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A stone of hope: prophetic faith, liberalism, and the death of Jim Crow
While most liberals believed that education and economic development would wear
down racial prejudice, black civil rights leaders believed – like the ancient hebrew
prophets – that the natural tendency of society was towards corruption. Prophetic
inspiration helped black leaders generate unprecedented solidarity and self-sacrifice
among black southern masses, whose movement resembled a religious revival – with
far more determination than either their northern liberal allies or their white southern
enemies.
Keywords: Martin Luther King – Civil Rights – Liberalism
∗
Artigo recebido em março de 2008 e aprovado para publicação em maio de 2008.
∗∗
Professor do Departamento de História da University of Oklahoma.
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Uma pedra de esperança: a fé profética, o liberalismo e a morte das leis Jim Crow
Une pierre d’espoir : la foi prophétique, le libéralisme et la mort des lois Jim
Crow
Tandis que beaucoup de libéraux s’imaginaient que l’éducation et le développement
économique allaient corroder le préjugé racial, les leaders noirs du mouvement pour
les droits civils considéraient – à l’instar des anciens prophètes hébreux – que la
tendance naturelle de la société était la corruption. Cette inspiration prophétique a
aidé les leaders noirs à engendrer chez les masses noires du Sud, dont le mouvement
ressemblait à un réavivement religieux, des sentiments de solidarité inédits et un
esprit d’auto-sacrifice, de façon bien plus déterminée que leurs alliés libéraux du
Nord et leurs ennemis du Sud.
Mots-clés: Martin Luther King – Droits Civil – Libéralisme
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traduzida por “pedra da esperança”, ebenezer era o nome de muitas igrejas afro-
americanas, incluindo a igreja de Martin Luther King Sr. em Atlanta. A fé que
levou milhares de manifestantes negros do sul a vitórias incomuns em meados
dos anos 1960 surgiu a partir de um entendimento realista das possibilidades
de justiça social neste mundo. King e outros seis líderes importantes dos di-
reitos civis entenderam que geralmente essas possibilidades eram mínimas.
O desespero equivalia à montanha. A esperança era, em comparação, difícil
de achar. Como uma canção de liberdade da época dizia: “A liberdade não é
de graça: você tem de pagar um preço, você tem de se sacrificar, por sua liber-
dade”. King afirmou, em outro sermão em 1963, que as crianças negras presas
em Birmingham estavam cavando um “túnel de esperança” na montanha de
desespero. Esta filosofia – esta visão decididamente negativa da natureza
humana e da história – emergiu como um tema dominante do movimento.3
Três descobertas, exemplificadas adiante, contribuíram para uma nova
interpretação do movimento de direitos civis, que percebe um profundo
ceticismo na natureza humana como central na estratégia do movimento.
Infelizmente, os historiadores não têm levado em conta esse ceticismo, tal-
vez porque ele contradiga a fé histórica do liberalismo na humanidade. (A
versão dominante da fé liberal se centra em uma humanidade imaginária do
futuro, na qual a descoberta científica, a educação de massa e o crescimento
econômico erradicam a tradição. Uma crença variante dominou a profissão
de historiadores desde os anos 1970: a fé no povo de raízes “comuns” que irá
triunfar, se os acadêmicos que pensam corretamente os ajudarem a encontrar
sua voz.) Quase todas as histórias sobre os direitos civis viram o movimento
de direitos civis como algo de espírito liberal, e sua oposição como uma defesa
conservadora típica do status quo.
Mas os líderes negros sulistas do movimento rejeitaram as pressuposi-
ções liberais fundamentais, e seus inimigos segregacionistas falharam em se
comportarem como conservadores tradicionais. Enquanto isso, os liberais não
lograram êxito em seus esforços para confrontar o racismo – até que se viram
arrastados pelo movimento negro do sul, que mais parecia uma tent revival4
do que um encontro da ACLU (American Civil Liberties Union – União
3
Este artigo se baseia muito em meu livro, A stone of hope: prophetic religion and the death of
Jim Crow, no prelo, 2003. Copyright c2003 da University of North Carolina Press, http://
www.uncpress.unc.edu.
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Um tent revival é uma forma tradicional e popular de pregação evangélica no sul dos Esta-
dos Unidos, que se vale de uma instalação provisória. (N. do T.)
