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limiares

arthur resende
X000x Resende, Arthur.
Limiares./Arthur
Resende. – São João del Rei: 2017.
78p.

1. Poesia brasileira. 2.
Poesia ― História e crítica. I. Título.

CDU
limiares
arthur resende
Indice

07 . Preliminares

Livro I
Passagem entre Deus e o Nada
12 . Autor de meu poema
13 . vocação
14 . formação
16 . irmandade com Álvaro de Campos
18 . prece ao passado
19 . chave-mestra (ou anti-lira da composição)
20 . nascedouro
21 . aprendizagem do silêncio
22 . anunciação
23 . prenúncio
24 . en-canto
26 . Éden ou Ítaca (cartograa de um mito)
28 . no Getsêmani

Livro II
Um Teatro de Eros
34 . Prólogo para um Teatro de Eros (ou o avesso de Dante)
36 . idílio
38 . estâncias
39 . teatro de Eros
40 . olhos nus
42 . meia foto
44 . anelo
45 . imitação de Ronsard
46 . porto
47 . torso belo de Diana
48 . rastro
50 . vigília de uma ausência
54 . romantismo (ou: sonhos de uma noite de verão)
56 . conssão do arcanjo (à guisa de epílogo)
Livro III
Memória das Mãos
64 . mão
66 . pecado original
67 . tempo
68 . memória
70 . destino
71 . 27 de dezembro
72 . a infância que me dei
76 . noturno
77 . res amissa
78 . Stella cadens (uma elegia)
79 . inefável
80 . canto nal (4 negativas)
“Repetir repetir - até car diferente.
Repetir é um dom do estilo.”
Manoel de Barros

“Outros já passaram por esta Senda; por isso, a novidade


de tudo o que eu digo está na força da repetição.”
Jaa Torrano

“Em perpétua mudança, a poesia não avança.”


Octavio Paz
Preliminares
[1] Aquilo que num poeta marca o ritmo, o pulso próprio de sua poesia,
sempre teve algo (senão tudo) da paisagem em que vive o poeta, do ambiente que
o circunda – e pode-se falar aqui de uma “poética da habitação”, do lugar em que
se permanece e se deita raízes. Dessa forma, a poesia de Drummond, por
exemplo, tem algo de estático, quase intransponível, e não é possível ler seus
poemas sem a nítida impressão de estar diante de uma rocha, gigantesca e
inamovível. Já o verso de Vinícius tem música, cadência, movimento, ondulações
típicas de mar, a revolução das marés, o eterno uxo dos oceanos (suspeito que
algo assim como o samba não poderia surgir, ou pelo menos se desenvolver, num
lugar em que não houvesse o movimento do mar). Por sua vez, João Cabral tem o
verso seco, árido, uma linguagem que economiza na saliva, uma voz “sem
diarreia”, como ele mesmo diz no Ferrageiro de Carmona. Portanto, lê-se Minas
em Drummond, Rio de Janeiro em Vinícius e o sertão pernambucano em Cabral.
A poesia está em uma relação de circularidade com a paisagem: ao mesmo tempo
em que abre essa paisagem como sentido, ela (a poesia) já possui essa paisagem
em si. Essa contradição é sua fronteira última, a poesia não pode ir para além
disso e qualquer tentativa de reduzir uma coisa à outra, ou de impor uma
linearidade lógica entre poesia e paisagem (quem vem antes e quem vem depois –
logo, quem é a causa e quem é o efeito) permanece no erro.

[2] Para que se entenda o que denomino aqui por paisagem, é preciso
retornar brevemente aos gregos. Sua poesia é inteiramente paisagística porque é
mitológica, ou seja, ela não se pretende como invenção do “gênio artístico”,
entendido como princípio formal de criação constituído pela subjetividade do
homem, mas vem à luz como aparição e conrmação de um horizonte de
imagens em que já se movimentava a vida espiritual dos gregos: esse horizonte é
o reino dos deuses, o Olimpo. Os deuses não compõem, apenas, uma espécie
“imaginário” popular, do estilo de lendas mal-sabidas ou superstições. O mundo
como tal, entendido como arranjo, disposição e ordenação das relações,
anação de tensões limítrofes (tudo que o grego trazia na palavra kósmos) – esse
mundo era aparição mesma dos deuses. Só que os deuses jamais se mostram
em si mesmos, tais como são. Eles se mostram como mundo, o que signica:
sob a vestimenta da linguagem, do signicado. A linguagem, sendo o modo
como o mundo acontece, são as vestes e as máscaras dos deuses. O poema que
tem como lastro o divino traz à tona a linguagem ela mesma – que é o modo
como o divino aparece. Ao mostrar a linguagem, mostra o mundo: o ciclo das
estações, as esferas celestes e o mundo inferior, o movimento de auto-
reprodução da vida, tal como ele se verica de diferentes formas em diferentes
lugares, e também os homens e suas relações entre si, as convenções sociais
etc. (A poética grega desconhece a oposição entre phýsis e nómos, entre
natureza e convenção. Essa oposição nasce com a sofística e com a losoa)
Paisagem, portanto, é o horizonte pré-xado em que o divino se achega ao
homem, por meio da linguagem, tornado mundo. Sua xação é ela mesma

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poética e, no entanto, a própria poesia a reete – novamente: círculo, impossibilidade
de uma causalidade, interpenetração entre dizer e aparecer, dizer e fazer.

[3] Sem os deuses, a poesia entra em estado de espera


indenidamente – ...

[4] Em um tempo sem deuses, a poesia encontra-se exilada da vida


humana e tornada, quando muito, luxo sentimental de homens imaginosos, ou
talvez a audácia e acidez de alguns engenheiros da comunicação – logo, ela torna-
se por essência marginal, isto é, à margem, à parte da vida e da sociedade
humanas. No centro dessas (vida e sociedade) pôs-se, em primeiro lugar, a
losoa, depois seu correlato natural: as ciências (no sentido moderno de ciência
técnico-experimental). Que o poético-religioso tenha sido substituído pelo
losóco-cientíco, isso não é um fato inocente na história do Ocidente, mas
atesta o processo de nadicação da vida humana, sua crescente e aterradora
desolação – no sentido de “retirada do solo”, do chão, e conseqüente suspensão
sobre o Abismo. Quando o Sócrates platônico cinde, no Íon, a poesia da técnica,
isto é, do saber que se sabe, colocando-a sobre o domínio da “possessão divina”,
ele se denuncia: o gesto fundador da losoa é, ele mesmo, negativo – a poesia
não é um saber, porque seu princípio movente provém diretamente dos deuses, e
não do homem. Dessa forma, o poeta não conhece, mas é arrastado pelo deus no
êxtase. O lósofo conhece, porque é experimentado no acontecimento da verdade,
nela reside e tem transparência disso. Porém, despediu-se dos deuses. Ainda não
se meditou o suciente sobre a mordaz ironia que Aristófanes colocou na boca de
seu Sócrates – talvez para acentuar o fato de que o lósofo, ao dizer não para a
poesia, também nega o Sagrado: “Por quais deuses você pretende jurar,
Estrepsíades? Para começar, em nosso meio (isto é, no meio dos lósofos) os
deuses são moeda fora de circulação...” (As Nuvens).

