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IMPLICAÇÕES CURRICULARES
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Anna Maria Marques Cintra
Editora da PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente)
José Rodolpho Perazzolo
Karen Ambra
Ladislau Dowbor
Lucia Maria Machado Bógus
Mary Jane Paris Spink
Miguel Wady Chaia
Norval Baitello Junior
Oswaldo Henrique Duek Marques
Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Diversidade na educação:
implicações curriculares
ALÍPIO CASALI
SUELY CASTILHO
organizadores
São Paulo
2016
Copyright © 2016. Alípio Casali, Suely Castilho. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Siméia Mello
Editoração Eletrônica
Waldir Alves
Gabriel Moraes
Capa
Equipe Educ
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Introdução....................................................................................................11
Alípio Casali e Suely Castilho
Alípio Casali2
Sueli Borges Pereira3
1 Este artigo se originou da tese de doutorado intitulada O currículo como percurso de reconhecimento
da identidade negra: políticas e práticas curriculares no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Maranhão, pelo Programa de Educação: Currículo da PUC-SP, defendida em dezembro de 2013,
sob a orientação do professor Alípio Casali.
2 Graduado em Filosofia. Mestre, doutor e pós-doutor em Educação. Professor da Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo – PUC-SP. <http://lattes.cnpq.br/7969272872511400>
3 Graduada em Filosofia. Mestre em Filosofia e doutora em Educação. Professora do Insti-
tuto de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Maranhão – IFMA. <http://lattes.cnpq.
br/1705315745590200>
20 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira
A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO
DE RECONHECIMENTO MÚTUO
5 Aqui Ricoeur (2006, p. 87) se baseia nos estudos de Williams (1993) e sua tese sobre o “reconhe-
cimento da responsabilidade”.
24 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira
passando pelos hábitos estáveis até as marcas acidentais por meio das quais
um indivíduo se faz reconhecer, ao modo da grande cicatriz de Ulisses.
Quanto à identidade-ipse, pertence à ficção produzir uma série de varia-
ções imaginativas graças às quais as transformações do personagem tendem
a tornar problemática a identificação do mesmo. Há casos extremos em que
a questão da identidade pessoal se torna tão confusa, tão indecifrável, que a
questão da identidade pessoal se refugia na questão nua: quem sou? (Ibid.,
p. 117)
6 Ricoeur (2006, p. 135) recorre a Bergson a partir do seu tema do “reconhecimento das imagens”.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 25
7 Para fundamentar essa passagem, o filósofo francês recorre ao economista Sen (1999, apud
Ricoeur, 2006, p. 147). Esse autor defende a reintrodução de considerações éticas na teoria econô-
mica. Discute desenvolvimento atrelado à questão da liberdade, isto é, a liberdade de ação, segundo
ele, é condicionada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas.
26 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira
8 O tema da luta pelo reconhecimento, articulada por Hegel, será guiada pela ideia de uma resposta
ao desafio de Hobbes, resposta na qual o desejo de ser reconhecido ocupa o lugar do medo da morte
violenta na concepção hobbesiana do estado de natureza.
9 Anerkennung aparece nos dicionários sob duas significações: 1) reconhecimento; 2) legalização.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 27
10 Ricoeur, nessa passagem, diz que toma essa obra de Hegel a partir de Taminiaux, em seu livro Nas-
cimento da filosofia hegeliana do Estado (1984), e a partir de Honneth e seu A luta pelo reconhecimento
(2000).
11 Ricoeur aqui dialoga com Honneth, fazendo observações e considerações complementares para
além dele, como, por exemplo, na ideia de luta para o reconhecimento.
28 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira
12 “Um fato crucial sobre um self ou pessoa [...] é que ele não é um objeto no sentido comumente
entendido. Não somos um self da mesma maneira como somos organismos, nem temos um self como
temos um coração e um fígado. Somos seres vivos com esses órgãos de uma forma bem independente
de nossas autocompreensões ou autointerpretações, ou dos sentidos que as coisas têm para nós. Mas
só somos um self na medida em que nos movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos
e encontramos uma orientação para o bem” (Taylor, 2000, p. 52).
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 31
13 Mead designa “outros significativos” como as pessoas que têm importância para aquisição das
linguagem que precisamos para nos autodefinirmos (apud Taylor, 2000, p. 246).
14 Rousseau e Kant são considerados os primeiros expoentes desse modelo de política. Para apro-
fundamento, cf. Taylor (2000, pp. 255-259).
15 Taylor (2000) considera que a política da diferença também defende o respeito igual, portanto,
ambas partem de um mesmo conceito diretor, a dignidade.
16 Por sociedade liberal, o autor a entende a partir de suas características: o governo representativo,
o regime de direito, a garantia de certas liberdades, etc. (Taylor, 2000).
32 Alípio Casali, Sueli Borges Pereira
O RECONHECIMENTO
COMO POLÍTICA CURRICULAR
significados dos currículos, visto que, para Paraskeva (2000, p. 116), “se
entendemos o currículo como prática, todos quantos nele participam fazem-
-no como sujeitos e não como objetos”, portanto, os professores têm um
papel fundamental. O currículo em ação se concretiza nas tarefas escolares,
enquanto o currículo realizado diz respeito aos efeitos cognitivo, afetivo,
social, moral, entre outros. Nesse tipo de currículo, realizam-se outros
efeitos que ficarão como efeitos ocultos do ensino. O currículo avaliado,
por sua vez, decorre de pressões exteriores.
A despeito dos contextos de decisão, sem menosprezar outros,
ressaltamos a mediação necessária do contexto político-administrativo na
condução da política curricular, conforme acepção do próprio Sacristán, a
saber:
no que diz respeito à educação, uma parte das demandas históricas passou
a ser atendida com a promulgação da lei nº 10.639/2003 (Brasil, 2003), que
alterou a LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996).
