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ANÁLISE DA PERSONAGEM QORPO-SANTO NO ROMANCE “CÃES DA

PROVÍNCIA” DE ASSIS BRASIL: A DUALIDADE ENTRE A LOUCURA E A


GENIALIDADE DO DRAMATURGO.

“Qorpo- Santo manifesta uma inteligência prodigiosa, excitada ao


máximo, que apenas não encontra nas formas tradicionais de exercício
da emoção o veículo bastante: daí suas alegorias e seus delírios”.
(BRASIL, p. 116)

Andressa E. Chacon e Victoria Rodrigues.

Resumo: O romance metaficcional "Cães da Província" apresenta dentre narrativas


paralelas a história de Qorpo-Santo, dramaturgo gaúcho do século XIX. No presente
artigo, visa-se explorar a construção desta personagem de modo a observar
características em seu comportamento que variam entre extrema inteligência ou delírios
excessivos. Nesse sentido, são analisadas também personagens aqui ditas como
"secundárias": Eusébio, amigo do dramaturgo, e os alienistas Landell e Joaquim Pedro;
uma vez que esses são cruciais no desenrolar do enredo e nas atitudes de Qorpo-
Santo. Procurou-se também levar em conta o espaço e a época em que se figuram a
história, além de comparar fatos reais com os presentes na narrativa desse romance.

Abstract: The metafictional novel "Cães da Província" presents, among parallel


narratives, the story of Qorpo-Santo, a playwright of the nineteenth century. In this
article, we aim to explore the construction of this character in order to observe
characteristics in his behavior that vary between extreme intelligence or excessive
delusions. Therefore, some "secondary" characters are also analyzed: Eusebio,
playwright's friend, and the alienists Landell and Joaquim Pedro; since these are crucial
in the unfolding of the plot and in the attitudes of Qorpo-Santo. It was also assumed the
space and the time in which the story is figured, besides comparing real facts with those
present in the narrative of this novel.

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Introdução

O seguinte artigo tem por intuito analisar a personagem Qorpo-Santo,


pseudônimo de José Joaquim Campos Leão, dramaturgo e poeta brasileiro, que viveu
em Porto Alegre, no século XIX. Tal personagem destaca-se por transcender entre a
genialidade e a loucura, o que é retratado na obra de Assis Brasil “Cães da Província”.
Pretende-se nesse artigo abordar o comportamento excêntrico da personagem por
meio de uma análise de trechos presentes no romance. Por tratar-se de uma obra
metaficcional, o enredo se desenrola de modo a desvelar ao narratário o que seria o
processo de construção da escrita. Valendo-se, desta forma, da imagem do dramaturgo
José Joaquim Campos Leão, uma vez que sua biografia se confunde com sua
produção literária, ou seja, “Cães da Província” não é uma biografia de Qorpo- Santo.
A literatura a respeito do livro "Cães da Província" é composta, sobretudo, de
estudos que, como em Baumgarten, relacionam o romance com o personagem histórico
e o contexto histórico ao qual ele faz referência – trata-se de um período do século XIX,
sob o reinado de Dom Pedro II. A leitura de Arias (2009) também apresenta o texto de
Assis Brasil como novo romance histórico, pois, de acordo com a autora, “a vertente
associada ao romance histórico contemporâneo trata de resgatar elementos peculiares
através da releitura da história da leitura ilimitada dos fatos ocorridos no passado,
criados pelo homem ou por ele sacralizados” (ARIAS, 2009, p. 13). Trata-se, então, de
interseccionar a história com existências individuais; é desse modo que Cães da
Província se afasta da historiografia oficial, pois, embora utilize fatos históricos,
reescreve-os de uma forma particular.
Em 1864, Porto Alegre foi cenário de uma terrível ocorrência: pedaços de corpos
humanos em decomposição foram encontrados na residência de José Ramos,
açougueiro, e de sua esposa Catharina Palsen, apontados como assassinos que
revendiam linguiças feitas com carne humana para açougues da cidade. Sob essa
atmosfera de suspense e horror, insanidade, genialidade e excentricidade desenrola-se
a narrativa de “Cães da Província”

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Como pode um homem provar que não é louco?

