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2 | S É R I E C R I S T I A N I S M O P R Á T I C O

EM ESPÍRITO
E EM VERDADE
Curso prático de liturgia
2 | S É R I E C R I S T I A N I S M O P R Á T I C O

EM ESPÍRITO
E EM VERDADE
Curso prático de liturgia

2ª. Edição

Luiz Carlos Ramos

EDITEO
São Bernardo do Campo, 2008
Série Cristianismo Prático
© 2008 Luiz Carlos Ramos
EDITORA DA FACULDADE DE TEOLOGIA (EDITEO)
Catalogação preparada pela bibliotecária
Aparecida Comelli Tavares (CRB 8-3781) – Biblioteca Jalmar Bowden

264 RAMOS, Luiz Carlos


R147e Em espírito e em verdade: curso prático de
liturgia / Luiz Carlos Ramos. 2. ed. São Ber-
nardo do Campo: Editeo, 2008.
144 p.

ISBN: 978-85-88410-85-5

1. Liturgia 2. Culto público I. Curso prático


de liturgia II. Título

CDD 18ª. ed.

Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Umesp


Reitor da Faculdade de Teologia Rui de Souza Josgrilberg
Reitor da Umesp Márcio de Moraes

Editeo

Conselho Editorial Blanches de Paula


Helmut Renders
José Carlos de Souza
Luiz Carlos Ramos
Magali do Nascimento Cunha
Nelson Luiz Campos Leite
Otoniel Luciano Ribeiro
Rui de Souza Josgrilberg (presidente)
Ronaldo Sathler-Rosa
Stanley da Silva Moraes
Tércio Machado Siqueira
Marcos José Martins

Coordenador editorial Ronaldo Sathler-Rosa


Editor responsável por este livro Tércio Machado Siqueira
Coordenador de produção Luiz Carlos Ramos
Revisão Gedilson Oliveira dos Santos,
Glória Pratas e Adilson Miguel da Silva
Assistente Editorial Glória Pratas
Editoração e capa Marcos Antonio Brescovici
Foto da capa Vitor Chaves (patena e cálice
utilizados nas celebrações
eucarísticas da FaTeo)

EDITORA DA FACULDADE DE TEOLOGIA DA IGREJA METODISTA


Rua do Sacramento, 230 – Rudge Ramos
09840-000 – São Bernardo do Campo, SP
Telefone: (11) 4366-5983 — e-mail: editeo@metodista.br
Sumário

Prefácio ................................................................... 7
Prólogo .................................................................. 11
Introdução ............................................................ 13
Liturgia e Culto ............................................................ 13
Liturgia e Teologia........................................................ 13
Modelos bíblicos e históricos de ordem para o culto ....... 16
As bases da liturgia cristã: o Pão e a Palavra ................. 24
I O que é culto? (A liturgia do serviço) ...............29
II Por que fazer culto? (A liturgia da graça) .......37
III Onde se faz culto? (A liturgia do espaço
sagrado)................................................................41
Lugares Sagrados ........................................................ 42
Tabernáculo................................................................. 43
O Templo .................................................................... 45
Sinagogas ................................................................... 47
Casas (cenáculo) ......................................................... 48
Praça pública ............................................................... 50
Prisões ........................................................................ 51
Catacumbas ................................................................ 52
Basílicas e catedrais ..................................................... 54
A linguagem espacial e a teologia dos edifícios, mobílias
e utensílios religiosos................................................... 56
A Igreja: em espírito e em verdade............................... 62
IV Quem participa do culto? (A liturgia
do povo de Deus) ..................................................66
O lugar da criança no culto cristão ................................ 70
Culto para crianças ou culto com as crianças? ............... 73
O que as crianças podem e não podem fazer no culto?.. 75
Preparação da liturgia de um culto inclusivo .................. 78
Portanto...................................................................... 80
V Quando fazer culto? (A liturgia do tempo) ....... 82
A celebração da História da Salvação............................ 83
O Calendário Litúrgico.................................................. 86
Ciclo do Natal .............................................................. 88
O Tempo Comum (após Epifania
e após Pentecostes)..................................................... 93
Ciclo Pascal ................................................................. 96
Esquema do Ano Litúrgico...........................................101
VI Como fazer culto? (A liturgia da liberdade
e da criatividade)................................................ 105
Objetividade e subjetividade litúrgicas .........................106
A emoção na comunicação litúrgica .............................107
A razão na comunicação litúrgica.................................108
Emoção, sensação e razão e a saúde litúrgica ..............110
Outras formas de comunicação-não-verbal na liturgia ..111
A natureza e o culto....................................................112
O corpo e o culto ........................................................120
A cultura e o culto.......................................................131
A Equipe ou Ministério de Liturgia ................................135
Epílogo ................................................................ 139
Referências ......................................................... 141
Textos sobre culto e liturgia .........................................141
Textos sobre a comunicação por vias não-verbais ........143

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Prefácio

A Série Cristianismo Prático (S-


CRIPT) foi planejada para oferecer às
lideranças das igrejas locais, pastores
e pastoras, leigos e leigas, um ins-
trumento de trabalho e aperfeiçoa-
mento da pastoral cristã. Como uma
demonstração de nossa disposição,
temos a alegria de apresentar o traba-
lho do Rev. Luiz Carlos Ramos, Em
Espírito e em Verdade, um curso prá-
tico de liturgia.
A publicação deste livro torna-se
urgente, exatamente, porque cresce,
nas igrejas evangélicas, uma atitude
de desdém para com a palavra “litur-
gia”. Há poucos dias, ouvi a seguinte
frase, numa oração de um leigo: “Re-
preenda, Senhor, o espírito de liturgi-
a”. Indagado pelo pastor sobre o seu
conceito de liturgia, ele respondeu: “é
aquele papelzinho que organiza o cul-
to”.
O livro Em Espírito e em Verdade
tem a intenção de esclarecer o signifi-
cado de liturgia para a Igreja Cristã.
Mais do que enfatizar a liturgia como
uma ordem para a celebração cúltica,
o autor deixa claro que ela vai além.
Para ele, liturgia deve ser compreen-
dida como uma vida de serviço à
Causa Divina. Isso faz da liturgia um
conjunto harmonioso de palavras,
gestos e expressões que orientam e
desafiam a comunidade celebrante a
aperfeiçoar o seu testemunho cristão.
Assim, pedagogicamente, a liturgia
deixa de ser mera questão formal,
para exercer um verdadeiro papel
profético, desafiando a cada celebran-
te a transformar os passos litúrgicos,
contidos numa folha de papel, em
práticas do seu dia-a-dia.

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O autor desenvolve este tema
com profundidade e leveza. Partindo
das bases bíblicas, mostra a liturgia
como um instrumento necessário ao
testemunho cristão. Além disso, ele
deseja mostrar que a liturgia é um
dos elementos que sinalizam a di-
mensão ecumênica da Igreja Cristã,
em todas as épocas. Na diversidade
das igrejas, a liturgia se faz presente
na especificidade de cada tradição
cristã.
Portanto, a Faculdade de Teologia
da Igreja Metodista pretende, com
esta publicação, incentivar as igrejas
locais a redescobrirem a importância
da liturgia, para o culto, e a dialoga-
rem com as tradições cristãs. A preo-
cupação do Rev. Luiz Carlos é com a
prática do culto nas igrejas.
Como editor da Série Cristianismo
Prático, espero que este curso prático
de liturgia ajude o povo cristão na
busca de uma autêntica celebração
de sua fé. Que os cultos sejam mais

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comunitários e participativos, e que o
povo crente seja mais consciente e
comprometido com a Palavra de
Deus.

Tércio Machado Siqueira

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Prólogo

O material desta obra é o resulta-


do da experiência do autor como pas-
tor e como liturgista. É fruto dos
cursos ministrados nas comunidades
pelo Brasil afora e das aulas de Li-
turgia da Faculdade de Teologia da
Igreja Metodista; e também da expe-
rimentação de uma espiritualidade
encarnada, vivenciada nas celebra-
ções da Igreja local, regional e nacio-
nalmente, bem como em tantos en-
contros ecumênicos, e, particular-
mente, nos cultos da FaTeo.

Luiz Carlos Ramos


Introdução

Liturgia e Culto

A
NTES DE APRESENTARMOS
uma definição de liturgia, é
importante fazer uma pe-
quena distinção entre Li-
turgia e Culto: segundo Nelson Kirst
(ver referências bibliográficas no final
da publicação) Culto é o encontro ce-
lebrativo entre Deus e o seu povo, e a
Liturgia é o que acontece nesse en-
contro.

Liturgia e Teologia

Convencionalmente, a Teologia se
estrutura em três grandes áreas, a
saber: (1) Bíblia, que se ocupa da in-
vestigação das fontes da fé cristã; (2)
Teologia Sistemática e História, que
estuda a maneira como a fé foi inter-
pretada e reinterpretada em diferen-
tes épocas e lugares; (3) e Pastoral,
que se ocupa da práxis da fé, isto é,
da reflexão e da prática aplicada à
realidade das pessoas e das comuni-
dades de fé no contexto da missão da
Igreja a toda a humanidade.
Didaticamente, a Liturgia inscre-
ve-se no escopo da Teologia Pastoral,
que, por sua vez, se subdivide em di-
ferentes áreas, sendo as principais
estabelecidas a partir da narrativa
bíblica do livro dos Atos dos Apóstolos
(especialmente, 2.42-47): doutrina
(didaskalia) – comunhão (koinonia) –
partilha do pão (diakonia) – ora-
ção/louvor (liturgia). A Liturgia é, por-
tanto, um capítulo da Teologia Pasto-
ral, ao lado da Educação Cristã, do
Aconselhamento ou Poimênica, da
Diaconia ou Ministérios. Entretanto,
essas divisões têm caráter meramente
didático, pois, na prática, todas as

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LUIZ CARLOS RAMOS
14
áreas da Teologia estão imbricadas,
interligadas e se interdependem.
Na academia, o uso científico do
termo liturgia aplica-se à disciplina
teológica que trata da ritualidade ce-
rimonial e rubrical que regulam o e-
xercício externo do culto.
Considera-se a liturgia como teolo-
gia primeira (theologia prima) e a re-
flexão dogmática como Teologia se-
gunda (theologia secunda). É igual-
mente considerada ápice e fonte (cul-
men et fons) da ação da igreja (actio
ecclesiae). Neste sentido, como ensina
Casiano Floristán, a liturgia é “lugar
primário no qual se realiza a autênti-
ca fé, ao mesmo tempo em que é fonte
e norma primeira da doutrina”. A li-
turgia é uma das três grandes ações
da Igreja, sendo precedida pela evan-
gelização e seguida pela atividade ca-
ritativa, testemunhal ou apostólica.
Assim sendo, não se pode fazer Li-
turgia sem se recorrer à fonte da nos-
sa fé, a Bíblia; nem à interpretação e
atualização dessa fé, a Teologia Sis-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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temática e a História; e, muito menos,
sem recorrer-se à aplicação dessa fé à
vida com vistas à transformação da
realidade à luz dos princípios do Rei-
no de Deus, que é a tarefa específica
da Teologia Pastoral.
Por essa razão, trataremos dos
temas da Liturgia, sempre relacio-
nando-os à Bíblia, à sistematização
histórica e à práxis pastoral.
Comecemos, portanto, pela busca
de alguns modelos bíblicos de ordem
para o culto.

Modelos bíblicos e históricos


de ordem para o culto

Na Bíblia Hebraica há muitas in-


dicações, umas mais, outras menos
explícitas, de diferentes práticas li-
túrgicas. Um bom exemplo é a narra-
tiva de Neemias 8.1-12. Note-se a
estrutura sugerida pela narrativa:
Reunião – leitura bíblica – adoração –
edificação (explicação da leitura) –

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LUIZ CARLOS RAMOS
16
refeição comunitária/serviço aos ne-
cessitados.
No mesmo livro podemos encon-
trar variações dessa estrutura, veja-
se, por exemplo, Neemias 9: Confis-
são individual – leitura bíblica – ado-
ração e louvor – confissão comunitá-
ria – dedicação (renovação da alian-
ça).
Um dos modelos mais significati-
vos é o encontrado em Isaías 6.1-8. A
estrutura oferecida por esta passagem
forneceu a base para a liturgia de vá-
rias igrejas reformadas e, particular-
mente, a Igreja Metodista, aqui no
Brasil: adoração – confissão (indivi-
dual e comunitária) – edificação – de-
dicação.
No Novo Testamento, várias são as
referências. Detenhamo-nos em al-
gumas das que mais inspiraram a
prática litúrgica histórica.
Lucas 24. O capítulo 24 do Evan-
gelho de Lucas repete sistematica-
mente uma mesma estrutura: encon-
tro – Serviço da Palavra – Serviço da

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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Mesa – Envio. Veja Lucas 24.13-35;
36-43; 44-49.
O mesmo texto de Atos 2.42-47,
mencionado acima, também nos ofe-
rece uma referência sobre a prática
celebrativa dos primeiros cristãos:
instrução – comunhão – partilha –
oração e louvor.
Apocalipse 8. Uma outra proposta
litúrgica, bem diferente, encontramos
no relato de um culto escatológico,
narrado no capítulo 8 e seguintes do
livro do Apocalipse: silêncio contem-
plativo – súplicas (incensário) – pro-
clamação (trombetas) – edificação
(10.8-10) – Envio (10.11; 11.1ss).
Um dos registros mais antigos, a
que temos acesso, sobre o culto nos
primeiros séculos, encontra-se na
Didachè, que era uma espécie de ma-
nual dos primeiros cristãos, datado,
provavelmente, do final do primeiro
século. Veja-se, a título de ilustração,
a seguinte oração eucarística extraída
da Didachè:

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LUIZ CARLOS RAMOS
18
No que se refere à eucaristia,
dai graças assim:
Primeiramente, sobre o cálice:
Nós te damos graças, ó Pai nosso,
pela santa vinha de Davi, teu servo;
tu no-la fizeste conhecer
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Depois, sobre o pão partido:
Nós te damos graças, ó Pai nosso,
pela vida e pelo conhecimento
que nos concedeste
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Como esse pão partido,
antes disseminado
sobre as montanhas,
foi reunido para ser apenas um,
reúne do mesmo modo tua igreja das
extremidades terra em teu Reino.
Sim, a ti são a glória e o poder
por Jesus Cristo, pelos séculos!
Depois de terdes comido o pão,
agradecei assim:
Nós te damos graças, ó Pai santo,
por teu santo nome,
que abrigaste em nosso coração,
pelo conhecimento, pela fé

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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e pela imortalidade
que nos concedeste
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Tu, Senhor todo-poderoso, criaste o
universo para louvor de teu nome e
deste aos homens a comida e a bebida
para [seu] regozijo,
a fim de que eles te dêem graças;
mas a nós, tu nos deste um alimento
e uma bebida espirituais
e a vida eterna por teu filho.
Antes de tudo nós te damos graças
porque és poderoso;
Glória a ti pelos séculos!
Lembra-te, Senhor,
de livrar tua igreja de todo mal
e de completá-la em teu amor.
Reúne, dos quatro ventos a Igreja,
que santificaste,
no Reino que preparaste para ela.
Porque a ti pertencem o poder
e a glória pelos séculos!
Venha a tua graça
e passe este mundo!
Hosana ao Deus de Davi!
Quem é santo venha;
quem não é faça penitência.
Marana tha! Amém.