A LDB nº 9.394 foi alterada por meio da inserção dos artigos 26-A e
79-B, referidos na lei nº 10.639/2003. Esta torna obrigatória, no currículo17
escolar, o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, em estabeleci-
mentos de ensino fundamental e médio, e inclui, no calendário escolar, o dia
20 de novembro como “Dia da Consciência Negra”. A lei nº 11.645/2008,
posteriormente, reformulou a nº 10.639/2003 (BRASIL, 2008), ampliando-
-a para reportar-se mais especificamente à análoga questão indígena.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que as referidas leis questionam
o currículo que não considera a diversidade de referências identitárias. Ela
direciona o currículo na perspectiva da diversidade e, portanto, da cons-
trução de processos identitários que ocorram em convivência e negociação
com o outro.
O parecer CNE/CP nº. 3/2004, de 10 de março de 2004 (BRASIL,
2004a), e a resolução CNE/CP nº 1/2004, de 17 de junho de 2004
(BRASIL, 2004b), foram elaborados para regulamentar a alteração da
LDB nº. 9.394/1996, instituindo diretrizes curriculares nacionais para a
educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana, a serem observadas pelas instituições de ensino
que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira e em especial
por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e conti-
nuada de professores.
Pelo visto, existiu e existe a demanda por reconhecimento, valori-
zação e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação. O reconhe-
cimento significa a luta por dignidade, tanto material quanto simbólica
(Neves, 2009). Ou seja, o tema do reconhecimento ganha centralidade na
discussão sobre as desigualdades étnico-raciais no Brasil e é incorporado
nos documentos oficiais que tratam sobre as relações étnico-raciais na
educação. Vejamos mais em detalhes como os documentos, tanto o parecer
CNE/CP nº 3/2004 (BRASIL, 2004a) quanto a resolução CNE/CP nº 1/2004
(BRASIL, 2004b) tratam o tema do reconhecimento.
Da legislação citada, observamos que o termo reconhecimento é
explicitado de forma mais contundente no parecer CNE/CP nº 3/2004 e na
17 A LDB 9.394/06 incorpora uma visão ampliada de currículo, isto é, além das disciplinas escolares
o conjunto das experiências oferecidas pela escola.
O reconhecimento mútuo como conceito e como política curricular 35
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
4 A lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, altera a lei no 9.394 de 20 de dezembro de 1996, ante-
riormente modificada pela lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
A lei nº 10.639/2003 e a luta pelo reconhecimento do direito à diversidade étnico-racial 43
A LEI Nº 10.639/2003:
REPENSANDO OS CURRÍCULOS ESCOLARES
CONSCIÊNCIA POLÍTICA
E HISTÓRICA DA DIVERSIDADE
O FORTALECIMENTO
DE IDENTIDADES E DE DIREITOS
sua tigritude, pois ele domina a selva de que é rei. São os mais fracos que
precisam se mobilizar para defender sua existência, daí a razão de ser de
suas identidades coletivas. (Ibid., pp. 13-14)
as práticas próprias dos contextos por meio dos quais adquire significado
real”, pois é indispensável produzir mudanças reais na prática curricular
que os(as) estudantes e os(s) professores(as) experimentam.
Desse modo, é importante refletir sobre: os recursos financeiros e
técnicos para a sua efetivação nos diferentes entes federados; a definição
das orientações e ações nas redes oficiais de ensino para inserção da temá-
tica; a criação de grupos de trabalho sobre o tema; a articulação da lei nº
10.639/2003 com outras políticas públicas que contemplem a diversidade;
a inserção da temática nos projetos político-pedagógicos (PPP); a produção
e a socialização de novos materiais didáticos e a articulação com o movi-
mento negro para a incorporação de saberes e conhecimentos oriundos
desses espaços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MITOHERMENÊUTICA DO CURRÍCULO
E DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO
continua sem saber quem faz parte das nações indígenas, o que essa popu-
lação pensa, como contribuíram para a história do país, quais são os seus
conhecimentos, filosofias, e até por que, o que motiva estudiosos estran-
geiros a vir para suas reservas conhecê-los e ouvi-los.
No século XXI, a grande maioria de professores e cidadãos do Brasil
ainda não sabe como as ideias de povos nativos poderiam contribuir para
a educação contemporânea plural, mediadora, aberta a multilógicas e
multissensibilidades.
Longe de qualquer ingenuidade, durante o Seminário Terras Guarani
no Litoral – Contexto Fundiário e Ambiental, que ocorreu no Memorial da
América Latina, em São Paulo, de 15 a 16 de dezembro de 2004, organi-
zado pelo Centro de Trabalho Indigenista, com o apoio da Norwegian Rain-
forest Foundation, um fato confirmou o distanciamento simbólico: após a
fala de muitos brancos, um índio guarani pediu a palavra e disse que havia
sido trazido para prestigiar aquele encontro, tendo sido hospedado em um
hotel, comendo três refeições ao dia, conduzido em ônibus confortáveis
pela cidade de São Paulo e tendo tido a oportunidade de encontrar parentes
de várias aldeias do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo: “Da próxima vez”,
disse ele, “vou trazer toda a minha família, porque eles ficaram na aldeia,
passando fome e outras necessidades, sem entender o que é que eu estou fazendo
aqui” (Sanches, 2006, p. 116).
Em 2014, de que maneira esse fenômeno mudou? Para muitos
brancos, pode ser difícil posicionar-se, pois não sabem o que os povos
nativos pensam. Ainda observamos no cotidiano da educação escolar, no
material didático, para ensino médio e universitário, que o processo de
contrapartida não existe. A educação dos brancos, não-indígenas, desco-
nhece a filosofia nativa, mantendo-se sem recursos para emitir opiniões e,
inclusive, desinteressada do tema sobre pessoas tão distantes.
A opinião é o gigante da vida social, dizia Benjamin (1987, p. 11).
É o mesmo que o óleo para as máquinas: ninguém se coloca diante de uma
turbina e a borrifa toda com óleo de máquinas, mas sim, é preciso borrifar
um pouco nos pontos dos rebites, articulações, juntas ocultas, que é preciso
conhecer, saber onde estão.