[5] Deus é linguagem, palavra. O universo innito é o mais profundo


silenciamento. A vida humana ressoa sempre a fala do mundo em que está imersa:
a palavra de um deus ou o silêncio das coisas. No segundo caso, a poesia
consumiu integralmente o poeta − ele é vida imergida no silêncio, e tem de tirar
palavras desse silêncio.

[6] O poeta, portanto, tem de estar silenciado no poema. Nele sempre


vem à fala um outro. Um poeta sem deuses é aceitável − mesmo que seja um mal
poeta. Um poeta que preencha inteiramente o espaço vazio de seu poema apenas
consigo próprio não passa de uma assinatura no mercado editorial. Sacro ou
profano, o poema é o lugar de uma reunião, um chamado para que o outro tome
partido na linguagem (é provável que, sem os deuses, os homens tenham
nalmente descoberto uns aos outros − no fundo, o próprio Cristo já sabia disso...)

[7] O destinatário do poema (aquele de quem e para quem ele fala) não
é esse nem aquele, mas sempre um qualquer. Mas qualquer não quer dizer
“indiferente” − é antes o singular, tal como ele é. Nesse “tal como” reside o enigma

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maior do amor: não se ama isso nem aquilo, mas que o amado seja tal como ele é, e
que a sua existência seja irredutível e irreparável. O poema, onde tem lugar a
singularidade qualquer, é sempre um gesto de amor.

[8] A poesia tem diculdades com o cotidiano se não consegue transformá-


lo, sobretudo temporalmente − relações cotidianas são relações permanentemente
presentes, das quais se ocultou a origem: e isso as tornam automáticas, irreetidas. −
Poesia é, justamente, a memória da origem. Poesia é quando a linguagem faz a volta
(versus). Seu tempo é o que já sempre era antes de agora − e tudo o que é possível a
partir de agora. Mas esse centro, esse agora, escapa-lhe e não pode ser recuperado. A
poesia não pode ser narrativa, se por narrativa entendermos o gesto de atualizar, ir
buscar no domínio dos fatos a ocorrência atual e, assim, informar. A poesia mantém
rme o inatual como medida e parâmetro de toda e qualquer “atualidade”.

[9] A primeira palavra pronunciada talvez tenha sido a única − em todo


caso, sabemos que nada mais resta por ser dito. Está em questão descobrir modos de
repetir o feito, repisar o caminho andado, fazer passar o dito e redito pelo inaudito:
falsicar (falar a linguagem não é outra coisa, aliás). Em momentos de esgotamento e
imobilidade, em que já não se pode ir nem adiante nem para trás, convém, como um
parafuso, girar um pouco sobre si mesmo − para perfurar.

[10] A poesia aguarda no limiar de uma passagem, sem poder sair dali
− ela não vai mais a lugar algum, não sobe para Deus nem circunscreve
estâncias, moradias. Ela canta a innita transição sem destino: sua terra e
memória não são nenhuma pátria, mas os caminhos que não levam a parte
alguma; ela não conhece casas, mas andanças (poeticamente o homem
envereda sobre a terra); sua paisagem é movediça, não permanente; ela é uma
palavra pensada menos com os olhos, e cada vez mais com os pés...

9
LIVRO I
Passagem entre Deus e o nada
autor de meu poema
• • •

Não passo à minha pena


A imagem que me chega à vista.
Eu escrevo como o evangelista:
Porque Deus ordena!

Não trago na escritura


O sentimento que me afeta.
Eu escrevo qual o profeta:
Sou, do Pai, a semeadura.

Não viceja em minha fala


A arrogância do ego ateu:
Escrevo – sem um “eu”.
Um sopro da vida a cantá-la.

12
vocação
• • •

Manejar a palavra-instrumento:

para limar as arestas do mundo;


para abrir caminho entre as gentes;
para cobrir o fosso de nossas emoções;
para escavar ruínas do tempo morto.

Tudo isso nos dá:

o saber, que a todos consola;


os outros, nos quais desaguamos;
o amor, que a todos ilude;
a memória, na qual nos perdemos...

− porém, escapa-nos a ferramenta.

Usá-la é lançá-la fora, no vento.


Retê-la é torná-la sem proveito.

Quem quer agarrar a palavra


não pode, senão, calá-la.

(Cabeça jovem, ainda não entendes


o poder de um sacerdócio, que te oprime
à quietude − mas sentes:
Reter a palavra é despedir-se do mundo;
é estar só ao lado de Deus − e ele é silêncio.

Poeta é alguém que se ausenta...)

13
formação
• • •

comer o pão da fome


beber da água e do vinagre

confundir dias e noites


tornar as mãos inoperosas

adiar o amor
e outras demências

guardar ciosamente
a paixão das coisas vãs

e ter um chão:
para saltá-lo

abrir a terra da língua


para arrancar palavras
como batatas
− pela raiz

tocando a umidade em que crescem,


o orvalho quente da boca,

tirá-las do abrigo secreto


em que dormem e pulsam:

cortá-las, deixar ao sol


para fermentar e renascer
da morte que enfrentam
se as desencavo (do
silêncio, da conversa,
às vezes do dicionário):
palavra pão do espírito.

14
irmandade com Álvaro de Campos
• • •

Descida perene aos infernos


escondidos nas dobras da noite,
nas lágrimas da cachaça
a escorrer no copo...

São sempre muitos olhos


que a espreitar, te requisitam
uma mágoa a mais, uma maldição,
ou que se deite logo o juízo fora
(esse juízo perfeito e inútil
de que tão moderadamente te serves).

O passado, Álvaro, esse não cabe na algibeira...

O passado pesa em nossos telhados


como a chuva espessa de uma manhã
de nados:
inltra e escorre pelas frestas das paredes,
preenche o mínimo espaço entre o agir
e o resignar-se.

Somos sempre os mesmos: nós


que pedimos amor e recebemos
a fria dobrada; nós
que nunca conhecemos
quem tivesse levado porrada;
nós, alheios;
nós, esquecidos.
Pálida sombra de um ideal vencido:
eis o poeta!

16
• • •

Tudo quanto nos deixa, trazemos conosco:


Foi-se o amor, e tornamo-nos líricos!
Foi-se a natureza, e somos bucólicos!
Foi-se o país, e cancionamos no exílio!
Foi-se o deus, e de nossa pena
sai agora o Quinto Evangelho.
Mas o que, Álvaro, nos restará,
quando a ti e a mim retirarem
essa rara e sempre escassa
e fugidia palavra?

Aproxima-te, Álvaro, e ouças


o que já se esconde na rouquidão
de teus versos semi-surdos, entre
o zunir de tua metrópole, e essas
lágrimas que (ouço!) deixas cair:
entre essas linhas está o elemento,
o segredo desses que te seguem
e perpetuam tua desgraça − tão humana:
o poema que vem, feito de sangue
e silêncio, esse poema feito sem palavra
que aguarda inquieto, em estado de crisálida,
a próxima chance de destruir o mundo.

