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PRÁTICAS CULTURAIS DA PERIFERIA NO CAMPO

JORNALÍSTICO: ANALISANDO OS PROCESSOS DE


LEGITIMAÇÃO NOS QUADROS BUZÃO: CIRCULAR PERIFÉRICO
(TV CULTURA) E CULTURA SP (REDE GLOBO)

Rafaela Defendi Mariano (UNICAMP) 1

Resumo: Em nossos estudos anteriores (MARIANO, 2014; BENTES et al., 2015), temos
desenvolvido análises de programas televisivos que são representativos de mudanças pelas
quais tem passado a mídia televisiva brasileira, especialmente no que diz respeito aos seus
participantes e às temáticas que, a nosso ver, estão diretamente relacionadas ao campo da
cultura popular. A partir dessas observações, selecionamos analisar, neste trabalho, os
processos de legitimação das práticas culturais da periferia em dois quadros de programas
televisivos dedicados a divulgar tais práticas sob o ponto de vista dos próprios sujeitos que
as promovem, quais sejam: Buzão: Circular Periférico, exibido entre 2008 e 2009, no
programa de auditório Manos e Minas (TV Cultura), e Cultura SP, exibido de 2011 a 2014,
no jornal SPTV (Rede Globo), ambos apresentados pelo escritor e ativista social
Alessandro Buzo. De acordo com Bourdieu (1997: 77), o campo jornalístico se caracteriza
por estar sob a pressão do campo econômico, por um lado, e por exercer “uma pressão
sobre todos os outros campos, enquanto estrutura”, por outro lado. Apesar da forte
autonomia e influência sobre os outros campos, o campo jornalístico é muito dependente
deles na medida em que suas produções têm como objeto os eventos, as informações e as
tendências dos demais campos. Nesse sentido, nossas análises se mostram relevantes no
âmbito dos estudos sobre como se constrói a legitimação das práticas culturais da periferia
no campo jornalístico, principalmente considerando o fato de que esse campo funciona
como um meio de sanção e de legitimação de outros campos. Para procedermos às análises
dos processos de legitimação nesses dois quadros televisivos, observamos as temáticas
desenvolvidas; as vozes sociais que deles participam; e a sua construção imagética. A
partir da análise desses aspectos, observamos diferenças significativas no que se refere às
formas como as práticas culturais são valorizadas e legitimadas em cada um dos quadros
selecionados. Essas diferenças parecem estar relacionadas ao fato de o quadro Buzão:
Circular Periférico ter sido exibido em uma rede de televisão pública, que se caracteriza
por não ter fins lucrativos e que estabelece, então, uma relação diferente com o campo
econômico em comparação com a rede televisiva que exibe o quadro Cultura SP.
Palavras-chave: Legitimação social. Programas televisivos. Práticas cultuais da periferia.

Considerações iniciais
Estudos recentes sobre a produção e as práticas culturais da periferia (FRANÇA e
PRADO, 2010; PRADO, 2013; 2015; MAIA, 2013) constatam mudanças quanto às

1
Possui mestrado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas e é doutoranda no mesmo programa de
pós-graduação sob orientação da Prof. Dra. Anna Christina Bentes. Contato: rafaeladefendi@gmail.com.

1
Anais do IV Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso: Discursos e Desigualdades Sociais.
Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2016. ISBN: 978-85-7758-301-0.
estratégias de valorização dessa cultura. Segundo França e Prado (2010), as estratégias
dominantes de valorização desse tipo de produção cultural envolviam prioritariamente, até
meados dos anos 2000, políticas de resgate e defesa de sua singularidade em relação às
práticas culturais dominantes 2. Desse modo, a produção cultural da periferia acontecia
fundamentalmente em circuitos próprios e fechados, à margem do centro de produção e
divulgação de bens culturais dominantes. Essa realidade passou por mudanças na última
década de modo que podemos observar atualmente a inclusão dessas práticas culturais da
periferia no cenário de visibilidade midiática, o que pode funcionar como mecanismo de
legitimação e impactar os próprios critérios vigentes relativos aos processos de legitimação
cultural. Nesse cenário, verificamos um significativo leque de produções midiáticas que
retratam a periferia não pelo enfoque da violência, mas que, ao contrário, propõem um
novo enquadramento, de cunho culturalista, para tratar das práticas sociais, culturais e
artísticas das comunidades periféricas. É nesse contexto que surge o programa de auditório
Manos e Minas, produzido e transmitido desde 2008 pela TV Cultura.
Se consideramos que os critérios vigentes não contemplam e excluem as práticas
culturais periféricas, uma questão que se faz importante investigar quanto à maior
visibilidade midiática dessas práticas, anteriormente legadas à margem, tem a ver, acima
de tudo, com o tipo de valor com que elas são apresentadas nesse circuito midiático.
Desse modo, temos como objetivo apresentar, neste artigo, algumas análises
iniciais que desenvolvemos acerca dos processos de legitimação das práticas culturais da
periferia no campo jornalístico, mais especificamente nos contextos de programas
televisivos. Para empreender essas análises, selecionamos dois quadros televisivos que
foram exibidos em períodos distintos e em diferentes programas midiáticos, mas que são
conduzidos pelo mesmo ator social: o escritor e agitador cultural Alessandro Buzo, que
possui uma trajetória pessoal e profissional diretamente ligada à periferia 3. Os quadros
selecionados são: Buzão: Circular Periférico, que integrou o programa de auditório Manos