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LUIZ CARLOS RAMOS
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Síntese: Adoração (orações a Deus,
o Pai) – Eucaristia (proclamação do
evangelho e memorial de Jesus, o Fi-
lho) – Diakonia (Espírito Santo motiva
o serviço/coleta em favor dos necessi-
tados).
Outro importante documento é o
relato de Justino Mártir (Primeira
Apologia), de meados do segundo sé-
culo da era cristã. Assim Justino des-
creve a celebração do domingo:
Depois disso, continuamos a recor-
dação dessas coisas. Aqueles que
têm posses prestam ajuda a todos os
que têm necessidade, e nós nos da-
mos assistência mutua. Em todas as
nossas oferendas bendizemos o Cria-
dor do universo por seu filho Jesus
Cristo e pelo Espírito Santo. No dia
chamado do sol, todos, habitem nas
cidades ou nos campos, se reúnem
num mesmo lugar. São lidas as me-
mórias dos apóstolos e os escritos
dos profetas enquanto o tempo o
permite. Terminada a leitura, aquele
que preside toma a palavra para ad-
vertir e exortar à imitação desses be-
los ensinamentos. Em seguida, todos

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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nós nos levantamos e oramos em voz
alta. Depois, como já dissemos, ter-
minada a oração, são trazidos pão,
vinho e água. Aquele que preside, à
medida que suas forças o permitem,
faz subir ao céu orações e ações de
graça, e todo o povo responde com a
aclamação amém.
Segue-se a distribuição dos alimen-
tos consagrados a cada um, e a parte
dos ausentes lhes é enviada pelo mi-
nistério dos diáconos. Aqueles que
têm bens em abundância e querem
fazer doações doam livremente o que
querem. O que é recolhido é entregue
ao presidente, que dá assistência aos
órfãos, ás viúvas, aos doentes, aos
indigentes, aos presos, aos hóspedes
estrangeiros, numa palavra, a todos
os que estão passando necessidade.
Nós nos reunimos no dia de Sol por-
que é o primeiro dia, aquele em que
Deus, tirando a matéria das trevas,
criou o mundo, porque nesse mesmo
dia o nosso salvador Jesus Cristo
ressuscitou dos mortos. Na vigília do
dia de Saturno ele foi crucificado e,
no dia seguinte a este, isto é, no dia
do Sol, ele apareceu aos seus apósto-

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LUIZ CARLOS RAMOS
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los e aos seus discípulos e lhes ensi-
nou essa doutrina que nós acabamos
de submeter ao vosso exame.
A liturgia começava com leituras
das Escrituras e relatos dos teste-
munhos dos apóstolos (seguidores de
Jesus) – exortações para a imitação
dos atos de Jesus, conforme teste-
munhados – orações pelo mundo e
pela igreja, particularmente pelos
enfermos, ou que estavam à morte, e
pelos que haviam sido presos por
professarem a Cristo, denunciados
por não cristãos – beijo da Paz – ofer-
tório dos elementos eucarísticos –
oração eucarística – distribuição dos
elementos eucarísticos aos presentes
e envio aos ausentes – coleta em fa-
vor dos necessitados (alimentos, rou-
pas ou dinheiro) – despedida com
oração para que todos permaneçam
fiéis e a salvo até reunirem-se nova-
mente no próximo domingo.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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As bases da liturgia cristã:
o Pão e a Palavra

Sabe-se que os primeiros cristãos


mantinham seu costume, como ju-
deus, de freqüentar a sinagoga, aos
sábados, para ouvir a leitura da Lei,
dos Escritos e dos Profetas; e que, no
domingo, se reuniam nas casas para
o “partir do pão” e celebrar a memó-
ria de Jesus. Celebravam, assim, a
Palavra, no sábado, e a Ceia, no do-
mingo. Porém, à medida que os cris-
tãos foram sendo expulsos das sina-
gogas, passaram a concentrar no
domingo a celebração da Palavra e da
Mesa.
Num primeiro momento, como sa-
lienta Nelson Kirst em Nossa Liturgia:
das origens até hoje, o sacramento
eucarístico era feito no contexto de
uma refeição normal e tinha a se-
guinte estrutura: O celebrante partia
o pão e fazia uma oração de ação de
graças, depois todos comiam a refei-
ção comunal e, ao final, o celebrante

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LUIZ CARLOS RAMOS
24
voltava a chamar a atenção de todos
para a partilha do vinho que era pre-
cedida de outra oração de ação de
graças.
A estrutura era, portanto: pão –
refeição – vinho. Mais tarde, por ra-
zões várias, passou-se a realizar a
refeição em primeiro lugar, juntando
a celebração do pão e do vinho no
final da cerimônia: refeição – pão e
vinho. Mais adiante, ainda, separou-
se completamente a refeição do me-
morial do pão e do vinho.
O culto cristão integra em uma
única celebração a leitura e a expli-
cação das Escrituras, próprias da
liturgia da Sinagoga judaica, e o
memorial eucarístico, do Cenáculo.
As primeiras pessoas a professar
a fé cristã eram, principalmente, ju-
dias, e assim continuaram até que
foram expulsas da Sinagoga. Até en-
tão, reuniam-se no sábado (Shabah),
na Sinagoga para a liturgia da Pala-
vra, e tornavam a reunir-se no do-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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mingo (Dia do Senhor) para a Liturgia
do Cenáculo.
Quando as Sinagogas fecharam
suas portas aos cristãos, estes pas-
saram a concentrar a liturgia da Pa-
lavra, e a do Cenáculo, numa única
celebração, desta vez no Dia do Se-
nhor (Kyriake hemera).
Dos relatos bíblicos e históricos,
mencionados até aqui, podemos es-
tabelecer um padrão que dá o fun-
damento da liturgia cristã: a Cele-
bração da Palavra e a Celebração da
Mesa.
Quase todos os relatos têm em
comum o fato de terem dois focos
distintos e complementares: a leitura
e explicação da Palavra, de um lado,
e a prática sacramental do memorial
instituído por Jesus, a eucaristia, ou
Santa Ceia, ou ainda a Ceia do Se-
nhor, de outro. Pão e Palavra são,
portanto, os pilares da liturgia.
Na organização do espaço celebra-
tivo, esses “pilares” ficam evidentes
pela disposição, no altar: da mesa da

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LUIZ CARLOS RAMOS
26
comunhão e do púlpito, lugares res-
pectivos da comunhão e da procla-
mação; do sacramento e do Evange-
lho; da partilha e do anúncio; da fé e
da prática; dos atos de piedade e das
obras de misericórdia; enfim, do Pão
e da Palavra.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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I
O que é culto?
(A liturgia do serviço)

O
TERMO LITURGIA TEM origem no
grego clássico leitourgia (leitos
[adjetivo de laós] = povo + ergon
= trabalho, esforço), que origi-
nalmente designava toda obra, ação ou
iniciativa assumida livremente por um
indivíduo em favor do povo ou do bairro
ou da cidade ou do Estado. Aos poucos
o termo passou a designar qualquer
trabalho que importasse em “serviço”,
mais ou menos obrigatório, prestado ao
Estado, ou a um indivíduo, ou mesmo à
divindade (“serviço religioso”).
Na Bíblia Hebraica, ou Antigo Tes-
tamento, um dos termos mais signifi-
cativos, relativos ao culto, é hawa,
que pode ser traduzido por “prostrar-
se” e “adorar”. A palavra é empregada
170 vezes em todo o AT e traz a idéia
de submissão e auto-humilhação,
cujo sentido sugere um curvar-se até
a testa encostar o chão.
Derivam de hawa outros termos
que nos ajudam a entender melhor a
força e a idéia da raiz desse termo:
abad, traduzido por “escravo”, servo
(equivalente ao grego doulos); abida,
traduzido por “serviço”, “ritual”, “ado-
ração”; ‘abodah, traduzido por “traba-
lho” e ‘abad, “servir”, “cultivar o cam-
po” (vd. Êx 12.21-28; Dt 10.8; 2Cr
8.14).
Em Esdras 6, por exemplo, esses
termos são empregados na narrativa
que descreve o serviço realizado por
ocasião da construção ou reconstru-
ção de Jerusalém.
A tradução grega do Antigo Testa-
mento, a Septuaginta (LXX), emprega
o termo liturgia sempre, sem exceção,
para designar o “serviço religioso”

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LUIZ CARLOS RAMOS
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prestado pelos levitas a Yaweh (ocorre
mais de 150 vezes).
No Novo Testamento, o verbo lei-
tourgeo, o adjetivo leitourgikos e os
substantivos leitourgia e leitourgos
ocorrem 15 vezes e, em geral, são tra-
duzidos como “serviço”, “ministério”,
“socorro/auxílio” e seus correspon-
dentes. Em Atos 13.2 o termo tem,
especificamente, o sentido de “culto”
(ver também: Hb 1.7,14, 8.2,6, 10.11;
Fp 2.17).
Nos escritos extrabíblicos, como
na Didachè e textos de Clemente, o
termo aparece claramente relacionado
com a celebração eucarística.
Ao longo da história da Igreja, o
termo grego foi preservado na igreja
oriental, mas substituído por seus
equivalentes latinos (officium, ministe-
rium, múnus...) na igreja latina.
Atualmente, a palavra liturgia se
aplica a todo o conjunto dos atos ri-
tuais e da Igreja pelos quais prosse-
gue no mundo no exercício do sacer-
dócio de Jesus Cristo, destinado a

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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santificar os seres humanos e glorifi-
car a Deus.
No Novo Testamento, outros ter-
mos são utilizados com o mesmo sen-
tido de leitourgia (At 13.2; Hb 1.7,14,
8.2,6, 10.11; Fp 2.17), entre eles:
ƒ Proskyneo (equivalente ao he-
braico hawa), geralmente tra-
duzido por “adorar/adoração/
adorador”, (Mt 2.2,8, 11; 4.9,
10; Jo 4.20-23; Ap 3.9). Signi-
fica, literalmente, “curvar-se”,
“prostrar-se”;
ƒ Sebomai, traduzido por “te-
mor”, “piedade” (Mt 15.9; At
13.43,50, 16.14, 17.4,17, 18.
7,13, 19.27). É a característica
dos homens e mulheres cuja
piedade se tornava notória pela
prática da oração, do jejum e
das esmolas dadas aos pobres;
ƒ E Latreia, traduzido como “cul-
to”, “serviço sagrado” (Rm 9.4,
12.1; Hb 9.1,6,9,14; Mt 4.10;
At. 7.7; Ap 7.15, 22.3). A la-
treia é a tarefa do latris, o mais

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LUIZ CARLOS RAMOS
32
humilde dos serviçais do perío-
do bíblico. Há vários tipos de
escravos que são mencionados
na Bíblia: o doulos, que cuida-
va dos serviços externos (trata-
va dos animais, lavrava a ter-
ra...); o diakonos, que cuidava
dos serviços domésticos (servia
as mesas, limpava a casa...); e
o latris, que era quem fazia o
trabalho mais degradante (lim-
pava a latrina). O latris não é
mencionado nas páginas do
NT, mas o seu serviço sim, nos
textos indicados acima. Da
mesma raiz, temos as expres-
sões em português “latrina” e
“idolatria”.
Todos esses termos têm a conota-
ção de humildade e serviço.
Portanto, liturgia é o serviço comuni-
tário celebrado pelo povo de Deus por
meio da adoração à Trindade e da soli-
dariedade aos da família da fé, bem co-
mo a toda a comunidade humana.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 33
Talvez por essa origem etimológica
dos termos, para muitos, participar
do culto assumiu um caráter de de-
ver, de obrigação, de trabalho (até
hoje, um termo muito comum na lín-
gua inglesa para designar o culto é
service, “serviço”).
Por essa razão, é preciso, aqui,
evocar a grande ação da graça de
Deus, que toma a iniciativa de vir até
nós, no culto, como veio ao encontro
da humanidade na pessoa de Jesus
Cristo, e estabelece conosco uma no-
va aliança, pela qual já não somos
chamados servos, mas amigos:
Já não vos chamo servos, porque o ser-
vo não sabe o que faz o seu senhor;
mas tenho-vos chamado amigos, por-
que tudo quanto ouvi de meu Pai vos
tenho dado a conhecer. (Jo 15.15)
Assim sendo, o culto é o encontro
maravilhoso do Eterno com o efêmero,
do Infinito com o finito, do Santíssimo
com o pecador redimido.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
34
A dimensão do serviço prestado
com muita humildade permanece,
mas não por dever, mas por amor.
Dizendo de outra forma, a liturgia
é um diálogo interativo e afetivo en-
tre Deus e os seres humanos e des-
tes entre si, no contexto celebrativo
da fé, na forma de um serviço co-
munal — comunitário e comunica-
cional — porque é prestado por to-
dos e para todos.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 35
II
Por que fazer culto?
(A liturgia da graça)

P
OR QUE ALGUÉM VAI AO CULTO? A
resposta a esta pergunta pode
ser reveladora da teologia do
culto.
Há, historicamente, três posturas
clássicas a esse respeito: a primeira,
típica da Igreja Medieval, que diz que
devemos ir ao culto para sermos a-
graciados por Deus: ênfase na mística
sacramental.
Uma segunda, muito difundida
entre os anabatistas, diz que devemos
ir ao culto para sermos alimentados
pela Palavra de Deus: ênfase na ra-
cionalidade dogmática.
Finalmente, a posição de reforma-
dores, como Calvino e Lutero, que
entenderam que a liturgia não deve
ser considerada mero meio para se
obter graça ou favor divinos, nem co-
mo ocasião para que o povo de Deus
seja alimentado por sua Palavra, uma
vez essas seriam práticas antropocên-
tricas — porque têm como último be-
neficiário o ser humano.
Em contrapartida, os reformadores
entenderam que a liturgia deve ser
teocêntrica, de modo que Deus seja o
sujeito, o centro, o foco do culto. As-
sim, o fiel deve buscar em primeiro
lugar o Reino de Deus e sua justiça —
isso também no culto. Assim, a graça,
a instrução bem como as demais coi-
sas, serão acrescentados aos fiéis
como decorrência natural. Aqui estão
sendo levadas em consideração as
duas grandes doutrinas da Reforma
Protestante: a Teologia da Graça (es-
pecialmente, Lutero) e a da Soberania
de Deus (especialmente, Calvino).

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LUIZ CARLOS RAMOS
38
Na prática, constata-se que há um
caminho de mão dupla: de um lado,
Deus vem ao encontro da comunidade
(e é sempre ele quem toma a iniciati-
va), e, por outro lado, a comunidade
vai ao encontro de Deus, como res-
posta em ação de graças à grande
ação da graça de Deus. O culto se
constitui, assim, em ponto de encon-
tro celebrativo entre Deus e a comu-
nidade e desta consigo mesma (cf. Tg
4.8).
No entanto, não se deve perder o
referencial de que Deus é o centro do
culto, é ele que “está sentado no alto
e sublime trono” (cf. Is 61).
A pergunta “por que fazer cultos?”
será melhor respondida e mais deta-
lhadamente explicada ao longo dos
próximos capítulos, à medida que a-
bordarmos outros aspectos essenciais
da liturgia.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 39
III
Onde se faz culto?
(A liturgia do espaço sagrado)

Q
UANTO AO ESPAÇO LITÚRGICO,
desde muito cedo na experiên-
cia do povo de Deus, conforme
registrada nas Escrituras, hou-
ve a preocupação de delimitações e
estabelecimento de áreas nas quais a
manifestação do Sagrado é experi-
mentada de maneira especialmente
enfática.
A relação do povo de Deus com
tais lugares acompanhou o amadure-
cimento da sua fé e espiritualidade,
bem como as contingências sócio-
político-geográficas próprias de cada
período de sua história.
Lugares Sagrados

Primeiramente, na fase em que o


povo de Deus dava seus primeiros
passos na construção de sua identi-
dade religiosa (fé e teologia), sua ex-
periência com as manifestações de
Yaweh (as teofanias) eram eventuais
e esporádicas. Assim, as primeiras
referências são os chamados Lugares
Sagrados, tais como aconteceu com:
Noé, após o Dilúvio (Gn 8.20); Abraão,
nos Carvalhais de Manre (Gn 13.18);
Moisés, no Monte Horebe (Êx 3.5);
Josué, no Monte Ebal (Js 8.30); Davi,
na Eira de Ornã (1Cr 21.26); Esdras e
Neemias, na reconstrução do Templo
(Ed 3.2); mesmo Jesus, no Monte da
Transfiguração (Mc 9.2ss); e Paulo, no
lugar de oração às margens de um rio
(At 16.13 ).
Nas primeiras experiências, o lu-
gar em si passa a ser considerado
sagrado, porque ali algo especial da
parte de Deus aconteceu.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
42
Na medida em que a identidade re-
ligiosa do povo de Deus vai se estabe-
lecendo com mais clareza, começou-
se a construir ou utilizar-se de locais
conforme as circunstâncias do seu
cotidiano.