17
prece ao passado
(ou à condição desaparecida)
• • •

O poeta, incitado por Apolo,


conduz o clarão divino
através da noite silenciosa.

Marcado pelos rasgos de seu solo,


ele faz nascer o hino
tal qual o orir da rosa.

Dai-me, ó deuses, o destino


de durante toda a vida
eu não ser senão menino

que na noite enegrecida


maniava o desatino
de cantar – Sua medida!

18
chave-mestra
(ou anti-lira da composição)
• • •

Cada palavra é uma porta.


Cada porta, uma saída.

Em cada saída, um lugar.


Pra cada lugar, uma vista.

Dentro de cada vista, paisagem.


Em cada paisagem, mundo se divisa.

Cada poeta traz a chave


pra abrir a palavra interdita,

palavra fechada a ferro,


que a custo se habilita

a virar palavra-mundo
– Novo fôlego de vida –,

aberta com poesia,


chave-mestra dessa lida.

19
nascedouro
• • •

Entre o dizer
e a hesitação
palavras orescem –
silêncio solene
prenhe
de forças titânicas.

Entre o dizer
e a respiração
o carvão se derrama –
o desenho das letras
pretas
são os contornos do mundo.

Entre o dizer
e a ação
a mão força o traço –
faço
um sol de palavras,
visão das coisas e dos homens.

20
aprendizagem do silêncio
• • •

Melhor se diz quando se cala.


Melhor palavra é a não dita.
Melhor ainda é nem ter fala,
Qual deus que no silêncio habita.

E, não obstante, nós falamos –


E cada qual se julga astuto
Por estar a colher nos ramos
Do conhecimento, o seu fruto.

O que brota do entendimento


Tem no fruto a sua imagem.
Há na Bíblia um só ensinamento:
O pecado original é a linguagem.

21
anunciação
• • •

Há noites em que o mundo


É um bloco maciço, feito
De peso, consistência, tédio,
Monotonia da vista cansada

– Nele, Deus é silêncio.

Até que irrompe, num ressoar metálico,


O nascimento de Deus feito uma fonte
Que transborda para além do que se vê
(Os sinos são sons que abrem a vista).

Deus habita o simples.


Ele mora na visão do novo.

São João Del Rei,


14/maio/2011.

22
prenúncio
• • •

Sentindo a morte em meus interstícios,


Irrompe, em meio à calamidade,
A sutileza da liberdade
Da queda livre em um precipício!

Contando bem com a verdade,


Estou corrompido desde o início.
Cada moção da vida é o indício
De sua inevitável brevidade.

E no instante, mordaz e frio,


Em que me faço essa descoberta,
Vem-me, letal, o inseto de Io

A vergastar-me com sua seta,


Impregnando o meu vazio
Da consciência da morte certa!

23
en-canto
• • •

Fazer poesia
não é coisa que se busque –
não basta vontade rme
nem nada do que se julgue
próprio para tanto:
nem amor,
nem pranto,
nem trejeito de doutor.

Fazer poesia
é descansar na teimosia –
é andar de ouvido,
mas desatento
como quem quer agarrar o vento.

24
Éden ou Ítaca
(cartograa de um mito)
existir é pouco.
o que é a carne?
o que é o corpo?
Endiara Cruz, “existência”.
• • •

E pois, com a nau no mar,


não há mais volta a terra rme −
o lar pretérito, Éden abandonado:
o que deixamos para trás é o que temos
sempre à nossa vista −
circunavegar:
nave a vagar
e circundar
a ciranda eterna dos mesmos portos,
o mesmo horizonte de um mar eterna-
mente móvel e, ao mesmo tempo, uno.

Existir, como tu o dizes, ainda é


pouco: Caminho de Odisseu imperfeito,
Ítaca sempre adiada, o regresso

à origem que não tivemos, plenos


de nostalgia do que nunca foi

(caminho de volta ladeado


de receios: nasce
no coração de quem retorna,
qual jardim de uma só planta,
uma luzente e amarela, a mais
límpida or do medo, de longas,
obscuras raízes que ressecam
solo, língua, olhos, coração)

26
• • •

Mas ensinas também a coragem


que inama velas e ânimo audacioso
e sonhos que transcorrem na vigília
de ton corps, dans la surface
de ta peau, gravado à tinta e sangue:
le coeur qu’aime, n’a pas peur.

Os dias, os signicados, a existência são,


como toda volta, a ânsia de uma chegada,
essa que contas para trás − como quem ama,
e conta o tempo ao revés. Tudo que na vida
não for passagem, provém do maligno.

27
no Getsêmani
• • •

(1) A tentação:
Pai,
afastai de mim essa taça,
fazei com que ela passe
ao largo de mim. Priva-me
dessa amarga bebedeira,
não façais com que eu tome
do sangue e do vinagre...
Pai,
retirai essa taça,
dizeis: “Passa!
Vai,
afasta-te holocausto.
Meu lho tenha destino fausto,
não lhe suceda nenhum ai!”
Pai,
compadeça desse teu lho
e abrandai o caminho,
aplanai o Gólgota
tal como nossas máquinas
aplainam as diculdades,
tornando suave o fardo
a que condenaste o homem...
Todo o meu sangue
suo.
Toda a minha fala
soa.
Toda a minha vida
voa.
Todo o meu medo:
sou-o!

28
• • •

(Oro entre os louros da Glória


conante em um triunfo mundano.
Mas cada gota de sangue ardente
que se precipita da minha fronte
ao abater-se no solo, germina um cardo
com o qual será tecida minha coroa.)

Pai,
toma por Tua a minha vontade,
e queira tal como quero.
Não sejas Tu a querer, mas Eu.
Acomoda-Te à mão humana
e a toda obra que procede do engenho.
Traga a felicidade agora e não depois.
Consagra-Te à ciência que nos franqueia o mundo,
e sanciona o momento em que comemos do fruto
como a hora da salvação.
Vem! Seja Tu mesmo a promessa de felicidade
que devotamos aos aceleradores de partículas
aos tubos de ensaio,
aos tubos de imagem,
à democracia...
Queira como quero,
como peço,
porque assim está escrito:
Pedi e vos será dado;
buscai e achareis;
batei e vos será aberto.

Hoje, queremos e podemos...

Já não quero mais subir à cruz, abdico


de meu suplício em favor
de uma humanidade que condenou

29
• • •

a Dor a vagar errante,


desterrada de seu Éden.
Jardins epicúrios são nossas cidades,
e condomínios, e igrejas...
Nenhum Cristo morto viceja
onde o deleite é a lei.

O letreiro em neon redime Sua palavra:

Que seja feita minha vontade!

(2) A salvação:

O anjo bicéfalo, que a nós


enreda em ambiguidades,
está, sem o saber,
a serviço do próprio Pai.

Quando vem ter comigo neste monte


e força-me a pedir ao Pai
que esvazie o cálice do martírio,
faz-me crer que posso dobrar Sua Vontade
citando-me as Escrituras.
Mas logo abaixo está escrito:
Entrai pela porta estreita,
porque longo e espaçoso é
o caminho que conduz à perdição.
A senda estreita do Pai não dá espaço
aos adereços da vontade, mas antes
os galhos secos e espinhos que o margeiam
dilaceram e retêm o orgulhoso,
inado de vaidade.

