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Fichamento

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso, 20a edição, São Paulo: Edições Loyola, 2010.

Obs.: A obra é uma aula inaugural de Foucault no Collège de France, pronunciada em 2


de dezembro de 1970.

p. 5-6
Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito
tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser
percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por
um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem
parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de
seu desaparecimento possível.

p. 8-9
Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade.

p. 9
Em nossa sociedade há procedimentos de exclusão, o mais evidente é a interdição. Sabe-se
que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.

p. 10
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo sua ligação com o desejo e com o poder. O discurso não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; é
visto que o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
domínio, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

p. 10-12
Há também outros princípios de exclusão: uma separação e uma rejeição.
É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou
então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caía no nada, rejeitada
assim que proferida, ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa. De
qualquer modo, ela não existia. As palavras do louco eram o lugar onde se exercia a
separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. Hoje é diferente e a palavra do
louco não é mais nula. Isso não significa, contudo, que a velha separação não voga mais.

p. 13
Arriscado considerar a oposição do verdadeiro e do falso como um terceiro sistema de
exclusão.
p. 17
A vontade de verdade, vontade de saber, como os outros sistema de exclusão, apóia-se
sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um
compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da
edição, das bibliotecas, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais
profundamente, sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como
é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.

p. 17-18
Velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas,
pois ela ensina as relações de igualdade; mas somente a geometria deve ser ensinada nas
oligarquias, pois demonstra as proporções de desigualdade.

p. 19
São, então, três sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a
segregação da loucura e a vontade de verdade. Enquanto os dois primeiros sistemas morrem
na medida em que são atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, não
cessa de se reforçar, de se tornar mais profunda e mais incontornável.

p. 20
A vontade de verdade é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la.
Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce
e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como
prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa
história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a
verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a
loucura.

p. 21
Há também procedimentos internos, visto que são os discursos eles mesmos que exercem
seu próprio controle; como se se tratasse, dessa vez, de submeter outra dimensão do
discurso: o acontecimento e o acaso.

p. 22
Há em nossa sociedade os discurso que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, e que
passam como o ato mesmo que os enunciou; e os discursos que, indefinidamente, para além
de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos
em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos; em certa medida textos
científicos.

p. 24-25
No que se chama globalmente um comentário, o desnível entre texto primeiro e texto
segundo desempenha dois papeis solidários. Por um lado permite construir (e
indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanência,
seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passar
por se detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma
possibilidade aberta de falar. Por outro lado, o comentário não tem outro papel senão o de
dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro.

p. 25-26
Trata-se de dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetido
incansavelmente, aquilo que, no entanto, jamais havia sido dito. O comentário conjura o
acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas
com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. O novo não está
no que é dito, mas no acontecimento de sua volta.

p. 26-28
Outro princípio de rarefação do discurso: o autor, não entendido como indivíduo falante
que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do
discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.
Parece que Foucault se refere ao autor tal como a crítica o reinventa após o fato
consumado; é preciso imaginar um projeto, uma coerência, uma temática que se pede à
consciência ou à vida de um autor, na verdade talvez um ponto fictício. Isso não impede
que o autor real, um homem, tenha existido.

p. 29
O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma
de repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma
identidade que tem a forma da individualidade e do eu.

p. 30
A organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor.
Ao do autor porque a disciplina se define por um corpus de proposições consideradas
verdadeiras, que constituem uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou
pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu
seu inventor. Ao do comentário porque na disciplina o que é suposto no ponto de partida é
aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados. Para que haja disciplina é
preciso que haja a possibilidade de formular, indefinidamente, proposições novas.

p. 31-36
A disciplina não é, contudo, a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma
coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um
mesmo lado, em virtude de um princípio de coerência ou de sistematicidade. Disciplinas
são feitas de verdades e de erros, mas que têm função positiva, uma vez que muitas vezes
são indissociáveis das verdades. Para pertencer a uma disciplina uma proposição deve
poder inscrever-se em certo horizonte teórico. E antes de poder ser considerada verdadeira
ou falsa, uma proposição deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”. A
disciplina é, pois, um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa limites de
jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.

p. 36-37
Terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos discurso: determinar as
condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número
de regras e assim, de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta
vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.

p. 38-39
A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que
se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os
indivíduos que falam; define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o
conjunto de signos que devem acompanhar o discurso. Os discursos religiosos, judiciários,
terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um
ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e
papéis preestabelecidos.

p. 39-41
Há as “sociedades de discurso”, cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para
fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-lo somente segundo regras estritas, sem
que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição. Essas sociedades não existem
mais, com esse jogo ambíguo de segredo e divulgação. Mesmo assim, no discurso
livremente publicado e livre de rituais, se exercem ainda formas de apropriação de segredo
e de não-permeabilidade. Ainda existem muitas outras sociedades que funcionam de outra
maneira, conforme outro regime de exclusividade e de divulgação: lembremos o segredo
técnico ou científico, as formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se
apropriam do discurso econômico ou político.

p. 41-42
À primeira vista, as “doutrinas” (religiosas, políticas, filosóficas) constituem o inverso de
uma “sociedade do discurso”; nesta, o número de indivíduos que falavam, mesmo se não
fosse fixado, tendia a ser limitado, e só entre eles o discurso poderia circular e ser
transmitido. A doutrina, ao contrário, tende a difundir-se. Aparentemente, a única condição
requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certas regras de
conformidade com os discursos validados.

p. 42
A pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito que fala, e um
através do outro. Questiona o sujeito, como provam os mecanismos de exclusão e rejeição
que entram em jogo quando um sujeito formula um ou vários enunciados inassimiláveis; e,
inversamente, a doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida
em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma
pertença prévia – de classe, de status social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de
luta, de revolta, de resistência ou de aceitação. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos
de enunciação e lhes proíbe, em contrapartida, todos os outros.