Há décadas, a política geral do Brasil criou um processo de dispersar
os índios para que eles fossem se inserindo na cultura branca e desapare-
cendo, e esse é um fator que repercute até hoje (Sanches, 2010). No caso
do estado de São Paulo, há aldeias tupi-guarani no litoral norte de São
66 Janina Sanches
na Bíblia (Jó, 27, 18-19 in Brandão, 2009b, p. 28): “Construiu sua casa
como a da aranha e, como guarda, fez sua choupana. Rico, ele se deita pela
última vez; quando abrir os olhos, nada encontrará”. E como está no Corão
(29,40): “Mas a habitação da aranha é a mais frágil das habitações” (ibid.).
Especialmente, é importante conhecer sobre os perfis instintivos
como necessidades, fatores psíquicos que não são rígidos nem estáveis,
significando, portanto, estarem sempre sob influência da vida sociocultural
em mutação, motivo pelo qual Szondi deu espaço à ideia de um destino
livre, que o ser humano escolhe, devido a seu desejo de liberdade.
A escolha de cada indivíduo se manifesta no uso harmonioso (ou
não), que cada pessoa faz, pela escolha das possibilidades instintivas, das
pulsões e como dirige o mecanismo de autorrestrições diante da energia
vital dessas pulsões. Aquilo que Morin (2007, p. 182) chama organização
recursiva, ou seja, é necessário reconhecer nossos efeitos e produtos como
a própria causação.
O sistema instintivo de Szondi (1970, p. 29), contemporâneo
de Freud e Jung, amplia a contribuição de Freud, restrita à sexualidade.
Szondi revelou em seus estudos quatro círculos instintivos que estão nos
genes, chamados vetores ou radicais, como na matemática. Cada vetor é
a-histórico e transmitido pela hereditariedade, é uma força, energia que se
renova, muda e atualiza continuamente devido às influências sociocultu-
rais. Sempre presente na vida e no comportamento humano, é um caminho
com sentido de direção.
Nas raízes instintivas, condicionadoras e conservadoras da exis-
tência humana, manifestam-se necessidades e tendências, sendo: 1. Vetor
S: instinto sexual (necessidade de corporalidade); 2. Vetor P: instinto paro-
xismal / surpresa (necessidade de afetividade); 3. Vetor SCh: forças do eu
(necessidades de intelectualidade / espiritualidade); 4. Vetor C: instinto de
contato / participação (necessidade de segurança).
Estudos sobre a cosmologia do antigo Perú têm revelado desenhos
em objetos de cerâmica da cultura Chavín, Mochica, Casma, Pativilca,
Huaylas-Yunga, Huarochirí e outras anteriores aos incas, com imagens do
deus solar, hermafrodita, Wiracocha, que mora nas montanhas, ele criou e
organizou o universo e tudo o que nele existe.
Currículo e filosofia nativa 69
2 Hermafrodita, imortal. Acreditava-se que estava em toda parte, adotava distintas formas, organi-
zou o universo em três mundos relacionados entre si, em dualidade e harmonia.
70 Janina Sanches
Fica em paz, pomba deste vale, e que nunca uma nuvem de dor estenda o
seu véu sobre o céu da tua alma. Pede-me alguma graça que a ti e aos teus
faça lembrar para sempre o amor que me inspirastes.3 (Palma, s/d)
Ela respondeu:
3 “Quédate en paz, paloma de este valle, y que nunca la niebla del dolor tienda su velo sobre el cielo de
tu alma. Pídeme alguna merced que a ti y a los tuyos haga recordar siempre el amor que me inspiraste”.
4 “Siembra beneficios e tendrás cosechas benditas. Reina, señor, sobre corazones agradecidos más que
sobre hombres que, tímidos, se inclinen ante ti, deslumbrados por tu esplendor”.
Currículo e filosofia nativa 71
Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor,
Essa palavra de luxo.
REFERÊNCIAS
2 As obras desses autores, mencionadas por Silva (2005), referem-se: Bobbit, The Curriculum de
1918 e Ralph Tyler, Princípios básicos de currículo e ensino, de 1949.
78 Marinês Viana de Souza
[...] não conhecemos nenhum povo sem nome, nenhuma língua e nenhuma
cultura que não fazem, de uma maneira ou de outra, a distinção entre ela e
a outra, entre “nós” e “eles”. [...] O conhecimento de si – sempre uma cons-
trução e não uma descoberta, nunca é totalmente separável da pretensão de
ser percebido pelos outros.
3 A obra desse autor, citada por Munanga (2003), corresponde: Multiculturalisme. Différence et
Démocratie.
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 83
Adoto aqui a expressão que Fischer (1987) usou para falar da neces-
sidade da arte, ao indicar que sua função “[...] não é a de passar por portas
abertas, mas é a de abrir as portas fechadas”. Essa citação ilustra bem o
sentido que concebo o ensino de arte na perspectiva da diversidade cultural
na contemporaneidade, que deve promover a “abertura de portas”, histori-
camente fechadas no currículo, para visibilizar as formas culturais margina-
lizadas, segregadas dos espaços escolares ou tratadas de forma esporádica,
repleta de preconceitos ou entendidas como clichê.
A metáfora da “abertura de portas” também representa uma via de
mão dupla, o que significa não só deixar emergir as culturas silenciadas,
mas oportunizar o acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade,
visto que não devem ser usufruto de poucos. Sendo assim, a arte deve
ser democratizada em suas diversas linguagens, para favorecer o acesso
e fruição de todos e todas. Isso se diz, pois considero que “abrir portas”
para a diversidade implica, ainda, visão ampla, não se fechar em guetos ou
mesmo desconsiderar a arte até então hegemônica nos currículos, o que
significa ampliar os referenciais para promover a cidadania cultural. Para
Barbosa (2009)4:
4 Texto “Arte, Educación y Cultura”, apresentado no Encuentro Nacional de Arte Diversidad Cultural y
Educación “Desde mi corazón hasta los otros hay un río de arte”, Peru, 2009. Disponível em: <http://
www.encuentroeducacionarte.blogspot.com/>. Acesso em: 17 fev. 2014. Texto traduzido indicado
nas referências.
Diversidade cultural e ensino de arte: articulações teóricas no campo do currículo 87
e diversa. Essa abordagem é importante que seja feita para superar a visão
limitadora do continente africano e dos povos indígenas, comumente repre-
sentados de forma “genérica”.