O alicerce da história de "Cães da Província" está na loucura de um dramaturgo


incompreendido na época em que viveu: Qorpo-Santo. É por essa loucura – por vezes
tecida como algo normal, sem nenhum tipo de banalização –, que o leitor é conduzido a
desenrolares consequentes, em sua maioria, das ações de Qorpo-Santo. É pela figura
dele que a primeira cena do livro, após uma longa descrição que apresenta os
ambientes, é traçada, e é também por ele que o romance termina de ser tecido. A
história, basicamente, divide-se em dois conflitos superiores: o primeiro trata da visão
da sociedade frente à figura de Qorpo-Santo, bem como de seus conflitos com Inácia e
com a Justiça; o segundo conflito, por sua vez, é engatado pelo sumiço de Lucrécia,
esposa de Eusébio – amigo de Qorpo-Santo.
Em meio a narrativas paralelas que retratam o sumiço da mulher de Eusébio (ou
melhor, fuga com o amante, queijeiro) e a dificuldade de se conseguir a confissão do
casal de estrangeiros acusados do desaparecimento e assassinato de moradores da
Província, Eusébio, aconselhado por Qorpo- Santo, reconhece um corpo no porão dos
assassinos como sendo de sua esposa Lucrécia, e relata para polícia, tentando evitar,
dessa forma, a sua desonra; o que é descrito no seguinte trecho:
“O caso é estabelecer uma estratégia, e para a estratégia, uma
boa tática- diz Qorpo-Santo, agora senhor das suas ações e palavras, o
verdadeiro amigo Eusébio, um homem que pode aconselhar. -Primo:
você sabe onde ela foi? Secundo: queres que ela venha de volta? Tertio:
queres tornar tudo público imediatamente? As perguntas de Qorpo-
Santo, com tanta certeza e prática, deixam Eusébio desconcertado.
Submerso na dor, não pensava nessas coisas de armar táticas. Mais
uma vez maravilha-se com o amigo. Uma pequena luz brilha, uma
esperança. Diz que não sabe por onde ela fugiu, mas desconfia que foi
para os lados de Viamão, pois é certo que fugiu com o queijeiro
Raimundo, que mora para aquelas bandas. Se a quer de volta? Eusébio
não sabe, dificilmente ela poderia voltar sem dar na vista e mais dia,
menos dia… não, não quer. Antes dá-la por desaparecida, ou morta.” (p.
50)

Tal episódio dá a Qorpo- Santo inspiração para a sua mais nova obra “O
HOMEM QUE ENGANOU A PROVÍNCIA” o que demonstra mais uma vez a genialidade
e audácia da personagem vista como louca por toda a cidade, além de remeter à
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metaficção do romance: Qorpo-Santo escreve a própria história que está sendo narrada
no romance.
É necessário esclarecer que a farsa do reconhecimento do corpo de Lucrécia, foi
tramada por Qorpo-Santo, como uma espécie de vingança contra aquela sociedade
opressora e mesquinha. Ora, ninguém jamais descobriu absolutamente nada. No seu
íntimo, o Delegado suspeitava de Eusébio, exatamente porque ele estava
acompanhado do louco da cidade, no momento do reconhecimento do corpo. No
entanto, jamais ousou investigar. Eusébio era o oposto de Qorpo-Santo. Enquanto um
era respeitado como comerciante discreto e bem-sucedido, o outro era discriminado por
seu temperamento explosivo que levava todos a tratá-lo como um louco. As narrativas
paralelas sugerem uma inversão de papéis pois, embora aparentemente equilibrado, é
Eusébio quem mais tarde vem a torturar e assassinar.
Além disso, a inserção de um narrador que justifica ao mesmo tempo que
condena a atitude de Eusébio, por meio do fluxo de consciência e monólogo interior, dá
lugar a uma rede de conflitos:
"Mas o que fazer de sua vida? Uma primeira ideia, absurda e
louca: despachar a mulher porta afora, admitir de público que se
enganara no reconhecimento do corpo mutilado. Afasta a tentação,
impossível expor-se ao escândalo que certamente o arruinaria..." (Brasil,
1996:175).

