igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos;
• A compreensão que a sociedade é formada por diferentes grupos étnico-
-raciais igualmente valiosos, que possuem história e culturas próprias e
que conjuntamente constroem no Brasil sua história;
• O conhecimento e a valorização da história dos povos africanos e da
cultura afro-brasileira na construção histórica e cultural brasileira;
• A superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os
negros, os povos indígenas e também as classes populares geralmente
são tratados;
• A desconstrução de conceitos, ideias e comportamentos veiculados pela
ideologia de branqueamento e pelo mito da democracia racial;
• A busca de subsídios acerca das relações étnico-raciais e o estudo da
história e cultura afro-brasileira e africana para possibilitar a construção
de concepções que não sejam fundadas em preconceitos.

Esse princípio apresenta desafios e traz indagações a uma escola


homogeneizadora e estruturada a partir da perspectiva do universalismo
abstrato. A lei nº 10.639/2003 e suas diretrizes colidem com as práticas
curriculares presentes nos processos de escolarização em todos os níveis e
modalidades de ensino, fortemente estruturadas a partir do mito da demo-
cracia racial e da ideologia do branqueamento.
Destarte, essa política curricular, voltada para a diversidade, está
problematizando as hierarquias e os privilégios na sociedade brasileira, na
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 47

qual as diferenças têm sido tratadas como desigualdade e de forma discrimi-


natória. De acordo com Gomes (2007), a diversidade é compreendida como
construção histórica, cultural e social das diferenças. Tais diferenças são
construídas pelos sujeitos sociais ao longo do processo histórico e cultural
em seus processos de adaptação ao meio social e inseridas nas relações de
poder.
Para a autora, “O ser humano se constitui por meio de um processo
complexo: somos ao mesmo tempo semelhantes (enquanto gênero humano)
e muito diferentes (enquanto forma de realização do humano ao longo da
história e da cultura) [...]” (ibid., p. 22) e o que nos torna mais semelhantes
enquanto gênero humano é a questão de todos apresentarmos diferenças:
de gênero, de raça/etnia, de culturas, entre outras. O desafio é o aprendi-
zado da convivência com as diferenças, não as hierarquizando e compreen-
dendo que nenhum grupo é melhor ou pior que o outro: somos diferentes.
Não se trata de estabelecer uma falsa dicotomia entre igualdade e
diferença, mas não é possível se reduzir ao discurso da igualdade abstrata
que apregoa que todos somos iguais e que, na prática educativa, resulta
em tratamento desigual entre negros(as) e brancos(as). Essa lógica, além
de silenciar e/ou desconsiderar as diferenças, transforma-as em desigual-
dades, numa escola homogeneizadora e difusora dos valores da sociedade
ocidental. Reduzir-se à perspectiva da igualdade abstrata implica na manu-
tenção de privilégios e hierarquias que podem, por exemplo, ser expressas
pela frase a seguir, que denota uma visão preconceituosa e discriminatória:
“Trato todos os meus alunos iguais, trato todos como se fossem brancos”.
Contudo, para possibilitar a realização de práticas que possibilitem a
igualdade étnico-racial, é importante que a equipe escolar parta do conhe-
cimento do(a) estudante concreto(a), real que está presente cotidianamente
nas escolas e não na idealização de um(a) estudante abstrato(a).
O conhecimento desse(a) discente real, com diferentes pertenci-
mentos étnico-raciais, pode subsidiar práticas educativas construídas cole-
tivamente que não transformem essa diversidade em desigualdade, pois,
conforme destaca Arroyo (2007, p. 116), o sistema escolar percebe a si
mesmo como inerentemente igualitário e universalista. Contudo, estas são
entendidas em abstrato e não em diálogo com a diversidade racial, resul-
tando que, recorrentemente, o sistema ignore a temática étnico-racial. “Se
todos para o sistema são iguais em abstrato não existem desiguais nem dife-
rentes. O silenciamento da questão racial é uma consequência”.
48 Kátia Régis

Santos (2013) salienta que o princípio da igualdade funda a pretensão


do universalismo que está submetido aos direitos humanos eurocêntricos.
Não se trata de uma igualdade socioeconômico-cultural, mas de uma igual-
dade jurídico-política. A luta pela redução das desigualdades socioeconô-
micas ocorreu muito mais tarde com os direitos sociais e econômicos. Mas
tudo isso ocorre dentro do paradigma da igualdade:

Este paradigma só foi questionado quando grupos sociais discriminados


e excluídos se organizaram, não só para lutar contra a discriminação e a
exclusão, mas também para pôr em causa os critérios dominantes de igual-
dade e diferença e os diferentes tipos de exclusão que legitimam. As dife-
renças sexuais e étnico-culturais passaram a ser valorizadas como formas
próprias de pertença legítima a coletivos amplos e portadores de uma
dignidade apenas negada pelos preconceitos dominantes sexistas, racistas
ou colonialistas. [...] a luta contra a discriminação e a exclusão deixou de
ser uma luta pela integração e pela assimilação na cultura dominante e nas
instituições subsidiárias, para passar a ser uma luta pelo reconhecimento da
diferença, pela consequente transformação da cultura e das instituições de
modo a separar as diferenças (a respeitar) das hierarquias (a eliminar) que
atavicamente lhe estavam referidas. (Ibid., pp. 78-79)

No campo tenso e conflitivo que se situam as relações étnico-raciais


do Brasil, após mais de uma década da promulgação da lei nº 10.639/2003,
existe a pressão para que a realização de uma educação de boa qualidade
esteja estruturada para garantir o direito à diversidade étnico-racial e que
esta não seja hierarquizada. Conforme destaca Casali (2011, p. 18), “As
qualidades dos fenômenos sociais, culturais e políticos são o resultado de
construções históricas”.
O desenvolvimento histórico, relacionado aos processos econômicos,
sociais, culturais e políticos, produz novos problemas e novas demandas
de solução e a consciência destes exige a formulação de novas soluções
que se realizam pela identificação de novos valores, direitos e obrigações
emergentes, dentre os quais destacamos: diversidade biológica e sociocul-
tural; dignidade da vida em todas as suas formas e manifestações; justiça
e equidade: direito pleno da vida para todos; igualdade, diferença, diversi-
dade (ibid.). A construção da diversidade étnico-racial, associada às rela-
ções de poder e desigualdade, ocorre ao lado dos processos de construção
de identidade.
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 49

O FORTALECIMENTO
DE IDENTIDADES E DE DIREITOS

O segundo princípio que fundamenta a educação para as relações


étnico-raciais e o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira
orienta para o fortalecimento de identidades e de direitos. Segundo as Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004),
esse princípio encaminha para:
• O desencadeamento de processo de afirmação de identidades, de histo-
ricidade negada ou distorcida;
• O rompimento com imagens negativas contra os negros e os indígenas
forjadas por diferentes meios de comunicação;
• A elucidação a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana
universal;
• O combate à privação e à violação de direitos;
• A ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação
brasileira e sobre a recriação das identidades, provocada pelas relações
étnico-raciais;
• A excelência no tocante às condições de formação em todos os estabe-
lecimentos nos diferentes níveis e modalidades de ensino, inclusive os
localizados nas periferias urbanas e nas zonas rurais.

Esse princípio exige profundas mudanças nos modos pelos quais


historicamente a população negra tem sido tratada nas instituições educa-
cionais, por exemplo, por meio dos currículos eurocêntricos que omitem
e/ou distorcem a sua história; nos livros didáticos e nas relações interpes-
soais que difundem normas, valores, comportamentos e atitudes precon-
ceituosas e discriminatórias em relação à população negra que são incor-
porados na aprendizagem dos estudantes, interferindo negativamente no
desenvolvimento intelectual e na construção da sua identidade étnico-racial.
Por isso, no processo de construção da identidade negra, é neces-
sário que ocorra a descolonização dos currículos. Nesse sentido, é funda-
mental que o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira ocorra
a partir de novas categorias de análise, novas abordagens e posturas episte-
mológicas que possibilitem superar visões estereotipadas e preconceituosas
para que a população negra possa ser vista como sujeito que construiu a
50 Kátia Régis

sociedade brasileira e não como objeto da história. Além disso, a superação


da perspectiva eurocêntrica que fundamenta o ensino da história da África
e da diáspora se torna imprescindível. Ou seja, exige repensar seriamente as
práticas curriculares hegemônicas para a efetivação de uma educação antir-
racista e multicultural.
O ponto de partida do multiculturalismo é a existência, no interior
de uma mesma sociedade, mesmo Estado, nação, território geográfico de
mais de uma cultura, de mais de uma comunidade (religiosas, linguísticas,
culturais, étnicas, entre outros). O multiculturalismo é justamente essa
perspectiva que defende o reconhecimento público da existência das dife-
renças no seio de uma nação. No Brasil, as comunidades não reivindicam a
separação e a autonomia política, mas lutam para que suas culturas, histó-
rias e visões de mundo sejam reconhecidas e integradas à história nacional
e ao processo educacional (Munanga, 2012).
Para o reconhecimento da história e cultura africana e afro-brasileira,
são fundamentais as contribuições das organizações e entidades do movi-
mento negro. A atuação destas não se restringe à denúncia. Elas realizam
práticas educativas que questionam a educação escolar e oferecem subsí-
dios para a inserção de outros saberes para o ensino da história e cultura
dos africanos e da diáspora. A cultura vivenciada nesses espaços é aquela
que tem por referencial a cultura negra, da ancestralidade africana. Esses
espaços se constituem em locais de aprendizagem para os sujeitos envol-
vidos e contribuem para a construção da identidade negra.
Entretanto, há desqualificação desse processo coletivo de construção
da identidade negra. De acordo com Munanga (ibid.), no momento em
que os(as) negros(as) dizem que a sua identidade passa pela negritude, a
elite, por meio de seus intelectuais orgânicos, criticam-nos(as) dizendo
que querem dividir o Brasil, já que a nossa identidade seria “mestiça”. Essa
crítica se relaciona ao fato de que não há um discurso político sobre a iden-
tidade branca, apesar de ela existir e todos saberem das vantagens que a
branquitude oferece. Segundo o autor,

[...] por que não escutamos discursos politicamente articulados em nossa


sociedade sobre a identidade branca, a identidade masculina, a identidade
burguesa, a identidade dos heterossexuais, etc.? Justamente porque brancos,
homens, burgueses, adultos, heterossexuais são vitoriosos, estão no topo da
pirâmide social, política e econômica, portanto eles não têm necessidade
nenhuma para se mobilizar politicamente, para reivindicar e negociar o
que já têm consolidado na sociedade. O tigre não precisa proclamar e gritar
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 51

sua tigritude, pois ele domina a selva de que é rei. São os mais fracos que
precisam se mobilizar para defender sua existência, daí a razão de ser de
suas identidades coletivas. (Ibid., pp. 13-14)

Apesar dessa desqualificação dos processos de construção da identi-


dade negra, as organizações e associações do movimento negro constituem-
-se em locais de aprendizagem para os sujeitos envolvidos. Desse modo,
o processo de construção da identidade negra não ocorre no vazio ou
abstratamente, mas está relacionado à problematização da desigualdade
étnico-racial e nas possibilidades de vivenciar outras formas de saberes e
conhecimentos acerca da história e cultura africana e da diáspora, contes-
tando as visões estereotipadas e preconceituosas arraigadas no imaginário
social sobre o(a) negro(a).
Essa construção não se dá de maneira individual, mas de modo
coletivo e está inserida na luta antirracista, já que, independentemente
da classe social, gênero ou orientação sexual, a população negra é afetada
pelo racismo, preconceito racial e discriminação racial. Isso, contudo, não
implica em desconsiderarmos que as formas pelas quais os(as) negros(as)
lidam com sua identidade e reagem ao racismo, preconceito racial e discri-
minação racial possam ser diferentes. Mas, pertencer ao segmento racial
negro gera exclusão e a força da luta antirracista está na mobilização cole-
tiva para que a população negra se constitua enquanto sujeito coletivo de
direitos.
Além disso, essas organizações e entidades podem oferecer elementos
para as instituições educacionais acerca de saberes e conhecimentos dos
africanos e da diáspora. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana (Brasil, 2004) estabelecem que os sistemas e os estabeleci-
mentos de ensino poderão constituir canais de comunicação com o movi-
mento negro, grupos culturais negros, objetivando buscar elementos e
trocar experiências para a realização de planos institucionais, pedagógicos e
projetos de ensino sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, ofere-
cendo elementos para o combate ao racismo e a discriminações presentes
na educação escolar.
52 Kátia Régis

Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações

O terceiro princípio que orienta os sistemas, os estabelecimentos


de ensino e os(as) educadores(as) para a realização da educação para as
relações étnico-raciais e para o ensino da história e cultura africana e afro-
-brasileira em consonância com as Diretrizes (Brasil, 2004) diz respeito a
ações educativas de combate ao racismo e a discriminações. O princípio enca-
minha para, dentre outras questões:
• Críticas à representação do negro nos materiais didáticos e providên-
cias para alterá-los realizadas pelos coordenadores pedagógicos(as),
orientadores(as) educacionais e professores(as);
• Condições para os(as) professores(as) e os(as) estudantes refletirem,
agirem e assumirem responsabilidades por relações étnico-raciais
positivas;
• Valorização da oralidade, corporeidade e da arte – marcas da cultura de
matriz africana – ao lado da escrita e da leitura;
• Cuidado para que se possibilite uma perspectiva positiva à partici-
pação dos diferentes grupos étnico-raciais e sociais na construção da
sociedade brasileira;
• Participação do movimento negro, de grupos culturais negros e da
comunidade em que a escola está inserida para a elaboração de projetos
político-pedagógicos que contemplem a diversidade.

Para a realização desse princípio, um dos aspectos que precisa ser


levado em consideração diz respeito à análise das práticas curriculares
que se desenvolvem na sala de aula e como se relacionam ao papel dos
educadores na definição dos currículos escolares realmente efetivados, na
percepção que possuem acerca dos conhecimentos vistos como valiosos
para serem transmitidos e na desconsideração de outros conhecimentos.
Segundo Sacristán (1998a, pp. 177-178),

O professor é mediador entre o aluno e a cultura através do nível cultural


que em princípio ele tem, pela significação que atribui ao currículo em
geral e ao conhecimento que transmite em particular e pelas atitudes que
tem para com o conhecimento ou para com uma parcela especializada do
mesmo. Daí seu papel decisivo, já que a filtragem do currículo pelos profes-
sores não é mero problema de distorções cognitivas ou interpretações peda-
gógicas diversas, mas também de distorções nesses significados que, de um
ponto de vista social, não são equivalentes nem neutros. Se a distribuição
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 53

do conhecimento na sociedade e no sistema educativo está relacionada com


as pautas de controle e a distribuição do poder na sociedade, a mediação
do professor nessa relação tem consequências importantes. Seu papel não
é só analisável desde a ótica da correção pedagógica ou segundo o grau de
respeito à essência do conhecimento, mas também pelas distorções que
introduz.

Apesar da importância da educação das relações étnico-raciais e


do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira para a efetivação
de uma educação de qualidade, na prática curricular, essas questões são
tratadas esporadicamente, geralmente por meio de práticas isoladas, de
maneira pontual e à margem do currículo hegemônico. Além disso, esse
tema é visto como difícil de ser discutido e, quando ocorrem, os debates
sobre as diferenças étnico-raciais são dissociados do contexto social, econô-
mico, político e cultural. Contudo, essas diferenças estão inseridas nas rela-
ções de poder que produzem exclusões e desigualdades.
Nesse sentido, é necessário refletir sobre a formação inicial e conti-
nuada que possa fornecer efetivamente conhecimento sobre a história da
África e afro-brasileira e que possibilite aos(às) educadores(as) reconhe-
cerem e valorizarem os diferentes grupos étnico-raciais formadores da
sociedade brasileira.
Esses processos formativos devem ser realizados em articulação com
os sistemas de ensino, instituições de ensino superior, centros de pesquisa,
Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs), escolas, comunidade e movi-
mentos sociais. Também é imprescindível a realização da formação de
outros sujeitos da prática educativa, como destaca Silva (2012, pp. 44-45),
“Fala-se muito da formação dos professores para executar as orientações do
Parecer CNE/CP 3/2004, mas igual ênfase não tem sido dada ao preparo dos
gestores, dos coordenadores pedagógicos [...]”.
Conforme os dados de pesquisa coordenada por Gomes (2012)5,
a partir das práticas que foram observadas e nos depoimentos do entre-
vistados, observa-se que a formação inicial e continuada dos(as)
educadores(as) é percebida como o principal mecanismo para a mudança de

5 A pesquisa “Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva


da Lei nº 10.639/03” foi realizada entre fevereiro e dezembro de 2009. Apoiada e financiada pelo
Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(MEC/Secadi) e pela representação da Unesco no Brasil, teve por objetivo identificar, mapear e anali-
sar as iniciativas desenvolvidas pelas redes públicas de ensino e as práticas pedagógicas realizadas por
escolas pertencentes a essas redes na perspectiva da lei nº 10.639/03.
54 Kátia Régis

práticas e posturas racistas. Entretanto, é necessário problematizar a visão


de que esses processos formativos alterariam automaticamente as práticas
preconceituosas, discriminatórias e racistas.
Ainda de acordo com esta pesquisa, existe um distanciamento entre
a política de formação de educadores(as) de modo geral e a formação espe-
cífica para a diversidade étnico-racial, sendo rara a inclusão da temática
nos processos convencionais de formação. Há o destaque de que é impres-
cindível que ocorra formação específica para o tema, pois isso se relaciona
ao caráter de ação afirmativa da lei nº 10.639/2003. Outrossim, a investi-
gação ressalta a importância da inclusão do tema nos processos e políticas
convencionais de formação, ou seja, “a inclusão da ação afirmativa nas polí-
ticas universais transformando-as e (re)qualificando-as” (ibid., p. 359).
O processo de formação inicial e continuada precisa refletir inicial-
mente sobre a complexidade, as especificidades e as tensões oriundas das
relações étnico-raciais no Brasil, permeadas de práticas preconceituosas,
discriminatórias e racistas que atingem cotidianamente a população negra.
Além disso, é fundamental que problematize o mito da democracia racial e
a ideologia de branqueamento.
Para que essa formação contemple a diversidade étnico-racial na
sociedade brasileira, é preciso que o currículo eurocêntrico seja questio-
nado, desnaturalizando a ideia de que é o único referencial valioso a ser
ensinado e não resultado de uma construção histórica, pois, conforme
Sacristán (1998a, p. 183), “Chama a atenção a escassa importância conce-
dida, na formação inicial, à análise dos currículos como seleções e elabo-
rações de conhecimento[...]”. Ademais, necessita oferecer efetivamente o
embasamento conceitual sobre a história e cultura afro-brasileira e afri-
cana nas diferentes áreas de conhecimento, com o acesso a conhecimentos
produzidos pelos próprios africanos sobre a África.
Para propiciar a realização de práticas pautadas no princípio que
orienta para ações educativas de combate ao racismo e a discriminações, esses
processos formativos precisam estar articulados com ações efetivadas em
alguns contextos que interferem na configuração dos currículos. Segundo
Sacristán (1998b, p. 141), em uma concepção processual de currículo, que
se relaciona com uma visão sobre as relações entre a escola e a sociedade
em geral, a alteração curricular “consiste em (e exige) alterações em todas
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 55

as práticas próprias dos contextos por meio dos quais adquire significado
real”, pois é indispensável produzir mudanças reais na prática curricular
que os(as) estudantes e os(s) professores(as) experimentam.
Desse modo, é importante refletir sobre: os recursos financeiros e
técnicos para a sua efetivação nos diferentes entes federados; a definição
das orientações e ações nas redes oficiais de ensino para inserção da temá-
tica; a criação de grupos de trabalho sobre o tema; a articulação da lei nº
10.639/2003 com outras políticas públicas que contemplem a diversidade;
a inserção da temática nos projetos político-pedagógicos (PPP); a produção
e a socialização de novos materiais didáticos e a articulação com o movi-
mento negro para a incorporação de saberes e conhecimentos oriundos
desses espaços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A alteração da lei nº 9.394/1996 pela lei nº 10.639/2003, as Dire-


trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), o Plano
Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (2009), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola (2012), a crescente implementação das cotas nas universidades
públicas brasileiras e a aprovação por unanimidade da constitucionalidade
das ações afirmativas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) influenciam
e impulsionam o debate sobre a desigualdade étnico-racial na sociedade
brasileira. Por serem políticas de ação afirmativa que questionam os privi-
légios e hierarquias que historicamente marcaram as relações étnico-raciais
em nosso país, suscitam tensões, conflitos e contradições.
No processo das discussões sobre a educação das relações étnico-
-raciais e sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
nos currículos escolares, existe a pressão para que ocorra o enraizamento
da lei nº 10.639/2003 para a alteração do currículo hegemônico. Nesse
contexto, há novas questões, críticas e proposições aos currículos que
podem contribuir com a problematização das relações étnico-raciais na
educação e propor alterações nestas, refletindo sobre conhecimentos que
foram produzidos pela humanidade e que são silenciados nas práticas curri-
culares. Conforme destacado, os desafios não são poucos e a efetivação dos
56 Kátia Régis

princípios da consciência política e histórica da diversidade; do fortalecimento


das identidades e de direitos e de ações educativas de combate ao racismo e
as discriminações demandam novas abordagens e posturas epistemológicas
para que ocorra efetivamente a inserção da temática no cotidiano escolar.
Evidentemente que a existência da lei não é o suficiente para alterar a
realidade curricular, mas ela é fundamental para o reconhecimento público
da diversidade. Ela é o resultado de lutas e reivindicações históricas da
população negra para ter o seu direito à educação assegurado. Assinala,
também, a responsabilidade do Estado em relação à diversidade étnico-
-racial, pois as políticas públicas são essenciais para induzir mudanças
concretas nas relações étnico-raciais nas instituições educacionais para que,
por meio de seus currículos, efetivem uma educação antirracista e multicul-
tural. Segundo Freire (2002, p. 88). “[...] A mudança do mundo implica a
dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio da sua
superação. [...] Mudar é difícil, mas é possível [...]”.

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de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasi-
leira”, e dá outras providências. Brasília.
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de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obriga-
toriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Brasília.
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 57

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Fundação Cultural Palmares.
Currículo e filosofia nativa
Janina Sanches1

Com base em estudo e experiência de pesquisa sobre a educação inter-


cultural e os direitos humanos (Sanches, 2006 e 2010), aprofundo refle-
xões propondo a inclusão da filosofia nativa no currículo nacional. Nesse
sentido, recorrendo à teoria e metodologia mitohermenêutica, (Ferreira-
Santos, 1998, 2005), que é ao mesmo tempo mitológica, hermenêutica,
antropológica (Durand, 2002), teoria e metodologia para a interpretação
das culturas, com fundamentos na teoria da dinâmica dos instintos de
Szondi (1970) e nos direitos humanos, defendo a valorização das maneiras
de pensar de povos nativos do Brasil e povos nativos vizinhos.
Visando contribuir para a percepção dos valores espirituais das
nossas maneiras culturais de conhecer nesta região ao sul do globo, destaco
o mito como recurso para processos de análise da estrutura antropológica
cultural na qual a meditação, a ponderação, a sensibilidade ante as necessi-
dades humanas de ser na diversidade, fazem parte da busca do equilíbrio,
da confiança no contato humano e na vida em grupo.
Ampliando meditações sobre o trajeto antropológico (Durand,
2002), ou seja, caminho que tem, por um lado, a força dos instintos,
pulsões, emoções e, por outro, as pressões socioeconômico-político-
-culturais, resultando no sistema simbólico cultural da educação contempo-
rânea. Busco destacar possíveis contribuições de filosofias de povos nativos
para a educação, e demonstrar por que as filosofias indígenas constituem
conhecimento digno de ser incluído no currículo nacional.
Tendo em vista a questão dos direitos humanos na defesa do diálogo
social, defendo um currículo nacional que compreenda, valorize, dialogue
ouvindo a voz nativa. Neste estudo reflexão, o símbolo não sendo semioló-
gico, mas da semântica especial, considera que há algo mais que um sentido
artificialmente dado a alguma coisa e que o símbolo inculca “um essencial

1 Graduada em Comunicação Social. Mestre e doutora em Educação e pós-doutora em


Filosofia e Antropologia da Educação. Professora da Unichistus, Ceará. <http://lattes.cnpq.
br/9974944245713488>
60 Janina Sanches

e espontâneo poder de repercussão” (ibid., p. 31). Busco desvelar a unidade


semântica analisada, o currículo nacional, como unidade de ação mítica
que se expressa nas narrativas encontradas.
Problematizo o reconhecimento do imaginário cultural nativo na
educação contemporânea, atualmente centrada mais em fatos, competên-
cias (lutas) e avaliações para resultados, que em convicções da experiência
da sensibilidade humana (Benjamin, 1987, p. 11). Nesse sentido, caminho
na direção contrária aos apelos de Freire, quando perguntava (2005, p. 58):
“Até que ponto vamos ser nós os delimitadores do que os índios devem
saber?”, as perguntas motivadoras deste texto são: Até que ponto continua­
remos nós os brancos, a ignorar o saber indígena? Até quando continua-
remos nós, os brancos, a desconhecer o que eles têm a nos ensinar? Até
quando continuaremos nós, os brancos, a não reconhecer a influência das
filosofias nativas que até a atualidade (felizmente) tem determinado muitas
das nossas maneiras de pensar?
Retomando meu caminho de mãos dadas com o mestre Freire (1996,
p. 56), invoco a consciência do inacabamento de homens e mulheres, noção
que nos faz seres responsáveis pela nossa presença no mundo. Pela Cons-
tituição Brasileira de 1988, legislação complementar, e os Recnei – Refe-
rencial Curricular Nacional para as Escolas Indígena de 1998, a educação
diferenciada respeita (no sentido de que tolera?) o direito à preservação de
línguas e culturas, modos próprios de elaboração e transmissão do conhe-
cimento, com objetivos e currículo definidos pela mesma comunidade, de
acordo com seus próprios projetos (Silva e Ferreira, 2001). Contudo, nessa
rua de mão única (Benjamin, 1987) em momento algum há a proposta da
alteridade, ou seja, a humildade de querer também nós aprender do outro,
com o outro, ouvir o que os outros – das maneiras nativas de pensar – têm
a nos dizer.
Nas últimas décadas, estudos e pesquisas acadêmicas têm anali-
sado e propiciado valiosas contribuições metodológicas com base no uso
de recursos didáticos já reconhecidos na educação oficial da escola de
branco, quando aplicadas no campo intercultural. Como é o caso da peda-
gogia Freinet (Biase, 2001), o construtivismo (Macedo, 2001), métodos de
história oral e pesquisa documental (Lopes et al., 2001), e muitos outros.
Mas, em todos esses anos de convivência, não haveria nada que a filosofia
nativa pudesse ensinar aos brancos? Essa é a pergunta que busca resposta e
justiça histórica.
Currículo e filosofia nativa 61

O CAMINHO DE HERMES NA FLORESTA

No Brasil, quando falamos em mito, costumamos pensar que estamos


nos referindo aos gregos. Como se apenas esse povo houvesse percebido a
força dos instintos e lhes tivesse dado nomes, ignora-se a filosofia da mito-
logia de povos nativos no Brasil. Segundo um estudioso dos mitos, Junito
Brandão (2009a, p. 14), o mito é um modo de significação, forma e símbolo
interagindo entre o consciente e o inconsciente coletivo (ibid., p. 32), que
contém algo de comum em todas as culturas humanas, pois tem se obser-
vado que nas mais diversas culturas, os deuses representam fenômenos da
energia da natureza do ser humano e como se resolvem naquele contexto e
momento histórico cultural.
Como o mito é impregnado de símbolos, torna-se importante
conhecer a complexidade das suas motivações. Considerando que estas
são bivalentes por definição, ou seja, ao mesmo tempo convidam (aceitam,
atraem, convergem) e rejeitam (recusam, expelem, divergem). Na repre-
sentação gráfica, essa contradição é desenhada em linhas paradoxais, que
convergem e ao mesmo tempo divergem (Cassirer, 2005, p. 31).
Compreende-se a etimologia da palavra mytho ou mito (Ferreira-
-Santos, 1998, p. 16), vindo da palavra grega mythós, como sendo um relato
que se refere à dinâmica das imagens e dos símbolos que orientam determi-
nadas ações, o seu conteúdo, articulando o passado (arché), com o presente,
em direção ao futuro (telos) (ibid.).
Neste estudo, analisando o mito de Hermes, quer-se reconhecer os
traços envolvidos no “trajeto antropológico biopsíquico” (Durand, 2002,
p. 41), formado pela mente humana em resposta às pressões sociais, econô-
micas, políticas, culturais ou as “vastas constelações de imagens, pratica-
mente constantes” (ibid.), produzidas pela mente humana.
Para o educador, a importância de conhecer sobre a simbologia dos
mitos deve-se ao fato de trabalhar com grupos que estão sempre mudando,
desenvolver trabalhos coletivos com múltiplas interdisciplinaridades. A
sensibilidade a palavras e contextos permite compreender ações-reflexões
humanas expostas, aquelas que ficaram à sombra, e a maneira como
expressam em seu conjunto, um sonho coletivo (Campbell, 1990, p. 82).
Na dimensão antropológica, sabemos que o mito põe à mostra a
“gesticulação cultural” (Ferreira-Santos, 2004, p. 33) do contexto analisado,
naquele momento histórico. O simbólico das linguagens, das narrativas,
62 Janina Sanches

expõe como o sistema cultural se apresenta e se movimenta no contexto,


propiciando melhor conhecer as significâncias em curso. Como explica
Bachelard (1998, p. 31), os símbolos tem um dinamismo organizador
próprio, uma homogeneidade em sua representação, devido aos vínculos
afetivos que se expressam na linguagem.
O método mitohermenêutico visa ampliar a compreensão sobre
a dinâmica à sombra (Ferreira-Santos, 2004, p. 41); busca iluminar a
forma dos mitos em curso, nos seus “pacotes de relações” (Durand, 2002,
p. 357); favorecer a reflexão dialógica sobre a força interativa dos paradoxos
presentes na vida coletiva, propiciando a responsabilização pela escolha do
agir consciente, e inconsciente, do grupo.
Considerando a importância para o âmbito educativo, de buscar
possibilitar “a ponte” o equilíbrio antropológico, a reflexão recorre à teoria
da dinâmica dos instintos (Szondi, 1970, p. 30), os arquétipos (instintos,
pulsões, emoções). A imaginação, como simbolismo organizador em toda
cultura, é fator que cria homogeneidade nas representações, permitindo
explicar a convergência da simbologia e o fundamento da vida psíquica
coletiva em qualquer cultura humana, sendo metafórica e equivalente em
todas as culturas (Durand, 2002, p. 30).
Nesse sentido, aproximando o mito grego Hermes à cosmologia
guarani, encontramos em uma das versões do Pai-tavyterã (Montardo,
2007, p. 97), o mito ancestral, que Ñande Ramoi (nosso avô, primeiro
homem), criou Ñande Jarýi (a primeira mulher, nossa avó) e tudo que há
no mundo; a terra, o céu, os mares. Chegou então um momento em que ele
deixou a terra, sem ter morrido, enciumado.
Exigiu que Ñande Jarýi comprovasse o seu amor indo até ele no céu,
usando da sua própria força. Recorrendo a sua criatividade, Ñande Jarýi,
superou todos os obstáculos enviados pelo marido para dificultar o seu
caminho e lá chegou cantando o primeiro canto sagrado.
Acompanhando-se do takuapu, instrumento musical de aproximada-
mente um metro de comprimento, feito de taquara e considerado feminino,
ela cruzou os caminhos e venceu os perigos da floresta. Tradicionalmente,
esse instrumento acompanha o ritmo do chocalho, mbaraka, instrumento
considerado masculino e que contém sementes.
Na mitologia grega, Hermes é o deus hermafrodita, filho de Zeus e
sua amante Maia. Desde a mais tenra infância, ele demonstrou especial uso
da percepção e da criatividade, pois, ao nascer, foi deixado no vão de um
Currículo e filosofia nativa 63

salgueiro, longe da ira da esposa de Zeus, Hera. Não se conformando com


a condição que lhe fora dada, Hermes desatou os panos que o protegiam e
transformando desejo em ação, viajou à Tessália (Alvarenga, 2007, p. 253).
Roubou ovelhas de Admeto, amarrou-lhes ramos nas caudas para
que fossem apagando seus rastros e com elas percorreu quase toda a Hélade.
Sacrificou duas novilhas aos deuses, dividindo-as em 12 porções, sendo os
imortais apenas 11, pois Hermes destinara-se a ser o décimo segundo deus
(Brandão, 2009b, p. 200).
O mensageiro dos deuses do Olimpo olhou para o mundo enxer-
gando o que estava além do imediato (Alvarenga, 2007, p. 254). Em seu
caminho, pôs-se a serviço da troca. Tropeçou com uma tartaruga, mas ao
invés de se enraivecer, Hermes transformou-a em uma lira e, por meio da
música, pôs energias em movimento, abrindo novos caminhos para o seu
destino.

MITOHERMENÊUTICA DO CURRÍCULO
E DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO

Tão logo o Ministério da Educação lançou o Recnei, com diretrizes


para a questão da tolerância e da educação inclusiva, passando a ser usado
no começo da década de 2000, tradicional instituição católica de ensino
da cidade de São Paulo, criou um curso para a educação desse público,
juntando numa só sala surdos e índios. Os indígenas costumavam dizer
que havia muito que aprender com os surdos. O público surdo expressava
através de seus códigos e geralmente na frente dos índios, como incomo-
dava-lhes haver sido assim misturados.
Na obra Interpretação das Culturas, Geertz (1989) lançou duas
ideias fundamentais, válidas para essa reflexão crítica: a primeira entende
a cultura, não apenas como complexos de padrões concretos de comporta-
mento, costumes, usos, tradições, hábitos, como vinha sendo pensado até
então, mas também como um conjunto de mecanismos de controle, jogos
de poder, planos, receitas, regras, instruções para governar comportamentos
(ibid., p. 33). A segunda ideia defende que o homem é um animal que
depende desses programas culturais, mecanismos de controle extragené-
ticos para ordenar os seus comportamentos que, de outra maneira, seriam
um caos de atos sem sentido, e a experiência humana não teria qualquer
forma ou sentido (ibid.).
64 Janina Sanches

Cabe comentar criticamente essas afirmativas, pois delineiam passi-


vidade diante dos ditâmes do poder. Considerando as possibilidades de
resistência, sejam quais forem os modos, as maneiras e a qualidade com
que se manifestam, tem-se um novo quadro, mais real. Provoca então
perguntar em que medida pressões e tensões sobre a maneira de conhecer
local e de ser sensível à presença de outros, habituaram-nos a determi-
nados comportamentos e expectativas. Depender de programas educativo-
-culturais alheios a nossas realidades, o forjar de currículos baseados em
códigos importados e não reconhecer o conteúdo e a força das nossas possi-
bilidades e reações têm gerado profundas frustrações.
Enquanto um currículo alheio ao espírito da cultura nativa dá-se
ao esforço do respeito à diversidade, o pensar nativo, por seu lado, mesmo
tendo sido submetido a longos processos de descaso e tratamentos perversos
e, tendo sido declarado inúmeras vezes extinto, mantém-se reproduzindo a
sua ancestral filosofia. Aqueles que já foram a escolas dentro de aldeias,
encontramos o mesmo conteúdo espiritual nas falas, a mesma integração
com a natureza nos cantos, no ritmo interior de lamentações e alegrias.

RESSIGNIFICAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

A atual educação diferenciada, construída politicamente para suprir


faltas aos povos nativos, superar a histórica negação pela exclusão e por
antinomia, a negação da existência, mostra-se em seu estágio atual, a meio
caminho de garantir o acesso aos direitos humanos de liberdade, igualdade
e solidariedade, conforme a Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948, que diz em seu artigo 26:

[...] A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao


reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favo-
recer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações [...].
(ONU, 1948)

Se por um lado, o Estado atendeu ao movimento indígena organi-


zado no Brasil, quanto ao direito à manutenção de línguas e culturas e ao
acesso à educação escolar “respeitosa de seus modos próprios de elaboração
e transmissão de conhecimento, com objetivos e currículos definidos por
cada comunidade específica, de acordo com seus próprios projetos” (Silva
e Ferreira, 2001, p. 10); por outro lado, a população branca, não-indígena,
Currículo e filosofia nativa 65

continua sem saber quem faz parte das nações indígenas, o que essa popu-
lação pensa, como contribuíram para a história do país, quais são os seus
conhecimentos, filosofias, e até por que, o que motiva estudiosos estran-
geiros a vir para suas reservas conhecê-los e ouvi-los.
No século XXI, a grande maioria de professores e cidadãos do Brasil
ainda não sabe como as ideias de povos nativos poderiam contribuir para
a educação contemporânea plural, mediadora, aberta a multilógicas e
multissensibilidades.
Longe de qualquer ingenuidade, durante o Seminário Terras Guarani
no Litoral – Contexto Fundiário e Ambiental, que ocorreu no Memorial da
América Latina, em São Paulo, de 15 a 16 de dezembro de 2004, organi-
zado pelo Centro de Trabalho Indigenista, com o apoio da Norwegian Rain-
forest Foundation, um fato confirmou o distanciamento simbólico: após a
fala de muitos brancos, um índio guarani pediu a palavra e disse que havia
sido trazido para prestigiar aquele encontro, tendo sido hospedado em um
hotel, comendo três refeições ao dia, conduzido em ônibus confortáveis
pela cidade de São Paulo e tendo tido a oportunidade de encontrar parentes
de várias aldeias do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo: “Da próxima vez”,
disse ele, “vou trazer toda a minha família, porque eles ficaram na aldeia,
passando fome e outras necessidades, sem entender o que é que eu estou fazendo
aqui” (Sanches, 2006, p. 116).
Em 2014, de que maneira esse fenômeno mudou? Para muitos
brancos, pode ser difícil posicionar-se, pois não sabem o que os povos
nativos pensam. Ainda observamos no cotidiano da educação escolar, no
material didático, para ensino médio e universitário, que o processo de
contrapartida não existe. A educação dos brancos, não-indígenas, desco-
nhece a filosofia nativa, mantendo-se sem recursos para emitir opiniões e,
inclusive, desinteressada do tema sobre pessoas tão distantes.
A opinião é o gigante da vida social, dizia Benjamin (1987, p. 11).
É o mesmo que o óleo para as máquinas: ninguém se coloca diante de uma
turbina e a borrifa toda com óleo de máquinas, mas sim, é preciso borrifar
um pouco nos pontos dos rebites, articulações, juntas ocultas, que é preciso
conhecer, saber onde estão.
Há décadas, a política geral do Brasil criou um processo de dispersar
os índios para que eles fossem se inserindo na cultura branca e desapare-
cendo, e esse é um fator que repercute até hoje (Sanches, 2010). No caso
do estado de São Paulo, há aldeias tupi-guarani no litoral norte de São
66 Janina Sanches

Paulo, em Ubatuba, assim como em Bauru, a mais de 400 km de distância


entre uma e outra, dificultando a comunicação entre eles (Sanches, 2006).
A geografia desenhada por essa política foi perversa, e fica evidente quando
se pretende fazer um trabalho de educação de cotas, por exemplo, pois,
dessa forma, concentrando-se apenas na cultura local, os indígenas desco-
nhecem muitos dos fatores da história da educação nacional. Vivendo
apenas as consequentes dificuldades da comunicação, sem recursos para
vencer a geografia, continuam segregados.
A maneira como se está cumprindo o direito humano à educação de
qualidade é coisa que se necessita compreender melhor. Requer a humil-
dade de reconhecer a cegueira espiritual em que nos afundamos, para que
dela possamos sair. Faz-se urgente ressignificar, pois é ainda maior o distan-
ciamento em que vivem os brancos em relação aos povos nativos, especial-
mente é profunda a separação sensível, espiritual.
Assim narra Fernandes (1948, p. 283), sobre a resposta dada por
Japyaçu a Rasily, sobre a forma como os tupinambá chegavam a soluções
práticas.

