You are on page 1of 5

V Seminá

inário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC


Car
19 a 23 de outubro de 2009

O ADEUS DE
E MICHEL FOUCAULT À PSICOLO
LOGIA
Mar
arcio Luiz Miotto
Doutorado – Universid
rsidade Federal de
São C
Carlos (UFSCar)
B
Bolsista FAPESP
mlmio
miotto@gmail.com
Em 1957 Michel Foucault
Fo publica um texto intitulado La Recher
erche Scientifique
et la Psychologie em umaa coletânea, organizada por Jean-Edouard M
Morère, chamada
chercheurs francais s'interrogent323. O texto tra
Nouvelle recherche: des che trata da “pesquisa
científica” e da “psicologia
gia”. Logo no início, uma extensa citação de M
Morère dá o tom
(abaixo o último trecho):
Pobre alma (os psicólo
ólogos que hesitam sobre seus conceitos não sabem m mesmo a nomear),
cercada de técnicas, remexida
rem de questões, posta em formulários, traduzidaa eem curvas. Auguste
Comte acreditava, com m algumas reservas, que a psicologia era uma ciênciaa ililusória, impossível,
mos tão ousados. Apesar de tudo, há psicólogos, e quee ppesquisam.324
e a desprezou. Não somo

Na frase de Morère,
re, não se trata tanto de se atentar à postura dee Comte
C no Curso
de Ciência Positiva, quando
ndo alinhando as ciências ele julga a psicologia
gia impossível, um
“sofisma fundamental” (em
em termos individuais o homem seria analisável
vel pela fisiologia;
em termos inter-pessoais e cculturais, pela sociologia). Trata-se mais dee uuma diferença de
postura: Comte, “certo” ou “errado” (isso não se coloca aqui propriamen
ente em questão),
contesta o que grosso modo
odo se chamaria um estado de direito da psico
icologia, sobre sua
possibilidade de ser ciência
ia ou não. Mas “apesar de tudo”, diz Morère,, ““há psicólogos, e
que pesquisam”. Isto é, se nos situamos no estatuto de direito da psicologia
p – sua
especificidade, cientificidad sim dizer) de fato,
ade, seu rigor -, há ainda um estatuto (por assim
não problematizado; ainda
da há psicólogos, e que pesquisam, independen
dente da resolução
prévia dos conflitos epistem
temológicos das ciências humanas. Ou inverte
ertendo os termos,
independente de uma fun
undamentação prévia que garantiria o solo
lo epistêmico das
ciências humanas e sua pr
prática, há psicólogos, e que praticam, pesqu
squisam. Deve-se,
portanto – esse é o propósit
sito do texto de Foucault – perguntar de que modo
m psicologia,
ciência e pesquisa se relacio
cionam, não apenas segundo seus direitos (see uuma parte dela é
mais científica ou não, ma
mais rigorosa ou não, ilusória ou não), mas
as tomando esses
elementos em sua efetivida
idade mesma, em sua própria existência efetiva
iva. Daí os termos
“pesquisa científica” e “ps
psicologia”. Texto significativo por sua public
blicação durante a
estadia de Foucault em Upp
ppsala, então preparando sua tese sobre a histór
tória da loucura.

323
Morère, J-E. Nouvelle recherche:
re des chercheurs francais s'interrogent, París,
rís, Presses
Universitaires de France, 1957,, ppp. 171-201
324
Foucault, M. La Rechercerche Scientifique et la Psychologie. Dits et Écrits (Vol.
ol. I). Paris:
Gallimard, 2001, p. 165 (adiante
te citado como RSP).
ISSN 2177-0417 - 234 - PP
PPG-Fil - UFSCar
V Seminá
inário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC
Car
19 a 23 de outubro de 2009