O narrador vai modulando e orientando a tecedura desta rede: " Está só, sem
ninguém que possa ouvi-lo, abafado num abismo em que seu grito de desespero se
escoa nas trevas." (Brasil: 1996:175); " Mas descobrirão tudo, a burla ensandecida, sua
vida será esquadrinhada e cuspida com nojo, como sempre deveria ter sido". (Brasil,
1996:176).
O enredo se desenrola de modo a, além de tratar a respeito de crimes como
assassinato e adultério, levantar uma profunda discussão acerca da sanidade de
Qorpo- Santo, sendo a personagem analisada pelos psiquiatras Joaquim Pedro e
Landell. Esses médicos, além de analisarem o casal assassino, avaliaram também a
excentricidade de Qorpo- Santo, sendo assim julgado por eles como gênio e louco,
respectivamente.

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– Loucura. O nosso homem está atacado de uma espécie de loucura,
monomania chamada, que, como você sabe, é uma doença cerebral,
uma espécie de desordem do aparelho da inervação.
O companheiro estira-se como se fosse atingido por uma corrente
elétrica:
– Então você enfim reconhece que ele tem inteligência; reconheça,
Landell, você falou em inteligência.
Landell não se desconcerta:
– Mas não no sentido que você pensa, em inteligência como sinônimo
de sabedoria; falo de inteligência como capacidade de raciocínio e de
atenção nas coisas, não em conhecimento profundo ou uma particular
agudeza de espírito; até me admiro muito que um alienista ilustre como
você faça tal confusão.”

Qorpo- Santo representa a intelectualidade em choque com a mediocridade dos


parâmetros de sua sociedade. A falta de compreensão da população leva Qorpo- Santo
a ser considerado louco, devido a sua audácia em burlar os costumes da época. O
narrador deixa claro, durante o desenrolar dos acontecimentos, a superioridade da
personagem Qorpo-Santo em relação as demais. A forma que seu comportamento
tomou é tida como consequência de sua imensa inteligência, conhecimento e seus
conflitos internos e sentimentais. Fora abandonado por sua esposa, Inácia, que visava
interditá-lo. Passa a viver só com seu criado, apelidado por ele, Inesperto.
Ficção confunde-se com a realidade, e isso se torna bastante presente na obra
“Cães da Província”. Na vida real, no ano de 1862, começam a manifestar-se os
primeiros sinais de transtornos psíquicos em Qorpo-Santo, rotulados então sob o
diagnóstico de monomania sendo afastado do ensino e interditado judicialmente a
pedido da própria esposa e filhos. Fundamentou-se a alegação de "monomania" na sua
"superexcitação de atividade cerebral", sobretudo na compulsão de "tudo escrever". Os
médicos de Porto Alegre, então, divergem sobre a sanidade mental de Qorpo-Santo.
Este não aceita pacificamente seu controvertido, então, enquadramento psiquiátrico,
recorrendo ao Rio de Janeiro, e sendo examinado dessa vez por médicos daquela
capital, os quais diferem do diagnóstico de monomania, após o autor passar um mês
no Hospício Pedro II, não endossando sua interdição judicial. Apesar da liberação pelos
médicos considerados os maiores especialistas em saúde mental da época, com um
salvo conduto de João Vicente Torres Homem, médico pessoal do Imperador Dom
Pedro II (o qual considera que "o paciente goza de boa saúde mental"), a interdição