Tabernáculo

Quando nômades, habitantes de


tendas, e peregrinos do deserto, cons-
truíram o Tabernáculo (Êx 30-40, ver
também cap. 25 [especialmente v. 8 a
27]).
O Tabernáculo deveria ficar no
centro do acampamento israelita, com
a entrada do Santo Lugar voltada pa-
ra o Oriente e a do compartimento
interno, o Santo dos Santos, voltado
para o Ocidente.
Tratava-se de uma estrutura sim-
ples: uma cerca de lona com um pá-
tio, e um espaço reservado menor (o
Santo) para os sacrifícios diários, ofe-
recidos pelos sacerdotes, e um ainda
mais reservado (o Santo dos Santos)

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 43
onde o Sumo-Sacerdote oferecia o
sacrifício anual.
O Tabernáculo abrigava a Arca da
Aliança (cf. Êx 25.1-22), o Menorah
ou castiçal de sete braços (cf. Êx
25.31-39), o Altar de Bronze para os
holocaustos (cf. Êx 27.1-8) e o Altar
de Ouro para o incenso (Êx 30.1-10).
Quando o povo levantava acam-
pamento e partia para outras para-
gens, o Tabernáculo era desmontado
e carregado pelos levitas que torna-
vam a montá-lo no novo lugar de des-
tino.
Diferentemente do que se passava
nos Lugares Sagrados, com o Taber-
náculo, Yaweh passa a habitar em
uma tenda muito parecida com a casa
do povo que o adorava, acompanhan-
do-o em sua peregrinação, sempre
que este se mudava.
Durante a conquista de Canaã, o
Tabernáculo permaneceu em Gilgal,
depois em Silo, e depois em Quiriate-
Jearim, até Davi. No tempo de Saul,

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LUIZ CARLOS RAMOS
44
ficou em Nobe (1Sm 21.1). Salomão o
trouxe para Jerusalém.
Segundo o Evangelho de João, Je-
sus “tabernaculou” com os seres hu-
manos (cf. 1.14).

O Templo

Quando sedentários, já estabeleci-


dos na Terra Prometida, e passam a
habitar em casas de madeira e alve-
naria, devidamente decoradas e “a-
paineladas” (cf. Ag 1.4), os adoradores
de Yaweh decidem construir o Templo
(cf. 1Rs 5.5; 6).
O modelo para o Templo é o que
há de melhor em termos de edifica-
ções humanas da época.
O Templo passa a ser o lugar de
referência ao redor do qual gira a vida
do povo de Deus. Em Jerusalém, on-
de é edificado, está o centro do poder
político, econômico e religioso.
E é o Templo que dá legitimidade a
todo o resto. Para isso, peregrinações
anuais eram promovidas, de modo

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 45
que todos tinham o compromisso de
comparecer ao Templo periodicamen-
te para oferecer sacrifício, pagar taxas
e impostos e apresentar seus filhos e
iniciá-los na fé de Yaweh.
O Templo de Jerusalém, edificado
por Salomão, foi destruído pelos Babi-
lônios, cerca de 600 anos antes de
Cristo. Em duas ocasiões, foi reedifi-
cado (por Neemias, em 520-516 a.C.,
e por Herodes, entre 19 a.C. e 64
d.C.). Depois de quatro anos de rebe-
lião armada, pela qual os hebreus
pretendiam inutilmente expulsar os
funcionários de César da terra prome-
tida, no ano 70, o general romano
Tito, obedecendo às ordens do seu
pai, Vespasiano, foi enviado à Palesti-
na para restabelecer a ordem imperi-
al. Lá chegando, assaltou Jerusalém e
incendiou e arrasou o Templo, não
sem antes promover-lhe o saque
completo.
Atualmente, no lugar do Templo,
em Jerusalém, está construída uma
Mesquita Islâmica (a Mesquita da

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LUIZ CARLOS RAMOS
46
Cúpula Dourada). Ainda hoje há fac-
ções judaicas que sonham com a re-
construção o Templo de Salomão.

Sinagogas

Quando, na diáspora, o povo de


Deus se viu disperso por “todo o can-
to”, e longe do Templo. Como fazer
para preservar as tradições religio-
sas? Como transmiti-las às novas ge-
rações? Como celebrar a fé? Onde ler
as Escrituras? Onde reunir-se para
as orações?
Tais necessidades motivaram a
constituição das sinagogas (do gr.
syn+ago = “reunir-se”, “ir para jun-
to”). Estas eram edificações inspira-
das no Templo, em proporções redu-
zidas, nas quais o povo passou a se
reunir para exercitar a espiritualidade
e alimentar a fé. A Sinagoga fazia as
vezes do Templo, a exceção dos sacri-
fícios.
Jesus, como judeu que era, fre-
qüentava assiduamente as sinagogas

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 47
(ver Lc 4.16-37). Também os apósto-
los e os primeiros cristãos reuniam-se
nas sinagogas para a leitura e expli-
cação das Escrituras e para a oração
(ver At 17.1-2 e 10).

Casas (cenáculo)

Além das sinagogas, os primeiros


cristãos se reuniam nas casas das
pessoas do povo que abriam suas
portas para acolher a comunidade
cristã.
Esse costume foi certamente ins-
pirado e incentivado pelo próprio Je-
sus, que tinha essa prática de fre-
qüentar as casas de seus amigos e ali
constituir um lugar de oração, comu-
nhão, e instrução (cf. Lc 4.38; 6.29;
10.38ss).
A instituição do sacramento da
Ceia Eucarística se deu na casa de
uma pessoa anônima que, hospitalei-
ramente, cedeu o Cenáculo (um apo-
sento destinado às refeições familia-
res), para que Jesus, seus seguidores

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LUIZ CARLOS RAMOS
48
e seguidoras, bem como, naturalmen-
te, os integrantes da família hospedei-
ra, partilhassem aquela refeição co-
munal.
Num primeiro momento, na histó-
ria da Igreja Cristã, a prática normal
era, nos sábados, a comunidade reu-
nir-se na Sinagoga, para a Liturgia da
Palavra e, nos domingos, no Cenácu-
lo, para a Liturgia da Mesa.
Aos poucos, à medida que a iden-
tidade entre a religiosidade judaica
oficial e o cristianismo nascente foi se
distinguindo e distanciando, houve
uma ruptura entre a Sinagoga e o
Cenáculo.
Muitos seguidores de Jesus foram,
literalmente, expulsos, excomunga-
dos, da Sinagoga (ver Jo 9.34-35).
Excluída, a comunidade cristã passou
a concentrar nas Casas/Cenáculo
tanto a Liturgia da Palavra quanto a
da Mesa.
Enquanto gozavam de certa liber-
dade, a comunidade cristã se reunia
nas Casas sem maiores problemas.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 49
Muitas casas abrigavam Igrejas (ver,
por exemplo, Rm 16.5; Fm 1-3). Estas
passaram a ser conhecidas como Ca-
sas-igrejas (em gr. oikos-ekklesia; em
latim, domus ecclesie): a comunidade
de fé que se reúne em salas de casas
particulares.
Estima-se que, no final do terceiro
século, havia mais de 40 Casas-
igrejas somente em Roma.
Para os cristãos, não mais o tem-
plo é o lugar da habitação da divin-
dade, mas a própria comunidade dos
fiéis é entendida como o lugar espiri-
tual onde Deus, em Cristo, se faz pre-
sente, onde quer que esta esteja reu-
nida.

Praça pública

Grande parte do ministério de Je-


sus — a partir do seu batismo por
João Batista e depois do seu primeiro
milagre, em Caná da Galiléia (cf. Jo 1
e 2) — se deu em espaços públicos:
nas praias, à beira dos lagos (cf. Mt 5

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LUIZ CARLOS RAMOS
50
e paralelos); nas planícies e nas coli-
nas (cf. Lc 6.17ss e Mt 5); pelas es-
tradas, nos caminhos e à margem dos
caminhos (cf. Mc 10.17,46; Lc
24.13ss); em jardins e hortos (cf. Lc
22.39 e par.); nas ruas das cidades
(cf. Lc 19); no pátio e nos espaços
comuns do Templo (cf. Lc 19.41-17);
etc.
Também os apóstolos, impulsio-
nados pelo Espírito Santo, ganharam
as ruas para falar das maravilhas de
Deus (cf. At 2); ocuparam os espaços
públicos de debate, tais como as pra-
ças e o Areópago (cf. At 17.16ss, es-
pecialmente os vs. 17b e 19); evange-
lizaram nas estradas (cf. At 8.26ss);
em tombadilhos de navios (cf. At 27);
nas margens de rios (cf. At 16.13-15);
etc.

Prisões

Não tardou para que fossem lan-


çados em prisões aqueles e aquelas
que anunciavam o Evangelho de Je-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 51
sus Cristo com tanta ousadia (ver At
5.18; 12.7). Particularmente em Atos
16.25, encontramos Paulo e Silas
cantando louvores a Deus na prisão.
Em Romanos 16.17, entre outras
passagens bíblicas, Paulo menciona
nominalmente os seus “companheiros
de prisão”. Mesmo preso, Paulo con-
tinuou a sua missão apostólica como
pregador do Evangelho, gerando mui-
tos “filhos na fé”, mesmo “na prisão”,
como podemos constatar por sua E-
pístola a Filemon (esp. o v. 10).
Também João, prisioneiro na Ilha
de Pátmos, exerceu seu ministério
pastoral, redigindo suas cartas às
Igrejas da Ásia Menor e registrando
suas visões e textos litúrgicos de lou-
vor e glorificação ao Senhor Deus E-
terno (cf. Ap 1.4 e 2.1ss).

Catacumbas

Quando a perseguição às pessoas


que professavam sua fé em Cristo ga-
nhou proporções mais violentas, atin-

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LUIZ CARLOS RAMOS
52
gindo níveis de crueldade inimaginá-
veis, as comunidades cristãs precisa-
ram de lugares mais seguros e discre-
tos onde pudessem reunir-se “secre-
tamente’’ e em relativa segurança.
Assim as Catacumbas passam a ser
a nova “sede” dos cultos. Os cemitérios
eram lugares temidos, porque, segundo
as superstições pagãs, eram lugares
habitados por espíritos imundos (ver Mc
5), lugar de demônios e assombrações.
Mas, por causa da experiência,
primeiro, da ressurreição de Lázaro e,
depois, da ressurreição de Jesus, pa-
ra os cristãos, nem a morte nem os
cemitérios eram temidos.
Desde o martírio de Estevão (cf. At
7.54-60), e de Tiago, irmão de João
(cf. At 12.1-2), a comunidade cristã
adotou o costume de honrar a memó-
ria dos seus mártires. Daí nasceu o
costume de reunir-se nos lugares on-
de descansam os restos mortais da-
queles e daquelas que deram sua vida
por sua fé em Cristo. Ali, junto às lá-
pides dos mártires, a salvo dos su-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 53
persticiosos perseguidores, a Igreja se
reuniu inúmeras vezes para a Liturgia
da Palavra e a Liturgia da Mesa (ver
Ap 7.9-17 [esp. v. 14]).

Basílicas e catedrais

Em meados do século IV, devido a


controvertidos episódios políticos e
místicos do Imperador Constantino, o
cristianismo passou, não só a ser to-
lerado, mas a ser, enfaticamente, in-
centivado com o respaldo do Estado.
Esse período recebeu a designação de
Paz Constantiniana.
Os pequenos grupos marginais de
cristãos vão, rapidamente, se tornan-
do grandes assembléias. Isso exigiu
uma reestruturação do espaço cele-
brativo. As casas já não davam conta
de abrigar às grandes massas que
afluíam para as cerimônias religiosas.
O próprio Constantino designou,
então, seus arquitetos para a edifica-
ção de novos espaços destinados aos
cultos cristãos. Ora, a experiência

|
LUIZ CARLOS RAMOS
54
desses profissionais quanto à cons-
trução de amplos edifícios, estava
consolidada pelas chamadas Basíli-
cas. Estas eram, a princípio, espaços
forenses onde se reunia o Tribunal do
Júri da época, para julgar processos
judiciais.
Tais edifícios têm o santuário, ge-
ralmente com abside (nicho ou recin-
to semicircular ou poligonal, de teto
abobodado, geralmente situado nos
fundos ou na extremidade da cons-
trução ou de parte dela) para a cáte-
dra (antes destinada para uso do ma-
gistrado, agora reservado para quem
preside a liturgia), um ambão ou púl-
pito (antiga tribuna), o altar (mesa da
comunhão), e um nártex (vestíbulo
que ficava à entrada da basílica pale-
ocristã, destinado aos catecúmenos,
para que pudessem assistir aos ritu-
ais, sem deles participar diretamente,
por ainda não serem batizados [conti-
nuou em uso nas igrejas da Idade
Média e, mesmo após perder seu sen-
tido, nos períodos posteriores, per-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 55
maneceu demarcado pelo espaço en-
tre a portada e o pára-vento]).
Nos séculos subseqüentes, as ba-
sílicas apresentaram formas variadas
(quadrada, redonda, em forma de
cruz latina, de cruz grega ou sim-
plesmente de aula [pátio ou grande
vestíbulo], retangular).
Os estilos variaram, com as cultu-
ras dos respectivos séculos: estilo
românico, gótico, clássico renascen-
tista, barroco, neo-clássico, e con-
temporâneo.
O termo “Catedral” é relativo a “cá-
tedra”, e designa a igreja principal de
uma diocese, onde se encontra o tro-
no episcopal; sé, matriz.