2
Para Bourdieu (2007), em uma sociedade de classes prevalece a supremacia das práticas culturais da classe
dominante e, consequentemente, a desvalorização de outras práticas. Isso ocorre por meio da criação e validação de
critérios de valorização, legitimação e hierarquização de produtos e práticas culturais. Assim, a classe dominante
não apenas detém a cultura legitimada, como também é responsável por estabelecer esses critérios a partir dos
quais certas práticas são legitimadas e outras não. Nesse sentido, podemos dizer, com base em Bourdieu (2007),
que a deslegitimação da produção cultural da periferia ocorre primordialmente por ela não atender a certos critérios
que vigoram no campo da cultura dominante.
3
Sobre sua trajetória, conferir página 12 do livro Pelas periferias do Brasil, disponível em:
https://issuu.com/alexandre.de.maio/docs/pelasperiferiasvolume2. Acesso em 01/08/2016.

2
e Minas de maio de 2008 a julho de 2010, e Cultura SP, que foi apresentado semanalmente
na primeira edição do Jornal Regional SPTV da Rede Globo de 2011 a 2014 4.
O primeiro quadro integra um programa de auditório que se destacou na grade
televisiva brasileira por ser inovador quanto às temáticas e às vozes nele presentes
(GRANATO, 2011; MARIANO, 2014), conforme será melhor evidenciado na próxima
seção. O segundo quadro – Cultura SP – integra um telejornal regional cujo formato é bem
distinto do programa de auditório. Além disso, cabe ressaltar que o programa Manos e
Minas é transmitido em uma rede de televisão pública que não tem fins lucrativos e que
enfatiza “o compromisso com a sociedade e não com o mercado”. A TV Cultura, emissora
que exibe esse programa desde 2008, foi considerada o segundo canal televisivo com
melhor qualidade de programação do mundo, de acordo com uma pesquisa do instituto
Populus 5. Já o jornal SPTV é exibido pela segunda maior rede televisiva do mundo – a
Rede Globo (atrás apenas da norte-americana ABC), que alcança 99,37% do total da
população brasileira 6. Considerando essas diferenças relativas aos programas e às
emissoras em que os quadros são exibidos, a nossa hipótese é a de que, apesar de se
configurarem tematicamente de modo semelhante e apresentarem vozes ligadas à periferia
de forma a se construir a legitimação das práticas culturais e sociais desses atores sociais,
os quadros selecionados apresentam diferenças quanto aos processos de legitimação.
Na seção de contextualização dos quadros televisivos, apresentaremos a estrutura
deles em termos de organização dos conteúdos e as suas configurações temática e
imagética para, assim, darmos início à investigação do modo como essas características
impactam os processos de legitimação das práticas culturais da periferia nesses quadros.
Na seção de análise, selecionamos trechos dos quadros em que é possível observar os
pontos de vista a partir dos quais as práticas sociais, artísticas e culturais são valorizadas.

1. O campo jornalístico e as práticas culturais da periferia nesse campo


Para Bourdieu (1997: 77), a relação do campo jornalístico com os outros campos se
dá de maneira bastante peculiar na medida em que, por um lado, esse campo “exerceria
uma pressão sobre todos os outros campos, enquanto estrutura” e, por outro, seu grau de
autonomia se restringiria pelas demandas do mercado, isto é, ele estaria “sob a pressão do
4
Esse programa e esse quadro integram o banco de dados da pesquisa “É nóis na fita: a formação de registros e a
elaboração de estilos no campo da cultura popular paulista” (Processo Fapesp 2009/083639-8)
(www.projetonoisnafita.com.br), coordenada pela Profa. Dra. Anna Christina Bentes.
5
Informações sobre essa pesquisa encontram-se em http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/tv-cultura-
tem-2a-melhor-programacao-do-mundo-diz-pesquisa. Acesso em: 09/08/2016.
6
Informações retiradas de: http://negocios8.redeglobo.com.br/Paginas/Brasil.aspx. Acesso em: 09/08/2016.