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permanece, conforme despacho judicial de 1868 do juiz Correia de Oliveira em Porto
Alegre.
Voltando à ficção, Qorpo-Santo é realmente, um personagem extraordinário.
Suas ideias seus pensamentos o levam muito além dessa época. Contudo, seu
comportamento não é completamente normal, porque a personagem conversa, diversas
vezes, com pessoas irreais, como Napoleão III.
A sua condição psíquica é levada a julgamento, havendo divergências entre os
alienistas a respeito da mesma. Acaba por ser interditado, mas seus bens não são
entregues à esposa. É extraditado, e a sociedade sente-se apaziguada.
A narração é em 3ª pessoa - narrador onisciente. A realidade choca-se com a
ficção nesse livro. O fato de Qorpo-Santo fantasiar um mundo só seu, à revelia dos
costumes e regras tradicionais, eleva-o ainda mais.
Independente da exata localização espacial, o livro extrapola, indo muito além de
suas fronteiras. Assim atingindo o universal, a obra de Assis Brasil pode ser entendida
por várias pessoas em diversas épocas, sem perder, de maneira alguma, seu valor real.
A denúncia é feita constantemente, mostrando a mediocridade de espírito da sociedade
que é, facilmente, igualada a um cão, os "cães da província". Isto porque essa
população é, realmente, domada e obediente às normas e costumes impostos pela
época:
Loucos são todos vocês – grita Qorpo Santo. – Não passam de cães
desta Província, prontos a farejar e comer carne humana.
[...]
-Cães da província, sim! Como se não bastasse a mesquinhez e a falta
de espírito, não admitem ninguém que lhe seja superior. A suprema
alegria passar a ser esta, crucificar um homem que apenas deseja
seguir seu destino, que nada mais quer senão partilhar com todos essa
mesma natureza mortal, que tem desejos e imaginações a que ninguém
se julga no direito, reputam esses sonhos como algo obsceno. Na
verdade, busco o que todos buscam, só que por meus caminhos.
Atenção, burocratas e comerciantes! Antes de procurarem resolver os
crimes meramente achando os criminosos, antes de jogarem toda a
culpa da insanidade desta Província em meus ombros, seria mais útil
resolverem os pequenos homicídios diários, perpetrados nos lares, os
desejos insatisfeitos dos coronéis, das esposas ardorosas que procuram
a noite seus maridos nos leitos desabitados, dos padres que têm seu
sangue fervendo ao sentir os perfumes femininos invadindo as grades
dos confessionários, das moças de alta-roda que devem manter a
castidade até que um bruto que lhes dão por marido as desvirginem sem

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o menor carinho. Pasma ver como tudo isso é visto e percebido e, no
entanto, é como se não acontecesse, como se todos estivessem
entorpecidos. Agora digam: De que vale saber se foram ou não José
Ramos e a Palsen os autores das mortes? acaso isso vai ressuscitar os
mortos? e de que vale retirar a um homem a capacidade de administrar
seus bens e sua pessoa, se o pior, a mais negra miséria, permanece
enlameando os pés dessa sociedade envelhecida, formada por cidadãos
envelhecidos, governada por velhos caquéticos e desnaturados? José
Ramos e a Palsen apenas puseram em prática o que talvez muitos
daqui desejariam fazer, assim como, teriam vontade de ser como eu,
que faço o que quero e não me sujeito a essas cadeias morais. Mas
querem um preço a tanta ousadia? torturem José Ramos e anulem-me a
personalidade. Talvez assim a Província se aquiete.” (p. 130)

