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Introdução
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Como pode um homem provar que não é louco?
Tal episódio dá a Qorpo- Santo inspiração para a sua mais nova obra “O
HOMEM QUE ENGANOU A PROVÍNCIA” o que demonstra mais uma vez a genialidade
e audácia da personagem vista como louca por toda a cidade, além de remeter à
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metaficção do romance: Qorpo-Santo escreve a própria história que está sendo narrada
no romance.
É necessário esclarecer que a farsa do reconhecimento do corpo de Lucrécia, foi
tramada por Qorpo-Santo, como uma espécie de vingança contra aquela sociedade
opressora e mesquinha. Ora, ninguém jamais descobriu absolutamente nada. No seu
íntimo, o Delegado suspeitava de Eusébio, exatamente porque ele estava
acompanhado do louco da cidade, no momento do reconhecimento do corpo. No
entanto, jamais ousou investigar. Eusébio era o oposto de Qorpo-Santo. Enquanto um
era respeitado como comerciante discreto e bem-sucedido, o outro era discriminado por
seu temperamento explosivo que levava todos a tratá-lo como um louco. As narrativas
paralelas sugerem uma inversão de papéis pois, embora aparentemente equilibrado, é
Eusébio quem mais tarde vem a torturar e assassinar.
Além disso, a inserção de um narrador que justifica ao mesmo tempo que
condena a atitude de Eusébio, por meio do fluxo de consciência e monólogo interior, dá
lugar a uma rede de conflitos:
"Mas o que fazer de sua vida? Uma primeira ideia, absurda e
louca: despachar a mulher porta afora, admitir de público que se
enganara no reconhecimento do corpo mutilado. Afasta a tentação,
impossível expor-se ao escândalo que certamente o arruinaria..." (Brasil,
1996:175).
O narrador vai modulando e orientando a tecedura desta rede: " Está só, sem
ninguém que possa ouvi-lo, abafado num abismo em que seu grito de desespero se
escoa nas trevas." (Brasil: 1996:175); " Mas descobrirão tudo, a burla ensandecida, sua
vida será esquadrinhada e cuspida com nojo, como sempre deveria ter sido". (Brasil,
1996:176).
O enredo se desenrola de modo a, além de tratar a respeito de crimes como
assassinato e adultério, levantar uma profunda discussão acerca da sanidade de
Qorpo- Santo, sendo a personagem analisada pelos psiquiatras Joaquim Pedro e
Landell. Esses médicos, além de analisarem o casal assassino, avaliaram também a
excentricidade de Qorpo- Santo, sendo assim julgado por eles como gênio e louco,
respectivamente.
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– Loucura. O nosso homem está atacado de uma espécie de loucura,
monomania chamada, que, como você sabe, é uma doença cerebral,
uma espécie de desordem do aparelho da inervação.
O companheiro estira-se como se fosse atingido por uma corrente
elétrica:
– Então você enfim reconhece que ele tem inteligência; reconheça,
Landell, você falou em inteligência.
Landell não se desconcerta:
– Mas não no sentido que você pensa, em inteligência como sinônimo
de sabedoria; falo de inteligência como capacidade de raciocínio e de
atenção nas coisas, não em conhecimento profundo ou uma particular
agudeza de espírito; até me admiro muito que um alienista ilustre como
você faça tal confusão.”
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permanece, conforme despacho judicial de 1868 do juiz Correia de Oliveira em Porto
Alegre.
Voltando à ficção, Qorpo-Santo é realmente, um personagem extraordinário.
Suas ideias seus pensamentos o levam muito além dessa época. Contudo, seu
comportamento não é completamente normal, porque a personagem conversa, diversas
vezes, com pessoas irreais, como Napoleão III.
A sua condição psíquica é levada a julgamento, havendo divergências entre os
alienistas a respeito da mesma. Acaba por ser interditado, mas seus bens não são
entregues à esposa. É extraditado, e a sociedade sente-se apaziguada.
A narração é em 3ª pessoa - narrador onisciente. A realidade choca-se com a
ficção nesse livro. O fato de Qorpo-Santo fantasiar um mundo só seu, à revelia dos
costumes e regras tradicionais, eleva-o ainda mais.
Independente da exata localização espacial, o livro extrapola, indo muito além de
suas fronteiras. Assim atingindo o universal, a obra de Assis Brasil pode ser entendida
por várias pessoas em diversas épocas, sem perder, de maneira alguma, seu valor real.