Em particular, tem o mérito de mostrar que o conselho de chefes consti-


tuía uma poderosa agência de conservantismo cultural e uma fonte perma-
nente de atualização das tradições tribais. “Bem sei que esse costume é ruim
e contrário à natureza, e por isso, muitas vezes procurei extingui-lo. Mas
todos nós, velhos, somos quase iguais e com idênticos poderes; e se acon-
tece um de nós apresentar uma proposta, embora seja aprovada por maioria
de votos, basta uma opinião desfavorável para fazê-la cair”.

Fonte: Hans Staden.

Imagem 1 – Reunião de conselho de chefes, para tomar decisões


Currículo e filosofia nativa 67

O desenho acima, de Hans Staden (1525-1579), testemunha o estra-


nhamento do autor diante dos supostos selvagens, bárbaros primitivos, que
organizavam reunião de conselho de chefes para tomar decisões, ocasião em
que, como conta Fernandes, com base em relatos de Thevet (1502-1590) e
Gabriel Soares (1540-1591):

Os simples ouvintes “assentavam-se em cócoras” em torno dos chefes,


enquanto estes “Em virtude de sua hierarquia, proveniente da linhagem ou
de outro qualquer motivo, se conservam sentados em suas redes”. Eram os
indivíduos que possuíam maior parentela, maior renome guerreiro e idade
mais avançada. O cacique expunha publicamente as razões da convocação
dos companheiros. A seguir, os velhos opinavam sobre o assunto. As regras
de polidez obrigavam os gerontes a expor seus pontos de vista sem tumulto
e cada um por sua vez. Um orador propunha tomar a palavra quando o
antecessor desse por terminada sua intervenção. Apesar disso, parece que as
discussões nem sempre eram serenas, pois Gabriel Soares informa “que tem
suas alterações muitas vezes”. (Ibid.)

Trata-se minimamente de uma falta na formação de professores


brancos e na filosofia comparada ensinada em nosso país, o desconhe-
cimento da filosofia dos povos nativos do Brasil. Uma passagem entre os
feitos da deusa grega Atená, filha de Zeus, ilustra a importância da escolha
e de que o ser humano seja informado com antecedência sobre os perigos
envolvidos em ignorar a força dos deuses.
Aracne, era uma bela jovem tecelã e bordadeira da Lídia que em sua
extrema vaidade, ousou um dia desafiar a deusa Atená chamando-a para
uma competição pública. Ao saber dessa pretensão, a deusa apareceu-lhe na
forma de uma anciã, advertindo-a de que os deuses não admitem ser desa-
fiados para competir com os mortais. Mas a jovem Aracne vaidosa, orgu-
lhosa do seu trabalho, não aceitou o conselho e expulsou a mensageira.
A deusa Atená entrou então na competição e criou uma magnífica tape-
çaria colorida na qual representou os doze deuses do Olimpo em toda a sua
majestade.
Por seu lado, Aracne bordou em desenhos as histórias pouco deco-
rosas sobre os amores dos deuses, especialmente as aventuras de Zeus, pai
de Atená. Irritada com o gesto da simples mortal, a deusa despedaçou o
seu trabalho, fazendo com que aquela, humilhada, quisesse se enforcar.
Atená não lhe permitiu, sustentando-a no ar e transformando-a em aranha,
para que tecesse pelo resto da vida, configurando a sua punição. Como está
68 Janina Sanches

na Bíblia (Jó, 27, 18-19 in Brandão, 2009b, p. 28): “Construiu sua casa
como a da aranha e, como guarda, fez sua choupana. Rico, ele se deita pela
última vez; quando abrir os olhos, nada encontrará”. E como está no Corão
(29,40): “Mas a habitação da aranha é a mais frágil das habitações” (ibid.).
Especialmente, é importante conhecer sobre os perfis instintivos
como necessidades, fatores psíquicos que não são rígidos nem estáveis,
significando, portanto, estarem sempre sob influência da vida sociocultural
em mutação, motivo pelo qual Szondi deu espaço à ideia de um destino
livre, que o ser humano escolhe, devido a seu desejo de liberdade.
A escolha de cada indivíduo se manifesta no uso harmonioso (ou
não), que cada pessoa faz, pela escolha das possibilidades instintivas, das
pulsões e como dirige o mecanismo de autorrestrições diante da energia
vital dessas pulsões. Aquilo que Morin (2007, p. 182) chama organização
recursiva, ou seja, é necessário reconhecer nossos efeitos e produtos como
a própria causação.
O sistema instintivo de Szondi (1970, p. 29), contemporâneo
de Freud e Jung, amplia a contribuição de Freud, restrita à sexualidade.
Szondi revelou em seus estudos quatro círculos instintivos que estão nos
genes, chamados vetores ou radicais, como na matemática. Cada vetor é
a-histórico e transmitido pela hereditariedade, é uma força, energia que se
renova, muda e atualiza continuamente devido às influências sociocultu-
rais. Sempre presente na vida e no comportamento humano, é um caminho
com sentido de direção.
Nas raízes instintivas, condicionadoras e conservadoras da exis-
tência humana, manifestam-se necessidades e tendências, sendo: 1. Vetor
S: instinto sexual (necessidade de corporalidade); 2. Vetor P: instinto paro-
xismal / surpresa (necessidade de afetividade); 3. Vetor SCh: forças do eu
(necessidades de intelectualidade / espiritualidade); 4. Vetor C: instinto de
contato / participação (necessidade de segurança).
Estudos sobre a cosmologia do antigo Perú têm revelado desenhos
em objetos de cerâmica da cultura Chavín, Mochica, Casma, Pativilca,
Huaylas-Yunga, Huarochirí e outras anteriores aos incas, com imagens do
deus solar, hermafrodita, Wiracocha, que mora nas montanhas, ele criou e
organizou o universo e tudo o que nele existe.
Currículo e filosofia nativa 69

Imagem 2 – Wiracocha. Cultura Wari-Tiwanaco, Perú2

Wiracocha criou a primeira mulher, sua gêmea, simbolizando a


mãe-terra. Conta o mito que ele organizou o universo em três mundos, o
Hanan Pacha, mundo de cima (o raio), onde habitam os astros, constela-
ções, estrelas, arco-íris, nuvens, o Kay Pacha, mundo daqui (o rio), com
os seres terrestres, montanhas, lagos, pessoas, animais, plantas. O Uchu
Pacha, mundo interior ou subterrâneo (serpente) onde vivem os mallquis,
sementes ou ancestrais enterrados para que nasçam pessoas novas na terra,
onde a comunicação se faz através dos orifícios da terra, covas, crateras,
lagoas, relacionadas à origem dos seres (Sanches, 2010, p. 20).
Os três mundos se relacionam através do poder das águas e da fecun-
didade, Yacumama, que no mundo de cima é o raio, no mundo terreno é
o rio, e no mundo subterrâneo é a serpente; e do poder Sachamama, da
fertilidade, que, no mundo de cima, é o arco-íris; na terra é a árvore; e no
subterrâneo é a serpente de duas cabeças. Também vinculado à produção
vegetal, Wiracocha é encontrado em imagens com a deusa lunar MamaKilla,
que a ele se une à beira do mar ou em uma ilha, tendo geralmente à sua
volta árvores frondosas, frutos, macacos, pumas, serpentes, dragões, lobos-
-marinhos, aves, peixes (ibid.).
Durand (2008) também advertiu que a mitologia encoberta se trans-
forma em psicopatologia e os deuses imortais se vingam. Professores,
amautas, não podem mais ser resistentes como a terra-mãe a perceber que
no mundo a linguagem mudou e novas ordenações trocam conhecimentos
e sensibilidades na construção de autopoiésis coletivas.

2 Hermafrodita, imortal. Acreditava-se que estava em toda parte, adotava distintas formas, organi-
zou o universo em três mundos relacionados entre si, em dualidade e harmonia.
70 Janina Sanches

O currículo nacional tem dado parâmetros e deixado espaços para


novas contribuições, que requerem ser preenchidos. Precisamos filo-
sofar incluindo também o reconhecimento dos povos nativos que há em
nós mesmos, descobrir-nos em nosso gosto por nos adornar, por dançar
e cantar, reunir familiares e amigos, ter fé, maneiras de mediar, negociar,
argumentar.
Conta a lenda peruana da Achirana (palavra quéchua que significa “a
que corre limpa em direção ao que é belo”), que o inca Pachacútec dominou
o vale de Ica, sem nenhum esforço, devido a seus habitantes serem pací-
ficos (Sanches, 2010). Quando chegou ao deserto de Tate, encontrou ali
uma anciã e sua filha por quem o inca se apaixonou. Porém a jovem não se
iludiu com as palavras do inca e lhe disse que já estava comprometida com
um jovem da sua comarca. Comovido pelo desinteresse e honestidade da
bela donzela, o inca quis selar a sua admiração e perguntou o que ela queria
como presente, dizendo:

Fica em paz, pomba deste vale, e que nunca uma nuvem de dor estenda o
seu véu sobre o céu da tua alma. Pede-me alguma graça que a ti e aos teus
faça lembrar para sempre o amor que me inspirastes.3 (Palma, s/d)

Ela respondeu:

Planta benefícios e terás colheitas benditas. Reina, senhor, sobre corações


agradecidos, mais que sobre homens que, tímidos, inclinem-se diante de ti,
deslumbrados com teu esplendor.4 (Ibid.)

E a jovem beijou-lhe o manto real. O inca Pachacútec seguiu viagem,


deixando quarenta mil homens para que em dez dias abrissem o caudal do
rio mais próximo até a região.
O amor fraternal, primeiro princípio ativo da projeção das imagens,
força propulsora da imaginação, coloca numa perspectiva humana mais
segura as relações humanas (Sanches, 2010). Ou, paradoxalmente, como
postula Prado (s/d.):

3 “Quédate en paz, paloma de este valle, y que nunca la niebla del dolor tienda su velo sobre el cielo de
tu alma. Pídeme alguna merced que a ti y a los tuyos haga recordar siempre el amor que me inspiraste”.
4 “Siembra beneficios e tendrás cosechas benditas. Reina, señor, sobre corazones agradecidos más que
sobre hombres que, tímidos, se inclinen ante ti, deslumbrados por tu esplendor”.
Currículo e filosofia nativa 71

Ensinamento 
Minha mãe achava estudo 
a coisa mais fina do mundo. 
Não é. 
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. 
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, 
ela falou comigo: 
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”. 
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. 
Não me falou em amor, 
Essa palavra de luxo.

A tarefa hermesiana de educar, inventar novas formas de vida cole-


tiva em salas de aulas, artes-inteligências-sensibilidades-ética-responsa-
bilidades-experiências-instintos-filosofia-mitologias-identidades, é um
entrelaçado de conceitos. Há muito mais a compreender sobre o nosso
passado do que está ilustrando o presente e esvaziando o futuro, ao mesmo
tempo. Escolhendo amorosamente as energias que queremos usar, seremos
melhores amautas, professores guias que, entre outros, contribuem para que
mais gente cruze pontes em direção a um futuro mais justo, livre e belo.

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Diversidade cultural e ensino
de arte: articulações teóricas
no campo do currículo
Marinês Viana de Souza1

Este texto se fundamenta teoricamente pela articulação das temáticas do


ensino de arte e da diversidade cultural, buscando suas aproximações no
campo do currículo. Nesse sentido, pretende-se provocar algumas reflexões
acerca dos padrões artísticos monoculturais, que historicamente têm figu-
rado de forma hegemônica nas propostas curriculares para o ensino de arte
na educação formal brasileira, sobrepujando outros aspectos que eviden-
ciam a realidade multicultural desta sociedade.
Partindo da compreensão sobre o que é currículo, visto que corres-
ponde um dos eixos conceituais deste artigo, observa-se que o termo tem
tido diferentes interpretações na cultura escolar e nos meios acadêmicos,
ocasionando uma pluralidade de definições, que trazem implícitas em seu
bojo as concepções educacionais e os valores que emergem a cada época,
sociedades e culturas específicas. Nesse sentido, abordar a questão curri-
cular como um dos fundamentos teóricos em pesquisas na área da educação
formal, e mais especificamente na área do ensino de arte, não é uma questão
simples, devido à complexidade em torno do seu significado.
Buscando a raiz etimológica da palavra currículo, observa-se que
advém da forma latina currere = correr (Goodson, 1995), que entre outros
significados corresponde caminho ou percurso a seguir (Pacheco, 2005).
Ferraço (2006), apoiado nos estudos de Goodson (1995), destaca a relação
que este autor faz entre o sentido que o termo adquire, em função de sua
origem etimológica, com a ideia de um curso a ser seguido numa perspec-

1 Graduada em Pedagogia e em Educação Artística. Mestre em Educação, Administração e Comuni-


cação e doutora em Educação. Professora Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Amazonas – Ufam. <http://lattes.cnpq.br/2287700513447040>
76 Marinês Viana de Souza

tiva prescritiva. Dessa forma, destaca que, ao se conceber uma definição de


currículo, tendo como premissa o seu significado stricto sensu, é impossível
não relacioná-lo às questões de conteúdo prescrito.
Para Pacheco (2005, pp. 39-40), o termo currículo não possui um
sentido unívoco e sua definição não se traduz numa tarefa fácil, dada sua
dimensão complexa e ambígua, que se constrói “na multiplicidade de
práticas concorrentes para uma mesma finalidade: a educação dos sujeitos
em função de percursos de aprendizagens”. Portanto, a questão central, na
ótica desse autor, e com a qual me alinho, reside em responder quem define
esses percursos de aprendizagem, que considero ser o ponto relevante na
concepção de currículo numa perspectiva crítica, por revelar o aspecto
da não neutralidade no processo de seleção do que deve ser ensinado em
nossas escolas.
Corroborando esse propósito, Apple (2001) entende o currí-
culo como resultado de um processo de seleção de conhecimentos que não
corresponde a um elemento atemporal ou neutro, mas construído a partir
dos contextos sociais e culturais que se fazem presentes na dinâmica de
uma sociedade e nas ações dos sujeitos que a compõe e detêm o poder de
decisão. A concepção aqui expressa insere-se numa perspectiva crítica que,
entre outros aspectos, considera que cultura, conhecimento e poder estejam
imbricados na questão curricular. Dito dessa maneira, o entendimento que
se tem de currículo o configura como uma construção histórica, social e
cultural, portanto, concebida a partir da análise dos seus condicionantes
econômicos, políticos ou ideológicos oriundos de épocas e contextos sociais
e culturais específicos.
Por outro lado, há uma forte tendência, nos discursos oficiais e nos
meios escolares, à compreensão de currículo, de forma quase restrita, à
ideia de matriz curricular com suas áreas de conhecimento e rol de distintas
disciplinas escolares. Emerge, no contexto dessa compreensão, uma estreita
relação com os planos e programas de ensino ou sua relação com os diversos
aspectos da prática pedagógica, tais como: objetivos, métodos e processos
de avaliação.
Não se quer dizer que tais aspectos não sejam dimensões do currí-
culo, no entanto, vistos sob o prisma de uma pseudoneutralidade pres-
critiva, encontram-se atrelados aos ideais de racionalização e controle do
processo educacional, presentes nas obras de Bobbit (1918) e Tyler (1949),
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 77

ambos citados por Silva (2005)2 como modelos tecnocráticos e expoentes


das teorias tradicionais de currículo, e que também os retrata como ativi-
dade mecânica, burocrática e neutra.
De acordo com Souza (1999), a obra de Tyler influenciou os estudos
sobre currículo no Brasil, especialmente na década de 1970, mas os seus
postulados se encontram presentes na cultura escolar nos dias de hoje,
como herança histórica da tendência tecnicista preponderante naquela
época, aponta a autora.
Silva (2005), ao fazer uma análise comparativa das teorias tradicio-
nais e críticas do currículo, considera que os modelos tradicionais estão
restritos à dimensão técnica do “como fazer”, enquanto que, para as teorias
críticas, o foco recai na compreensão sobre “o que o currículo faz”, aproxi-
mando os estudos no campo da teoria curricular à sua perspectiva crítica,
que revela o caráter da não neutralidade e de sua estreita relação com a
cultura e as relações de poder. Entretanto, a compreensão do currículo, para
além das prescrições técnicas e metodológicas, ainda possui pouca reper-
cussão nos espaços escolares, apesar da crescente produção teórica na área.
Analisando essa constatação, Candau e Moreira (2008) consideram
que a familiaridade que os sujeitos que atuam nas escolas e nos sistemas
educacionais têm com a palavra currículo (presente em palestras, textos
acadêmicos, nos discursos e propostas curriculares oficiais) pode ser uma
explicação para que não haja uma reflexão mais ampla acerca da concepção
do termo. Assim, a compreensão dos seus sentidos e significados não
assume o espaço da práxis e não proporciona a problematização sobre o quê
e o como ensinar, a partir da relação estabelecida com os condicionantes
veiculados nos contextos sociais e culturais mais amplos.
Considerando essa relação, Apple (2001) faz uma análise da corres-
pondência entre dominação econômica, cultural e currículo escolar, e
através do conceito de currículo oculto mostra como o conhecimento repro-
duzido e produzido na escola, contribui para manter as desigualdades
sociais. Visto por esse ângulo, o currículo reflete valores, concepções e
ideologias acerca dos conhecimentos, logo é fundamental que se tenha uma
atitude crítica acerca deles, bem como saber identificar seus condicionantes
sociais e suas formas culturais específicas.

2 As obras desses autores, mencionadas por Silva (2005), referem-se: Bobbit, The Curriculum de
1918 e Ralph Tyler, Princípios básicos de currículo e ensino, de 1949.
78 Marinês Viana de Souza

Por isso, assumir uma postura crítica em relação aos conhecimentos


selecionados e veiculados nos currículos (oficiais ou não) torna-se um
imperativo que requer compromisso profissional e ético dos sujeitos que
atuam na escola (Pacheco, 2005). Essa é uma premissa básica que Goodson
(1995) pontuou ao estabelecer a relação direta entre a exclusão na sociedade
com a exclusão no currículo, uma vez que os conhecimentos que compõem
os projetos educacionais revelam valores culturais específicos de cada
grupo que, no contexto da educação escolar, são mobilizados em função do
projeto sociocultural que se pretende instituir de forma hegemônica.
Corroborando essa ideia, Sacristan (1998, p. 34) define currículo
como “um projeto seletivo de cultura, cultural, social, política e adminis-
trativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna
realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada”.
A definição desse autor desvela o caráter intencional que perpassa a orga-
nização curricular das instituições escolares, que a partir de um projeto
cultural, define a seleção de seus conteúdos, segundo os interesses e valores
de quem os escolhe. Seguindo seu raciocínio, o projeto cultural realiza-se
vinculado aos condicionantes políticos, administrativos e institucionais
determinados, com pressupostos e concepções próprias que se refletem
no currículo escolar para legitimar saberes que se tornam hegemônicos,
enquanto outros são silenciados.
As omissões de determinados conhecimentos culturais nos currí-
culos, no entanto, não significam que os sujeitos que os representam estejam
ausentes do cenário escolar. Ao contrário, são reais e estão presentes em seu
cotidiano, embora ausentes em suas representações, tais como: as mino-
rias étnicas, as pessoas com alguma deficiência – sensorial intelectual ou
física –, homossexuais, negros/as, enfim, sujeitos com características e iden-
tidades singulares, inseridos num contexto monocultural que os invisibiliza
e os silencia.
Sobre esse aspecto Santomé (2009, p. 161) assim se refere:

Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos


de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfa-
tizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção a arrasadora
presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou
vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem
de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não
estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação.
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 79

Nessa perspectiva, as histórias são ocultadas, cedendo espaço à


formulações racistas e preconceituosas que naturalizam as desigualdades e
reforçam a construção de estereótipos em torno de suas imagens.
Concebendo currículo como recorte cultural ou seleção de conte-
údos culturais (Sacristan, 1998 e Apple, 2001), fica evidenciado o caráter
da não neutralidade que permeia a sua constituição, uma vez que todo
processo de seleção implica em escolhas, o que desvela outro critério, igual-
mente tangente nesse processo: o das relações de poder. Quem seleciona,
ou faz os recortes daquilo que é considerado válido (Goodson, 1995), são
sujeitos concretos que estão inseridos num contexto sociocultural especí-
fico e tendem a legitimar a visão de mundo na qual acreditam e desejam
manter.
Assim, a relação entre currículo e diversidade cultural apresenta-se
imbricada, na medida em que o primeiro reflete o segundo pelos processos
de seletividade dos conhecimentos que norteiam sua constituição, e
pela forma como são reorganizados e reestruturados na escola (Forquin,
1993). Cabe questionar, contudo, o caráter parcial desse reflexo, que não
tem visibilizado de forma democrática a diversidade cultural presente nas
sociedades.
Diante de tais questionamentos e reflexões, emerge a necessidade
de se discutir o papel da escola diante da diversidade cultural, bem como
o entendimento que se tem sobre o seu conceito. A concepção de diversi-
dade pressupõe um fenômeno multifacetado, que, articulada ao conceito de
cultura – na forma conjugada da expressão “diversidade cultural” –, amplia
e potencializa em torno do seu significado a ideia do múltiplo, e rompe com
as aparências imediatas de coisas ou fenômenos unilaterais, para desvelar
suas singularidades.
Para Casali (2009, p. 164), “diversidade é uma astúcia do sistema-
-vida”, que se manifesta em suas variadas formas – quer biológica, quer
sociocultural. Inserido em seu meio ambiente, o homem transforma a natu-
reza pela ação do seu trabalho, e ao fazê-lo, produz meios de subsistência,
mas também cria e recria formas culturais específicas. Nesse processo de
interação homem-meio, “os seres humanos foram fazendo-se humanos”
(ibid.) e, relacionando-se com a natureza e entre si, foram organizando
seus modos particulares de produção da vida, diferenciando-se enquanto
sujeitos e diversificando-se enquanto grupos.
80 Marinês Viana de Souza

O significado semântico de diversidade, sob uma compreensão stricto


sensu, agrega a ideia de diferença, de não semelhança (Ferreira, 2008). Nessa
ótica, segundo Gomes (2003), o seu entendimento poderia ficar restrito aos
fenômenos mais aparentes, perceptíveis a olho nu e com forte ênfase nos
aspectos da diferença, mas ocultaria sua complexidade. Essa autora pontua
que, ampliando o seu significado para agregar os aspectos políticos e cultu-
rais, o termo passa a ser concebido em duplo sentido: como produto das
construções culturais e das relações sociais e de poder, circunscritas numa
temporalidade histórica.

Isso nos leva a pensar que, ao considerarmos alguém ou alguma coisa


diferente, estamos sempre partindo de uma comparação. E não é qual-
quer comparação. Geralmente, comparamos esse outro com algum tipo de
padrão ou de norma vigente no nosso grupo cultural ou que esteja próximo
da nossa visão de mundo [...]. Nesse sentido, a discussão a respeito da diver-
sidade cultural não pode ficar restrita à análise de um determinado compor-
tamento ou de uma resposta individual. Ela precisa incluir e abranger uma
discussão política. Por que? Porque ela diz respeito às relações estabele-
cidas entre grupos humanos e por isso mesmo não está fora das relações de
poder. Ela diz respeito aos padrões e aos valores que regulam essas relações.
(Gomes, 2003, p. 72)

Assim, pensar em diversidade cultural implica considerar que as


relações sociais e culturais não escapam às relações de poder e de domi-
nação, pois “muitas vezes, os grupos humanos tornam o outro diferente
para fazê-lo inimigo, para dominá-lo” (ibid.). Fica em evidência, portanto,
o “eu” e o “outro” – ou os “outros” – nesse processo, o que torna a noção
de “alteridade” e de “identidade”, conceitos importantes dentro do estudo
sobre “diversidade cultural”.
Para Calhoun (apud Munanga, 2003, p. 38):

[...] não conhecemos nenhum povo sem nome, nenhuma língua e nenhuma
cultura que não fazem, de uma maneira ou de outra, a distinção entre ela e
a outra, entre “nós” e “eles”. [...] O conhecimento de si – sempre uma cons-
trução e não uma descoberta, nunca é totalmente separável da pretensão de
ser percebido pelos outros.

Segundo Munanga (ibid., p. 39), no campo da antropologia, as


identidades são construídas, portanto, são frutos de processos históricos e
contextuais. Essa premissa levou esse autor à seguinte indagação: “como,
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 81

a partir de que e porque” as identidades são construídas. O autor indica


que a história, a geografia, a biologia, as estruturas de produção e de repro-
dução, os aparelhos de poder, a memória coletiva, as categorias culturais,
dentre outros aspectos, constituem a materialidade para a elaboração de
uma identidade.
Assim, nossos vínculos sociais, culturais, nossa territorialidade,
nossa ancestralidade, os papéis e as posições que ocupamos nos planos
hierárquicos da sociedade são aspectos que influem no que nos tornamos.
Emerge nesse contexto a noção de “relação”, que está na base dos conceitos
de diferença e identidade, visto que somos diferentes porque existe um
“outro” exterior, com o qual me relaciono e do qual me diferencio, pois
“o que somos se define em relação ao que não somos” (Câmara e Moreira,
2008, p. 43).
Cuche (2002), evocando as concepções teóricas de Barth (1995),
pontua que as identidades são constituídas numa ordem relacional entre
os grupos sociais. Considerando esse aspecto, nossas identidades refletem
os contextos em que nos situamos, nos relacionamos, as posições sociais
que ocupamos, bem como as imagens que os outros fazem de nós e que
projetam em nós. Há, portanto, um aspecto educativo na constituição
de nossa identidade, visto que aprendemos a “ser” com os “outros”, em
processos relacionais.

Não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade


existe sempre em relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são
ligadas e estão em uma relação dialética. A identificação acompanha a dife-
renciação. (Cuche, 2002, p. 183)

Cuche (ibid.) destaca, ainda, o caráter dialético que norteia o


“contexto relacional” na produção de identidades, o que significa dizer que
a ideia de identidade não corresponde um dado imutável, fixo ou descon-
textualizado, mas existe num plano de influência recíproca.
Do ponto de vista semântico o termo “identificar” corresponde,
também, “reconhecer” (Ferreira, 2008). Assim, no processo de construção
das identidades, o tema do reconhecimento emerge como outra categoria
central. Quando uma identidade está atrelada ao seu reconhecimento por
parte dos outros, o seu não reconhecimento se traduz num dano para a cons-
tituição desse sujeito, conforme expõe Munanga (2003, p. 45):
82 Marinês Viana de Souza

[...] a falta de reconhecimento não apenas revela o esquecimento do


respeito normalmente devido. Ela pode infligir uma ferida cruel ao oprimir
suas vítimas de um ódio de si paralisante [...]. Em nosso foro íntimo, somos
todos conscientes de que nossa identidade pode ser formada ou deformada
no decorrer de nossos contatos como os outros “doadores de sentido”.

Considerando esse ponto de vista, Munanga (ibid.), apoiado em


Taylor (1994),3 descreve que o reconhecimento dos sujeitos, por outros
sujeitos, não é simplesmente uma cortesia, mas representa uma “necessi-
dade humana vital”, uma vez que irá influir na percepção que ele tem/faz de
si. Nesse sentido, os sentimentos de “superioridade” ou “inferioridade” são
produtos de uma ordem relacional hierarquizada, racista e discriminatória,
onde se projeta para a sociedade a imagem positiva de grupos e pessoas,
concorrendo para que estes tenham uma autoestima supervalorizada, ao
mesmo tempo que projeta do (para) “outro” uma imagem negativa, inferio-
rizada, o que concorre para sua baixa autoestima.
O ideal de beleza física é um exemplo, dentre vários, que ilustra
bem essa questão, pois os cânones estéticos da cultura ocidental de matriz
branco/europeia têm se constituído como referência padrão. Fenótipo
branco, cabelos lisos, olhos verdes ou azuis (preferencialmente), padrão
de corpo magro e daí seguindo a produção do imaginário desejado. Esses
padrões são, reiteradamente, veiculados nos meios midiáticos, e as pessoas
que não os apresentam – portanto, estão fora do modelo validado – são
comumente classificadas como “feias”, “exóticas” e outras adjetivações infe-
riorizantes. Isso tudo tem impacto na formação da identidade dos sujeitos.
No campo social, os mecanismos de produção das diferenças
também concorrem para a produção das desigualdades socioeconômicas.
Ao se projetar a imagem positiva de um grupo, em detrimento de outros,
criam-se vantagens que favorecem a ocorrência de privilégios que potencia-
lizam as condições para suas conquistas. Ao contrário, quando não ocorre
o reconhecimento do outro – grupo ou pessoa – ou quando sua imagem é
projetada como inferior para a sociedade, essas pessoas ficam em condições
de desvantagens, visto que suas representações sociais se tornam obstáculo
para o seu acesso e êxito nos diferentes campos sociais.
Como visto, a diversidade é um dado das culturas, e os processos que
legitimam determinadas referências culturais, em detrimento de outras, são

3 A obra desse autor, citada por Munanga (2003), corresponde: Multiculturalisme. Différence et
Démocratie.
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 83

manifestações de poder, que se instauram numa ordem antidemocrática.


Essas questões são de relevada importância para o campo educacional brasi-
leiro, em especial no que concerne aos aspectos curriculares, considerando
o fato de que, historicamente, tem sido organizado no Brasil um currículo
monocultural, embora suas bases culturais estejam assentadas na diversi-
dade. As abordagens estereotipadas e que inferiorizam grupos de cultura
não hegemônica nas suas representações em manuais escolares, como já
amplamente debatido em relação às pessoas negras e indígenas, incide dire-
tamente na constituição das suas identidades. Ao se omitir ou tratar como
clichê os seus valores civilizatórios no currículo, contribui para a invisibili-
zação ou na sub-representação de suas contribuições na formação do Brasil.
Romper com esse paradigma curricular excludente não é uma
tarefa simples, mas eticamente necessária. No campo do ensino de artes
no Brasil, Souza (2012) comenta que, apesar de haver o reconhecimento
da dimensão multicultural dessa sociedade, essa realidade não impediu
que a veiculação de padrões culturais e artísticos, centrados numa visão
monocultural, tornassem-se hegemônicos nos currículos oficiais. Assim, a
autora demonstra que, nos projetos curriculares para essa área, os valores
civilizatórios das culturas de matrizes culturais africanas e indígenas têm
sido historicamente sub-representados (e até invisibilizados), enquanto os
cânones da cultura europeia ganharam a centralidade curricular.
Considerando que cultura corresponde os modos de ver, sentir,
produzir e estar no mundo pelos sujeitos, não há humanidade apartada das
singularidades de sua produção cultural (Geertz, 1978). Os fazeres artís-
ticos se inserem nos processos de produção cultural de cada povo, e acom-
panham homens e mulheres ao longo da história. Isso traz para o ensino de
arte a exigência de abordar a temática cultural de forma ampla, enfatizando
a dimensão da diversidade que perpassa essa questão. A pintura, a dança, a
escultura, a fabricação de objetos simbólicos, dentre outras formas artísticas,
são produtos da criação humana. A arte, enquanto resultado da subjetivi-
dade e do ato criador do homem, que transFORMA a natureza, corresponde
à materialização do seu fazer e de suas escolhas, a partir do contexto cultural
no qual está inserido. Desse modo, a produção artística é dinâmica, pois se
produz numa ordem cultural, igualmente dinâmica.
De forma análoga, o processo de atribuição de significados, ou
conceitos, aos diversos fenômenos, manifestações ou produtos do gênero
humano, é sempre mediado pelos valores e visões de mundo dos sujeitos
84 Marinês Viana de Souza

que os formulam, mais precisamente a partir de sua cultura. Conceituar


arte, portanto, não foge a essa regra, e os diferentes conceitos que, historica-
mente, a ela se remetem são sempre recortes que evidenciam, por exemplo,
tempos históricos, movimentos artísticos ou contextos sociais e culturais
específicos.
Sem intencionar a obtenção de uma conceituação definitiva para
arte, para não incorrer em visões exclusivistas, como Coli (1991) alerta, e
que são sempre limitadoras, buscamos apresentar os aspectos que têm se
mantido presentes nas concepções de arte durante os tempos. Para isso,
apoiamo-nos nos estudos de Pareyson (1989). Esse autor considera que,
na cultura ocidental, as definições de arte têm se relacionado a três campos
conceituais, vinculando-a, ora como fazer, ora como conhecer e ora como
exprimir. Para ele, os três modos de conceber a arte são expressões que, em
determinados contextos históricos, apresentam-se de forma excludente e
noutros se combinam. No entanto, são esses três eixos conceituais que têm
figurado nos discursos sobre arte até os nossos dias.
Pareyson (ibid.) destaca que os três aspectos – fazer, conhecer e
exprimir – são essenciais para a compreensão da arte, desde que não sejam
concebidos isolados e nem absolutizados, uma vez que não são restritos ao
campo das artes, pois também estão presentes em outros campos da ativi-
dade humana.
Assim, a arte enquanto fazer resulta da ação técnica do sujeito, que
transforma a matéria da natureza, o que supõe trabalho (Bosi, 1986). O fazer
artístico, no entanto, não é desprovido de cognição, que é outro aspecto que
se relaciona à concepção de arte como conhecimento. “Para certos artistas,
a sua arte é o seu modo de conhecer, de interpretar o mundo e até de fazer
ciência, como em Leonardo” (Pareyson, 1989, pp. 30-31), o que revela a
intencionalidade do ato criador.
A arte como expressão tem sido recorrente nas suas formulações
conceituais, e relaciona-se ao sentimento que é suscitado pelas obras artís-
ticas nos sujeitos, ou é considerada a “expressão de sentimentos” dos
artistas. Pareyson (ibid., p. 29) considera que a concepção da arte, enquanto
expressão encontra-se “na base das teorias que a concebem como linguagem,
e até na base das teorias semânticas”.
Na mesma direção, Puccetti (2005, p. 21) indica que:
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 85

Na produção artística revela-se o esforço de explicitar a ideia, o pensamento


e a visão. É a representação simbólica da realidade, do mundo interior e
exterior, de vários mundos. Sob esse olhar, a arte se constitui num sistema
de representações, construtora de símbolos, que envolvem processos psico-
lógicos e intelectuais, que propiciam o desvelar da cultura e o acesso a ela,
a um modo de saber e de construir conhecimento, que implica a ideia de
alteração que apresentamos. São esses fundamentos que permitem reivindicar
para o ensino da arte uma função social e ética, portanto, inclusiva diante das
necessidades educacionais contemporâneas. (Grifo meu)

Compreender o fazer pedagógico no ensino de arte de forma inclu-


siva, na contemporaneidade, requer fomentar a reflexão constante sobre
quais saberes artísticos têm sido priorizados nos currículos e reconhecer as
vozes que têm sido silenciadas, trazendo aqui as contribuições de Santomé
(2009), que disserta sobre as culturas negadas no currículo escolar.
Além disso, saber observar como as formas culturais e artísticas
de determinados grupos não hegemônicos, como as de matrizes afri-
canas e indígenas, têm figurado nos currículos. Isso se diz, considerando,
também, que ao se propor o estudo de determinada cultura, deve-se evitar
uma abordagem que tenha como parâmetro comparativo o “modelo ideal”
ou “padrão”, centrados em outra cultura, como tem ocorrido em relação
à cultural ocidental de base eurocêntrica, e atualmente também norte-
-americana, ideologicamente validadas como referência nos currículos
escolares do Brasil.
O reconhecimento e a incorporação de outros valores culturais e
artísticos representam romper com o etnocentrismo curricular, subjacente
às concepções que têm permeado os materiais didáticos, mas principal-
mente as práticas pedagógicas. Portanto, o princípio da diversidade cultural
deve ser um dos eixos articuladores nas propostas curriculares para o ensino
de arte – de modo específico – e para o projeto pedagógico da escola de
forma mais ampla. Adotando-se uma postura de rompimento com o trata-
mento exótico e preconceituoso, problematizando as diferenças e as desi-
gualdades, em favor de uma abordagem que reconheça o valor intrínseco de
cada manifestação cultural e artística dos grupos humanos, são princípios
éticos a serem considerados e validados no ensino de arte.
86 Marinês Viana de Souza

O ENSINO DE ARTE NA DIVERSIDADE CULTURAL

Adoto aqui a expressão que Fischer (1987) usou para falar da neces-
sidade da arte, ao indicar que sua função “[...] não é a de passar por portas
abertas, mas é a de abrir as portas fechadas”. Essa citação ilustra bem o
sentido que concebo o ensino de arte na perspectiva da diversidade cultural
na contemporaneidade, que deve promover a “abertura de portas”, histori-
camente fechadas no currículo, para visibilizar as formas culturais margina-
lizadas, segregadas dos espaços escolares ou tratadas de forma esporádica,
repleta de preconceitos ou entendidas como clichê.
A metáfora da “abertura de portas” também representa uma via de
mão dupla, o que significa não só deixar emergir as culturas silenciadas,
mas oportunizar o acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade,
visto que não devem ser usufruto de poucos. Sendo assim, a arte deve
ser democratizada em suas diversas linguagens, para favorecer o acesso
e fruição de todos e todas. Isso se diz, pois considero que “abrir portas”
para a diversidade implica, ainda, visão ampla, não se fechar em guetos ou
mesmo desconsiderar a arte até então hegemônica nos currículos, o que
significa ampliar os referenciais para promover a cidadania cultural. Para
Barbosa (2009)4:

A diversidade cultural presume o reconhecimento dos diferentes códigos,


classes, grupos étnicos, crenças e sexos na nação, assim como o diálogo com
os diversos códigos culturais das várias nações ou países, que incluem até
mesmo a cultura dos primeiros colonizadores [...].
Nós aprendemos com Paulo Freire a rejeitar a segregação cultural na
educação. As décadas de luta para salvar os oprimidos da ignorância sobre
eles próprios nos ensinaram que uma educação libertária terá sucesso só
quando os participantes no processo educacional forem capazes de iden-
tificar seu ego cultural e se orgulharem dele. Isto não significa a defesa de
guetos culturais ou negar às classes baixas o acesso à cultura erudita.