A descrição dos ambientes porto-alegrenses do século XIX expõe, fortemente, a


influência que a sociedade exerce sobre as personagens do romance, contribuindo
tanto para a interdição de Qorpo-Santo, no desfecho da história, quanto para o clímax,
quando Eusébio se rende às impressões sociais e mergulha em contradições providas
da loucura. As imagens construídas no primeiro capítulo são véus que recobrem as
condições que a sociedade impõe. O tema loucura é visto sob outras perspectivas, não
delimitado somente à protagonista e à antagonista. De um lado, Os Crimes da Rua do
Arvoredo são protagonizados por um casal aparentemente normal, que, em
determinada parte do enredo, são revelados como assassinos. A partir disso, fica
evidente o julgamento social a quem comete algum tipo de atrocidade, assim como,
também, iniciam-se inúmeros questionamentos sobre a motivação dos crimes. É a
loucura, mais uma vez, mostrando uma de suas facetas. Ao final do romance, Eusébio
torna-se um criminoso como o casal, visto que assassina a esposa, porém, fica livre do
julgamento social por ter conseguido ocultar as atrocidades que cometeu.
A própria personagem de Qorpo-Santo, na sua loucura, oscila entre momentos
de lucidez e o mais completo desvario: "Ora sou um, ora sou outro!". Assim, a ocultação
e o desvelamento da vida assumem representação concreta no confronto entre as
patologias individuais e coletivas, de que são ilustrativos os episódios dos cadáveres
escondidos, o falso enterro de Lucrécia e sua reclusão em vida, a ambiguidade velada
e ardorosa de Inácia e, principalmente, a hipocrisia das perícias médicas e dos laudos
judiciais.

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O trecho abaixo evidencia uma visão de exaltação à "loucura" [conversa entre
Landell e Joaquim Pedro]:
“Amigo, no imaginário do nosso mundo a loucura é uma coisa
aquática, os loucos têm um espirito profundo e turbulento com as
correntezas, jamais poderemos adivinhar-lhe o fundo; daí por que
escapam a qualquer compreensão, é como se você quisesse adivinhar o
que acontece a dois palmos de baixo do casco da nossa canoa; a mente
enlouquecida é pior que este rio barrento.” (p.90)

Um episódio de loucura é uma manifestação psicossocial, pois, além de interferir


na psicologia individual, acaba por, consequentemente, atingir a vida social do
indivíduo. Primeiro há uma ruptura em seu interior, que reflete diretamente em sua
maneira de raciocinar e interpretar o mundo à sua volta. Por conseguinte, o seu
comportamento muda drasticamente, e as pessoas que o conhecem e que convivem
com ele passam a desconfiar de que o indivíduo não está agindo dentro daquilo que
acreditam ser o “normal” – ou apenas o seu “normal”. Ao pensar a loucura como uma
manifestação episódica, algo que pode vir a ocorrer a qualquer ser humano, mas que
foge do controle de alguns em maior ou menor intensidade, investigamos não apenas o
louco, mas o que é essa loucura da qual fala o senso comum, a literatura, a filosofia e,
claro, a psiquiatria; o que essa loucura representa e como ela afeta o indivíduo e a
estrutura social à qual ele pertence. Aqui interessa saber em que lugares se esconde e
se manifesta a loucura. Será exclusivamente na cabeça ou terá algo a ver com o
coração? E como comportar, definir, categorizar, diagnosticar, maldizer ou elogiar para
descobrir de que maneiras a loucura está inserida em uma sociedade provinciana do
século XIX? Os episódios de loucura nem sempre estão explícitos como grandes atos
fora da normalidade de um aglomerado urbano aparentemente pacato; às vezes, estão
adormecidos nos desejos, nos sentimentos e nas ambições de seus habitantes. "Cães
da Província" apresenta personagens que são enredados em tramas que os levam a
confrontar a loucura exterior e interior.
A loucura de Qorpo-Santo vai se manifestando em pequenos detalhes como, por
exemplo: o fato de ele decidir entrar pela janela de sua casa com o auxílio de uma
escada, inutilizando a porta; o fato de gritar xingamentos de sua janela para a rua; as
dificuldades de se manter exercendo uma atividade estável para sustentar a si, sua
esposa e três filhas; e o fato de ele conversar, em sua imaginação, com Napoleão III –
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que compartilha com ele a mania de grandeza, a ânsia pelos grandes feitos. Esses
desvios da conduta padrão fizeram ecoar em seu aglomerado urbano inúmeros
comentários sobre sua loucura explícita e, devido aos demais acontecimentos
escabrosos da Província, acender na população a vontade de erradicar alguém tão
imprevisível como Qorpo-Santo, que poderia vir a provocar novos escândalos dentro da
rotineira sociedade de aparências.
A insanidade contorna, na figura de Qorpo-Santo, um jogo de verossimilhança,
fato que pode ser percebido durante conversas entre ele e Napoleão, quando esta é
incrementada internamente no enredo no âmago do personagem escritor. As cenas em
que Napoleão surge são expostas de forma natural, como se ele fosse, pela
perspectiva de Qorpo-Santo, um personagem real. Os dois interagem e, em momento
algum, o narrador da história se refere a 22 Napoleão como um devaneio do escritor;
simplesmente descreve as cenas com naturalidade, tornando o produto da loucura do
escritor um elemento verossímil no enredo. A loucura de Qorpo-Santo evidencia-se,
assim, como um livro aberto, no qual suas visões adquirem, sobrepostas pela obra de
Assis Brasil, uma verossimilhança interna. Do ponto de vista dos personagens que
cercam QorpoSanto, a visão de Napoleão não passa de um devaneio insano; no
entanto, para o leitor de Cães da Província, as visões constituem, sem quebra alguma,
uma progressão da narrativa:
“Napoleão III e ele, embora diferentes em tudo, buscam o
objetivo comum de todos os seres: não morrer, deixar um rastro
indelével de feitos que marquem sua passagem pela fantástica
experiência da vida. Homens com essa chama não morrem na
consciência dos outros homens, serão lembrados até o fim dos séculos.
E pretender isso é legítimo; o Supremo criador não nos teria dado uma
inteligência e uma sensibilidade unicamente para contemplarmos um
belo pôr do sol. E ele, Qorpo-Santo, já começa a sentir as primeiras
palpitações da eternidade na turbulência criadora de que se sente
possuído: escreverá, e logo, o arremate daquela história audaz. Assim o
exige seu destino.” (ASSIS BRASIL, 2010, p. 228)