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publicada após a sua morte, que seu colapso aconteceu quando ele reconheceu
que, se todos os seus desejos de reforma social acontecessem, ele continuaria
infeliz mesmo assim. As reformas podiam satisfazer os cálculos do grande
sistema de seu pai – o Utilitarismo –, mas a alma humana ansiava por algo
mais profundo. Assim começou a busca de Mill, entre os anseios irracionais e
os vôos não científicos do Romantismo Continental, pelos elementos ausentes
do liberalismo.6
Os liberais nem sempre tiveram tempo de continuar sua busca, mas
eles nunca satisfizeram a fome que os levou a ela. James, o filósofo que deu
ao liberalismo americano seu traço distinto na era Progressista, aprendeu uma
lição parecida de seu “colapso” mental, como ele o chamou. James se conven-
ceu de que as pessoas que se afastavam do pensamento racional poderiam se
aperceber de verdades filosóficas profundas e até de verdades científicas. Tais
verdades, muitas vezes, iludiam pessoas normais, saudáveis. James explorou
essa teoria, aparentemente paradoxal, de forma mais completa em The varieties
of religious experience (1903) [As variedades da experiência religiosa]. Mas um
ensaio político – um dos ensaios mais famosos de James – sugere a importância
desse insight no curso histórico do liberalismo. The moral equivalent of war [O
equivalente moral da guerra], publicado em 1910, discutiu a necessidade humana
para cruzadas irracionais – por contágios em massa de emoção que, ao contrário
da razão, pudessem inspirar sacrifícios e solidariedade. James solidarizava-se
com os pacifistas que corajosamente tinham esperança na abolição da guerra,
mas ele também afirmava que aqueles que fazem campanha contra “o horror
e a irracionalidade da guerra” estavam enganados. O homem civilizado ainda
era selvagem – ainda tinha “toda a combatividade inata e todo o anseio pela
glória de seus ancestrais”. A guerra, apesar de toda a sua insanidade, era emo-
cionante de uma forma que servir ao bem-estar social nunca poderia ser. As
pessoas adoravam lutar – ou ao menos adoravam se juntar e começar a lutar.
Os exércitos sempre instigavam orgulho no esforço coletivo. Mas aos grupos
liberais, social-democratas ou pacifistas só instigavam vergonha – “vergonha
ante a idéia de pertencer a tal coletividade”. James apoiava os esforços para
abolir a guerra e acreditava no “lento advento de alguma forma de equilíbrio
socialista”. Mas ele se preocupava com a possibilidade de inspirar as pessoas a
6
John Stuart Mill, Autobiografia (Londres, Longman’s, 1873). Mill foi também uma figura
central no Liberalism and social action (1935) [Liberalismo e ação social], de Dewey, em Later
works XI [Trabalhos posteriores] (Carbondale, Southern Illinois University Press, 1987), de
Dewey; ver p. 11, 18, 19, 23.
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ser resolvida algum dia. Dewey queria um controle humano razoável da so-
ciedade – ele não ansiava por poderes além da compreensão humana. Dewey
conseguiu menos ainda encontrar uma forma popular de fazer um híbrido
de fé e agnosticismo – de convicção e incerteza – junto aos americanos, que,
desde o final do século XVIII, foram um dos povos mais religiosos do mundo.
Tanto quanto eu saiba, Dewey tentou com mais consciência e persistência
do que qualquer de seus contemporâneos descobrir tal híbrido. Mas o que
é importante para os presentes propósitos é que Dewey compartilhava com
muitos outros liberais este sentimento – vindo de Mill, James, e outros (Auguste
Comte, Josiah Royce, George Eliot, Emile Durkheim, para citar alguns) – de
que era preciso urgentemente um substituto moderno para a religião.
No final da década do New Deal, Malcolm Ross, outro pensador e ati-
vista liberal, expressou a ânsia por inspiração e solidariedade em termos mais
terrenos do que Dewey. Ross veio a se tornar famoso mais tarde como diretor
do Comitê de Práticas de Emprego Justo na Segunda Guerra Mundial e foi
um dos primeiros liberais não-sulistas a ganhar experiência em política racial.
