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A história como disciplina, filha do século XIX, nasceu apoiada em três pilares:
o Estado-nação, o silenciamento da alteridade e o apego às fontes. A maneira como
esses três pilares articularam-se e pautaram a escrita da história guarda as explicações
do porquê uma nova história indígena3 é mais que uma necessidade, constitui-se um
imperativo. Voltarei a esses três pontos mais a diante.
1
Aluno de mestrado do curso de Estudos Comparados sobre as Américas (ELA/UnB).
2
Nome utilizado desde antes da Conquista pelo povo Kuna, localizado no Panamá e Colômbia,
para designar o continente hoje conhecido como América.
3
Ao mencionar uma nova história indígena atenho-me mais à necessidade de reescrita das
narrativas sobre povos indígenas do que ao movimento intitulado Nova História Indígena, o
qual ganha forma e força na década de 1990, com trabalhos que sob este epíteto reivindicam
uma reescrita da história dos povos indígenas. Esses trabalhos historiográficos, na recuperação
de um diálogo profundo com a antropologia constituíram, no campo da história, um ramo
importante da chamada Nova História.
4
Sobre a École des Annales, ver Peter Burke (1997)
Refiro-me aqui à Abya Yala ao invés de América, categoria colonial, para falar
de uma história indígena que se constrói além dos limites da história-ciência e em
atitude político-epistemológica de resistência à marcha de um discurso histórico
moderno/colonial. Essa outra história, que recupera a agência e o protagonismo das
populações indígenas desvela o ponto cego da história oficial anti-dialética, para aludir
a Guzmán-Bockler.
Essa Nova História Indígena, como fica conhecida, ligada aos traços norteadores
da Nova História5, estabeleceu um diálogo frutífero com a etnologia, a arqueologia,
sociologia e outras áreas do conhecimento. Nesse roll de produções destacam-se, por
exemplo, os trabalhos de Manuela Carneiro da Cunha (História dos Índios no Brasil,
1992); Nádia Farage (As Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a
colonização, 1991); John Manuel Monteiro (Negros da Terra: índios e bandeirantes
nas origens de São Paulo, 1994) e mais recentemente Fernanda Sposito (Nem cidadãos,
nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na
província de São Paulo, 1822-1885, 2012) e Luísa Tombini Wittimann (O Vapor e o
Botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no vale do Itajaí/SC, 1850-1926, 2007),
para citar alguns exemplos.
5
Nova História foi uma corrente historiográfica surgida nos anos 1970 e que corresponde à
terceira geração dos Annales.
A formação acadêmica dos protagonistas desse “renascimento” da história
indígena é bastante eclética. Estabelecem uma abordagem de cunho histórico mas
constroem narrativas nas quais o aspecto multidisciplinar marca presença basilar.
Apesar de ser indispensável citar tal movimento, não é especificamente sobre ele que
trata este trabalho. Apontá-lo é importante como um mapeamento daquilo que em
termos acadêmicos vem operando-se no sentido de uma reorientação dos estudos a
respeito de povos indígenas.
Pode-se dizer que a história como disciplina teve uma origem “perniciosa”, ou
num tom mais ponderado, se constituiu num formato ainda distante dos contornos que
tomaria com a geração de Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956). Ela
nasce como filha-discurso validador do Estado-Nação em construção, fenômeno
europeu por excelência, mas que por laços viscerais deste continente com a outra
margem do Atlântico, também constitui fato histórico na América Latina.
Nesta mesma conjuntura a categoria humanidade, que passa a ser evocada como
sinônimo de homem europeu, pauta o debate sobre a capacidade de pensar-se
historicamente e a preocupação em registrar uma história, como preocupação branca,
por excelência. Tais pressupostos cristalizam-se cada vez mais e formam o substrato das
narrativas historiográficas oitocentistas, cultivadas no solo do Estado-nação. As
condições da terra do plantio condicionam então os frutos da semeadura. Henri Moniot
observou em 1974:
Os três pontos podem ser melhor desenvolvidos e articulados com outras e novas
demandas que com cada vez mais força surgem no sentido de se revisar o conhecimento
e as pesquisas feitas sobre povos indígenas. A história já operou uma auto-reflexão, ou
melhor dizendo, tem a preocupação em historicizar-se, mas é preciso atenção para as
ferramentas com as quais operam-se os revisionismos, a guisa de não incorrer na mesma
mudança virtual da analogia feita ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Uma
nova história indígena que seja sensível à agência política indígena, sua resistência e
também suas contribuições metodológicas para a pesquisa com povos indígenas, não é
mais uma opção, mas um imperativo.
Bibliografia
BONFIL BATALLA, Guillermo. “El pensamiento político de los indios en
América Latina”. Anuário Antropológico/79. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.