3
campo econômico por intermédio do índice de audiência”. Apesar da autonomia do campo
jornalístico em relação aos outros campos, o autor destaca o fato de que esse campo
também é “muito mais dependente das forças externas que todos os outros campos de
produção cultural” (BOURDIEU, 1997: 76) na medida em que as suas produções têm
como temática os eventos, as informações e as tendências dos demais campos. Nesse
sentido, o campo jornalístico funciona, na visão de Bourdieu, como um meio de sanção e
de legitimação de outros campos, o que não acontece com nenhum outro campo em relação
ao campo jornalístico.
Sobre o poder simbólico detido pela televisão e a prática de legitimação de
indivíduos e práticas no e pelo campo jornalístico, Bourdieu (1997: 96) afirma que todo
discurso (análise científica, manifesto político etc.) e toda ação (manifestação, greve,
ocupação etc.) tem de se submeter à “prova de seleção jornalística” para ter acesso ao
debate público. Ou seja, devem se sujeitar à censura praticada pelos jornalistas que, sem
sequer saber disso, retêm apenas aquilo que “prende a atenção” do público.
Para o autor, o poder simbólico e de legitimação conquistado pelo campo
jornalístico pode ser explicado pelo “efeito de real” construído pela televisão, ou seja, a
prática de “fazer ver e fazer crer no que faz ver” (BOURDIEU, 1997: 28). Essa prática
pode ocasionar diversos efeitos sociais (cf. SILVA, 2004; FALCONE, 2008), gerando
mobilização ou desmobilização quanto à determinada demanda, por exemplo.
Outra questão ressaltada por Bourdieu é o fato de os jornalistas terem como alvo
conteúdos excepcionais ou sensacionais, ou seja, a seleção de conteúdo estaria limitada
nesse campo pela busca incessante daquilo que é chamado de “furo” jornalístico. Essa
construção do “sensacional” fica evidente em determinadas práticas jornalísticas que
exageram na gravidade de acontecimentos de modo a gerar comoção popular. Segundo
Bourdieu (1997), essas práticas estariam intimamente ligadas à pressão pelo índice de
audiência, ou seja, ao peso do mercado.
Dadas essas pressões econômicas sobre o campo jornalístico, observava-se até a
última década a ausência de uma perspectiva de cunho culturalista para retratar a periferia
de modo que a perspectiva dominante estava centrada no tráfico e na violência
(HERSCHMANN, 2000; FRANÇA e PRADO, 2010) para gerar a construção do
“sensacional”. Essa perspectiva começa a se modificar na última década com
documentários e programas televisivos que propõem “um novo enquadramento, de viés
culturalista, para tratar da experiência cotidiana” dos moradores das periferias brasileiras

4
(FRANÇA e PRADO, 2010: 63). No âmbito dessas produções televisivas está o programa
de auditório Manos e Minas, exibido pela TV Cultura desde 2008. Nas análises
desenvolvidas por Granato (2011) e por Mariano (2014), os aspectos temáticos são
fundamentais para os processos de inovação desse programa na medida em que as
chamadas temáticas de variedade não são as predominantes nele. Com o objetivo de “dar
voz à periferia”, o Manos e Minas tematiza multissemioticamente e de maneira um pouco
mais longa tópicos relacionados à vida social na periferia, com especial atenção para os
elementos do hip hop. Considerando que os aspectos temáticos envolvem tanto os
conteúdos tópicos quanto o ponto de vista que organiza esses conteúdos, Granato (2011)
destaca ainda o fato de que esse programa não apenas trata de tópicos relacionados à vida
social da periferia, mas também apresenta essas temáticas a partir do ponto de vista dos
sujeitos das periferias com vistas à legitimação de suas práticas sociais.
A fim de perscrutar os processos de legitimação no campo jornalístico e, mais
especificamente, no contexto de programas televisivos, temos como objetivo principal
neste trabalho analisar de que forma as práticas culturais da periferia são valorizadas no
interior de dois quadros televisivos que se assemelham por apresentarem o mesmo
apresentador e por terem estrutura semelhante, mas que se distinguem quanto ao formato e
aos objetivos e quanto à rede televisiva em que são transmitidos.

2. Contextualizando os quadros televisivos Buzão: circular periférico e Cultura SP


Como já dissemos anteriormente, o programa Manos e Minas no qual é apresentado
o quadro Buzão: Circular periférico (doravante, Buzão) se destaca pelo fato de tematizar
as práticas sociais, culturais, literárias e musicais da periferia do ponto de vista dos
próprios sujeitos que promovem essas práticas. Assim, ele se revela um programa de
auditório inovador ao distanciar-se das temáticas mais recorrentes desse gênero, que, em
geral, são vinculadas ao entretenimento. O quadro Buzão que integrou esse programa de
auditório de 2008 a 2010 era apresentado quinzenalmente com duração média de 3 a 4
minutos. Em cada episódio, o apresentador Alessandro Buzo (doravante, AB) visitava uma
comunidade da periferia, com o objetivo de divulgar as práticas culturais, artísticas e
esportivas dessa comunidade. No quadro a seguir, apresentamos como o Buzão está
estruturado para construir um retrato da periferia pelos seus próprios moradores que, além
de entrevistados, são responsáveis, juntamente com AB, pela apresentação dos espaços
visitados na periferia:

5
Quadro 1: Estrutura do quadro Buzão: Circular periférico

Com base nessa descrição, podemos afirmar que o Buzão apresenta um caráter
etnográfico, pouco comum para tematizar a realidade da periferia, na medida em que não
privilegia apenas a presença de especialistas ou de pessoas renomadas no meio midiático,
mas dá voz a pessoas “comuns”, moradoras da periferia, que apresentam seus lugares,
relatam suas vivências, expõem suas práticas e seus pontos de vista.
Com base nos levantamentos tópicos, feitos por Granato (2011) em relação aos 40
quadros exibidos entre 2008 e 2010, pudemos constatar a recorrência de determinadas
temáticas, conforme pode ser visto na tabela abaixo:

Tabela 1: Temáticas recorrentes no quadro Buzão: Circular periférico


2008 (16 2009 (17 2010 (7 Total (40
Temáticas
quadros) quadros) quadros) quadros)
Projetos sociais 15 13 4 32
Eventos culturais, artísticos e musicais 12 1 3 16
Elementos do hip-hop (break, grafite, rap) 6 10 1 17
Literatura 7 2 3 12
Prática de esportes em espaços comunitários 3 1 0 4
Projeto Ambiental 1 1 0 2

Com base nesse levantamento acima, é possível constatar que o Buzão busca
construir o retrato da periferia não pelo viés da dificuldade, da violência e das tragédias -
perspectiva recorrente no campo jornalístico até a estreia, a partir de 2006, de programas
como o Central da Periferia (PRADO, 2014) e Manos e Minas (GRANATO, 2011;
MARIANO, 2014), mas (i) pelo viés das oportunidades, na medida em que são
tematizados projetos sociais importantes para crianças e jovens da periferia; (ii) pelo viés
cultural, na medida em que são tematizadas tanto as práticas culturais, artísticas e musicais

6
promovidas por projetos sociais quanto os eventos culturais, artísticos e musicais e os
elementos do hip hop; e (iii) por um viés mais realista e interno à comunidade, na medida
em que são expostas histórias de vida dos próprios representantes da comunidade visitadas.
A descrição do programa Manos e Minas feita no próprio site da TV Cultura - “Os
principais elementos do hip-hop estão na nossa linha de frente. Rap, dança de rua, b-boys,
DJ, grafiteiro e MC juntam-se a outras manifestações da cultura popular. As reportagens
mergulham nos assuntos que povoam esse cotidiano” - é, então, corroborada pela forma
como o quadro Buzão: Circular periférico tematiza as práticas cultuais da periferia,
conforme pudemos verificar em nossos levantamentos e análises.
Quanto ao quadro Cultura SP, ressaltamos, em primeiro lugar, o fato de Alessandro
Buzo ser apresentado no jornal como “especialista da cultura popular”. O quadro foi
exibido semanalmente aos sábados de 2011 a 2014 na primeira edição do jornal regional
que é transmitido para a região da Grande São Paulo. Nesses 4 anos de exibição, foram ao
ar 147 quadros. No Cultura SP, similarmente ao Buzão, AB entrevistava coordenadores de
projetos sociais e organizadores de eventos culturais e/ou os próprios participantes dos
projetos e/ou eventos. Após a exibição do quadro, AB era entrevistado no estúdio do jornal
de modo a expandir os tópicos da reportagem.
Quadro 2: Estrutura do quadro Cultura SP

Quando comparamos as estruturas dos dois quadros analisados, observamos que, no


caso do Buzão, os moradores da periferia, além de entrevistados, são os responsáveis por
conduzir o quadro expondo as práticas do bairro visitado. Além disso, ressaltamos a
participação de outros moradores da comunidade que são, em muitos casos, entrevistados
no auditório pelo apresentador do Manos e Minas após a exibição do quadro. Nesse

7
sentido, podemos dizer que o programa dá voz primordialmente aos sujeitos “comuns”,
moradores da periferia, que têm raro acesso a um espaço discursivo no campo jornalístico
no qual é comum se colocar em primeiro plano a representação desses sujeitos do ponto de
vista das classes dominantes. No quadro Cultura SP, observamos algumas diferenças
quanto à presença dessas vozes. Primeiramente, verificamos que são entrevistados pelo
apresentador AB principalmente os porta-vozes de organizações, eventos e projetos. Ou
seja, é dada voz no quadro principalmente a pessoas que falam “em nome” de um grupo ou
de uma instituição e que possuem legitimidade e autorização suficiente e necessária para
isso (cf. BOURDIEU, 1998). Além disso, após a exibição do quadro, o próprio AB é
entrevistado no estúdio do telejornal pelo jornalista e apresentador. Podemos dizer, então,
que o tópico é desenvolvido não apenas pelos representantes legítimos da periferia, pois a
voz que é legitimada no jornal – a do jornalista – volta a ser aquela que instaura os tópicos
e/ou expande os que foram introduzidos na matéria exibida.
Para o levantamento das temáticas do Cultura SP, selecionamos 35 amostras
exibidas no ano de 2013 em função de as transcrições deste ano estarem disponíveis no
banco de dados utilizado. A partir desse levantamento, pudemos verificar quais são as
temáticas mais recorrentes nesse quadro televisivo:

Tabela 2: Temáticas recorrentes no quadro Cultura SP


Temáticas 2013 (35 quadros)
Evento cultural 21 (60%)
Projeto social que promove prática de esporte 5 (14%)
Projeto artístico-cultural 5 (14%)
Projeto social que promove oficinas culturais 3 (9%)
Evento esportivo 1 (3%)

Destacamos o fato de o Cultura SP não apresentar mais de uma temática por


episódio e privilegiar os eventos culturais ligados à cultura popular, o que o afasta, em
certa media do Buzão, que apresentou maior diversidade de temáticas.
Assim, uma das diferenças fundamentais que observamos nesses levantamentos
iniciais sobre a estruturação dos dois quadros e sobre suas configurações temáticas refere-
se ao fato de que, no caso do Cultura SP, o objetivo do quadro é mostrar na grande maioria
dos episódios analisados um evento tradicional e/ou da cultura popular, sendo que nem
sempre os espaços da periferia são privilegiados na matéria 7; enquanto o Buzão: circular