Ele aparentemente terminou os anos 1930 exausto. A autobiografia de Ross
de 1939, Death of a Yale man (A morte de um homem de Yale), exibe a história de
um homem desiludido antes do tempo. Ross dirigiu suas reflexões para sua
juventude como repórter nos anos 1920, quando sua vida fora cheia de vigor
e aventura. Naqueles tempos, suas tarefas incluíam a cobertura dos revivals
de Billy Sunday em Louisville. Desse evangelista – ex-vendedor, ex-jogador
de baseball e ex-dono de funerária, que aceitava a ajuda da Ku Klux Klan e
converteu dezenas de milhares de pessoas –, Ross escreveu em 1939: “Há
uma certa dignidade em qualquer um bastante envolvido em sua profissão,
e Billy era excepcional no negócio de salvar as almas dos emotivos”. Sunday
estava perto do fim de sua carreira quando Ross o entrevistou durante uma
viagem de trem pelo país. Olhando para trás, em 1939, Ross se dizia “satisfeito
por ter visto o último daqueles que poderiam tomar a América de assalto com
uma plataforma de inferno e danação”.7 Mas Ross se recompôs e acrescentou,
como H. L. Mencken ou Sinclair Lewis, que ele quis dizer que estava satis-
feito “porque a América tinha [até 1939] saído do estágio em que os donos das
vendas poderiam subsidiar um revivalist para atrair multidões para a cidade”.
O cinismo liberal de Ross sobre a religião evangélica o impediu de assumir
compromissos próprios com a religião. Mas, por sua própria ironia, Ross ansiou
7
Caso não seja óbvio, apresso-me em afirmar que a predição de Ross estava com-
pletamente errada. Ele não podia ter dado conta da emergência de Billy Graham,
Martin Luther King, ou líderes populares evangélicos de anos posteriores, como
Jimmy Carter, Jerry Falwell, Pat Robertson, Jesse Jackson e George W. Bush.
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“Senhor Todo Poderoso, se seu servo Billy Sunday tivesse sido um homem com
uma fala honesta para dizer às pessoas onde é que elas deveriam se posicionar
e a que causa deveriam direcionar seus corações, que sacudidela saudável esses
encontros poderiam ter causado em Louisville”. Ross culpou os “donos das
vendas” por somente permitirem que uma salvação pessoal do outro mundo
pudesse ser ensinada na cidade, assim como culpava seu próprio jornal por estar
de acordo com esses comerciantes: “Quisera ter tido a inspiração de perguntar
a Billy Sunday... o que ele pensava das batalhas do campo das minas de carvão
que estava acontecendo no outro lado de Kentucky. Isso teria dado uma boa
história, e eu provavelmente deveria ter sido despedido por criá-la”.
Para Ross, a religião era uma distração com o outro mundo que desviava
a atenção dos problemas sociais reais. Ele não culpava inteiramente os donos
de lojas e de jornais reacionários por tal conspiração, pois Ross se recusava a
falar das limitações da natureza humana. Em vez disso, como fazem os liberais,
ele refletia tristemente sobre os limites dos que tinham tido uma educação
pior que a dele. Que o sofrimento dos mineiros de carvão nunca tenha sido
mencionado quando Billy Sunday estava na cidade, em grande parte porque
ele estava na cidade, ilustrava tão-somente “nossa preferência tradicional pela
emoção em detrimento da realidade”.
O arrependimento de Ross, como o sentimento de Dewey de que o
liberalismo carecia de uma fé sólida, é um tema que percorre o pensamento
liberal. Poderia ser chamado de inveja do púlpito (para tomar emprestado
um termo de Ann Douglas, que o usou em um contexto distinto). O famoso
autor e defensor do New Deal, Thurman Arnold – a quem Franklin Roose-
velt designou para ficar à frente do seu programa antimonopólio em 1937 –,
expressou este sentimento em seus livros populares: The symbols of government
(1935) [Os símbolos do governo] e The folklore of capitalism (1937) [O folklore do
capitalismo]. Significativamente, proponentes do New Deal, como Ross e
Arnold, compartilhavam esse sentimento com o mais importante liberal “in-
dependente”, Dewey, que ficou fora do New Deal e o criticou por fazer muito
pouco. Eles também compartilhavam esse sentimento com Walter Lippman,
o intelectual liberal mais famoso de todos, que, em seu The good society (1937)
[A boa sociedade], criticou o New Deal por fazer demais. Finalmente, eles o
compartilhavam com o principal liberal republicano, Glenn Frank, que coor-
denou o esforço bem-sucedido de levar o GOP a concordar com as despesas
do New Deal e com a indicação de Wendel Willkie, em 1940.8 Como era de
se esperar, a percepção de uma ausência espiritual fundamental no âmago do
8
Esses e outros exemplos aparecem em mais detalhe em Chappel, A stone of hope.
