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Abya Yala não acredita em Clio: considerações sobre uma história indígena

Maycom Pinho Santiago1

A analogia judaico-cristã do princípio, que povoou o imaginário europeu através


de associações aos povos indígenas de além-mar, insiste em revelar a natureza
anacrônica de tal comparação. E como “Narciso acha feio o que não é espelho”,
passeava seu corpo nu pelo Éden, e em atitude adâmica organizou o mundo, deu nome
às coisas, animalizou a alteridade, hierarquizou corpos, contou uma história e chamou-
lhe de verdade. Mas Abya Yala2, que está além dos domínios de Clio, contrapõe sua
narrativa totalizadora, e num ato de resiliência quebra o discurso homogeneizador e
silenciador da história oficial. É nas adjacências dessa outra história possível que
pretende pautar-se este ensaio.

A história como disciplina, filha do século XIX, nasceu apoiada em três pilares:
o Estado-nação, o silenciamento da alteridade e o apego às fontes. A maneira como
esses três pilares articularam-se e pautaram a escrita da história guarda as explicações
do porquê uma nova história indígena3 é mais que uma necessidade, constitui-se um
imperativo. Voltarei a esses três pontos mais a diante.

Parece ser um consenso entre os historiadores, pelo menos desde o rompimento


com a tradição rankeana e a crítica dos Annales4, de que história não se faz
desconectada de seu contexto social e das categorias simbólicas e mentais de uma
sociedade. Portanto, já não é mais possível deixar de pensar a maneira como engendrou-
se o discurso histórico no mundo atlântico a respeito do Novo Mundo e nele o lugar dos
povos indígenas, sem levar em consideração aquilo que Aníbal Quijano chamou de
colonialidade do poder (QUIJANO, 2005).

1
Aluno de mestrado do curso de Estudos Comparados sobre as Américas (ELA/UnB).
2
Nome utilizado desde antes da Conquista pelo povo Kuna, localizado no Panamá e Colômbia,
para designar o continente hoje conhecido como América.
3
Ao mencionar uma nova história indígena atenho-me mais à necessidade de reescrita das
narrativas sobre povos indígenas do que ao movimento intitulado Nova História Indígena, o
qual ganha forma e força na década de 1990, com trabalhos que sob este epíteto reivindicam
uma reescrita da história dos povos indígenas. Esses trabalhos historiográficos, na recuperação
de um diálogo profundo com a antropologia constituíram, no campo da história, um ramo
importante da chamada Nova História.
4
Sobre a École des Annales, ver Peter Burke (1997)
Refiro-me aqui à Abya Yala ao invés de América, categoria colonial, para falar
de uma história indígena que se constrói além dos limites da história-ciência e em
atitude político-epistemológica de resistência à marcha de um discurso histórico
moderno/colonial. Essa outra história, que recupera a agência e o protagonismo das
populações indígenas desvela o ponto cego da história oficial anti-dialética, para aludir
a Guzmán-Bockler.

Si algún análisis es antidialéctico, es esa historia oficial... si la


historia oficial fuera realmente historia, tendría que haber analizado
todos los aspectos de la interación de los actores sociales
involucrados, en vez de magnificar a unos y amontoar en la sombra a
otros. Pero como ha sido redactada, es absolutamente incapaz de
explicar no sólo por qué hay índios, sino por qué son mayoritarios y,
además, hoy reclaman para ellos el rango de la importância que se
supone perdieron definitivamente hace cinco siglos (Guzmán-Bockler,
1986:27-28).
Esse contraponto, ao qual Guzmán-Bockler refere-se esteve e está presente na
resistência histórica dos indígenas à colonização e aos processos etnocidas engendrados
pelo Estado-nação. No campo da produção acadêmica, a crítica exposta por Bockler a
uma história anti-dialética encontra eco a partir da década de 1970, e o que começa
como um contraponto à história oficial logo toma a forma de algo maior: uma reescrita
da história indígena. É então que uma nova compreensão a respeito dos povos nativos
promove um reposicionamento historiográfico que resgata a agência indígena antes
silenciada e invisibilizada nos discursos históricos.