Marco significativo para a inclusão das temáticas culturais de


matrizes africanas e indígenas nos currículos oficiais no Brasil foi a publi-
cação, em 2003, da lei nº 10.639 e, em 2008, da lei nº 11.645. As referidas

4 Texto “Arte, Educación y Cultura”, apresentado no Encuentro Nacional de Arte Diversidad Cultural y
Educación “Desde mi corazón hasta los otros hay un río de arte”, Peru, 2009. Disponível em: <http://
www.encuentroeducacionarte.blogspot.com/>. Acesso em: 17 fev. 2014. Texto traduzido indicado
nas referências.
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 87

leis alteraram a LDBEN nº 9394/96, que passou a estabelecer a obrigato-


riedade da inclusão do estudo dessas matrizes culturais nas escolas. Tais
proposições legais contribuíram para chamar a atenção da sociedade em
relação à condição da sub-representação de negros e indígenas nos currí-
culos escolares, na medida em que propõem uma abordagem ampla de suas
representações, pois estabelecem o estudo do resgate das suas contribuições
nas áreas social, econômica e política.
Contudo, é importante pontuar que a inclusão formal de determi-
nados conteúdos culturais nos currículos escolares não significa que sejam,
de imediato, incorporados nas práticas pedagógicas. Quando são incluí­das,
ainda cabe analisar qual tem sido o tratamento pedagógico dado aos
assuntos relacionados às culturas de matrizes africanas e indígenas no coti-
diano escolar. Práticas que se limitam à realização de atividades pontuais
em datas específicas, como as que promovem a “confecção de cocar” no
dia do índio, ou colar cartazes enaltecendo o “13 de maio”, como um ato
heroico do branco em benefício do negro, contribuem para a manutenção
e reprodução da visão distorcida em relação ao trabalho com diversidade
cultural em ambientes escolares, reforçando, dessa maneira, os estereótipos
e preconceitos já cristalizados em seus currículos.
Considerar a diversidade cultural como um princípio articulador do
trabalho escolar numa perspectiva crítica, não se traduz numa celebração
da diferença, portanto, é pertinente que as práticas pedagógicas contribuam
para problematizar as desigualdades sociais, que são geradas em virtude
de posturas etnocêntricas, que não reconhece o outro em suas singulari-
dades culturais. Nesse caso, ao propor o estudo das produções artísticas
de matrizes africanas ou indígenas, as suas representações simbólicas,
que revelam as singularidades da estética peculiar de cada grupo cultural,
devem ser evidenciadas.
Diante dessa condição, é importante pontuar, ainda, que o rótulo
“arte africana” ou “arte indígena”, por exemplo, deve ser usado enquanto
elemento unificador da ancestralidade humana comum, que vincula povos
a um Continente (Africano) e a um país (Brasil), mas não para apagar os
múltiplos contornos das diversidades culturais que correspondem às popu-
lações de origem africana ou indígenas no Brasil, que, do ponto de vista
cultural e artístico, tem uma base material e imaterial de produção singular
88 Marinês Viana de Souza

e diversa. Essa abordagem é importante que seja feita para superar a visão
limitadora do continente africano e dos povos indígenas, comumente repre-
sentados de forma “genérica”.
A contextualização da produção artística é uma alternativa para a
construção de uma propositura multicultural crítica no ensino artístico. Ao
analisarmos uma obra de arte, é preciso situá-la no contexto histórico e
cultural no qual foi produzida. Para Barbosa (2003), a contextualização do
objeto artístico evita uma abordagem aditiva nos trabalhos com a multicul-
turalidade, que segundo a autora representa:

[...] a atitude de apenas adicionar à cultura dominante alguns tópicos rela-


tivos a outras culturas. Multiculturalidade não é apenas fazer cocar no Dia
do Índio, nem tão pouco fazer ovos de páscoa ucranianos ou dobraduras
japonesas ou qualquer outra atividade clichê de outra cultura. (Ibid., p. 22)

Nessa mesma direção caminham as análises das formulações concei-


tuais de Banks (apud Candau, 2002), que denomina de paradigma étnico-
-aditivo a ação escolar que se limita a adicionar, no currículo escolar, unidades
especiais sobre temas culturais, como por exemplo, ao realizar festividades
de caráter étnico com comidas típicas, dentre outras práticas. Certamente
que o caráter cultural presente nas festividades deve ser valorizado na escola,
contudo, há que se analisar o como e o quando são feitas, para que não repre-
sentem abordagem clichê da diversidade, que não contribui para superar
estereótipos e preconceitos, e desse ponto de vista servem para mantê-los.
A importância de se assumir uma postura crítica diante dos conteú­dos
curriculares, veiculados, tanto através da linguagem artística visual, sonora,
corporal, dentre outras, é fundamental para se combater qualquer forma
de discriminação ou racismo que possam ser veiculados como mensagens
hegemônicas. Sem essa atitude crítica, em Artes, por exemplo, corremos o
risco de reproduzir o que Barbosa (ibid., p. 23) adverte e ao mesmo tempo
indaga:

Continuaremos a mostrar a nossos alunos o Monumento às Bandeiras de


Brecheret como uma magnífica obra de arte sem analisar o fato de que ela
comemora um episódio colonialista de nossa história, no qual a matança e
a escravização dos nativos, dos os índios, atingiu proporções dizimadoras?
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 89

Na perspectiva multicultural no ensino de Artes, essa autora faz


algumas proposições5 que considera primordial para combater os precon-
ceitos culturais e desmistificar a ideia hegemônica de que a arte europeia é
a melhor, ou ainda de que pintura a óleo e esculturas em mármore sejam
formas de artes mais importantes (ibid.).
A ideia apresentada pela autora se alinha à perspectiva descrita por
Banks (2006), no contexto da sua proposta para uma educação multicul-
tural, e chama a atenção para o papel das disciplinas escolares no processo
da construção do conhecimento em suas áreas distintas, para buscar, a
partir dos conteúdos que lhes são inerentes, combater estereótipos, precon-
ceitos e conteúdos racistas veiculados em materiais pedagógicos e em seus
currículos.
Em consonância com essas formulações, Richter (1999) ressalta que
a educação multicultural tem por concepção demonstrar que o conheci-
mento é propriedade de todos os povos e está presente em todas as culturas.
A autora usa o termo “alfabetização cultural” e considera que, para ser
promovida, é necessário que se crie nas escolas ambientes favoráveis, o que
a nosso ver, implica materiais e métodos de abordagens comprometidos
com os princípios democráticos da educação multicultural.
Em Artes, portanto, conforme destaca Barbosa (2003), a partir dos
aspectos que envolvem o seu ensino nos âmbitos da produção, apreciação e
contextualização, deve-se procurar problematizar a hegemonia dos cânones
da arte europeia, da cultura dominante validada nos currículos escolares,
portanto, dos padrões etnocêntricos, dos estereótipos culturais e demais
manifestações racistas e discriminatórias. Para contribuir com o reconhe-
cimento e respeito às manifestações culturais que não estão validados nos

5 Barbosa (2003) apresenta algumas proposições que considera relevantes para promover uma
educação multiculturalista crítica na área de Artes, sendo estes aspectos: “1) Promover o enten-
dimento de cruzamentos culturais por meio da identificação de similaridades, particularmente nos
papéis e funções da arte, dentro e entre grupos culturais; 2) Reconhecer e celebrar a diversidade racial
e cultural em Arte em nossa sociedade, enquanto também se potencializa o orgulho pela herança
cultural em cada indivíduo; 3) Incluir em todos os aspectos do ensino da Arte (produção, apreciação
e contextualização) problematizações acerca de etnocentrismo, estereótipos culturais, preconceitos,
discriminação, racismo; 4) Enfatizar o estudo de grupos particulares e/ou minoritários do ponto de
vista do poder como mulheres, índios e negros; 5) Possibilitar a confrontação de problemas tais como
racismo, sexismo, excepcionalidade física ou mental, participação democrática, paridade de poder; 6)
Examinar a dinâmica de diferentes culturas; 7) Desenvolver a consciência acerca dos mecanismos de
manutenção da cultura dentro de grupos sociais; 8) Incluir o estudo acerca da transmissão de valores;
9) Questionar a cultura dominante, latente ou manifesta e todo tipo de opressão e 10) Destacar a
relevância da informação para a flexibilização do gosto e do juízo acerca de outras culturas” (Barbosa,
2003, p. 22).
90 Marinês Viana de Souza

sistemas de valores dominantes, funcionando como fator de desmistificação


de preconceitos, Barbosa propõe que sejam discutidos no ensino artístico
nas escolas: “a função da Arte em diferentes culturas; o papel do artista em
diferentes culturas; o papel de quem decide o que é Arte e o que é Arte de
boa qualidade em diferentes culturas” (ibid., p. 23).
Promover uma reflexão sobre tais aspectos no ensino de arte irá
contribuir para tornar a diversidade cultural uma realidade presente nos
projetos escolares e nas práticas pedagógicas dos professores, visto que
potencializam discussões valorosas para um repensar desse ensino, proble-
matizando questões de saber e de poder, que se imbricam nesse processo.
Complementar a isso, o estudo das culturas de grupos distintos, e também
da cultura da comunidade onde a escola está inserida, promove uma
educação centrada na perspectiva dos direitos humanos, que não se traduz
somente pela possibilidade do aluno acessar os espaços escolares, mas
de poder neles permanecer, ser reconhecido e se constituir como sujeito
democrático. O papel do professor/a é fundamental, como agente mediador
e pesquisador da realidade local conforme assinala Richter (1999, p. 35).

Especialmente o professor de artes precisa conhecer e buscar compreender


os códigos visuais e estéticos presentes, de maneira a utilizá-los como
seu referencial e ponto de partida, construindo, a partir daí, a abordagem
metodológica e a estrutura de conteúdos a serem trabalhados. Para uma
compreen­são desses padrões é importante verificar como se compõe étnica
e socialmente a comunidade escolar, o quanto ela é heterogênea, quais seus
pontos de encontros e desencontros.

A educação aqui entendida corresponde ao pensamento de Freire


(1987) em relação à educação problematizadora, pautada nos processos
dialógicos, onde professor/a e aluno/a mutuamente se educam mediados
pelo mundo e suas culturas. A escola, nesse contexto, é o espaço de cons-
trução de conhecimentos e da difusão do legado cultural produzido pela
humanidade em sua sociodiversidade. O ensino de Artes se constitui,
portanto, área de conhecimento onde se veiculam saberes múltiplos,
presentes nas diversas sociedades em seus aspectos culturais.
Esses saberes, dentre outras formas presentes na cultura de um povo,
expressam-se por meio de diferentes linguagens artísticas. Assim, esse
ensino assume papel central nesse processo, evidenciando o seu enfoque
culturalista na contemporaneidade, o que impele a um repensar o seu currí-
culo nas escolas. Contudo, cabe dizer que a perspectiva de um trabalho
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 91

integrado em torno da diversidade não pode se reduzir às ações pedagó-


gicas desarticuladas, ou centradas apenas em uma área do conhecimento
– como a de Artes. É importante que isso seja superado, para que a temá-
tica da diversidade cultural não se torne território isolado de algumas áreas
do conhecimento, o que impede a sua articulação no currículo da escola
e no seu projeto pedagógico. A articulação do trabalho pedagógico é fator
que promove a sua implementação, para que haja discussão dos conteúdos
propostos, mas também da abordagem pedagógica que será dada à questão.
Assim, estamos diante de um desafio, que é de romper com concep-
ções pedagógicas que não promovem a superação do preconceito, da
discriminação e da organização curricular monocultural. Isso pressupõe
abertura de espaços dialógicos para empreender uma educação que reco-
nheça a diversidade cultural como um dos eixos articuladores das práticas
pedagógicas, para valorizar as múltiplas culturas que estão na raiz de nossa
formação humana.
Esse desafio tem sido pauta de vários debates sobre educação e
currículo, ocorridos em congressos, fóruns, tem fomentado a realização de
pesquisas, publicação de artigos, livros, portanto, vem ganhando espaço
nas mídias e também está sendo mencionado nos textos dos currículos
oficiais. Essa tendência é um dado revelador da necessidade de se reorga-
nizar os currículos nas escolas brasileiras, fruto das lutas dos grupos sociais
excluídos e das convergências dos debates internacionais contra o racismo
e todas as formas de discriminação. Conforme destaca Câmara e Moreira
(2008), assim como a produção das diferenças que inferiorizam os sujeitos
é um dado social e não natural, é possível se recriar uma nova ordem, após
a desconstrução de estereótipos e preconceitos, sob bases mais democrá-
ticas e solidárias.

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2. FUNDAMENTOS
DA DIVERSIDADE CURRICULAR:
TEORIAS EM PRÁTICAS
Políticas curriculares para a educação
quilombola de Mato Grosso:
contexto, texto e análise
Suely Dulce de Castilho1

É fato que a colonização deixou profundas marcas em todas as dimensões


do ser/existir/pensar/fazer do povo brasileiro. A escravidão, constituindo
seu principal motor, serviu como forte ingrediente para o (des)delinea-
mento da identidade étnica dos povos nativos e dos negros escravizados.
Foi sobre os estilhaços que se forjou a identidade negra brasileira, o que
trouxe inúmeras consequências para a formação da subjetividade do negro,
o mesmo ocorrendo em relação ao branco, como bem afirmou Fanon
(2008).
O olhar etnocêntrico do branco europeu, centrado nos indígenas e
negros, fixou estereótipos e preconceitos desagregadores de autoconceito,
de autoimagem e de autoestima. Uns e outros não seriam, a partir desse
olhar, simplesmente um negro ou um indígena. Diversamente, passaram a
ser seres acuados diante de um branco europeu com todas as suas instân-
cias de referência, de julgamento de valor e de condenação. Consequente-
mente, aliados a uma violenta despersonalização, quando não subjugação
e/ou extermínio. Nas palavras de Fanon, “O preto [ou o não europeu] é,
na máxima acepção do termo, uma vítima da civilização branca” (ibid., p.
162).
Os estudos pós-colonialistas têm franqueado uma lente epistemo-
lógica renovadora, abrindo novas possibilidades de releituras críticas do
ponto de vista dos colonizados ou dos herdeiros desse processo. Nessa pers-
pectiva, essas (re)leituras incorporam a energia inquieta e revisionária das

1 Graduada em Letras. Mestre em Educação e Movimentos Sociais e doutora em Educação. Profes-


sora da Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT. <http://lattes.cnpq.br/3319256499971932>
98 Suely Dulce de Castilho

ideias etnocêntricas, fazendo registros, produzindo conhecimentos que se


alicerçam em outras vozes: mulheres, colonizados, negros, portadores de
sexualidade não hétero, entre outros.
A discussão sobre a origem dos estudos pós-coloniais ainda se
revela um campo aberto para pesquisas e delineamento, mas, neste texto,
elegemos algumas referências teóricas. De início, a obra Pele negra,
máscaras brancas, de Franz Fanon (2008), considerado um dos percus-
sores da teoria pós-colonial na década de 1960. Soma-se a obra O local da
cultura de Homi Bhabha (2003), tido por pós-moderno nesta discussão.
Em complemento os escritos de Paulo Freire, sobretudo, a Pedagogia do
oprimido (1987), em razão de ser este autor, considerado por muitos, o
representante brasileiro da teorização pós-colonial no campo educacional
escolar.
Os argumentos aqui reunidos abrigam esta finalidade: demonstrar
a incidência dessas teorias nos textos das políticas curriculares voltadas
para a população negra quilombola do estado de Mato Grosso e, ao mesmo
tempo, discutir a necessidade de se investir na desconstrução da escravidão
da branquidade, em sua prepotência avassaladora do ego não branco.
No que se refere a metodologia, este capítulo parte de pesquisa
bibliográfica, especificamente das obras acima citadas, e da análise do docu-
mento que se constitui as Orientações Curriculares para a Educação Quilom-
bola do estado de Mato Grosso, buscando estabelecer um diálogo entre elas.
Teoricamente, persegue encontrar os pontos convergentes entre os
discursos de Fanon (2008), Bhabha (2003) e Freire (1987) com vista à
construção de uma teoria crítica, pós-colonial, elucidativa das discussões
sobre afirmação identitária e cultural do povo negro brasileiro diante de
uma escolarização patologicamente e idilicamente branca. Parte do pressu-
posto que os mitos narcísicos criados, tanto da negritude quanto da supre-
macia branca, representam uma alienação. Portanto, ambos os mitos devem
igualmente ser desconstruídos com o mesmo empenho e rigor.
Por efeito de didática, este capítulo de divide em quatro partes. Na
primeira, entreabro uma resenha das teorias pós-colonialistas dos autores
mencionados na introdução, com o intento de recortar suas contribuições
no redimensionamento dos discursos sobre a educação quilombola. Na
segunda parte, empreendo uma revisão histórica das principais ações do
Estado brasileiro, hábil à construção de políticas educacionais e curricu-
lares para a educação quilombola. Em seguida, faço uma leitura analítica
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 99

do texto das Orientações Curriculares para a Educação Quilombola do estado


de Mato Grosso, à luz das teorias pós-coloniais. Já nas palavras finais, teço
considerações a respeito do texto no seu todo.

AS CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS


PÓS-COLONIALISTAS E OS NOVOS RUMOS DOS
DISCURSOS SOBRE A EDUCAÇÃO QUILOMBOLA

A teoria pós-colonialista tem como objetivo analisar o complexo


das relações de poder que a herança da colonização europeia carrega, tal
como se configura na atual conjuntura pós-colonial. Ela parte da ideia de
que o mundo contemporâneo só pode ser compreendido se levarmos em
conta todas as consequências dessa aventura. Assentado em obras lite-
rárias, busca examinar tanto as escritas do ponto de vista do dominante
quanto aquelas produzidas pelos dominados. Com relação aos primeiros, o
objetivo é examinar e desmistificar as narrativas da construção do “outro”
como sujeito do conhecimento e como sujeito subalterno. No que toca ao
segundo, as obras são examinadas como narrativa de resistência ao olhar e
ao poder imperialista (Silva, 2003).
A teoria pós-colonial, juntamente com as concepções críticas, parte
dos anseios dos movimentos sociais, tal como o movimento negro, reivin-
dica a inclusão de formas culturais que reflitam a experiência de grupos
cujas identidades culturais são marginalizadas pela identidade europeia
dominante. Questiona, sobretudo, as relações de poder e as formas de
conhecimento que colocaram o europeu na posição atual de privilégio. Em
acréscimo, questiona as narrativas sobre nacionalidade e “raça”, centro da
construção do contínuo processo da história da dominação colonial (ibid.).
O europeu, ao longo do seu movimento expansionista não só cons-
truiu o “outro” pelo olhar que julga e condena. Também o saber e o conhe-
cimento estiveram estreitamente amarrados aos objetivos do poder de seu
domínio. O projeto epistemológico colonial abrangia a descrição e análise
dos sujeitos, dos recursos naturais e do ambiente das terras ocupadas.
Conforme Silva (ibid.), o impulso que deu origem à ciência moderna está
ligado, em grande parte, ao conhecimento produzido no contexto dos
interesses de exploração econômica e inferiorização dos “outros” em seus
100 Suely Dulce de Castilho

“exotismos” e “estranhezas”, em favor do empreendimento do “eu” colo-


nial, ponto de referência para a reafirmação de si, em detrimento desses
“outros”.
Apoiado em dados psicanalíticos, sociológicos e políticos, Fanon
(2008, p. 14) descortina as consequências da colonização “em seus níveis
subterrâneos e, ao fazê-lo, revela seu significado para o estudo do homem”.
Radicaliza suas críticas no que toca às diversas formas de dominação desde
aquela dirigida aos sujeitos, até aquela que atua no âmbito epistemológico,
na esfera do conhecimento, produzindo vítimas de uma essência pela qual
estas não são responsáveis.
A pretensão do autor em sua obra é: “Permitir ao homem de cor
compreender, com a ajuda de exemplos precisos, as causas psicológicas que
podem alienar seus semelhantes” (ibid., p. 81) com a finalidade de “[...]
ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da
situação colonial” (p. 44), e “tornar possível um encontro saudável entre
o negro e o branco” (p. 81). A factibilidade desse projeto seria alcançada
quando o negro se libertasse de sua negrura e o branco de sua brancura.
Pois, aos olhos do autor, a racialização da identidade é um encarceramento
que obstaculiza a pessoa de usufruir sua condição humana.
A ideia central da obra de Fanon é que o “face a face” dos “civili-
zados” e dos “primitivos” engendra uma situação particular – a situação
colonial –, fazendo aparecer um conjunto de ilusões e mal-entendidos
(ibid., p. 85). Dentre outros, elaboraram-se emblemas do negro ou do índio,
diretamente ligados ao mal e aos arquétipos inferiores. O sujeito negro
passou a ser responsável e a responder por seu corpo, por sua raça, por seus
ancestrais ao mesmo modo como um subversivo precisa responder por seus
crimes. Paulatinamente, o negro foi sendo revestido por essa visão. “Essa
construção do ‘eu’ negro, em contraposição como ‘eu’ branco, foi sendo
reforçada, mais tarde, pela leitura dos livros brancos com seus preconceitos,
seus mitos e seus folclores” (ibid., p. 162).
No entender do autor, a colonização causou despersonificação e alie-
nação de todos por meio da “loucura do racismo” do primeiro em relação
ao segundo, provocando, em consequência, fraturas psíquicas nos dois
lados. Com base em suas observações, constata uma condição: “o preto,
escravo de sua inferioridade, o branco escravo de sua superioridade, ambos
se comportando segundo uma linha de orientação neurótica” (ibid., p. 66).
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 101

O argumento de Fanon não elimina a condição de vítima do coloni-


zado, chegando o autor a afirmar: “O preto é, na máxima acepção do termo,
uma vítima da civilização branca” (ibid., p. 162). Em adendo, busca eviden-
ciar que as consequências da colonização aniquilaram tanto um lado como
outro, em sua configuração identitária primordial, causando a mais severa
batalha entre o psíquico e a realidade social, produzindo uma alienação da
pessoa e a ideia de fim do indivíduo. O autor se situa numa propositura pela
busca por uma dialética da libertação. Em síntese, sua obra “pretende ser
um espelho para a infraestrutura progressiva, em que o negro, a caminho da
desalienação, possa se reencontrar” (ibid., p. 157).
A leitura da obra O Local da cultura, de Homi Bhabha (2003), confi-
gura um teor complementar ao ideário de Fanon, ao esboçar os meca-
nismos e estratégicas de libertação do negro e de novas vítimas da opressão
colonizadora, associadas a outras formas renovadas de preconceitos,
sempre insurgentes, nas fronteiras de algum tipo de deslocamento humano.
Seja produzido pela mobilidade geográfica (migrações) ou ao encontro/
confronto gerado entre os grupos marginalizados e aqueles sujeitos que se
impõem como o modelo ideal, portanto, universal.
Ao mesmo tempo, o autor esclarece as questões da contemporanei-
dade, em que sujeitos, lugares, culturas e dominação passam a ser mais
enfaticamente questionados, com ressonância nos espaços públicos. De
outra parte, acredita na existência de reação das vítimas, que começam a
perseguir e a encontrar fissuras nos templos do poder, adentrando furtiva-
mente neles e forjando mudanças.
O conceito de entre-lugar proposto por Bhabha (ibid.) sugere a exis-
tência dos interstícios epistemológicos, de ação e negociação identitária e
cultural, ora produzida pelo contexto histórico pós-moderno, ora forjado
pelos sujeitos e grupos que vivem situação de fronteira, nem dentro nem
fora do espaço de reconhecimento. Esses espaços (entre-lugares) são os
que dão vazão à intervenção e introduzem a invenção criativa, de reconhe-
cimento, dentro da existência. Os entre-lugares a bem dizer, seriam assim
definidos:

Momentos e processos produzidos na articulação de diferenças culturais;


terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singulares ou
coletivas – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores
de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.
(Ibid., p. 20)
102 Suely Dulce de Castilho

Bhabha (ibid.), na esteira da discussão sobre identidade e cultura


no presente, pontua que o mais importante é percebermos que nos encon-
tramos no momento de trânsito em que “espaço e tempo se cruzam para
produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente,
interior e exterior, inclusão e exclusão” (ibid., p. 19). O contato intensivo
entre diferentes nações, povos, grupos sociais, culturais e étnicos tem feito
ressaltar as diferenças e, por extensão, tem provocado a reivindicação pelo
direito a essa diferença. Essa perspectiva nos abastece de elementos para
compreender o levante de diferentes grupos, no Brasil e quiçá no mundo
todo, pelo reconhecimento de seus direitos humanos, em sua totalidade.
A obra Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire (1987), na perspectiva
de texto pós-colonial, busca, em miúdos, construir uma narrativa proposi-
tiva do processo educativo com base nos e para “os oprimidos”, “os esfar-
rapados do mundo”, os “condenados da terra” os “demitidos da vida”, de
todos “os subalternizados” e dos que com eles se solidarizem, dando asas
às expressões de Freire (ibid.). Por outro lado, desencadeia uma profunda
crítica aos opressores, perseguindo a desconstrução das grandes narra-
tivas ocidentais europeias, bem como a problematização dos resquícios
da experiência colonial na vida dos povos colonizados aí abraçadas suas
consequências.
Defende uma educação como prática da liberdade, propulsora da
consciência crítica capaz de promover a inserção, no seio do palco histó-
rico, dos oprimidos, dos sujeitos humanos invisibilizados e silenciados
durante séculos de opressão colonial. A ideia de protagonismo dos opri-
midos, enunciada por Freire (ibid.), agasalha, como pressuposto básico, a
conscientização. Tal processo brota da e na educação libertária ou na peda-
gogia do oprimido. Dizendo de outro modo, exige um trabalho formador,
não necessariamente formal, mas que, no entanto, os oprimidos se saibam
ou comecem criticamente a saberem-se oprimidos, reconhecendo o limite
que a realidade opressora lhes impõe. A pretensão é que provoque uma
mudança de percepção do mundo opressor, por parte dos oprimidos. Nas
palavras do autor:

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá


dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando
o mundo de opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua trans-
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 103

formação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta


pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens
em processo de permanente libertação. (Ibid., p. 41)

Consciência crítica, para Freire, resulta da práxis – reflexão e ação


dos homens sobre o mundo para transformá-lo –, indispensável para a
superação da contradição oprimido-opressor. O oprimido deve, por meio
da conscientização crítica, “[...] aprender a escrever a sua vida, como autor
e como testemunha de sua história: biografar-se, existenciar-se, historicizar-
se” (Freire, 1987, p. 8). Nesse sentido, o oprimido se reveste de uma grande
tarefa humanista e histórica: “libertar, a si mesmos, da consciência oprimida
e da consciência ‘hospedeira’, da consciência opressora e dos opressores”
(ibid., p. 30).
O autor acredita que a reescrita de uma narrativa da educação, na
qualidade de projeto político, possibilita romper com as plurais formas de
dominação e com os diversos matizes do colonialismo. Esse projeto deve
dar visualidade a presenças e audibilidade a silêncios, empenhado na moti-
vação do sonho, da utopia e da ação política concreta. Assim, será possível
transformar o mundo em um espaço possível, mais humano e humanizante,
ampliando a discussão em torno de princípios e de práticas socioeducacio-
nais que recuperem a dignidade humana, a liberdade e a justiça social.
As obras de Fanon (2008), Bhabha (2003) e Freire (1987), nesse
viés de leitura e interpretação, assumem um caráter complementar. Fanon
mostra a condição dos negros oprimidos pela colonização e a alienação daí
resultante, enquanto Bhabha revela as estratégias de sublevações sociais
para uma possível libertação. Já Freire demonstra a pertinência e impor-
tância da educação investir na desconstrução da opressão para uma socie-
dade mais livre.
No próximo subtítulo, caminharei por uma retrospectiva histórica
sobre a educação dos negros no Brasil, especificamente sobre as principais
políticas públicas educacionais destinadas à população negra rural, com
objetivo de contextualizar a discussão.
104 Suely Dulce de Castilho

CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CURRICULARES PARA


A EDUCAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Estudos sobre a história da escolarização do negro no Brasil nos


informam que os primeiros movimentos de Estado – o que contemporanea-
mente nomeamos de políticas públicas educacionais –, voltados para pensar
a educação com vista à população negra, começam a se esboçar no fechar
as portas do século XIX. O contexto da discussão engloba alguns eventos
históricos em curso, tais como: a) a transição do Império para a República;
b) a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871; e o processo do fim da
escravidão legal, em 1888, que estava em curso. Conforme Fonseca (2002,
p. 184), as discussões em torno da escolarização, nesse contexto, envolvem
a “preocupação em criar um perfil apropriado para os negros em uma socie-
dade livre”.
Fonseca, em sua obra, observa que uma das características dos
discursos e práticas educativas desse período reside na tentativa de conti-
nuidade da hierarquia social e racial, pavimentada ao longo da escravidão.
Isso fica evidenciado quando, no centro das práticas educativas, foram
colocados elementos que, ao longo do regime de submissão, haviam sido
permanentemente acionados como estratégia de dominação sobre os
negros: o trabalho e a religiosidade.
No íntimo, os discursos educacionais em sua intencionalidade
efetiva, visavam à construção de novos mecanismos de dominação compa-
tíveis com a sociedade que estava sendo edificada no Brasil, no encerrar do
século XIX, e a definição prévia de um lugar para os negros dentro dessa
sociedade. As pesquisas de Fonseca (ibid.) revelam, ainda, que a iniciativa
mais concreta, no período, como política de Estado, foi a criação de asilos
educacionais, em diversas províncias brasileiras. No entanto, essas inicia-
tivas não vingaram, mas podem ser consideradas ponto de partida para a
construção de um modelo de intervenção sobre a criança negra.
No início da instalação da República, até onde as pesquisas, nesse
campo, puderam alcançar, não houve nenhuma política de Estado para a
escolarização do negro. Este inicia a ingressar vagarmente nas escolas profis-
sionalizantes e, posteriormente, nas escolas públicas, já diluído e tratado
como “massa popular”. Nos dois casos, os alunos negros foram submetidos
a formação precária, com intenção única de prepará-los como mão de obra,
em uma sociedade iniciática em industrialização. Tudo isso sem contar os
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 105

não poucos obstáculos vivenciados nessas instituições, somados aos redu-


zidos êxitos alcançados por diversas razões, dentre elas o preconceito racial
e a inadequação das propostas educacionais às especificidades de suas
necessidades (Cunha, 1999).
Os estudos do autor, acima citado, informam que, no século XX,
reina um profundo silêncio, no âmbito do Estado, no que diz respeito à
educação do negro e à vida deles, de maneira geral: emprego, renda,
moradia, saúde, escolarização. As cidades cresciam, industrializavam-se, na
medida do possível, mas essa população continuava relegada às sombras
do abandono. Pensar em políticas de Estado para a diversidade, no caso
brasileiro, é pensar na desconstrução de um modelo que tende à homoge-
neidade, em que a diversidade é substituída pela falsa ideia de “um só povo,
abraçando uma só nação”. Este foi o argumento propalado em variados
espaços e tempos da nossa história para ocultar as desigualdades e mascarar
os conflitos.
É importante ressaltar o papel que o negro, seja isoladamente, seja
em pequenos grupos, a exemplo do que se sucedeu com os abolicionistas,
empreenderam esforços para adquirir as habilidades de ler e escrever. A
existência de um grande número de negros escolarizados, ocupando papel
de destaque na sociedade brasileira, organizando as formas de resistência
e de luta contra a escravidão podem bem exemplificar. Nomes como o de
André Rebouças, José do Patrocínio, Luís Gama, Teodoro Sampaio, entre
outros, atestam tal afirmação.
Do mesmo modo, há que destacar o empenho do movimento negro,
que, recorrendo a seus jornais e grupos culturais, desde a década de 1920,
empreendeu esforços tantos para, por um lado, incentivar o negro à escola-
rização e, por outro lado, denunciar a educação escolar e seu racismo histó-
rico. Essas lutas foram fundamentais para provocar o debate de políticas
educacionais na esfera governamental.
Em relação à questão quilombola, importante é lembrar que a década
de 1980 representou período de relevante significado. Suas mobilizações
foram recolocadas no cenário nacional, primeiro para garantir constitu-
cionalmente o direito à terra, depois para fazer cumpri-la, tendo por base
o artigo 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios Federal,
de 1989, que assim dispõe: “Aos remanescentes das comunidades de
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
106 Suely Dulce de Castilho

Em 2003, foi publicado o decreto-lei nº 4.887/2003, que regulamenta


o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demar-
cação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades dos quilombos de
que cuida o art. 68, mencionado acima. À luz desse decreto, está a compre-
ensão do termo quilombo:

Art.2 Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para


os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoa-
tribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resis-
tência à opressão histórica sofrida. (Brasil, 2003, Art. 2º do decreto nº 4887)

Em termos de políticas educacionais específicas para essas comuni-


dades, foi considerada, como a primeira iniciativa, a tentativa de incorporar
o estudo da diversidade cultural, étnica e religiosa, no currículo escolar, por
meio das diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação –
PCNs, instituídas pelo ministro da Educação em 1998.
Embora, inúmeras críticas especializadas alertam que os PCNs
aportam lacunas, imprecisões, superficialidade no tratamento dos temas,
equívocos conceituais. No entanto, no que tange à sua grande inovação –
os temas transversais –, em meio a eles a inclusão do tema diversidade
cultural, sabe-se de sua importância no fomento dessas discussões, ao reco-
nhecer a necessidade de uma escola que valorize as características étnicas
e culturais dos diferentes grupos. Nisso, é inegável que a proposta suscitou
debates de alta monta (Castilho, 2011).
Centremos na segunda iniciativa. Esta se refere à lei nº 10.639, de
9 de janeiro de 2003,2 que torna obrigatório, nos estabelecimentos de
ensino fundamental, médio e superior – seja público, seja privado –, ensino
relativo à história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Seu
escopo é resgatar a contribuição do povo negro na área socioeconômica e
nas políticas pertinentes à história do Brasil. O primeiro passo tem sido
desenvolvido por meio de formação dos professores, em diversas capitais
brasileiras. Ainda são iniciativas esparsas e tímidas, que pouco a poucos
estão se expandindo (ibid.).

2 A lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, foi modificada pela 11.64520/08, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
também da temática indígena, nos mesmos temas e disciplinas em que forem tratados as questões
afro-brasileiras.
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 107

O desdobramento da lei nº 10.639, alterada pela lei nº11.645/2008,


incitou o Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), novas iniciativas de polí-
ticas públicas. Sejam exemplo as Orientações e Ações para a Educação das
Relações Etnico-Raciais, que dedicaram um capítulo às orientações curricu-
lares para a educação quilombola (Secad, 2006). O documento evidencia
que o currículo para cada comunidade deve ser construído com base em
proposta que leve em conta:

[...] o histórico da vida social, as trajetórias comuns, as características


econômicas e culturais, a preservação da identidade quilombola na sua
relação com o meio ambiente, concomitante à busca de melhor qualidade
de vida presente e futura, mediante uma tomada de consciência crítica que é
sempre emergente ao sentir-se parte da construção do saber. (Ibid., p. 157)

O documento sugere algumas temáticas orientativas do fazer peda-


gógico, passíveis de ser alteradas conforme a demanda pedagógica local.
São elas: identidade, espaço/território, cultura, corporeidade, religiosi-
dade, estética, arte, musicalidade, linguagem, culinária, agroecologia, entre
outros.
A quarta iniciativa ocorreu em 2010, quando a modalidade de
Educação Escolar Quilombola é criada e instituída pela resolução nº 4/2010,
que define as diretrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica.
O artigo 27 dessa resolução indica que a cada etapa da educação básica
pode corresponder mais de uma modalidade. É na seção VII que a educação
escolar quilombola é definida, conforme descrição do art. 41:

Art. 41. A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educa-


cionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em
respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação
específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais,
a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica
brasileira.
Parágrafo único. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilom-
bolas, bem como nas demais, deve ser reconhecida e valorizada a diversi-
dade cultural. (Brasil, 2010)

Desse modo, A educação escolar quilombola, que se encontrava


diluída na modalidade educação do campo, ganha o seu devido relevo,
108 Suely Dulce de Castilho

e potencializa-se com a resolução nº 8/2012, que define as diretrizes curri-


culares nacionais para a educação escolar quilombola, em novembro de
2012.
No caso de Mato Grosso, é importante registrar que existem setenta
comunidades quilombolas identificadas. Destas, 65 estão certificadas3 pela
Fundação Cultural Palmares (2013), ressaltando que cinco já foram reco-
nhecidas, e estão aguardando certificação. Embora essa população esteja
em diferentes níveis de autorreconhecimento e organização, empreendem
significativas lutas hábeis em garantir seus direitos sociais, acesso e perma-
nência à terra, acesso à educação, à saúde, entre outros.
Como resposta às demandas das comunidades e dos movimentos
sociais que representam essa parcela da população, foram elaboradas em
2009, publicadas no ano subsequente pela Secretária Estadual de Educação
de Mato Grosso (Seduc-MT), as orientações curriculares para a educação
quilombola, julgada a primeira e importante política pública de Estado
destinado aos quilombolas. No próximo subtítulo, maior atenção darei à
análise desse documento, no que respeita principalmente a seu conteúdo e
à sua inter-relação com os discursos pós-coloniais.

LEITURA DAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA


A EDUCAÇÃO QUILOMBOLA DE MATO GROSSO

As orientações curriculares para a educação quilombola de Mato


Grosso, em consonância com as orientações curriculares nacionais, em
termos epistemológicos, fazem um diálogo, às vezes direta, às vezes indire-
tamente com as teorias pós-coloniais. Retrata o discurso do oprimido, que
busca convencer os opressores quanto à sua humanidade, quanto à legitimi-
dade de seus direitos, calando os ruidosos silêncios e tornando visíveis suas

3 Criada em 1988, a Fundação Cultural Palmares é uma instituição pública vinculada ao Ministério
da Cultura que tem a finalidade de promover e preservar a cultura afro-brasileira. Preocupada com
a igualdade racial e com a valorização das manifestações de matriz africana. Seu objetivo principal é
formular e implantar políticas públicas que potencializem a participação da população negra brasileira
nos processos de desenvolvimento do País. Com relação ao reconhecimento das comunidades negras
rurais, ela é responsável por expedir certificação às comunidades. O certificado é um documento no
qual se reconhece a comunidade como quilombola, isto é, feito mediante relatório histórico, imagens
e outros documentos que podem comprovar a veracidade do fato. Por meio da certificação, as comu-
nidades ampliam o acesso às políticas públicas sociais e de habitação do governo federal (2013).
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 109

histórias, culturas, identidades, e reivindicam a valorização de sua estética,


em um movimento de dentro para fora. Nesse pressuposto, segundo o texto
das Orientações Curriculares:

É papel da escola organizar-se de forma democrática e com equidade de


representação nos espaços deliberativos. A realidade e a forma organiza-
tiva das comunidades quilombolas devem estar presentes na construção
do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e na organização do currículo, bem
como no desenvolvimento dos espaços pedagógicos que propiciem a valori-
zação da identidade quilombola, que possibilitem ao aluno/a conhecer suas
origens, pois o reconhecimento/visibilidade da história dos quilombos diz
respeito à história e identidade do povo brasileiro. (Seduc/MT, 2010, p. 143)

Em consonância com as teorias pós-coloniais, à feição do texto do


documento em apreço, a escola quilombola se inscreve em um tempo revi-
sionário, cuja finalidade é redescrever e afirmar as tradições ou traduções
culturais do grupo; recuperar suas histórias reprimidas; reinscrever sua
comunalidade humana; reunir os estilhaços da identidade negra; libertar-
se das amarras calcificantes dos estereótipos e de todos os negativismos
que lhes são impostos pelo colonizador, pela escravização e pela sociedade
contemporânea, excludente e racista. A escola tem, portanto, gigantesca
missão, sendo esta a mais relevante:

Mediar o saber escolar com os saberes locais, advindos da ancestralidade


que formou a cultura do segmento negro na África e no Brasil. Assim o
currículo deve garantir os conhecimentos e saberes quilombolas, tratando
sua própria história, formas de luta e resistência como de afirmação da iden-
tidade quilombola e nacional. (Ibid., p. 144)

O documento deixa entrever que a escola, assim como a comunidade,


sente-se em situação de fronteira conflituosa, geradora de sensações desli-
zantes e desorientadoras entre pertença/não pertença, exclusão/inclusão, no
ato de se articular com o corpo nacional. O texto, em diversas passagens,
busca reafirmar o quilombo como parte da nação, como contribuinte histó-
rico, econômico e cultural do Brasil. Nesse sentido, deve-se esclarecer que
a escola quilombola está, ou deve estar, em diálogo com a sociedade mais
ampla, e o conhecimento construído nela transitará entre o local e o global:

A estruturação da educação para remanescente de quilombo deve ser pautada


nas Diretrizes Curriculares Nacionais, em suas etapas e modalidades,
ampliando os conteúdos de base comum, garantindo as especificidades
110 Suely Dulce de Castilho

próprias para a educação quilombola e abordando as práticas culturais


locais que afirmem sua identidade, seus valores e seus saberes que atra-
vessam o tempo. (Ibid., p. 144)

Além de efetivar integralmente a lei nº 10.639/2003, deve-se atentar às


Orientações e ações e para a educação das relações étnico-raciais (Secad, 2006)
e às orientações curriculares para a educação básica do estado de Mato
Grosso (Seduc/MT, 2010), bem assim às demais políticas curriculares
nacionais. Isso reafirma a ideia de que os habitantes das comunidades
quilombolas não estão isolados da população mais ampla, nem no plano
geográfico, nem no plano dos desejos e necessidades. Eles têm o direito de
acesso ao conhecimento produzido pela sociedade em geral, desde que não
massacre e nem suprima seus conhecimentos e culturas locais.
Quanto à abordagem sobre cor e raça, a escola quilombola deverá
promover a desleitura dos textos escritos pelos brancos e para os brancos.
Em complemento, cabe-lhe desconstruir a verdade toda branca, como diz
Fanon (2008), reescrevendo e recontando sua própria história:

[...] reescrever e recontar a história que se negou, ou se calou, sobre a


contribuição dos africanos e afro-brasileiros no processo civilizatório do
Brasil, para não confrontar os padrões etnocêntricos presentes na história,
cultura e ciência, que considera todo conhecimento científico produzido
pelo grupo branco, desconsiderando outros grupos culturais e raciais.
(Seduc/MT, 2010, p. 144)

Trata-se de arquitetar nova visão de mundo que seja real, atual, e


não somente aquela herdada da epistemologia colonial. Igualmente, que a
expressão negra, assim como de outros grupos étnico-raciais, tenha relevo.
O documento enfatiza que as práticas pedagógicas e a metodologia de
ensino também precisam ser reelaboradas. Nesse pressuposto, as orienta-
ções curriculares para a educação quilombola propõem:

O currículo deve remeter a procedimentos metodológicos que rompam com


a estrutura funcionalista e eurocêntrica, pois, quando a prática pedagógica
nega a contribuição africana ou a minimiza diante de outras contribuições
[...] colabora para a continuidade do preconceito em relação à cultura afro-
-brasileira e, consequentemente, limita o conhecimento. (Ibid., p. 145)

A organização escolar e sua estrutura física, assim como outras


necessidades inerentes à educação rural, são vistas, pelo documento, como
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 111

parte do currículo, pois, podem colaborar, ou não, para uma educação


escolar exitosa, tendente a permitir a presença, permanência e construção
do conhecimento.