Assim, a genialidade e a loucura de Qorpo-Santo se misturam em uma ânsia por


reconhecimento, por não pertencerem à mesmice dos dias a que estava submetido
dentro da sociedade porto-alegrense do século XIX. E, pelas vontades, desejos e
emoções, sua razão em diversos episódios sucumbiu à loucura que expressava dentro

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de um ambiente claustrofóbico, em que ele não conseguia encontrar uma direção a
seguir por ser um incompreendido, um estranho, o louco da Província.

Conclusão
Após o término deste trabalho, podemos perceber que a metaficção nos dá o
direito de analisar o choque do homem com o mundo. A metaficção é quando a ficção
(literatura) se entende enquanto mentirosa e mostra ao leitor que sabe que aquilo que
está sendo produzido é tão somente discurso, e portanto, como citado anteriormente
permite desvelar ao narratário como se desenrola o processo de construção da escrita.
Além disso, a metaficção tenta quebrar com discursos que se validam como
corretos e unívocos. É o que acontece em “Cães da Província”, a personagem Qorpo-
Santo é julgado como louco e excêntrico por trazer em seu discurso idéias que eram
contraditórias para a uma Província do século XIX. A metaficção ao se mostrar como
ficção questiona os limites da linguagem, e por analogia vai demonstrar que não só ela
é mentirosa como a própria idéia do discurso oficializado, a literatura é falsa – e eu, o
livro, o narrador, discuto isso com o próprio narratário.
Por fim, conclui-se que a linha tênue traçada entre a loucura e a genialidade de
Qorpo-Santo, e o fato da personagem fantasiar em um mundo somente seu, totalmente
adverso a costumes e regras tradicionais vai tecendo ao longo da narrativa uma
personagem complexa, singular e subversiva.

Referências
Meio eletrônico:
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/158012>
<https://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/caes-da-provincia.html>
<http://homoliteratus.com/qorpo-santo-e-os-caes-da-provincia/>
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<http://www.passeiweb.com/estudos/livros/caes_da_provincia>
Obras literárias:
BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Cães da Província. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

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