Essa diferença de en
enfoque, entre o estatuto de direito ou da existê
istência efetiva das
ciências humanas, não see ccolocava como problema nos textos anterior
iores de Foucault.
Em sua Introdução a Sonho
ho e Existência (de Ludwig Binswanger), pub
ublicada em 1954,
é certo que o psicólogo aali era chamado, pejorativamente, de “Delfi
elfim no reino da
razão”. Referindo-se a ele,
le, o autor negava redigir uma introdução “ao
ao uso do Delfim”
(ad usum Delphini), oculta
ltando conteúdos importantes em nome de sim
simplificações ou
mudanças de teor. Mas isso
so mesmo já sugere, contra as deformações e si
simplificações do
conhecimento para ensinar
nar o “Delfim-psicólogo” enxergado por Fou
oucault, o uso do
rigor em prol de uma boa
oa fundamentação das ciências humanas. Noo caso, contra as
diversas “atitudes naturais
ais” ou ainda tributárias de certo naturalism
smo. Contra elas,
Foucault enxergava nass analíticas antropológicas existenciais a ppossibilidade de
formular uma “antropologia
gia da imaginação” e, de modo ainda mais “fun
undamental”, uma
“antropologia da expressão
ão”. Tal era seu projeto no início dos anos 550, como mostra
também sua biografia. Proje
rojeto reforçado pela idéia de defender uma tes
tese complementar
com o provável título de Psychiatrie
Ps et analyse existentielle.
O Foucault de 1954
54 não separaria portanto a pergunta “de direito
eito” da psicologia
de sua existência efetiva,, ba
bastando ver aí a recorrência a um projeto fen
enomenológico de
fundação das ciências huma
manas (portanto um modelo de positividade em detrimento de
outros) e da própria clínica.
ca.
Projeto correlato, mas
m em vias totalmente diferentes, é o de Mal
aladie Mentale et
Personnalité, publicado tam
também em 1954. Nesse pequeno livro (cuja
ja rreformulação se
conhece, na edição de 19
1962 intitulada Maladie Mentale et Psychol
hologie, não mais
Personnalité) também se of
oferece uma alternativa de refundação das ciê
ciências humanas.
Em primeiro lugar, enunc
nciando elementos ainda permanentes na ed
edição de 1962,
Foucault criticará o projeto
eto de uma “metapatologia”, ou da perspectiva
va segundo a qual
as doenças do corpo e as doenças mentais compartilhariam um funda
ndamento comum.
Desvincular patologia men
ental e orgânica serve ao propósito estratégic
ico de refundar a
patologia mental, não mais
ais relegada a uma espécie de fundamento “na
natural”, mas sim
tomada em suas condições
ões concretas. Em segundo lugar, Foucault
lt sse encaminha à
certa sociedade325.
análise da doença mentall ccomo elemento tornado possível em uma cer
Para além das diversas ps
psicologias, capazes apenas de enunciar as “condições de
aparecimento” da doençaa (seus modos de manifestação e os tiposs de conflitos do

325
“A alienação (...) nãoo é mais uma aberração psicológica, ela é definida da por um momento
histórico: é nele somente que ela se torna possível” Foucault, M. Maladie Mentale et Personnalité.
P Paris:
PUF, 1954, p. 102. (adiante, MMMPer)
ISSN 2177-0417 - 235 - PP
PPG-Fil - UFSCar
V Seminá
inário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC
Car
19 a 23 de outubro de 2009

doente), existem “condiçõ


ições de possibilidade” ou de “surgimento”
o” eminentemente
históricas. O livro esboçaa uuma pequena história da loucura, completam
amente descartada
depois: em linhas gerais
is o nascimento da modernidade trouxe, com a Revolução
Francesa, a possibilidade do homem desfrutar de um bem essencial, sua liberdade; mas
ução encarado como um possuído (por força
o louco, antes da Revoluç rças sobrenaturais,
vindas de outro mundo, e pportando por isso mesmo um lugar e papel
el social positivos
nos ritos religiosos), apóss eela passa a ser um despossuído, alienado de sua liberdade e
direitos fundamentais. Para
ra Foucault, a sociedade que oferece a liberdade
ade ao homem por
um recurso de direito priva
iva o louco dessa liberdade por um recurso de
d fato. Menor e
incapaz, aliena-se sua vonta
ntade numa vontade alheia por medidas médicas
cas, jurídicas, etc.
Nesse sentido o conflito
con do louco, mapeado em seus modoss dde aparecimento
pela psicologia, se enraiza
za em condições fora do doente, nos conflitos
tos e contradições
sociais. Em frase emblemá
mática, Foucault diz que não é Freud quem eexplica a guerra,
ca Freud326. Isto é, os conflitos vivenciados pel
mas a guerra é que explica pelo doente mental
e detectados pelo psicólog
logo se enraizam na oposição prévia, socialm
lmente dada, dos
termos desse conflito. Apen
penas uma vez oferecidos os termos e o temaa ssocial conflitual,
pode-se, por decorrência,, pe
pensar em doença mental ou psicologia.
Mas se o doente viv
ivencia o conflito previamente dado pelas cond
ondições sociais, o
que torna um indivíduo ddoente e outro não? Vê-se nesse texto uma
um interessante
resposta, encarada por algu
lguns como uma “concessão” feita durante a participação de
Foucault no PCF: a passag
agem dos temas conflituais sociais ao conflito
lito individual, em
um indivíduo e em outro
ro não, explica-se pela Reflexologia de Pavlo
lov (Cap. VI, La
Psychologie du Conflit)!! Onde
O as outras psicologias falham (elas ap
apenas tomam o
doente sem encarar as cond
ondições da doença), Pavlov acerta (ou pelo m
menos segue em
boa direção), por sua fisiolo
iologia apoiada na noção de reflexo condiciona
onado: ela permite
fazer a passagem das cond
ndições sociais (o “meio”, as “condições dee eexistência que o
homem mesmo constituiu”327) à doença mental. Esta ocorre quando o ho
homem se aliena,
ou não mais se reconhecee como homem no mundo humano em que vi
vive, ou por uma
exposição prévia a uma situ
situação de conflito absoluto vinda do “meio”,
”, de um lado, ou
de outro quando as possib
sibilidades do indivíduo para superar (“assim
imilar”, p. 100) o
conflito são restritas, limita
itadas. Pavlov faz a passagem entre as condiçõ
ções históricas e o