30
• • •

– Nada se deve pedir ao Pai.

Vejam essas igrejas,


onde homens e mulheres se debatem
a gritar e a pedir ao Pai
coisas alheias ao Seu domínio −
antros do adversário! Nessas casas
triunfa o espírito de negação,
o rancor e a cobiça de enfermos...

O tempo vindouro pede


que o deus criador se esfacele:
eras sombrias são essas
que nascem da morte de um deus.

31
LIVRO II
Um teatro de Eros
Prólogo para um teatro de Eros
(ou o avesso de Dante)
“L’amor che move il sole e l'altre stelle
Aqui parou, em ponto morto. Nem
Cometas hoje aciona, ou gestos de
Ternura move rumo aos eixos trêmulos
De seres enlaçados; nem desperta
Encantados centauros de seu sono.
Amor represo em ritos e remorsos,
Eros defunto e desalado. Eros!
Eras tão ledo enquanto não pregavam
No cume do obelisco de teu falo
Uma cruz, um talento de ouro, um preço,
Um prêmio, uma sanção... Desaba a noite,
A noite tomba, Iésus, e no céu
Da tarde, onde os revoos de mil pombas
Soltas pelo desejo de teu reino?”1
• • •

O verso de Dante é uma “verdade resplandecente”, como certa vez


armou Drummond. Mas esse amor, que move o sol e as demais estrelas, aqui
parou. “Aqui”, temporal mais que locativo, signica em nosso tempo. O amor,
apresentado pelo poeta orentino como força motriz de todo o universo, hoje
fraqueja a ponto de sequer acionar cometas, os mais rasos gestos de afeto e
reconhecimento. Por outras palavras: o amor situa-se, para nós, no avesso do
local que Dante havia traçado para sua existência: o movimento universal. A
pergunta diante do fragmento apresentado acima, no qual Mário Faustino
captura o nosso “espírito do tempo”, é a seguinte: o que sucede, anal, com o
nosso tempo, a ponto de ele ter retirado ao amor toda e qualquer potência de
atuação? A princípio, para se responder a essa pergunta, tem de se afastar do
pensamento qualquer explicação “psicológica” do amor que pretenda fazer dele
um “sentimento” meramente humano, sempre no m das contas reduzido a
outros tantos (afeição, amizade, desejo etc.). Está dito: amor aqui é Eros. Trata-
se, antes de tudo, de um deus! Nossa era, nosso tempo, é sobretudo um tempo
no qual os deuses foram desapossados do mundo. Dentre eles (talvez, mais que
todos) está Eros. Mas anal, quem é esse Eros? Sim, porque há dois. Hesíodo
nos conta que há Eros nascido de Afrodite Urânia, que porta o encantamento de
sua mãe e o inocula nos mortais com seus dardos. Mas há o Eros primordial,
uma das quatro naturezas fundamentais, a partir das quais tudo devém. Eros é o
ponto de tensão entre Terra e Céu, que os mantém unidos e remetidos um ao
outro à medida que os separa, demarcando através do horizonte sua linha de
separação. A partir dessa união/separação de Terra e Céu, Eros abre um espaço
de jogo em que jogam mutuamente os homens e os deuses, a natureza e a
1
. FAUSTINO, Mário. "O Homem e sua Hora" (Fragmento). In: _____. O Homem e sua Hora e outros
Poemas. Pesquisa e organização de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Cia. das Letras, 2009, p. 93.

34
história − esse espaço é o mundo. Diferente de Caos, potência divina
desagregadora, que extraiu o Céu do interior da Terra, Eros é uma potência de
união. União que não é soma, mas disposição dos limites, das tensões que
retêm juntas duas oposições. Essa concórdia dos discordantes, promovida pela
potência erótica, foi batizada no limiar da losoa grega como Lógos. Costuma-
se traduzir Lógos por fala, discurso, razão, proporção... todas essas traduções
como formas derivadas de uma experiência fundamental: a experiência da
linguagem. O Lógos (linguagem) é “o uno discordante que consigo mesmo
concorda”, numa “harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira”
(Heráclito). Delimitação das oposições harmoniosas, a linguagem franqueia o
mundo. A linguagem é uma potência erótica por excelência.

Se o nosso tempo fez cessar a força de Eros, isso signica que ele fez
cessar o poder da linguagem de franquear o mundo. Amor e linguagem, contidos
em “ritos e remorsos”: o amor, na história do Ocidente, é um discurso para o qual
estamos permanentemente buscando uma gramática adequada, de tal sorte que
mesmo uma ausência total de gramática somente revela que sempre já nos
orientamos na perspectiva de uma. Na sanha de escrever adequadamente o
discurso amoroso, colocamos símbolos em sua fronte: “Uma cruz, um talento de
ouro, um preço, um prêmio, uma sanção...” Cristianismo, capitalismo,
hedonismo do consumo, narcisismo da conquista efêmera: o amor reduzido ao
coito é apenas umas das guras da linguagem reduzida à informação, passagem e
troca de “dados” em proveito de uma rede invisível, na qual jogamos a ilusão de
uma subjetividade, de um “Eu” autônomo, destinado a coisas como “felicidade”,
“prazer” etc. Mas as ilusões com as quais jogamos também jogam conosco. Em
seu jogo, a i-lusão é o próprio vedar da possibilidade de uma luz subitamente
irrompida, que possa iluminar o destino histórico do homem. A luz que falta é
exatamente aquilo que a humanidade pregressa chamava de deus. Na noite cada
vez mais trevosa da ausência de qualquer deus, resta perguntar ao último deles
(Jesus) de onde, no céu, se solta o reenvio do Espírito Santo, uma nova chama de
um desejo autêntico.

É bem conhecida, hoje, a gênese do teatro através dos rituais a


Dioniso. Era a forma concebida para que o culto ao deus da vinha pudesse entrar
na cidade sem que se espalhasse por ela como uma epidemia, arrebatando
homens e mulheres pelo furor extático da embriaguez. Em certa medida, o teatro
é o funeral de um deus ausente. Uma ausência que não pode ser a simples falta
do deus, mas sua presença modicada. No teatro, o deus pode ainda ser visto,
mas não vivido. Um teatro de Eros justica-se apenas na medida em que se
pretende dar a ver o deus longamente ausente, como ainda ausente. A poesia,
manancial em que bebe a linguagem, é, nesse teatro, ao mesmo tempo coro
trágico e réquiem.

35
idílio
• • •

1. descobrir

Recebi de teu semblante os limites


e a cor que tingem a noite
cor-de-fogo, luz e lua
rubra, ígnea
visão que me desperta o verso:

e a minha palavra se turva de vermelho


como teus cabelos.

2. encontrar

Moramos, vizinhos, nas cercanias


do Verbo − mutuamente invisíveis:
cada qual virado sobre si, na eterna
queda de braço com o silêncio
que esvazia a vida, faz do humano
casca, oco, vento − linguagem.