A linguagem espacial e a teologia


dos edifícios, mobílias e utensílios
religiosos

No culto, antes mesmo que os ce-


lebrantes pronunciem qualquer pala-
vra, o Evangelho já começa a ser pre-
gado e conceitos teológicos e ideológi-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
56
cos já estão sendo transmitidos pela
linguagem espacial da arquitetura do
edifício, pela disposição e tipos da
mobília, pela estética e função dos
utensílios.
Pode-se identificar, para fins didá-
ticos, três concepções espaciais típi-
cas: O conceito medieval, que valoriza
o altar, pois sua teologia reforça o
aspecto místico e espiritual da parti-
cipação no mistério eucarístico. O
conceito cartesiano, próprio do perío-
do da pós-Reforma do séc. XVI, que
coloca em evidência o púlpito, que
reforça o aspecto intelectual, concei-
tual e didático da fé. E o conceito mi-
diático, comum nos dias atuais, que
valoriza o palco, isto é, o aspecto es-
petacular do evento celebrativo, cujo
centro passa a ser a performance dos
celebrantes como comunicadores-
atores e dos instrumentistas e canto-
res.
Deve-se, portanto, ter um espírito
crítico em relação ao trato que se dá
ao espaço celebrativo, pois aquilo que

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 57
este comunica pode, eloqüentemente,
estar em flagrante contradição com
aquilo que os/as pregadores/as a-
nunciam dos púlpitos.
As edificações religiosas devem ser
adequadas à celebração das ações
litúrgicas e devem facilitar a partici-
pação ativa dos fiéis.
Cada elemento arquitetônico, ou
da mobília ou utensílio empregado no
culto, tem implicações teológico-
litúrgicas que expressam seu (1) as-
pecto celebrativo, pois o culto é fé e
festa motivada pela Graça (cf. Lc
15.7,10,23 e 32); (2) aspecto educati-
vo, pois há uma teologia inerente às
formas dos espaços retangulares,
quadrados, circulares e em leque —
uns mais inclusivos outros menos; (3)
aspecto encarnacional, pois o espaço
explicita o nível de inculturação ou
encarnação do Evangelho pregado em
determinada cultura, como expressão
material da Palavra, à luz da encar-
nação de Deus em Cristo (Jo 1.14); (4)
aspecto espiritual, pois aponta para a

|
LUIZ CARLOS RAMOS
58
transcendência por meio da transpa-
rência perceptível na concepção desse
espaço: simplicidade nobre, familiari-
dade, beleza, propriedade, qualidade,
autenticidade ou integridade dos ele-
mentos que compõem o ambiente ce-
lebrativo; (5) aspecto estético-poético
do espaço que, intencionalmente, in-
tegra a comunidade de fiéis (corpo-
alma-e-espírito), por meio de cuida-
dosa ambientação e decoração que
possibilitem a inclusão dos sentidos,
sentimentos, emoções e razões.
Isso implica em um cuidado teoló-
gico-litúrgico-estético do lugar ou es-
paço onde esse povo se reúne. Por
isso, são considerados imprescindí-
veis, nos templos cristãos, como es-
trutura mínima fundamental, o san-
tuário, a nave e o átrio.
O Santuário é o espaço central
(não fisicamente, mas no sentido de
mais importante) do edifício. Tudo de-
ve estar orientado para o espaço re-
servado para o Memorial Pascal, lugar
da renovação da aliança: o altar, que

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 59
representa a mesa do sacrifício (AT), a
mesa eucarística (NT) e as lápides dos
fiéis que deram sua vida por amor a
Cristo, os mártires; para a pia ou fon-
te batismal, que, juntamente com a
mesa do altar, representam os dois
sacramentos (Ceia e Batismo); para o
ambão ou púlpito, que é o lugar de
onde o Evangelho é pregado e a Pala-
vra de Deus é proclamada; e para a
sédia ou cátedra, que é o lugar onde
se senta o presidente da celebração.
A Nave (do latim navis, que signi-
fica “navio”, pela lembrança do forma-
to das vigas que suportam o teto de
alguns templos se parecerem com o
costado de um navio) é o espaço da
assembléia, que são os membros do
corpo místico de Cristo. É o lugar da
atenção, do alerta, da vigilância. É o
lugar dos batizados e, por esta razão,
o batistério (ou pia batismal) pode es-
tar colocado à entrada da nave, indi-
cando que participam da celebração
cristã aquelas pessoas que receberam
o Sacramento do Batismo e se vesti-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
60
ram das “vestes brancas” para apre-
sentar-se diante do Trono do Cordei-
ro.
E o Átrio (do latim atriu[m]) é o
espaço de transição. É o espaço para
a festa do encontro, onde as pessoas
se reúnem antes e depois da celebra-
ção. Ao chegar para o culto, a pessoa
se prepara para entrar no santuário,
fica em silêncio e passa pela porta
que é Cristo (não se pode chegar no
lugar santo a não ser por intermédio
de Cristo — Jo 10.7,9).
Os vários objetos que são empre-
gados no culto devem ser cuidadosa-
mente escolhidos e sabiamente em-
pregados, quer sejam objetos simbóli-
cos, tais como o pão e o vinho e os
recipientes que os contêm, a Bíblia, a
cruz; quer sejam objetos festivos, co-
mo são os candelabros, as flores e os
vasos, os estandartes, os ornamentos
e os vitrais; e mesmo os objetos fun-
cionais, entre eles, o suporte para a
Bíblia, as toalhas, os sistemas acústi-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 61
cos, climatizadores, de iluminação,
etc.

A Igreja: em espírito e em verdade

Teologicamente, ou espiritualmen-
te falando, à luz dos ensinamentos e
da prática de Jesus (cf. Jo 4.20-23),
deve-se compreender que o “espaço
sagrado”, por excelência, não depende
da forma arquitetônica, nem da topo-
grafia, mas da atitude dos fiéis que
devem adorar o Pai “em espírito e em
verdade”.
Essa compreensão — de adorado-
res que adoram em espírito e em ver-
dade —, juntamente com o dito de
Jesus de que “onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou
no meio deles” (Mt 18.20), fundamen-
tou a eclesiologia cristã: a “igreja” não
é um edifício, mas o povo reunido em
nome de Jesus, o Cristo.
Os modelos para os edifícios cris-
tãos, portanto, não devem ser os sun-
tuosos “templos” do paganismo mo-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
62
derno, tais como os bancos, shopping
centers, edifícios públicos e casas de
espetáculo. Antes, sua forma deve ser
determinada pela teologia do culto,
isto é, a liturgia. Suas linhas devem
ser sóbrias, austeras e singelas — o
que não implica em comprometer a
estética. Linhas que privilegiem o sen-
timento de comunhão da assembléia
com Deus e de solidariedade para
com o próximo; onde Deus possa ser
adorado em espírito e em verdade (Jo
4.24), com decência e com ordem
(1Co 14.40), com o espírito e com o
entendimento (1Co 14.15), onde pos-
samos apresentar os nossos próprios
corpos em sacrifício vivo, santo e agra-
dável a Deus em um culto racional,
alegre, sensível e sincero (cf. Rm 12.1).
O Ministério da Ambientação, ou
da decoração, ou da ornamentação, é,
em primeira instância, um ministério
kerygmático, de anúncio do Evange-
lho e da proclamação da Palavra.
Aquelas pessoas que abraçam esse
ministério devem estar dispostas a

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 63
ambientar e decorar com arte (estética
e qualidade), o que pressupõe dom e
talento; devem também ambientar e
decorar com inteligência (praticidade e
significado), o que requer esforço e
estudo; e devem ainda ambientar e
decorar com o coração (afetividade e
espiritualidade), para o que é preciso
sensibilidade e fé.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
64
IV
Quem participa do culto?
(A liturgia do povo de Deus)

D
e acordo com a tradição bí-
blica, Deus é a personagem
central do culto, pois é ele
quem está assentado no alto
e sublime trono (cf. Is 6.1); é glorifi-
cado por seres celestiais (cf. Is 6.2); é
servido por ministros ou sacerdo-
tes/liturgos/ celebrantes (cf. 103. 21),
é cultuado pela comunidade de fiéis,
a congregação ou assembléia (cf. Sl
5.8; 22.22-23, 25-26); até mesmo por
todos os que morreram por causa do
seu testemunho, os mártires ou tes-
temunhas, se acham constantemente
diante do trono, glorificando o Altís-
simo (cf. Ap 7.9-15); mesmo os pa-
gãos ou gentios, de todas as nações,
estão convidados para o culto (cf. Sl
117); e, mais ainda, de acordo com os
salmistas, todo ser que respira deve
louvar a Deus (cf. Sl 150.6); e mesmo
os seres inanimados, tais como os
corpos celestes, de alguma forma,
proclamam a glória de Deus, e anun-
ciam as obras das suas mãos (cf. Sl
19.1).
Deus é quem toma a iniciativa e
vem ao nosso encontro, no culto,
dando início ao diálogo litúrgico e ce-
lebrativo da fé. Pouco sabemos sobre
a participação dos seres celestiais no
culto, bem como a respeito das tes-
temunhas que se acham constante-
mente diante do trono louvando a
Deus. Por outro lado, podemos nos
aplicar a compreender a nossa parti-
cipação no culto, como comunidade
de fiéis.
A congregação de fiéis é formada
por pessoas de todas as camadas so-
ciais, de todas as culturas e de todas

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 67
as idades. Isso significa que, do culto,
tomam parte e têm lugar: pessoas das
classes empobrecidas e das classes
abastadas; pessoas cultas ou iletra-
das; e pessoas de todas as idades — a
Igreja talvez seja o único espaço insti-
tucional com tamanha abrangência
inclusiva.
Teoricamente, todos deveriam ter
sua participação no culto garantida,
representada ou contemplada: na es-
trutura da liturgia que se celebra, no
repertório dos cânticos que se ento-
am, no tipo de linguagem que se ado-
ta, etc.
Ou a Igreja é de todos ou não é I-
greja! Igreja só para jovens não é Igre-
ja, é point; igreja só para idosos não é
Igreja, é clube de saudosistas.
Quando se diz que têm lugar no
culto pessoas de todas as idades, es-
tamos dizendo que a liturgia deve ser
concebida e preparada para incluir e
contemplar bebês, crianças, adoles-
centes, jovens, adultos e idosos.

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LUIZ CARLOS RAMOS
68
Embora isso pareça relativamente
óbvio, ao observarmos o que acontece
na prática de muitas igrejas, essa in-
clusão não acontece.
Conquanto se possa constatar um
evidente conflito de gerações, entre
jovens e idosos, na disputa pela he-
gemonia litúrgica, as maiores vítimas
dessas disputas são as crianças.
De uma maneira ou de outra, jo-
vens, adultos e idosos têm os seus
meios para contestar e protestar. As
crianças, entretanto, não têm voz
nem vez.
Não obstante, dar destaque para a
participação da criança no culto não é
apenas uma questão de fazer uma
concessão e dar-lhes, provisoriamen-
te, vez e voz. A criança trazida para o
centro do culto, como se pretende
demonstrar a seguir, é a própria ra-
zão de ser da liturgia.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 69
O lugar da criança no culto cristão

A participação da criança, no cul-


to, merece destaque por uma razão
histórica e bíblica. Como sabemos, o
centro da liturgia cristã é a Páscoa
que é também o centro da liturgia
judaica. Ora, nas instruções dadas
por ocasião da instituição da Páscoa
judaica, a criança desempenha um
papel central, e é ela que dá início às
solenidades.
Vejamos alguns dos relatos bíblicos
da instituição da celebração da Páscoa:
Êxodo 12.24-27: “24 Guardai, pois, is-
to por estatuto para vós outros e para
vossos filhos [grifo nosso], para sempre.
25 E, uma vez dentro na terra que o
SENHOR vos dará, como tem dito, obser-
vai este rito. 26 Quando vossos filhos
[grifo nosso] vos perguntarem: Que rito
é este? 27 Respondereis: É o sacrifício
da Páscoa ao SENHOR, que passou por
cima das casas dos filhos de Israel no
Egito, quando feriu os egípcios e livrou
as nossas casas. Então, o povo se incli-
nou e adorou.”

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LUIZ CARLOS RAMOS
70
Êxodo 13.14: “Quando teu filho [grifo
nosso] amanhã te perguntar: Que é is-
so? Responder-lhe-ás: O SENHOR com
mão forte nos tirou da casa da servi-
dão.”
Deuteronômio 6.20-21: Quando teu fi-
lho [grifo nosso], no futuro, te pergun-
tar, dizendo: Que significam os teste-
munhos, e estatutos, e juízos que o SE-
NHOR, nosso Deus, vos ordenou? 21 En-
tão, dirás a teu filho [grifo nosso]: Éra-
mos servos de Faraó, no Egito; porém o
SENHOR de lá nos tirou com poderosa
mão.
À luz dessas referências, podemos
nos perguntar pelo lugar que as cri-
anças devem ter nos nossos cultos.
As grandes experiências de fé do
povo de Deus eram celebradas ciclica-
mente, justamente, pensando na trans-
missão dessa espiritualidade para as
novas gerações (ver Lc 2.41-42).
As crianças eram, assim, o ele-
mento disparador de tais liturgias.
Tais cerimoniais eram concebidas
especialmente para responder aos
insistentes por quês? das crianças:

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 71
“quando vossos filhos vos pergunta-
rem: que rito é este? Responder-lhes-
ás...” (Êx 12.26 e par.).
As crianças eram, portanto, o ponto
de partida e, em grande parte, a razão
de ser da liturgia. É como se o culto
fosse um veículo em cujo motor preci-
sasse ser dada a partida por um siste-
ma eficiente de ignição, para então em-
preender efetivamente sua viagem.
Ao que parece, não faria muito
sentido fazer essas festas sem a pre-
sença das crianças. Sim, é verdade
que os adultos sempre se beneficiam
muito de tais festas, mas para o adul-
to os ritos são sempre repetição, e
tem função de reforço conceitual e
prático, mas para as crianças é des-
coberta e novidade deslumbrante de
um novo universo espiritual.
Assim sendo, se alguém, depois de
Deus, tiver que ser privilegiado no
culto cristão, esse alguém são as cri-
anças.

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LUIZ CARLOS RAMOS
72
Culto para crianças
ou culto com as crianças?

Qual seria, então, a melhor alter-


nativa em relação à questão criança-
e-culto? As alternativas mais freqüen-
temente empregadas pelas igrejas
protestantes são: (1) Modelo do culto
infantil que consiste em tirar a crian-
ça do culto e fazer um outro (infantili-
zado) à parte para elas; (2) o modelo
híbrido que tolera as crianças no cul-
to parcialmente, mas somente até o
momento da prédica, quando, então,
elas são retiradas do templo para um
lugar onde terão atividades “diferen-
ciadas” (a palavra é mais bonita do
que o resultado, pois amiúde o que se
verifica é que tais atividades se resu-
mem a entretenimento sem projeto
didático-pedagógico, supervisionadas
por pessoas que não têm formação
para a educação infantil); (3) e o mo-
delo deixa como está pra ver como fi-
ca, que simplesmente ignora a pre-
sença da criança no culto, cuja litur-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 73
gia prossegue indiferente à presença
das crianças.
O terceiro modelo, do deixa como
está, embora talvez seja o mais recor-
rente, deveria estar fora de cogitação.
Quanto aos outros dois modelos,
por mais bem intencionados que se-
jam tanto o projeto do culto infantil
quanto o projeto híbrido, ambos tam-
bém acabam se tornando antipedagó-
gicos, pois excluem a criança do cul-
to, total ou parcialmente.
Ora, se a criança é retirada do
templo quando pequena, não há como
esperarmos que, quando for adoles-
cente (ou pré-adolescente), ela queira
permanecer no culto. Pois tudo o que
lhe foi ensinado, ainda que não inten-
cionalmente, todas as vezes que foi
retirada do culto, é que ela não é
bem-vinda ali.
As experiências inclusivas são ra-
ras. Isso é em parte compreensível,
mas não justificável. Compreensível,
porque exige esforço, preocupação e
dá trabalho. É injustificável, porque

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LUIZ CARLOS RAMOS
74
não há nada mais importante no Rei-
no de Deus do que as crianças: afinal,
foi isso que aprendemos (ou devería-
mos ter aprendido) de Jesus em Ma-
teus 18.1-2 e em Lucas 9.47.
Como, afinal, a criança pode ser
incluída plenamente no culto? Disso
trataremos a seguir.

O que as crianças podem


e não podem fazer no culto?