p. 44
A educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, em uma
sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua
distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância,
pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter
ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que trazem
consigo.

p. 46
A antiquíssima elisão da realidade do discurso no pensamento filosófico tomou muitas
formas no decorrer da história. Nós a reencontramos bem recentemente sob a forma de
vários temas que nos são familiares.

p. 47
Tema do sujeito fundante: O sujeito fundante, com efeito, está encarregado de animar
diretamente, com suas intenções, as formas vazias da língua; é ele que, atravessando a
espessura ou a inércia das coisas vazias, reapreende, na intuição, o sentido que aí se
encontra depositado; é ele igualmente que, para além do tempo, funda horizontes de
significações que a história não terá senão de explicitar em seguida, e onde as proposições,
as ciências, os conjuntos dedutivos encontrarão, afinal, seu fundamento.

p. 48
Tema da experiência originária: Assim, uma cumplicidade primeira com o mundo fundaria
para nós a possibilidade de falar dele, nele, de conhecê-lo sob a forma da verdade. Se o
discurso existe, o que pode ser então, em sua legitimidade, senão uma discreta leitura? As
coisas murmuram, de antemão, um sentido que nossa linguagem precisa apenas fazer
manifestar-se.

p. 49
Tema da mediação universal: O discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim, tomar a forma
do discurso, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu
sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si.

p. 49
O discurso nada mais é, portanto, do que um jogo, de escritura, no primeiro tema, de
leitura, no segundo, de troca, no terceiro. Estão em jogo, nos três casos, os signos. O
discurso se anula em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante.

p. 50
Sob a aparente veneração do discurso, esconde-se um temor. Há em nossa sociedade, e
imagino que em todas as outras, uma profunda logofobia (por isso, tantas restrições e
fronteiras para dominar a proliferação do discurso), uma espécie de temor surdo desses
acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o
que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de
perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso. Para vencer este
temor, é preciso suspender a soberania do significante.

p. 51
Princípio de inversão: É preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e
de uma rarefação do discurso.
p.52-53
Princípio de descontinuidade: o fato de haver sistemas de rarefação não quer dizer que por
baixo deles e para além deles reine um grande discurso ilimitado, contínuo e silencioso que
fosse por eles reprimido e recalcado e que nós tivéssemos por missão descobrir restituindo-
lhe, enfim, a palavra. Não se deve imaginar um não dito ou um impensado que se deveria
articular ou pensar. Os discursos são práticas descontínuas; ora se cruzam, ora se excluem.

p. 53
Princípio de especificidade: não transformar o discurso em um jogo de significações
prévias. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como
uma prática que lhes impomos em todo caso; e é nessa prática que os acontecimentos do
discurso encontram o princípio de sua regularidade.
Princípio da exterioridade: Não passar o discurso para o seu núcleo interior e escondido,
para o âmago de um pensamento ou de uma significação que se manifestariam nele; mas, a
partir do discurso, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar a
uma série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras.

p. 54
Quatro princípios reguladores da análise do discurso: a noção de acontecimento, a de série,
a de regularidade, a de condição de possibilidade.

p. 60
Seguindo esses princípios e referindo-me a esse horizonte, as análises que me proponho a
fazer se dispõem segundo dois conjuntos: o conjunto crítico, que põe em prática o princípio
de inversão, procurar cercar as formas de exclusão, da limitação, da apropriação de que
falava a pouco; o conjunto genealógico, que põe em prática os outros princípios, como se
formam séries de discurso.

p. 61-63
Conjunto crítico – Foucault começa na época dos sofistas e de seu início com Sócrates, para
ver como o discurso eficaz, o discurso ritual, carregado de poderes e perigos, ordenou-se
aos poucos em uma separação entre discurso verdadeiro e discurso falso. Em seguida,
segue para a passagem do século XVI e XVII, na época em que apareceu um ciência do
olhar, da observação, uma certa filosofia natural inseparável do surgimento das novas
estruturas e da ideologia religiosa. Enfim, o terceiro ponto de referência é o início do século
XIX, com os grandes atos fundadores da ciência moderna, a formação de uma sociedade
industrial e a ideologia positivista que a acompanha.

p. 63-63
Por exemplo, uma análise sobre a história da medicina no século XVI ao século XIX não se
trata de assinalar as descobertas feitas ou os conceitos elaborados, mas de detectar, na
construção do discurso médico, como funcionaram os princípios do autor, do comentário e
da disciplina.

p. 65-67
A crítica analisa os processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação
dos discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e
regular. Na verdade, estas duas tarefas não são nunca inteiramente separáveis; não há, de
um lado, as formas de rejeição, de exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e do outro,
o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou depois de sua manifestação, são
submetidos à seleção e ao controle.

p. 67
É impossível empreender um estudo das interdições que atingem o discurso da sexualidade
sem analisar ao mesmo tempo o conjunto dos discursos, literários, religiosos ou éticos,
biológicos e médicos, jurídicos igualmente, nos quais se trata da sexualidade, nos quais esta
se acha nomeada, descrita, metaforizada, explicada, julgada.

p. 69
Portanto, as descrições críticas e genealógicas devem apoiar-se umas nas outras e se
completarem. A parte crítica da análise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso,
procura detectar, destacar esses princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefação do
discurso; a parte genealógica da análise se detém, em contrapartida, nas séries da formação
efetiva do discurso, procura apreendê-lo em seu poder de afirmação. Poder de constituir
domínios de objetos, a propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições
verdadeiras ou falsas.

p. 70
A análise do discurso não desvenda, portanto, a universalidade de um sentido; ela mostra à
luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação.

p. 70
E agora, os que têm lacunas de vocabulário que digam – se isso lhes soar melhor – que isto
é estruturalismo.

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