326
“Freud queria explicar ar a guerra; mas é a guerra que explica essa virad
irada do pensamento
freudiano” (referindo-se à pulsão
ão de morte). MMPer, p. 87
327
MMPer, p. 102.
ISSN 2177-0417 - 236 - PP
PPG-Fil - UFSCar
inário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC
V Seminá Car
19 a 23 de outubro de 2009

condicionado psicológicoo por meio da doença enquanto reação dde inibição do


organismo328.
Como no texto sob
obre Binswanger, o debate “de direito” da ps
psicologia não se
separa do debate sobre sua
ua existência efetiva, não há mudança de nível.
el. A psicologia se
resolve por uma espécie de “correção ortopédica”329. Foucault julga refu
efundar as ciências
humanas escolhendo umaa das humanidades em detrimento das out
utras. Se antes o
projeto de refundação exig
xigia Binswanger, agora exige algum caminho
ho semelhante ao
trilhado pela psicologia russ
ussa.
Dos textos de 54 à citação
c de Morère é necessário, portanto, um deslocamento.
Dizer que o debate “de ddireito” sobre a fundação da psicologia se separa de sua
existência efetiva significaa apontar a não resolução das querelas das ci
ciências humanas
por um debate epistemológ
lógico. Para o Foucault de 1957, deve-se coloc
locar o debate em
um outro nível. Em Laa Recherche Scientifique et la Psychologie,
ie, esse nível se
problematiza na “cotidiana
na e evidente” pergunta do professor de psicolo
ologia a seu aluno:
fazer “'psicologia', como M
M. Pradines e M. Merleau-Ponty, ou 'psico
icologia científica'
como Binet”330? Fazer psic
sicologia “exata” (por assim dizer), a que med
ede e calcula, ou
psicologia “humana”, opta
ptando pela reflexão e as explicitações do im
implícito? Ora, a
simples pergunta, segundoo F
Foucault, constata o “problema”: a psicologi
gia pode, antes de
tudo, ser ciência ou não, e pportanto “não é a ciência que toma corpo na pesquisa mas a
pesquisa que, de entrada,, op
opta ou não pela ciência” (RSP, p. 167). Porr is
isso a escolha de
uma das posições táticass ddo debate não pode mais dar conta do deb
ebate: existe uma
“possibilidade originária de escolha”, e o problema não é mais escolhe
lher as psicologias
objetivas contra as humani
anistas ou vice-versa. Qualquer “escolha” inst
nstaura um debate
“de direito”, mas esquece qu
que, antes de tudo, houve uma “escolha” prévi
évia ao debate.
Disso se vê o prob
oblema da “existência efetiva”, ou da marcaç
cação na frase de
Morère de que há psicólo
logos, e que pesquisam. Há uma autonomia
ia da prática não
regida, de saída, por um hor
horizonte científico. Daí também o problema do fundamento da
psicologia se deslocar. See ela pode ser científica ou não sem um hori
orizonte prévio de
cientificidade (o físico, o bbiólogo, o químico não “escolhem” fazerr cciência ou não),