Quanto à organização escolar, devem se considerar todas as situações posi-


tivas ou negativas que se apresentam dentro e fora da escola, que inter-
ferem no processo educativo dos/as educandos/as, como a localização do
quilombo, bem como da escola e sua estrutura; questões como transporte
escolar; a dinâmica e os conhecimentos referentes à produção agrícola nos
quilombos; o público; a cultura local e o número de professores/as e alunos/
as, entre outras. (Ibid., p. 145)

O trecho acima deixa entrever, de igual parte, situações já bem


conhecidas de ausência de estrutura mínima na construção de escolas
destinadas às comunidades negras; ausência de material didático; falta de
transporte escolar; número insuficiente de professores, pauperismo das
famílias, potencializado pela ausência de financiamento rural, em meio a
outras condições que acometem a essas comunidades e interferem na esco-
larização dos alunos (Castilho, 2011). O documento sugere que as escolas
quilombolas sejam organizadas, levando-se em conta todas essas condições.
Quanto à abordagem de ensino, o documento sugere alguns eixos,
considerados valores africanos, afro-brasileiros e quilombolas. Vale citá-
los: circularidade, oralidade, energia vital (axé), corporeidade, musicali-
dade, ludicidade, cooperativismo, comunitarismo, memória, religiosidade,
ancestralidade. Acredita-se que esses conhecimentos e sabedorias ancestrais
podem contribuir para a afirmação da identidade e da cultura quilombola,
já que são conhecimentos originários da sabedoria de sua ancestralidade.
Como desfecho, visa também um resgate histórico ancestral.
O documento propõe, por igual, o conteúdo para a educação quilom-
bola, centrado no eixo estruturante das orientações curriculares para o
ensino básico do estado de Mato Grosso (Seduc/MT, 2010). São eles: conhe-
cimento, trabalho e educação. O conteúdo específico deve permear todos
os ciclos do ensino fundamental e o ensino médio por inteiro, bem como
suas respectivas disciplinas, além de propor orientações curriculares para
o ensino médio integrado à educação profissional quilombola. Impor-
tante, bom é se diga, a criação de uma área específica de conhecimento
denominado Ciências e Saberes Quilombola. É composta por três disci-
plinas, quais sejam: Práticas em Cultura e Artesanato Quilombola; Prática
em Técnicas Agrícolas Quilombola e Prática em Tecnologia Social.
112 Suely Dulce de Castilho

Como visto noutra passagem, o documento reflete o discurso das


teorias pós-coloniais, cuja tônica é o rompimento com os textos e contextos
educacionais até então mal transpostos da cultura escolar branca e urbana.
Em cada proposição há um discurso subliminar que denuncia a condição
de renegados da história, de despidos de cultura, de esquecidos política e
socialmente. Mas há de modo não diverso, uma voz rutilante de triunfo
que ressoa fortemente quando se consagra a existência das comunidades
negras com suas necessidades escolares singulares e propõe um projeto de
educação que esteja voltado para o desenvolvimento das pessoas e da comu-
nidade em suas especificidades. Nesses termos, essas políticas traduzem um
grande avanço. Embora a implementação dela seja outro passo a ser dado,
certamente com muitos desafios.
Para além da importância do documento, assim como de seu discurso
renovado e engajado, é pertinente destacar a ênfase dada de que, na escola
quilombola, construa-se e viabilize a produção do conhecimento com bases
na reafirmação da identidade étnica, no autorreconhecimento, na autovalo-
rização da cultura e da história negra ou afro-brasileira.
No entanto, percebe-se que as orientações curriculares, objeto desta
análise, deixam transparecer a tendência ao discurso antirracista unila-
teral, àquele que se restringe em focar os oprimidos como sujeitos que
precisam se autocorrigir e reconstruir sua história, sua cultura e sua iden-
tidade atinentes às distorções racistas impostas a eles ao longo da história,
apagando, de certo modo, o questionamento ao opressor.
Sugere, dessa maneira, que a opressão é um problema exclusivo do
oprimido, dado que o opressor nele não se encontra imbricado. Bem a esse
propósito, Fanon (2008) escreve que a loucura do racismo causou desperso-
nifinicação e alienação tanto do branco quanto do negro. Dito isso, o autor
sugere que ambos precisam igualmente ser conscientizados e desalienados.
Nesse sentido, Mclaren (2000, p. 43) argumenta que:

O conceito de branco precisa ser criticamente interrogado nas escolas pelo


fato de ser, com frequência, visto como imune de considerações por não
ser compreendido como uma forma de etnicidade e, consequentemente, sua
própria invisibilidade lhe permite funcionar virtualmente sem restrições,
como uma norma legitimadora a partir da qual os construtos culturais e os
valores democráticos são julgados.

Questionar a branquidade, para o autor, significa desmascará-la como


categoria transcendental e vazia como significante. Esse projeto pressupõe
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 113

tornar visível o caráter contingente e transformável de suas práticas e situá-


-la como dado produzido historicamente por meio de ações individuais e
coletivas. Em reforço, subentende, necessariamente, revelar e minar suas
amarras à dominação e ao poder hierarquicamente construído por ela e
para ela. Caso contrário, as práticas dominantes brancas poderão continuar
sendo compreendidas como normativas, corretas, universais e inquestioná-
veis dado ao fato de seu suposto não existir.
No tocante à questão curricular, por se tratar da espinha dorsal da
educação escolar, não pode se eximir de assumir explicitamente a tarefa
de problematizar esses preceitos, inclusive o da branquidade. Sacristán
(1995, p. 83), a tal respeito, é categórico: “a busca de qualquer saída para
a marginalização de subgrupos ou culturas passa por modificar os padrões
gerais de funcionamento da educação e, mais concretamente, o da seleção e
desenvolvimento dos conteúdos do currículo”.
Esses argumentos, importante é se frise isto, não podem ser lidos
como discurso racista contra brancos, à maneira como pode querer entender
algum interpretativista. Mas, à luz do que Mclaren (2000) aclara, a peda-
gogia que se assenta numa concepção crítica e/ou pós-colonial tem como
objetivo desnaturalizar as convenções fixas, de contingências enraizadas,
buscando construir uma coalizão intelectual na luta contra as injustiças nas
relações sociais de poder e privilégio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ler as políticas educacionais para a educação escolar quilombola,


é possível perceber avanços quantitativos relevantes, desencadeados a partir
da promulgação da lei nº 10.639/2003. Nesses termos, os militantes da
causa, irmanados às comunidades quilombolas, podem se sentir vitoriosos.
As políticas curriculares nacionais e do estado de Mato Grosso, em
consonância com o ideário dos movimentos sociais e dos teóricos mili-
tantes, têm incorporado os discursos críticos ou pós-colonialista, mantendo
coerência com a necessidade de uma educação escolar problematizadora e
libertadora das amarras discursivas racistas, colonialistas. No que concerne
às orientações curriculares em apreço, no caso específico de Mato Grosso,
é pertinente ressaltar a presença do discurso antirracista unilateral, no
114 Suely Dulce de Castilho

sentido de buscar corrigir as práticas pedagógicas. No entanto, essa questão


não neutraliza a importância do documento nem, muito menos, o mérito
dos profissionais envolvidos em sua elaboração.
Sabe-se que, entre a formulação de documentos curriculares e sua
efetivação no chão da escola, existe certa distância, pois diversos fatores
históricos e culturais constroem representações que interferem no processo
de aceitação e de rejeição na implementação de determinada política.
Embora assim, é possível afirmar que as orientações curriculares para a
educação quilombola elaboradas, tanto em âmbito nacional quanto circuns-
crito ao estado de Mato Grosso, têm propiciado mudanças na consciência
da comunidade pedagógica escolar.
Mesmo que a efetivação de tais políticas não tenha sido concretizada
em muitas escolas, constantes grupos de estudos têm sido organizados com
a finalidade de ler e debater o documento. Esse movimento certamente
produz mudanças positivas. No entanto, o processo de formação dos profes-
sores para a implementação de tal currículo continua sendo um desafio.

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Alexandre Herbetta1

Segundo Gilberto Katán Apinajé,

a função da escola indígena atual em relação a globalização é de se trabalhar


com o conhecimento das duas realidades de mundo, tanto da sociedade indí-
gena quanto da sociedade não indígena, até porque a escola é como pátio, mas...
além do pátio, ela participa de decisões políticas que envolvem questões da
globalização e interculturalidade... jamais pode abandona os seus princípios de
ensinamento.

Como se pode ver, para Gilberto, aluno do NTFSI – Núcleo Taki-


nahaky de Formação Superior Indígena, da UFG (Universidade Federal de
Goiás) –, a escola indígena deve servir para se pensar o mundo contem-
porâneo, mas, a partir do ponto de vista da tradição, representada, na fala,
com a imagem do pátio, espaço importante na cultura Apinajé. Em outra
ocasião, ele se refere à necessidade da construção de uma matriz curricular
que represente tal perspectiva.
Segundo Julio Kamêr Apinajé, outro aluno do mesmo curso, e
professor em sua aldeia, em fala sobre a escola indígena na etapa de estudos
em TI – Terra Indígena -, “precisamos de novos rumos... aprendi com o antro-
pólogo...somos seres humanos... ser social... em contato com as pessoas e outras
coisas”. Ele corrobora Gilberto, afirmando que a escola deve produzir
sujeitos que se coloquem de forma positiva no mundo de hoje, para ele,
do contato. Para ele, igualmente, a educação escolar indígena passa por um
amplo processo de construção. Para um aluno Javaé do mesmo curso, “a
globalizacao está chegando na aldeia... eu preparava a aula e não tinha nada a

1 Graduado em História. Mestre e doutor em Antropologia. Professor da Universidade Federal de


Goiás – UFG. <http://lattes.cnpq.br/8579440598142385>
118 Alexandre Herbetta

ver com minha cultura”. Agora suas aulas são diferentes. Ele complementa a
fala reafirmando o prisma de sua cultura como o foco de se pensar o mundo
contemporâneo.
O cenário descrito acima aponta para mudanças radicais na educação
escolar indígena. Isso do ponto de vista de professores indígenas do curso
de licenciatura Intercultural Indígena do NTFSI da UFG. Tais afirmações
apontam igualmente para elementos interessantes para se pensar a formação
de uma educação diferenciada, base da legislação que versa sobre a escola
indígena hoje.
Nessa direção, deve-se lembrar que, no Brasil, especialmente a partir
da década de 1980, as diversas populações indígenas fortaleceram a orga-
nização de um movimento político pan-indígena. Isso para intensificar o
diálogo com o Estado-nação em direção a conquista de certos direitos que
representassem relações mais simétricas entre ambos. Nesse contexto, ao
lado da territorialização, a educação diferenciada sempre foi um dos eixos
das reivindicações (Munduruku, 2012).
A partir da constituição brasileira de 1988, algumas leis surgiram
para regulamentar a educação diferenciada. Nesse cenário, alguns cursos
superiores de licenciatura para professores indígenas surgiram na década de
1990. Essa política, segundo o PPP – Projeto Político Pedagógico – do curso
de licenciatura Intercultural da UFG, “rompeu com a anterior, que visava à
integração gradativa e “harmônica” dos índios à sociedade não-indígena”
(Pimentel et al., 2006, p. 8).
O NTFSI da UFG existe há 7 anos e é constituído por curso de
graduação e de especialização. Atualmente, conta com cerca de 250 alunos,
os quais são professores indígenas em suas respectivas comunidades.
Eles vivem nos estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão e
pertencem à 16 etnias, entre elas, os Krahô, Apinajé, Javaé, Karajá, Guarani,
Xambioá, Kamayurá, Canela, Gavião, Guajajara, Krikati, Tapirapé, Xerente,
Xavante, Xacriabá e Tapuio.
A despeito de um aparente desconhecimento inicial por parte dos
índios acerca da universidade brasileira e da formação superior, os profes-
sores indígenas em tela parecem ter plena consciência das possibilidades
implícitas no processo de formação superior. Assim, eles buscam se apro-
priar dessa formação para transformarem positivamente a escola de suas
comunidades, além de suas relações intra e interculturais.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 119

Do ponto de vista desses professores, aliás, a educação escolar indí-


gena, no Brasil, vive um momento interessante e positivo, o que é impor-
tante para suas comunidades. Dodanin Piiken, por exemplo, professor,
aluno e cacique Krahô, afirmou em uma aula, questionado sobre as trans-
formações ocorridas nas escolas Krahô, que quando a machadinha de
Hartãt – herói mítico – retornou aos Krahô, muita coisa se transformou
para melhor na comunidade, inclusive a escola. A fala de Dodanin, por um
lado, aponta para relações aparentemente desconexas, segundo uma lógica
eurocêntrica – entre mito, machadinha e escola – e, por outro, simultane-
amente, para aspectos importantes de uma epistemologia Krahô, inclusive,
aponta para uma possível pedagogia nativa.
Nesse contexto, o NTFSI buscou se formar e tenta se desenvolver
sempre em relação à epistemologia indígena mencionada. O curso tem sua
dinâmica voltada para o diálogo intercultural, por meio de seu PPP, de sua
matriz curricular e suas práticas pedagógicas elaboradas. Nessa direção,
cada professor indígena cursa uma matriz curricular básica de dois anos
e uma matriz específica de mais três, quando opta por se aprofundar nas
áreas da linguagem, natureza ou cultura. Ao final do curso defende o
trabalho extraescolar em sua comunidade, baseado na sistematização de um
saber intra e intercultural e apresenta um relatório de estágio, acerca de sua
prática na escola. As aulas são ministradas em quatro etapas ao longo do
ano. Duas nas respectivas aldeias e duas em Goiânia. As aulas de Goiânia
são baseadas na noção de tema contextual, buscando se afastar da discipli-
narização do conhecimento, como se verá.
Segundo o PPP do NTFSI, ainda,

pretende-se com essa proposta curricular propiciar ao professor indígena


uma formação que lhe dê condições para promover qualquer tipo de ensino,
seja ele monolíngue, bilíngue, ou de qualquer outro tipo, independente
da área que ele escolha para se especializar. Isso possibilitará ao professor
não ser apenas um especialista, mas um profissional capaz de assessorar
sua comunidade, como também lidar com os conhecimentos específicos de
forma plural. O importante é que o professor tenha condições de colocar,
efetivamente, a escola a serviço de sua comunidade, contribuindo com o
desenvolvimento dos projetos de melhoria de vida. (Pimentel et al., 2006,
p. 32)

Nesse cenário, além da interculturalidade, as noções de contextua-


lização e de transdisciplinaridade são centrais para a operacionalização do
120 Alexandre Herbetta

curso. A interculturalidade é baseada sobretudo na ideia de que, em um


diálogo simétrico entre índios e não índios, deve emergir aspectos centrais
da epistemologia indígena. A contextualização tem como base a noção
de que a situação em tela deve ter relação direta com a questão indígena
contemporânea e a educação escolar indígena deve estar plenamente conec-
tada às demandas das respectivas comunidades.
A transdisciplinaridade busca ser praticada a partir da ideia de que
o currículo é formado por temas contextuais – e não disciplinas –, quais
sejam, temas que pertencem ao universo cultural indígena, que não recorta
o saber, mas o vive de forma associada e conectada. Essa dinâmica forma
um currículo pautado nos eixos da solidariedade, sustentabilidade e diver-
sidade, e oposto às ideias de fragmentação dos saberes e universalização do
conhecimento, implícitas na noção de disciplina.
Simultaneamente, os professores indígenas tentam aplicar paulatina-
mente a mesma noção de tema contextual em suas escolas indígenas, consti-
tuindo, inclusive, seus currículos com base nela. O trabalho extraescolar de
Julio Kamêr, por exemplo, tem como centro a ideia de que, para se proteger
o território Apínajé das queimadas e assim manter seus recursos naturais
protegidos e garantir sua sustentabilidade, é preciso cantar as músicas tradi-
cionais. A partir daí, Kamêr cria práticas pedagógicas relacionadas ao tema,
e aponta para sua importância na matriz curricular nativa.
Este texto buscará explorar, portanto, a ideia e a dinâmica dos temas
contextuais. E tentará descrever, então, brevemente, o processo de construção
das matrizes curriculares das escolas indígenas. Nessa direção, ele tratará das
transformações por que passam os professores indígenas, suas escolas indí-
genas, o NTFSI, a UFG e os professores não indígenas. Isso, através das falas
dos professores e dos documentos produzidos no curso.

MÁQUINA DE PRODUZIR TEMAS CONTEXTUAIS:


ENTRE PESQUISAS, DEMANDAS
E A CONTEMPORANEIDADE

Os temas contextuais constituem um dos eixos que dão a dinâmica


pedagógica do NTFSI. Dessa forma, as aulas nas etapas em Goiânia são
ministradas através deles. Na área da cultura, por exemplo, há temas como
“Ritos sociais”, “Arte e artesanato indígena”, “Direitos Indígenas” entre
tantos outros. Na área da natureza, há temas como a “Biodiversidade do
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 121

cerrado” e outros, e na área da linguagem, “Português intercultural” dentre


tantos outros. A prática da noção de tema contextual é ainda um desafio
para os professores não indígenas.
Como já mencionado, os professores indígenas se apropriam dessa
noção de tema contextual e buscam produzi-la em suas escolas indígenas.
Nessa direção, incluem, muitas vezes, na carga horária disciplinar, projetos
com o caráter dos temas contextuais. Em outras ocasiões, já transformaram
o PPP de suas escolas, incluindo neles a noção de tema contextual. E, em
outras, ainda, criam sistemas mistos nos quais há momentos das disciplinas
e momentos dos temas contextuais.
Vale notar que nesses casos, de forma muito interessante, os temas
são gerados a partir de um processo de pesquisa e reflexão realizado pelos
próprios professores indígenas, em relação com suas comunidades, e sobre
a realidade de cada povo e suas demandas comunitárias.
Note-se que um dos requisitos obrigatórios para a conclusão do curso
de licenciatura Intercultural Indígena é a produção do trabalhado extraes-
colar. Este tem como base uma pesquisa que cada aluno-professor indígena
realiza ao longo de três anos, ou seja, ao longo da matriz específica mencio-
nada, sobre um tema de sua preferência. O tema da pesquisa é decidido
especialmente nas reflexões e debates realizado pelo comitê orientador, que
é composto também por um professor não indígena. Cada comitê trabalha
com um grupo étnico específico, assim há o comitê Krahô, o Apinajé, o
Karajá, o Guajajara sucessivamente. É nele que os alunos são orientados e
produzem material para suas escolas e para o curso.
Nesse contexto, segundo os professores indígenas, a pesquisa extra-
escolar alimenta a sala de aula, gerando temas relevantes a serem traba-
lhados pedagogicamente e a constituírem a matriz curricular da cada
escola indígena. Um dos objetivos dos referidos professores é o de produzir
pesquisa/conhecimento acerca de temas relevantes para suas comunidades.
E, em seguida, aplicar tais conhecimentos em sala de aula, refletindo sobre
suas pedagogias e propondo a produção de material didático diferenciado.
Assim, constituindo uma matriz curricular e, posteriormente, o PPP de
cada escola.
O tema do trabalho extraescolar pode estar relacionado a temas intra
ou interculturais – ou a ambos. Assim há o trabalho extraescolar Tapirapé,
sobre os peixes que são tradicionalmente usados na comunidade. Há o
122 Alexandre Herbetta

trabalho Xerente, sobre a organização social dita tradicional. Há, também,


pesquisas com foco em temas interculturais, como por exemplo, a pesquisa
de Emílio Nindjô Apinajé.
O trabalho de Nindjô busca pesquisar o sistema de coleta e explo-
ração econômica do babaçu, recurso natural tradicional na comunidade.
Ele propõe-se, então a entender como o babaçu é explorado nos últimos
tempos, o que tem relação com a presença de uma empresa não indígena
na aldeia e entender como funciona o sistema capitalista. Em seguida,
Emílio quer registrar quais são os modos tradicionais de exploração do
babaçu. Através da comparação, busca levar para a escola o tema do
contato interétnico e o da exploração econômica. Seu objetivo maior é
produzir um livro didático acerca do tema.
Nas pesquisas que geram os temas contextuais, emergem também
aspectos de uma pedagogia indígena. Em muitas delas, por exemplo, a
escola parece ser percebida como uma instituição que orienta um caminho.
A noção de índio perdido, por exemplo, várias vezes mencionada nos traba-
lhos, indica o índio que não segue sua cultura. Nesse sentido, segundo
Isauro Krokroc Krahô, se o sujeito não segue o caminho certo, “não sabe se
é índio ou branco”.
Para isso a escola deve se adequar à cultura de cada povo. Note-se
também que as pesquisas aqui apresentadas evidenciam foco em uma
matriz curricular cultural, tema de debate no NTFSI, e que será melhor
tratada ao longo do texto (ver Herbetta; Pimentel, 2013). Nela, busca-se
a pesquisa sobre a própria lógica cultural e o uso deste conhecimento em
sala de aula. Com isso, estimula-se o jovem a aprender e refletir sobre sua
própria cultura. Isso em relação ao mundo contemporâneo e ao contato
interétnico.
Nesse cenário, para Dodanin Piiken, a escola Krahô, por exemplo,
não fica confinada dentro da sala de aula, sendo, principalmente o pátio,
um lugar próprio à educação escolar – é lá onde se estabelece relações entre
os sujeitos do grupo. Dodanin trabalhou em sua pesquisa o tema dos arte-
sanatos tradicionais. Segundo ele, o modo de vida na cultura Krahô tem
sofrido muitas mudanças com a interferência da modernidade, o que se
pode ver através do uso dos objetos industrializados, fáceis de conseguir e
de maior conforto.
Para Piiken, “nos dias atuais, quase não usamos mais a esteira, o
cofo, o moco, entre outros. São poucas as pessoas que ainda sabem fazê-los
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 123

porque os jovens não querem praticar a nossa cultura. Sendo assim, estamos
perdendo o que os nossos velhos nos ensinaram”. Através de sua pesquisa,
os Krahô estão mobilizando a comunidade para, nas palavras de Piiken,
“revitalizar” a cultura tradicional, levando, por exemplo, os velhos para
ensinarem os jovens a fazerem os utensílios antigos. Piiken faz ainda uma
interessante relação entre o artesanato e a cultura. Para ele, sem a esteira,
por exemplo, não há casamento, se não há casamento não há mais índio, se
não há mais índio, não há cultura. Logo, sem esteira, não há Krahô.
No seminário Práticas escolares, apresentado no NTFSI em janeiro de
2012, essas concepções presentes nas pesquisas extraescolares ficaram mais
evidentes. Nas imagens elaboradas para a apresentação dos Krahô, o pátio
foi um tema recorrente, sendo espaço de atividades que envolvem idosos,
adultos e crianças. Nas imagens citadas a ação realizada no pátio parecia ser
o motivo central da aprendizagem. Nessa direção, o movimento apareceu
ainda como o modo adequado de conhecer.
Isso fica claro na pesquisa de Roberto Cahxêt Krahô quando ele dife-
rencia a escola indígena e a não indígena. Para o autor, “a escola do não
indígena é só teoria e a escola indígena é na prática... [ela] não aprisiona
os alunos, é uma escola livre... o aprendizado que vem do tocar, do sentir, de
dançar, de cantar, de fazer as coisas”. A pesquisa de Cahxêt trabalha com
o tema dos esportes tradicionais, os quais evidenciam a disposição para a
ação – o movimento.
Além disso, Roberto busca relacionar ao tema central uma série de
outros assuntos. Para ele, trabalhar com a corrida de tora, no pátio, esporte
tradicional entre os Krahô, significa tratar também do resguardo, do sistema
de nominação, do parentesco, das festas, da alimentação, da saúde e de uma
série maior de temas relacionados à vida Krahô. Nesse sentido, seu objetivo
é estimular o jovem a vivenciar e refletir sobre sua identidade.
O trabalho de Renato Yahé Krahô segue a mesma direção. Nele, pode
se ver que, para o autor, a produção do conhecimento deve envolver a parti-
cipação de alunos, professores e comunidade – mobilizando toda a aldeia
e saindo da sala de aula. O aluno é visto como sujeito do conhecimento
– e é a partir da ação-movimento desse sujeito que se dá a aprendizagem.
Segundo Renato, ainda, a escola deve “multiplicar os conhecimentos”, o que
se dá pela ampliação das relações cotidianas. Isso porque “quem está ouvindo
está sendo conscientizado ao ouvir e depois vai divulgar o que ouviu: estica a
divulgação”.
124 Alexandre Herbetta

Nesse contexto, Yahé criou, na escola 19 de abril, que dirige, alguns


projetos relacionados à dinâmica dos temas contextuais mencionada. Um
deles diz respeito ao tema do alcoolismo. Segundo Yahé, ele partiu do prin-
cípio de que esses temas são relativamente novos e causam grandes trans-
formações na comunidade. Os alunos foram motivados a sair da sala de
aula e a percorrer a aldeia, pesquisando os casos graves de alcoolismo. Em
seguida eles deveriam, a partir de pesquisa prévia, produzir cartazes para
serem expostos em uma reunião comunitária na escola. Dessa forma, eles
produziram conhecimento acerca do tema – movimentando-se –, difun-
dindo-o pela comunidade, relacionando as diferentes gerações e tomando
um pouco mais de consciência acerca das consequências do uso do álcool.
Em relação a temas derivados do contato interétnico e que tenham
relação com o modo tradicional de ser, a saúde tem grande destaque. Em
algumas pesquisas a ideia é a de que com as transformações advindas do
contato interétnico a saúde indígena passa por um momento delicado. Davi
Wamimen Apinajé, por exemplo, também trabalha com o tema do alcoo-
lismo. Seu trabalho intitula-se Saúde contemporânea Apinajé: origens, razões
e impactos do alcoolismo e da obesidade entre os Panhi.
Segundo ele, atualmente o álcool é considerado como uma nova
doença do mundo globalizado, chamada síndrome, que ataca diretamente
no organismo das pessoas e leva até a morte. Davi conta em seus relatos que
a questão do alcoolismo dentro do território Apinajé é um dos fatores que
mais preocupam a comunidade, desde a década de 1980.
Para Wamimen, as causas do uso abusivo de álcool são: 1. mal-estar;
2. raiva; 3. discussão com suas famílias; 4. aliviar dor. As consequências
são: 1. destruir as comunidades indígenas; 2. não conseguir trabalhar para
sustentar suas famílias; 3. passar necessidades todos os dias por falta de
alimentação na roça de toco tradicional; 4. destruir o organismo; 5. destruir
a cultura. Dessa forma, ele estabelece uma lógica associativa similar a de
seus colegas. No caso, o uso abusivo da bebida pode mesmo acabar com
a diferença cultural, destruindo à comunidade indígena. Tal assunto vem
sendo objeto de discussão dos mais velhos no pátio e chegou a ser tema da
escola graças ao trabalho de Davi.
Pode se perceber, então, que os trabalhos extraescolares trazem,
todos, foco na reflexão sobre a cultura de cada população. E que muitos
estabelecem uma relação entre temas intra e interculturais. A pesquisa de
Julio Kamêr Apinaje – já mencionada – corrobora o exposto. Seu trabalho
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 125

é intitulado Sustentabilidade Panhi: relações entre queimadas e cantorias no


território Apinajé e busca, a princípio, definir em termos Apinajé o que
é sustentabilidade (XAHTÃ MẼ PAHTE AMNHĨ NHĨPÊX HO HIHTỲX).
Assim, ele aponta para uma relação intrínseca entre cultura e natureza ou
entre cantos e queimadas.
Júlio identificou as queimadas como grande problema do território
Apinajé. Isso porque, segundo ele, elas saíram do controle dos próprios e
são manejadas por não indígenas, destruindo ano a ano boa parte do terri-
tório. Com isso, perde-se, nas palavras de Kamêr, também, boa parte dos
recursos naturais, responsáveis pela criação da cultura. Para Júlio, então,
não se pode olhar para o território sem olhar para a cultura e o sujeito.
Sua proposta é fazer com que os cantos, poderosos elementos da cultura e
registro dos recursos naturais, contenham a destruição da natureza.
Segundo Júlio,

este projeto justifica-se na necessidade do resgate e fortalecimento da cultura


e território Apinajé, com a valorização e preservação da cultura, língua e
costumes presentes no cotidiano de nossas comunidades, através do projeto nós
do povo Apinajé, poderemos desenvolver os nossos conhecimentos para executá-
-lo junto com as comunidades, portanto garantimos nossas sustentabilidades
socioculturais dentro das nossas comunidades das aldeias, para levar informa-
ções sobre a importância da cultura e do território Apinajé.

Ele teve como objetivo levar tal discussão para a escola, conscienti-
zando seus alunos da importância da música e da preservação da natureza,
envolvendo ainda toda a comunidade nas discussões.
Como fica evidente, as pesquisas que geram os temas contextuais
possuem enorme riqueza e promovem grandes transformações nas comu-
nidades em questão. Os professores referidos usam então o conhecimento
pesquisado acerca de suas culturas e as necessidades temáticas de suas
aldeias para produzir conhecimento, produzirem-se como melhores profes-
sores e, consequentemente, produzirem uma nova escola indígena que
possa, assim, sustentar seus mundos com equilíbrio e qualidade de vida.
Os temas escolhidos, como se pode observar, igualmente, têm relação direta
com o mundo contemporâneo vivido por tais sujeitos e a narrativa sobre os
temas apontam para princípios da epistemologia indígena.
Nota-se também que há um processo de aprendizado da própria
cultura. De acordo com um jovem Akwe Xerente, por exemplo, “estou
descobrindo muitas novidades que eu não sabia... cânticos, pintura... escrita
126 Alexandre Herbetta

para que não esqueçamos... na prática da escrita... para que os alunos tenham
uma visão da escrita e de seu povo” Ao mesmo tempo, percebe-se que, em
oposição ao aprendizado mencionado, há o perigo de se perder itens dessa
cultura. Para o mesmo jovem Xerente, eles estão “perdendo o seu remédio
tradicional... ficou para trás”. Na mesma direção, alguns professores Tapi-
rapé “perceberam valores na arte, pintura, que ficavam para trás”.
Do ponto de vista indígena, assim, os temas contextuais são muito
importantes, pois permitem uma atualização cultural. Segundo uma profes-
sora Guajajara, ele “atualiza o que estava adormecido, movimenta”. Para
todos, o tema contextual é fundamental, pois, segundo o professor Canela,
trata do “tema que está em risco de perder, de extinção... [este é o] desafio do
trabalho”.

QUASE DEFINIÇÕES SOBRE O TEMA CONTEXTUAL

Há várias maneiras de se definir o tema contextual. Para Manaijè


Karajá, por exemplo, o tema contextual é como o espalhamento do conhe-
cimento (Pimentel, 2013, p. 69). Para Silvia Xerente, é a possibilidade de
convivência intercultural, em suas palavras, de se viver em relação com os
dois mundos, a aldeia e a cidade. Para Dodanin Piiken, é a possibilidade
de se trabalhar com a tradição, mas de uma forma contemporânea. Já, para
Samuru Xerente, é uma maneira de a escola ficar mais alegre.
A expressão tema contextual, assim como sua dinâmica, tem origem
na história de vida da professora do NTFSI e ex-coordenadora do núcleo,
Maria do Socorro Pimentel da Silva. Segundo ela, a ideia da dinâmica refe-
rida e centro deste texto surgiu de sua experiência como professora de uma
escola indígena Karajá. Na época, não tinha experiência em sala de aula,
menos ainda na cultura Karajá, e ao ter que ministrar uma aula sobre cole-
tivos, conteúdo ligado à disciplina português, resolveu partir do conheci-
mento dos alunos iny (Karajá).
Assim, a prática pedagógica escolhida partia dos termos usados pelos
Karajá para nomear conjuntos pertinentes à cultura indígena e, consequen-
temente, de suas lógicas subjacentes. A partir da vida cotidiana dos alunos,
foi possível, então, trabalhar a noção de conjunto. Na mesma época, ainda,
ela procurou um ancião da comunidade para aprender o idioma nativo.
Na ocasião, apresentou uma cartilha do SIL – Summer Institute of
Linguistic –, responsável pela educação escolar indígena na época, e pediu
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 127

ao senhor Karajá que a ensinasse com base nela. O velho Karajá respondeu
que aquilo que estava na cartilha não era a língua Karajá. Esta estava na
vida cotidiana da aldeia.
Segundo Pimentel (ibid., 69),

podemos entendê-lo [tema contextual] como uma ação pedagógica que


rompe com o tecnicismo praticado no ambiente escolar, o qual rejeita os
laços e as intercomunicações com seu meio e o insere num compartimento,
que é aquele da disciplina cujas fronteiras destroem arbitrariamente as
condições do diálogo entre ciências e os mais distintos conhecimentos. Um
tema não se divide.

Desse modo, pode-se dizer que, de início, o tema contextual surge


para se diferenciar da noção de disciplina. Esta, como se viu não se adapta a
prática pedagógica da escola indígena, pois recorta os saberes, percebendo-
os como universais e vindos de fora. Com o tema contextual, afinal, a
cultura cotidiana (local) é o ponto de partida para o entendimento de novos
saberes (Pimentel, 2010, p. 16).
Deve-se destacar que a dinâmica dos temas contextuais fazem,
portanto, emergir categorias do pensamento indígena. E vai ao encontro do
que coloca Dussel sobre Freire, sobre o sujeito da educação ser o próprio
oprimido, que “se volta reflexivamente sobre si mesmo (Dussel, 2000,
p. 435).
O verbo esticar, por exemplo, mencionado nas pesquisas dos
docentes indígenas, tem a ver com a dinâmica de movimento mencionada
por Manaijé – o espalhar. Segundo muitos professores indígenas os temas
contextuais se esticam do intra ao intercultural e dão sentido ao mundo
contemporâneo. Júlio Kamêr corrobora o exposto quando afirma que
aprendeu muito com seu avô, que nunca ensinou algo isolado, pois nada
está só no mundo. Segundo ele, ensinar um conhecimento exige a presença
de outros conhecimentos (Pimentel, 2013, p. 68).
O tema é assim mais do que uma simples oposição à disciplina. Ele
põe em movimento questões centrais da relação entre indígenas e a contem-
poraneidade. Ele favorece o diálogo, inclusive, como apontado acima por
Silvia Xerente, entre o universo da aldeia e o da cidade. E estabelece uma
dinâmica que favorece a reflexão sobre o mundo, mas do ponto de vista
indígena.
Segundo professores não indígenas do NTFSI, o tema contextual tem
como eixo a noção da problematização. Ele permite trazer as categorias
128 Alexandre Herbetta

indígenas e as não indígenas que perpassam o problema a ser estudado,


problematizando a questão da interculturalidade. Nessa direção, a dinâmica
do tema contextual se aproxima da ideia de educação problematizadora de
Freire (2001). Note-se que, ademais, os temas contextuais apontam para
novas práticas pedagógicas, permitindo uma variação maior de práticas e
recursos pelos professores.
Pode-se dizer, inclusive, que os temas contextuais buscam ter como
base os processos próprios de ensino e aprendizagem de cada povo, rela-
cionando-se com as diversas epistemologias indígenas e transformando a
educação escolar nas diversas comunidades.