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Na década posterior à Segunda Guerra Mundial, os liberais se sentiram cada vez mais iden-
tificados com a oposição ao racismo. Eles não tinham se sentido muito identificados, em sua
maioria, antes da Segunda Guerra Mundial. Graças ao surgimento crescente da militância
negra durante a guerra – ao lado da revolta contra o racismo nazista e a necessidade política
de garantir o voto negro no Norte e para os aliados no mundo em processo de descoloniza-
ção –, os liberais passaram a apoiar os direitos dos negros. Os eleitores passaram a identificar
esses direitos, cada vez mais, como uma questão que definia os liberais. O surgimento crescen-
te (rising wind) se refere a acontecimentos como o movimento da marcha parcialmente bem-
sucedida de A. Philip Randolph em Washington, que reuniu 100 mil simpatizantes e teve
o mérito de forçar Roosevelt a publicar uma Ordem Executiva (número 8.802, 15 de junho
de 1941), terminando com a discriminação racial na indústria militar; o aumento de 900%
no número de associados à NAACP, de 50 mil para 450 mil (355 para 1.073 sedes regionais)
durante a guerra; e, sobretudo, o aumento da migração negra do sul rural para as cidades do
norte, onde, de repente, homens e mulheres de cor negra passaram a ter direito ao voto – e,
talvez mais importante ainda, a entrada deles em estados de dois partidos políticos, em que
eleições apertadas fizeram com que ambos os partidos tivessem de competir pelo “bloco
negro”. A Suprema Corte baniu as eleições primárias brancas em 1944 e em 1948, e Harry
Truman – um dos menos liberais dos líderes Democratas – ordenou a dessegregação das
forças armadas; esse último foi o avanço mais radical na política de direitos civis desde a
Reconstrução, e até hoje o mais bem-sucedido.
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O famoso relatório de 1947 elaborado pelo comitê especial sobre direitos civis do presi-
dente Truman, To secure these rights [Para assegurar esses direitos]¸é pouco mais do que uma
tradução de Myrdal. O comitê falava de um “credo americano” em conflito com a prática
de discriminação racial e do triunfo necessário da crença sobre a prática. Roy Wilkins da
NAACP afirmou que o relatório do comitê de Truman tornou-se “um modelo que usamos
pelas próximas duas décadas”. Hubert Humphrey (senador e depois vice-presidente), que
foi secundour Truman na pressão sobre os Democratas para que apoiassem os direitos civis
no final dos anos 1940, foi também fortemente influenciado por Myrdal – que leu antes de
entrar para a política – e mais tarde fez eco em seus discursos. Quando a Corte Suprema fi-
nalmente colocou em julgamento a legalidade da segregação em 1954, o relatório de Myrdal
figurou de forma importante em sua decisão. Myrdal foi considerado uma grande autoridade
pela imprensa liberal e por livros liberais como Inside U.S.A. [Por dentro dos Estados Uni-
dos], de John Gunther (1952). Sobre a grande influência de Myrdal, ver Walter Jackson, Gun-
nar Myrdal and America’s Conscience (Chapel Hill, 1990), e David Southern, Gunnar Myrdal
and Black-White Relations (Baton Rouge, 1987).
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Para uma discussão dos periódicos liberais nos anos 1940 e 1950, ver Peter Kellog,
Northern Liberals and Black American: A History of White Attitudes, 1936-1952 (Ph.D.
Diss., Northwestern University, 1972). Waldrep argumenta convincentemente que
os dados sobre linchamento usualmente citados eram baseados em pressuposições
e definições conflitantes, a ponto de instaurar a dúvida em relação às generaliza-
ções sobre o crime – incluindo a noção universalmente aceita de que o linchamento
diminuiu em meados do século XX: “War of Words: The Controversy over the De-
finition of Lynching, 1899-1940”, Journal of Southern History, LXVI (Fev. 2000), 75
l0l. Journal of Southern History, LXVI (Fev. 2000), 75101. Para considerações sobre
se “linchamento legal” era mais letal do que a atividade mais anárquica da multidão
enfurecida, ver George Wright, Racial Violence in Kentucky, 1865-1940: Lynchings, Mob
Rule, and “Legal Lynchings” (Baton Rouge, 1990); W. Fitzhugh Brundage, Lynching in
the New South: Georgia and Virginia, 1880-1930 (Urbana, 1993); Brundage, ed., Under
Sentence of Death: Lynching in the South (Chapel Hill, 1997); Stewart Tolnay and E.M.