Eis uma boa questão para a Igreja


se perguntar: afinal o que as crianças
podem e o que não podem no culto?
Talvez o leitor ou leitora desta refle-
xão se surpreenda com a resposta
enfática que aqui se dará, afirmando
que não há nada, liturgicamente fa-
lando, que as crianças não possam
fazer no culto cristão – nada que um
adulto não faça.
O que acontece, amiúde, nos nos-
sos cultos? Em geral, oramos, canta-
mos, lemos as Escrituras Sagradas,
testemunhamos, proclamamos o E-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 75
vangelho, comungamos, ofertamos,
nos comprometemos assumindo com-
promissos, etc.
Ora, quais desses atos litúrgicos
estão fora das possibilidades das cri-
anças?
As crianças podem aprender a orar
antes mesmo de aprender a andar –
então, por que nunca convidamos
uma criança para fazer uma oração
nos cultos de domingo?
E quanto a cantar, por que tam-
bém não cantamos com elas, uma vez
que elas sempre cantam conosco?
pois todos, mesmo os bebês, adoram
(inclusive no sentido literal do termo)
cantar (afinal, deles nasce o perfeito
louvor, dizem as Escrituras Sagradas
em Mt 21.16). Se elas cantam nosso
repertório, porque nós não cantamos
as suas canções?
Ler a Bíblia: desde que alfabetiza-
da, o que acontece cada vez mais ce-
do, uma criança com sete, ou seis,
talvez cinco anos, pode fazer leituras,
da Bíblia ou de outros textos litúrgi-

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LUIZ CARLOS RAMOS
76
cos, tal como qualquer adulto – não
seria fantástico se todo culto tivesse a
participação de crianças na direção
de certas leituras?
Quanto aos testemunhos e à pro-
clamação, também aí as crianças po-
dem ser sujeitos.
Elas podem, inclusive, participar
da prédica, encenando passagens bí-
blicas, interpretando ilustrações (pra-
ticamente todo sermão recorre às i-
lustrações para aclarar pontos obscu-
ros ou conceitos abstratos). O mero
fato de o pregador, ou pregadora, ter
em mente que seu público também é
formado por crianças, já pode servir
como estímulo para a busca de uma
linguagem mais expressiva, o uso de
vocabulário mais substantivo, objetivo
e concreto; para o emprego de ima-
gens visuais e outros recursos sensí-
veis (ao tato, ao paladar, ao olfato,
por exemplo). Fazendo isso, todos se
beneficiariam, pois quando usamos
linguagem abstrata, somente os adul-
tos (e nem mesmo todos eles) conse-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 77
guem acompanhar, mas a linguagem
objetiva e os substantivos concretos,
todos, crianças e adultos, podem e
gostam de acompanhar.
E, no momento da dedicação, in-
tercessão e envio, as crianças também
podem assumir compromissos como
sujeitos na comunidade de fé e na
construção do Reino de Deus.
Quanto aos bebês, quando presen-
tes ao culto, podem não entender
conceitualmente o que está se pas-
sando, mas afetivamente eles estão
“aprendendo”, desde cedo, que eles
são bem-vindos, que são amados e
que ali é seu lugar: no meio da comu-
nidade de fé.

Preparação da liturgia
de um culto inclusivo

Preparar a liturgia de um culto in-


clusivo, para todos, no qual todos são
considerados, representados, e cuja
participação está garantida, não é

|
LUIZ CARLOS RAMOS
78
assim algo tão difícil ou diferente do
convencional.
Basta que, na hora em que estiver-
mos escolhendo o repertório dos hinos,
das leituras, dos gestos e atos litúrgi-
cos, lembrar de incluir as crianças,
assim como fazemos naturalmente com
os jovens e os adultos. Por exemplo,
prever músicas próprias para as crian-
ças (ora, se elas podem cantar nossos
hinos, porque não podemos cantar os
delas?). E, na hora de distribuir as ta-
refas, na condução do culto, lembrar-
mo-nos de atribuir funções às crian-
ças, que pode ser desde a direção de
orações e leituras, até a cooperação em
atos como o recolhimento das ofertas, a
distribuição da Ceia, e encenações e
performances várias — a depender u-
nicamente da criatividade, da boa von-
tade e do bom senso dos responsáveis
pelo preparo e direção da liturgia dos
cultos ordinários das nossas igrejas.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 79
Portanto...

Para finalizar estas considerações


sobre o culto cristão inclusivo, pode-
mos sintetizar algumas das principais
conclusões a que chegamos, a partir
do exposto acima:
1. Deus é sempre o principal sujeito
do culto Cristão que, mediante o
convite da sua graça, nos reúne
como seu povo num encontro ce-
lebrativo dialógico e interativo.
2. O povo é a congregação de fiéis
que, em resposta ao convite da
graça divina, presta-lhe seu
serviço no culto comunitário.
3. A congregação de fiéis é forma-
da por todas as pessoas da
comunidade: bebês, crianças,
adolescentes, jovens, adultos e
idosos.
4. As pessoas responsáveis pela
preparação e pela direção da li-
turgia devem levar em conta a
totalidade do povo de Deus, o
que implica em envolver, con-

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LUIZ CARLOS RAMOS
80
templar, incluir a todos nos vá-
rios atos litúrgicos.
5. Dentre todos os fiéis, são as
crianças as que merecem maior
cuidado e atenção, pois, à luz
da tradição bíblica, são elas
que deflagram o culto com suas
perguntas fundamentais, às
quais a comunidade celebrante
oferece sua resposta de fé, no
exercício de uma espiritualida-
de que é, assim, transmitida de
geração em geração.
6. Não há nada que um adulto fa-
ça no culto que não possa ser
feito pelas crianças. Portanto,
elas não devem ser meras es-
pectadoras do culto, mas sujei-
tos ativos da dinâmica litúrgi-
ca.
Colocar isso em prática... Eis aí
um belo desafio!

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 81
V
Quando fazer culto?
(A liturgia do tempo)

A
LITURGIA SE DÁ NO TEMPO e
no espaço. O tempo da litur-
gia é a História da Salvação
contada ciclicamente duran-
te o Ano Cristão, que tem a Páscoa como
centro irradiador da mensagem salvífi-
ca.
Ao contar a história de Jesus (a
expectativa de sua vinda, sua vida e
ensinamentos, sua paixão, morte e
ressurreição) e sua presença espiritu-
al na Igreja, a comunidade de fé re-
lembra, atualiza e celebra a sua pró-
pria salvação.
A liturgia é, a um só tempo, memó-
ria, atualização e esperança salvífica.

A celebração da História da Salvação

Para celebrar a sua salvação em


Cristo, a Igreja, observa o Calendário
Cristão ou Calendário Litúrgico, que
se estrutura em dois ciclos festivos e
dois tempos ordinários: o Ciclo do Na-
tal, formado pelo Advento, Natal e E-
pifania, que é seguido por um primei-
ro Tempo Comum (após Epifania); e o
Ciclo da Páscoa, que compreende a
Quaresma (que dura 40 dias), a Se-
mana Santa, o Tempo Pascal (que se
estende por 50 dias e termina com o
dia de Pentecostes), seguido de um
segundo Tempo Comum (também
chamado “após Pentecostes” ou Tem-
po do Reino).
Essa história é constantemente
atualizada em ocasiões que se reves-
tem de especial sentido, à luz do E-
vangelho: o Domingo (dia da Ressur-
reição), a Quarta (acordo de Judas

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 83
para a traição), Quinta (lava-pés e
instituição da Ceia) e Sexta-feiras
(julgamento, crucificação, morte e
sepultamento de Jesus), e o Sábado
(Jesus no sepulcro); bem como as Ho-
ras de Oração — Matinas-Laudes
(nascer do sol/ressurreição), Tércias
(julgamento), Média (crucificação),
Noas (morte), Vésperas (sepultamen-
to), Completas e as Vigílias Noturnas
(Getsêmani).
No próprio culto, a igreja revive a
História da Salvação: num primeiro
momento adora o Pai (primeira pes-
soa da Trindade), recordando o Cria-
dor que é Santo e perfeito; diante da
santidade do Pai, a congregação reco-
nhece suas imperfeições e pecados,
por isso recorre ao Filho, segunda
pessoa da Trindade, que é o “Cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo”;
agraciada com o perdão, a congrega-
ção pode agora ser instruída na sua
fé, porque o Filho também é o “Verbo
que se fez carne e habitou entre nós
cheio de graça e de verdade”; essa

|
LUIZ CARLOS RAMOS
84
instrução, entretanto, para que se
efetive na vida da comunidade, deve
ser inspirada e iluminada pela ação
do Espírito Santo, a terceira pessoa
da Trindade, que é também quem mo-
tiva e envia a Igreja em sua missão,
que é a de reconciliar a humanidade
com Deus, o Pai, retomando, assim, o
ciclo teológico-litúrgico.
A História da Salvação é, assim,
celebrada no tempo cósmico, no ano
litúrgico, nas horas do dia e naquela
“hora única” que é o culto.
Também a História da Humanida-
de é celebrada na liturgia da comuni-
dade de fé: datas cívicas, nacionais e
internacionais, são motivo de referên-
cia e intercessão no culto.
E, finalmente, a História das Pes-
soas (nascimento, puberdade, casa-
mento, procriação, envelhecimento e
morte) também são motivos que ins-
piram a prática celebrativa, porque
relacionam a nossa própria história
de vida, e nos incluem, na grande his-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 85
tória da salvação, mediante a graça
de Deus.

O Calendário Litúrgico

Todo o Calendário Litúrgico se de-


senvolve a partir da Páscoa. Esta é
comemorada no primeiro domingo
depois da primeira lua cheia do outo-
no, no hemisfério Sul (e na primavera,
no Norte). Tradicionalmente era a o-
casião em que os catecúmenos eram
batizados e recebidos como membros
da comunidade cristã — geralmente
depois de ter passado três anos se
preparando para isso.
Desde muito cedo, na História da
Igreja, adotou-se o costume de obser-
var um tempo de jejum e oração, pri-
meiramente no dia anterior ao Do-
mingo da Páscoa, depois, durante to-
da a Semana Santa. Por fim, esse pe-
ríodo se ampliou para quarenta dias,
inspirado por várias a narrativas bí-
blicas significativos: a tentação de
Jesus durante quarenta dias e qua-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
86
renta noites no deserto, bem como
nas demais associações com o núme-
ro quatro: quarenta dias do dilúvio,
quatrocentos anos de escravidão no
Egito, quarenta anos de peregrinação
pelo deserto, anúncio de que em qua-
renta dias Nínive seria subvertida, e
sua súbita conversão, etc.
A Festa do Natal é mais tardia, e
se estabelece depois do século IV (e o
Advento, depois do VI). Trata-se da
cristianização da festa pagã que cele-
brava o “começo do fim” do inverno,
isto é, o solstício de inverno, no he-
misfério Norte. Para os cristãos, Je-
sus é o Sol da Justiça que nasceu em
Belém; ele é o Sol que é maior que o
astro adorado pelos pagãos, este sol
não existiria, não fosse aquEle.
Da mesma forma que sucedeu
com a Páscoa, a comemoração do
nascimento de Jesus, no Natal, como
que exigia um tempo de preparação.
Novamente o número quatro é evoca-
do. Desta vez, reserva-se quatro se-
manas (domingos), para que as co-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 87
munidades cristãs se preparem para
o grande evento da encarnação do
Verbo. Nesse período, a igreja recorda
as promessas feitas aos pais na fé a
respeito da vinda do Messias, o Sal-
vador.

Ciclo do Natal

O Ciclo do Natal corresponde a


quatro tempos litúrgicos do calendá-
rio cristão, a saber, Advento, Natal,
Epifania e Batismo do Senhor. Este
ciclo tem início quatro domingos an-
tes do Natal e se estende até o Batis-
mo do Senhor.
O Advento é o tempo que marca o
início do calendário litúrgico cristão.
Sua origem é documentada a partir
do século IV d.C. Semelhante à pre-
paração da Páscoa, expiação de Cris-
to, o Advento surge como preparação
para o nascimento de Jesus, o Natal.
Advento, do latim adventus, significa
“vinda”, “espera”.

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LUIZ CARLOS RAMOS
88
Trata-se de uma celebração onde o
foco é a expectativa da vinda do Mes-
sias, o Cristo prometido. Nesse perío-
do celebra-se a espera do Messias, e
pode ser dividido em duas partes: os
dois primeiros domingos enfatizam o
Advento Escatológico, o terceiro e o
quarto domingos a Preparação do Na-
tal de Cristo.
Destarte, o Advento tem a dimen-
são da expectativa da segunda vinda
de Cristo, bem como, a expectativa da
chegada do Messias que concretiza o
Reino, o “já” e o “ainda não” – que
implica viver a espera do cumprimen-
to das promessas e renovar a espe-
rança no Reino que virá.
A espiritualidade do Advento é
marcada pela esperança e o aguardo
do Messias prometido; a fé na concre-
tização da promessa; o amor que se
demonstra com a chegada do Messias
e a paz por ele anunciada e plenifica-
da.
O segundo tempo litúrgico desse
ciclo é o Natal. Esta celebração teve

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 89
sua origem nos meados do século IV
d.C., entretanto sua aceitação como
festa cristã só ocorreu no século VI. O
Natal surgiu com a finalidade de afas-
tar os fiéis da festa pagã do natale
solis invictus (“deus sol invencível”), e
passou a significar a chegada do Mes-
sias, o “sol da justiça” (cf. Ml 4.2) já
anunciado e aguardado no Advento.
Natal, na acepção da palavra, sig-
nifica “nascimento”, entretanto, para
as/os cristãs/ãos a partir do século
IV d.C., este significado é ainda mais
profundo, pois com o nascimento de
Cristo celebra-se “o Verbo que se fez
carne e habitou entre nós”. O Deus
infinitamente rico se faz servo e habi-
ta entre os despossuídos da terra. É
este Verbo que atrai para si toda a
criação a fim de reintegrá-la ao proje-
to salvífico de Deus.
A espiritualidade desse período
enfatiza a humanidade de Cristo e a
salvação que nele é absoluta.
O terceiro tempo desse ciclo é a
Epifania, que surgiu no Oriente como

|
LUIZ CARLOS RAMOS
90
festa da manifestação do Cristo en-
carnado. Somente, a partir do século
IV d.C., passou para o Ocidente a fim
de rememorar a visita dos reis magos
ao Messias que havia chegado.
Epifania, do grego ephifaneia, sig-
nifica “manifestação”, “aparição”. An-
tes de tornar-se um termo apropriado
pelo cristianismo, significava a che-
gada de um rei ou imperador. A partir
de Cristo, tem a conotação de “mani-
festação do divino ao mundo”, que no
Primeiro Testamento era expressa
pelo termo “teofania”.
Esse tempo celebra a manifestação
de Cristo aos seres humanos, no
momento em que os reis do Oriente
seguiram a estrela em busca daquele
que viria a ser o Salvador por exce-
lência.
A Epifania é para o Natal o que o
Pentecostes é para a Páscoa, isto é,
desenvolvimento e permanência do
ato de Cristo em favor da humanida-
de.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 91
A espiritualidade deste período é
caracterizada pela manifestação e a-
parição de Cristo ao mundo. É o Cris-
to prometido que se torna uma reali-
dade na vida de mulheres e homens
que procuram a paz, a justiça e o a-
mor.
O Batismo do Senhor é celebrado
no primeiro domingo após a Epifania,
e representa o início da missão de
Jesus no mundo. Este tempo é parte
da manifestação de Jesus aos seres
humanos, por isso trata-se de uma
continuidade da Epifania. Diferenci-
ando-se pelo fato de que na Epifania é
a humanidade (representada pelos
magos) que vai a Cristo, ao passo que
com o Batismo do Senhor é Deus (por
meio de Jesus Cristo) que vem até o
ser humano, a fim de cumprir sua
missão.
Por isso, a espiritualidade desse
dia é marcada pela missão iniciada
por Jesus em prol dos menos favore-
cidos e injustiçados.

