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RODA DE CONVERSA COM RENATO NOGUERA

A Casa Escola, no dia 5 de agosto, teve a alegria de receber o Filósofo Renato Noguera*. O espaço,
que cotidianamente é ocupado pelas crianças e suas brincadeiras, tomou nova cor para celebrar esse
encontro nos possibilitando olhar para o passado e desejar um outro futuro. Panos africanos,
almofadas coloridas, uma poltrona especial e flores davam as boas vindas para o professor, contador
de histórias e de sonhos. Ele trouxe para o debate seu conhecimento sobre afroperspectividade,
infância, realidades de outras culturas entre outros temas. Ficamos desacomodados, instigados,
inspirados… Nada mais será como antes. Sua fala nos atravessou.

Renato traz para a roda seu entendimento de infância como um sentido que nos constitui. Assim
como o olfato e a audição, por exemplo, a infância está em nós o tempo inteiro e não apenas
passamos por ela em determinada fase da vida. Essa colocação nos possibilita estar no universo
infantil a partir de um lugar de igualdade com a criança e isso nos abre mil questões e
possibilidades. Qual o conceito de infância que queremos?

Infância vem do latim “Infantia – aquele que não fala”. Nessa concepção a infância é o momento
da vida em que a criança não tem voz, não tem fala, logo, é necessário a presença de um adulto que
garanta sua tutela, que diz por ela. Na Casa Escola não queremos esse sentido de infância. As
crianças são protagonistas de sua vida, de sua história e de seus desejos. Entendemos que o adulto
que deve estar próximo a elas é uma ser humano atento, que está ao seu lado para apoiá-la e motivá-
la em seu percurso ímpar.
Pronto! Foi iniciada a reflexão e o olhar para nossa prática desponta em cada colocação do filósofo.

A partir da reflexão sobre o desenho de “Kirikou e a Feiticeira” ele nos apresentou a violência a
partir de um outro ângulo. Afirma que somos capazes de termos atitudes violentas devido a pressões
e sofrimentos que guardamos. Quanto maior o grau de frustração de uma pessoa mais chance dela
despejar no outro suas mazelas. A dor gera violência. Outra reflexão aparece para nós pais, mães e
educadores: nossas frustrações podem se impor como limitadores para as crianças?

O professor também nos apresentou o conceito de Scholé, uma palavra grega que significa o tempo
do ócio e que deu origem a palavra escola. Scholé era o espaço, entre os gregos, da aprendizagem
livre, do lugar que não era preciso fazer nada para mostrar a ninguém, o espaço de ser sem ter que
mostrar resultados. Tempo livre para ser o que se quer. A palavra escola, que tem origem em
scholé, parece que trilhou rumos bem diferentes, acreditamos que até opostos ao seu significado
original. Nós da Casa Escola ficamos felizes em reconhecer nesse significado do tempo do ócio, o
tempo que reconhecemos como importante para nossas práticas.

E o tempo… Tempo. Tempo. Tempo. "Exú acerta um pássaro ontem com a pedra que atira hoje"
Estamos inserido em uma única lógica temporal, a cronologia. Uma coisa depois da outra, começo,
meio e fim, cronos… Mas para filosofia existem outras possibilidades de temporalidade. A criança
sabe bem disso vivendo sua intensidade no tempo Aion. Mas aprendemos isso onde? Sentimos isso
como? A lógica da escola é a lógica do capitalismo, da produção, do resultado. A escola é
cronológica, mas a criança não. Como respeitamos o tempo da criança então?
Ficamos com mais uma indagação já que na lógica euro centrada não fomos apresentado a outras
possibilidades de tempos.

Renato trouxe histórias, contos, experiências, lembranças de práticas educativas de diferentes


territórios e contextos culturais. A infância, a brincadeira, o papel do educador tem diferentes
significados dependendo do lugar que estamos. Entendendo isso, percebemos que nós, pautamos
todo nosso conhecimento em uma mesma lógica e contextualização: a eurocentricidade. O que
aprendemos na escola e nos espaços culturais em sua maioria, legitima o saber e o fazer branco e
europeu. A história do nosso país e do nosso povo chega a nós pelo viez e pela caneta do homem
branco. Diante disse temos uma questão a ser tratada que exige que nos aprofundemos nela: nós só
conhecemos um lado da história, uma maneira de educar…