Beck, A Festival of Violence: an Analysis of Southern Lynchings, 1882-1930 (Urbana,
1995), e a breve discussão da questão em A Stone of Hope.
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não tinha “perdido sua crença de que, em última instância, o credo americano
[de oportunidade igual para todos] iria prevalecer”. Os negros tinham ainda
mais fé do que os brancos, disse Myrdal, na “magia da educação”.
É impossível dizer se Myrdal tinha razão sobre a população negra em ge-
ral, mas, embora eu não tenha tentado um levantamento científico da evidência
disponível, a opinião da população negra da época parece mais heterogênea
do que Myrdal admitiu. Os maiores jornais voltados para o público negro no
período – Crisis, Phylon, Midwest Quarterly, Negro Quarterly, Journal of Negro
Education – exibem um equilíbrio de otimismo e pessimismo. Esse equilíbrio
também está evidente nas opiniões dos leitores e colunas de cartas à redação
de tais jornais negros, como o Pittsburgh Courier, Michigan Chronicle, Los Angeles
Sentinel e Baltimore Afro-American. Dois best sellers literários que definem o
período de Myrdal, o Native son [Filho nativo], de Richard Wright, e o Invisible
man (1952) [O homem invisível], de Ralph Ellison – provavelmente o romance
negro mais lido do século nos Estados Unidos – teriam de ser considerados
entre os mais pessimistas dos livros populares do século XX, de modo nenhum
refletindo o otimismo que Myrdal atribuiu às massas negras.13 Talvez, como a
maioria dos povos, os negros americanos eram, ao mesmo tempo, otimistas e
pessimistas, mas não podemos dizer nada baseados na evidência bruta que nos
está disponível – e que estava disponível a Myrdal. O que podemos conhecer
são as visões de um número relativamente pequeno de estrategistas negros
que estavam engajados no movimento e que deixaram arquivos detalhados
de seus pensamentos. Estes claramente não sustentam a visão de Myrdal. Ao
passo que Myrdal e os liberais americanos estavam comprometidos com o
otimismo a respeito do desenvolvimento humano, e especialmente das insti-
tuições humanas, os pensadores do movimento de direitos civis se destacam
por sua rejeição a este mundo e a suas tendências naturais. Eles se destacam
por sua recusa em admitir que os processos sociais se desenvolvam indepen-
dentemente e por sua falta de fé no poder da educação e do desenvolvimento
econômico para curar a sociedade dos demônios opressivos. Em suas concep-
ções da natureza humana, eles estão mais afinados com os profetas hebraicos,
a quem eles citam, ou para citar exemplos modernos, Frederick Douglass e
Reinhold Niebuhr, do que com os liberais mais influentes. Embora Martin
Luther King claramente tenha um grande débito para com a teologia liberal
em relação a muitas questões (incluindo sua aversão pelo que ele chamava de
13
É interessante que estes livros pudessem ser best sellers no mesmo período que o best seller
incrivelmente otimista de Myrdal.