Essa Nova História Indígena, como fica conhecida, ligada aos traços norteadores
da Nova História5, estabeleceu um diálogo frutífero com a etnologia, a arqueologia,
sociologia e outras áreas do conhecimento. Nesse roll de produções destacam-se, por
exemplo, os trabalhos de Manuela Carneiro da Cunha (História dos Índios no Brasil,
1992); Nádia Farage (As Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a
colonização, 1991); John Manuel Monteiro (Negros da Terra: índios e bandeirantes
nas origens de São Paulo, 1994) e mais recentemente Fernanda Sposito (Nem cidadãos,
nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na
província de São Paulo, 1822-1885, 2012) e Luísa Tombini Wittimann (O Vapor e o
Botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no vale do Itajaí/SC, 1850-1926, 2007),
para citar alguns exemplos.

5
Nova História foi uma corrente historiográfica surgida nos anos 1970 e que corresponde à
terceira geração dos Annales.
A formação acadêmica dos protagonistas desse “renascimento” da história
indígena é bastante eclética. Estabelecem uma abordagem de cunho histórico mas
constroem narrativas nas quais o aspecto multidisciplinar marca presença basilar.
Apesar de ser indispensável citar tal movimento, não é especificamente sobre ele que
trata este trabalho. Apontá-lo é importante como um mapeamento daquilo que em
termos acadêmicos vem operando-se no sentido de uma reorientação dos estudos a
respeito de povos indígenas.

Convém retornar aos três pilares pontuados no início do texto, os quais


estiveram fortemente presentes nas origens da história como disciplina e com
implicações que incidiram e ainda incidem diretamente na forma e conteúdo das
representações produzidas sobre povos indígenas. Fala-se do Estado-Nação, do
silenciamento da alteridade e do apego às fontes.

Pode-se dizer que a história como disciplina teve uma origem “perniciosa”, ou
num tom mais ponderado, se constituiu num formato ainda distante dos contornos que
tomaria com a geração de Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956). Ela
nasce como filha-discurso validador do Estado-Nação em construção, fenômeno
europeu por excelência, mas que por laços viscerais deste continente com a outra
margem do Atlântico, também constitui fato histórico na América Latina.

A título de exemplo, em 1840, o então recém-criado IHGB (Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro, 1838) promoveu um concurso destinado a premiar a melhor
maneira de se escrever a história do Brasil. Essa é a criação em termos discursivos de
um país que menos de vinte anos antes havia se emancipado politicamente de Lisboa.
Venceu o concurso um naturalista da Baviera (Alemanha), Carl Von Martius. E assim, a
história do Brasil começou a ser forjada, em termos institucionais e oficiais, a partir de
fora. Nasce na forma de um louvor à monarquia, ao processo civilizatório português e
principalmente, através do discurso da mestiçagem, produto da interação entre o homem
branco redentor, o indígena dizimado e a negra escravizada.

O retrovisor do discurso histórico do Estado-Nação em construção estava


voltado para os relatos dos cronistas setecentistas. Estas narrativas, assentadas sobre
categorias racializadoras e cristãs, foram responsáveis por esquematizar um quadro no
imaginário atlântico, durante os séculos XVII e XVIII, no qual as categorias raciais
índio e negro, engendradas no marco da modernidade/colonialidade, passam a
estabelecer uma relação de igualdade, com os estigmas de tábulas rasa, povos sem
história, seres apolíticos, e no caso dos negros, não-humanos.

Nesta mesma conjuntura a categoria humanidade, que passa a ser evocada como
sinônimo de homem europeu, pauta o debate sobre a capacidade de pensar-se
historicamente e a preocupação em registrar uma história, como preocupação branca,
por excelência. Tais pressupostos cristalizam-se cada vez mais e formam o substrato das
narrativas historiográficas oitocentistas, cultivadas no solo do Estado-nação. As
condições da terra do plantio condicionam então os frutos da semeadura. Henri Moniot
observou em 1974:

Havia a Europa e a ela se reduzia toda a história. Amontoadas e


longínquas, algumas "grandes civilizações", cujos textos, ruínas, por
vezes ligações de parentesco, trocas ou heranças da Antiguidade
clássica, nossa mãe, ou a amplitude de massas humanas que opunham
aos poderes e ao olhar europeus, eram admitidas nos confins do
império de Clio. O resto, tribos sem história segundo o acordo
unânime do homem da rua, dos manuais e da universidade [...] Tudo
isso mudou. Desde há quinze anos que, por exemplo, a África negra
entra em força no campo dos historiadores (Le Goff, 1990 apud
Moniot, 1974).
Ainda que a historiografia tenha operado essa guinada a qual Moniot refere-se,
é preciso cautela antes de afirmar categoricamente que “tudo isso mudou”. De fato, a
escrita dos historiadores em todo o mundo tem ficado, desde os Annales, cada vez mais
sensível às questões antes ofuscadas pela hegemonia da “velha” história política. Não
obstante, mas do que constatar que essas mudanças figuram no horizonte da história, é
preciso perguntar-se por quem e em que termos elas emergem.