328
Foucault situa a doença,
ça, em Pavlov, como uma reação global defensiva de inibição.
in Esta ocorre
ou quando o conflito do meioo é demasiado inassimilável, ou quando as característicsticas individuais são
sensíveis ao conflito. Portanto,
o, antes do conflito ser “interno”, suas condições sãoo “externas”; dado o
mundo ser “humano”, não há justificação para que tais condições “externas”” se encarem como
naturalizadas. Daí a “contribuição
ção” de Pavlov.
329
Cf. Moutinho, L. D. Humanismo
H e anti-humanismo Foucault e as desvenventuras da dialética.
Natureza Humana v.6 n.2 São Pa Paulo dez. 2004
330
Foucault, M. La Recherherche Scientifique et la Psychologie. DE1, 1957/2001
001, p. 166. (adiante,
RSP).
ISSN 2177-0417 - 237 - PP
PPG-Fil - UFSCar
inário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC
V Seminá Car
19 a 23 de outubro de 2009

“fundamento” em outro lugar. Outro texto


deve-se encontrar seu “fu xto de 1957, La
1950331, já fazia notar como as contradições
Psychologie de 1850 à 19 es e querelas das
psicologias acompanhavaa uma relação constante da prática (“há psi
psicólogos, e que
pesquisam”) com o negat
ativo, mediado pela questão da disfunção,, ddo desvio e da
norma332: a psicologia daa ccriança nasce das interrogações sobre o desv
esvio e o fracasso
escolar ou as interrupçõess e problemas de desenvolvimento, mas promet
ete o fundamento
de toda prática pedagógica;
ca; a psicologia do trabalho nasce dos problem
emas da adaptação
do homem ao emprego, ma
mas promete o fundamento de toda relação pro
produtiva, e assim
por diante “a psicologia (...
(...) nasce nesse ponto onde a prática do home
mem encontra sua
própria contradição”, é uuma “reflexão sobre as contradições do hhomem consigo
mesmo”.
O texto sobre a psicologia
psi de 1850 a 1950, segundo Eribon ((o biógrafo), foi
encomendado anos antes,, eem momento mais afim às posições de 1954
54. Mas as linhas
acima, como as do texto
to da coletânea de Morère, não deixam de ser plenas de
significado, sabendo doss pproblemas que se colocarão logo depoiss em
e História da
Loucura. Neste livro, a “ref
reflexão sobre as contradições do homem consi
nsigo mesmo” não
se enunciaria em um momeento muito especial, o das relações éticas do hhomem ocidental
consigo mesmo durante o pperíodo doravante chamado de “moderno”,, ddas reflexões do
“círculo antropológico”? A
Aquela conclusão de Maladie Mentale ett P
Personnalité, do
fundo “histórico” da doença
nça mental, se colore na Tese Principal de Fouc
oucault com outras
nuances. A conclusão de La Psychologie de 1850 à 1950 já o sugere:
O destino da psicologiagia não estaria em levar a sério essas contradições, nas
as quais a experiência
fez justamente nascer a psicologia? Não haveria então psicologia possível senão
sen pela análise das
condições de existência ia do homem e pela retomada do que há de mais human ano no homem, quer
dizer, sua história. (DE1
E1, p. 165, grifo meu)

Um dos textos de 1957


19 sugere, portanto, que o fundamento das
as contradições da
psicologia se resolva por um
uma análise de tipo histórico. Tomando o outro
utro texto de 1957,
a conclusão é correlata, e ta
talvez até mesmo ressonante com alguns texto
xtos lançados logo
depois: deve-se aprofundar
ar a questão da negatividade até encontrar o ponto nodal em
que ela se tornou possível.
el. Em outras palavras, em imagem conhecida
ida de História da
Loucura e Doença Mental
tal e Psicologia (não “Personalidade”), deve
ve-se “descer aos
infernos”333.

331
Foucault, M. La Psychol
hologie de 1850 à 1950. DE1, 1957/2001.
332
Emprega-se aqui La Psy sychologie de 1850 à 1950 utilizando algumas idéias de
desenvolvidas em La
sychologie, apenas aludidas no primeiro texto. (Cf. DE1,
Recherche Scientifique et la Psyc 1, p. 149-150).
333
“A psicologia apenas se salvará por um retorno aos Invernos” RSP, p. 186.
ISSN 2177-0417 - 238 - PP
PPG-Fil - UFSCar

You might also like