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Bayard Rustin exerceu uma forte influência oculta sobre King e vários
líderes de protestos depois dele. Rustin tinha sido um membro da Liga Co-
munista da Juventude antes de rejeitar os comunistas e se filiar aos pacifistas
na Fellowship of Reconciliation (FOR) [Sociedade de Reconciliação], sendo
preso por resistir ao serviço militar obrigatório durante a Segunda Guerra
Mundial. Em 1942, ele vislumbrou a crise que iria acontecer nas relações
raciais: “O cidadão negro, em geral, perdeu a confiança nos brancos da classe
média”, ele escreveu. “Em sua hora de aflição, ele não procura ‘conversa’ e sim
ação dinâmica. Ele vê com medo e desconfiança a idéia da classe média de
educação e de mudanças culturais a longo prazo.” Ao adotar a não-violência,
Rustin não demonstrava purismo moral ou fé na consciência do opressor. A
ação não violenta, para ele, era uma espécie de força – com freqüência a única
força prática disponível – para obrigar os inimigos a fazerem concessões contra
sua vontade. E ela era perigosa: “A não-violência como método tem embutida
a exigência de sacrifício terrível e sofrimento longo, mas, como Gandhi disse,
‘a liberdade não cai do céu’. Tem-se que lutar e querer morrer por ela”.15
Rustin, um ex-Quaker, não era tão religioso como King, mas ele via Jesus
como um exemplo positivo. “Este fanático cuja insistência no amor atingiu os
próprios pilares da sociedade estável”: assim Rustin descrevia Jesus em uma
saudação de Páscoa a seus seguidores em 1952. Todos viam Jesus como muito
problemático; Rustin notou, mas nem mesmo a crucificação pôde fazer com
que se livrassem d’Ele. “A Páscoa, em qualquer época... relembra a iminência
da vitória impossível, o poder do fraco impotente.” Rustin escreveu que os
seguidores de Jesus “precisam ser lembrados que a Páscoa é a realidade, e que
as estruturas assustadoras de pompa e poder estão em processo de desinte-
gração no momento de sua maior força”. Rustin certamente sabia que estava
fazendo eco ao desdém dos profetas hebraicos às instituições humanas, mas
ele não podia saber, em 1952, quase quatro anos antes de conhecer Martin
Luther King, que ele estava antecipando profeticamente uma expressão-chave
no maior discurso de um novo profeta: “A Páscoa é o símbolo da esperança
ressuscitada do túmulo da falta de esperança”.
15
Rustin, “The negro and nonviolence”, Fellowship, Out. 1942, reimpresso em Down the line:
The collected writings of bayard Rustin (Chicago, Quadrangle, 197l), p. 8-12. O melhor trabalho
sobre a vida e o pensamento de Rustin é Bayard Rustin: troubles I’ve seen [Bayard Rustin:
problemas que eu vi], de Jervis Anderson (Nova York, Harper, 1997).
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As melhores fontes sobre a vida e o pensamento de Modjeska Simkins são longas entrevis-
tas feitas por Jacquelyn Dowd Hall em 1974 e 1976; as transcrições encontram-se na coleção
Southern Oral History Program, Wilson Library, University of North Carolina, Chapel Hill.
Os documentos de Simkins estão na South Caroliniana Library [Biblioteca South Caroli-
niana], anexo da Modern Political Collections [Coleções de Política Moderna], Universi-
ty of South Carolina [Universidade da Carolina do Sul], Columbia. Quase todo o trabalho
secundário sobre ela é de Barbara Woods, também conhecida como Barbara Aba-Mecha.
|Ver Aba-Mecha, “Black Woman Activist in Twentieth-Century South Carolina: Modjeska
Monteith Simkins” [“Ativista Negra na Carolina do Sul no Século XX: Modjeska Monteith
Simkins”] (tese de doutorado, Emory University, 1978); Aba-Mecha, “Conferência da Ca-
rolina do Sul da NAACP: Origem e Mais Importantes Conquistas, 1939-1954”, Proceedings
of the South Carolina Historical Association (1981): 127 (incluindo comentário de Jack Bass e
Charles Joyner); e Woods, “Modjeska Simkins and the South Carolina Conference of the
NAACP, 1939-1957” [“Modjeska Simkins e a Conferência da Carolina do Sul da NAACP]
em Women in the Civil Rights Movement [Mulheres no Movimento de Direitos Civis (Brooklyn:
Carlson, 1990), p. 99-120].
19
Adam Fairclough tem sido particularmente incisivo neste ponto. Ver sua Race and de-
mocracy: the civil rights struggle in Louisiana [Raça e democracia: a luta pelos direitos civis na
Louisiana], 1915-1972 (Athens, Geórgia, 1995).
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Deus a Caim: “A voz do sangue de teu irmão clama a mim do chão onde está
derramado”. (Gen. 4:10)20
Nesses tempos tão perigosos, Simkins não tinha paciência com o
gradualismo liberal. Em 1947, ela escreveu sobre um raro moderado entre
os famosos ensaístas de jornal da Carolina do Sul, George A. Buchanan, do
Columbia Record. Buchanan queria concordar com o espírito do controverso
relatório do presidente do comitê dos direitos civis, mas, ao invés disso, ele
criticou a péssima escolha do momento, dizendo que o relatório iria ter efeito
negativo, como tantos gestos não moderados em favor dos direitos dos negros.