7
O quadro faz a cobertura, muitas vezes, de eventos que são tradicionais e que ocorrem na região central de São
Paulo.

8
periférico, na maioria das vezes, apresenta mais de uma temática, pois o objetivo é mostrar
práticas sociais, culturais, artísticas ou esportivas de determinada comunidade da periferia.
O Buzão, ao privilegiar os projetos sociais desenvolvidos nas comunidades, enfoca
as oportunidades que os próprios sujeitos, moradores da periferia, criam para promover
práticas sociais, culturais, artísticas e esportivas. Além disso, o quadro busca comprovar
que essas práticas não são eventos periódicos, mas fazem parte dos hábitos e do cotidiano
da comunidade visitada, sendo construídas no programa como práticas efetivamente.
Também pudemos constatar que as diferenças em termos dos objetivos e das
configurações temáticas dos quadros analisados se deixam ver nos recursos multimodais
mobilizados. Não é nosso objetivo aqui empreender uma análise exaustiva desses recursos,
o que demandaria um maior aprofundamento de vários dos elementos que são mobilizados
além das próprias imagens. Porém, consideramos fundamental apontar, ainda que
brevemente, algumas das questões que as imagens apresentadas nos dois quadros indiciam.
No Buzão, são exibidas imagens do bairro visitado, dos seus moradores e de suas práticas
de modo a identificar a comunidade não somente pelo relato de seu representante. Assim, a
periferia é retratada de um outro modo, na medida em que são exibidas suas ruas, seus
espaços públicos e os espaços dos projetos sociais, suas escolas e até mesmo as casas de
alguns moradores. Já no caso do Cultura SP, podemos observar imagens que se limitam a
cenas rápidas e panorâmicas de um conjunto de casas da comunidade e às cenas dos
eventos apresentados ou dos espaços delimitados onde são desenvolvidos os projetos. O
foco, então, mantém-se, no caso desse quadro, tanto verbalmente quanto imageticamente,
nos eventos culturais que são realizados tradicionalmente. Nesse sentido, o quadro se
aproxima de matérias cujo foco é apresentar uma agenda cultural de eventos de
determinado local.

3. Analisando os processos de legitimação das práticas culturas da periferia


A fim de constituir uma amostra dos episódios mais representativos para
procedermos à análise dos pontos de vista em jogo na valorização das práticas sociais,
culturais e artísticas, selecionamos aqueles cujas temáticas foram as mais recorrentes nos
dois quadros de forma geral. Assim, no caso do Buzão, escolhemos duas exibições de
2008 (13/08 e 10/09) e duas de 2009 (04/04 e 13/09) que tratam das duas temáticas mais
privilegiadas na trajetória de exibição do quadro – “projetos sociais que promovem práticas
culturais, artísticas, musicais e esportivas” e “práticas culturais ligadas ao hip hop”. No

9
caso do Cultura SP, selecionamos, da amostra de 2013, disponível no banco de dados, 2
episódios que tratam de eventos culturais (19/01/2013, 30/03/2013) e 1 episódio que
tematiza um projeto artístico-cultural (16/03/2013).
Tanto no Buzão de 10/09/2008 como no de 13/09/2009, podemos observar um
ponto de vista semelhante sobre a valorização das práticas sociais e culturais desenvolvidas
nos projetos apresentados. No primeiro episódio, AB visita o bairro do Bixiga,
categorizado como “a periferia do centro”, e entrevista o arte-educador Pedrinho (PD), que
dá aulas de capoeira em um projeto social da escola de samba Vai-Vai. No trecho a seguir,
destacamos o discurso sobre a importância das práticas culturais do ponto de vista social:
“Buzão: Circular Periférico”. Exibição: 10/09/2008 (bairro do Bixiga-SP)
AB (...) por que esse lance de capoeira... de escola de samba...samba capoeira 21[tudo a vê(r)]
PD 21[samba] e capoeira têm

tudo a ver né?...o samba de roda...puxada de rede...maculelê...a galera da Bexiga da comunidade...a


gente fizemos esse trabalho pra quê?...pra abatê(r) o índice da criminalidade né?....e eu como já fui
menino de ru::a...passei fome e necessidade...nada melhó(r) de que congregá(r)...com a nossa nossa
comunidade a família Vai-Vai...uní(r) essa::...criançada...e ensiná(r) a arte da capoe(i)ra né?...tirando
da rua...e ensinando um po(u)quinho de cultura