Até o destino lançar


o azo: lado
a lado nos vermos −
umbilicalmente ligados
à palavra

(quer sejam cantos itabiranos,


quer sejam cartas de um poeta alemão).

36
• • •

3. perder

Segui-te pelos labirintos do tempo,


em vão: perdi-te. Em algum beco
sinuoso do sinistro passado, um
Minotauro (monstruosa gura)
simula tua prisão. Tens a cabeça
voltada para trás e, caminhando ao revés,
retornas sempre ao cativeiro que não existe.

A quimérica criatura separou-nos: guardei


posição e fé rente à porta de saída, onde lê-se,
no umbral, o o de Ariadne que leva para fora:
ninguém volta ao que acabou.

37
estâncias
• • •

Estarás presa para sempre


na letra eterna de meu verso.

A gura que caminha pelo mundo,


é um fantasma de sonho e deserto.

Torno-te em duas para enganar


o olhar dos mortais dispersos,

mas, em verdade, estás aqui,


vives no verso que escrevo.

E malgrado teu corpo me fuja,


mantenho o secreto anelo

de ter teu corpo divino


trancado na letra do verso.

38
teatro de Eros
• • •

não é possível cantar o amor,


só é possível cantar a perda
do amor,
porque cantar já é perder
e deixar morrer, declinar.

o canto é o abrigo do que se foi,


o canto é o lembrar do que não é mais.
a palavra é coisa morta, estanque.

a poesia é o túmulo do amor em todas as eras.

• • •

não posso cantar sua presença


amada.
se canto,
já não estás comigo,
mas diante de mim.

seu amor deixa de ser


o hálito quente do beijo
para passar ao sopro frio do canto.

cantar-te já é perder-te.

São João Del Rei, 07/jul./ 2011.

39
olhos nus
• • •

Diante de ti,
de olhos nus,
despido até mesmo
de minhas ilusões mais tenras e duradouras.
Confuso, na noite iluminada de teu riso,
meu pranto não desce
nem a palavra soa.
Ficam ecos de fantasmas,
a vista turva e um gosto
acre
e um lugar sem horizontes.
Devo vestir meus olhos nus...

– O amor como espécie de miopia.

40
meia foto
• • •

I.
Segundo plano, à direita,
domina a paisagem inteira

os giros de pernas e braços.


Inteiro movimento aprisionado

nas dobras da carne, na saia


movida na dança estática

que ensaias, sem demorar-te,


sobre o teatro da eternidade.

Vejo a voz que te escapa,


o teu dizer sem palavra;

o teu andar sem cansaço


na superfície do meu olhar
iluminado.

42
• • •

II.
Na fala seca, resumida,
uma lição de teologia:

− O movimento, em Deus, é estático.

Assim completa, repousas


no eterno jogo de luz e sombras,

à semelhança do divino ato:


o mover-se como de um salto

em que não se sai do lugar,

nem se altera, nem se desloca.


Contudo, preserva-se toda

na mais perfeita cinese


que escapou a Aristóteles:

o mover-se em si da beleza.

43
anelo
• • •

teu corpo
teu corpo
teu corpo
de sonho
esguio
no frio
da noite
(que sorte!)
me esquenta,
arrebenta
as artérias,
o sangue,
as vias,
entradas
abertas,
entradas,
saídas,
entradas,
saídas,
gemidos,
suspiros, no sonho
delírio que tinhas
do gozo contigo,
(que esforço!) sentias
tão pleno,
sentias
tão perto
meu corpo
meu corpo
teu corpo
meu corpo
teu corpo
meu corpo...

44
Imitação de Ronsard
• • •

Vem, meu amor, e veja como a or,


Que ora, em março, abriu-se juvenil,
Agora ndos os idos de abril
Já não conserva nem cheiro, nem cor.

O velho Tempo a tudo faz senil!


Não poupa nem as delícias do Amor,
A quem empresta – com certo rancor –
Sua velhice, rabugenta e vil.

Reete, minha amada, em tudo isso:


Em como o Tempo traga a mocidade,
Roubando em tudo a beleza e o viço.

Se nos amamos, ’inda em or da idade,


Antes que o Tempo ao Belo dê sumiço,
Me entregue, pois, a tua virgindade..

45
porto
• • •

diva nua no meu leito.


deito sobre teu peito
branco
como o leite,
e vede:
sou criança que quer voltar
ao primeiro leito de todo homem
(sinto que morrer é como voltar
para antes da vida, e não depois).

abrindo as pernas em arco,


ancoro em ti o meu barco.

vou mandar tatuar-te um letreiro que diz:

“teu corpo,
meu porto”.

Pará de Minas(MG), 22/jan./2012

46
torso belo de Diana
• • •

O teu torso permanece oculto,


ó Virgem, dona dos calmos rios
e das bestas.
No entanto, o vigor de teu entalhe
na curvatura rija que te desenha os quadris
pesa sobre mim e enverga-me no chão,
forçando-me a lembrança de minha essência humana
– pó.
Teu torso, rme e opressor, infranqueável
casa da virgindade obstinada,
Teu torso que não se abre, pleno de expectativa e desejo,
imagem plasmada na pedra, como o ajuste de minha
[virilidade
− impotente.
Teu torso abrupto, cortante, que dilacera
a palavra que te tenta dizer – nenhum mortal
jamais há de vê-lo, ainda que sob o enleio do canto.
E ainda assim, tento esculpir-te
na penúria das palavras que me faltam
e se esvoaçam, na visão (mortal) de tuas formas.

47
rastro
• • •

A experiência do esquecer
– Mão dupla, que despista –
Aind’ ontem achou-me a vista
Como um rosto de mulher

Olvidado, mas que achado


No lembrar de um amor calado
E pueril.

Que força estranha faz reviver,


No limite de lembrar e esquecer,
O que se viu?

Aind’ ontem lembrei teu rosto


Mas me esqueci quem você era.

No meu peito, deixaste posto


Velha Memória, esta megera.

Formiga (MG), 30/dez./2010.

48
vigília de uma ausência
• • •

I.
O meu amor ainda cabe
Nessas palavras vãs.
O meu amor ainda cabe
Nesse silêncio teu.
Nessa indiferença ainda
Cabe esse meu amor.
Cabe o meu amor ainda
Nos beijos todos que
Nunca poderei te dar,
E nas cartas de amor
Que nunca eu escrevera,
E também nos meus porres
Doidos, que eu tomaria se
Ainda fosse doido.
Cabe, o meu amor cabe
Nas minhas horas, nas
Gavetas do meu armário,
No meu trabalho, nas
Noites de insônia e nos
Sonhos que ainda tenho.

Meu amor ainda cabe nas letras


De todas as canções.

(Meu amor ainda será


Qualquer coisa que dure
Sempre. Meu amor será
Eternizado nas folhas
Dos meus cadernos,
Na secura ngida
Dos meus olhos e nas bocas
De mui outras mulheres).

50
• • •

Num coração cerzido


Com um apo de esperança –
O meu amor ainda cabe.