A essa altura cabe uma ilustração para explicar melhor a preocupação


levantada. Imagine-se o Conselho de Segurança das Nações Unidas e neles seus cinco
membros permanentes. A dinâmica do organismo permite uma rotação periódica de
outros países membros, com assento temporário. No entanto, no que diz respeito à
deliberação de questões de qualquer natureza, compete apenas aos membros
permanentes o poder de veto.

A presença de países-membros com assento temporário não muda


substancialmente a correlação de forças no seio do Conselho, haja vista que o principal
instrumento de “coerção” permanece restrito aos cinco países vencedores da Segunda
Guerra Mundial. A conclusão é que os termos nos quais se deu a inserção de novos
membros ficaram vinculados à manutenção do status quo.
Guardadas as devidas proporções, a onda de descolonização das sociedades
latino-americanas e africanas, respectivamente, nos séculos XIX e XX, ainda que tenha
conduzido a uma inserção dessas porções do globo, invisibilizadas no campo da
história, ao reino de Clio, acomodou-as dentro desse domínio, a partir de uma espécie
de “colonialismo interno da epistemologia”, para fazer uma analogia à categoria de
colonialismo interno, trabalhada por Stavenhagen e Casanova. E, portanto, um
acréscimo importante à observação de Moniot, é a necessidade de se perceber que essas
histórias, trajetórias e experiências coletivas ainda são comunicadas em grande medida,
como na época de sua crítica, no campo da história, nos termos do Estado-nação. A
historiografia rendeu então, versões totalizadoras da história das sociedades americanas,
e nelas uma escrita homogeneizadora e silenciadora da alteridade. Passo então ao
segundo pilar fundacional da história.

O silenciamento da agência indígena nas narrativas históricas cunhadas durante


e após a construção do Estado-nação, tributárias das crônicas e tratados políticos
coloniais, deixou como herança às gerações posteriores de historiadores uma visão
ofuscada sobre a real postura dos povos indígenas frente à ordem colonial e
posteriormente ao Estado nacional. Assim, as produções historiográficas revelaram-se
incapazes de entender as dinâmicas interétnicas nas quais amalgamaram-se as
sociedades latino-americanas e todas aquelas cujas populações nativas passaram pela
experiência colonial.

A história serviu como catalizadora da máxima “saber é poder”, originando


dois problemas. O primeiro, o entendimento completamente equivocado de que o
indígena não é um ser político com agenda articulada de objetivos. E a partir disso, a
ideia de que ele não teria o arcabouço reflexivo que lhe brindasse a capacidade e o
interesse de pensar-se historicamente. Desta forma, já que a história, enquanto
instrumento de poder do homem branco, não conseguiu apagar o indígena de vez de
seus anais, porque a colonização não logrou fazê-lo, silenciou-o e o apresentou como
tábula rasa. Nesses termos, cabe refazer-se o questionamento do intelectual maia Pop
Caal em Réplica del índio a uma disertación ladina, publicada na Guatemala:

Una pregunta se hace necesaria a estas alturas: por qué un


pueblo que ha sido sometido al máximo de la explotación
económica y de la humillación, no solo ha sobrevivido, sino ha
mantenido su identidad colectiva y, al cabo de casi cinco siglos,
ha podido iniciar su recuperación económica y empezado a
hacer púbIicas las bases de su pensamiento historico? (Guzmán
Bockler, 1986 apud Pop Caal, 1972).
Essa fala atinge em cheio a ideia de passividade em relação aos povos
indígenas, escancarando sua resistência, primeiro à aniquilação da colonização e
posteriormente ao projeto desindianizador da mestiçagem. Essa reorientação de
entendimento permite inclusive, perceber a articulação indígena no sentido de apropriar-
se de uma categoria colonial como a de “índio” e ressignificá-la como marcador de
alteridade e instrumento de barganha e reinvindicação perante o Estado. Agora, sobre a
questão da consciência histórica, uma alternativa proposta por Bockler, que parece
bastante interessante, vai no sentido de entender que a reflexão histórica indígena
caminha vinculada à sua consciência étnico-histórica. Nesse aspecto, Le Goff pontuou:

Se o Ocidente prestou especial atenção à história, desenvolvendo


especialmente a mentalidade histórica e atribuindo um lugar
importante à ciência histórica, o fez em função da evolução social e
política. Muito cedo, alguns grupos sociais e políticos e os ideólogos
dos sistemas políticos tiveram interesse em se pensarem
historicamente e em imporem quadros de pensamento históricos.
Como se viu, este interesse apareceu primeiro no Oriente Médio e no
Egito, nos Hebreus e depois nos Gregos. É apenas pelo fato de ser
desde há muito a ideologia dominante do Ocidente que o Cristianismo
lhe forneceu algumas formas de pensamento histórico. Quanto às
outras civilizações, se elas parecem dar menos importância ao
espírito histórico, isso deve-se ao fato de, por um lado, reservarmos o
nome de história para concepções ocidentais e não reconhecermos
como tais outras maneiras de pensar a história e, por outro lado,
porque as condições sociais e políticas que favoreceram o
desenvolvimento da história no Ocidente nem sempre se produziram
em outros lados (Le Goff, 1990:65).
Os encontros de culturas fazem nascer respostas historiograficamente diversas a
respeito do mesmo acontecimento. Mas a natureza desse encontro, para inaugurar uma
polifonia historiográfica, demanda uma horizontalidade entre as partes que o
protagonizam. Horizontalidade pressupõe então, disputas no campo discursivo. O que a
modernidade/colonialidade operou, pelo uso da violência física e simbólica foi, na
verdade, o silenciamento dessas outras vozes que poderiam disputar com condições de
igualdade o campo do discurso histórico se, de fato, o que tivesse havido a partir de
1492 em Abya Yala pudesse ser chamado de “encontro”.

História com o aposto “indígena”, é reflexo de uma delimitação temática da


historiografia moderna ocidental. Se o que tivesse havido fosse o encontro entre culturas
ao invés do encobrimento do outro, a história indígena, orquestrada e contada pelos
próprios indígenas e por aqueles não-indígenas que nela tivessem seu objeto de estudo,
prescindiria do adjetivo que carrega, pois representaria, na verdade, apenas história, no
singular. Como a modernidade/colonialidade racializou o mundo, foi preciso tematizar a
alteridade étnica antes de pautá-la dentro do discurso historiográfico do Estado-nação.
Novamente, se o que tivesse havido fosse um encontro, a história indígena seria apenas
história e figuraria como player em disputa no campo historiográfico. Não de outra
forma se operaria a diversidade historiográfica sobre os acontecimentos que dizem
respeito a uma história das sociedades em América.

Essas “outras vozes” subalternizadas, ficaram circunscritas à categoria de


contestação da narrativa oficial que se impôs com a Conquista, e que se apresentou
como única autorizada a falar da trajetória dos povos indígenas. Se há contribuições da
perspectiva decolonial neste debate, certamente, uma delas é a constatação de que essas
narrativas históricas não-ocidentais, em inter-influenciação constante com a tradição
historiográfica eurocentrada, pautaram o contraponto a esta história monocromática da
América Latina e nela a atuação política dos povos indígenas, mais como sujeitos da
história do que como seus expectadores.

Não obstante, esse silenciamento histórico é quebrado quando emergem


contestações no campo político e epistemológico oferecendo outro olhar sobre a
trajetória dos povos indígenas e também do europeu metropolitano e da elite criolla.
Elas aparecem, por exemplo, através de uma perspectiva histórica das revoltas e
rebeliões índias, enxergadas no marco da consciência histórica. Sobre isso, Bockler
acrescenta:

Conviene traer a cuenta que, en la actualidad, cuando se hacen


enjuiciamientos historicos de esas rebeliones indígenas, se tiende a
repetir, en esencia, los mismos argumentos que los cronistas
coloniales desperdigaron a lo largo de todos sus escritos. Prevalece
aún la idea de que esos hechos no fueron mas que el epílogo de
desesperaciones ciegas y sin posible trascendencia. Ni por un
momento se piensa en su hilvanacion dentro de un proceso largo que
apunta siempre allogro de un mismo fin, tanto mediato como
inmediato, a saber: la recuperación de todo lo perdido y la
estructuración y el mantenimiento de una conciencia de lucha, la cual
descansa siempre en la preexistencia y la conservacion de una
conciencia étnica (Bockler, 1986:43).
O autor aborda também a necessidade de novas perspectivas para a história
indígena, algumas às quais a já citada Nova História Indígena deu atenção. No entanto,
ainda que muitas das coisas pautadas por Bockler tenham sido ao final do século
passado, motivos de intenso debate, ainda há muito por se reescrever e descolonizar. Ele
faz uma comparação entre a Reconquista da Península Ibérica pelos reinos católicos e a
resistência secular dos povos indígenas à colonização, contra a cristianização, e a luta
pela recuperação do capital material e simbólico que lhes foi usurpado.