A contextualização da produção artística é uma alternativa para a
construção de uma propositura multicultural crítica no ensino artístico. Ao
analisarmos uma obra de arte, é preciso situá-la no contexto histórico e
cultural no qual foi produzida. Para Barbosa (2003), a contextualização do
objeto artístico evita uma abordagem aditiva nos trabalhos com a multicul-
turalidade, que segundo a autora representa:
5 Barbosa (2003) apresenta algumas proposições que considera relevantes para promover uma
educação multiculturalista crítica na área de Artes, sendo estes aspectos: “1) Promover o enten-
dimento de cruzamentos culturais por meio da identificação de similaridades, particularmente nos
papéis e funções da arte, dentro e entre grupos culturais; 2) Reconhecer e celebrar a diversidade racial
e cultural em Arte em nossa sociedade, enquanto também se potencializa o orgulho pela herança
cultural em cada indivíduo; 3) Incluir em todos os aspectos do ensino da Arte (produção, apreciação
e contextualização) problematizações acerca de etnocentrismo, estereótipos culturais, preconceitos,
discriminação, racismo; 4) Enfatizar o estudo de grupos particulares e/ou minoritários do ponto de
vista do poder como mulheres, índios e negros; 5) Possibilitar a confrontação de problemas tais como
racismo, sexismo, excepcionalidade física ou mental, participação democrática, paridade de poder; 6)
Examinar a dinâmica de diferentes culturas; 7) Desenvolver a consciência acerca dos mecanismos de
manutenção da cultura dentro de grupos sociais; 8) Incluir o estudo acerca da transmissão de valores;
9) Questionar a cultura dominante, latente ou manifesta e todo tipo de opressão e 10) Destacar a
relevância da informação para a flexibilização do gosto e do juízo acerca de outras culturas” (Barbosa,
2003, p. 22).
90 Marinês Viana de Souza
REFERÊNCIAS
2 A lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, foi modificada pela 11.64520/08, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
também da temática indígena, nos mesmos temas e disciplinas em que forem tratados as questões
afro-brasileiras.
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 107
3 Criada em 1988, a Fundação Cultural Palmares é uma instituição pública vinculada ao Ministério
da Cultura que tem a finalidade de promover e preservar a cultura afro-brasileira. Preocupada com
a igualdade racial e com a valorização das manifestações de matriz africana. Seu objetivo principal é
formular e implantar políticas públicas que potencializem a participação da população negra brasileira
nos processos de desenvolvimento do País. Com relação ao reconhecimento das comunidades negras
rurais, ela é responsável por expedir certificação às comunidades. O certificado é um documento no
qual se reconhece a comunidade como quilombola, isto é, feito mediante relatório histórico, imagens
e outros documentos que podem comprovar a veracidade do fato. Por meio da certificação, as comu-
nidades ampliam o acesso às políticas públicas sociais e de habitação do governo federal (2013).
Políticas curriculares para a educação quilombola de Mato Grosso: contexto, texto e análise 109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ver com minha cultura”. Agora suas aulas são diferentes. Ele complementa a
fala reafirmando o prisma de sua cultura como o foco de se pensar o mundo
contemporâneo.
O cenário descrito acima aponta para mudanças radicais na educação
escolar indígena. Isso do ponto de vista de professores indígenas do curso
de licenciatura Intercultural Indígena do NTFSI da UFG. Tais afirmações
apontam igualmente para elementos interessantes para se pensar a formação
de uma educação diferenciada, base da legislação que versa sobre a escola
indígena hoje.
Nessa direção, deve-se lembrar que, no Brasil, especialmente a partir
da década de 1980, as diversas populações indígenas fortaleceram a orga-
nização de um movimento político pan-indígena. Isso para intensificar o
diálogo com o Estado-nação em direção a conquista de certos direitos que
representassem relações mais simétricas entre ambos. Nesse contexto, ao
lado da territorialização, a educação diferenciada sempre foi um dos eixos
das reivindicações (Munduruku, 2012).
A partir da constituição brasileira de 1988, algumas leis surgiram
para regulamentar a educação diferenciada. Nesse cenário, alguns cursos
superiores de licenciatura para professores indígenas surgiram na década de
1990. Essa política, segundo o PPP – Projeto Político Pedagógico – do curso
de licenciatura Intercultural da UFG, “rompeu com a anterior, que visava à
integração gradativa e “harmônica” dos índios à sociedade não-indígena”
(Pimentel et al., 2006, p. 8).
O NTFSI da UFG existe há 7 anos e é constituído por curso de
graduação e de especialização. Atualmente, conta com cerca de 250 alunos,
os quais são professores indígenas em suas respectivas comunidades.
Eles vivem nos estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão e
pertencem à 16 etnias, entre elas, os Krahô, Apinajé, Javaé, Karajá, Guarani,
Xambioá, Kamayurá, Canela, Gavião, Guajajara, Krikati, Tapirapé, Xerente,
Xavante, Xacriabá e Tapuio.
A despeito de um aparente desconhecimento inicial por parte dos
índios acerca da universidade brasileira e da formação superior, os profes-
sores indígenas em tela parecem ter plena consciência das possibilidades
implícitas no processo de formação superior. Assim, eles buscam se apro-
priar dessa formação para transformarem positivamente a escola de suas
comunidades, além de suas relações intra e interculturais.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 119
porque os jovens não querem praticar a nossa cultura. Sendo assim, estamos
perdendo o que os nossos velhos nos ensinaram”. Através de sua pesquisa,
os Krahô estão mobilizando a comunidade para, nas palavras de Piiken,
“revitalizar” a cultura tradicional, levando, por exemplo, os velhos para
ensinarem os jovens a fazerem os utensílios antigos. Piiken faz ainda uma
interessante relação entre o artesanato e a cultura. Para ele, sem a esteira,
por exemplo, não há casamento, se não há casamento não há mais índio, se
não há mais índio, não há cultura. Logo, sem esteira, não há Krahô.