Nessa fala, o arte-educador busca justificar o projeto social que desenvolve. Assim,
ele ressalta não apenas o poder simbólico da prática cultural quando fala sobre o ensino da
arte e da cultura, mas, principalmente, as possibilidades de transformação social por meio
dessa prática cultural, possibilidades essas enunciadas como “abatê(r) o índice da
criminalidade” e “tirar da rua” os jovens em situação de vulnerabilidade social.
Nesse mesmo episódio, outro educador social também destaca o papel
transformador da prática cultural desenvolvida no projeto: “o Jailton que era um ex
morador de rua...e hoje ele é campeão brasile(i)ro...e vamo(s) tentá(r) o título sul-
americano (...) se der tudo certo...será aí o prime(i)ro lutado(r) brasile(i)ro...a conquistá(r)
um título...que veio das ruas”.
No episódio de 13/09/2009, AB visita o Jardim Peri e entrevista, primeiramente,
um arte-educador que dá aulas de grafite no projeto “Imagem periférica”. Em sua pergunta,
o apresentador já orienta o entrevistado a tratar das possibilidades de transformação de
trajetórias de vida por meio das práticas desenvolvidas pelo projeto:
“Buzão: Circular Periférico”. Exibição: 13/09/2009 (bairro Jardim Peri-SP)
AB você acha que o grafite (es)tá assim...pr’um garoto como esse aqui assim fica com o pincel na mão te
ajudan(d)o...tem poder de resgatar também?
GO esses daqui já (es)tão resgatado mano esses 10[aqui já era...cara...esses daqui] ninguém leva mais
AB 10[esses não pode mais né?]

((corte de imagem: exibição de GO e das crianças grafitando com música de fundo))

10
O entrevistado responde afirmativamente à pergunta de AB, ressaltando o poder da
prática cultural de resgatar os beneficiários do projeto do que podemos inferir como a
criminalidade, dado o contexto em que é desenvolvido o projeto. Depois dessa parte do
quadro em que os participantes falam sobre a importância das práticas culturais
apresentadas, os entrevistados passam a relatar como a atividade começou a ser
desenvolvida.
Nos dois outros episódios do Manos e Minas selecionados – 13/08/2008 e
04/04/2009, podemos observar um ponto de vista distinto dos dois primeiros episódios
para promover a valorização das práticas culturais retratadas.
No Buzão de 13/08/2008, AB visita a periferia da cidade de Osasco, onde
apresenta, junto com o grafiteiro Dingos, “um estúdio de gravação e ensaio que funciona
como galeria”, “o Núcleo de Hip Hop Eremim” eo projeto “Arte na Lata”. O primeiro local
é categorizado como “estúdio musical” e “um polo cultural”. Além disso, é descrito por
como “um estúdio que junta vários tipos de artes vários tipos de sons...tem esses musicais
de variadas do pagode ao punk e ao hip hop tem uma reunião grande de grafiteiros (...)”.
No segundo lugar visitado, são desenvolvidas atividades como “oficina de MC e de
grafite”. O anfitrião que desenvolve essas oficinas na comunidade relata sua experiência
com os jovens e ressalta que procura “trabalhá(r) essa questão do conhecimento pra
quando for pra rua podê(r) combatê(r) várias coisas...o preconce(i)to em relação ao
olhar da sociedade até mesmo dos pais deles então eu procuro trabalhá(r) tudo isso”. Em
seguida, AB entrevista o coordenador da oficina de MC que afirma: “a gente trabalha com
conteúdo...valores...por que que alisa o cabelo...querê(r) buscá(r) suas origens quando a
gente fala de África”. Nessa fala, podemos observar um discurso por parte do educador
social sobre como o poder expressivo das práticas artísticas, culturais e musicais
desenvolvidas nos projetos é fundamental na constituição de processos de
autoconhecimento e de descobrimento de raízes étnicas e culturais por parte dos alunos.
Em um momento posterior do episódio exibido em 13/08/2008, AB entrevista outro
educador social, Jota Ribeiro, que coordena o projeto Arte na Lata. Ao ser questionado
sobre o que é esse projeto, JR fala sobre o processo de transformação do lixo em
instrumentos musicais. Ao final, o entrevistado afirma que: “vamos desenvolvendo os
instrumentos e também a parte da ideologia de cada criança”. Nesse discurso, também
observa-se que o educador social ressalta a prática cultural como potencial para o
desenvolvimento da ideologia dos educandos, ou seja, como parte essencial na constituição

11
de pontos de vista e de conhecimentos. Apesar de ser mais genérico que os discursos
anteriores, podemos dizer que todas essas falas dos educadores sociais nesse episódio
tratam do potencial simbólico e referenciador das práticas desenvolvidas nos projetos.
No final do quadro, são exibidas fotografias da cidade, enviadas pelos moradores de
Osasco, que retratam práticas culturais (a arte do grafite e a prática musical) e esportivas.
Após a exibição do quadro, o apresentador Rappin Hood no auditório do Manos e Minas
entrevista uma moradora da cidade de Osasco que é beneficiária do projeto Arte na Lata,
apresentado na matéria. Hood pede, então, que ela comente tanto a iniciativa do projeto de
grafite quanto o projeto do qual faz parte. Nesse sentido, o programa dá voz tanto aos
porta-vozes dos projetos apresentados quanto àqueles que são beneficiados por esses
projetos, procurando fornecer ao telespectador um olhar multifacetado sobre o lugar
visitado e sobre a temática desenvolvida.
No episódio de 04/04/2009, AB visita a periferia de São Bernardo e, depois de
mostrar as atividades da “Usina socioeducativa da Fundação Criança”, entrevista o
coordenador do grupo de congada do Parque São Benedito. Após serem exibidas imagens
dessa prática cultural, SD, o porta-voz, fala sobre os objetivos do grupo:
“Buzão: Circular Periférico”. Exibição: 04/04/2009 (periferia de São Bernardo do Campo-SP)
SD eu queria mostrá(r) nossa periferia aqui...de uma outra forma...né?... esse lado bonito...que é a
periferia...esse lado da cultura...né? que tem muitos que fala assim:.–“vô(u) levá(r) cultura pra
periferia”-...pra que vai trazê(r) cultura pra nós?...nós num precisa de cultura não...nós precisamo(s)
sê(r) respeitado(s) na nossa cultura...a maior violência que pode cometê(r) com o ser humano...é
tirá(r) sua própria cultura...suas própria(s) tradições