A resposta de Simkins foi curta e direta: “Bem, qualquer hora pode ser a
hora errada para as pessoas fracas e sem princípios fazerem o que é certo. A
coisa a fazer com os residentes de Bilbolândia21 (...) é dar trabalho para eles e
deixá-los, em claro desafio, elegerem quem eles bem entenderem”. Buchanan
achava que o efeito seria que o lixo branco22 do Mississipi se uniria em torno
de líderes mais reacionários do que nunca. Mas, disse Simkins, se os eleitores
brancos “estão dispostos, por despeito, a sofrer a vergonha e a desgraça que
vêm com a representação por palhaços, pretensiosos, tolos e brigões, [então]
‘deixa as águas rolarem’. A hora do cafuné acabou!”.23
Todavia, Simkins guardou a maior parte de seu veneno para os “falsos
líderes” de sua própria raça. Escrevendo sobre a Associação Estadual dos Pro-
fessores de Palmetto, que tinha abandonado recentemente seu gradualismo e
se filiado à dessegregação escolar, Simkins exultou pelo triunfo de seus aliados
sobre a complacência e cumplicidade dos líderes negros costumeiros. Agora
liderados por “homens capazes e destemidos”, a associação de professores
tinha sido “tirada” do “brejo”, onde havia “ficado durante anos, devido a
manobras diabólicas daqueles que pregavam que ‘não estamos prontos ainda,
meninos e meninas’”. Falsos líderes tinham se sentido confortáveis demais, ela
20
Simkins, MS manuscrito de uma coluna para o Norfolk Journal and Guide, 17 de maio de
1947, Simkins Papers, USC, caixa 2. Simkins também expressa visões pessimistas sobre a
natureza humana e relembra sua insatisfação com o gradualismo liberal, nas entrevistas de
Jacquelyn Hall no SOHP, transcrito II, p. 89, 5053, 64.
21
“Bilbolândia” é uma referência sarcástica ao Sul segregacionista, simbolizado aqui pelo
nome do senador Bilbo, líder da bancada segregacionista no congresso dos Estados Unidos.
(N. do T.)
22
“Lixo branco”, ou white trash é um termo que se refere aos brancos mais pobres e (pre-
sumivelmente, seguindo a lógica do racismo científico do final do século XIX) racialmente
degenerados do sul. No imaginário brasileiro, a imagem mais acessível e popular seria a
família Busca-Pé. (N. do T.)
23
Simkins, MS da coluna para 15 de nov. de 1947. Ela rejeitou o gradualismo liberal em sua
próxima coluna, para 22 de nov. de 1947. Ambos nos Simkins Papers, USC, caixa 2.
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26
Simkins, rascunho de discurso/pregação, na parte de trás de folhetos de campanha, s.d.
[ca.1960], Simkins Papers, USC, caixa 5.
27
Um capítulo inteiro de A stone of hope é dedicado a esses aspectos revivalistas. Uma versão
anterior deste capítulo apareceu como “Religious revivalism in the civil rights movement”,
African American Review (Winter 2002).
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29
Ver Mark Newman, Getting right with God: southern baptists and desegregation, 1945-1995
[Fazendo o certo com Deus: batistas sulistas e a dessegregação] (Tuscaloosa, 200l), p. 24, e Joel
Alvis, Religion and race: southern presbyterians, 1946-1983 [Religião e raça: presbiterianos su-
listas] (Tuscaloosa, 1994), p. 57; ver também o editorial, “Southern presbyterians stand up”
[“Presbiterianos sulistas se levantam”], na publicação da comunidade negra semanal, The
Pittsburgh Courier [O Courier de Pittsburgh], 18 de junho, 1956, p. 6.
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“Ao menos”, continuou Williams, “daria à congregação uma base para exigir explicações
dos pastores ‘integracionistas’ (...)”. J. B. Williams para W. J. Simmons, 6/14/57, Williams
Papers, Mississippi Department of Archives and History, Jackson, caixa RO33-BO19-S2-
10383.
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Medford Evans, “A Methodist Declaration of Conscience” [“Uma Declaração Metodista
de Consciência”], The Citizen, janeiro de 1963, l0l3; a declaração de Evans também foi publi-
cada no Information Bulletin da Mississippi Association of Methodist Ministers and Laymen,
cópia na Association of Citizens’ Councils of Mississippi Papers, MDAH, caixa l. Evans
pode ter estado certo quanto a Wesley, mas no seu início na América, o Metodismo era bem
mais rigoroso em sua disciplina hierárquica.