TRANSFORMAÇÕES

Os temas contextuais, como exposto, produzem mudanças. A


passagem pela universidade – dos referidos professores indígenas – aponta
para transformações radicais. Transformações neles mesmos, em suas
escolas, nas diversas comunidades e na própria universidade.
Muitos dos temas pesquisados evidenciam estas transformações.
Uma das transformações tem a ver com o fato que os referidos professores
assumem posições de destaque em suas aldeias e no contexto das políticas
públicas educacionais na região. Nesse cenário, o jovem assumiu grande
destaque nas comunidades em questão, porque são entendidos como os
responsáveis pela transformação marcada nas relações estabelecidas na
escola e pela importância dada à instituição. Pode-se perceber, inclusive,
uma forte relação entre juventude e liderança.
Muitos dos professores indígenas assumiram a posição de diretor de
escola e alguns, ainda, a de cacique. Em muitos casos os mesmos profes-
sores alternam a posição de diretor e cacique. Note-se que nessas situações
há também uma relação de gênero. Se as mulheres professoras podem se
destacar, são os homens que assumem posições de maior poder. Ressalte-
se que passar pela universidade federal é valorizado na comunidade. Para
Renato Yahé Krahô, os jovens estão sendo escolhidos porque são percebidos
como capazes de realizar mudanças. Dessa forma, esses jovens devem saber
lidar com novas tecnologias como o celular, o computador, a universidade,
a legislação, o avião e a escrita, além de refletir sobre a tradição, apontando
para outra postura perante o mundo e para novos papéis da escola.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 129

Nessa direção, Rogerio Apinagé evidencia a relação entre tema


contextual, mudanças e contemporaneidade. Ele tem como tema de
pesquisa as novas lideranças Apinajé. Segundo ele, as lideranças atuais
têm a ver com a juventude, com a escrita e com o domínio do português.
Para Rogério, os caciques mais antigos algumas vezes não conseguiam mais
acompanhar as mudanças contemporâneas.
Em sala de aula, Rogério buscou descrever as cerimônias de
nomea­ção de cacique, as principais características do líder e as histórias
dos grandes líderes Apinajé, como Tekator e Mantuk – atuais nomes das
escolas. Seu objetivo é que as crianças valorizem mais o papel dos líderes, já
que estes buscam as melhorias para as comunidades, inclusive na educação.
Ele ressalta, então, a relação atual entre liderança e educação. Rogério, por
exemplo, foi chamado para ser cacique. Ele conta que “fui chamado para
ser cacique... Tô querendo, mas não agora, tô esperando meu estudo primeiro...
Inteirá 35 anos... Porque a comunidade confia em mim”.
De acordo com o Gilson Tapirapé, o professor deve conhecer seu
novo papel. Para ele, “o professor também é liderança, isso significa que
não somente o professor ensina a criança; existem vários papéis do professor
dentro da comunidade... Faz papel de professor, liderança e pai. Dirige a escola,
família e comunidade... deve estar dentro de tudo”. Para outro professor Tapi-
rapé, ainda, “o guardião antes eram os mais velhos, hoje são os professores –
conservadores – dão os conselhos às crianças, adultos, comunidade”.
Nesse cenário, o professor Sinval Xerente ressaltou a formação de
uma rede entre esses jovens professores. Segundo ele, “contribuímos uns com
os outros”, apontando para a noção de um movimento indígena unificado,
para além das diferenças culturais particulares a cada povo.
Muitos professores afirmam também que as transformações mencio-
nadas têm a ver com o que foi aprendido e produzido ao longo do curso
de Licenciatura Intercultural da UFG, ou seja, relacionado às noções de
interculturalidade, transdisciplinaridade, contextualização e descoloni-
zação, sempre mencionadas. E ao mesmo tempo, aos temas contextuais, aos
projetos extraescolares e às práticas de estágio pedagógico, que são igual-
mente valorizados. Pode-se falar assim que há uma apropriação do reper-
tório conceitual e terminológico da educação contemporânea, presente no
referido curso. E uma criação de novos paradigmas educacionais.
Note-se que a mudança também é visível nas práticas de sala de aula,
desvelando novas formas de ensino e aprendizagem nas comunidades, que
130 Alexandre Herbetta

se pode ver em alguns casos, mais participante. Nessa direção, segundo


o professor Indionor Karajá, isso se dá, por exemplo, “formando um outro
método diferente do anterior”. Segundo Indionor, pode-se ver a participação
ativa dos professores indígenas na matriz curricular, inclusive, na elabo-
ração de um novo calendário escolar baseado nas temporalidades especí-
ficas da comunidade e em outras características de uma pedagogia indígena.
Isso em oposição à teoria do ensino não indígena.
Em relação ao novo método proposto por Indionor, a matriz tem
como base a cultura – como já mencionado –, o que aproxima intrinseca-
mente a escola da comunidade. O professor Arakae Tapirapé corroborou o
exposto e disse que se deve envolver o parente nessa discussão. O método,
para ele, tem a ver com “a vida do dia a dia”. O professor Jonas Gavião
também concordou com seus colegas. Para ele, “estamos falando de refle-
xões pedagógicas e construções de escolas indígenas” ao mesmo tempo. Nesse
sentido, Gilson disse que se deve refletir mais sobre o papel do professor e
reformular os currículos das escolas.
Nesse contexto, segundo Creuza Krahô, “quando fala matriz curri-
cular, para nós, a gente era perdido... [agora] a gente já sabe.... sabe o que é o
planejamento... matriz curricular é... sabe o que vai fazer... as pessoas olha...
cuidado com seu conhecimento... precisa de alguém para soprar.... andar”.
Quando os alunos optam por um tema contextual, evidenciam
demandas comunitárias, problematizando-as do intra ao intercultural.
Nesse movimento, com o uso regular dos temas, vão se formando as
matrizes curriculares da nova escola indígena.
Para o professor Gilson Tapirapé, por exemplo, “nosso povo é bem
critico, e o objetivo da escola é refletir a nossa cultura”. Note-se que, segundo
os professores indígenas, estudar na universidade está permitindo isso.
Ainda segundo Gilson, a partir das transformações os professores fazem a
diferença, e se sentem responsáveis pelos alunos que vão formar. Para Julio
Kamêr, “a gente só vai mudar quando se compreender... saber e compreender
que somos Apinajé... e não é tão difícil conhecer a realidade do povo hegemô-
nico sem luta ... gente ser... reflita sobre si”.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 131

“REFLITA SOBRE SI”: A DINÂMICA DO TEMA


CONTEXTUAL COMO MODO DE REFLEXÃO
CRÍTICA SOBRE O CONTEMPORÂNEO

Como se pode notar, o uso dos temas contextuais, a partir dos


processos acima explicitados, reafirma os valores das diversas culturas
indígenas, fundamentando, portanto, uma outra educação indígena, como
exposto. Isso tem a ver com a ênfase na lógica cultural mencionada. Note-se
que tal processo é bastante diferente da noção de integração antes proposta
na educação escolar indígena (Pimentel, 2010, pp. 11-17), a qual buscava
apagar a diferença cultural.
Para um dos professores do curso, “a incompreensão do que seria
uma escola indígena, sobre qual escola queremos, sobre o que é ser indígena”
prejudicava a educação escolar indígena. Piiken, na mesma direção, diz
que antes “esquecendo a cultura... [agora] movimento dos temas... mudaram
bastante”. Segundo ele, ihtyj, por exemplo, é um princípio importante para
se entender a escola e a dinâmica dos temas. O termo se refere à ação de
“ficar vivo para sempre... revitalizar... valoriza coisa nossa”.
Dessa forma, parece que o que está exposto no texto, enfim, tem a
ver com um processo de tomada de consciência de uma posição no mundo,
processo que, segundo Dussel, tem a ver com uma libertação. Esta, não
acontece por si só, mas apenas em uma comunidade de seres humanos
que se libertam a si mesmos em relação a uma realidade que devem mudar
(2000, p. 443).
Pode-se dizer então que a libertação não aconteceria sem a “afirmação
plena e positiva da própria cultura em nossos dias no sistema mundial
vigente” (ibid., p. 420). Da mesma forma, para Júlio Kamer, a “educação é
uma ferramenta que pode transformar... [isto se] se compreendem na situa­ção
em que se encontram... acredito que pode mudar, mudando a consciê­ncia de
cada um vai crescendo a força... discutir de fato a experiência... na prática
coletiva”. Segundo o professor Apinajé, o contato com o mundo contempo-
râneo requer de antemão a consciência étnica de seu povo.
Os temas contextuais, como visto, têm essa preocupação como
centro. Eles trazem elementos da cultura classificada como tradicional
e à colocam em relação com a questão do contato intercultural. Isso faz,
como se pode notar, com que os alunos passem a conhecer sua cultura, mas
também faz com que os professores passem a refletir sobre ela. Os exemplos
132 Alexandre Herbetta

são muitos. Um professor Xerente, por exemplo, disse que antes não de
preocupava com a cultura dele. Com o trabalho na escola, ele passa a ter
consciência dessa cultura, mudando sua visão de escola, índio e mundo.
A dinâmica do tema contextual permite assim ao índio se conhecer.
Vê-se, então, que o projeto de uma escola indígena diferenciada está ligado
à autorreflexão do (sobre o) sujeito índio no século XXI. Nessa direção,
Dussel já afirmara que deve haver uma apreensão da realidade por um viés
crítico “em que a realidade se dá agora como um objeto cognoscível em
que o homem assume uma posição [...] em que procura conhecer” (2000,
p. 437). Para o autor, deve haver: “o descobrimento feito pelas próprias
vítimas, primeiramente, da opressão e exclusão que pesa sobre sua cultura
[...] a tomada de consciência crítica e autorreflexa sobre o valor do que lhe
é próprio” (ibid., p. 420).
A afirmação se aproxima do que Freire já dissera. Segundo ele,

é preciso que [o sujeito] seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele.
Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona sua consciência
deste estar, é capaz sem dúvida, de ter consciência desta consciência condi-
cionada. (1983, p. 16)

Para o autor, ainda, a possibilidade de reflexão sobre si, “seu estar no


mundo” (ibid.) está intrinsecamente ligada a práxis.
Na mesma direção, pode-se dizer que Cunha (2009) trata desse
processo, a partir de uma perspectiva particular. Segundo ela, há um amplo
processo em voga no qual os povos indígenas tomam consciência de suas
lógicas culturais, e usam então sua “cultura” (com aspas) como instru-
mento de comunicação no mundo de hoje. Isso pode ainda ser relacionado
em paralelo a autorreflexão ou a um movimento reflexivo. A “cultura”
sendo uma espécie de metadiscurso sobre a cultura (ibid., p. 363).
Dessa forma, a autora diferencia cultura com e sem aspas. A cultura
sem aspas seria essa espécie de sistema de condutas, valores e percepções,
naturalizado nos diversos agrupamentos humanos e, consequentemente, com
lógica inconsciente. A “cultura” seria, em oposição, a consciência do uso e da
importância de determinados valores e itens em relação ao outro, especial-
mente importante no contexto do contato interétnico do mundo contempo-
râneo. Note-se que Turner já havia chamado a atenção para o fato em 1991,
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 133

mostrando como “cultura” (com aspas) se tornara um importante recurso


político para os Kayapó (p. 368). Dessa forma, “na medida em que se aplica
ao sistema interétnico, a ‘cultura’ participa desse mundo real” (p. 372).
Note-se, ainda, como já foi colocado, que os referidos professores
indígenas têm plena consciência desse movimento de percepção cultural.
Esse processo de entendimento dos usos da cultura e da “cultura” foi abor-
dado, por exemplo, em outros termos, pelo professor Sinvaldo Wahuká.
Nessa ocasião, Sinvaldo falou que é necessário um movimento para a trans-
formação do mundo em direção a algo mais justo. Ele se referiu também
a necessidade de uma tomada de consciência das populações indígenas
acerca da contemporaneidade e, a partir daí, à promoção de uma série de
transformações sociais. Para Wahuká, o índio não deve esperar que o não
índio produza essa transformação. Ele deve agir.
Outros professores corroboram o exposto. Para outro professor
Karajá, “enquanto esperamos do outro, ficamos sentados... agora estamos
refletindo o PPP que tem ou não tem na escola, o tipo de material que há na
escola, material didático que não provoca reflexões e discussões não propiciam
educação”. Nesse sentido, um professor declarou que a educação “mais do
que estática, é consciência da cultura”.
Pode-se dizer então que a escola indígena, a partir da dinâmica
mencionada, busca tratar de promover uma tomada de consciência da
própria lógica cultural da comunidade e de sua contextualização em relação
ao mundo contemporâneo. E que esse processo é visto por todos como uma
conquista de autonomia.
Parece-me, portanto, que, por fim, a dinâmica do tema contextual
permite gerar uma consciência reflexiva em determinada população e,
consequentemente, a consciência de sua posição no mundo contempo-
râneo. E que, a escola indígena, através dos temas contextuais, aponta para
um modo particular de se saber índio e se posicionar na contemporanei-
dade, o que só é possível, para Dussel, “a partir da afirmação de seu próprio
ser valioso” (2000, p. 421).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento, os diversos povos indígenas que participam do NTFSI


passam por um processo de construção das matrizes curriculares de suas
escolas indígenas. Isso acontece especialmente ao longo do curso de
134 Alexandre Herbetta

especialização em Educação Intercultural e Transdisciplinar: gestão peda-


gógica. Nele, os professores referidos, reunidos em seu comitês refletem,
debatem e produzem o PPP de suas escolas. Note-se que o processo é
sempre produzido em diálogo com as respectivas comunidades. Em todos
os documentos, há a presença dos temas contextuais e da dinâmica acima
explicitada, buscando produzir profundas transformações na educação
escolar indígena e a fundamentação de uma escola diferenciada.
O próprio NTFSI, com 7 anos, começa um processo de reflexão sobre
seus princípios e dinâmicas. Tal processo se dá especialmente no colegiado
do curso que busca refletir e sistematizar a enorme riqueza produzida por
todos ao longo do tempo. Um dos assuntos chave é justamente as possibi-
lidades implícitas a partir do uso dos temas contextuais. A enorme riqueza
produzida pelos professores indígenas através de suas pesquisas e relatórios
é a base desta reflexão.
A própria UFG começa a se voltar para a experiência do núcleo que
apresenta índices excelentes de formação, continuidade e produção de
conhecimento entre os docentes-discentes indígenas. Números, inclusive,
opostos aos observados em outros programas que trabalham com popula-
ções indígenas.
Parece assim que a construção de uma matriz currizular baseada
na noção de tema contextual é uma forma de posicionamento no mundo
contemporâneo. E que essa posição tem a ver com a produção da diferença
cultural, em detrimento da tentativa constante do Estado nacional brasileiro
em eliminá-la. Essa pode ser uma forma de se garantir condições dignas de
vida entre as populações indígenas referidas através da educação escolar.

REFERÊNCIAS

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______ (2001). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
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Perspectivas acerca de transformações através da educação escolar
indígena. Cadernos do LEME, Campina Grande, v. 5, n. 1, jan./jun.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 135

MUNDURUKU, D. (2012). O caráter educativo do movimento indígena brasi-


leiro (1970-1990). São Paulo, Ed. Paulinas.
PIMENTEL, M. do S. (2010). “Reflexão político-pedagógica sobre educação
bilíngue”. In: ______ e BORGES, M. V. (orgs.). Cidadania, intercultu-
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gógicas contextualizadas e emancipatórias”. In: ______ e BORGES,
M. V. (orgs.). Educação intercultural experiências e desafios políticos
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______ (coord); FERNANDES, J. A.; ROCHA, L. M.; LAZARIN, M. A.;
ROSA, D. E. G. (orgs.) (2006). Projeto Político Pedagógico do Curso
de Licenciatura Intercultural Indígena da UFG. Goiânia, Universidade
Federal de Goiás.
Projetos extraescolares das turmas de 2007, 2008, 2009 e 2010.
Relatórios de estágio das turmas de 2007, 2008, 2009 e 2010
TURNER, T. (1993). “De cosmologia a História: resistência, adaptação
e consciência social entre os Kayapó”. In: CASTRO E. V. de e
CARNEIRO C. da C. (orgs.). Amazônia: etnologia e história indígena.
São Paulo, NHII, pp. 43-66.
Escolas indígenas e currículos
interculturais em Mato Grosso:
avanços e desafios
Darci Secchi1

Diversas sociedades indígenas latino-americanas convivem com algum tipo


de escola há quase quinhentos anos; outras, passaram a conhecê-la recente-
mente, em decorrência do processo de expansão capitalista e da sociedade
moderna. Em ambos os casos, porém, a instituição escolar se configurou
como elemento externo às suas culturas. Ainda que sua forma tenha sido
expressa sob diferentes enfoques, o seu conteúdo colonial predominou em
todas as relações interculturais.
Se retornarmos ao passado dos “descobrimentos”, perceberemos
que os debates acerca da escolarização de indígenas tinham, como cenário,
o confronto visual dos colonizadores com os habitantes das terras recém-
-conhecidas. Discutia-se o estatuto desses seres naturais e o lugar que lhes
caberia no projeto de exploração. A questão que se apresentava para a
escola era declará-los humanos e, tendo alma, educá-los na fé cristã. A
controvérsia2 acerca da natureza humana dos índios perdurou por dois
séculos e, a partir dela, estabeleceram-se os contornos da colonialidade
em todos os países latino-americanos.
No Brasil, o ideário colonial ensinado nas missões e nas escolas
religiosas predominou por quatro séculos e se manteve hegemônico, com
algumas variações, até os nossos tempos.3 Nas últimas décadas, porém,

1 Graduado em Pedagogia. Mestre em Educação, doutor em Ciências Sociais. Professor da Univer-


sidade Federal do Mato Grosso – UFMT. <http://lattes.cnpq.br/7107862599307776>
2 Para Clastres (1988), o dilema consistia em afirmar os índios “criaturas de Deus” e, ao mesmo
tempo, promover sua captura e escravização. A saída legal encontrada para burlar a interdição e pro-
mover guerras aos nativos se daria com a declaração (unilateral) da “prática antropofágica”.
3 A última missão jesuítica para índios em regime de internato funcionou até o ano de 1971. Estava
instalada em Utiariti, uma antiga estação telegráfica de Rondon, no médio-norte mato-grossense. Por
suas escolas passaram centenas de jovens e crianças de diversas etnias daquela região. Informações
138 Darci Secchi

verificaram-se significativas mudanças no tratamento da temática educa-


cional. Os próprios índios passaram a debater os programas de escolari-
zação e a exigir uma escola voltada para seus interesses e necessidades. A
educação escolar se tornou uma política pública; um direito de cidadania.
A diversidade cultural foi aceita formalmente na legislação, assim como os
direitos específicos e a liturgia diferenciada para suas escolas. Tais avanços
indicaram um porvir de cidadania, de respeito e de valorização das socie-
dades indígenas contemporâneas.
Hoje já não se discute se os índios têm ou não têm alma, se devem,
ou não, ser “civilizados”, mas se aceita que sejam declarados cidadãos com
direitos específicos e diferenciados. A secular matriz colonial, porém, não
foi totalmente superada. As atuais leis e regulamentos foram produzidos
apenas com a “audiência” dos índios, ou “contaram com a participação das
comunidades”. Ou, dito de outra forma: a legislação admitiu a alteridade e
tolerou a diferença, mas se resguardou o direito de lhes conceder tais direitos.
Segundo Brand (1988b), ao delimitar os assuntos indígenas4 aos
cânones jurídicos, avançou-se apenas no arcabouço legal, esquecendo-se
do verdadeiro “confinamento geográfico e social” a que os indígenas foram
submetidos. Para o autor, essa estratégia de ação representa nova fase da
colonialidade que pretende solucionar o problema das diferenças, confi-
nando-a em favelas, acampamentos e reservas. Como sua mão de obra já
não é mais necessária ao projeto colonial, melhor integrá-los, isso é, torná-
los invisíveis em um meio social marginal. E essa tarefa cabe especialmente
à escola indígena, a nova instituição que se consolida, inexoravelmente, em
todas as aldeias das florestas, dos campos e cerrados e, mais recentemente,
também do meio suburbano brasileiro.
É dessa nova configuração das escolas indígenas, de seus avanços e
desafios, que trataremos especificamente neste capítulo.

O DISCURSO OFICIAL SOBRE AS ESCOLAS INDÍGENAS

O modelo integracionista de educação escolar para índios está asso-


ciado, no Brasil, ao binômio proselitismo doutrinário (religioso ou não) e

detalhadas sobre o assunto podem ser encontradas em Fernandes da Silva (1999); Pivetta (1993);
Arruda (1992) e Costa (1985). Os padres salesianos ainda mantêm diversas missões religiosas para
índios em Mato Grosso e em outros estados do Brasil.
4 Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”;
Silva (1994) e outros preferem “questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos, variantes que são.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 139

à preparação para o trabalho. Com esses propósitos, atuaram as missões


católicas, as escolas pombalinas, a educação positivista, os missionários e
linguistas de diferentes confissões evangélicas cristãs.
A partir da década de 1950, insuflados pelos ares da modernidade
e das novas relações internacionais do trabalho, passaram a ser incorpo-
rados, nos países do chamado Terceiro Mundo, novos instrumentos jurí-
dicos e novos objetivos para a educação escolar das “populações tribais e
semitribais”. A Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho
– OIT (1957) preconizou, entre outros direitos, a garantia de educação em
todos os níveis (art. 21); a realização de estudos antropológicos prévios
à elaboração de programas escolares (art. 22); a alfabetização em língua
materna seguida de educação bilíngue (art. 23); uma campanha de combate
ao preconceito (art. 25) e a divulgação dos direitos e obrigações sociais e
trabalhistas através de informações escritas nas próprias línguas (art. 26).
Somente uma década mais tarde esses dispositivos ingressaram no mundo
jurídico brasileiro e só se materializaram, de fato, na Constituição Federal
de 1988. Mesmo assim, careciam de mais explicitações, o que seria forma-
lizado apenas em meados da década de 1990, com a publicação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9394/96).
Como vimos, nos últimos anos, multiplicaram-se e aperfeiçoaram-
se os instrumentos jurídicos e administrativos concernentes à criação,
implementação e reconhecimento das escolas indígenas. No entanto, as
mudanças tiveram apenas um alcance formal e não significaram um rompi-
mento conceitual com o modelo escolar anterior. A um observador atento,
caberá perguntar se o atual paradigma da escola específica, diferenciada,
bilíngue e intercultural, isso é, da escola adaptada formalmente à clientela,
não é a antiga escola colonial, apenas que fantasiada de novos adjetivos.
Esse consenso virtual acerca de seus atributos não é, por si só, motivo de
inquietação epistemológica? Desde onde partem tais formulações e quais as
matrizes conceituais que as inspiram?
Ora, o atual modelo de escola indígena teve sua origem associada à
Convenção 107 da OIT, que redefiniu as relações internacionais do trabalho
e ensejou incorporar as populações do “Terceiro Mundo” ao projeto liberal.
Naquele contexto e sem nenhuma maquiagem, propôs-se às escolas indí-
genas a função de agências padronizadoras de identidade e disponibiliza-
doras de mão de obra.
140 Darci Secchi

Vejamos como tais propósitos foram expressos:

Art. 24 - O ensino primário deverá ter por objetivo dar às crianças perten-
centes às populações interessadas conhecimentos gerais e aptidões que as
auxiliem a se integrar na comunidade nacional.
[...]
Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...] com o objetivo de lhes
fazer conhecer seus direitos e obrigações especialmente no que diz respeito
ao trabalho e os serviços sociais. (Grifos meus)5

Assim concebidos, os programas escolares – e as suas adaptações –


foram formulados anterior e exteriormente à participação das sociedades
indígenas, limitando-as apenas ao seu cumprimento.
Essa perspectiva se encontra explícita também na atual LDB, ao
preconizar que “Os seus programas serão planejados com a audiência
das comunidades indígenas” (artigo 79, parágrafo primeiro, grifo nosso).
Segundo a lei, as agências externas – governos, academias, conselhos –
planejarão os programas das escolas, com a audiência indígena, e não o
inverso: “as comunidades indígenas planejarão seus programas com a
audiên­cia do poder público, dos conselhos e da academia”.
A atual legislação reafirmou sua origem colonial e deixou de contem-
plar uma premissa fundamental para a superação do modelo escolar inte-
gracionista, qual seja, a possibilidade de iniciativa das sociedades indí-
genas no processo de conceber, planejar, executar e gerir seus currículos
e programas educacionais. Resguardou o direito de outorgar direitos. Os
índios permaneceram na qualidade de ouvintes e não de propositores de
suas próprias políticas. Por força da lei, continuaram meros expectadores
ou atores coadjuvantes, sem direito ao voto nem ao veto...
Um segundo aspecto problemático desse modelo escolar diz respeito
à sua adjetivação como “escola bilíngue”.
Em sua primeira formulação, denominada “bilinguismo de tran-
sição”, propunha-se assegurar “a transição progressiva da língua materna
ou vernacular para a língua nacional ou para uma das línguas oficiais do
país”. (OIT, 1957, artigo 23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída no
Brasil aos missionários-linguistas do Summer Institute of Linguistics – SIL,

5 Posteriormente, na Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho


(Genebra, junho de 1989), foram revisadas essas proposições e acrescentadas outras diretrizes, tais
como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho a decidir sus
proprias prioridades” [...].
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 141

através de uma Portaria da Funai (75/72) que conferiu à agência norte-


americana o status, o privilégio e o foro “oficial” referente aos assuntos
linguísticos para escolas indígenas. Segundo o antropólogo Márcio Silva
(1999, p. 10), a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha, “que até mesmo
as ferramentas analíticas desenvolvidas pelos linguistas do SIL passaram a
figurar dos documentos oficiais”.6
As críticas ao modelo do bilinguismo de transição não tardaram a se
avolumar, afinal, tratava-se da mais “repulsiva forma de etnocídio” (ibid.,
p. 10). Mesmo assim, perdurou por três décadas, até ser substituído na
legislação escolar por sua abordagem antagônica, aqui denominada de bilin-
guismo compulsório. Se, antes, a educação escolar pretendia a substituição
gradativa das línguas indígenas pelo português, agora a situação se inver-
teria. O bilinguismo passou a ser característica inerente às escolas indígenas,
e seus estudantes deveriam ser, compulsoriamente, bilíngues.
O documento Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar
Indígena, produzido pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC e
lançado em 1993, não deixou dúvidas:

A escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo,
na qual, ao mesmo tempo em que assegura e fortalece a tradição e o modo
de ser indígena, fortalecem-se os elementos para uma relação positiva com
outras sociedades. [...] Como decorrência da visão exposta, a educação
escolar indígena tem que ser necessariamente específica e diferenciada,
intercultural e bilíngue. (MEC, 1993, p. 12; grifo meu)

Parece óbvio que essa formulação generalista carece de sustentação,


embora não se questione a adoção do bilinguismo em situações sociolinguís-
ticas diglóssicas. Seu ponto crítico reside na formulação como modelo tipo-
lógico obrigatório e único para as escolas indígenas. Poderíamos perguntar,
por exemplo, como se daria o ensino bilíngue em escolas indígenas cujos
alunos são monolíngues em português? Ou, inversamente, como seria a
escolha de apenas duas línguas em situações de multilinguismo?
Essas realidades, brilhantemente debatidas por Silva (1994, p. 13),
longe de tratar-se de “meras exceções”, correspondem a uma expressiva
parcela da população indígena brasileira. São inúmeros os casos em que
“coexistem, em um mesmo contexto, mais de uma língua indígena e os

6 Uma análise crítica sobre a atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em
outros trabalhos da autora.
142 Darci Secchi

casos em que a ‘língua indígena’ é a própria língua nacional”.7 Portanto, a


escola verdadeiramente indígena não é necessariamente bilíngue, embora o
bilinguismo possa ser atualmente recorrente em muitas escolas.
Ora, mais do que uma adjetivação obrigatória para as escolas indí-
genas, o ensino bilíngue deveria constituir-se numa opção das comuni-
dades e, como tal, poderia compor ou não o currículo e o cotidiano de suas
escolas. Essa escolha, porém, mais uma vez foi subtraída das comunidades
e impingida como um direito estabelecido pela legislação. Mais uma vez,
admitiu-se a diversidade e domesticou-se a diferença, sem, contudo, abrir
mão do direito de conceder direitos.
O mesmo vício colonial ocorre com os dois adjetivos restantes: as
escolas indígenas devem ser específicas e diferenciadas. Esses direitos compul-
sórios, anunciados e cultuados como “novos avanços”, ratificam a perspec-
tiva discriminatória e de desqualificação das minorias étnicas e culturais. As
escolas indígenas – como também as escolas rurais, ribeirinhas e das favelas
– devem ser específicas e diferenciadas para “reproduzir os conhecimentos
próprios”, isso é, para reproduzir a negação cultural, a negação identitária e
a negação da cidadania, elementos que compõem a essência do cotidiano de
quem se sabe e se reconhece historicamente discriminado.
Talvez resida aí a dificuldade de os professores e lideranças indí-
genas perceberem os currículos diferenciados como algo positivo para suas
escolas. “Até agora só sabemos o que é diferenciado para pior e nunca para
melhor”, alertava já, em 2001, o presidente da Associação Terra Indígena
do Xingu – Atix, Marawê Kayabi, ao debater a regularização das escolas
xinguanas. Como se percebe, uma política de reconhecimento de direitos
também pode ser etnocêntrica ou alienante à medida que os define e os
expressa em sua própria gramática.

REPENSANDO O CURRÍCULO
DAS ESCOLAS INDÍGENAS

A atual concepção hegemônica acerca das escolas indígenas resume-


se, como vimos, aos quatro adjetivos há pouco comentados – específica,
diferenciada, bilíngue e intercultural –, e a uma atitude valorativa de respeito

7 O autor destaca na Amazônia o mutilinguismo no alto rio Negro e, como monolíngues em portu-
guês, diversas comunidades do médio Solimões e baixo rio Madeira. O mesmo ocorre com diversas
sociedades indígenas do Nordeste brasileiro.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 143

à diversidade e aos processos pedagógicos próprios. É preciso, portanto, subs-


tantivar essa versão conjuntiva de escola indígena com ingredientes que
espelhem a pluralidade das situações escolares atualmente existentes.
Uma excelente contribuição nesse sentido foi apresentada pelo histo-
riador Antonio Brand (1998b, p. 7), para quem as escolas indígenas devem
atender a dois desafios principais: a) “ser um instrumento de afirmação
étnica e de coesão interna a serviço dos projetos de autonomia de cada povo
ou comunidade” e, b) capacitar individual e coletivamente cada pessoa,
comunidade e povo indígena para o enfrentamento e ocupação dos espaços
de participação em âmbito regional e nacional.
Um entendimento similar pode sem encontrado também em Maher
(1996), Meliá (1997; 1998) e Dias da Silva (1997), que caracterizam
as escolas indígenas com os seguintes atributos: a) uma nova instituição
educacional, a serviço de cada povo; b) um instrumento de afirmação
e reelaboração cultural; c) um elemento que contribui na conquista de
espaço político; d) uma alternativa aos modelos anteriores de “escolas para
os índios”; e um lugar onde se articulam os conhecimentos tradicionais e
os novos conhecimentos; f) um espaço em que se disponibilizam informa-
ções decorrentes do contato; g) uma possibilidade de construção de rela-
ções igualitárias, do reconhecimento e do respeito individual e social; h)
um espaço de construção da contraideologia.
Para a professora Mariana Leal Ferreira (1992a), cada povo desen-
volve alternativas de ação e implementam dinâmicas próprias para fazer
frente à situação de contato. A escola aparece como um dos instrumentos
a serem acionados, ora como espaço de construção de identidades étnicas,
ora como instância de interlocução com a sociedade não índia. Para a
autora, são os índios que têm o “direito de definir as próprias concepções
de educação escolar, de acordo com os processos tradicionais de aprendi-
zagem e os interesses de cada sociedade” (ibid., p.179).
É nessa direção que se encaminham também as proposições dos
professores indígenas, ao definirem as principais competências dos currí-
culos escolares. Para eles, o currículo das escolas indígenas deve expressar
as práticas sociais e culturais de cada comunidade e disponibilizar os
conhecimentos autóctones e das ciências, de modo que possam ser utili-
zados adequadamente em cada realidade concreta.
No entanto, ainda existe um hiato preocupante entre o que é pensado
(idealizado) nos cursos de formação e o que é vivido (realizado) nas escolas
144 Darci Secchi

das comunidades. Ou, nas palavras de um acadêmico do curso de licencia-


tura Indígena: “Imaginamos um tipo de escola, mas fazer na realidade o que se
aprende não é fácil. Só alguns conseguem” (apud Secchi, 2005, p. 26).
De fato, conjugar a racionalidade científica ocidental com as dos
sistemas de saberes indígenas não é tarefa fácil. Somam-se a ela outros
aspectos intracurriculares, como as ênfases teóricas e metodológicas, os
recortes das áreas, a lógica do conteúdo, a organização disciplinar, as estra-
tégias de avaliação, etc. e teremos uma pequena amostra da complexidade e
do desafio que envolve a composição dos currículos das escolas indígenas.
É nesse misto de angústia e incertezas que os professores indí-
genas e as agências formadoras (universidades, secretarias, etc.) se sentem
como “aprendizes de feiticeiros”, na busca de caminhos para a produção
de currículos convergentes com os interesses e necessidades indígenas. De
outra parte, é compreensível que alguns se dizem “contemplados” quando
recebem, já impressos, os “subsídios oficiais” na forma de diretrizes, parâ-
metros ou referenciais que balizam (norteiam!) as atividades docentes.
Esse dilema, aparentemente insolúvel, de gerar currículos especí-
ficos e, ao mesmo tempo, assegurar o “marco nacional”, foi encaminhado
de forma inovadora, recentemente, em Mato Grosso. Por se tratar de uma
iniciativa inédita e que poderá ensejar replicações em outras regiões, apre-
sentarei a seguir breve síntese dos seus principais contornos.

A construção coletiva de orientações curriculares


para escolas indígenas

A construção coletiva de orientações curriculares voltadas para a


realidade concreta de cada povo ou comunidade indígena foi uma inicia-
tiva interinstitucional e intercultural desenvolvida em Mato Grosso, entre
os anos de 2009 e 2012. Teve como principais articuladores o Conselho de
Educação Escolar Indígena e a Secretaria de Estado de Educação e contou
com a participação de representantes das comunidades e das instituições
que atuam com essa temática educacional.8
Para assegurar que as proposições geradas nos diferentes âmbitos
fossem apreciadas, adotou-se uma dinâmica em que as comunidades

8 Além das instituições proponentes, participaram professores e diretores das escolas indíge-
nas, representantes da Universidade Federal de Mato Grosso, Universidade do Estado de Mato
Grosso, Fundação Nacional do Índio, Secretarias Municipais de Educação e de organizações não
governamentais.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 145

discutiam seus projetos nas comunidades. Em seguida, participavam de


reuniões nos polos regionais e, finalmente, sistematizavam as diversas
proposições na forma de um documento geral de âmbito estadual. Com essa
estratégia, cada escola pôde produzir coletivamente o seu projeto e contri-
buir para a formulação das orientações curriculares para as demais escolas.
Para suscitar a reflexão e instigar a participação, foi elaborada uma
questão diretiva considerada fundamental ao tratar do currículo escolar
das escolas indígenas. Tomando-a sempre como um mote provocativo,
perguntava-se ao iniciar os debates: “Que escola indígena precisamos para
fortalecer nossa cultura, dominar novos conhecimentos, ampliar nossa
autonomia e sermos construtores de uma sociedade mais justa, saudável e
feliz?” (Seduc, 2010, p. 251).
As contribuições geradas nos três âmbitos de elaboração (escolas,
polos regionais e estaduais) foram organizadas por eixos temáticos,9 de
modo a facilitarem a aproximação do conteúdo e a articulação entre as áreas
de formação (linguagens; ciências humanas; ciências naturais e matemá-
tica). Essa estratégia se mostrou adequada também como mediação inter-
cultural ao destacar nos currículos os conhecimentos tradicionais de cada
povo e os saberes advindos das relações com outros povos e com a socie-
dade moderna. A proposição de currículos escolares, mediados pelo diálogo
intercultural e interinstitucional, tornou-se opção política e metodológica
eficaz pela oportunidade de aprendizado, tanto para as instituições quanto
para as comunidades.
Dada a riqueza e a peculiaridade das proposições colhidas nesse
processo, reproduziremos, a seguir, alguns dos eixos temáticos e respectivos
enunciados, elaborados coletivamente pelos participantes dos eventos.
Vários deles passaram a ser utilizados como orientações curriculares nas
escolas indígenas das redes municipais e estadual de Mato Grosso:

a) Diversidade étnica e cultural


Atualmente vivem em território mato-grossense dezenas de socie-
dades indígenas e muitos outros grupos e pessoas oriundas de diversos
estados e países. A escola indígena precisa saber lidar com tamanha diversi-
dade cultural na sala de aula e fora dela. Para tanto, deve respeitar e valorizar

9 Definidos como “temas (assuntos) abrangentes que facilitam o desenvolvimento integrado do


currículo no interior de uma área de estudo, de um ciclo ou entre os diversos ciclos que compõem os
diferentes níveis de ensino” (Seduc, 2010, p. 251).
146 Darci Secchi

as características étnicas e culturais dessas populações; deve trabalhar com


temas como o conhecimento da história, língua, direitos e expectativa de
cada povo; deve lutar contra o preconceito, a discriminação, a opressão e
a intolerância e promover a solidariedade entre os povos. Além disso, deve
estar intimamente vinculada a todas as formas de expressão cultural da
comunidade, como a língua, os rituais e as artes (música, pintura, dança,
etc.), entre outras.

b) Planeta Terra, ambiente e biodiversidade


O Planeta, o seu ambiente e a sua biodiversidade são patrimônios
fundamentais das sociedades humanas, portanto, merecem todos os nossos
cuidados. A Mãe Terra deve ser respeitada em todos os seus aspectos e
potencialidades (físicos, biológicos, ambientais, etc.) de maneira que a inte-
ração entre os seres humanos e a natureza seja sustentada e duradoura. A
atual “crise ambiental” deve ser interpretada pela escola indígena como um
exemplo impróprio de lidar com os recursos naturais e ambientais, com
as prioridades econômicas e com os valores das sociedades modernas.
O currículo das escolas deve contemplar essa temática em seus aspectos
locais (como a sua comunidade lida com a terra, com o ambiente e com a
biodiversidade) e em seus aspectos mais amplos, verificando o modelo de
ocupação e desenvolvimento regional, nacional e mundial.

c) Terras indígenas, organizações e direitos indígenas


Os direitos humanos em geral e os direitos indígenas em particular
são temas fundamentais dos currículos escolares. O direito à vida, à terra e
aos modos próprios de organização e representação são previstos na Cons-
tituição Federal e são adotados pelas sociedades indígenas como estratégias
de manutenção cultural e da sua autodeterminação. No momento em que
toda a sociedade retoma o debate acerca dos direitos indígenas, as escolas
não podem deixar de discutir as especificidades das políticas públicas, a
demarcação, uso e conservação das terras indígenas e as suas formas de
organização e de representação, por se tratar de temas fundamentais para a
construção da sua autonomia, liberdade e cidadania.

d) Segurança alimentar, trabalho e autossustentação


A escola indígena não pode desconsiderar a situação de carência em
que vive uma significativa parcela da população indígena de Mato Grosso.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 147

Para obter o autossustento com dignidade os povos indígenas atualmente


necessitam de diferentes fontes de renda, tais como os projetos de desenvol-
vimento coletivos e as alternativas individuais de trabalho remunerado. A
escola pode contribuir para criar alternativas de trabalho, emprego, renda,
utilização sustentada da terra e dos recursos naturais, agregação de valor em
produtos naturais e artesanais, comercial e manipulação de valores, gestão
política, econômica e financeira, entre outras. Para tanto, cada comunidade
verificará as suas necessidades específicas e dirigirá as ações curriculares no
sentido de supri-las e ou de buscar alternativas para o seu equacionamento.

e) Educação para saúde


A saúde indígena também tem sido um tema de preocupação tanto
das comunidades quanto do poder público. Ao destacar esse eixo temático,
pretende-se que as escolas e os órgãos de atendimento à saúde discutam os
ensinamentos tradicionais, as atitudes, comportamentos e práticas pessoais
e coletivas relativas à saúde e que possam compartilhar esses conheci-
mentos com toda a comunidade. Não se trata de enfocar apenas as doenças,
suas causas e consequências, mas de educar para que todos possam ter uma
vida saudável sem violência, stress e outros males que atingem as socie-
dades contemporâneas. Os assuntos relacionados à sexualidade, DSTs e
alcoolismo têm sido sempre objeto de grande preocupação nas comuni-
dades indígenas de Mato Grosso.

f) Ética, justiça, solidariedade e paz


Esse eixo temático trata da conduta que as pessoas e as sociedades
devem desenvolver para que tenhamos uma vida digna e feliz. A escola deve
construir a cultura da paz, da justiça e da igualdade entre todas as pessoas,
povos e nações. As sociedades indígenas são reconhecidas pela generosi-
dade, hospitalidade, respeito às coisas sagradas, aos mortos e à natureza. A
escola pode contribuir para consolidar essa conduta e confirmar a opinião
de que podemos viver numa sociedade unida e fortalecida por laços de soli-
dariedade e respeito mútuo (Seduc, 2010, pp. 251-253).

Como pode se observar, são proposições que expressam os modos


próprios das sociedades indígenas perceberem o mundo e suas relações
148 Darci Secchi

sociais e com a escola, sem deixar de tratar dos temas advindos das relações
interculturais, especialmente daqueles que afetam diretamente seus modos
de vida e de subsistência.
Para cada um dos temas geradores relacionados nos currículos esco-
lares, foi associado um inventário de assuntos (ou conteúdo) que poderão
ser tratados pelos docentes em cada área de conhecimento nos diferentes
ciclos de formação. Dessa forma, o conteúdo curricular apresentado e deba-
tido numa espiral de complexidade crescente perpassa o currículo, desde os
ciclos iniciais até o final do ensino básico.
A título de exemplo, destacaremos, a seguir, o conteúdo proposto
para um dos temas (Educação para a Saúde) referentes ao primeiro ciclo de
formação e ao terceiro ciclo (equivalente ao de conclusão do ensino funda-
mental), indicando tal dinâmica.

EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE


SUGESTÕES DE CONTEÚDO PARA O PRIMEIRO CICLO

Sentidos: tato, audição, olfato, paladar e visão;


Água potável e água poluída;
Água: cuidados, utilização;
Alimentação que prejudica a saúde;
Alimentação saudável;
Alimentação tradicional: vegetal e animal;
Alimentos industrializados;
Alimentos tradicionais e seus sabores;
Hábitos de higiene;
Higiene bucal;
Higiene pessoal, ambiental e dos objetos.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 149

EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE


SUGESTÕES DE CONTEÚDO PARA O TERCEIRO CICLO

A história das ervas medicinais e suas regras de uso (dietas, resguardos, e alimentação
de acordo com o gênero);
A função social das parteiras, pajés e benzedores;
Problemas da obesidade;
Sensibilização e prevenção sobre drogas lícitas e ilícitas;
A contribuição dos pajés para a saúde;
Saúde mental (o respeito nas relações com a natureza e o mundo dos espíritos);
A importância do alimento tradicional;
A história da saúde e das doenças (relações do organismo humano com o meio
ambiente);
Educação sexual, DSTs e AIDS (envolvendo a participação dos agentes indígenas
desSaúde – AIS);
Saúde e ambiente: impactos e conflitos;
Água potável e água poluída;
Alimentação do dia a dia: efeitos dos alimentos industrializados;
Alimentação que prejudica a saúde;
Alimentação saudável;
Alimentação tradicional, comidas típicas;
Alimentação tradicional: vegetal e animal;
As consequências do uso em excesso dos alimentos industrializados;
Compra de produtos tradicionais para a merenda escolar;
Concepção da saúde e doenças e suas relações com a natureza;
Consumo e produção de lixo;
Desnutrição de crianças, jovens e adultos;
Doenças sexualmente transmissíveis (DSTs)
Hábitos de higiene;
Higiene pessoal, ambiental e dos objetos;
História do uso das ervas medicinais pelos especialistas tradicionais;
Leitura e interpretação de bulas de medicamentos farmacêuticos;
Lixo (sólido, líquido, perigoso);
Descarte do lixo em locais adequados;
Medicinas tradicionais e doenças modernas;
Meio ambiente e saúde;
Período de gravidez e resguardo;
Saneamento básico e higiene pessoal;
Seres vivos e sua relação com o meio e a saúde;
Valorização das ervas medicinais.
Fonte: Seduc (2010, pp. 270; 289).