O discurso de SD ressalta que a prática da congada, além de manter as tradições


culturais do lugar, faz com que as pessoas olhem para a periferia sob um ponto de vista
diferente, ou seja, sob o viés cultural, de forma a não julgarem as práticas ali desenvolvidas
como não-cultura ou como baixa cultura. Nesse sentido, essa fala se coaduna com o
objetivo do programa Manos e Minas, que procura valorizar as práticas culturais, sociais,
literárias e musicais da periferia e retratar a realidade das comunidades periféricas não pelo
viés da violência e da criminalidade.
De modo geral, podemos observar, nos dois primeiros episódios selecionados do
Buzão, o discurso tanto do apresentador como dos coordenadores e educadores dos
projetos sociais sobre o poder das práticas culturais e de esporte desenvolvidas nos projetos
em promover a transformação da trajetória de vida de seus beneficiários. Esse discurso
sobre as potencialidades das práticas culturais, artísticas e esportivas em alterar as
condições de vida dos participantes dos projetos se aproxima do discurso observado por

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Prado (2014) no programa Central da Periferia, apresentado por Regina Casé na TV
Globo em 2006. Por outro lado, observa-se, de forma mais recorrente, durante o quadro
Buzão, o discurso sobre o potencial simbólico e referenciador das práticas retratadas, na
medida em que os entrevistados afirmam que elas contribuem para a construção de uma
referência social para eles e para os processos de autoconhecimento e de descobrimento de
raízes étnicas e culturais.
Quanto aos episódios selecionados do Cultura SP que tematizam os eventos
culturais da cidade de São Paulo - o de 19/01/2013 que apresenta o “Liga do Vinil” e o de
30/03/2013 que apresenta o “Samba de todos os tempos”, podemos observar que ambos
tratam de eventos ligados à cultura musical: o primeiro, à música black, e o segundo, ao
samba. O primeiro evento ocorre mensalmente no Jardim Jangadeiro, distrito de Capão
Redondo, na periferia de São Paulo, e trata-se, segundo seu organizador, de uma
“intervenção no espaço cultural Liga do Vinil”. Desse episódio, selecionamos as falas a
seguir, nas quais é possível observar a valorização por parte dos entrevistados das práticas
sociais, culturais e artísticas retratadas no quadro:

Quadro “Cultura SP” – 19/01/2013: Evento da “Liga do Vinil”


“muito importante...por que atrai a família né?...pode vê(r) que tem lá...um monte de amigos...de
pessoas...um monte de crian::ça...isso é importante porque:: agrega (...)” (participante do evento)
“(...) a gente (es)tá levan(d)o...a música do passado...pra molecada mais jovem” (organizador do evento)
“essas músicas de Vinil... a maioria...ela:: tem uma história pessoal de cada um (...) e os DJs novos vendo
isso...(inint.) os produtores...faz essa pesquisa...essa garimpagem...e mantêm...a música negra dos nossos
antepassados” (DJ do evento)
“cultura de hoje...não seria nada sem a história do movimento vinil...a periferia...é o que mais preserva...a
cultura...e a história...dos grandes bailes” (DJ do evento)
“(...) a importância...é:: é essa... mantê(r) viva essa parada... que deixaram pra gente aí” (DJ do evento)

Nessas falas, podemos observar que, de um lado, um dos participantes do evento


valoriza a “Liga do Vinil” pelo seu caráter agregador e, de outro, os responsáveis pelo
evento (um dos organizadores e os DJs) destacam que as práticas ali promovidas devem ser
valorizadas pela manutenção das práticas musicais do passado.
Do episódio sobre o “Samba de todos os tempos”, evento que também ocorre
mensalmente aos domingos no distrito de Capão Redondo, destacamos as seguintes falas:
Quadro “Cultura SP” – 30/03/2013: Evento do “Samba de todos os tempos”
“isso aqui é comunidade da família...ó...(es)tá aí...criança...família...todo mundo participan(d)o...isso é um
samba verdade(i)ro” (participante do evento)
“(...) eu (es)tô(u) curtindo...é bem família...não tem bagunça...é um samba de raiz...é bacana” (participante do
evento)
“o samba...é:: mais do que um estilo...ele se torna uma filosofia de vida...né?...a gente tem um projeto de
resgate...não resgate só do samba...mas o resgate do ser humano...a gente tira jovens da:: da criminalidade...
a gente arrecada alimentos... a gente arrecada... brinquedos pra/pro dia das crianças (...)” (sambista do
evento)