Mas apesar de só conhecermos um lado da história construímos possibilidades outras. Novos


olhares procuram por frestas para sair das generalizações. Frestas por onde buscamos enxergar
outras lógicas, outros modos de viver. Ana Paula Venâncio, professora alfabetizadora do ISERJ,
estava no encontro e também contribuiu contando um pouco de sua experiência com as criançase a
filosofia Ubuntu. A professora trabalha a partir de uma filosofia que não está no centro, trazendo
para o círculo, para a roda, perguntas. Abre a escuta para inúmeras vivências infantis, tecendo
saberes e fazeres que foram costurando e pintando com cores ancestrais em panos circulares, que
giram misturando todas as cores, que vão ocupando os lugares das carteiras imóveis, do quadro
estático. Valoriza os encontros, as conversas, as dúvidas, os saberes de cada um e de todos. As
palavras aprendidas representam toda a dinâmica vivida coletivamente. Exemplo lindo e concreto
de que nas frestas vamos enredando saberes outros.

E pensando em saberes outros, voltemos ao Renato que seguiu nos contando inúmeras histórias,
entre elas a de que para alguns povos não faz sentido a palavra orfão. Uma criança não fica orfã
porque na sua comunidade todos são responsáveis por ela e não apenas seus pais. Isso muda todo o
sentido da educação. Renato possibilitou que conhecessemos outros significados para termos que já
naturalizamos tanto… Suas abordagens são feitas a partir do seu olhar de griot, de herdeiro de uma
cultura, da sua afroperspectividade.

Renato nos convida a dialogar e a brincar o tempo inteiro. Nos desloca. Tira a escola, o adulto, o
conhecimento científico do centro da questão. Amplia nosso olhar e pensamento quando questiona
os modelos tradicionais de educação pautados no eurocentrismo e na reprodução de saberes e
conhecimentos tão distantes de nós.

Existe uma outra perspectiva possível… Queremos mergulhar nela.

Nós reconhecemos a necessidade de pautar as relações etnico-raciais, a infância e a potência de


práticas educativas que estão buscando sair do modelo hegemônico de educação.Várias
inquietações nos atravessam cotidianamente e entendemos que precisamos estar juntos, visibilizar
distintos saberes e perspectivas para ampliar nossas práticas.

Renato Noguera, foi muito generoso. Nos falou de um tempo alargado e de intensidades e nos
permitiu experimentá-lo com sua fala sem pressa. Um encontro que nos encharcou de referências
outras, que nos ampliou a bibliografia e escureceu nossos saberes. Em quase quatro horas de
conversa suave, com exemplos de outros povos e de sua própria vida, ele nos tocou, nos apontou
caminhos e descortinou novas perguntas. Sem pressa, sem prescrição, sem julgamento e sem
arrogância acadêmica, esse mestre nos guiou por um caminho diferente.

Essa roda faz parte de nossas estratégias para, juntos, construirmos uma prática pedagógica anti-
racista, visto que nosso desejo é empretecer nossas ideias, conhecimentos e práticas trazendo o
referencial do negro em todas as áreas possíveis para estar na Casa Escola. Queremos cada vez mais
conhecer, discutir e viver os valores do povo negro e viver a perspectiva africana como algo
importante, apesar de invibilizada, contribuindo para ampliar nossos conhecimentos acerca da
história do mundo que é eurocêntrica e naturalizada por tal fato. Desejos complexos e intensos
esses, mas que seguimos buscando concretude para eles, e, com certeza, nosso mestre, griot e
pensador Renato Noguera nos ajudou muito nesse percurso.
Nossas rodas de conversa acontecem com as crianças por perto, brincando, desenhando,
conversando, contribuindo com suas fala e corpos. Nesse dia Renato veio com sua companheira e
suas filhas, que lindamente ocuparam o ambiente com suas infâncias. Ao final falaram que
gostaram muito e que querem voltar outras vezes. Isso reverbera em nosso desejo de potencializar
um espaço onde as crianças sejam felizes.

Ficamos com o significado real do dia 13 de maio nos nossos corações e luta. Ficamos também com
os mil referências teóricos e afetivos que o mestre compartilhou. Tudo rodando em nossas cabeças e
corpos. De mãos dadas fizemos uma grande roda, cantamos e dançamos Jongo, assim como nossos
mais velhos. Momento de olhar no olho, sorrir, vibrar e desejar vida longa as nossas crianças, para
que nesse espírito de comunidade constituam sua existência.

Seguimos juntos.

Modupé!

*Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do


Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório Práxis Filosófica de
Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia (Práxis
Filosófica) da UFRRJ. Coordena o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções
(Afrosin).

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