No seminário Práticas escolares, apresentado no NTFSI em janeiro de
2012, essas concepções presentes nas pesquisas extraescolares ficaram mais
evidentes. Nas imagens elaboradas para a apresentação dos Krahô, o pátio
foi um tema recorrente, sendo espaço de atividades que envolvem idosos,
adultos e crianças. Nas imagens citadas a ação realizada no pátio parecia ser
o motivo central da aprendizagem. Nessa direção, o movimento apareceu
ainda como o modo adequado de conhecer.
Isso fica claro na pesquisa de Roberto Cahxêt Krahô quando ele dife-
rencia a escola indígena e a não indígena. Para o autor, “a escola do não
indígena é só teoria e a escola indígena é na prática... [ela] não aprisiona
os alunos, é uma escola livre... o aprendizado que vem do tocar, do sentir, de
dançar, de cantar, de fazer as coisas”. A pesquisa de Cahxêt trabalha com
o tema dos esportes tradicionais, os quais evidenciam a disposição para a
ação – o movimento.
Além disso, Roberto busca relacionar ao tema central uma série de
outros assuntos. Para ele, trabalhar com a corrida de tora, no pátio, esporte
tradicional entre os Krahô, significa tratar também do resguardo, do sistema
de nominação, do parentesco, das festas, da alimentação, da saúde e de uma
série maior de temas relacionados à vida Krahô. Nesse sentido, seu objetivo
é estimular o jovem a vivenciar e refletir sobre sua identidade.
O trabalho de Renato Yahé Krahô segue a mesma direção. Nele, pode
se ver que, para o autor, a produção do conhecimento deve envolver a parti-
cipação de alunos, professores e comunidade – mobilizando toda a aldeia
e saindo da sala de aula. O aluno é visto como sujeito do conhecimento
– e é a partir da ação-movimento desse sujeito que se dá a aprendizagem.
Segundo Renato, ainda, a escola deve “multiplicar os conhecimentos”, o que
se dá pela ampliação das relações cotidianas. Isso porque “quem está ouvindo
está sendo conscientizado ao ouvir e depois vai divulgar o que ouviu: estica a
divulgação”.
124 Alexandre Herbetta
Ele teve como objetivo levar tal discussão para a escola, conscienti-
zando seus alunos da importância da música e da preservação da natureza,
envolvendo ainda toda a comunidade nas discussões.
Como fica evidente, as pesquisas que geram os temas contextuais
possuem enorme riqueza e promovem grandes transformações nas comu-
nidades em questão. Os professores referidos usam então o conhecimento
pesquisado acerca de suas culturas e as necessidades temáticas de suas
aldeias para produzir conhecimento, produzirem-se como melhores profes-
sores e, consequentemente, produzirem uma nova escola indígena que
possa, assim, sustentar seus mundos com equilíbrio e qualidade de vida.
Os temas escolhidos, como se pode observar, igualmente, têm relação direta
com o mundo contemporâneo vivido por tais sujeitos e a narrativa sobre os
temas apontam para princípios da epistemologia indígena.
Nota-se também que há um processo de aprendizado da própria
cultura. De acordo com um jovem Akwe Xerente, por exemplo, “estou
descobrindo muitas novidades que eu não sabia... cânticos, pintura... escrita
126 Alexandre Herbetta
para que não esqueçamos... na prática da escrita... para que os alunos tenham
uma visão da escrita e de seu povo” Ao mesmo tempo, percebe-se que, em
oposição ao aprendizado mencionado, há o perigo de se perder itens dessa
cultura. Para o mesmo jovem Xerente, eles estão “perdendo o seu remédio
tradicional... ficou para trás”. Na mesma direção, alguns professores Tapi-
rapé “perceberam valores na arte, pintura, que ficavam para trás”.
Do ponto de vista indígena, assim, os temas contextuais são muito
importantes, pois permitem uma atualização cultural. Segundo uma profes-
sora Guajajara, ele “atualiza o que estava adormecido, movimenta”. Para
todos, o tema contextual é fundamental, pois, segundo o professor Canela,
trata do “tema que está em risco de perder, de extinção... [este é o] desafio do
trabalho”.
ao senhor Karajá que a ensinasse com base nela. O velho Karajá respondeu
que aquilo que estava na cartilha não era a língua Karajá. Esta estava na
vida cotidiana da aldeia.
Segundo Pimentel (ibid., 69),
TRANSFORMAÇÕES
são muitos. Um professor Xerente, por exemplo, disse que antes não de
preocupava com a cultura dele. Com o trabalho na escola, ele passa a ter
consciência dessa cultura, mudando sua visão de escola, índio e mundo.
A dinâmica do tema contextual permite assim ao índio se conhecer.
Vê-se, então, que o projeto de uma escola indígena diferenciada está ligado
à autorreflexão do (sobre o) sujeito índio no século XXI. Nessa direção,
Dussel já afirmara que deve haver uma apreensão da realidade por um viés
crítico “em que a realidade se dá agora como um objeto cognoscível em
que o homem assume uma posição [...] em que procura conhecer” (2000,
p. 437). Para o autor, deve haver: “o descobrimento feito pelas próprias
vítimas, primeiramente, da opressão e exclusão que pesa sobre sua cultura
[...] a tomada de consciência crítica e autorreflexa sobre o valor do que lhe
é próprio” (ibid., p. 420).
A afirmação se aproxima do que Freire já dissera. Segundo ele,
é preciso que [o sujeito] seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele.
Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona sua consciência
deste estar, é capaz sem dúvida, de ter consciência desta consciência condi-
cionada. (1983, p. 16)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Perspectivas acerca de transformações através da educação escolar
indígena. Cadernos do LEME, Campina Grande, v. 5, n. 1, jan./jun.
A dinâmica dos temas contextuais e as transformações da educação escolar indígena 135
detalhadas sobre o assunto podem ser encontradas em Fernandes da Silva (1999); Pivetta (1993);
Arruda (1992) e Costa (1985). Os padres salesianos ainda mantêm diversas missões religiosas para
índios em Mato Grosso e em outros estados do Brasil.
4 Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”;
Silva (1994) e outros preferem “questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos, variantes que são.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 139
Art. 24 - O ensino primário deverá ter por objetivo dar às crianças perten-
centes às populações interessadas conhecimentos gerais e aptidões que as
auxiliem a se integrar na comunidade nacional.
[...]
Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...] com o objetivo de lhes
fazer conhecer seus direitos e obrigações especialmente no que diz respeito
ao trabalho e os serviços sociais. (Grifos meus)5
A escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo,
na qual, ao mesmo tempo em que assegura e fortalece a tradição e o modo
de ser indígena, fortalecem-se os elementos para uma relação positiva com
outras sociedades. [...] Como decorrência da visão exposta, a educação
escolar indígena tem que ser necessariamente específica e diferenciada,
intercultural e bilíngue. (MEC, 1993, p. 12; grifo meu)
6 Uma análise crítica sobre a atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em
outros trabalhos da autora.
142 Darci Secchi
REPENSANDO O CURRÍCULO
DAS ESCOLAS INDÍGENAS
7 O autor destaca na Amazônia o mutilinguismo no alto rio Negro e, como monolíngues em portu-
guês, diversas comunidades do médio Solimões e baixo rio Madeira. O mesmo ocorre com diversas
sociedades indígenas do Nordeste brasileiro.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 143
8 Além das instituições proponentes, participaram professores e diretores das escolas indíge-
nas, representantes da Universidade Federal de Mato Grosso, Universidade do Estado de Mato
Grosso, Fundação Nacional do Índio, Secretarias Municipais de Educação e de organizações não
governamentais.
Escolas indígenas e currículos interculturais em Mato Grosso: avanços e desafios 145
sociais e com a escola, sem deixar de tratar dos temas advindos das relações
interculturais, especialmente daqueles que afetam diretamente seus modos
de vida e de subsistência.
Para cada um dos temas geradores relacionados nos currículos esco-
lares, foi associado um inventário de assuntos (ou conteúdo) que poderão
ser tratados pelos docentes em cada área de conhecimento nos diferentes
ciclos de formação. Dessa forma, o conteúdo curricular apresentado e deba-
tido numa espiral de complexidade crescente perpassa o currículo, desde os
ciclos iniciais até o final do ensino básico.
A título de exemplo, destacaremos, a seguir, o conteúdo proposto
para um dos temas (Educação para a Saúde) referentes ao primeiro ciclo de
formação e ao terceiro ciclo (equivalente ao de conclusão do ensino funda-
mental), indicando tal dinâmica.
A história das ervas medicinais e suas regras de uso (dietas, resguardos, e alimentação
de acordo com o gênero);
A função social das parteiras, pajés e benzedores;
Problemas da obesidade;
Sensibilização e prevenção sobre drogas lícitas e ilícitas;
A contribuição dos pajés para a saúde;
Saúde mental (o respeito nas relações com a natureza e o mundo dos espíritos);
A importância do alimento tradicional;
A história da saúde e das doenças (relações do organismo humano com o meio
ambiente);
Educação sexual, DSTs e AIDS (envolvendo a participação dos agentes indígenas
desSaúde – AIS);
Saúde e ambiente: impactos e conflitos;
Água potável e água poluída;
Alimentação do dia a dia: efeitos dos alimentos industrializados;
Alimentação que prejudica a saúde;
Alimentação saudável;
Alimentação tradicional, comidas típicas;
Alimentação tradicional: vegetal e animal;
As consequências do uso em excesso dos alimentos industrializados;
Compra de produtos tradicionais para a merenda escolar;
Concepção da saúde e doenças e suas relações com a natureza;
Consumo e produção de lixo;
Desnutrição de crianças, jovens e adultos;
Doenças sexualmente transmissíveis (DSTs)
Hábitos de higiene;
Higiene pessoal, ambiental e dos objetos;
História do uso das ervas medicinais pelos especialistas tradicionais;
Leitura e interpretação de bulas de medicamentos farmacêuticos;
Lixo (sólido, líquido, perigoso);
Descarte do lixo em locais adequados;
Medicinas tradicionais e doenças modernas;
Meio ambiente e saúde;
Período de gravidez e resguardo;
Saneamento básico e higiene pessoal;
Seres vivos e sua relação com o meio e a saúde;
Valorização das ervas medicinais.
Fonte: Seduc (2010, pp. 270; 289).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
A portuguesa Ana Maria da Silva era a chefe dos escravos, a casa dela era uma
casarona de assoalho nesse mesmo terreno que nós temos, a minha irmã mora
lá, [...] perto da casa da chefe da escravatura, a colocação chama-se restau-
ração, era toda assoalhada, era Ana Maria da Silva, ela doou as terras pros
escravos, antes dela ir para Portugal, para os nascidos e récen-nascidos. Eu até
tinha esse documento [...] ficou com um primo meu. (Dona Francisca – mora-
dora antiga de Itaboca)
Quando meu avô veio morar pra cá, ele não nasceu aqui, essa comunidade era
chamada Menino Deus, era uma área muito grande [...] e desde os primórdios,
a comunidade já era dividida em dois núcleos, sendo que o rio era a base de sua
fundação. [...] Como aqui tinha muita taboca, o pessoal começou a chamar de
tabocal, depois o pessoal passou a chamar de Itaboca. (Maria Leila Conceição
de Azevedo – professora de Itaboca)
Então, essa Ana Maria, como a terra se chamava Menino Deus antigamente,
ela dizia que os descendentes dela todos herdariam da área da terra. Só que
nessa época, segundo a vovó contava eu lembro, não tinham tantas famílias
como se tem hoje, não tinha tanta ambição como se tem hoje. Se eu tinha minha
casinha e se alguém chegasse para construir a sua casa, podia fazer. (Maria
Leila Conceição de Azevedo – professora de Itaboca)
O que mais pressiona hoje é a saúde. Aqui nós não temos uma saúde de quali-
dade [...] e nós temos dificuldade de se deslocar, e nos hospitais, nós temos difi-
culdade por causa da burocracia que demora a nos atender. [...] Nossa preo-
cupação também é com os jovens [...] por que a criminalidade pode atingir os
jovens [...] na nossa comunidade a criminalidade é quase zero, mas pode ocorrer
de vir gente de fora e desviar nossos jovens. (Manoel Reis da Silva – presidente
da Associação da comunidade)
3 Dona Francisca em sua narrativa se refere à presença da UFPA – Campus de Castanhal, através
do Grupo de Estudo Sociedade, Cultura e Educação (GESCEd), que executa o Programa Universidade
no Quilombo, promovendo uma série de atividades educativas com as crianças da comunidade de
Itaboca.