Essa pequena amostra, pontual, evidencia o aprofundamento cres-


cente do conteúdo curricular nos respectivos ciclos de formação, mas
também revela a preocupação com a interculturalidade e com a interdis-
ciplinaridade. Cada tema de estudo é bastante específico para abordar as
150 Darci Secchi

questões locais, mas é igualmente amplo para abarcar as demais realidades.


Um movimento similar ocorre também com relação às áreas de conheci-
mento, uma vez que o recorte temático facilita a articulação entre os saberes
e desconstrói os limites disciplinares.
No eixo temático denominado Segurança alimentar, trabalho e autos-
sustentação, ao tratar de temas como degradação dos solos, monocultura,
desmatamento, grandes projetos agropecuários, estradas em terras indígenas,
exploração madeireira e mineral, etc., o currículo escolar trata, a um só
tempo, do local e do geral; do disciplinar e do multidisciplinar; do cultural
e do intercultural. A mesma dinâmica ocorre nos demais eixos e respectivo
conteúdo curricular.
Neste capítulo, deixamos de explorar, por certo, diversos flancos
que explicitariam mais amplamente os contornos do projeto. No entanto,
o principal mérito da iniciativa está no fato de nascer das escolas indígenas,
percorrer diversas instâncias de debate e aperfeiçoamento, e voltar para
as escolas para ser utilizada pelas equipes técnicas e por uma centena de
professores indígenas. O “produto final” não se resumiu apenas a um currí-
culo elaborado e impresso. O aprendizado mais significativo foi a práxis da
construção coletiva pela qual todos puderam garantir suas prioridades e se
instigar mutuamente a incorporar novo conteúdo, metodologias, compe-
tências, etc. indicados pelas demais escolas.
Obviamente, não se tratou de uma panaceia ante aos desafios de
gerar currículos e aplicá-los à realidade de cada povo. Tem-se presente que
as escolas indígenas convivem com situações históricas que dificultam,
quando não impedem, a plena realização curricular. As mais lembradas
dizem respeito à precariedade das instalações físicas, falta de merenda e
transporte, material didático, acompanhamento pedagógico, formação
continuada, remuneração digna, etc. No entanto, elas estão sendo fusti-
gadas também por outros fatores cujo alcance pode fragilizá-las ainda mais.
Destacamos apenas dois: um de ordem interna, outro de amplitude mais
abrangente.
O primeiro, diz respeito à atuação dos próprios professores – espe-
cialmente daqueles formados nos cursos superiores indígenas –, quando no
seu exercício docente não atendem adequadamente aos anseios comunitá-
rios, às exigências legais e aos princípios da sua formação. Sem o seu envol-
vimento efetivo, expresso na profissionalização docente, instaura-se nas
escolas um pacto de precariedades – ou de mediocridade, se preferirem –,
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 151

que amplia as dificuldades acima evocadas, descompromete o poder público


e enseja a apatia das respectivas comunidades educativas. Se considerarmos
que, em muitas aldeias, os professores ainda são a “personificação” de suas
escolas, podemos sugerir que sem o empenho deles, não haverá currículo
escolar que frutifique!
O segundo fator limitante se refere ao progressivo desequilíbrio na
correlação de forças entre as sociedades indígenas, o entorno regional e o
estado nacional. As políticas anti-indígenas, que vicejam atualmente no
Brasil, espraiam-se dos matreiros palácios brasilienses aos mais bucólicos
confins da Amazônia e afetam centenas de povos e comunidades. Sem a
restauração dos direitos indígenas, especialmente daqueles relacionados à
demarcação e segurança de seus territórios, as escolas serão sempre acome-
tidas do embotamento próprio dos tempos de angústia. Tempos adversos
mais do que os de outrora...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já foi dito, a escola indígena é um elemento cultural externo


que vem sendo incorporado no cotidiano dessas sociedades. Como tal,
pode propiciar maior autonomia ou ensejar a dependência cultural, polí-
tica e econômica, uma vez que traz consigo uma larga gama de novos
conteúdos e significados.
O modelo “oficial” de escola indígena propõe um conjunto de adje-
tivos (específica, diferenciada, bilíngue e intercultural) e atitudes (respeito
pelos saberes, pelas metodologias e pelos processos de aprendizagem
próprios). Tal perfil foi disseminado, nas últimas décadas, por meio de dire-
trizes, referenciais, parâmetros, resoluções, pareceres, etc. que resultaram
em seu disciplinamento e padronização. Além disso, retirou dos principais
interessados o direito de iniciativa e de controle sobre seu processo escolar.
Em síntese, massificou-se um modelo de escola indígena no discurso e no
imaginário das equipes técnicas, dos formadores e dos próprios professores
indígenas, que está sendo difícil, senão impossível, de ser implementado.
Ao tratar de culturas indígenas e currículos escolares no Brasil, perce-
bemos que, felizmente, já existe um acúmulo de proposições que avançam
para além da normatização estabelecida na legislação. Ao evocar a neces-
sidade de normatização nacional, o Estado brasileiro padroniza as especi-
ficidades e impede que a diversidade das escolas e dos currículos aflore e
152 Darci Secchi

frutifique. Dessa forma, cumpre mais um desiderato do modelo colonial


decadente: a recomposição da colonialidade nessa emblemática frente de
disputas que mantém, há séculos, com as sociedades indígenas.

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3. PRÁTICAS CURRICULARES
DA DIVERSIDADE
Educação e memória nas narrativas
dos quilombolas de Itaboca
no município de Inhagapi –
Pará/Amazônia
Salomão M. Hage1
Ricardo Augusto Gomes Pereira2

A educação tem se configurado uma das formas de agregação das diversas


populações que habitam historicamente territórios peculiares caracteri-
zados pela diversidade dos grupos humanos no complexo conjunto amazô-
nico, entre elas as comunidades quilombolas que se constituem o foco
deste artigo, resultante de um estudo que tem sua origem e fundamentação
na produção de uma dissertação de mestrado defendida no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará no ano de
2012, que, por meio de investigação bibliográfica, documental e de campo,
analisou a relação entre a educação e identidade cultural de jovens na
comunidade quilombola de Itaboca, localizada no município de Inhangapi,
no estado do Pará.
Parte-se da análise das narrativas dos sujeitos na busca de identificar
o potencial da experiência existencial e a memória do processo de reconhe-
cimento da comunidade. Constata-se ao longo do estudo que o conteúdo
narrado pelos sujeitos de Itaboca revela a trajetória de uma experiência de
reconhecimento que reflete a memória individual e coletiva dos sujeitos
dessa comunidade, revelando como o processo educativo permeou a expe-
riência individual e social de viver a ancestralidade no território, sendo a
educação uma das alternativas para manutenção de sua existência.

1 Graduado em Agronomia e em Pedagogia. Mestre e doutor em Educação. Professor da Universi-


dade Federal do Pará – UFPA. <http://lattes.cnpq.br/1723722364556016>
2 Graduado em Pedagogia. Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional. Professor da Universi-
dade Federal do Pará – UFPA. <http://lattes.cnpq.br/7179445260003275>
160 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

As reflexões advindas do estudo mencionado foram ampliadas com


o acúmulo das produções que temos desenvolvido no âmbito do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo na Amazônia – Gepe-
ruaz, vinculado ao Instituto de Ciências da Educação da UFPA, que, nesses
últimos 12 anos, tem se dedicado a investigar a realidade educacional da
Amazônia, com foco nas experiências construídas coletivamente pela diver-
sidade de populações que vivem e são da região.

APRESENTANDO A COMUNIDADE QUILOMBOLA


DE ITABOCA POR MEIO DAS NARRATIVAS
DE SEUS PRÓPRIOS MORADORES

A comunidade quilombola de Itaboca tem seu território localizado


no município Inhangapi, na região de integração do rio Guamá, delimi-
tação feita pelo governo do estado do Pará como forma de zoneamento para
implementação de políticas públicas, possuindo uma área de 446,68 ha,
cujo acesso pode ser feito pela Rodovia PA-116.
A distância da sede do município de Inhangapi até a entrada da
comunidade de Itaboca é de 11 km, e da entrada da comunidade até a sua
sede, na localidade de Cacoal, é de 8 km, percorrendo-se sempre por um
ramal muito pouco pavimentado. A comunidade de Itaboca é composta por
dois núcleos: Quatro Bocas, onde está sediada a Escola Municipal de Ensino
Fundamental “Antonio Fausto da Trindade”, e Cacoal, na qual está locali-
zada a sede da Associação da Comunidade Remanescente Quilombola de
Itaboca, fundada em 5 de abril de 2005.
A origem da comunidade remonta ao século XIX e as informações
que circulam na comunidade, referentes ao processo de seu povoamento,
foram coletadas neste estudo através de narrativas dos moradores da própria
comunidade.
Na versão de dona Francisca de 68 anos, uma das moradoras mais
antigas de Itaboca, a comunidade descende de escravos fugidos, porém, a
senhora Ana Maria da Silva, portuguesa, foi a pessoa que doou as terras
para os escravos, dando assim origem à comunidade, conforme pode ser
observado em sua narrativa:
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 161

A portuguesa Ana Maria da Silva era a chefe dos escravos, a casa dela era uma
casarona de assoalho nesse mesmo terreno que nós temos, a minha irmã mora
lá, [...] perto da casa da chefe da escravatura, a colocação chama-se restau-
ração, era toda assoalhada, era Ana Maria da Silva, ela doou as terras pros
escravos, antes dela ir para Portugal, para os nascidos e récen-nascidos. Eu até
tinha esse documento [...] ficou com um primo meu. (Dona Francisca – mora-
dora antiga de Itaboca)

A narrativa da professora Maria Leila Conceição de Azevedo, nascida


e criada na comunidade, que possui 38 anos e trabalha na Escola Municipal
de Ensino Fundamental “Antonio Fausto da Trindade”, também colabora
para a compreensão das origens da comunidade de Itaboca. Segundo as
lembranças que tem desde a infância e pelo contato com a sua avô, senhora
Eulácia Azevedo, que também nasceu na comunidade, a origem do nome
Itaboca se deu:

Quando meu avô veio morar pra cá, ele não nasceu aqui, essa comunidade era
chamada Menino Deus, era uma área muito grande [...] e desde os primórdios,
a comunidade já era dividida em dois núcleos, sendo que o rio era a base de sua
fundação. [...] Como aqui tinha muita taboca, o pessoal começou a chamar de
tabocal, depois o pessoal passou a chamar de Itaboca. (Maria Leila Conceição
de Azevedo – professora de Itaboca)

A narrativa da professora Maria Leila, a seguir, revela também a dife-


rença entre os primórdios do desenvolvimento da comunidade e os dias
atuais. Antes, não se fazia presente a questão da posse da terra, diferente da
realidade que se vive hoje.

Então, essa Ana Maria, como a terra se chamava Menino Deus antigamente,
ela dizia que os descendentes dela todos herdariam da área da terra. Só que
nessa época, segundo a vovó contava eu lembro, não tinham tantas famílias
como se tem hoje, não tinha tanta ambição como se tem hoje. Se eu tinha minha
casinha e se alguém chegasse para construir a sua casa, podia fazer. (Maria
Leila Conceição de Azevedo – professora de Itaboca)

A narrativa da professora Maria Leila evidenciou ainda, que a memória


de sua avó guardava a lembrança da forma de condução do quilombo e da
produção nele existente, informando-nos que toda a produção agrícola da
roça era feita comunitariamente pelos descendentes de escravos, “segundo
162 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

a minha Vó contava, nessa época, que tinha os escravos, eles trabalhavam em


conjunto, fazendo uma roça bem grande e eles faziam todo serviço unido [...]
era uma coletividade total”.
Na atualidade, vivem na comunidade de Itaboca 56 famílias que,
usufruindo da herança cultural de seus ancestrais, dependem do que
produzem da terra pra sobreviver, e esse se constitui um dos grandes desa-
fios enfrentados pela comunidade hoje, uma vez que, nela, as famílias
produzem a partir das pequenas roças de subsistência, sendo a mandioca
o produto principal, podendo-se ainda encontrar o cultivo do abacaxi e do
feijão.
As atividades extrativistas também se constituem numa forma espe-
cífica de sobrevivência das famílias, destacando-se a extração do açaí e da
castanha do Pará como alternativas bastante rentáveis para a comunidade,
ainda que grande parte da produção seja vendida aos atravessadores, que
pagam muito pouco pelos produtos às famílias e obtêm lucros elevados com
a revenda desses produtos.
O estudo por nós realizado identificou ainda o desânimo das famí-
lias com a conservação ambiental no entorno da comunidade de Itaboca,
ocupada por grandes fazendeiros, que avançam em direção às terras da
comunidade e derrubam a floresta para implantação do pasto, utilizando
agrotóxicos sem qualquer orientação e deixando de poupar inclusive as
matas ciliares, que se localizam às margens dos rios e igarapés, gerando com
isso a extinção da caça, uma das atividades tradicionais dos antigos mora-
dores da comunidade, assim como também da pesca no rio Inhangapi, que
corta as terras quilombolas de Itaboca. No caso do rio Inhangapi, a situação
é mais complexa, uma vez que, na representação das famílias da comuni-
dade, é considerado o guardião da memória e identidade quilombola de
Itaboca.
As narrativas do senhor Manoel Reis da Silva, conhecido por
“Mereré”, o presidente da Associação da Comunidade de Itaboca, comple-
mentam as informações referentes aos problemas que a comunidade
enfrenta com a água:

Na nossa comunidade tem um sistema de um mínimo de abastecimento de água.


Nós temos somente três pontos de água que se chama micro abastecimento que
são distribuídos no quilombo. (Manoel Reis da Silva – presidente da Asso-
ciação da comunidade)
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 163

A existência de somente três pontos de abastecimento de água na


comunidade de Itaboca implica que muitas famílias ainda dependem de
água não tratada de poços e cisternas, causando muitos problemas de saúde,
especialmente às crianças. O próprio senhor Manoel Reis da Silva, em sua
narrativa, amplia suas reflexões sobre os problemas de saúde em Itaboca,
relacionando-os à questão da violência:

O que mais pressiona hoje é a saúde. Aqui nós não temos uma saúde de quali-
dade [...] e nós temos dificuldade de se deslocar, e nos hospitais, nós temos difi-
culdade por causa da burocracia que demora a nos atender. [...] Nossa preo-
cupação também é com os jovens [...] por que a criminalidade pode atingir os
jovens [...] na nossa comunidade a criminalidade é quase zero, mas pode ocorrer
de vir gente de fora e desviar nossos jovens. (Manoel Reis da Silva – presidente
da Associação da comunidade)

A comunidade recebeu seu título de domínio coletivo expedido pelo


Instituto de Terras do Pará – Iterpa, em 17 de dezembro de 2010. No seu
memorial descritivo, a área total referente ao Quilombo de Itaboca é de
446.68 hectares de terra, dispostas em forma de polígono, tendo como via
de acesso o ramal Itaboca, que cruza as referidas terras até os limites do
Igarapé Inhangapi.
Entretanto, mesmo com todo o processo de reconhecimento e orga-
nização que a comunidade vivenciou nos últimos anos, ela ainda enfrenta
muitas dificuldades, conforme as narrativas de seus moradores, apresen-
tadas anteriormente, dificuldades essas que se agravam com a precariedade
do transporte local, pois o ônibus que serve à comunidade, só circula duas
vezes ao dia e a estrada por onde ele percorre é uma vicinal que precisa
urgentemente de pavimentação. Essa situação impõe um isolamento
forçado à comunidade que não dispõe de posto de saúde, de abastecimento
de alimentos e de serviços de telecomunicação, ausências que acirram a
precarização das condições de vida no interior do quilombo de Itaboca.
No tocante à questão da educação na comunidade quilombola de
Itaboca, os moradores investigados foram unânimes em depositar nela suas
mais significativas esperanças, conforme indicam as narrativas a seguir
apresentadas:

[...] o papel da educação, da escola é esse, ser um espaço de formação de cida-


dãos, eu acredito que seja esse, é sempre estar sensibilizando os pais de nossos
alunos, nossos alunos e toda as pessoas da comunidade, pra que a agente
164 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

assuma nosso papal, fortaleça a nossa identidade quilombola e cuide de tudo


o que ainda nos resta. (Maria Leila Conceição de Azevedo – professora de
Itaboca)

A educação tem um valor muito fundamental, porque a educação traz o conheci-


mento e a sabedoria que precisamos para formar a juventude, as crianças, toda
gente... Ela pode desviar os jovens da criminalidade... Por que quando o jovem
não se educa, a tendência dele não é alcançar o mercado de trabalho, a carteira
de habilitação e outras coisas variadas, então a tendência dele é cair na crimi-
nalidade... ou ficar com a foice, o facão... não alcança a qualificação. (Manoel
Reis da Silva – presidente da Associação da Comunidade)

A educação aqui na comunidade graças a Deus tá boa [...] principalmente


quando a universidade começou a vir aqui com a gente melhorou trinta por cento
do que tava, melhorou bastante. [...] Os meninos tão aprendendo muita coisa
com vocês, pra mim isso é uma grande coisa [...] naqueles tempos passados não
se via uma criança dizer o que dizem, porque eu não dizia. 3 (Dona Francisca –
moradora antiga de Itaboca)

Ainda que todas essas expectativas sejam depositadas na educação, a


comunidade, assim como a grande maioria das comunidades quilombolas
do estado do Pará, precisa se mobilizar para cobrar dos órgãos oficiais a
ampliação da escola para atender os jovens e adultos que, a partir do 6º ano
do ensino fundamental, precisam utilizar o transporte escolar e se deslocar
até a sede do município, outra vila ou distrito mais próximo, enfrentando
grandes distâncias e condições precárias de deslocamento.
Todas as informações apresentadas até o presente momento, por meio
das narrativas dos próprios moradores da comunidade, foram fundamentais
para compreensão de como se deu o processo de constituição da identidade
quilombola de Itaboca, que muito antes das determinações legais, é cons-
tituída por uma unidade cultural comum à convivência de sujeitos, que ao
longo da história passaram por diversos estágios e hoje estão vivendo sob
a pressão do reconhecimento jurídico e o desafio de superar a precariedade
da vida no campo.
Assim, compreender o contexto de origem da comunidade quilom-
bola de Itaboca, elucidando as peculiaridades referentes ao aspecto

3 Dona Francisca em sua narrativa se refere à presença da UFPA – Campus de Castanhal, através
do Grupo de Estudo Sociedade, Cultura e Educação (GESCEd), que executa o Programa Universidade
no Quilombo, promovendo uma série de atividades educativas com as crianças da comunidade de
Itaboca.
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 165

produtivo, à saúde e abastecimento de água, à realidade educacional e


demais aspectos que configuram a existência no território, é importante
para se compreender a necessidade de defesa não só da terra, mas principal-
mente da história e da cultura que envolve os sujeitos quilombolas.

HISTÓRIA, RECONHECIMENTO E TENSÕES


NO CONTEXTO DAS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS DA AMAZÔNIA

A luta pelo direito à terra é historicamente uma situação constante


para todos os negros quilombolas, uma vez que o caráter de insurreição
conferida aos quilombos ganhou novos contornos após a Constituição
Federal de 1988, no entanto, essa luta se articula a muitas outras reivindi-
cações que vão fazendo com que os quilombolas se assumam como sujeitos
de direitos e pautem suas demandas na agenda da sociedade.
As comunidades remanescentes de quilombo, quilombolas ou comu-
nidades negras rurais, como são comumente identificados, constituem parte
importante da cultura brasileira, formadas por descendentes de negros
fugidos de engenhos e fazendas, como resistência à escravidão na época,
essas comunidades guardam tanto no seio familiar como em suas relações
religiosas, parte significativa da ancestralidade negra e tem forte relação com
o território que ocupam.
Os quilombolas são quase 1200 milhão, constituindo cerca de 214
mil famílias, que vivem em cerca de três mil comunidades localizadas em
24 estados brasileiros, com exceção de Roraima, Espírito Santo e Acre
(Seppir, 2012). Eles pertencem às camadas da população onde estão os mais
pobres do país, os negros e os pardos, e enfrentam os mesmos desafios e
dificuldades que a população pobre rural do país vivencia, como: acesso
precário à saúde, educação, saneamento, financiamento pra gerar renda e
para a manutenção da posse das terras que ocupam. Essas situações, em
seu conjunto, ameaçam não apenas a existência dessas comunidades, mas o
patrimônio cultural–histórico que elas representam.
O conceito de quilombo na sociedade contemporânea, segundo
Amador de Deus (2008) tem se ressignificado. Ele não continua com o
mesmo conceito do período colonial: “o negro que foge da escravidão”, pois
não temos mais escravidão desde o século XIX, ela foi abolida em 1888.
Então, hoje você tem comunidades negras, rurais ou urbanas que guardam
166 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

uma relação com o território de afetividade, que possuem uma identidade,


uma história identitária, que cultuam a ancestralidade, estabelecendo laços
de solidariedade, que têm uma memória coletiva relacionada ao território
que ocupam, enfim, que não necessariamente foram fugidas da escravidão,
mas que viveram invisíveis para o Estado brasileiro durante séculos, da
abolição da escravidão até quase o final do século XX, com a promulgação
da Constituição Federal de 1988.
As comunidades quilombolas são bastante diferentes umas das
outras, elas foram se formando ao longo do tempo a partir de uma grande
diversidade de processos de resistência, que incluem: as fugas de escravos
com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, a conquista de terras
por meio de heranças, doações, pagamento por serviços prestados ao
Estado, a compra e ainda a simples permanência nas terras que ocupavam
e cultivavam no interior de grandes propriedades, tanto durante a vigência
do sistema escravista quanto após sua abolição. Elas ocupam ecossistemas
muito diversos e desenvolveram diferentes estratégias de exploração dos
recursos de seus territórios. As manifestações culturais também variam de
comunidade para comunidade (Andrade, 2007).
As comunidades remanescentes de quilombos existentes caracte-
rizam-se pela prática do sistema de uso comum de seus territórios, conce-
bidos como bem comum ao grupo e explorados segundo regras consen-
suais próprias que incluem laços de solidariedade e de ajuda mútua e que
podem variar de comunidade para comunidade. O território para a comu-
nidade quilombola não se reduz a simples somatória de lotes individuais,
tampouco é concebido pelos quilombolas como uma mercadoria que possa
ser dividida e comercializada. O território é a história, a identidade, a liber-
dade conquistada. O local onde se nasce, vive-se e que permanece como
herança para os descendentes.
Assim, o que define um quilombo na atualidade, é o movimento de
transição da condição de escravo para a de camponês livre, que se deu por
essas variadas formas; e, portanto, não é o isolamento e a fuga, mas a resis-
tência e a autonomia. E, quando se assegura aos quilombolas os seus terri-
tórios, não se garante somente a sua sobrevivência física, mas também a sua
cultura e seu modo de vida próprio. 
A atual Constituição brasileira, segundo Amador de Deus (2008),
inseriu, na narrativa de nação brasileira, a identidade quilombola, ou seja,
depois da Constituição de 1988, a nação brasileira não pode mais, na sua
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 167

narrativa de nação, desconhecer os quilombolas como um grupo étnico-


-racial importantíssimo. Isso é importante, ainda que não necessariamente
signifique um status de cidadania, mas isso faz com que esse grupo passe a
ser reconhecido como um componente dessa narrativa de nação.
Além disso, esse fato tem fortalecido a luta dos sujeitos quilombolas
para conquistar a cidadania material, para conseguir o título de suas terras,
situação muito delicada, porque terra é sinônimo de “riqueza”, que tem
sido disputada historicamente pelos grupos com maior poder na sociedade,
entre os quais se destacam: grandes latifundiários, fazendeiros, madeireiros,
grandes produtores rurais que defendem o agronegócio, e grandes empresas
estatais ou privadas, que exploram recursos naturais, as jazidas de minérios
e a abundância da água, especialmente na Amazônia.
Por isso hoje existem apenas algumas comunidades que conseguiram
a titulação, 193 comunidades no estado do Pará, com área total de 988,6
mil hectares, beneficiando 11.991 famílias. A grande maioria das comuni-
dades quilombolas ainda não conseguiu a titulação de suas terras e continua
lutando por ela. Estas são ao todo: 1.948 comunidades reconhecidas oficial-
mente pelo Estado brasileiro, 1.834 comunidades certificadas pela Fundação
Cultural Palmares (FCP), sendo 63% delas no Nordeste, e 1.167 processos
abertos para titulação de terras no Incra (Seppir, 2012). Mesmo aquelas que
já conseguiram a titulação, em muitos casos, não deixam de serem vítimas
da intrusão de grupos que têm interesses em suas terras, pelos motivos mais
diversos, grupos estes já mencionados anteriormente.
É importante esclarecer que a luta empreendida pelo movimento
quilombola para a conquista da cidadania material inclui a conquista da
terra vinculada ao direito à preservação de sua cultura e à sua organização
social própria; direitos estes que, no conjunto, implicam uma dimensão
educativa entre as populações e comunidades quilombolas e, numa pers-
pectiva mais abrangente, da população brasileira em seu conjunto.
Por esse motivo, a luta dessas populações se inserem no âmbito das
lutas mais amplas do movimento negro para reivindicar políticas públicas
para a população afro-brasileira que valorizem a história e cultura do
povo negro. Nesse contexto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº
9394/96 foi alterada por meio da inserção dos artigos 26-A e 79-B, refe-
ridos na lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e
168 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

cultura afro-brasileiras e africanas no currículo oficial da educação básica e


inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da
Consciên­cia Negra” (Cardoso e Hage, 2013)
Essa mesma luta, assegurou a aprovação junto ao Conselho Nacional
de Educação, em 2004, do parecer nº 3 de 10 de março e da resolução nº
1 de 17 de junho, que instituem as diretrizes curriculares para a educação
das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileiras e
africanas a serem executadas pelos estabelecimentos de ensino de diferentes
níveis e modalidades, cabendo aos sistemas de ensino no âmbito da sua
jurisdição orientar e promover a formação de professores e supervisionar o
seu cumprimento; isso como desdobramento da lei nº 10.639/03. Elas esta-
belecem ainda, que tais políticas têm como meta o direito de os negros se
reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias
e manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos.
Continuando a discussão no âmbito da legislação educacional
em nível nacional, a aprovação da resolução nº 4 de 13 de julho de 2010
pelo CNE/CEB, que define diretrizes curriculares nacionais gerais para a
educação básica, dedica uma seção especifica à “Educação Escolar Quilom-
bola” (Seção VII), que, em seu artigo 41, estabelece

A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais


inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito
à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica
de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base
nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira.

e no parágrafo único desse mesmo artigo, define que, “na estruturação e no


funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada
a diversidade cultural”.
Em fevereiro de 2012, a presidente Dilma, ao lançar o Programa
Nacional de Educação no Campo – Pronacampo, contemplou também as
escolas quilombolas, uma vez que o Programa visa oferecer apoio técnico e
financeiro aos estados, municípios e Distrito Federal para a implementação
da política de educação do campo, visando à ampliação do acesso e a quali-
ficação da oferta da educação básica e superior, por meio de ações para a
melhoria da infraestrutura das redes públicas de ensino, a formação inicial
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 169

e continuada de professores, a produção e a disponibilização de material


específico aos estudantes do campo e quilombola, em todas as etapas e
modalidades de ensino (Brasil, 2013).
Em 20 de novembro de 2012, o Conselho Nacional de Educação,
por meio de sua Câmara de Educação Básica, homologou a resolução nº
8, que define as diretrizes curriculares para a educação escolar quilombola
na educação básica, fundamentada por 64 artigos na formatação da orga-
nização dos sistemas e propostas pedagógicas para as escolas quilombolas,
destinando-se ao atendimento das populações quilombolas rurais e urbanas
em suas mais variadas formas de produção cultural, social, política e econô-
mica (art.1º § III).
Essas diretrizes específicas são de suma importância para que o poder
público respeite as especificidades culturais que envolvem a constituição
da escola quilombola, entre as quais, inserem-se: a história, o território, a
memória, a ancestralidade e os conhecimentos tradicionais; assegurando
o atendimento às demandas políticas, socioculturais e educacionais das
comunidades quilombola (art. 31).
Na construção da proposta pedagógica para as escolas quilombolas,
entendida nessa mesma resolução como expressão da autonomia e da iden-
tidade escolar, e como primordial para a garantia do direito a uma educação
de qualidade socialmente referenciada; será necessário considerar: os
conhecimentos tradicionais, a oralidade, a ancestralidade, a estética, as
formas de trabalho, as tecnologias e a história de cada comunidade quilom-
bola; as formas por meio das quais as comunidades quilombolas vivenciam
os seus processos educativos cotidianos em articulação com os conheci-
mentos escolares e demais conhecimentos produzidos pela sociedade mais
ampla; a questão da territorialidade, associada ao etnodesenvolvimento e à
sustentabilidade socioambiental e cultural das comunidades quilombolas;
e o conhecimento dos processos e hábitos alimentares das comunidades
quilombolas por meio de troca e aprendizagem com os próprios moradores
e lideranças locais (art. 32 e 33).
Visualizamos, assim, que a luta por uma educação de direitos, das
populações negras, em que se inserem as populações quilombolas, apre-
senta conquistas no desenvolvimento da legislação e das políticas públicas
educacionais, estabelecendo que seja assumida como meta assegurar o
170 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

reconhecimento e valorização da população afro-brasileira, em suas espe-


cificidades, suas histórias, memórias, identidades, enfim, como cidadãos
brasileiros.
No entanto, a luta precisa ser intensificada para que as melhorias nas
condições de vida nas comunidades quilombolas sejam asseguradas, uma
vez que essas comunidades, em sua grande maioria, localizam-se muito
afastadas da sede dos municípios, em locais onde não têm energia elétrica,
onde não têm água potável, onde as escolas não estão presentes, (somente
há escolas que oferecem os anos iniciais do ensino fundamental), onde
as pessoas têm que caminhar durante muito tempo, e ainda depender de
transporte pra conseguir continuar os estudos.
De fato, as dificuldades apresentadas pelos sujeitos nas comuni-
dades quilombolas são comuns a outras comunidades rurais que não são
remanescentes de quilombolas, só, que mais agravadas pelo estigma e pela
discriminação racial que enfrentam as populações quilombolas por serem
parte da população negra pobre e rural deste país (Amador de Deus, 2008).

POR UMA IDENTIDADE CULTURAL


QUILOMBOLA NA AMAZÔNIA:
DESAFIOS EDUCACIONAIS E CURRICULARES

Para finalizar esta discussão, queremos destacar que a identidade


cultural quilombola na Amazônia é marcada pela ampla solidariedade como
preceito comunitário e traz a marca cultural da floresta, dos rios e da terra
nas formas de caçar, de pescar, de roçar, de plantar, de fazer a farinha, de
contar suas histórias. Toda essa dinâmica é a expressão do modo de vida
a partir da relação com o território específico da comunidade e também
mais ampliado, da região, que apresenta uma estrutura bastante complexa
e muito diferente de outras regiões do país e do mundo, especialmente
porque apresenta como uma de suas características fundamentais a hetero-
geneidade, que se expressa nos vários aspectos: socioculturais, ambientais
e produtivos, suscitando um conjunto de questões a serem consideradas
por ocasião da elaboração de políticas públicas e de práticas produtivas,
ambientais, socioculturais e educacionais para que sejam afirmadas as iden-
tidades culturais das populações que vivem e são da região.
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 171

Nessa perspectiva, o currículo assume uma posição de centrali-


dade, em função de seus atributos envolverem as disputas pelos saberes e
experiências que são selecionadas e legitimadas para a formação dos seres
humanos.
Diante de situações existenciais tão ricas que compõem o manan-
cial de saberes, experiências e tecnologias produzidas pelas populações da
Amazônia e, em especial pelas populações quilombolas, é inadmissível que
políticas e práticas educacionais e curriculares vigentes continuem a serem
elaboradas e materializadas apartadas dessas especificidades que consti-
tuem os modos de existir próprios da Amazônia.
No cotidiano de suas relações sociais, as populações da Amazônia,
e entre elas, as populações quilombolas, vivenciam situações próprias de
trabalho e produção; enfrentam singularidades nos diversos ambientes em
que vivem; e possuem um conjunto de crenças, valores, símbolos, e saberes
que se constroem/reconstroem nas práticas de formação pessoal e coletiva,
na vivência e convivência nos vários espaços sociais em que participam.
Por esse motivo, todos, sem exceção: professores, estudantes, pais
e mães, representantes das comunidades e de movimentos e organizações
sociais, podem e devem envolver-se na construção das políticas e práticas
curriculares para a região. Eles, definitivamente, têm muito a dizer, a
ensinar e aprender nesse processo que deve ser materializado com a partici-
pação dos sujeitos, das populações e movimentos sociais e não para eles, como
tradicionalmente ocorre.
Assim, destacamos a necessidade de que os processos e espaços
de construção dessas políticas e práticas se pautem pela perspectiva da
educação dialógica, que inter-relaciona sujeitos, saberes e intencionali-
dades, superando a predominância de uma educação bancária e afirmando
seu caráter inter/multicultural, ao oportunizar a convivência e o diálogo entre
as diferentes culturas, etnias, raças, gêneros, gerações, territórios, e, entre o
campo e a cidade.
Isso só será possível se forem reconhecidas e legitimadas na socie-
dade e nos espaços educativos as experiências socioculturais, produtivas e
educativas que vêm sendo produzidas e efetivadas nas diversas territoria-
lidades da Amazônia, protagonizadas pelos diversos sujeitos, populações,
movimentos e organizações sociais da região. Na agenda desses sujeitos
coletivos, as seguintes questões têm sido pautadas:
172 Salomão M. Hage, Ricardo Augusto Gomes Pereira

A inclusão da educação no âmbito dos direitos sociais, ressaltando


que o direito à educação não se separa da pluralidade de direitos humanos
que precisam ser garantidos e ampliados: o direito à terra, à vida, à cultura,
à identidade, à alimentação, à moradia, etc., o que implica dizer que o
direito à educação não se materializa apenas no plano da consciência polí-
tica, mas se atrela com a produção e reprodução mais elementar da vida.
A ampliação da esfera pública com o objetivo de fortalecer o espaço
de interação entre Estado e sociedade com vistas à democratização do
Estado e da própria sociedade. Nesse processo, a participação social se torna
mais efetiva na construção de políticas públicas e o controle social tem mais
chances de se materializar e enfrentar a vulnerabilidade das escolas e das
populações tradicionais da Amazônia, em que se incluem as populações
quilombolas, que em muitas situações padecem diante das conveniências e
dos interesses dos grupos com forte poder local.
O fortalecimento da consciência coletiva e cidadã, seja no Estado,
na academia, nas organizações e movimentos sociais ou no campo da
educação, em favor da construção de políticas e práticas educativas capazes
de enfrentar as desigualdades históricas sofridas pelas populações tradicio-
nais da Amazônia e subverter o padrão universalista e generalista que tem
inspirado predominantemente as políticas educacionais e não tem dado
conta de universalizar o direito à educação das populações que são e vivem
na região.

REFERÊNCIAS

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Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 173

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______ (2010). Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação
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______ (2012). Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
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______. Ministério da Educação (2013). Portaria nº 86 de 1º de Fevereiro de
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DADE RACIAL (2012). Programa Brasil Quilombola: diagnóstico de
ações realizadas. Brasília, DF, SEPPIR, Disponível em: <http://www.
seppir.gov.br/destaques/diagnostico-pbq-agosto>. Acesso em: 29 abr.
2013.
Noções de currículo da educação
integral nos processos formativos
em Mato Grosso
Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta1
Ozerina Victor de Oliveira2

Neste texto, apresentamos uma reflexão sobre noções de currículo que tem
subsidiado processos formativos de professores comunitários, articuladores,
monitores, voluntários, dentre outros profissionais da rede pública muni-
cipal e estadual de educação do estado de Mato Grosso que desenvolvem
atividades de educação integral do Programa Mais Educação.
As fontes dessa reflexão podem ser encontradas nas propostas e
documentos da política de educação integral que circulam contemporane-
amente nas políticas públicas brasileiras, em textos produzidos por pesqui-
sadores que subsidiam propostas de educação integral de âmbito nacional,
na própria organização curricular de um curso de formação em educação
integral e na noção de currículo da educação integral construída por duas
pesquisadoras a partir de suas vivências e estudos no e a partir de cursos de
formação em educação integral.
Sabemos que a noção de educação integral não é recente. Ela é origi-
nária da Grécia antiga a partir da noção de paideia que, embora etimologi-
camente signifique criação ou educação de crianças (de paidos – criança),
engloba um significado bem mais amplo, abrangendo todo o processo
de educação ou formação, e funde-se com as noções de cultura ou de
civilização.

1 Graduada em Filosofia. Mestre e doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do


Mato Grosso – UFMT. <http://lattes.cnpq.br/4780912723951170>
2 Graduada em Pedagogia. Mestre e doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do
Mato Grosso – UFMT. <http://lattes.cnpq.br/1863707315885015>
176 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

Em sua origem, a educação na Grécia Antiga tinha certo caráter


aristocrático e se baseava na transmissão de conhecimentos de gramática
(leitura, escritura e recitação de poemas), música, filosofia e educação
física, dirigidas até a formação militar.
Posteriormente, essa noção foi se generalizando e se dirigiu para a
formação do cidadão. Segundo o filósofo alemão Werner Jaeger, que em
1933 publicou seu famoso livro intitulado paideia, foi esse desejo de educar
dos gregos que superou os modelos bárbaros.
Segundo Jaeger (1971, p. 3), a cultura, como valor e ideal consciente
da vida comunitária começou somente com os gregos. Esse progresso deci-
sivo, segundo ele, foi devido ao papel da paideia, que se constituiu numa
nova concepção do papel do indivíduo no seio da sociedade. Nos séculos V
e IV a.C, o ideal educativo grego aparece como formação geral que tem por
tarefa construir o homem como homem e cidadão.
Transcorrido um longo tempo e tomando por base as pesquisas de
Goodson (1995) sobre os processos de escolarização e de seus currículos
entre os séculos XVI e XIX, podemos dizer que o processo de produção
material que vai se consolidando na sociedade, suas rupturas epistemoló-
gicas e sua nova forma de organização política fazem com que os propósitos
de formação humana e do cidadão se reconfigurem, com desdobramentos
diretos para a ideia de formação geral.
As escolas e seus currículos vão sendo organizados de modo a
atender a divisão social do trabalho, as especializações da produção do
conhecimento, e as relações políticas cada vez mais atomizadas e menos
comunitárias. Temos, pois, uma escola e um currículo divididos, especia-
lizados e fragmentados. Esse currículo forma pessoas cindidas sob vários
ângulos (razão versus emoção, corpo versus mente), cada vez menos enten-
dida do mundo em que vive, porque só enxerga uma ínfima parcela da reali-
dade, e com uma menor capacidade de organização coletiva. Muito embora
esse currículo tenha se tornado hegemônico, a ideia de formação geral não
foi eliminada, ganhando contornos contemporâneos.
Constituída a modernidade, mais especificamente no Brasil do século
XX, tivemos vários intelectuais que defendiam e exigiam para a população
o direito inalienável à educação, como Anísio Teixeira, por exemplo, que
defendia a abertura à democratização da educação no sentido da ampliação
do direito de todos à educação pública. Paulo Freire se destaca, sobretudo,
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 177

por haver elaborado uma teoria pedagógica libertadora que não pode ser
confundida com uma série de finalidades a alcançar, mas uma proposta de
educação dialógica como via para a libertação e humanização.
Essa proposta se constitui como uma estratégia educativa que, em
geral, é concebida como método, mas o conceito de educação dialógica
se fundamenta numa dimensão política e ética no sentido de reconhecer
o oprimido como um ser cognoscente e sujeito de direito, íntegro em sua
humanidade, integrado ao mundo e detentor de uma linguagem integra-
dora de pessoas, de olhares, de tempos e de saberes diferentes. O apelo ao
caráter substantivo da integração (Fazenda, 2000) não se configura aqui
como uma licença poética, mas como indicação das raízes históricas e onto-
lógicas da existência de projetos de currículos integrados, com pertenci-
mento à educação integral, na trajetória da escolarização no Brasil. Tais
projetos, dependendo das circunstâncias históricas, ora ganham força, ora
são obliterados.
Castro e Lopes (2011) e Felício (2011 e 2012) registram em suas
pesquisas a existência de projetos de educação integral e de experiên-
cias com escolas de tempo integral ao longo do século XX em nosso país.
Projetos e experiências que não se mostram homogêneos ou consensuais,
mas radicalmente conexos às demandas de classe e de diferentes grupos
identitários, ora em uma perspectiva assistencialista e sem continuidade,
ora imbuídos em lutas por uma sociedade cada vez mais democrática.
Atualmente, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e da Secretaria
de Educação Básica (SEB), em parceria com o Fundo Nacional de Desenvol-
vimento da Educação (FNDE), vem operacionalizando, mediante portaria
interministerial nº 17/2007, o Programa Mais Educação como uma das
ações do Plano de Desenvolvimento da Educação.