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LUIZ CARLOS RAMOS
92
Com o Batismo do Senhor termina
o Ciclo do Natal, dando início ao Tem-
po Comum, ou Tempo após Epifania.

O Tempo Comum
(após Epifania e após Pentecostes)

Além dos dois ciclos festivos, o “A-


no do Senhor”, também contempla 33
ou 34 semanas, situadas entre o Na-
tal e a Páscoa. Esse período recebeu a
designação Tempo Comum por con-
trapor-se à época festiva do Ano Cris-
tão.
O fato de haver um Tempo Comum
ressalta o significado de que Deus
não é Senhor somente das coisas ex-
traordinárias, mas também o é do
cotidiano. Enfatiza a presença cons-
tante e amorosa do Pai na caminhada
do povo rumo à plenitude do Reino. A
cada celebração, antecipamos a eter-
na liturgia do céu, para o qual nos
preparamos, dia-a-dia, tanto no tem-
po festivo como no tempo comum.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 93
Ao longo da história, várias inicia-
tivas foram tomadas no sentido de
oferecer alternativas à liturgia do
tempo não festivo. Para exemplificar
com algumas mais recentes e próxi-
mas, citamos a formalização, na dé-
cada de 30 nos EUA, de uma propos-
ta que sugeria a criação de um novo
período, o Kingdomtide (Ciclo ou
Tempo do Reino). Essa proposta tem
de positivo o fato de enfatizar menos o
aspecto eclesiástico-institucional e
mais o teológico-missionário do perí-
odo. Entretanto, a postura mais am-
plamente adotada pelos protestantes
do mundo todo, foi a de designar as
duas partes do Tempo Comum como
sendo “Tempo após Epifania” e “Tem-
po após Pentecostes”, respectivamen-
te. Na Igreja Metodista no Brasil, o
rev. Messias Valverde propôs uma
organização do Ano Cristão dividido
em Estações Litúrgicas, das quais
destacamos a Estação da Criação,
com uma preocupação ecológica e
escatológica.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
94
A primeira parte do Tempo Co-
mum tem início na segunda-feira a-
pós a comemoração do Batismo do
Senhor e vai até a véspera da Quarta-
Feira de Cinzas, quando começa a
Quaresma (Ciclo da Páscoa).
Sua espiritualidade enfatiza o a-
núncio do Reino de Deus e visa à es-
perança e à pregação da Palavra.
A segunda parte do Tempo Co-
mum começa na segunda-feira após
Pentecostes e dura até a véspera do
Primeiro Domingo do Advento, quan-
do tem início o Ciclo do Natal.
Sua espiritualidade comemora o
próprio ministério de Cristo em sua
plenitude, principalmente aos domin-
gos e enfatiza a vivência do Reino de
Deus e a compreensão de que os/as
cristãos/ãs, são o sinal desse Reino.
Se na primeira parte do Tempo Co-
mum a ênfase é no anúncio, na se-
gunda é a concretização do Reino de
Deus.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 95
Ciclo Pascal

O Ciclo Pascal — que compreende


a Quaresma, a Semana Santa, o
Tempo Pascal, e encerra-se com o
Pentecostes — formou-se a partir de
um processo de reflexão e sistemati-
zação do cristianismo que vai do pri-
meiro ao quarto século da era Cristã.
A partir deste ciclo se constituiu todo
o calendário litúrgico.
Nas comunidades primitivas, era
comum a reunião no primeiro dia de
cada semana na qual celebrava-se a
memória de Jesus. A origem do culto
cristão está em torno dessa “Páscoa
Semanal”, que ocorria no chamado
“Dia do Senhor”.
Em boa parte por influência do ju-
daísmo cristão, desenvolveu-se uma
celebração anual da Páscoa como um
“grande dia do Senhor”, cuja festa se
prolongava por cinqüenta dias, sendo
o último, o dia de chegada do Espíri-
to, o Pentecostes Cristão, isso já no
século II.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
96
No século IV, desenvolveu-se a
tradição de reviver e refletir de um
modo mais sistematizado, os momen-
tos da paixão, isso deu origem às ce-
lebrações da Semana Santa. Desde o
século III as vésperas da Páscoa já
eram dias de reflexão. Os catecúme-
nos que por dois anos vinham sendo
preparados, agora eram acompanha-
dos por toda a comunidade. Inspiran-
do-se nos quarenta dias de preparo
de Jesus para seu ministério, nasceu
o período da quaresma. Assim, em
torno da celebração da morte e res-
surreição de Jesus, desenvolveu-se
todo o Ciclo Pascal do Calendário Li-
túrgico Cristão, marcado pela peni-
tência e confissão, mas também pela
alegria e exultação do crucificado e
ressuscitado.
A Quaresma é o período no qual
se enfatiza a importância da contri-
ção, do preparo e da conversão. Ini-
cia-se no quadragésimo dia antes da
Páscoa (não se contam os domingos).
O início na Quarta-feira de Cinzas

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 97
retoma à tradição bíblica do arrepen-
dimento com cinzas e vestes de saco
(Jn 3.5-6). É um momento oportuno
para refletir sobre a confissão e o va-
lor do perdão de Deus.
Sua espiritualidade enfatiza mo-
mentos de preparo na história bíblica
geral e da vida de Jesus:
ƒ Quarenta dias de Jesus no de-
serto (Mt 4.2; Lc 4.1ss);
ƒ Quarenta dias de Moisés no
Sinai (Êx 34.28);
ƒ Quarenta anos do povo no de-
serto (Êx 16.35);
ƒ Elias em direção ao Horeb (1Rs
19.8).
A Semana Santa tem início no
Domingo de Ramos, celebração de
Cristo como o Messias, salvador dos
pobres, o rei dos humildes. Reflete-se,
nessa semana, passo a passo, os úl-
timos momentos da vida de Jesus.
Este é o momento da vigília de
preparo para a ressurreição.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
98
Sua espiritualidade chama-nos a
atenção para os momentos finais de
Jesus até o ápice de sua paixão:
ƒ A Santa Ceia (Mt 26.17-30);
ƒ O Lava-pés (Jo 13.1-17);
ƒ Jesus no Getsêmani (Mt 26.36-
46; Mc 14.26-31);
ƒ O julgamento, sepultamento e
a crucificação (Mt 27; Mc 15;
Lc 23; Jo 19).
A Páscoa¸ propriamente, é a festa
da ressurreição e da libertação. Um
novo Êxodo ocorre, e a humanidade
passa do cativeiro da morte para a
vida.
Sua solenidade pode iniciar-se já
na Quinta-Feira Santa (instituição da
ceia), que dá início ao chamado Trí-
duo Pascal. Contudo a celebração da
ressurreição começa com uma vigília
na noite de sábado encontrando sua
plenitude no romper da aurora do
Domingo da Páscoa, quando Cristo é
lembrado como o sol da justiça que
traz a luz da nova vida, na ressurrei-
ção.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 99
A espiritualidade norteadora da
Páscoa aponta para a ressurreição
nos mais variados relatos das comu-
nidades do século I d.C.:
ƒ A ressurreição (Mt 28.1-20; Mc
16.1-8; Lc 24.1-12; Jo 20.1-18;
At 1.14);
ƒ Cânticos Pascais (Sl 113 ao 118
e Êx 12).
Entre os hebreus, era comum a
celebração da chamada “festa das
semanas” ou Pentecostes, isso por-
que ela se dava sete semanas, ou cin-
qüenta dias, após a Páscoa. Nela, o
povo dava graças ao Senhor pela co-
lheita. Mais tarde, adquiriu mais uma
dimensão celebrativa, a da proclama-
ção da lei (instrução) no Sinai, cin-
qüenta dias após a libertação do Egi-
to.
Na era cristã, o Pentecostes tor-
nou-se o último dia do ciclo pascal,
quando celebra-se a chegada do Espí-
rito Santo como aquele que atualiza a
presença do ressuscitado entre nós,
dando força para que as comunidades

|
LUIZ CARLOS RAMOS
100
sejam testemunhas de Jesus na his-
tória.
A espiritualidade que nos orienta
nesse período fala da presença conso-
ladora do Espírito que semeia nos
corações a esperança do Reino de
Deus e nos impulsiona para a missão:
ƒ Festa das semanas (Êx 34.22;
Lv 23.15);
ƒ Jesus promete o Consolador
(Jo 16.7);
ƒ Jesus ressuscitado sopra seu
Espírito (Jo 20.22);
ƒ A chegada do Espírito Santo no
dia de Pentecostes (At 2).

Esquema do Ano Litúrgico

Ciclo do Natal
ƒ Advento (quatro domingos que
antecedem o Natal)
ƒ Natal (véspera, dia de Natal e
semana que se segue)
ƒ Epifania (6 de janeiro ou o do-
mingo mais próximo)
Tempo Comum após Epifania

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 101
ƒ Domingos seguintes até o que
antecede a Quarta-Feira de
Cinzas
Ciclo da Páscoa
ƒ Quaresma (tem início com a
Quarta-Feira de Cinzas)
ƒ Semana Santa: o Domingo de
Ramos ou Domingo da Paixão
(dá início à Semana Santa) que
se completa com o Tríduo Pas-
cal (as solenidades da Institui-
ção da Ceia, a Crucificação e a
Ressurreição de Cristo)
ƒ Domingo da Páscoa, que encerra
a Semana Santa (é a festa mais
importante do Ano Litúrgico)
ƒ Domingos de Páscoa (até o do-
mingo de Pentecostes)
ƒ Pentecostes (encerra o período
da Páscoa)
Tempo Comum após Pentecostes
ƒ Domingo da Santíssima Trindade
ƒ Domingos seguintes até o...
ƒ ... Domingo do Cristo Rei (últi-
mo domingo do Ano Litúrgico:
no domingo seguinte recomeça-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
102
se o ciclo do Natal com o Pri-
meiro Domingo de Avento).

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 103
VI
Como fazer culto?
(A liturgia da liberdade
e da criatividade)

A
PARTIR DO NOSSO ESTUDO,
constatamos que um culto
cristão tem uma tríplice es-
trutura, caracterizada pela
ação efetiva das três pessoas da Trin-
dade, o Pai, o Filho, e o Espírito Santo.
Assim, pode-se dizer que o culto cristão
possui partes essenciais que se ausen-
tes o descaracterizariam.
Assim, a estrutura básica da litur-
gia cristã é trinitária e pressupõe um
primeiro momento teológico, no qual
Deus é adorado, um segundo momento
Cristológico, no qual a memória de
Cristo é celebrada e proclamada; e um
terceiro momento, Pneumatológico, no
qual, pela ação do Espírito, a comuni-
dade se compromete com o serviço a
Deus e ao próximo.
Essa liturgia é construída a partir
da ação criativa da comunidade de fé e
compõe-se de atos, ritos.

Objetividade e subjetividade
litúrgicas

Nesse sentido, a liturgia se constitui


de ritos, atos, ofícios e sacramentos
comunitários que se expressam pelas
vias racionais próprias das palavras
(escritas, lidas, proclamadas, cantadas)
e pelas vias sensoriais próprias dos
gestos (levantar os olhos, fechar os o-
lhos, ouvir a palavra, aspirar o incenso,
curvar a cabeça, beijar, comer o pão,
beber o vinho, impor as mãos, estender
as mãos, aplaudir, bater no peito, a-
braçar, ficar em pé, sentar-se, ajoelhar-
se, processionais e recessionais...).

|
LUIZ CARLOS RAMOS
106
A emoção na comunicação litúrgica

Além das dimensões racionais e


sensoriais da comunicação verbal e
não-verbal, a liturgia também comuni-
ca pelas vias subjetivas das emoções. A
maneira como os ritos, atos, ofícios e
sacramentos afetam nossos sentimen-
tos dependem de um sem número de
questões que subjazem à nossa consci-
ência. As emoções podem ser evocadas
a partir de fora, mas somente podem
ser experimentadas a partir de dentro.
O riso ou choro, a ira ou a ternura, a
indignação ou a compaixão, são esta-
dos que, literalmente, jorram do sub-
consciente. São manifestações que,
antes de despertar, jazem adormecidas
ou, para usar a linguagem psicanalíti-
ca, estão reprimidas e contidas no obs-
curo mundo da alma humana.
Quando somos tocados desde fora
por uma palavra ou um gesto, por um
som ou uma imagem, pode acontecer
de vacilarem as forças repressoras que
mantinham trancadas as comportas do

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 107
subconsciente. Abrem-se essas com-
portas e emergem, então, as emoções,
juntamente com memórias significati-
vas (de experiências da infância, de
lembranças dos pais, dos filhos...), que
compõem o repertório existencial e que,
por uma razão ou outra, foi associado
ao instante celebrativo. Não raro, essas
liberações emocionais resultam em êx-
tases que se revelam tão intensos que
chegam a embotar a razão, dando va-
zão a ações não conscientes e não ra-
cionais.

A razão na comunicação litúrgica

Ora, o princípio da primazia da e-


moção sobre a razão é o grande trunfo
dos meios de comunicação de massa.
Os estudiosos da comunicação rapi-
damente concluíram que as pessoas
não são persuadidas por argumentos
racionais, mas seduzidas por experiên-
cias emocionais. A mídia descobriu a
eficiência do entretenimento e do espe-
táculo como mediadoras da “conver-

|
LUIZ CARLOS RAMOS
108
são” que transforma o auditório em
massa.
Entretenimento, como sugere a eti-
mologia da palavra, se refere a um pro-
cesso que procura ter o indivíduo “en-
tre” alguma coisa. O entretenimento
funciona como um parêntesis, no qual
o indivíduo se isola, ainda que por al-
guns instantes, do mundo real. É aqui,
no processo de separação do real, que
entra o espetáculo, cuja etimologia re-
monta ao latim speculum, espelho. O
espetáculo é, portanto, uma imagem do
real. As imagens, por mais parecidas
que sejam, não podem ser confundidas
com a realidade, pois toda imagem re-
fletida no espelho se apresenta como o
“inverso” do real ou como sua reprodu-
ção invertida. A vida real, quando espe-
tacularizada, se nos dá como não-vida.
Quando, como espectadores, nos diver-
timos com o espetáculo, abrimos um
parênteses em nossa vida e suspende-
mos por um tempo a nossa existência,
para nos dedicarmos à contemplação
da simulação do real.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 109
Como ação terapêutica, essa prática
pode até ser de grande benefício para a
nossa saúde emocional, entretanto,
quando isso se dá como mecanismo de
fuga sistemática da realidade, o que se
verifica é um desperdício considerável
da vida real. Como o medo e a amné-
sia, a fuga também se constitui em im-
portante dispositivo de sobrevivência.
Não obstante, o medo, a amnésia e a
fuga não devem substituir a própria
vida, por mais dura que esta seja, sob
pena de terminar por aniquilar a pró-
pria existência. O entretenimento pode
causar dependência, mas não respon-
sabilidade; alivia as tensões, mas não
resulta em compromissos.

Emoção, sensação e razão e a saúde


litúrgica

A liturgia é essencialmente comuni-


cação por abranger todo o espectro
comunicacional humano. E a comuni-
cação litúrgica será tanto mais intensa
quanto maior for a abrangência da sua

|
LUIZ CARLOS RAMOS
110
ação, subjetiva/objetiva, verbal/não-
verbal, consciente/inconsciente... Um
grande desafio para a liturgia é, por-
tanto, dosar adequadamente emoção,
sensação e razão. Concluímos que a
saúde litúrgica de uma comunidade de
fé depende da sensibilização equilibra-
da e inteligente das dimensões sensori-
al, emocional e racional da comunica-
ção humana no contexto celebrativo.
Mas isso não se poderá obter pelo es-
petáculo nem pelo entretenimento, mas
somente no serviço comunitário cele-
brado pelo povo para Deus e para toda
a comunidade humana.