II.
Eu penso, e você ainda está comigo.
Pensar em ti é ter-te de novo ao meu lado.
Posso ainda pensar-te – isso ao menos a vida deixou −
E o meu pensamento é todo meu exterior.

Quem me dera eu fosse todo pensamento,


E as coisas que estão cá fora
Não fossem senão minhas ideias
E cada ideia minha não ser senão
Uma fotograa tua.

Os braços prendem, as bocas beijam,


Todo o corpo é deleite vão.
Só quem ama é o pensamento.

III .
Numa noite assim, qualquer,
Em que o mundo é dança e salto,
Me peguei sonhando alto
Com um rosto de mulher.

Sendo alheio à religião,


A seus ritos e mistérios,
Foi que ergui um altar a Eros
Dentro d’um templo cristão.

51
• • •

O deus – nem sei bem qual –


Me puniu severamente.
Disse: “A esse inconsequente,
Que esquecera que é mortal,
Darei tormentos sem igual.”
E assim voltei, humildemente,

A ser aquilo que já era,


Mas agora com a dor
Que conservo em meu semblante
De quem foi um dia amante
Mas perdera o seu amor
E agora só espera.

O destino é algo divino! – Assim eu o penso, às vezes:


Amar e perder o amor – por nada entender dos deuses!

IV.
Sumiste, e uma luz se apagou.
Na treva, resplandecem teus olhos
Enormes e circulares, vigiando
Meu sono intranquilo.

Durmo – o mundo inteiro é sono.


E a pulsão que anima o íntimo
Das coisas e dos homens
Emudecera para mim.

52
• • •

Pela manhã acordei e já não era eu.


Tinha no rosto uma velhice que não era minha
(Há manhãs que pesam como uma vida
e tornam as possibilidades seres mais reais
que as paredes de pedra).

Pela amplidão do meu quarto, que a solidão fez


enorme,
um hálito quente se me escapa, como se
expulsasse a alma fora, e enterro os olhos úmidos
sobre o travesseiro manchado.

(A ausência dela contém um silêncio


capaz de derruir um mundo).

Soluços são falsos prenúncios,


anunciam a súplica que não virá:
Pela fenda em que a dor joga com a lembrança
palavras não conseguem passar.

53
romantismo (ou: o sonho de uma noite de verão)
• • •

eu não te amo por me teres


levado a crer que a felicidade
é o curso das horas, dos dias e dos anos
que se pudesse passar ao teu lado.

eu não te amo pela promessa de aventura que encerras,


nem pela prole que em ti espera, como possível.

eu não te amo por me seres el.


eu não te amo por me traíres.

(não amo, sobretudo, o ideal de mulher


gravado a sangue e ódio sobre as consciências,
com o qual se comprime a existência indivisível)
eu não amo os teus olhos que são doces,
nem teu ventre, berço
de inúmeros desejos e angústias.
o meu amor nada sabe da tua pele,
nem descobre o gosto que têm
tuas dobras e aberturas, ainda
que o meu corpo insista em
misturar-se no teu − essa provisória
solução da repartição das almas, insolúveis
entre si até a consumação dos tempos.
eu não amo a tua saliva − água do mar,
que resseca quem dela bebe.

eu não amo a inteligência com que discernes,


ou a justiça com que punes, ou a clemência
com que perdoas − nem teus gestos, nem
tuas palavras, nem o modo como olhas,
desfolhando a alma das coisas.

54
• • •

o amor é uma espera − por nada

aguarda inquieto, na
ante-sala da eternidade, o enlace
a um só tempo denitivo
e impossível.

na falta e na cama, o amor dilui


os pesos e medidas dos adjetivos,
apaga a lousa, retorna ao branco intacto
da folha de papel não maculada
pelo desejo da linguagem.

a pura presença sem qualidades é


o único objeto do amor: essa estranha
oração que a alma reza sempre a sós,
sem santos nem clamores − apenas
com um eterno
AMÉM
vibrando nos lábios semi-abertos
(promessa do beijo irrealizado).

55
conssão do arcanjo (à guisa de epílogo)

• • •

− Deixei, vazio e melancólico, o local de nosso último


[encontro...

Como deixei o desejo por tua pele


em suspenso na noite, recluso
na escuridão de meu espírito.

Como deixei nossos corpos, próximos,


caminharem no silêncio, à espera da
palavra que abre a or de teu beijo.

Como deixei teus olhos me abrirem


a face triste e descarnada, em busca
d’algum sinal de meu amor latente.

• • •

Entre as luzes trêmulas da noite


desci, arcanjo, para anunciar-te meu desejo
− Mas falhei.
Deixei-te apenas com esse silêncio,
esse onde moram todos os deuses que se foram,
as profecias não cumpridas e as bocas
que caram por se encontrar...

Caminhamos, desalados, eu e Eros


entre as cidades desse mundo caduco.
Ele é agora qualquer menino de rua,
esfomeado e maltrapilho,
que empunha um cartaz pelas sarjetas:

Amar é ter medo.

56
Não é qualquer coincidência que as representações tardias de Eros,
lho de Afrodite (na tradição latina nomeado Cupido) sejam muito próximas da
forma convencional do arcanjo. Nelas, o amor é apresentado, e mesmo
intimamente compreendido, como um anunciador: Eros é o portador de uma
imagem que ele anuncia e proclama perante aquele que ama. O amante é aquele
que está enleado por essa imagem, foi por ela capturado e a tem em vista
permanentemente. Por isso a representação tradicional de Eros como um jovem
anjo, munido de dardos os quais dispara inconsequentemente: os feridos de Eros
são acometidos por uma imagem proclamada, trazida pelo deus.

Mas a imagem de algo ainda não é esse algo.

Eros lança o amante na tormenta da ruptura entre a imagem amada e o


sujeito dessa imagem. Essa é a contradição amorosa por excelência: o amante
busca em uma imagem aquilo do qual se faz a imagem − a paixão de Pigmalião
por sua estátua de mármore, ou a loucura de Narciso pela imagem de si mesmo
reetida na superfície d'água. E em ambos os casos, quando o amante atira-se
sobre o sujeito à procura da imagem, encontra a morte: Narciso afoga-se no
lago; Pigmalião enlaça um frio bloco de mármore sem vida e, portanto, sem
amor.

Sem meios de apreender o sujeito da imagem amorosa, o amante


permanece preso a um signo, que toma precariamente as vezes daquilo que é
amado. O amante está jogado no ponto extremo da linguagem: a fratura
imposta entre o signo e a coisa. Amar algo ou alguém é signicá-lo, isto é,
literalmente “fazer dele um signo” (signa facere). O amor solicita uma estância
da linguagem capaz de reunir e cerzir os polos de sua fratura, o signo e a coisa, a
imagem amada e o sujeito dessa imagem.