Um aspecto estruturante da identidade do Programa Mais Educação é sua


preocupação em ampliar a jornada escolar modificando a rotina da escola,
pois sem essa modificação pode-se incorrer em mais do mesmo, sem que
a ampliação do tempo expresse caminhos para uma educação integral [...]
A ampliação da jornada escolar ocorre mediante oferta de educação básica
pública em tempo integral, por meio de atividades interdisciplinares e de
acompanhamento pedagógico, de forma que o tempo de permanência de
crianças, adolescentes e jovens nas escolas ou sob sua responsabilidade
178 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

passe a ser igual ou superior a sete horas diárias durante todo o ano letivo,
buscando atender a, pelo menos, metade dos alunos matriculados nas
escolas contempladas pelo programa. (Arroyo, 2012, pp. 33-45)

Tal ação tem por finalidade planejar e executar uma política educa-
cional pública organizada de forma diferente no espaço escolar como estra-
tégia para melhorar a qualidade da educação e evitar a exclusão de crianças
e adolescentes do universo social e educacional. Ou seja, a ideia central
da proposta é reorientar a política educacional visando possibilitar, às
classes sociais desfavorecidas, o acesso a uma educação que contemple, não
somente a extensão de espaços e tempos para a sua formação, mas princi-
palmente a preocupação em possibilitar ao educando, saberes, experiências
e vivências de conhecimentos visando a sua inclusão social, participação
política na sociedade e sua “humanização”.
Entendemos o Plano de Desenvolvimento da Educação e o Programa
Mais Educação não como restrita a um plano de governo, mas como consti-
tuintes da materialidade de uma política pública de currículo, configurada,
por sua vez, por confrontos, acordos e desacordos – sempre provisórios –
entre classes antagônicas e entre grupos identitários hegemônicos e não
hegemônicos da sociedade em que vivemos.
Nessa perspectiva, o Ministério da Educação propôs ações inter-
setoriais e interdisciplinares partilhadas com os centros e faculdades de
Educação das instituições de ensino superior para qualificar profissionais
que atuam na educação integral do Programa Mais Educação.
Assim, o Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT), vem, desde 2010, atuando em processos formativos
(cursos de aperfeiçoamento, de pós-graduação lato-sensu e seminários de
extensão). O objetivo dessa formação é propiciar melhor qualificação de
professores comunitários, articuladores, monitores, voluntários, entre
outros profissionais da rede pública municipal e estadual de educação do
estado de Mato Grosso que desenvolvem atividades de educação integral do
Programa Mais Educação. Em 2012, foi realizado o curso de especialização
em Educação Integral, que teve término em 2013.
Tomando por base as propostas e programas de assinatura oficial, e os
estudos de Castro e Lopes (2011) e de Felício (2001 e 2012), podemos dizer
que a noção de currículo que fundamenta os cursos de educação integral
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 179

não se resume meramente à seleção de alguns conteúdos ou macrocampos.


O significado de currículo desses cursos, conforme assinala Padilha (2012,
p. 196), tem uma conotação e preocupação com o processo educacional e
formação humana bem mais complexa e bem mais ampla.
Isso porque o currículo da escola, que antes era apenas um recorte
ou então sinônimo de conteúdo escolar, apresenta-se agora como um
processo que deve considerar não apenas o que se deve conhecer, mas como
conhecer, para que aprender, por que esse conjunto de conhecimentos e
não outro, e, especialmente, quem tem o direito de aprender este ou aquele
conhecimento.
Tem a ver, igualmente, com uma ruptura epistemológica para com
a fragmentação dos conhecimentos especializados, com a contraposição às
identidades homogêneas, centradas em si mesmo e isentas de ambivalência,
tem a ver com o esforço de articulação de saberes e experiências no contexto
do mundo cultural, econômico, científico, social e político que fornecem
elementos para reflexão e aprendizagens sobre a realidade em que estamos
inseridos e também para compreender as relações humanas que vivenciamos.
No que diz respeito aos cursos de aperfeiçoamento e especialização,
entendemos ser importante formar, não apenas para ampliar a experiência
e horizonte de vida do profissional ou voluntário que desenvolve atividades
na educação integral, mas de possibilitar abertura de espaços para conhecer,
refletir, debater, compreender e experienciar tais conhecimentos tanto no
âmbito do contexto escolar quanto fora dele. Isso poderá trazer como resul-
tado a sua participação nas diversas realidades do país, do estado, do muni-
cípio, do bairro, participação nos movimentos sociais, na comunidade,
dando a ele elementos para melhor compreendê-las, e, consequentemente,
posicionar-se diante delas.
Outro aspecto muito positivo da proposta curricular da educação
integral como política pública está em formar o educador para o poder inte-
grador em relação aos vários conhecimentos que se apresentam, de certo
modo, fragmentados. A linguagem, a comunicação, a cultura, a história, as
ciências, o ambiente, as artes, a cultura digital, etc., etc., que fazem parte
do currículo, muitas vezes aparecem isolados, desconectados e sem interli-
gação com todos os outros.
180 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

Esta perspectiva curricular viabiliza e propõe atividades intertransdisci-


plinares3 necessárias à educação integral, tentando dialogar e, ao mesmo
tempo, transcender o conhecimento científico, dando ênfase à cultura como
referência primeira na relação com outras formas e manifestações do conhe-
cimento e da sensibilidade humana. (Padilha, 2012, p. 202)

Em tal perspectiva, a noção de currículo de educação integral que


tem fundamentado seminários, cursos de extensão e curso de especialização
em educação integral do Programa Mais Educação tem colocado a cultura
em seu centro, em consonância com os avanços no campo do currículo, que
o compreende como prática de significação.
Essa noção propõe realizar a tarefa de (re)construir, buscar, refletir e
compreender os conhecimentos de modo integrado a uma visão de mundo,
que pode tornar mais claro os sentidos e significados dos conhecimentos,
articulando o currículo à transformação da realidade. Ou seja, tal noção de
currículo busca compreender a realidade em seu movimento e espaciali-
dade bem como entender a complexidade do sentido da existência histórica
por meio da análise e articulação da experiência humana inter-relacionada
(econômica, política, social, cultural, ambiental, científica, tecnológica,
estética, ética, comunicativa, entre outras) em várias dimensões.

Os conteúdos, as didáticas, as avaliações terão de ser repensados para asse-


gurar o direito primeiro aos educandos de recuperar, ao menos nas salas
de aula, seu viver, sua condição corporal, espacial, temporal inseparáveis
do direito ao conhecimento, à cultura, aos valores, à formação plena como
humanos [...] Somos obrigados a articular os tempos-espaços no ordena-
mento curricular e os tempos-espaços do viver concreto, do indigno e mal-
viver das infâncias-adolescências dos educandos. (Arroyo, 2012, p. 43)

Essa noção de currículo propõe ao professor comunitário buscar


conhecer, refletir e compreender a realidade e cultura do educando, não
a partir da cortina ideológica dominante, mas trazendo ao debate como
problema a sua própria história, a partir de sua cultura, de sua situação
existencial concreta, de sua condição de classe e de identidade cultural, que
posssibilita a vivência de sonhos, angústias, anseios, prazeres, lutas, dores,

3 Ver artigo intitulado “Educação Integral e currículo intertranscultural” (Moll, 2012, pp.189 a 206) e
nas obras intituladas Currículo intertranscultural: novos itinerários para a educação (Moll, 2004) e Educar
em todos os cantos: reflexões e canções por uma Educação Intertranscutural (Moll, 2007).
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 181

alegrias, problemas relacionados à violência visível e invisível (de saúde,


moradia, transporte, etnico-raciais, dentre outras), que compõem a reali-
dade cotidiana.

Hoje, os tempos, os espaços de relação e de contatos culturais, principal-


mente levando em consideração as novas tecnologias da comunicação, são
outros, muito mais complexos e amplos, exigindo novas formas de enfren-
tamento do fenômeno multicultural e de suas manifestações mais diretas,
como a violência, o preconceito, os conflitos sociais, raciais, étnicos,
sexuais, religiosos, econômicos, políticos, entre outros. Nessa direção, esta
perspectiva curricular viabiliza e propõe atividades intertransdisciplinares,
necessárias à educação integral. (Padilha, 2012, p. 202)

A noção de currículo que alicerça a formação dos profissionais em


educação integral tem como orientação estimulá-los a desenvolver as ativi-
dades educativas com base na ação dialógica, procurando desenvolvê-las
pedagogicamente levando em conta os conhecimentos e experiências que o
aluno acumulou ao longo de sua existência. O diálogo, fundado no respeito
e valoração das vivências do educando, provoca e estimula a participação
educacional e social do aluno, estimula também, a imaginação criadora e o
prazer intelectual. Estimula, ainda, o educando a ser sujeito de seu processo
de desenvolvimento educacional e cultural, onde os conteúdos brotam de
seu contexto social e interesse.

Educar integralmente significa, portanto, educar para garantir direitos e


contribuir para a promoção de todas as formas de inclusão. Temos quase
sempre pensado e trabalhado na perspectiva dos oprimidos, visando a não
exclusão, procurando contribuir para a superação da expulsão das pessoas
que, direta ou indiretamente, já estão inseridas nos processos e nos projetos
participativos. (Ibid., 192)

A partir dessa noção de currículo, a educação integral e a formação


em educação integral podem ajudar o educador e o educando a crescer inte-
lectualmente, a se manifestar e, com isso construir seu próprio universo
pessoal e social. Nesse sentido, a ação pedagógica da educação integral
promove o crescimento em direção à socialização, à construção de rela-
ções fundadas na intersubjetividade, o que poderá resultar na possibilidade
de aprender a encontrar verdades não objetivas e absolutas, mas verdades
provisórias e, enquanto verdades, assumidas como tais por um sujeito ou
por um grupo de sujeitos sociais. E, considerando a provisoriedade das
182 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

verdades, a educação integral está, implicitamente, estimulando a adoção


de uma posição crítica, não individualista e não autoritária, na medida em
que se permite ouvir e dizer o até então não dito. Aprendendo a escutar
o não dito dos alunos, presente em sua estética corporal, e a dizer o que
ainda não se diz nem para si próprio.
Freire (1996, p. 135) adverte que ensinar exige disponibilidade para
o diálogo.

Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus


desafios, são saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respei-
tosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a
própria prática de abertura ao outro como objeto da reflexão crítica deveria
fazer parte da aventura docente. A razão ética da abertura, seu fundamento
político, sua referência pedagógica; a boniteza que há nela como viabilidade
do diálogo [...] O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com
seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curio-
sidade, como inconclusão em permanente movimento na História.

Por essa razão, antes de dar início ao curso de especialização em


Educação Integral e durante a sua realização, buscamos, parafraseando
Freire, dar a palavra aos professores comunitários4 das secretarias munici-
pais de educação de Cuiabá e Várzea Grande para saber que conhecimentos
teóricos e práticos eles entendiam serem os mais necessários no curso para
que, posteriormente, pudessem desenvolver com base em suas realidades,
nos espaços escolares e não escolares de suas comunidades e no interior de
seus projetos políticos pedagógicos.
Os professores do curso, então, a partir do diálogo com os profes-
sores comunitários, organizaram as ementas de cada temática da seguinte
forma:

Currículo na educação integral: As políticas de currículo como objeto de


estudo. Breve histórico do currículo da educação integral. Política curri-
cular e reforma educacional na América Latina. O lugar do currículo nas
reformas da educação integral no Brasil. Políticas afirmativas e os currículos
do ensino integral. O currículo e as novas tecnologias. Formas de organi-
zação curricular: interdisciplinaridade, integração curricular, currículo e
novas tecnologias, currículo por disciplina e currículo por competências.

4 Denominam-se comunitários, os professores que coordenam e desenvolvem educação integral


do Programa Mais Educação.
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 183

Espacialidade e poder. Territorialidade e corpo: Sequestro do espaço.


Violência simbólica e material da expropriação do espaço. Capitalismo:
desterritorialização histórica da memória e do sentido do político da organi-
zação cidadã e dos movimentos sociais. Estado, serviços e cidadania. Cons-
trução da democracia e participação cidadã. Intersetorialidade e superação
da divisão do trabalho na esfera do Estado. Intersetorialidade e cuidado:
construção de equipamentos sociais da justiça e da participação. Educação
integral e a intersetorialidade, compartilhamento dos ministérios na atenção
da cidadania. Construção do empoderamento social dos excluídos. Gestão
pública, construção e controle das políticas públicas e a mediação no insti-
tuído: intersetorialidade. Educação para a democracia.
Didática na educação integral: Um panorama das perspectivas da educação
no campo da psicologia e da sociologia. Teorias da aprendizagem. Compo-
nentes do processo de ensino aprendizagem. O papel da didática no tempo
presente. A didática na perspectiva dialógica e emancipadora. Didática e
formação de professores para a educação de tempo integral. Pressupostos
epistemológicos da avaliação no sistema escolar. Alternativas para uma
formação inicial e continuada de professores pautada na perspectiva sócio-
-histórica da produção de conhecimentos. Reflexão, ação-investigação.
Profissão e trabalho docente na escola de tempo integral.
Educação ambiental integrada: As principais abordagens da educação
ambiental entrelaçadas às dimensões ambientais, pedagógicas e sustentá-
veis. A educação ambiental na escola: as orientações curriculares na abor-
dagem fenomenológica e os projetos ambientais escolares comunitários.
Esporte e lazer na educação integral: Aspectos socioantropológicos do
esporte educacional. Fundamentos socioeducativos do lazer. O lazer como
uma categoria social. Os conteúdos educativos do lazer e do esporte-
-educação. O trabalho como espaço de lazer? A escola como espaço de
brincadeiras. Educar para e pelo esporte e lazer. Atividades lúdicas no
interior de instituições educativas. Atividades lúdicas esportivas e artís-
ticas a partir dos interesses do lazer nos tempos atuais.
Pesquisa em educação: aspectos teórico-metodológicos: A pesquisa na
dimensão científica e educativa. O processo de construção da pesquisa
científica. O projeto e o relatório de pesquisa. Pesquisa qualitativa. Estru-
tura dos trabalhos acadêmicos e normas da ABNT.
184 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

Cultura digital e educomunicação: Possibilitar reflexões teórico-práticas,


no âmbito da cultura digital na atualidade, bem como a crescente inserção e
uso de tecnologias da informação e da comunicação, seus recursos e possi-
bilidades de comunicação e colaboração em rede na perspectiva do processo
de ensino-aprendizagem nos espaços escolares.
Direitos humanos e valorização da diversidade: Ambiguidades do pacto
social e a questão da cidadania, representação política e democracia direta;
construção da liberdade de direitos e ampliação dos direitos humanos;
Direitos humanos na história ocidental; O direito vivo calado pelo direito
legal. A democracia e os direitos humanos. A diversidade e a questão da
hegemonia política dos direitos. Humanismo e educação para os direitos.
Direito à diferença. Movimentos sociais e luta pelos direitos humanos.
Educação popular, culturas, etnias e o poder. Democracia direta, por uma
cidadania ativa.
Cultura e artes: A criatividade e a expressividade como fundamentos da
condição humana. Arte e cultura como formas de fortalecimento do sujeito
social e da identidade cultural. A educação da sensibilidade e o olhar da
arte como direito cidadão. A arte-educação e suas implicações sobre a cons-
trução do conhecimento no processo do desenvolvimento humano e suas
relações intrapessoais e interpessoais relacionadas às expressões artísticas.
Oficinas de expressões artísticas e o uso de diferentes materiais e técnicas
relacionados ao ensino da arte. Práticas e confecção de recursos didáticos
aplicáveis a arte. A arte e a interdisciplinaridade.
Prevenção e promoção da saúde: corpo, psique, representações socios-
simbólicos. O normal e o patológico como fabricação social. O corpo e as
doenças como linguagens. Dimensão social e simbólica do adoentamento
e das práticas de terapia e cura. Relações sociais e a dimensão simbólica,
ritual e religiosa da saúde, doença, cura e a morte. O cuidado como relação
intersubjetiva e social de cura. Saúde e doença no universo do poder polí-
tico: fabricação capitalista do mercado das doenças. Os conhecimentos
das práticas populares de saúde. Direitos humanos, promoção e defesa da
saúde.

Todas essas temáticas selecionadas foram desenvolvidas pelos profes-


sores no curso de especialização na perspectiva de uma formação pedagó-
gica que tem como preocupação formar profissionais mais bem capacitados
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 185

para desenvolverem a educação integral no interior de suas comunidades, a


partir de suas realidades socioeconômicas e culturais e em termos infraes-
truturais e humanos.
Entendemos que a constituição curricular dos macrocampos, sua
organização e distribuição ao longo do curso, bem como as experiências
de ensino e pesquisa neles proporcionados são favoráveis à existência e
consideração de variados mecanismos e ambientes educacionais sem se
fixar em uma instituição; que se distanciam de lógicas disciplinares, sejam
elas pertinentes a currículos escolares ou àqueles relacionados à tradição da
formação de professores; e que, constantemente, opere com os diferentes
saberes e identidades que circulam no curso.
A educação integral não é fácil de ser implementada porque ela
demanda mudanças significativas na organização de espaços e tempos da
escola, na relação da escola com a comunidade, na nova organização curri-
cular, nova organização nas relações entre gestores, diretores, coordena-
dores, monitores, voluntários, educadores e educandos, e, sobretudo, na
crença da possibilidade e viabilidade de criação do vir a ser democrático da
educação integral e de currículos integrados.
No entanto, ela só pode ser edificada solidamente se todos os
profissionais tiverem, além de outras condições básicas, oportunidades de
formação inicial e continuada na área que atua, se todos tiverem livre acesso
ao ensino e à cultura, ao usufruto da autêntica cultura, isto é, da cultura
descolonizada que se fundamenta nos saberes e práticas de seus próprios
princípios e de sua própria realidade.
Tal como nos sugere Felício (2011), a educação integral requer a
construção coletiva da profissionalidade, que não fica na dependência de
voluntarismos, mas é assumida como política pública de formação por
diversas instituições educacionais, formais e não-formais, e por diferentes
profissionais que se engajam e protagonizam um projeto comum. Projeto
este que precisa, constantemente, de ser planejado e (re)planejado.
As perspectivas são de um trabalho contínuo, incansável no sentido
de enfrentamento dos desafios de superação de poucas condições de infra-
estrutura, de resistência epistemológica e cultural às mudanças necessárias
ao desenvolvimento do projeto, mas são condições primordiais e necessá-
rias para reconhecimento dos direitos humanos, sobretudo, da criança e do
adolescente que têm direito à dignidade humana no exercício de prática
educacional e social.
186 Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta, Ozerina Victor de Oliveira

Em caráter de síntese, talvez seja importante, levantar, aqui, alguns


pontos a respeito da noção de currículo que orienta a educação integral, no
âmbito da compreensão e de nossos estudos e experiência. Compreendemos
que uma educação integral requer um currículo integrado, continuamente
construído nas práticas de significação cotidianas e coletivas, como expe-
riência vivida, como práxis. Um currículo integrado implica no respeito
às especificidades identitárias, políticas, ideológicas e epistemológicas, de
modo a funcionar em favor de grupos oprimidos, sejam eles entendidos
como classe social ou como grupos minoritários.
Esse currículo implica, ainda, no rompimento com tempos e conhe-
cimentos disciplinarizados, descontextualizados, descontínuos, fragmen-
tados, compartimentados, hierarquizados, finitos, repetitivos e prescritivos.
Um currículo integrado requer, também, legislação regulamentadora, finan-
ciamento público, indução de formação, infraestrutura condizente com a
amplitude e a complexidade das ações, condições de trabalho e salários
dignos para os profissionais que nele atuam.
Uma finalização provisória da reflexão aqui exposta nos remete à
sua continuidade, agora dependente de pesquisas que deem visibilidade às
experiências com formações imbuídas de currículos integrados, na pers-
pectiva da educação integral, delimitadas nos municípios e estado de Mato
Grosso.

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Letramento crítico para a diferença:
repensando o currículo
e a formação de professores
de inglês no curso de Letras
Danie Marcelo de Jesus1

Quem Sabe um Dia

Quem Sabe um Dia


Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida! [...]

Mario Quintana

1 Graduado em Letras. Mestre em Educação, doutor em Linguística Aplicada e Estudos da


Linguagem. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. <http://lattes.cnpq.
br/5826176151112581>
192 Danie Marcelo de Jesus

Em minha vivência, como professor, em escola pública, cheguei à


conclusão de que a temática voltada à homoerótica não deveria continuar
pauta de discussão em sala de aula. Lembro-me que, diversas vezes, em
conversas informais com meus colegas, expunha a necessidade de dialo-
garmos com nossos alunos a propósito desse tema. Não foram poucas às
vezes em que meus pares me olhavam com certa desconfiança ou surpresa
à luz dos argumentos expendidos. Outros, de sua parte, verbalizavam sua
perplexidade com ironias, quando não com ladainhas religiosas. Em alguns
momentos, meus colegas alegavam que essa temática poderia gerar fúria
entre os pais, zelosos pelo bem-estar de seus filhos.
Já como docente, no curso de Letras, deparei-me com número
expressivo de discentes que se manifestavam com identificações homo-
eróticas. Contudo, percebi de imediato (Jesus, 2012a) que meus alunos
traziam histórias marcadas pela violência física e psicológica. Eles também,
na qualidade de futuros professores, pouco sabiam como lidar com essa
questão.
Essas situações evidenciam quanto a compreensão homoerótica é
socialmente construída e mediada pelo poder. Não fosse assim, por que os
pais poderiam se sentir ofendidos? Por que os professores sentiriam tanto
receio? De que forma uma discussão educacional sobre sexualidade poderia
alterar a biosfera sexual da escola e do curso de Letras? Em resposta a esses
questionamentos, denotei a necessidade de repensar o currículo de Letras
e minha prática docente. Será que o curso de Letras reforçava um discurso
hegemonicamente discriminatório?
Analisando, com cuidado, as ementas do curso de Letras de minha
universidade, notei que, em nenhum momento, ocorria uma problemati-
zação da questão de gênero e diferenças. Pareceu-me que o curso se silen-
ciava diante das histórias de violência simbólica que nossos alunos descre-
viam. Posta essa situação, busquei ferramentas teóricas dos estudos sobre
gênero, aliadas à perspectiva dos multiletramentos e letramento crítico, por
compreender que esse arcabouço entende a produção de sentido relacio-
nado com o lócus de enunciação de cada sujeito. Dessa forma, o sentido não
se inscreve no texto em si, a ser revelado, mas no ato de quem interpreta
um enunciado.
Nessa esteira, amplia-se a noção de significado como plural,
marcadamente influenciado pela diferença. Um currículo que focalizasse
essas premissas deveria levar em consideração o conflito como elemento
Letramento crítico para a diferença... 193

essencial para problematização do modus operandi. Pensando no curso de


Letras, emergiria um currículo que tivesse em mira operacionar a produção
de sentido dentro do pertencimento sócio-histórico de quem produz signi-
ficação. Nesse viés, o ato de interpretar deve ser encarado como contin-
gente. Já o local, fruto da divergência dos produtores de significação, e não
como universalização de sentido. Daí a necessidade peremptória de escutar
o outro num processo constante de negociação de sentido. Aclarada essa
questão, teríamos um currículo que acolhesse a diferença, em suas diversas
manifestações: sociais, políticas, culturais e sexuais.
O percurso escolhido para fundamentar minha discussão alinhava
algumas propostas advindas daquilo que designarei de letramento para
as diferenças, com base na questão de gênero e diversidades, novos letra-
mentos, letramento crítico e currículo. Finalmente, as considerações finais
desta proposta de pesquisa.

GÊNERO E DIVERSIDADES NA ESCOLA

Como afirmei em passo anterior, minha experiência de educador


pontua quanto a escola revela ser ambiente que procura negar as diferenças
de gênero (Louro, 2000; Jesus, 2012a; Jesus, 2012b). Docentes e discentes
se esforçam por viver sob uma égide que pretende “fazer de conta” que
vivem um mesmo padrão de sexualidade. Apesar dessa busca obsessiva pela
homogeneização, constantemente esse quadro é questionado, a demonstrar
que essas demarcações sexuais são ilusoriamente controláveis.
A escola, contudo, procura peremptoriamente criar mecanismos
que intentam disciplinar qualquer sujeito que se poste como diferente
do discurso hegemônico. Por isso é que, nas interações sociais no espaço
escolar, os sujeitos diligenciam por reproduzir atitudes estereotipadas com
vista a sistematizar comportamentos considerados adequados. Aqueles
que desobedecem são isolados, para que suas ações “inconvenientes” não
afetem a harmonia do cotidiano escolar. Os impertinentes que manifes-
tarem sua sexualidade não canônica sofrerão algum tipo de reação violenta,
seja simbólica, seja física.
Em decorrência dessa situação, os alunos que se identificam com
certos rótulos – homossexuais, travestis, cross-dressers, bissexuais, lésbicas,
entre outros –, acabam tendo que se silenciar, procurando assumir atitude
de ajustamento para que possam se tornar mais convencionalmente aceitos.
194 Danie Marcelo de Jesus

Contudo, caso a escola seja obrigada a tocar na questão de sexualidade, o


assunto sempre é descrito dentro de uma perspectiva heteronormativa que
tenta legitimar práticas sociais do que seja próprio de uma mulher e de um
homem. Nessa composição, cria-se um discurso polarizante que visa negar
as diversas ramificações de expressividade sexual.
Desenhado esse contexto, no universo escolar, qualquer menção a
outras formas de identificação que não se afine com a heterossexual deve
ser banida. Os educadores, porém, desconhecem que até mesmo o discurso
hegemônico de masculinidade e feminilidade não é algo simples, dado
que traduz uma construção histórico-social. Só poderemos compreender
melhor esse cenário se tivermos em mente que é, por meio do discurso, que
as identidades sexuais são caracterizadas e diferenciadas umas das outras.
Esse binarismo na escola se descortina por meio de práticas sociais
que, simbolicamente, organizam o mundo em significações. Essas práticas
sociais do discurso contribuem para compor as “identidades” dos sujeitos e
suas relações sociais, bem como suas representações e seus conhecimentos.
Assim, nessa perspectiva, a relação de poder e de ideologias é fundamental
para compreender as dimensões sociais do conhecimento, das relações e da
identidade social.
É à luz desse panorama teórico que procuramos entender as repre-
sentações de professores sobre o homoerotismo, fruto de práticas discur-
sivas que legitimam convenções e redesenham as condições de produção
do que sejam homens e mulheres. São essas representações que geram ideo-
logias, colaborando para a representação de estereótipos sociais. É por isso
que, de constante, ouvimos comentários que procuram descrever pessoas,
com interesse pelo mesmo sexo, como seres caricatos ou promíscuos.
A escola, ao seu turno, instituição que é do Estado, revela-se como
importante dispositivo propagador do binarismo – homem e mulher,
heterossexual e homossexual – que corrobora para a manutenção de uma
lógica de dominação-exclusão. Dessa maneira, não é raro observar ações de
discriminação na sala de aula, seja pelo consentimento, seja pelo reforço,
seja ainda pela negação dessas ações. Assim, intui-se que o cenário escolar
parece silenciar-se diante das identificações ditas não naturais, não permi-
tindo uma prática pedagógica que reflita sobre as dimensões das diferenças
e de seus efeitos sociais e culturais. Os professores preferem ignorar que
Letramento crítico para a diferença... 195

a escola é habitada por sujeitos – portanto, de pessoas dotadas de senso


crítico próprio, mas sobretudo da capacidade de decidir sobre seus atos –
que procuram perfilhar outros caminhos que não os convencionais.
Independentemente dessa descrição negativa do espaço escolar, acre-
dito ser possível recompor outros sentidos que não aqueles descritos até
agora. A escola também pode ser ambiente de questionamento do discurso
engessado sobre a sexualidade e sobre o diferente. Em decorrência dessa
crença, faz-se necessário que seja modificada a formação de professores na
universidade com a finalidade de inverter ações discriminatórias na escola.
É nesse contexto que acredito na necessidade de um currículo que acolha
as diferenças como algo indissociável da natureza humana.

LETRAMENTO CRÍTICO PARA A DIFERENÇA


NO CURSO DE LETRAS

Nos últimos anos, diversos trabalhos nacionais e internacionais


sobre línguas estrangeiras (Gee, 2000; Cope e Kalantzis, 2000; Lank-
shear e Knobel, 2006; Knobel e Lankshear, 2007; Monte Mór, 2007;
Jordão, 2007; Brydon, 2011; Menezes de Souza, 2011; Monte Mór, 2011)
vêm salientando a importância do ensino crítico de línguas no currículo
escolar. Dessa maneira, tais pesquisas acabam por nos chamar a atenção
para a dimensão social e política que emergem do ensino e aprendizagem
de língua estrangeira.
A despeito desses estudos, ainda são poucos os efeitos práticos na
escola. Contudo, deve-se ressaltar que esforços com a finalidade de apri-
morar o padrão de ensino de línguas estrangeiras dentro de uma perspectiva
crítica, principalmente no segmento público, não faltam. As universidades
públicas, por exemplo, com seus cursos de pós-graduação, tornaram-se
nichos de formação de professores. Entretanto, apesar de esforços dessa
natureza, somos conscientes que são insuficientes os cursos oferecidos
para docentes envolvidos no ensino de inglês no Brasil, sobretudo os que
encerram um viés do letramento crítico.
Ainda é mais preocupante o fato que, no curso de Letras, não se
observa a discussão da temática gênero e diversidade, apesar de sua rele-
vância social e educacional. É comum alunos de Letras nos questionarem
no tocante à educação pela diferença, com intento de conhecer a forma de
típicos estereótipos. Tendente a esclarecer esses questionamentos, acredito
196 Danie Marcelo de Jesus

que seja fundamental uma reconstrução de nossas práticas educacionais


para que possamos assimilar mudanças que nos permitam compreender
que a natureza humana é marcada pela diferença. É entender que nossas
identificações ora se aproximam da norma estabelecida pela sociedade,
ora se alteram e se apresentam como “desviantes”, ditadas por uma fluidez
constante.
Nessa marcha, o letramento para a diversidade pode esbarrar em
riscos e incertezas naturais ao processo educacional. De outra parte, lidar
com essa questão é fator decisivo para que o profissional da educação não
desista de um ensino crítico assinado pelo acolhimento dos desiguais. A
entrada do professor nessa seara pode suscitar sentimentos de angústia,
que, para serem superados, requerem desse profissional o desenvolvimento
de um julgamento crítico que o auxilie na construção de sua autonomia e o
prepare para enfrentar as diversas situações de imprevisibilidade.
Para melhor esclarecer o leitor a propósito dessa perspectiva, retomo
o conceito de letramento que, na visão de Kleiman (1995), vem à tona no
mundo acadêmico para diferenciar o impacto social da escrita (letramento)
em relação aos estudos sobre alfabetização, entendida esta como compe-
tência individual no uso e na prática da escrita. Recentemente, essa noção
tem abraçado a ideia de multiletramentos e letramento crítico (Monte Mór,
2007 e 2011, Menezes de Souza, 2011) como práticas sociais plurais e situ-
adas que refletem valores culturais, políticos, ideológicos e linguísticos de
determinado grupo social.
Essa pluralidade de sentidos – denominada multiletramentos –
conclama a um ensino sedimentado em questões de alteridade, de hete-
rogeneidade, da problematização das relações de poder entre aqueles que
detêm formas de letramento dominantes e subalternas. Nessa perspectiva,
alinho a necessidade de ampliação do escopo de competência da escola para
que leve em consideração as diferenças de gêneros e seus efeitos multisse­
mióticos, políticos, culturais e sociais. Nesse formato, a escola, além de
desenvolver práticas letradas no âmbito da leitura e da escrita, agasalha o
compromisso social de pensar outras culturas, aqui me referindo às não
heteronormativas, como formas de letramento indispensáveis ao agir na
vida contemporânea.
A educação voltada ao letramento para a diferença se refere a um
processo de reconhecer que há diversificadas manifestações do feminino e
do masculino. Isso não quer dizer que, em nome de um discurso inclusivo,
Letramento crítico para a diferença... 197

transforme a questão em um tema a ser tratado de forma folclórica. Tal


atitude pode gerar, no educando, o fortalecimento do discurso dicotômico
(homossexuais x heterossexuais) que sustenta a percepção do exotismo, e
não da simples diferença de comportamento.
Para fugir dessa postura ingênua de inclusão, proponho que a
discussão sobre as diferentes manifestações do gênero seja apresentada, de
forma natural, como parte do processo de desenvolvimento educacional na
escola. Nessa visão, por exemplo, que o professor, ao discutir questões rela-
cionadas com a afetividade, leve em linha de conta os possíveis núcleos
familiares, e não aqueles já consagrados, apenas pautados na tradição. Em
situações referentes à história da humanidade, é importante lembrar que
a sociedade sempre foi modelada por sujeitos que se manifestavam com
identificação sexual diferente, a depender do contexto social e cultural de
cada sociedade, cujas ações militares não guardavam relação direta com sua
preferência sexual.
Que a escolha de figuras em atividades didáticas nas séries iniciais, a
título de exemplo, não seja impulsionada apenas por imagens de indivíduos
que se manifestam engajados em comportamentos socialmente mais tradi-
cionais. Em contrário disso, junte-se a esses a participação de sujeitos que
acolham outras identificações de gênero.
O letramento pela diferença também exige do professor a
compreen­são da linguagem como manifestação ideológica e de seu impacto
no discurso dos alunos. É pelo discurso que elegemos a maneira de nomear
as coisas que estão em nossa órbita, por ele evidenciamos as diferenças,
criamos símbolos de unidade e identificação coletiva. Se, às vezes, apagamos
vozes, não raro eternizamos outras.
Desse ponto de vista, podemos compreender por que discursos
hegemônicos sexistas se esforçam por buscar explicações naturais sobre
os limites entre o masculino e o feminino. Pelo olhar discursivo, perce-
bemos que a legitimação heterossexual não ocorre aleatoriamente, antes é
fruto de um jogo hegemônico ideologicamente construído que estabelece
regras de como devemos nos comportar e nos movimentar no teatro social.
Aqueles que fracassam no script estabelecido são nominados como anor-
mais. Levando em conta esse entorno, podemos perceber o porquê do medo
da presença homossexual, que parece pôr em questionamento os sentidos
históricos do que seja normalidade. Isso significa deslocamento de forças e
de poder.
198 Danie Marcelo de Jesus

É importante vincar que o desenvolvimento de metas de letramento


será alcançado caso o professor possa desconstruir os enunciados dos
educandos, por meio da problematização, da reflexão e da reinterpretação
das diferentes vozes que se patenteiam nas interações em sala de aula. Daí
a necessidade de o educador ter consciência do efeito da linguagem em sua
prática cotidiana. É essa percepção que favorece a criação de outras formas
de conhecimento, rompendo com as barreiras espaciais e disciplinares,
reinventando constantemente os limites do saber específico e do diverso,
da teoria e da práxis. Em síntese, do que se faz revelador do cotidiano e do
que, mais acertadamente, abraça o âmbito do cosmopolita.
Nessa posição, o professor não somente pergunta, mas, princi-
palmente, escuta; ouve como alguém ávido para compartilhar, colaborar,
aprender, ousar, libertar, refletir e construir uma autonomia coerente com
aquilo em que, juntamente com seus alunos, acredita. Por isso, a ideia de
letramento para diferenças sinonimiza, de certa forma, submissão incondi-
cional à criação e à ética.
O professor revestido dessa postura, além do querer e da esperança,
precisa engendrar uma sensibilidade cultural (Erickson, 1986/1990) para
tentar se “despir” de seus preconceitos, diligenciando por reduzir as difi-
culdades de comunicação com os alunos. Sob esse amparo, os discentes são
considerados pessoas inteligentes, dotadas de uma cultura familiar própria
dos contextos sociais nos quais estão inseridos.

CURRÍCULO CRÍTICO DE LETRAS:


INGLÊS PARA A DIFERENÇA

O currículo da escola sempre foi elemento norteador da prática


educativa no interior da escola – entendido sempre como uma lista de
assuntos a ser abordado pelo professor. No caso do ensino de língua estran-
geira, o currículo era o próprio livro didático que trazia sequência bem
definida de pontos gramaticais a serem desenvolvidos do mais simples,
geralmente verbo to be, a estruturas mais complexas, como o present perfect.
Vinha recheado de textos ou atividades auditivas que procuravam recriar
um contexto mais “autêntico”, no caso da abordagem comunicativa, de
uso dos pontos linguísticos estudados. Todo esse processo era mediado por
uma visão de cultura com foco em um nativo idealizado que retratasse uma
sociedade ideologicamente representada.
Letramento crítico para a diferença... 199

Atualmente essa visão do currículo vem sofrendo profundo questio-


namento, especialmente com o advento da internet que vem desencadean­do
o surgimento de vários gêneros textuais que alteram o cotidiano das intera-
ções sociais e nossa relação com o saber.
Essas transformações podem ser percebidas em comunidades
virtuais, em salas de bate-papo ou em fóruns de discussão motivados pela
nova ordem espacial e temporal, advinda da manifestação da cibercultura,
que modifica nossa subjetividade, cedendo lugar a um existir no mundo
por meio das palavras e imagens. Isso pode explicar por que alguns parti-
cipantes das comunidades digitais utilizam determinado sistema grafolin-
guístico (abreviações, emoticons, etc.).
Os indivíduos que participam dessa nova realidade cibertempo–
espacial precisam, de alguma maneira, apropriar-se dos signos que essa
cultura oferece. Entretanto, esses mesmos signos também são reinter-
pretados e ganham novos significados para cada nova comunidade cibe-
respacial que é formada. É por isso que essa apropriação não é idêntica
para cada pessoa, portanto é inevitável certa heterogeneidade entre os
indivíduos que decidem inserir-se no tecido social e cultural do ambiente
digital.
No ciberespaço, a contradição, a ambiguidade e a volatilidade identi-
tária parecem se ampliar, pois podemos estar em contato permanente com
pessoas de culturas diferentes. Em uma sala de chat, por exemplo, posso
me metamorfosear em um jovem de 15 anos ou em um velho senhor. Essa
possibilidade de transmutar afeta decisivamente a forma como as práticas
identitárias são construídas no contexto digital. Posso deixar de ser “eu”
para assumir múltiplas personalidades. Esse processo se dá especialmente
por intermédio da linguagem que precisa ser escrita para que eu possa me
constituir. Essa nova corporeidade está diretamente conectada à subjetivi-
dade que me faz presente, aqui e agora, por uma comunicação síncrona,
presente, em outra parte, por uma comunicação assíncrona. Traduz nova
consciência na ordem do tempo e do espaço.
Diante desse quadro, ensinar e aprender língua estrangeira foge da
visão ingênua do ensino de quatro habilidades comunicativas (ler, escrever,
falar e ouvir) para uma perspectiva centrada em novas formas de letramento
que encapsula elementos multimodais e multissemióticos da linguagem.
200 Danie Marcelo de Jesus

Daí um currículo que incorpore essas novas formas de multiletramento


deve inexoravelmente enfatizar o social, o político e as diferentes manifes-
tações culturais.
Por esse prisma, acredito que estudos com base no multiletramento,
no letramento crítico, e em letramento para a diferença podem ser recursos
para um currículo que se volta para o exótico. Em outras palavras, para
aqueles que estiveram à margem da formação docente. Isso não significa
que basta incluir questões relacionadas ao combate à homofobia, expli-
citar a igualdade racial e cultural para criar condições para um currículo
centrado no diferente. Em muitos casos, quando esses temas são apresen-
tados, o currículo é pautado por questões de certo e errado ou simples-
mente pela estreita atitude de respeito ou tolerância. Essas atitudes parecem
estimular a categorização dos sujeitos como anormais ou esquisitos.
O que se examina, no letramento crítico para o diferente, é eviden-
ciar que o sentido não é algo dado no texto e que qualquer significação se
concretiza dentro de uma estrutura de poder que envolve sujeito com iden-
tidade atribuída pelas forças sociais que o posicionam em espaços sociais
homogeneizantes. Busca-se reconhecer a necessidade de livre trânsito das
fronteiras identitárias, sem a fixação absoluta da identidade social (Silva,
2011). Sendo assim, o currículo do curso de inglês, à luz dessa visão não
se centralizaria mais em pontos gramaticais ou em habilidades linguísticas,
mas no sentido, na relação de poder, na multiplicidade de significação e no
posicionamento que o leitor assume nos encontros sociais.
A título de exemplificação, passo a compartilhar com o leitor uma das
tarefas do curso de formação reflexivo-crítica do professor de língua inglesa
a distância da Universidade Federal de Mato Grosso sob minha supervisão.
O curso tinha como objetivo possibilitar aos professores do ensino funda-
mental e médio de língua inglesa desenvolvimento teórico como instru-
mento de transformação social. Em adendo, o curso procurava estimular a
convivência baseada no respeito à diferença de gênero e étnico-racial. Em
uma das atividades, foi solicitado aos professores que descrevessem ações
que pudessem aumentar a igualdade de gênero durante as aulas.
Nessa atividade, notou-se que alguns professores traziam em seu
discurso uma percepção bastante equivocada sobre o tema proposto. O
professor facilitador procurou problematizar a situação, perguntando por
que eles pensavam desta ou daquela forma e quais semelhanças e diferenças
podiam perceber nas histórias de seus colegas.
Letramento crítico para a diferença... 201

Um currículo inspirado na diferença se nutre, portanto, de uma


revisão radical das epistemes dominantes, não se limitando a questionar
o conhecimento socialmente construído, mas explorar aquilo que não foi
edificado (ibid., p. 109).
Desta reflexão, intento depreender algumas implicações para a
formação de professores de inglês. Primeiro, precisamos urgentemente
aportar para o curso de graduação a discussão atinente à diferença e à sua
consequência política. Não se cuida aqui de, simplesmente, aceitar as dife-
renças por si, mas de um comportamento educativo que vê no outro suas
potencialidades como aprendiz, e não sua identificação sexual. O currí-
culo, por sua vez, também deverá ser orientado pela pluralidade, esquecida
a singularidade, e pelo exotismo, entremostrada a outra face da medalha,
franqueando um olhar mais humano àqueles que, como que prejudicados
por uma catarata, traziam uma visão tolhida e embaraçada.