Outras formas de
comunicação-não-verbal na liturgia

Temos “lugares” comuns com todas


as pessoas, de todas as idades, de
qualquer nacionalidade e de qualquer
substrato social.
O primeiro desses “lugares” é a na-
tura (natureza), em cujo ventre todos

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 111
fomos gerados, em cujos seios sacia-
mos a fome.
O segundo é o corpo — a corporei-
dade é um tema que nos diz respeito a
todos, religiosos ou não, homens e mu-
lheres, adultos e crianças.
Finalmente, a cultura, o “universo”,
a oikoumene, na qual habitamos. Con-
quanto diversa e extremamente com-
plexa — seja nas imensas distâncias
geográficas dos cinco continentes, quer
seja no microcosmo da nossa casa — a
cultura nos forja, ora nos formando,
ora nos deformando.

A natureza e o culto

Os antigos filósofos diziam que a


tudo o que existe no mundo é derivado
de quatro substâncias elementares: a
terra, a água, o fogo e, o ar.
Na Bíblia, encontramos inúmeras
referências a esses elementos relacio-
nados à espiritualidade do povo de
Deus.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
112
No princípio, criou Deus os céus e a
terra. Deus fez o ser humano a partir
do pó da terra e o designou para culti-
var e cuidar da terra (“tu és pó e ao pó
tornarás”) ouviu o grito do sangue de
Abel clamando da terra; não suportan-
do a maldade do coração humano, en-
viou o dilúvio para destruir e purificar
a terra; chamou Abraão e lhe disse:
“sai da tua terra e vai pra terra que te
mostrarei”; desafiou Moisés a libertar o
povo e Israel da opressão no Egito e
conduzi-lo à terra prometida; com Jo-
sué conquistaram e habitaram a terra
que mana leite e mel; em Jesus Cristo,
Deus desceu do céu à terra e habitou
entre nós, cheio de graça e de verdade;
pela boca dos apóstolos, o Evangelho
foi anunciado por toda a terra; João, no
Apocalipse, nos fala assim da nova Je-
rusalém: “vi novo céu e nova terra...”.
A terra é a nossa casa, é o nosso
berço e o nosso destino. A nova terra é
a promessa da vida abundante, da re-
denção plena. Na Bíblia, a palavra terra
aparece quase três mil vezes (2729).

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 113
No culto, podemos fazer alusão, ou
mesmo utilizarmos de maneira concre-
ta o elemento terra nos momentos de
batismo, de lançamento de pedra fun-
damental de edifício religioso, de reno-
vação do pacto, de ofício fúnebre, etc.,
etc.
Não menos importante é a água: no
Gênesis, o Espírito de Deus pairava
sobre a face das águas; no dilúvio, as
águas cobriram e purificaram a terra
de sua maldade; na libertação do Egito,
Moisés tocou a água com seu bordão e
o mar se abriu para que o povo pas-
sasse; na chegada à terra prometida,
tiveram que transpor o rio Jordão; o
mesmo rio em cujas águas João bati-
zou multidões e o próprio Jesus; Jesus
andou sobre as águas e acalmou a
tempestade e os vagalhões; com água,
o eunuco, foi batizado por Filipe e Pe-
dro batizou mais de três mil almas de
uma só vez; Paulo sobreviveu a naufrá-
gios e, como Jonas, foi devolvido à
praia para pregar o Evangelho; na Ci-
dade Santa, descrita no Apocalipse, há

|
LUIZ CARLOS RAMOS
114
o rio da vida, brilhante como cristal,
que corre do trono de Deus e do Cor-
deiro, em cujas margens está a árvore
da vida, que produz frutos para a cura
dos povos e o último verso do Apocalip-
se diz: “O Espírito e a noiva dizem:
Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! A-
quele que tem sede venha, e quem qui-
ser receba de graça a água da vida”.
Na Bíblia, a palavra água ocorre
659 vezes, sem contar rio, torrente,
chuva, manancial, fonte, etc.
Na liturgia, a água é simbolicamen-
te significativa no batismo, na celebra-
ção do ágape, na cerimônia do lava-
pés, nos cultos de renovação do pacto e
de purificação, etc., etc.
O fogo é também a luz. O primeiro
ato criador de Deus foi “haja luz!”;
Deus fez chover enxofre e fogo sobre
Sodoma e Gomorra; Abraão caminhava
rumo ao lugar onde deveria sacrificar o
próprio filho com o cutelo numa mão e
o fogo na outra; Moisés viu o fogo em
uma sarça que ardia, mas não se con-
sumia; uma das pragas lançadas sobre

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 115
o Egito, no processo de libertação, foi a
chuva de pedras e fogo; quando o povo
peregrinou durante quarenta anos pelo
deserto, o Senhor ia adiante deles de
dia com uma coluna de nuvem e de
noite com uma coluna de fogo para os
iluminar e indicar o caminho; no tem-
plo, um castiçal com sete braços ficara
junto à Torah, para iluminar-lhe a lei-
tura (“lâmpada para os meus pés é a
tua Palavra, e luz para os meus cami-
nhos”, cantam os salmistas); Isaías foi
purificado do seu pecado, no culto do
Templo, por uma brasa que um sera-
fim tirara do altar com uma tenaz; Sa-
draque, Mesaque e Abede-Nego, amigos
de Daniel, foram preservados do fogo,
quando atirados numa fornalha para
ser castigado por sua fidelidade a Ya-
weh; João Batista não era a luz, mas
veio para que testificasse da luz; Jesus
disse: “eu sou a luz do mundo” e, ain-
da, “vós sois a luz do mundo”; no Pen-
tecostes cristão, o Espírito Santo des-
ceu sobre os discípulos e discípulas na
forma de línguas de fogo; o autor de

|
LUIZ CARLOS RAMOS
116
Hebreus diz que “o nosso Deus é fogo
consumidor”; inúmeras são as alusões
ao fogo, no Apocalipse, dentre elas, a
de que “a morte e o inferno foram lan-
çados para dentro do lago de fogo” e “a
cidade não precisa nem do sol, nem da
lua, para lhe darem claridade, pois a
glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro
é a sua lâmpada.”
A palavra fogo aparece mais de 360
vezes na Bíblia; luz, mais de 320; isso
para não detalhar sobre a palavra lâm-
pada, sol, glória, e os verbos iluminar,
resplandecer, glorificar, todos esses,
termos relacionados com fogo/luz.
No culto, as luzes que se acendem
(castiçais) é um importante símbolo da
glória de Deus, da presença do Espíri-
to, da orientação da Palavra de Deus,
etc., etc.
O ar: no princípio, a terra era sem
forma e vazia e o Espírito (ar, sopro,
vento) de Deus pairava sobre a face das
águas; tendo criado o homem do pó do
terra, Deus soprou em suas narinas o
fôlego da vida; no Dilúvio, quando

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 117
Deus lembrou-se de Noé, na arca, “fez
soprar um vento sobre a terra, e baixa-
ram as águas”; na fuga do Egito, um
vento vindo do Oriente soprou e abriu o
Mar de Juncos para que o povo alcan-
çasse a liberdade; Elias teve um encon-
tro especial com Deus após presenciar
vendavais, terremotos e saraiva, quan-
do Deus se apresentou a ele numa bri-
sa tranqüilo e suave; na visão dos os-
sos secos, Ezequiel profetizou: “vem
dos quatro ventos, ó espírito, e assopra
sobre estes mortos, para que vivam”;
no Culto do templo, não deveria nunca
faltar o incenso, que simboliza as ora-
ções dos fiéis, feito com finíssimas es-
peciarias aromáticas; certa vez, Jesus,
no barco, “repreendeu o vento e disse
ao mar: Acalma-te, emudece! O vento
se aquietou, e fez-se grande bonança”;
ressuscitado, Jesus veio ao encontro
dos seus seguidores, soprou sobre eles
e disse: “recebei o espírito”; no dia do
primeiro Pentecostes Cristão, “veio do
céu um som, como de um vento impe-
tuoso, e encheu toda a casa onde [os

|
LUIZ CARLOS RAMOS
118
discípulos e discípulas] estavam assen-
tados”; o apóstolo Paulo diz que nós,
cristãos e cristãs, somos o bom perfu-
me de Cristo; o último verso do Apoca-
lipse diz: “O Espírito e a noiva dizem:
Vem! Aquele que ouve, diga: Vem!”
Em toda a Bíblia, encontramos a
palavra vento, mais de 150 vezes; espí-
rito, 550 vezes, alma, que significa lite-
ralmente “garganta”, por onde passa o
fôlego, mais de 400 vezes; aroma e per-
fume, mais de 100 vezes.
Tudo isso é muito sugestivo no que
diz respeito à criatividade litúrgica. Ex-
plorar os aromas e perfumes, e a sim-
bologia do vento (por meio dos instru-
mentos de sopro, por exemplo), pode
ser tremendamente sensibilizador no
exercício de uma espiritualidade vívida
e no processo de transmissão da fé às
novas gerações e aos que se achegam à
cultura cristã.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 119
O corpo e o culto

Dizem os pesquisadores dos idio-


mas sinéticos (ou linguagem do corpo
por meio dos gestos e dos movimentos
corporais) que “o corpo é a mensagem”.
Antes de falar, os bebês se comunicam
com o corpo. Por isso se pode dizer que
a pessoa humana é um ser multisenso-
rial. De vez em quando, ele verbaliza
(cf. Birdwhistell).
O sistema de realce sinético (por
meio de expressões corporais) ajuda a
desfazer ambigüidades verbais. Tam-
bém pode suceder, às vezes, que o
comportamento não-verbal contradiga
o que se está dizendo, em vez de enfati-
zar (nosso corpo mente menos que a
nossa boca!).
Existe, portanto, uma linguagem
dos sentidos: o tato, o paladar e o olfato
são sentidos que requerem proximida-
de. A audição e a visão, por outro lado,
podem ser considerados sentidos que
permitem a experiência a distância.

|
LUIZ CARLOS RAMOS
120
Comunicação pelo tato: O tato é pro-
vavelmente o mais primitivo dos senti-
dos. Um embrião, com menos de oito
semanas, antes de ter olhos ou ouvi-
dos, e quando ainda mede menos de
2,5 cm, responde ao tato. O bebê ex-
plora o mundo pelo tato. É dessa forma
que ele descobre onde termina seu
próprio corpo e onde começa o mundo
exterior. Em breve ele começa a rela-
cionar a experiência visual com a táctil
(vincular símbolo à experiência e a as-
sociar as sensações com as palavras).
O conhecimento emocional começa
pelo tato, também. A voz materna
substitui o toque materno, comunican-
do ao bebê as mesmas coisas que a
mãe comunicava quando o pegava no
colo — a rigor, a voz (as palavras) só é
uma alternativa associa à experiência
tátil.
A pele é o maior órgão do corpo: o
processamento das informações envia-
das pelos lábios, o dedo indicador e o
polegar ocupam uma área despropor-
cional no cérebro.

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 121
A pele é “o envelope que contém o
organismo humano” (Lawrence K.
Frank). Todo o meio ambiente nos che-
ga por intermédio da pele. O corpo
humano é sensível ao calor, ao frio à
pressão, à dor; possui zonas erógenas,
sensíveis às cócegas, e zonas calosas
(virtualmente insensíveis).
Em nossa sociedade, por volta dos
cinco ou seis anos, as crianças come-
çam a tocar e a serem tocadas com
menor freqüência, mas na puberdade
tornam-se novamente ávidas daquele
contato físico. Quando o ser humano
descobre as relações sexuais, na reali-
dade ele está redescobrindo a comuni-
cação táctil.
Contato físico e sexo: o contato físi-
co tem freqüentemente conotação se-
xual e isso faz com que usemos tão
pouco o tato em nossas manifestações
de carinho e afeto. Os behavioristas
falam em fome de pele. Segundo Paul
Byers (antropólogo), “são os idosos que
mais sofrem de fome da pele em nossa

|
LUIZ CARLOS RAMOS
122
sociedade. Eles talvez sejam menos
tocados do que qualquer outra pessoa”.
Cada vez mais cedo as crianças são
deixadas nas creches, ou com babás,
sendo privadas, assim, do carinho dos
pais. Talvez isso explique, em parte, o
porquê de os jovens iniciarem-se sexu-
almente cada vez mais cedo: para com-
pensar a falta de afeto físico que não
tiveram na primeira infância.
Comunicação pelo olfato: o ser hu-
mano é “primitivamente um animal
nasal” (G. Groddeck, colaborador de
Freud): O cérebro humano (todo o
complexo límbico, o cérebro mamífero)
se desenvolve a partir do bulbo olfativo.
O olfato é incontrolável: é impossí-
vel evitar ou bloquear o olfato. Daí ser
considerado o sentido mais autoritário
que possuímos, pois não se pode con-
trolá-lo.
Nos animais: o olfato acusa a pre-
sença de inimigos, excita na presença
do sexo oposto, funciona como limite
territorial, permite seguir o rebanho e
identificar o estado emocional de ou-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 123
tras espécies. Cada individuo tem uma
assinatura olfativa.
Os pesquisadores falam também em
subconsciente olfativo: Dr. Harry We-
ner, um médico dos Laboratórios Pfizer
de Nova Iorque, elaborou a teoria de
que “os homens percebem odores além
daqueles que, conscientemente, a per-
cepção acusa. Odores seriam “mensa-
geiros químicos externos” (MQE), os
feronemas que são substâncias odorí-
feras que os animais segregam para se
atrair sexualmente e que são capazes
de afetar o comportamento de outros
animais da mesma espécie são, algu-
mas vezes, tão contagiosas numa mul-
tidão.
Na Bíblia há muitas referências as-
sociadas ao sentido do olfato: o incenso
que representa as orações dos fiéis (cf.
Is 6, Ap 8); nos somos “o bom perfume
de Cristo” (2Co 2.15).
Liturgicamente, diferentes aromas
podem ser associados a diferentes con-
ceitos espirituais e teológicos e podem
ajudar no processo de assimilação e,

|
LUIZ CARLOS RAMOS
124
principalmente, de memorização des-
ses conceitos — dificilmente alguém se
esquece de um cheiro que tenha senti-
do, antes o reconhece com certa facili-
dade (exemplo: manjericão, pão assan-
do, café sendo torrado, vazamento de
gás, etc.).
Comunicação pelo paladar: este é
um sentido de base química. Diferente
do tato da visão e da audição, assim
como o olfato, o paladar não é um sen-
tido de base física (impulsos elétricos),
mas uma informação resultante de
uma reação química. Isso implica em
que estes são mais poderosos nos ní-
veis subliminares (comunicação des-
percebida).
Este é o sentido sacramental por
excelência: “o sacramento da Eucaris-
tia é o sacramento do gosto” (Maras-
chin). Comer exige ritual. Assim é na
liturgia da igreja, na do amor, na do
lar, nas dos negócios. Não há comemo-
ração sem comida.
Até recentemente, o lugar mais im-
portante na arquitetura doméstica era