A denúncia é feita constantemente, mostrando a mediocridade de espírito da sociedade
que é, facilmente, igualada a um cão, os "cães da província". Isto porque essa
população é, realmente, domada e obediente às normas e costumes impostos pela
época:
Loucos são todos vocês – grita Qorpo Santo. – Não passam de cães
desta Província, prontos a farejar e comer carne humana.
[...]
-Cães da província, sim! Como se não bastasse a mesquinhez e a falta
de espírito, não admitem ninguém que lhe seja superior. A suprema
alegria passar a ser esta, crucificar um homem que apenas deseja
seguir seu destino, que nada mais quer senão partilhar com todos essa
mesma natureza mortal, que tem desejos e imaginações a que ninguém
se julga no direito, reputam esses sonhos como algo obsceno. Na
verdade, busco o que todos buscam, só que por meus caminhos.
Atenção, burocratas e comerciantes! Antes de procurarem resolver os
crimes meramente achando os criminosos, antes de jogarem toda a
culpa da insanidade desta Província em meus ombros, seria mais útil
resolverem os pequenos homicídios diários, perpetrados nos lares, os
desejos insatisfeitos dos coronéis, das esposas ardorosas que procuram
a noite seus maridos nos leitos desabitados, dos padres que têm seu
sangue fervendo ao sentir os perfumes femininos invadindo as grades
dos confessionários, das moças de alta-roda que devem manter a
castidade até que um bruto que lhes dão por marido as desvirginem sem
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o menor carinho. Pasma ver como tudo isso é visto e percebido e, no
entanto, é como se não acontecesse, como se todos estivessem
entorpecidos. Agora digam: De que vale saber se foram ou não José
Ramos e a Palsen os autores das mortes? acaso isso vai ressuscitar os
mortos? e de que vale retirar a um homem a capacidade de administrar
seus bens e sua pessoa, se o pior, a mais negra miséria, permanece
enlameando os pés dessa sociedade envelhecida, formada por cidadãos
envelhecidos, governada por velhos caquéticos e desnaturados? José
Ramos e a Palsen apenas puseram em prática o que talvez muitos
daqui desejariam fazer, assim como, teriam vontade de ser como eu,
que faço o que quero e não me sujeito a essas cadeias morais. Mas
querem um preço a tanta ousadia? torturem José Ramos e anulem-me a
personalidade. Talvez assim a Província se aquiete.” (p. 130)
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O trecho abaixo evidencia uma visão de exaltação à "loucura" [conversa entre
Landell e Joaquim Pedro]:
“Amigo, no imaginário do nosso mundo a loucura é uma coisa
aquática, os loucos têm um espirito profundo e turbulento com as
correntezas, jamais poderemos adivinhar-lhe o fundo; daí por que
escapam a qualquer compreensão, é como se você quisesse adivinhar o
que acontece a dois palmos de baixo do casco da nossa canoa; a mente
enlouquecida é pior que este rio barrento.” (p.90)
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de um ambiente claustrofóbico, em que ele não conseguia encontrar uma direção a
seguir por ser um incompreendido, um estranho, o louco da Província.
Conclusão
Após o término deste trabalho, podemos perceber que a metaficção nos dá o
direito de analisar o choque do homem com o mundo. A metaficção é quando a ficção
(literatura) se entende enquanto mentirosa e mostra ao leitor que sabe que aquilo que
está sendo produzido é tão somente discurso, e portanto, como citado anteriormente
permite desvelar ao narratário como se desenrola o processo de construção da escrita.
Além disso, a metaficção tenta quebrar com discursos que se validam como
corretos e unívocos. É o que acontece em “Cães da Província”, a personagem Qorpo-
Santo é julgado como louco e excêntrico por trazer em seu discurso idéias que eram
contraditórias para a uma Província do século XIX. A metaficção ao se mostrar como
ficção questiona os limites da linguagem, e por analogia vai demonstrar que não só ela
é mentirosa como a própria idéia do discurso oficializado, a literatura é falsa – e eu, o
livro, o narrador, discuto isso com o próprio narratário.
Por fim, conclui-se que a linha tênue traçada entre a loucura e a genialidade de
Qorpo-Santo, e o fato da personagem fantasiar em um mundo somente seu, totalmente
adverso a costumes e regras tradicionais vai tecendo ao longo da narrativa uma
personagem complexa, singular e subversiva.
Referências
Meio eletrônico:
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/158012>
<https://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/caes-da-provincia.html>
<http://homoliteratus.com/qorpo-santo-e-os-caes-da-provincia/>
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<http://www.passeiweb.com/estudos/livros/caes_da_provincia>
Obras literárias:
BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Cães da Província. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
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