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4. SEGURANÇA PARA PRÁTICAS
CURRICULARES DA DIVERSIDADE
Currículo e culturas
na formação policial
Ronilson de Souza Luiz1

A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém
pensou sobre aquilo que todo mundo vê.
Arthur Schopenhauer

Neste artigo, que traz desdobramentos da tese de doutorado, registro a


indicação de que é preciso que cada um faça o que pode no seu campo de
conhecimento – e cada campo é obrigatoriamente limitado, o que torna a
qualidade de cada gesto na direção da diversidade relevante.
Dialogaremos com a perspectiva do currículo crítico, certo de que a
educação não é outra coisa senão o esforço que os humanos fazem, estando
ou não perto uns dos outros, para responder a uma mesma pergunta: como
nos tornar cada vez mais humanos? Aqui faremos alguns gestos na direção
das questões curriculares dentro da formação e cultura policial.
A análise das informações, no que corrobora para melhor
compreen­são deste artigo, será embasada na epistemologia qualitativa de
Chizzotti (2006). Buscaremos o equilíbrio entre a “máxima desigualdade
aceitável” e a “mínima igualdade exigível” como projeto universal para
uma humanidade fundada na paz e na justiça. Pensar essa cultura visa
robustecer e revitalizar a atividade policial, tratada desde o processo de
seleção, passando pela formação inicial e os imprescindíveis treinamentos
e atualizações.
Nesse sentido, vejamos o que traz Soares (2011, p. 25):

1 Graduado em Letras e em Formação de Oficiais pela Academia de Polícia Militar. Mestre e doutor
em Educação. Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Docente da Academia de Polícia
Militar de São Paulo. <http://lattes.cnpq.br/1457314328660305>
206 Ronilson de Souza Luiz

Graças à linguagem, aos conceitos e aos valores dos direitos humanos,


tornou-se impensável a escravidão, repugnante o racismo, absurda a into-
lerância religiosa, repulsiva a homofobia, vergonhosa a tortura, insuportá-
veis a misoginia e a dominação machista, injustificável a desigualdade de
oportunidades, inaceitável o imperialismo. Devemos a cultura dos direitos
humanos a ideia de que a violência é um mal.

Escrever sobre currículo e os desdobramentos deste sem relação


a atuação policial visa também a uma oxigenação externa, que auxilia as
ações internas, ou seja, menos violência, menos mortes, menos lesões,
menos sofrimentos, menos dor e mais vida.
Observamos que a sociedade moderna, erigida sob a tradição
judaico-cristã de laços permanentes (família patriarcal) e organizações
sociais hierarquizadas (igreja, escola, ...), vê-se mergulhada no indivi-
dualismo, no medo, na incerteza e na desconfiança, fruto daquilo que o
soció­logo Zigmunt Bauman cunhou como “modernidade líquida”, ou seja,
o locus onde a própria noção de estrutura, organização e laço social são
esvaziadas pela estonteante dinâmica do tempo enquanto espécie de capital
econômico, cultural e afetivo. A aposta na maior liberdade individual em
detrimento da segurança coletiva constitui, para Bauman, a principal fonte
do mal-estar atual, já presentes no clássico mal-estar na civilização.

CURRÍCULO DO FAZER POLICIAL

O fazer do policial, que carrega a singular permissão para o uso da


força e das armas, no âmbito da lei, confere-lhe natural e destacada autori-
dade para a consolidação da cidadania e das questões democráticas ou para
a devastação de ambas.
Não por acaso registramos uma crescente produção de monografias,
dissertações e teses, realizadas, sobretudo, por não-policiais, tentando dar
conta do profissional de polícia, que precisa ter suas condições pesquisadas
e compreendidas.
Por meio de entrevistas abertas, realizadas em 2007, analisamos
aspectos da humanização do policial e do processo ensino-aprendizagem
para se ensinar a ser policial. Nesse sentido, destacaremos excertos das
narrativas dos profissionais já aposentados, ou seja, coronéis da reserva.
Currículo e culturas na formação policial 207

Essa escolha se liga ao fato de que, nessa fase, presume-se que os policiais
possam ter, pela experiência de no mínimo 30 anos de serviço, uma visão
mais aberta, com maior clareza e entendimento do trabalho policial.
As referências pedagógicas serão as lições de Freire (1974, 1997,
2000), para quem a educação como prática unidirecional, autoritária,
baseada na ideia de aprendizagem como simples aquisição de informações
nada contribui para a autonomia e crescimento pessoal daquele que aprende
visão corroborada, do ponto de vista policial, por Soares (2006a, 2006b).
Uso a metáfora do salto em altura para a questão educacional.
Funciona assim, cada aluno ao final de um período deve saltar determinada
altura, ou seja, vencer determinado obstáculo, a saber, passar por provas.
Muitos alunos não têm conseguido êxito e aí vem a pergunta – o que fazer?
Treinadores experientes colocam mais peso em cada pé do atleta, que serão
retirados na hora da prova, de tal sorte que a dificuldade encontrada seja
superada pelo preparo, disciplina e orientação técnica. Outros treinadores
orientam seus atletas a procurarem algo mais simples, mais fácil ou que
desistam. Outros formadores têm a brilhante ideia de abaixarem a altura da
barra, acreditando facilitar a caminhada e ajudar o aluno. Sabemos que não
poderemos sob qualquer justificativa adotar este último caminho.
No entanto, como afirma Giroux (1995, p. 88):

Os/as educadores/as não poderão ignorar, no próximo século, as difíceis


questões do multiculturalismo, da raça, da identidade, do poder, do conhe-
cimento, da ética e do trabalho que, na verdade, as escolas já estão tendo
de enfrentar. Essas questões exercem um papel importante na definição
do significado e do propósito da escolarização, do que significa ensinar e
da forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as para viver em um
mundo que será amplamente mais globalizado, high tech e racialmente
diverso que em qualquer outra época da história.

De maneira geral as polícias militares possuem um sistema de ensino


próprio denominado ensino policial-militar previsto em legislação especí-
fica e regulado por meio de normas designadas Normas de Planejamento e
Conduta do Ensino Policial Militar (NPCE).
A Magna Carta de 1988 manteve o vínculo institucional das polícias
militares às Forças Armadas. A organização das polícias militares, inclusive,
atende ao decreto-lei nº 667, de 2 de julho de 1969, e ao decreto federal nº
88.777, de 30 de setembro de 1983, que reorganiza as polícias militares.
208 Ronilson de Souza Luiz

Nos termos do artigo 83 da lei federal nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que instituiu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
“o ensino militar é regulado em lei específica, admitida à equivalência de
estudos, de acordo com as normas fixadas pelo sistema de ensino”.

VIVÊNCIAS DE FORMADORES DE POLICIAIS

O olhar policial aqui analisado leva em conta dados estatísticos e


demográficos da cidade de São Paulo e do país. Por exemplo, existem mais
templos (algo em torno de 4 mil) do que escolas públicas (cerca de 1.700);
o deficit de vagas nas creches municipais passou de 57,6 mil em 2008 para
174,1 mil em 2011. Outro exemplo que atinge o currículo policial; em
2010, houve mais mortes causadas por veículos nas ruas e calçadas de São
Paulo (1.357) do que homicídios dolosos na cidade (1.196), as principais
vítimas foram pedestres: 630 mortos, considerando que ter emprego, liber-
dade, saúde e relações sociais elevam o bem-estar; ao passo que barulho,
trânsito e brigas com familiares o reduzem.
Dados educacionais que nos ajudam na reflexão e que não podemos
perder de vista dão conta de que o ensino superior do Brasil, segundo dados
de 2010 do Inep, tem 2.378 instituições de educação superior (IES), das
quais apenas 278 são públicas e que, em média, 72% das famílias brasileiras
têm rendimento mensal inferior a dois salários mínimos. Nas regiões Norte
e Nordeste, o índice chega a 80%.
Ao refletir sobre a concepção de currículo, Giroux (1997, p.  51) é
bastante explícito;

Uma nova espécie de currículo deve abandonar sua pretensão de ser livre
de valores. Reconhecer que as escolhas que fazemos com respeito a todas
as facetas do currículo e pedagogia são carregadas de valor significa nos
libertarmos de impor nossos próprios valores aos outros. Admitir isto signi-
fica que podemos partir da noção que a realidade nunca deveria ser tomada
como dada, mas que, em vez disso, deve ser questionada e analisada.

A manutenção da tranquilidade pública e o auxílio da justiça foram


as principais atribuições para a criação, por exemplo, das polícias militares
nas unidades federativas. Nesse sentido, a Polícia Militar é uma instituição
Currículo e culturas na formação policial 209

pública organizada com base nas regras militares de hierarquia e disciplina,


e sua destinação constitucional se encontra prevista no art.144, capítulo II
(da segurança pública) da Constituição Federal.
Assim, o final da década de 1990 é marcado por esforços no sentido
de consolidar o regime democrático. A área de segurança pública, em alguns
momentos, ainda é gerida por respostas às tragédias, às emergências e aos
desastres sem uma política consistente e duradoura que respeite, sobretudo,
as questões de direitos humanos, o processo de uma formação mais huma-
nizada ao policial militar e demais agentes das forças de segurança.
Por meio da análise de conteúdo, buscaremos compreender o
processo de formação profissional, pois, conforme Chizzotti (2006, p. 115)

A análise de conteúdo construiu um conjunto de procedimentos e técnicas


de extrair o sentido de um texto por meio das unidades elementares que
compõem produtos documentários: palavras-chave, léxicos, termos especí-
ficos, categorias, temas e semantemas, procurando identificar a frequência
ou a constância dessas unidades para fazer inferências e extrair os signifi-
cados inscritos no texto a partir de indicadores objetivos.

Ao analisar os elementos que se destacam na configuração subje-


tiva dos três coronéis aposentados, nominados como coronel A, B e C,
observamos:
1) o descontentamento com o Estado no que se refere à pouca valorização
da profissão e do profissional de polícia.

[...] eu fiz Pedagogia, fiz Administração Escolar, por minha conta, sem nenhum
incentivo da Polícia. (Cf. coronel A)

[...] porque o pessoal que têm mais recursos financeiros dificilmente entram
como soldados, vão procurar outras carreiras que tenha uma rentabilidade
rápida, além do que, a da nossa carreira é muito lenta. É muito difícil porque
nossos soldados vêm das comunidades pobres, e é até difícil de recrutar [...]
Eles calculam 8%, ou seja, de cada 1000 candidato apenas oito ingressam.
(Cf. coronel C)

2) quais requisitos marcam ou caracterizam um “bom policial”:

[...] O que não me causou estranheza, mas, de certa forma indignação é que
pouco se fala em prevenção, nós nos preocupamos muito na Escola de Formação
em dar uma dosagem de Direito... Direito disso, Direito daquilo... Mas o lado da
210 Ronilson de Souza Luiz

prevenção que é o fundamental, o que devemos praticar, o que devemos investir,


nós pouco abordamos. Abordamos sim, mas, deveria ser em uma carga mais
elevada... entre o prevenir e o punir, deve prevalecer o prevenir. (Cf. coronel B)

[...] eu era inflexível com duas coisas: Quando encontrava o cara dormindo ou
com a arma suja [...] Não porque está no regulamento, mas, porque ele não está
pensando na vida dele, não está pensando que pode ser morto, se pegarem sua
arma, vai servir pro bandido.

[...] Esses valores básicos de cumprimento de ordens, de disciplina, mas, no


sentido de talhar o homem a cumprir o papel que ele se propôs. Se ele se propõe
e não dá certo, “tchau e benção”, não é aqui. (Cf. coronel B)

3) necessidade de discussões transdisciplinares para se pensar as questões


de polícia:

[...] Achar que segurança é um assunto transdisciplinar, interdisciplinar, anti-


gamente isso era um absurdo, uma heresia, você estaria fadado a estar no cati-
veiro. (Cf. coronel B)

[...] faço uma outra crítica. Se nós não ouvirmos a sociedade, se não enca-
rarmos essa transdisciplinaridade que a polícia tem que ter, a segurança, temos
que pensar nisso porque, às vezes, o modelo que está, não está dando certo. (Cf.
coronel B)

4) necessidade de disciplinas das chamadas ciências humanas para uma


formação mais humanizadora:

[...] Fora isso, quaisquer cursos: de relações humanas, de administração, de


tudo, e principalmente às áreas ligadas à Informática. Nós formamos uma
discussão muito importante há décadas: “Quantos homens precisamos para
policiar São Paulo?” Se você for imaginar o crescimento da população. (Cf.
coronel A)

[...] Não quer dizer que vai resolver o problema, mas é um foco que deve ser
visto e a minha preocupação na Escola de Soldados é que a prevenção se exal-
tasse e tivéssemos um olhar para as pessoas, para as vítima. (Cf. coronel B)

5) sugestões para melhoria da atividade policial:

[...] É necessário ter controles flexíveis para que saiba com quem está lidando,
se esta pessoa está fora dos padrões normais, você vai tentar trazê-la para
dentro do padrão; para que ele esteja convencido de que está errado e não que
Currículo e culturas na formação policial 211

está sendo punido por ter feito isso ou aquilo. E obviamente quem não se enqua-
drar, não poderá ser da Polícia Militar, até por uma defesa dele próprio, quem
não tiver pendor para a atividade, vai sofrer demais, vai se angustiar demais,
vai se expor demais, e não é isso que você tá querendo. (Cf. coronel A)

[...] Precisa melhorar o ato de polícia, pensar ao fazer. Você sabe quando o cara
precisa ser preso, mas precisa ser preso daquele jeito? Precisa meter algema
no camarada? O grande problema nosso nós sabemos, só que nós precisamos
melhorar o ato de polícia, ninguém nega o conhecimento que nós temos, mas,
nos outros Estados eu vejo que eles estão buscando isso, melhorar a qualidade
do serviço, melhorar o ato individual, o ato corporativo, São Paulo parou um
pouquinho. (Cf. coronel B)

[...] Então, acho que esse lado de trabalhar na prevenção é fundamental na vida
do policial, é fundamental no cotidiano. É prevenindo que você consegue avanço,
você economiza gastos, você poupa vidas, mas isso lamentavelmente eu não vejo
com muito alento em muita gente. (Cf. coronel B)

O ensino é isso, colocar em contato e acompanhar e toda vez que tiver um


pequeno detalhe, observar [...] individualmente e no grupo todo. Isso é impor-
tantíssimo, o acompanhamento. (Cf. coronel C)

Ao decompor as mensagens dos entrevistados, muito embora não se


proceda rigorosamente uma análise categorial, foi possível explorar pontos
que elucidam um pouco mais o processo de se ensinar a ser policial. Para
nós professores, “que são longas todas as estradas que levam para um desejo
do coração” (Conrad, 2005).
Sobre análise categorial, aprendemos com Chizzotti que:

Em uma análise categorial, será necessário elaborar categorias de análise.


As categorias poderão ser elaboradas indutivamente a partir da imersão do
pesquisador no texto, para identificar os fragmentos, palavras ou temas mais
significativos ou as questões mais evidentes de um texto; ou dedutivamente,
partir de um conjunto de categorias preestabelecidas para alcançar obje-
tivos específicos: testar uma hipótese, explorar a mensagem de um texto,
decompor uma mensagem e assim por diante. (2006, p. 130)

Tentamos inicialmente identificar os anseios que não puderam ser


realizados, os que foram, de forma exitosa, e quais caminhos profícuos
poderiam ter sido implementados outrora na área em que atuaram, tudo
visando capturar dados para a pesquisa.
212 Ronilson de Souza Luiz

Sobre a pesquisa Gatti diz que:

A pesquisa é um cerco em torno de um problema. É necessário escolher


instrumentos para acessar a questão, vislumbrar e escolher trilhas a seguir e
modos de comportar nessas trilhas, criar alternativas de ação para eventuais
surpresas, criar armadilhas para capturar respostas significativas. (2002,
p. 62)

Ao analisar as falas dos coronéis, buscando as respostas significativas,


difícil é não nos remetermos a uma canção da Polícia Militar, que é entoada
durante as formaturas dos soldados, ou seja, sua letra pode ser identificada
com uma síntese do que sejam os ideais e valores dos PM.
É muito forte ainda a perspectiva do caráter voluntário da ativi-
dade policial, a visão de que, para a atividade policial, exige-se vocação,
o que não deixa de ser verdadeiro, mas essa característica não atinge o
enorme contingente que hoje se tem, portanto, precisamos trabalhar pela
profissionalização.
As falas dos coronéis confirmam as passagens da canção ao citar
“enfrenta qualquer problema leva sempre a melhor solução”, todos nós
sabemos o quanto ainda falta para o que gostaríamos que fosse.

MATRIZ CURRICULAR NACIONAL –


A BUSCA PELO MÍNIMO

A Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp, criada pelo


decreto nº 2.315, de 4 de setembro de 1997, foi decorrente de transfor-
mação da antiga Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segu-
rança Pública – Seplanseg. A MCN (Matriz Curricular Nacional) foi um
instrumento, finalizado em 2003, que buscou constituir-se em um marco
de referência para as ações formativas a serem empreendidas por todas as
polícias, contribuindo para o fortalecimento e institucionalização do Susp
(Sistema Único de Segurança Pública), que visa unificar dados, ações e
procedimentos para mensurar a atividade policial.
A matriz traz o desenho do que deve ser o currículo para formação
de novos policiais, nesse sentido, analisa o currículo como sendo:

O currículo, em seu conteúdo e nas formas através das quais se nos apre-
senta e se sedimentou dentro de uma determinada trama cultural, política,
social e escolar; está carregado, portanto, de valores e pressupostos que é
Currículo e culturas na formação policial 213

preciso decifrar. Tarefa a cumprir tanto a partir de um nível de análise polí-


tico-social quanto a partir do ponto de vista de sua instrumentação “mais
técnica”, descobrindo os mecanismos que operam em seu desenvolvimento
dentro dos campos escolares. (Gimeno Sacristán, 2000, p. 17)

É possível decifrar alguns valores e pressupostos da nova MCN, que,


conforme apontado por Sacristán, entrelaçam questões políticas, culturais,
sociais e as que dizem respeito ao processo de valorização profissional e
otimização das condições de trabalho.
O Quadro 1 expressa o modelo que a MCN deseja reformular. Há
um certo consenso da necessidade de um esforço intenso de abrangência
nacional para o aprimoramento da formação em segurança pública em
sua complexidade, que potencialize o compromisso com a cidadania e a
educação para paz, articulando-se permanentemente com os avanços cientí-
ficos e o saber acumulado.

Quadro 1 – Paradigma militarista


Componentes do Paradigma militarista
Atitude Reativa. Falar em segurança é falar em desordem, de um
problema de polícia e da força armada.
Atividade policial Referida a táticas de guerra, inimigo, cerco, vitória. Forma-
lismo burocrático e militar.
Concentração No aparato (armamento e viatura), em prejuízo da polícia
técnica e das técnicas de mediação.
Foco Suspeitos em abstrato, “nós contra eles”. Traço maniqueísta.
Pretensão De “erradicar” o crime e “acabar com a desordem”. Não há
seletividade no uso da força.
Desempenho Referido à quantidade de prisões, de mortos em confronto,
e de material apreendido.
Formação Ênfase em táticas militares. Ensino irreflexivo.
Gerência Refratária ao controle externo.
Fonte: Exposição feita por Jorge da Silva no curso de especialização em Políticas Públicas de Justiça
Criminal e Segurança Pública da UFF em 29 de abril de 2002.

Esse conhecido referencial para polícia pode ser analisado pelas


lições de Foucault, uma vez que o intelectual, como emissor do discurso,
é um promotor de desejos. O que produz o aparelho policial senão uma
sensação de segurança, ou de insegurança, conforme o contexto de atuação,
214 Ronilson de Souza Luiz

ou seja, a “vontade de verdade”, como os outros sistemas de exclusão,


apoia-se sobre um suporte institucional. Temos no processo de formação de
novos policiais uma oportunidade de apresentar novos discursos, pois

[...] o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra;


senão a qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam;
senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão
uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus
saberes? (Foucault, 2001, p. 44)

Esperamos que as práticas policiais contemplem um estilo diferen-


ciado de policiamento caracterizado por uma maior interação entre poli-
ciais e cidadãos, visando ao estabelecimento de uma relação de confiança e
cooperação, tradicionalmente chamado de polícia comunitária. Se há algo
que podemos afirmar é que todo discurso busca o convencimento, tentando
conferir autenticidade ao evento narrado.
Conforme traz o texto de divulgação da MCN, a palavra “matriz”
remete às ideias de “criação” e “geração” que norteiam uma concepção mais
abrangente e dinâmica de currículo, o que significa propor instrumentos
que permitam orientar as práticas formativas e as situações de trabalho
em segurança pública, propiciando a unidade na diversidade, a partir do
diálogo entre eixos articuladores e áreas temáticas.
A orientação da construção de currículos, a partir de eixos articula-
dores e áreas temáticas, associam-se orientações para o desenvolvimento
de capacidades gerais adquiridas progressivamente e de competências espe-
cíficas necessárias para responder aos desafios sem precedentes das ações
concretas do mundo do trabalho policial é o foco do governo federal.
O termo “currículo” não significa simplesmente o conjunto das
disciplinas de um curso, ou o conjunto de conteúdos programáticos.
Conforme orientação do documento ministerial vigente sobre os parâme-
tros curriculares nacionais, currículo significa a expressão de princípios e
metas do projeto educativo, que deve ser flexível, promover debates e reela-
boração em sala de aula, a partir da interação entre os sujeitos do processo
educativo.
Nesse sentido, conforme Giroux (1997, p. 50):

Devemos desenvolver uma espécie de currículo que cultive o discurso


teórico crítico sobre a qualidade e propósito de escolarização e da vida
humana. Precisamos desenvolver perspectivas mais amplas que mais
Currículo e culturas na formação policial 215

enriqueçam do que dominem o campo. Os fundamentos de uma nova


espécie de currículo devem ser tão profundamente históricos quanto
críticos. Na verdade, a sensibilidade crítica deve ser vista como uma
extensão da consciência histórica.

Os currículos traduzem as intenções pedagógicas das ações de


formação. Uma de suas possibilidades é o currículo interdisciplinar, ou
seja, um currículo orientado para a integração, para o desenvolvimento
de relações entre as disciplinas e também dos conteúdos que se encon-
tram nas fronteiras entre elas, aqueles que são objeto de atenção em várias
disciplinas e que possibilitam tratar de questões mais vitais e conflituosas,
que normalmente não podem ser tratadas dentro dos limites de uma única
disciplina. Alguns projetos do governo federal, gestados no governo Lula,
têm trabalhado com a noção de que conceber matrizes curriculares depen-
derá da capacidade dos envolvidos em acessar, distribuir e criar informação,
conhecimento e valores em rede.
As experiências na educação escolarizada e seus efeitos são, algumas
vezes, desejadas e outras, incontroladas; obedecem a objetivos explícitos
ou são expressão de preposições ou objetivos implícitos; são planejados em
alguma medida ou são fruto do simples fluir da ação. Algumas são positivas
em relação a uma determinada filosofia e projeto educativo e outras nem
tanto, ou completamente contrárias (Gimeno Sacristán, 2000, p. 43).
Percebemos que, para a equipe que elaborou o documento, o ensino é
um processo político complexo, permeado por competências e habilidades
específicas e especializadas, que visa à promoção da aprendizagem, por
meio da reconstrução do conhecimento e da apropriação crítica da cultura
elaborada, pautado em altos padrões de qualidade e nos princípios da ética.
Metodologia de ensino é para a Senasp (2013)

o guia teórico-prático de situações e estratégias pedagógicas diversificadas,


reconstruído constantemente, a partir da análise crítica dos pressupostos
implícitos nas práticas formativas, o que exige a consciência de que as infor-
mações são tratadas, as situações são analisadas e as decisões são tomadas
com base em interesses e necessidades.

A estrutura da MCN encontra-se assim definida: princípios, objetivos


gerais, eixos articuladores, áreas temáticas, orientações metodológicas e
sistema de avaliação e monitoramento.
216 Ronilson de Souza Luiz

Os eixos articuladores selecionados para orientar os currículos de


formação policial são: sujeito e as interações no contexto da segurança
pública / sociedade, poder, Estado e espaço público e segurança pública
/ ética, cidadania, direitos humanos e segurança pública / diversidade,
conflitos e segurança pública.
Para a efetivação da transversalidade pretendida, as instituições de
ensino precisam planejar as ações educativas a partir da análise crítica
de suas ações pedagógicas e de sua cultura organizacional, das contra-
dições constatadas em relação à problemática do mundo profissional e
sociocultural.
Entendemos que, para as propostas da Senasp, vale dizer que:

Esse novo projeto, essa nova alternativa não poderá ser elaborada nos gabi-
netes dos burocratas da educação. Não virá sob a forma de uma Lei ou uma
Reforma. Se ela for possível amanhã é somente porque hoje ela está sendo
pensada pelos educadores, juntos, trabalhando coletivamente, se reedu-
cando. (Gadotti, 1980, p. 82)

Capacitar internamente os profissionais e reeducá-los por meio


de novos currículos, pensamos ser fundamental para novos horizontes
da atuação policial. Concretamente, temos hoje Brasil afora homens e
mulheres sendo formados e tendo os efeitos da MCN que os molda não
deste ou daquele jeito sem reflexão, mas de uma forma especialmente
pensada, discutida e avaliada.
Sabemos que não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro
qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância (Chauí,
2006c), assim também ocorre nos discursos policiais.
Na superação dessa problemática a comunicação direta entre poli-
cial e cidadão pode contribuir para a inversão de estereótipos, pois, tendo
uma relação centrada na autoridade e no conflito permanente, os excluídos
anseiam por uma postura mais conciliatória, focada no diálogo e na busca
de soluções integradas dos problemas locais, pois:

O ensino é uma prática social complexa, carregada de conflitos de valor e


que exige posturas éticas e políticas. Ser professor requer saberes e conhe-
cimentos científicos, pedagógicos, educacionais, sensibilidade, indagação
teórica e criatividade para encarar as situações ambíguas, incertas, confli-
tuosas e, por vezes, violentas, presentes nos contextos escolares e não esco-
lares. (Pimenta e Anastasiou, 2002, p. 14)
Currículo e culturas na formação policial 217

As situações ambíguas, incertas e conflituosas, citadas pelas autoras,


por vezes são ignoradas nos discursos dos profissionais policiais. Pesquisar
fenômenos relacionados com esta problemática nos remete ao pensamento
de Minayo (1994, p. 17), quando define que:

É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à realidade


do mundo. Portanto, embora seja uma prática teórica, a pesquisa vincula
pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um problema,
se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática. As ques-
tões da investigação estão, portanto, relacionadas a interesses e circunstân-
cias socialmente condicionadas. São frutos de determinada inserção no real,
nele encontrando suas razões e seus objetivos.

DA FORMAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO POLICIAL

Hoje, os pontos mais sensíveis para o público interno das polícias


militares de uma maneira geral são as ocorrências de suicídio, envolvimento
com drogas, homossexualismo, desestruturação familiar, assédio moral,
assédio sexual, escala de serviço desconexa, baixos salários, formação e trei-
namentos deficientes, acompanhamento e preparação para a inatividade,
violência policial, atividades extracorporação – “bico”, estresse, condiciona-
mento físico inadequado para atividade policial, equipamentos no uniforme
que comprometem a saúde, ausência de cursos em áreas de grande demanda
como: condução de motocicletas, locais insalubres de trabalho, ambientes
de trabalho inadequados e pode-se acrescentar ainda a promiscuidade com
os delinquentes.
O novo cenário pauta as questões do conhecimento com a seguinte
característica: a insegurança e incerteza passam a ser notas constitutivas do
conhecimento que pretenda regular a prática curricular, ao mesmo tempo
que se necessitam esquemas mais amplos de análises que deem chance à
complexidade dessa realidade assim definida (Gimeno Sacristán, 2000,
p. 43).
De alguma forma a educação institucional, presente na MCN, visa
criar princípios valorativos, como esses da polícia de Londres, que resumem
a essência da atividade policial.
218 Ronilson de Souza Luiz

Quadro 2 – Nove princípios de Sir Robert Peel


Versão resumida dos nove princípios de Sir Robert Peel
(Fundador da Polícia Metropolitana de Londres – 1829)

A missão fundamental da polícia é a prevenção do crime e da desordem, e não a


repressão.
A capacidade da polícia de cumprir o seu dever depende da aprovação de sua ação pelo
público.
Para obter e conservar o respeito e a aprovação do público, a polícia deve poder contar
com sua cooperação voluntária na tarefa de assegurar o respeito das leis.
O grau de cooperação do público com a polícia diminui na mesma proporção em que a
necessidade do uso da força aumenta.
É pela demonstração constante de sua ação imparcial, e não quando ela cede aos capri-
chos da opinião pública, que a polícia obtém o apoio da população.
A polícia não deve recorrer à força física a menos que ela seja absolutamente necessária
para fazer cumprir a lei ou para restabelecer a ordem e, mesmo assim, somente após
ter constatado que seria impossível obter esses resultados pela persuasão, conselhos
ou advertências.
A polícia deve manter com o público uma relação fundada na ideia de que a polícia é o
público e o público é a polícia.
A polícia deve se limitar ao exercício estrito das funções que lhe são confiadas e se
abster de usurpar, mesmo em aparência, aquelas que competem ao poder judiciário.
A prova da eficácia da polícia é a ausência de crimes e de desordem e não a manifesta-
ção visível de sua ação.

Para além das divergentes abordagens e dos temas polêmicos, o


que parece consensual para parte significativa de pesquisadores é a ideia
de que somente com a manutenção do regime democrático e a simultânea
ampliação da cidadania poder-se-á minimizar a insegurança e a injustiça
que atingem a todos e com maior força aos oprimidos de que trata Freire
(1974).
A parceria entre a justiça e a educação permite mais êxito, em termos
de políticas públicas, pois permite desfazer a associação entre jovens e
violência, e capacita atores sociais na escola e comunidade para lidar de
forma produtiva com situações de conflito envolvendo alunos, educadores
e membros da comunidade na prática da justiça restaurativa.
A partir dessa abordagem, neste início de século XXI, sabemos que a
carreira policial é marcada por fortes mudanças no mundo do trabalho. O
que nos anos de 1960 era tratado como vocação, passou nos anos 1980 a
ser visto como carreira; já nos anos de 1990, uma profissão como todas as
demais. Neste século, infelizmente, se não redirecionarmos o leme, temos
o risco de um processo de inversão no qual os policiais cometam chacinas,
Currículo e culturas na formação policial 219

participem de grupos criminosos, aterrorizem comunidades e se desvin-


culem da lei e de questões éticas básicas, conforme registrou em 2007, o
inquietante e polêmico filme Tropa de Elite, de José Padilha.
Soares (2006c) observa que as melhores experiências nacionais
e internacionais demonstram, com fartura de exemplos e argumentos,
a possibilidade de combinar ações públicas de natureza preventiva com
presteza de resultados, o que pressupõe a possibilidade de que políticas de
prevenção sejam eficientes mesmo não atuando sobre causas estruturais.
Os livros consultados para este artigo confirmaram o que escreve
Soares, ou seja, as polícias

Não planejam sua prática, a partir de diagnósticos, fundados em dados


consistentes, nem corrigem seus erros, analisando os resultados de suas
iniciativas – os quais, simplesmente, ignoram. São máquinas reativas, iner-
ciais e fragmentárias, inscritas num ambiente institucional desarticulado e
inorgânico, regido por marcos legais rígidos e inadequados. Os profissionais
não são apropriadamente qualificados e valorizados e as informações não
são ordenadas de acordo com orientação uniforme, que viabilize a coope-
ração. (Ibid., p. 117)

O ciclo de uma política eficaz e, portanto radical, ou seja, que vá à


raiz da questão, pode ter no processo de formação e na educação policial-
-militar uma alavanca para valorização do policial e otimização das condições
de trabalho.
Conforme Monjardet (2003, p. 125):

A competência profissional – e seria mais pertinente falar aqui de qualifi-


cação – é fundada primeiramente em conhecimentos formais, cujo domínio
permite minimizar a influência das qualidades pessoais e minorar a desi-
gualdade das experiências. Nesse sentido ela é objetiva, independente em
larga medida geral e que se trata de aplicar (de adaptar) às concorrências
singulares.

O nosso desafio hoje é buscar a integração sem anular sua diversi-


dade, ao contrário, fomentando o potencial criativo, inovador e vital resul-
tante das relações entre diferentes agentes (públicos e privados) e seus
respectivos contextos.
220 Ronilson de Souza Luiz

ENSINAR A SER POLICIAL POR MEIO


DA MATRIZ CURRICULAR NACIONAL

Os professores que formam os novos policiais militares merecem


atenção especial, em um cenário que contemple profissionais com visão
humanizadora para a atividade que atuará em searas que de uma forma ou
de outra envolvem questões de violência.
Ensinar a ser policial é ensinar a lidar com a intransparência da vida
social, sabendo sempre que a realidade social tem um paralelo importante
com a realidade emocional e lembrando sempre que a polícia será uma das
múltiplas formas de dominação social, isto quando se configurar em apenas
aparelho de Estado, o que descaracteriza um regime democrático.
Modernamente, sabemos que o estilo de comunicação utilizado pelo
aparelho policial é reflexo do que acontece em seus centros de decisão
hiper-hierarquizados, ou seja, nunca se questiona, pouco se sugere, nada se
critica.
A nosso ver, setores públicos ligados quase que de maneira umbi-
lical, como é o caso da polícia, à sociedade têm especial responsabilidade
ética. Nesse sentido, cabe a consideração feita por Chauí:

Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será
virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética
só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar
de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma
ordem, a um comando ou a uma pressão externos. (2006b, p. 341)

Ensinar a ser policial é, sobretudo, trabalhar a emancipação social,


que em seu âmago é se descobrir capaz de realizar o processo emancipa-
tório por si mesmo, dentro de circunstâncias dadas. Por isso, participação é
a alma da educação, compreendida como processo de desdobramento cria-
tivo do sujeito social.
O processo de formação visa edificar novas pontes com os diversos
segmentos da sociedade, pois construíram-se muros ao redor da polícia,
cuja única fonte de ligação com o meio circundante consiste, em alguns
casos, na própria instância governamental a que se encontra submetida,
portanto, está isolada da sociedade civil organizada, ou seja, não forma o
outro lado da ponte. Planejar e avaliar exige profissionais capacitados e a
MCN traz também essa preocupação.
Currículo e culturas na formação policial 221

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo dizer é deficiente – diz menos do que quer; todo dizer é exuberante –
dá a entender mais do que se propõe.
Ortega e Gasset

O ambiente escolar passa por uma ecologia de saberes que contrapõe


a monocultura do saber científico, como o único relevante aos nossos múlti-
plos desafios. Continuemos em busca de uma prática que rompa com a
monoculturalidade silenciadora e trabalhe pelo diálogo intercultural e pela
diversidade, que incentive a interdependência e a liderança participativa
O grave rebaixamento dos níveis educacionais, dos padrões técnicos,
a baixa autoestima dos recursos humanos, o arrefecimento de valores
fundamentais (o respeito à lei, à disciplina e à autoridade), a negligência
com o dever, a escassez de solidariedade, em especial nas grandes metró-
poles, são de fato os marcos reflexivos para pensarmos como formar melhor
nossos profissionais.
A nosso ver, cremos que a valorização profissional deve ter espaço
privilegiado nas políticas de segurança pública, visando a uma polícia
profissionalmente correta, socialmente justa e economicamente viável.
Se de fato as polícias trabalham com a perspectiva de excelência na
prestação do serviço policial, as instituições deverão revitalizar seu sistema
de ensino, atribuindo distinção ao preparo acadêmico realizado dentro ou
fora do órgão, como trazem os entrevistados.
Nas administrações modernas é sabido que, para se adquirir exce-
lência, ou seja, prestar o melhor atendimento, com o menor custo humano,
material e no menor tempo possível, devemos investir em educação, em
formação de quadros.
Concluo que uma boa polícia, por óbvio, não pode ser refém do chefe
do executivo. Precisa, frequentemente, saber posicionar-se para assegurar o
que realmente importa. A análise documental e bibliográfica permite afirmar
que ainda temos resquícios de inspiração positivista na concepção de curso,
assim como se caracteriza tecnicista e conteudista, com modelos de currículo
e de gestão adotados há mais de quatro décadas, daí a enorme relevância da
MCN.
222 Ronilson de Souza Luiz

Segurança pública é responsabilidade de todos, portanto, devemos


trabalhar para a implementarmos políticas inteligentes e intersetoriais, que
sejam capazes de humanizar a formação policial em todos os níveis e em
todos os estados da Federação. Nossos currículos não devem permitir a
predominância do cálculo econômico na definição das políticas públicas.
Atuar nesse processo é agir também para diminuir as desigualdades,
minimizar as vidas degradadas, ampliar o acesso aos direitos, reduzir o
sentimento de exclusão, as estigmatizações e a cruel invisibilidade social em
que vivem os oprimidos relatados por Freire. Com atraso e talvez não com
a intensidade desejada pelo autor, os escritos do professor Luiz Eduardo
Soares começam a ressoar.
Sobre o futuro da Polícia Militar e outros aparelhos policiais, penso
que está chegando a hora de tomarmos o remédio amargo, ou seja, admi-
tirmos a necessidade de reformas. Um conjunto crescente de profissionais
percebe que nosso modelo urge ser reformulado, tentamos apenas, por
meio deste artigo, trazer mais luz ao debate.

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224 Ronilson de Souza Luiz

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