Como bien se sabe, se trata de varias luchas, espaciadas en el


territorio ibérico en una temporalidad que alcanza los ochocientos
años, desde que Pelayo se alza en las montañas asturianas, en los
albores de la Alta Edad Media, hasta la toma de Granada por los
reyes católicos el 2 de enero de 1492. Si se consideran separadamente
cada una de las acciones que la compusieron y si, sobre todo, se
analizan las múltiples derrotas militares sufridas por las huestes
cristianas a manos de los musulmanes, se puede concluir - tan fácil
como erroneamente - que cada uno de esos episodios no eran para los
cristianos más que golpes lanzados al viento o escupidas arrojadas al
cielo. ¿Cómo - cabría preguntarse- podrian tener futuro unas luchas
emprendidas por bandas heterogéneas e ignaras contra califatos bien
organizados, cultos y florecientes, como el de Córdoba? [...] Los
hechos, por su parte, se encargaron de demostrar que ni los pueblos
ibéricos fueron islamizados en la forma pretendida por los
musulmanes, ni los pueblos americanos fueron cristianizados a la
manera que se propusieron los hispano-Iusitanos [...] sobran las
voces que ponen en tela de juicio no sólo la capacidad de resistencia
sino inclsuso la continuidad histórica de los pueblos indígenas de
América que, con intervalos e intermitencias, se doblegaron y
esperaron, colaboraron y se rebelaron; y que hoy, pese a todas las
agresiones, existen y exigen que se les devuelva el lugar que se les ha
arrebatado (Bockler, 1986:43,44,45).
Como nunca ouve silêncio por parte dos povos indígenas no campo das lutas,
quebra-se então o silenciamento ao qual foram submetidos no campo epistemológico,
recuperando uma história indígena cujo espaço lhe foi negado pelo terceiro pilar
fundacional da história ao qual me referi, qual seja, o apego às fontes, nesse caso, à
fonte escrita.

Todos os três pilares estão intimamente imbricados e confundem-se quase que


numa base única de sustentação. Condicionando a história à escrita, a historiografia
eurocentrada selou o destino dos “povos sem história”, já que a tradição oral não era
suficiente para consubstanciar nessas sociedades algo digno de ser tido como
consciência histórica. Chamaram-lhe povos ágrafos, porque foi estabelecida uma
relação de igualdade entre grafia e escrita. Mas as pinturas corporais e as inscrições em
cerâmicas, não são também formas de grafismo? Não passariam mais que uma função
estética? Não contariam uma história? Antes mesmo que a Nova História, surgida nos
círculos acadêmicos europeus (franceses e ingleses), viesse nos lembrar do imperativo
de que a escrita da história não podia mais ficar condicionada ao império da fonte
escrita, os povos indígenas em Abya Yala já praticavam um registro da história que
abarcava uma gama maior de fontes através das quais a história podia ser comunicada e
ampliaram uma vez mais esse leque de fontes, apropriando-se da língua e escrita do
colonizador.

Os três pontos podem ser melhor desenvolvidos e articulados com outras e novas
demandas que com cada vez mais força surgem no sentido de se revisar o conhecimento
e as pesquisas feitas sobre povos indígenas. A história já operou uma auto-reflexão, ou
melhor dizendo, tem a preocupação em historicizar-se, mas é preciso atenção para as
ferramentas com as quais operam-se os revisionismos, a guisa de não incorrer na mesma
mudança virtual da analogia feita ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Uma
nova história indígena que seja sensível à agência política indígena, sua resistência e
também suas contribuições metodológicas para a pesquisa com povos indígenas, não é
mais uma opção, mas um imperativo.

Bibliografia
BONFIL BATALLA, Guillermo. “El pensamiento político de los indios en
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BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da


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GUZMÁN-BOCKLER, Carlos. Donde enmudecen las conscencias: crepúsculo


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9, n° 1, 2015, pp. 165-206.

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