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Achile Mbembe

Crítica da Razão Negra


2014, Antígona
Trad. Marta Lança

Por Bruna Ferreira

«Raça* é uma construção social». Este argumento sociológico usado a seu tempo para
refutar a noção eugenista de que existe uma superioridade biológica e,
consequentemente, cultural, de certos fenótipos humanos sobre outros é, hoje, evocado
de maneira recorrente para silenciar as vozes que se levantam contra o racismo no
mundo pós-colonial. O raciocínio que «resolve» a questão é simples: se a biologia
moderna não endossa a existência de diferentes raças humanas, não vale a pena estar-se
a falar em racismo e das suas «supostas» consequências no mundo contemporâneo.

Ora, Raça é uma construção social, e se é verdade que não se sustenta do ponto de vista
genético, não deixa de ser uma categoria estruturante nas relações de subalternidade e
dominação entre os povos há pelo menos quinhentos anos. Em seu Crítica da Razão
Negra, o filósofo Achile Mbembe evidencia os usos estratégicos desse conceito pelos
europeus da Península Ibérica a partir do século XVI e a sua evolução em todo o
Ocidente até o século XXI.

A categoria Raça surge para estabelecer uma hierarquia entre os europeus e os


africanos, e seus descendentes brancos e negros, eliminando as diferenças étnicas,
culturais e linguísticas entre povos tão diversos entre si quanto os Zulu, os Iorubá e os
Hutu, por exemplo, que a partir de então passam a ser chamados simplesmente de
Africanos ou Negros, pertencentes a uma Raça inferior à dos Brancos ou Europeus.

Nesta nova divisão, cuja sedimentação coincide com a do capitalismo global, a Raça
Branca corresponderia ao último grau de evolução da espécie humana, e as demais
seriam estágios intermediários entre o Branco e outros primatas, como os macacos.
Assim, à cultura e à tecnologia produzidas pelo Branco foram atribuídas características
consideradas plenamente «humanas»: sensível, inteligente, elaborada, avançada. As
produzidas pelo Negro, em contrapartida, correspondiam ao que é «animal»: selvagem,
irracional, rústica, primitiva.

Este discurso vigorou como verdade científica hegemônica por mais de três séculos, e
foi usado para justificar e legitimar a pilhagem e o genocídio dos povos autóctones
ameríndios e africanos, o tráfico negreiro e a escravização de africanos e seus
descendentes nas Américas. O Negro nascia, propagava-se tanto entre os eruditos
quanto entre as classes iletradas, biologicamente dependente da domesticação e tutela
do Branco. Sem a dominação do Branco, o Negro ficaria para sempre abandonado à sua
«animalidade», incapaz de governar-se e de viver em sociedade, incapaz de «civilizar-
se».
A seguir ao fim do tráfico negreiro e aos movimentos pela liberdade dos cativos nas
Américas, africanos e afrodescendentes partiram desses pressupostos para tentar
elaborar uma nova Razão Negra: uma filosofia e um pensamento comum às pessoas de
pele negra em diáspora pelo mundo, validando, assim, a categoria Raça, ainda que de
forma positiva. Passa a ser importante, portanto, valorizar a Raça Negra, resgatá-la da
subalternidade, construir para ela um imaginário de força, independência e liberdade e
um lar originário e mítico que coincide com o território africano.

É com esse propósito de comunhão e irmandade entre os Negros que surgem os


movimentos pan-africanistas do século XX e o pensamento político, artístico e
filosófico em torno da Negritude, como os de Marcus Garvey e Aimé Césaire.

Para Mbembe, contudo, estes movimentos falham, do ponto de vista do rigor


intelectual, ao negarem a inferioridade da Raça Negra, mas não contestarem a própria
ideia de Raça, a grande invenção colonizadora. Mbembe evidencia, então, o fardo e a
ferida ainda aberta na construção da identidade do indivíduo Negro: a de ter que dar
significado, seja ele positivo ou negativo, de exaltação ou depreciação, a este nome, este
rótulo dado por um outro dominador. Para o filósofo camaronês, não há liberdade
possível enquanto Negro e Branco ainda forem categorias que marcam diferença –
mesmo que não hierarquizada - na espécie humana.

Do ponto de vista psicanalítico e filosófico, Mbembe defende que é preciso abolir o


paradigma da Raça para que Negros e Brancos possam enxergar-se solidariamente
como seres humanos – e para que não sejam criados «novos Negros», novas parcelas da
população mundial subalternizadas, exploradas e excluídas com base em uma cor de
pele, religião ou hábito cultural.

Contudo, o estudioso não ignora que em um mundo em que as consequências do


racismo são sentidas de forma material e psíquica pelos indivíduos socialmente
percebidos como Negros, é, ainda, necessário levantar a questão da Raça para que seja
reivindicada reparação histórica. Em resumo:

A proclamação da diferença é apenas um momento do projecto mais


vasto, de um mundo que virá, de um mundo antes de nós, no qual o
destino é universal, um mundo livre do peso da raça e do ressentimento
e do desejo de vingança que qualquer situação de racismo convoca (p.
306).

Para que se alcance este «mundo que virá», é necessário enfrentar o momento atual, em
que, sendo «uma construção social», a categoria Raça ainda segrega, exclui e mata, e
ainda é fator que determina os espaços ocupados por Negros e Brancos e o valor das
vidas de uns e outros.

De escrita rigorosamente honesta do ponto de vista da História e da Psicanálise (o


pensamento de Mbembe é grande devedor do de Frantz Fanon), e também corajosa ao
evidenciar as incongruências do pensamento pan-africanista e os desafios para a
construção de um Humanismo não-eurocêntrico, Crítica da Razão Negra merece uma
leitura atenta, embora às vezes dolorosa, por formular questões tão fundamentais quanto
de difícil resolução, herança partilhada entre a descendência de colonizadores e
colonizados, dominadores e dominados, Brancos e Negros desafiados e enxergarem-se
mútua e solidariamente como humanos.

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