Uma tal estância pode ser a poesia: “Como se ela restituísse”, escreve
Arnaldo Antunes, “através de um uso especíco da língua, a integridade entre
nome e coisa − que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de
separar no decorrer da história”2. Se o discurso poético é não só aquele
característico pela cesura costurada entre forma rítmica e semântica (a
“permanente hesitação entre o som e o sentido” [Valèry]), mas também aquele
que costura uma cesura entre signo e coisa, entre palavra e mundo, no qual este
é fundado e manifesto por meio daquela, então o amor tem lugar por excelência
no discurso poético − fato que não pode mais ser considerado como
“ocasional”, como simples acidente na história da literatura. Que o amor tenha
lugar privilegiado na poesia, isso não é da ordem de uma escolha aleatória de
“temas” para a composição poética. O amor encontra, no discurso poético, um
lugar de restituição entre a imagem amada e o sujeito dessa imagem − a fratura
aberta pelo anúncio do arcanjo Eros é cerzida, o amor encontra seu sentido, seu
Lógos mais próprio. O poeta é o amante que pode apoderar-se da imagem
2
. ANTUNES, Arnaldo. Como é que Chama o Nome Disso (Antologia). 2.ed. São Paulo: Publifolha, 2009,
p. 323.

58
amada sem morte, ainda que não desfrute do sujeito da imagem. A imagem
amorosa, antes tencionada entre mim e o outro, seu sujeito, agora ganha lugar: o
altar de uma eternidade frágil, transitória − a “letra do verso”3.

O declínio que todo discurso poético enfrenta atualmente, de maneira


praticamente irreversível, impõe uma ausência de lugar ao amor. O amor não tem
lugar, ele torna-se u-tópico. Isso não deve signicar, de maneira alguma, um
suposto “declínio” das relações humanas − nunca é demais ressaltar que essa
consideração não possui qualquer relação com a “moralidade” e os costumes. O
amor jamais tem lugar na posse do outro, mas na estância poética que, ao
apoderar-se da imagem amorosa, transgura-a: abole-se a distância entre imagem
e sujeito da imagem, e o amante desfruta da imagem amorosa como desfrutasse do
corpo amado − esse que sempre nos escapa. A u-topia do amor acena para uma
incapacidade fundamental de se unir imagem e sujeito, signo e coisa, palavra e
mundo. Sem poder reunir pela palavra poética a fratura imposta pelo anúncio de
Eros, abandonamos a imagem amorosa em favor da posse transitória dos corpos. O
arcanjo falha a anunciação, perde seu poder e suas asas.

Faltou a Heine, em sua história dos deuses exilados, contar a história de


Eros. Talvez um esboço dessa história possa ser aqui tentado: Eros abandonou as
colinas e os campos, e voltou ao convívio de sua mãe, que depois o rejeitou. Tudo
que deixou pelo mundo foi lido, primeiro, como uma forma de doença, depois como
loucura, por m como motivo de riso e escárnio. Sem morada na qual encontrar
abrigo, Eros caminha pelo mundo sem descanso. Está magro e ressequido, mas
ainda travesso e sorridente. O sorriso de Eros, no entanto, amedronta. Como o
andarilho de rua que se tornou, o amor, quando nos aborda, apenas nos provoca
medo e uma ânsia de nos desviarmos dele, de voltar os olhos para o outro lado.
Eros é um pária, está excluído da “boa sociedade” − sem chance aparente de
remissão.

3
.A única, ou talvez a principal investigação sobre o lugar privilegiado do amor na poesia foi levada a cabo
por Giorgio Agamben no ensaio "A Palavra e o Fantasma: A teoria do fantasma na poesia de amor do
século XIII", que aparece como a terceira parte do livro Estâncias (cf.: ed. bras.: AGAMBEN, Giorgio.
Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte:
UFMG, 2007, p. 117-214.). .

59
Para Alison Oliveira,
δημιουργὸς καὶ ποιητής.
LIVRO III
,
Memorias das maos
mão
• • •

I.
À mão
o homem tem um mundo
em torno.
Dito e disposto
o mundo fosco
lhe atente à palma
estendida,
pendida no nada
de todas as coisas.
A mão
do homem faz aquilo
que lhe vem ao encontro
– faz palavra, coisa e mundo
e deixa um sentido raso
a ser escavado
mais fundo
por outras mãos.

II.
As mãos dos homens são temidas
por seus poderes
e seus revezes

– as mãos dos homens


são os verdadeiros deuses.

64
• • •

III.
Mão fechada
– enigma.
Mão aberta
– ato.
A cada ação da mão
um novo parto,
e uma superfície
nasce do abismo.

IV.
Homo sapiens,
faber,
ludens...
Em todos os nomes
dos homens,
a designação muda
de nossa origem oculta:
Todo humano
– Homo manus.

65
pecado original
• • •

Adio indenidamente
talhar o torso de Minerva
reluzente em meu espírito.

Deixo longamente repousar


a Catedral etérea
na guração do ânimo.

Mãos em estado de contínua


espera...

O Tempo se encarrega de comer


memória
ou mármore,

e as formas, cada vez mínimas,


partem-se em mãos deformadas
rostos sem nariz, os portais
desgurados, uma coluna corroída.

Uma Vênus
sem braços
esculpo
e depois
me culpo.

66
tempo
• • •

Eu tenho o ontem como que um sonho,


Que à noite vivo, e de manhã abandono,
Deixando a imagem que lhe componho.
– Não há distinção entre a memória e o sono.

Todo o passado é uma gura baça


Que mais se assemelha a um devaneio.
Não distingo a lembrança que me veio,
Do delírio que invento e se esvoaça.

Quando penso que vivi bastante,


Momentos únicos e tão diversos,
Apenas me ilude o tempo perverso.
– Eu vivo sempre o mesmo instante.

67
memória
Para meu pai.
• • •

a persistente visão
dos espaços desaparecidos:

a antiga rua, submersa


aos automóveis, a velha

casa adormecida sob o edifício,


o trampolim que emerge (invisível)

da areia rente ao mar.

movo-me nos caminhos antigos


e meus pés sentem as pedras
por baixo dos tapetes de asfalto
e a bola me roça novamente os dedos
e sou de novo o menino preto, corrediço,
tomando guaraná sentado na esquina
hoje impossível.

aquela esquina da rodoviária tem,


traçada no vento, a lixeira
em que comi quando mendigo.

(toda noite aqui é fria.


toda noite daqui tem
um pouco daquelas noites
em que dormia ao relento)

ouço as vozes do antigo mercado de peixe,


vejo as pessoas passarem nesse espaço vazio,
o mar ainda marulha sob o concreto do Niemeyer.

68
• • •

a memória me desenha uma cidade


sobre a cidade,
como um mapa rabiscado em minhas retinas
e aqui eu vejo a realidade das coisas mortas:
mergulho a cidade nova no esquecimento,
e deixo surgir a cidade velha, que aqui deixei
e na qual hei de car pelos tempos.

69
destino
• • •

dou aos meus versos


o mesmo destino que
têm meus sentimentos:

a velha gaveta do esquecimento.

a salvo da perda irremediável


que contamina tudo que nasce,
sentimentos e versos pascem
à sombra da eternidade triste
− que não existe.

70
27 de dezembro
• • •

O silêncio da morte cobriu teu aniversário.