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Nessas falas, assim como nas falas do episódio anterior, podemos observar que as
práticas culturais são valorizadas, de um lado, por agregarem a comunidade e, por outro,
por promoverem o “samba verdadeiro” ou “samba de raiz”. No caso da fala de um dos
sambistas do evento, fica destacada também a função social do evento na medida em que a
sua promoção não apenas resgata o samba, como também ajuda pessoas em situação de
vulnerabilidade social, não pelo fato de estas participarem das práticas culturais descritas,
mas porque são arrecadados alimentos e brinquedos destinados a elas.
De forma geral, podemos dizer que no quadro Cultura SP prevalecem os discursos
que valorizam as práticas culturais, artísticas, musicais desenvolvidas nos eventos
apresentados por dois vieses: o valor agregador das práticas por reunirem as pessoas da
comunidade e o seu valor em resgatar e manter a cultura popular e/ou negra.
Por fim, no episódio de 16/03/2013, que tematiza um projeto artístico-cultural, AB
apresentou o espaço cultural Abayomi. Categorizado como “coletivo”, esse espaço agrega
um ateliê, um estúdio musical e um espaço para oficinas. No quadro, destaca-se o trabalho
do ateliê que desenvolve roupas customizadas com inspiração na cultura hip hop. A
coordenadora do espaço cultural afirma que o objetivo do trabalho é “trazê(r)... essa
cultura... resgatá(r)... fazê(r) com que as pessoas que estão dentro da nossa comunidade
conheçam... trabalhos de arte... foi através do Abayomi... que eu aprendi também
valorizá(r) minha própria arte... não sabia que eu era capaz de produzí(r) tantas coisas
assim”. Nessa fala, fica claro o papel de resgate de uma cultura popular na comunidade e
de valorização de uma arte produzida por pessoas “comuns” da periferia. Nesse sentido,
esse último discurso se aproxima daquele produzido no quadro Buzão: Circular periférico
sobre o potencial simbólico e referenciador das práticas culturais e artísticas, o que não se
mostrou muito recorrente no quadro Cultura SP por este privilegiar a função agregadora e
de resgate das origens promovida pelos eventos culturais populares.

4. À guisa de conclusão
Em nossas análises, pudemos observar que os quadros televisivos analisados
apresentam objetivos distintos e legitimam as práticas artístico-culturais divulgadas de
modo distinto, apesar de terem o mesmo apresentador, que é um ator social legitimado no
campo da cultura popular paulista.
No caso do quadro Cultura SP, podemos observar que a temática privilegiada são
os eventos que tradicionalmente ocorrem na cidade de São Paulo e não as práticas culturais

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cotidianas das comunidades periféricas. Essa temática se constrói tanto por meio da
linguagem verbal como por meio dos recursos multissemióticos. No caso destes últimos,
pudemos observar que as imagens enfocam os próprios eventos e não os lugares, os porta-
vozes desses eventos e as práticas culturais promovidas por esses eventos que
tradicionalmente ocorrem nas periferias ou no centro de São Paulo. Além disso,
destacamos o fato de que, nesse quadro, a expansão tópica ocorre no estúdio do jornal
SPTV e é feita pelos representantes da grande mídia que não deixam de ter o papel de
entrevistar aquele que é considerado o representante da periferia.
No Buzão Circular periférico, como já dissemos anteriormente, podemos observar
uma mudança na perspectiva a partir da qual se retrata a periferia, já que, ainda que se trate
das dificuldades enfrentadas, são privilegiadas as oportunidades que os próprios sujeitos,
moradores da periferia, criam para promover práticas culturais, artísticas e esportivas. Em
relação ao ponto de vista a partir do qual essas práticas são valorizadas, constatamos na
amostra analisada que, ainda que se observe o discurso sobre o papel social dos projetos
que promovem essas práticas, o seu valor não se encerra aí. Longe de circunscrever o valor
das práticas culturais somente enquanto capazes de alterar as condições sociais da vida de
crianças, jovens e adultos, reforça-se o potencial simbólico e referenciador delas. Assim,
podemos dizer que esse quadro televisivo, no período em que foi exibido no programa
Manos e Minas, apresentou-se discursivamente como legitimando suas próprias práticas
culturais, especialmente aquelas performatizadas por sujeitos ainda menos socialmente
reconhecidos: crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social.
Quanto ao processo de visibilidade midiática das práticas culturais da periferia,
temos de considerá-lo como importante por promover profundas implicações para o
posicionamento da produção cultural da periferia e para o estabelecimento dos critérios
vigentes de legitimação da cultura. Porém, é preciso rejeitar uma visão muito ingênua
desse processo. Nesse sentido, corroboramos a posição de França e Prado (2010), segundo
as quais deve-se evitar que a crítica a certo determinismo classista da teoria da legitimidade
(BOURDIEU, 2007) leve à neutralização de aspectos fundamentais levantados pelo autor,
visto que a produção cultural e o modo como os produtos culturais circulam e são
dispostos “constituem, sim, elementos de distinções e terreno de luta simbólica; ordens de
legitimidade são armas políticas, e seu surgimento e apropriação nos dizem do andamento
desse embate” (FRANÇA e PRADO, 2010: 67).

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Desse modo, pudemos observar em nosso trabalho, assim como as autoras
apontaram, que esse “fenômeno” da nova visibilidade das culturas da periferia deve ser
compreendido como uma disputa por um lugar simbólico e pela reelaboração discursiva do
lugar social ocupado pelos grupos periféricos.

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