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 125
a cozinha — tratava-se do primado da
cultura da cozinha. Ali se davam as
relações sociais.
No mundo urbano a cozinha é
substituída pelos restaurantes e barzi-
nhos, onde as relações humanas se
dão de forma intensa, regada a comida
e a bebida – quando esse ambiente não
é encontrado em casa ou na Igrejá, ele
será buscado em outro lugar.
O cardápio (a comida e a bebida) de
um “povo” denuncia seu caráter, seu
humor, sua condição social, etc.
Lembranças de gosto e de cheiro
são poderosos vocativos de experiên-
cias do passado. Tais experiências es-
tão associadas a “conceitos” que emer-
gem juntamente com a lembrança.
A Eucaristia é, essencialmente, um
ato memorial. Quando Jesus diz: “fazei
isto em memória de mim” (Lc 22.19),
estava, em outras palavras, dizendo:
“nunca se esqueçam de mim” — e as
refeições comunais são “inesquecíveis”.
Ao folhearmos as páginas dos E-
vangelhos em busca das alusões aos

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LUIZ CARLOS RAMOS
126
momentos de refeição comunal entre
Jesus, seus discípulos, conhecidos e
até com seus inimigos, ficamos surpre-
sos com a quantidade de referências.
Comunicação pela audição: no culto,
tendemos a considerar comunicação
auditiva aquela relacionada aos pro-
cessos verbais: pregação, leituras, ora-
ções, cânticos, etc. Mas a experiência
auditiva vai muito além.
Num filme, por exemplo, a trilha
sonora (que é muito mais do que músi-
cas) provoca alterações no comporta-
mento e no metabolismo do espectador.
Pressão arterial, batimento cardíaco,
funções metabólicas são acelerados ou
desacelerados, dependendo do tipo de
sonoplastia adotado.
A “engenharia de emoções” é uma
ciência que se estabeleceu definitiva-
mente a partir da década de 70, princi-
palmente na indústria cinematográfica.
Segundo Peter Krass, “a engenharia
de emoções é um ramo recente de ati-
vidades, que tem por objetivo alterar o
comportamento involuntariamente,

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 127
sem a consciência dos receptores do
público, que é manipulado sublimi-
narmente por sons e cores”.
Slogans e provérbios: “frases feitas”,
ditados, máximas, adágios, aforismos,
anexins, brocardos jurídicos, palavras
de ordem, clichês e formas verbais do
imperativo apresentam um elevado
grau de subliminaridade e tem um e-
norme poder persuasivo, não tanto pe-
lo que é dito, mas muito mais pelo co-
mo é dito. Exemplo: “homo loquax,
homo mendax”, isto é, “homem falan-
do, homem mentindo”, ou, “homem
eloqüente, homem mentiroso” — note-
se que quando dito em português, o
dito perde a força da sonoridade lo-
quax/mendax.
Há, inclusive, “sons” no silêncio: os
ritmos (alternância sistemática entre
pausa-som-pausa) podem acal-
mar/relaxar (instalados em consultó-
rios de dentistas), podem transmitir a
sensação de conforto, tranqüilidade,
segurança e prazer (72/80 ciclos por
minuto: o ritmo do coração); provocar

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LUIZ CARLOS RAMOS
128
atitudes (20 ciclos por segundo: em
bancos, levando funcionários e clientes
a fazerem investimentos; em super-
mercados, para evitar furtos...).
Comunicação pela visão: nós, hu-
manos, tendemos a supervalorizar o
sentido da visão. Dizem os neuro-
cientistas que 87% da arquitetura ce-
rebral destina-se ao processamento de
informação visual.
Culturalmente falando, “estamos
indo ao encontro de uma época mais
visual”, no qual “o que é visto é mais
importante do que aquilo que é escrito”
(Margaret Mead).
A psicodinâmica das cores demons-
tra que as cores produzem efeitos sub-
liminares (desapercebidos) psicossomá-
ticos.
Parece haver uma “evolução” do
vermelho para o azul: crianças são a-
traídas por cores quentes; há antropó-
logos que dizem que isso se evidencia
no padrão cultural dos povos, de modo
que aqueles que têm um estilo mais
primário, tendem a ser mais coloridos e

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 129
a ornamentarem-se com cores mais
vivas, ao passo que as sociedades mais
“civilizadas” tendem a preferir cores
mais sóbrias.
Cor é luz. Cada cor equivale a um
comprimento de onda: cada compri-
mento de onda tem um efeito físico, e
mesmo biofísico. A primeira sensação
de cor ocorre no complexo límbico cau-
sando instantâneas reações emocionais
e estimulando as glândulas pituitária e
pineal. Tais reações ativam o sistema
endócrino, ativando o hipotálamo (cé-
rebro réptil) e causando ativação do
sistema nervoso simpático e parassim-
pático.
Esse é trajeto da cor que causará
fome, sede ou excitação sexual direto
no cérebro, agindo subliminarmente,
sem ser percebida.
Pesquisadores explicam os efeitos
psicossomáticos das cores: o azul tem
efeito calmante; o vermelho tem efeito
oposto; o amarelo-avermelhado ativa as
funções do metabolismo do hipotála-
mo, despertando a fome e alterando a

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LUIZ CARLOS RAMOS
130
atividade gástrica. As cores intensas,
de longos comprimentos de ondas,
aumentam a circulação sangüínea e
aumentam a força muscular.
Assim, a cor pode induzir sublimi-
narmente a escolha de uma embala-
gem na prateleira de um supermerca-
do, pode ajudar a trabalhar mais tran-
qüilamente, pode regularizar a pressão
arterial, ser relaxante...
Todas essas informações podem
nos inspirar e ampliar nosso horizonte
criativo na preparação de liturgias mais
comunicativas — uma vez que estabe-
lece pontes de interação com o indiví-
duo todo, e não somente com sua ra-
cionalidade.

A cultura e o culto

A criatividade litúrgica possibilita o


recurso à expressão artística de modo
geral. Classicamente, a arte tem sido
agrupada em sete formas de expressão
(isso serve apenas para fins didáticos,
pois a arte não pode ser confinada).

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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A Literatura, que é a arte da pala-
vra, está associada a toda palavra bem-
dita na liturgia: as leituras e litanias,
as orações e bênçãos, a palavra canta-
da e declamada, e a palavra pregada e
explicada. Nem tudo o que se diz, es-
creve e lê, tem o status de literatura —
as palavras organizadas alfabeticamen-
te num dicionário não produzem, ami-
úde, reações como ternura, alegria,
consternação, êxtase, alegria, sauda-
de... A palavra se torna literatura
quando é bela, quando faz diferença
em quem a pronuncia e em quem a
ouve. No culto, a verdadeira literatura
são as palavras bem-ditas que provo-
cam o encontro com a Palavra divina.
A Coreografia, que é a arte do mo-
vimento, está associada a todo movi-
mento e a toda movimentação inten-
cional, no contexto celebrativo. Quando
nos levantamos para ouvir a leitura
bíblica, ou para cantar; quando nos
ajoelhamos para orar; quando nos diri-
gimos ao altar para o ofertório ou para
um ato de consagração; quando o cele-

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LUIZ CARLOS RAMOS
132
brante repete o gesto de partir o pão e
servir o cálice ou estende os braços
para dar a bênção, etc. — são todos
movimentos coreográficos. Não são gra-
tuitos, são intencionais e carregados de
sentido.
A Arquitetura, que é a arte do espa-
ço vazio, do espaço que se abre para
acolher o belo, está associado, no con-
texto celebrativo, à toda a ambientação
que transforma os lugares comuns em
espaços sagrados, espaços de encontro
do efêmero com o eterno, do finito com
o infinito, do mortal com o imortal.
Nesse espaço não cabe o assessório,
tudo deve ser essencial, não cabe o
descuidado, o desarrumado, o improvi-
sado, tudo tem que corresponder à
dignidade do evento que ali se dá.
A Escultura, que é a arte do volume,
relaciona-se às texturas, formas e sen-
sações que estas provocam. Superfícies
ásperas e formas pontiagudas transmi-
tem sensação de desconforto, de repul-
sa. Formas curvas e superfícies lisas
ou aveludadas dão idéia de acolhimen-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 133
to afetivo. O círculo tem força centrípe-
ta, convida para o centro, para a co-
munhão; o quadrado sugere a força
centrífuga que envia para a missão; o
triângulo transmite idéia de estabilida-
de, daquilo que não sofre abalo, que
permanece o mesmo, “ontem, hoje e
eternamente” (cf. Hb 13,8).
A Pintura, que é a arte da cor, nos
ajuda a celebrar com a luz. Pinturas e
vitrais são apenas uma parte do poder
comunicativo das cores no contexto
celebrativo. Os paramentos, os orna-
mentos, as vestes litúrgicas dos cele-
brantes, os tapetes, cortinas e toalhas,
tudo no espaço celebrativo deve ser
pensado e ressignificado. Eis a impor-
tância da decoração que, etimologica-
mente, sugere o sentido de ambientar
com cor e com o coração.
A Música, que é a arte do som, é a
rainha das artes. Que seria das nossas
liturgias não fosse a música? Sua força
está na sua capacidade de aproximar
razão e emoção e de alcançar, por isso
mesmo, um nível tão profundo de co-

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LUIZ CARLOS RAMOS
134
municação como nenhuma outra arte
consegue. Quando cantamos, a combi-
nação entre letra, melodia, harmonia e
ritmo fundem-se, de tal maneira, inte-
grando diferentes níveis do nosso ser.
Corpo, alma e espírito se fundem ple-
namente. Música é arte e ciência, é
emoção e sensação, é gramática e ma-
temática. Ouvir música é ouvir Deus!
E a controvertida “sétima arte”, o
Cinema, que combina as várias artes.
Um ótimo desafio para a equipe de li-
turgia é pensar a liturgia como se esti-
vesse preparando para gravar um fil-
me: roteiro e script (literatura), ação
(coreografia), o cenário e ambientação
(arquitetura), as cores, luzes e sombras
(pintura), e a trilha sonora (música).

A Equipe ou Ministério de Liturgia

A constituição de uma Equipe ou


Ministério de Liturgia, em cada igreja
local, é uma tarefa que deve ser reali-
zada com toda responsabilidade e com
a participação representativa das vá-

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 135
rias expressões da espiritualidade da
comunidade. O acompanhamento do
pastor ou pastora é fundamental (ca-
nonicamente, é ele/a quem responde
pela liturgia na igreja local).
Pode se estruturar a equipe em se-
tores encarregados de executar tarefas
específicas, sempre em articulação com
a equipe como um todo. A seguir, ofe-
recemos uma sugestão de organização
desses setores:
ƒ Palavra e Texto: Responsável pe-
la criação, edição, editoração e
arquivo das liturgias, bem como
pela escala das pregações.
ƒ Espaço e Movimento: Responsá-
vel pela ambientação e decora-
ção dos espaços celebrativos,
bem como por expressões, atua-
ções e performances cênicas es-
pecíficas.
ƒ Luz e Sombra: Responsável pela
comunicação sensorial (tato, ol-
fato, paladar, audição e visão)
por meio de recursos audiovisu-
ais, projeções multimídia, ele-

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LUIZ CARLOS RAMOS
136
mentos concretos, diferentes
texturas, etc.
ƒ Silêncio e Som: Responsável pela
parte musical (vocal e instru-
mental) das celebrações, o que
inclui a condução do Coro, e
formação de grupos vocais e ins-
trumentais.
A equipe deve ainda observar os vá-
rios processos para que as liturgias
sejam consistentes:
ƒ Investigação e pesquisa no cam-
po da liturgia e da arte litúrgica,
para que os atos tenham pro-
fundidade teológica;
ƒ Criação e produção de ordens,
textos e cânticos litúrgicos;
ƒ Execução e condução celebrativa
dos cultos;
ƒ Documentação e avaliação das
produções litúrgicas da equipe
mantendo registro e arquivo de
tudo, de modo a possibilitar o
acesso e a revisão criteriosa das
liturgias produzidas e celebra-
das;

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


| 137
ƒ Capacitação e socialização da
experiência litúrgica, disponibili-
zando o acervo (impresso e/ou
digital).

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LUIZ CARLOS RAMOS
138
Epílogo

Assim se pode fazer verdadeira ar-


te litúrgica: estruturando o culto em
torno da partilha do Pão e da Palavra;
da qual todos possam participar de
corpo e alma, em espírito e em verda-
de, com alegria e com arte; de tal
forma que envolva integralmente o ser
humano e estabeleça um diálogo efe-
tivo e afetivo com Deus e seu povo.
Referências

Para quem quiser aprofundar seus


estudos dos temas relacionados com
o Culto, sugerimos:

Textos sobre culto e liturgia

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico. São Paulo:


Paulinas, 1982. 360 p.
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona,
354-430. A doutrina Cristã: manual de
exegese e formação cristã. São Paulo:
Paulinas, 1991.
ALLMEN, J. J. von. O Culto Cristão: Teo-
logia e Prática. São Paulo: ASTE,
1968. 403 p.
BECKHÄUSER OFM, Frei Alberto. Os
fundamentos da sagrada liturgia. Pe-
trópolis: Vozes, 2004. 327 p.
CARTA PASTORAL do Colégio Episcopal
da Igreja Metodista. O culto da Igreja
em missão. São Paulo: Cedro, 2006.
40 p. (Biblioteca Vida e Missão – Pas-
torais)
CELAM. Manual de liturgia 1 e 2: a cele-
bração do mistério pascal. São Paulo:
Paulus, 2005. 304 p. (v. 1), 437 p. (v. 2)
DIDACHE: o catecismo dos primeiros
cristãos para as comunidades de hoje.
São Paulo: Paulinas, 1989. 31 p.
FLORISTÁN, Casiano. Teologia practica:
teoria y praxis de la acción pastoral.
Salamanca: Sigueme, 1993. 757 p.
HAHN, Carl Joseph. História do culto pro-
testante no Brasil. São Paulo: Aste,
1989. 403 p.
KIRST, Nelson. Nossa Liturgia: das origens até
hoje. São Leopoldo: Sinodal, 1993. (Col-
méia).
______. A Liturgia toda: Parte por parte. São
Leopoldo: Sinodal, 1993. (Colméia).
MARASCHIN, Jaci. A beleza da Santida-
de, ensaios de liturgia. São Paulo: As-
te, 1996. 168 p.
NEUNHËUSER OSB, Burkhard. História
da liturgia através das épocas cultu-
rais. São Paulo: Loyola, 2007. 277 p.

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LUIZ CARLOS RAMOS
142
RAMOS, Luiz Carlos (org.). Anuário Litúr-
gico. São Bernardo do Campo: Editeo,
2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009-.
RITUAL da Igreja Metodista. 2. ed. São
Paulo: Cedro, 2005. 156 p.
SARTORE, D. T. & ACHILLE, M. Dicioná-
rio de Liturgia. São Paulo: Edições
Paulinas,1992. 1293 p.
WHITE, James, F. Introdução ao culto
cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997.
267 p.

Textos sobre a comunicação


por vias não-verbais:

BARRETO, Roberto Menna. Análise tran-


sacional da propaganda. 4. ed. São
Paulo: Summus Editorial, 1981. 305
p.
CALAZANS, Flávio. Propagação sublimi-
nar multimídia. 3. ed. São Paulo:
Summus Editorial, 1992. 116 p. (No-
vas buscas em comunicação; v. 42).
DAVIS, Flora. A comunicação não-verbal.
6. ed. Trad. de Antonio Dimas. São
Paulo: Summus Editorial, 1979. 119 p.
FERRÉS, Joan. Televisão subliminar: so-
cializando através de comunicações

SCRIPT 2: EM ESPÍRITO E EM VERDADE


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despercebidas. Trad. Ernani Rosa e
Beatriz A. Neves. Porto Alegre: Art-
med, 1998. 288 p.
VIEIRA, Stalimir. Raciocínio criativo na
publicidade: uma proposta. São Paulo:
Ed. Loyola, 1999. 101 p.

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