Como as folhas amarelas se acumulam pelo chão,
no outono,
O manto cinzento do esquecimento
– Com o qual a morte nos cobre –
Fez sumir detrás de si a alegria de teu nascimento.
E a chuva que cai neste dia
Repõe as lágrimas não choradas.

71
a infância que me dei
• • •

O menino que eu fui


andava pelos cantos
c’os braços para trás,
as mãos rmemente contidas
e os gestos sufocados – um desejo
de simplesmente não estar.
Trazia nos olhos uma ausência
que carregava como distintivo,
levava a toda parte uns olhos baixos,
um silêncio estranho,
um dizer ainda mais estranho,
uma alma mais velha que o corpo,
a hibridez de um ser partido pela morte.

Compensava tudo jogando bola,


na terra, na areia, na pedra:
os pés estrupiados e o sangue no dedão do pé
eram quase uma medalha;
o gol olímpico feito na baliza torta
de madeira de eucalipto
era um passaporte – rompia
o silêncio que a timidez mantinha.
Não tinha muitos amigos, mas
adorava os que tinha,
olhava a vida com uns olhos
de eterna esperança, de futuro,
amava papai e mamãe,
brigava com o irmão,
c’os primos, c’os vizinhos,
e nunca sabia o que dizer na frente de uma
menina...

72
• • •

O menino que eu fui


espreitava as pedras,
os postes e bocas-de-lobo,
suspeitava imagens e heróis
por detrás dos girassóis,
adivinhava o riso de donzelas
e, sem que elas soubessem,
roubava um beijo a todas elas.
Desencava tesouros
entre os automóveis,
venturas a cada chuva,
amores a cada festa −
via e tocava e amava
o invisível que está sob a pele
de tudo quanto brilha ao sol
e assim reveste o mundo,
como áurea.

O menino que eu fui


não tinha vista pros adultos.
Porque pr’ele, gente grande
eram crianças sem memória.
O sono de uma infância
era o mundo dos negócios
dos trabalhos, das carrancas...

O menino que eu fui... ao longe, bem o vejo...


Ele olha pra mim, quando eu volto a cabeça
por sobre meus ombros,
e faz um gesto negativo com a cabeça
quando eu adulto, sério e responsável,
soterro nas urgências qualquer promessa de beleza
com minhas obrigações cotidianas.

73
• • •

E eu lhe peço paciência,


porque me perdi um pouco
e me vesti um traje de homem
para tentar cobrir as faltas de minha infância,
quando eram elas que me zeram
a palavra que soa no vento e canta
a delícia e o terror da vida –
doce e travessa, como toda infância.

74
noturno
• • •

Bem pouco tenho a dizer:

A vida é triste e é vã.


A vida é como uma irmã
mais velha, que nos molesta.
A vida é uma quase moléstia
que felizmente a si mesma se cura.

Há ainda os remédios
aos que têm pressa:
cianeto,
cicuta,
acônito,
arsênico...

(Nossos melhores amantes


tornaram-se esquizofrênicos!)

76
res amissa
para Christiane Costa
• • •

não mais aquele que


com palavras agarra
kairós −
o antigo senhor do tempo oportuno,
hoje alheio-aéreo, expulso
de todos os tempos e direções.

sobre quem se abate o verso,


como destino − entende de perdas,
contém ausências, canta o desaparecido,
exercita o solene gesto de deixar passar
o azo,
e abrindo as mãos deixar que escorra, por
entre os dedos, o instante irrepetivelmente feliz

(aprender que a palavra, descompassada com a vida,


chega sempre demasiado tarde).

deixar os seus por vocação, estranhar as faces


das cidades e dos homens, exilar-se na pura
memória para viver de seus vestígios:

existência distendida. suas duas faces miram, de


lugar nenhum: o passado morto, o porvir incerto.
o presente está irreparavelmente perdido − em
nenhures o canto pode alcançá-lo. de lonjuras
se alimenta a poesia.

quando poema, o humano


é a medida de suas perdas.

77
Stella cadens
(Uma elegia)
à memória de Stella Sampaio
• • •

a morte consolidou
o silêncio, suspendeu
as palavras, deixou
nosso próximo encontro
innitamente adiado,
sua presença innitamente
passada.

o tempo comeu-me a lembrança


de tua voz e de teus olhos,
capturou em algum lugar, pelos
becos da memória, a noite
de nossa única conversa −
restou, como sempre, um lugar vazio,
esse insondável ancoradouro das coisas
que caram por acontecer, donde acenam
os fantasmas de um futuro natimorto.

és, agora, Estrela: visível, porém


intocável. te encontraste
com teu próprio nome − sempre fatal
a hora em que somos exatamente
como nos chamamos, mas o mais alto,
para o humano, é que o Nome seja um destino.

morrer é passar do mundo à linguagem −


é morar nas palavras, dormir no alento divino...

09/set./2015.

78
inefável
• • •

Eu tenho uma tristeza muda


que cala aquilo que diz,
e que se oculta
quando se confessa
ao amigo que a escuta.

Eu tenho uma tristeza muda


que usa disfarces vários:
palavras, versos
e meus resmungos diários
lhe compõem o vestuário.

Eu tenho uma tristeza muda


que não sabe o que fala
mas na fala se esconde
e se tranca em algum lugar,
nem sei bem onde.

Eu tenho uma tristeza muda


que não muda.

79
canto nal
(4 negativas)
• • •

I.
deposta a vaidade
e nos resta apenas
os ossos. um hálito
vão é toda aspiração.
os desejos preenchem
os vazios do mundo.
realidade, para nós, é
tudo quanto a vida diz
NÃO.

(todas as ocupações, todos os cargos,


e todos os chefes e subalternos,
e todos os amores eternos
e os rótulos das propagandas
são desvios que não levam a parte alguma –
senão
a nada.

o nada que és e te impregna – que tem algo


do cheiro ruim da morte...).

80
• • •

II.
a página em branco
a faca sem corte
o copo sem borda
o prego sem ponta
o lápis sem ponta
a memória sem fotos
a parede vazada
a palavra não dita
a fonte estancada
a torneira seca
o corpo sem o outro
o amor sem o outro
o outro fora das jaulas
das conexões em rede
em sua selvageria viva

(ou ainda qualquer metrópole


sem eletricidade, imersa
à revelia na escuridão original,
para a qual não foi feita)
...

as inúmeras impossibilidades
que o mundo contém em segredo −

e que a vida assim se produza


é quase um milagre.

o estado das coisas e das chances


é quase líquido, é quase não,
é quase...

topamos com um nada em cada gesto.

81
• • •

III.
o rei Édipo
tinha os dois olhos sãos
mais os olhos da razão
e não via.

foi na treva (do espírito e do corpo)


que aprendeu a ver.

a cegueira da luz é a pior,


faz pensar que vemos algo.

IV.
meu bom deus,
colha-me do jardim do mundo
e transmuta em mim essa pobreza.
lembres que sou homem,
feito de pó e palavra,
e devolvas, assim, o pó a terra
de que pertenço,
e minha palavra, deixai soar
indenidamente
nos grandes silêncios da humanidade.

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