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Christian Layman [Cristão Laico] (out. 1958), ênfase no original, cópia em John Bell Wil-
liams Papers, caixa 10395, MDAH. Só consegui achar um exemplar desta publicação. Ela é
quase toda devotada à reimpressão de editoriais e discursos segregacionistas. O artigo citado
aqui baseou-se bastante em um artigo anterior de McCall’s e criticava Robert Graetz, cha-
mando-o equivocadamente de sulista. Gaetz era um nortista que exercia o cargo de pastor
em uma congregação luterana toda de negros em Montgomery. Ver Chapell, Inside Agitators
[Dentro dos Agitadores] (Baltimore, Johns Hopkins, 1994).
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inimigos resistirem a elas, por um tempo. É significativo que pelo menos alguns
dos ativistas de base locais não tivessem uma teoria de mudança social a partir de
baixo. Mrs. Johnie Carr, organizadora do comitê de transporte do Montgomery
Bus Boycott [Boicote de Ônibus de Montgomery], parecia estar a favor de uma
teoria da história baseada em “grandes homens”. Quando questionada por que,
quando tudo foi dito e feito, o período de boicote tinha produzido tanta mudança,
ela levantou a voz e disse: “Porque Deus nos mandou aquele homem”, querendo
dizer Martin Luther King. “E até que Ele julgue apropriado nos enviar outro, não
iremos adiante.”40 Ouvir com atenção essas vozes do movimento de direitos civis
é suspeitar que somente uma crença em forças sobrenaturais – isto é, uma falta
de fé na massa da humanidade – pode explicar aquele período extraordinário
da luta. Mrs. Carr e outros integrantes do movimento admitiram a existência de
seres humanos extraordinários, nos quais uma chama divina se acende em raras
ocasiões. Esta perspectiva sugere que as pessoas que reagiram à opressão com atos
heróicos de sacrifício provavelmente não se vissem como pessoas comuns, e isso
pode também ajudar a explicar um movimento social que se rebelou tanto contra
o que os acadêmicos chamam de “afro-cristianismo” da vida diária, quanto contra
o estado, o sistema econômico e a ideologia racista branca popular. Tal fato ajuda a
explicar por que os liberais conseguiram, por pouco tempo, ter alguma força contra
as instituições racistas, as grandes barreiras que a sociedade americana construiu
no caminho para a liberdade e a igualdade. Os liberais não fizeram isso sozinhos –
muitos deles reconheciam que eles não poderiam ter feito. Ao contrário, eles foram
varridos para dentro do movimento de direitos civis pelos ativistas que não tinham
as barreiras erguidas pela fé liberal no homem. Estes ativistas foram capazes de
“suprimir”, para usar um verbo bíblico, a resistência de uma maioria branca, que
maciçamente disse aos peritos em sondagem de opinião pública que eles apoiavam
a segregação e que maciçamente votaram pela segregação quando tiveram opor-
tunidade. Eram maioria numérica, gastavam mais e eram mais bem armados do
que aqueles que acreditavam nos direitos civis, mas lhes faltava a inspiração para
o sacrifício pelo que acreditavam, bem como a solidariedade.
A determinação e a fé das forças mais fracas foram importantes no movimento
de direitos civis, como o foi na Guerra do Vietnã ou em outras instâncias em que
grandes nações perderam pequenas guerras. Em uma era em que as ideologias
seculares e as revoluções violentas não mais inspiram esperança, o exemplo da
conquista daqueles que protestavam pelos direitos civis pode ter muito a nos ensi-
nar. Análises longas e críticas ao século passado – estou pensando no Black book of
communism [Livro negro do comunismo], de Stephan Courtois (et al.), e Problem from
hell [Problema do inferno], de Samantha Power – nos avisam do perigo de pensar de
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Mrs. Johnnie Carr, entrevista com a autora, Montgomery, Alabama, 14 de julho de 1989.
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não resolverá a tensão entre aqueles dois ideais exigentes, mas talvez possa
dar paciência e humildade em esforços para ajudarem um ou outro. Talvez
ela possa impregnar ambos os ideais com realismos e assim ajudar a manter
ambos vivos.
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