Educação e memória nas narrativas dos quilombolas de Itaboca.... 165
REFERÊNCIAS
Neste texto, apresentamos uma reflexão sobre noções de currículo que tem
subsidiado processos formativos de professores comunitários, articuladores,
monitores, voluntários, dentre outros profissionais da rede pública muni-
cipal e estadual de educação do estado de Mato Grosso que desenvolvem
atividades de educação integral do Programa Mais Educação.
As fontes dessa reflexão podem ser encontradas nas propostas e
documentos da política de educação integral que circulam contemporane-
amente nas políticas públicas brasileiras, em textos produzidos por pesqui-
sadores que subsidiam propostas de educação integral de âmbito nacional,
na própria organização curricular de um curso de formação em educação
integral e na noção de currículo da educação integral construída por duas
pesquisadoras a partir de suas vivências e estudos no e a partir de cursos de
formação em educação integral.
Sabemos que a noção de educação integral não é recente. Ela é origi-
nária da Grécia antiga a partir da noção de paideia que, embora etimologi-
camente signifique criação ou educação de crianças (de paidos – criança),
engloba um significado bem mais amplo, abrangendo todo o processo
de educação ou formação, e funde-se com as noções de cultura ou de
civilização.
por haver elaborado uma teoria pedagógica libertadora que não pode ser
confundida com uma série de finalidades a alcançar, mas uma proposta de
educação dialógica como via para a libertação e humanização.
Essa proposta se constitui como uma estratégia educativa que, em
geral, é concebida como método, mas o conceito de educação dialógica
se fundamenta numa dimensão política e ética no sentido de reconhecer
o oprimido como um ser cognoscente e sujeito de direito, íntegro em sua
humanidade, integrado ao mundo e detentor de uma linguagem integra-
dora de pessoas, de olhares, de tempos e de saberes diferentes. O apelo ao
caráter substantivo da integração (Fazenda, 2000) não se configura aqui
como uma licença poética, mas como indicação das raízes históricas e onto-
lógicas da existência de projetos de currículos integrados, com pertenci-
mento à educação integral, na trajetória da escolarização no Brasil. Tais
projetos, dependendo das circunstâncias históricas, ora ganham força, ora
são obliterados.
Castro e Lopes (2011) e Felício (2011 e 2012) registram em suas
pesquisas a existência de projetos de educação integral e de experiên-
cias com escolas de tempo integral ao longo do século XX em nosso país.
Projetos e experiências que não se mostram homogêneos ou consensuais,
mas radicalmente conexos às demandas de classe e de diferentes grupos
identitários, ora em uma perspectiva assistencialista e sem continuidade,
ora imbuídos em lutas por uma sociedade cada vez mais democrática.
Atualmente, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e da Secretaria
de Educação Básica (SEB), em parceria com o Fundo Nacional de Desenvol-
vimento da Educação (FNDE), vem operacionalizando, mediante portaria
interministerial nº 17/2007, o Programa Mais Educação como uma das
ações do Plano de Desenvolvimento da Educação.
passe a ser igual ou superior a sete horas diárias durante todo o ano letivo,
buscando atender a, pelo menos, metade dos alunos matriculados nas
escolas contempladas pelo programa. (Arroyo, 2012, pp. 33-45)
Tal ação tem por finalidade planejar e executar uma política educa-
cional pública organizada de forma diferente no espaço escolar como estra-
tégia para melhorar a qualidade da educação e evitar a exclusão de crianças
e adolescentes do universo social e educacional. Ou seja, a ideia central
da proposta é reorientar a política educacional visando possibilitar, às
classes sociais desfavorecidas, o acesso a uma educação que contemple, não
somente a extensão de espaços e tempos para a sua formação, mas princi-
palmente a preocupação em possibilitar ao educando, saberes, experiências
e vivências de conhecimentos visando a sua inclusão social, participação
política na sociedade e sua “humanização”.
Entendemos o Plano de Desenvolvimento da Educação e o Programa
Mais Educação não como restrita a um plano de governo, mas como consti-
tuintes da materialidade de uma política pública de currículo, configurada,
por sua vez, por confrontos, acordos e desacordos – sempre provisórios –
entre classes antagônicas e entre grupos identitários hegemônicos e não
hegemônicos da sociedade em que vivemos.
Nessa perspectiva, o Ministério da Educação propôs ações inter-
setoriais e interdisciplinares partilhadas com os centros e faculdades de
Educação das instituições de ensino superior para qualificar profissionais
que atuam na educação integral do Programa Mais Educação.
Assim, o Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT), vem, desde 2010, atuando em processos formativos
(cursos de aperfeiçoamento, de pós-graduação lato-sensu e seminários de
extensão). O objetivo dessa formação é propiciar melhor qualificação de
professores comunitários, articuladores, monitores, voluntários, entre
outros profissionais da rede pública municipal e estadual de educação do
estado de Mato Grosso que desenvolvem atividades de educação integral do
Programa Mais Educação. Em 2012, foi realizado o curso de especialização
em Educação Integral, que teve término em 2013.
Tomando por base as propostas e programas de assinatura oficial, e os
estudos de Castro e Lopes (2011) e de Felício (2001 e 2012), podemos dizer
que a noção de currículo que fundamenta os cursos de educação integral
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 179
3 Ver artigo intitulado “Educação Integral e currículo intertranscultural” (Moll, 2012, pp.189 a 206) e
nas obras intituladas Currículo intertranscultural: novos itinerários para a educação (Moll, 2004) e Educar
em todos os cantos: reflexões e canções por uma Educação Intertranscutural (Moll, 2007).
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 181
REFERÊNCIAS
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In: MOLL, J. et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a
outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre, Penso, pp. 189-206.
Noções de currículo da educação integral nos processos formativos em Mato Grosso 189
Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!
Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!
Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida! [...]
Mario Quintana
REFERÊNCIAS
A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém
pensou sobre aquilo que todo mundo vê.
Arthur Schopenhauer
1 Graduado em Letras e em Formação de Oficiais pela Academia de Polícia Militar. Mestre e doutor
em Educação. Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Docente da Academia de Polícia
Militar de São Paulo. <http://lattes.cnpq.br/1457314328660305>
206 Ronilson de Souza Luiz
Essa escolha se liga ao fato de que, nessa fase, presume-se que os policiais
possam ter, pela experiência de no mínimo 30 anos de serviço, uma visão
mais aberta, com maior clareza e entendimento do trabalho policial.
As referências pedagógicas serão as lições de Freire (1974, 1997,
2000), para quem a educação como prática unidirecional, autoritária,
baseada na ideia de aprendizagem como simples aquisição de informações
nada contribui para a autonomia e crescimento pessoal daquele que aprende
visão corroborada, do ponto de vista policial, por Soares (2006a, 2006b).
Uso a metáfora do salto em altura para a questão educacional.
Funciona assim, cada aluno ao final de um período deve saltar determinada
altura, ou seja, vencer determinado obstáculo, a saber, passar por provas.
Muitos alunos não têm conseguido êxito e aí vem a pergunta – o que fazer?
Treinadores experientes colocam mais peso em cada pé do atleta, que serão
retirados na hora da prova, de tal sorte que a dificuldade encontrada seja
superada pelo preparo, disciplina e orientação técnica. Outros treinadores
orientam seus atletas a procurarem algo mais simples, mais fácil ou que
desistam. Outros formadores têm a brilhante ideia de abaixarem a altura da
barra, acreditando facilitar a caminhada e ajudar o aluno. Sabemos que não
poderemos sob qualquer justificativa adotar este último caminho.
No entanto, como afirma Giroux (1995, p. 88):
Uma nova espécie de currículo deve abandonar sua pretensão de ser livre
de valores. Reconhecer que as escolhas que fazemos com respeito a todas
as facetas do currículo e pedagogia são carregadas de valor significa nos
libertarmos de impor nossos próprios valores aos outros. Admitir isto signi-
fica que podemos partir da noção que a realidade nunca deveria ser tomada
como dada, mas que, em vez disso, deve ser questionada e analisada.
[...] eu fiz Pedagogia, fiz Administração Escolar, por minha conta, sem nenhum
incentivo da Polícia. (Cf. coronel A)
[...] porque o pessoal que têm mais recursos financeiros dificilmente entram
como soldados, vão procurar outras carreiras que tenha uma rentabilidade
rápida, além do que, a da nossa carreira é muito lenta. É muito difícil porque
nossos soldados vêm das comunidades pobres, e é até difícil de recrutar [...]
Eles calculam 8%, ou seja, de cada 1000 candidato apenas oito ingressam.
(Cf. coronel C)
[...] O que não me causou estranheza, mas, de certa forma indignação é que
pouco se fala em prevenção, nós nos preocupamos muito na Escola de Formação
em dar uma dosagem de Direito... Direito disso, Direito daquilo... Mas o lado da
210 Ronilson de Souza Luiz
[...] eu era inflexível com duas coisas: Quando encontrava o cara dormindo ou
com a arma suja [...] Não porque está no regulamento, mas, porque ele não está
pensando na vida dele, não está pensando que pode ser morto, se pegarem sua
arma, vai servir pro bandido.
[...] faço uma outra crítica. Se nós não ouvirmos a sociedade, se não enca-
rarmos essa transdisciplinaridade que a polícia tem que ter, a segurança, temos
que pensar nisso porque, às vezes, o modelo que está, não está dando certo. (Cf.
coronel B)
[...] Não quer dizer que vai resolver o problema, mas é um foco que deve ser
visto e a minha preocupação na Escola de Soldados é que a prevenção se exal-
tasse e tivéssemos um olhar para as pessoas, para as vítima. (Cf. coronel B)
[...] É necessário ter controles flexíveis para que saiba com quem está lidando,
se esta pessoa está fora dos padrões normais, você vai tentar trazê-la para
dentro do padrão; para que ele esteja convencido de que está errado e não que
Currículo e culturas na formação policial 211
está sendo punido por ter feito isso ou aquilo. E obviamente quem não se enqua-
drar, não poderá ser da Polícia Militar, até por uma defesa dele próprio, quem
não tiver pendor para a atividade, vai sofrer demais, vai se angustiar demais,
vai se expor demais, e não é isso que você tá querendo. (Cf. coronel A)
[...] Precisa melhorar o ato de polícia, pensar ao fazer. Você sabe quando o cara
precisa ser preso, mas precisa ser preso daquele jeito? Precisa meter algema
no camarada? O grande problema nosso nós sabemos, só que nós precisamos
melhorar o ato de polícia, ninguém nega o conhecimento que nós temos, mas,
nos outros Estados eu vejo que eles estão buscando isso, melhorar a qualidade
do serviço, melhorar o ato individual, o ato corporativo, São Paulo parou um
pouquinho. (Cf. coronel B)
[...] Então, acho que esse lado de trabalhar na prevenção é fundamental na vida
do policial, é fundamental no cotidiano. É prevenindo que você consegue avanço,
você economiza gastos, você poupa vidas, mas isso lamentavelmente eu não vejo
com muito alento em muita gente. (Cf. coronel B)
O currículo, em seu conteúdo e nas formas através das quais se nos apre-
senta e se sedimentou dentro de uma determinada trama cultural, política,
social e escolar; está carregado, portanto, de valores e pressupostos que é
Currículo e culturas na formação policial 213
Esse novo projeto, essa nova alternativa não poderá ser elaborada nos gabi-
netes dos burocratas da educação. Não virá sob a forma de uma Lei ou uma
Reforma. Se ela for possível amanhã é somente porque hoje ela está sendo
pensada pelos educadores, juntos, trabalhando coletivamente, se reedu-
cando. (Gadotti, 1980, p. 82)
Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será
virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética
só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar
de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma
ordem, a um comando ou a uma pressão externos. (2006b, p. 341)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo dizer é deficiente – diz menos do que quer; todo dizer é exuberante –
dá a entender mais do que se propõe.
Ortega e Gasset
REFERÊNCIAS