You are on page 1of 5

Re-criando a (categoria) mulher 2) Como o conceito de gênero foi criado no marco destes

Adriana Piscitelli pressupostos;


3) Comentários sobre os conteúdos que esse conceito adquire nas
Introdução teorias contemporâneas e as tensões que provoca nos termos da
Este artigo possui um caráter puramente didático no qual a autora busca prática política feminista;
comentar a recriação da categoria “mulher” nas discussões 4) Maneira como a categoria “mulher” é reintroduzida no âmbito
desse debate.
contemporâneas.
Gênero tem se disseminado desde a década de 1980. Por que mulher?

Oferece um novo olhar sobre a realidade no sentido de elucidar distinções O conceito de gênero foi elaborado em um momento específico da história
entre características masculinas e femininas construídas socialmente. das teorias sociais sobre a “diferença sexual”. Como esta elaboração foi no
pensamento feminista foi inovador.
Algumas autoras buscam desestabilizar estas tradições de pensamento
(como Scott Joan, por exemplo.) Século XIX, sobretudo nos EUA e na Europa, a busca por direitos iguais à
cidadania impulsionou o pensamento feminista nestes locais.
O conceito de gênero tem se difundido consideravelmente na teoria social,
principalmente por meio da produção de autores como Anthony Giddens e No início do século XX (décadas de 1920-1930)  mulheres romperam
Arjun Appadurai. com algumas das representações de desigualdades mais agudas em termos
formais e legais, como a conquista do direito ao voto, à propriedade e à
No início notava-se maior ênfase dada por teóricos (as) para a categoria educação.
“mulher”  Sacralizou-se o binômio feminismo/“mulher” nestas
discussões. O movimento feminista começou a se perguntar: se a subordinação da
mulher não é justa, nem natural, como se chegou e de que maneira se
Mas nos últimos anos as pesquisas se voltaram para o confrontamento da mantém?
categoria “mulher” com as ideias embutidas no conceito de gênero, sem
que se deixasse contaminar pelo “fundacionalismo biológico”. Pensamento feminista (expressão de idéias) = desenvolvimento teóricos +
práticas do movimento feminista.  Várias vertentes  mas as
Percurso do artigo: abordagens desenvolvidas após 1960 compartilham das ideias centrais.
1) Percurso histórico pelo pensamento feminista A subordinação da mulher não é natural, mas sim decorrente da maneira
(pressupostos/conceitos); como a mulher é construída socialmente.  O que nos leva ao ponto de
que tudo que é construído pode ser modificado, desta maneira, pode-se Mulher, opressão e patriarcado  aspectos importantes na compreensão
modificar o espaço cultural ocupado por mulheres a fim de reivindicar as do contexto no qual a categoria de gênero foi desenvolvida.
igualdades de direitos e questionar as raízes culturais destas desigualdades.
Identidade, opressão e patriarcado
As correntes feministas desenvolvidas na Inglaterra e EUA a partir do final
A categoria “mulher” possui suas raízes na ideia do feminismo radical,
da década de 1960 possuem diferentes percepções sobre as origens e
para além de classes ou raça, mulheres são oprimidas pelo simples fato de
causas da opressão:
serem mulheres.
Algumas vertentes do feminismo socialista: Causa da opressão na divisão
A identidade entre mulheres tornou-se primária, ou seja, o que as unia,
do trabalho baseado no sexo origina desigualdades e opressão sexual.
representava algo muito maior do que suas diferenças.
Opressão sexual e exploração das classes poderiam ser superadas, segundo
esta vertente, por meio de uma sociedade socialista onde não existisse Qual a base dessa identidade?  A categoria “mulher” era pensada de
classe, pois segundo essa abordagem, a reprodução é opressiva na maneira que incluía traços biológicos e também aspectos socialmente
sociedade de classes. construídos. Pois o corpo era considerado condição pré-existente para a
opressão patriarcal e a conexão entre mulheres se dava através do tempo e
Outras vertentes do feminismo socialista discordam com a anterior,
da cultura.
argumentando que em sociedades socialistas as hierarquias de gênero
ainda persistiam. Para elas a causa principal desta opressão é representada Ênfase nos aspectos biológicos colocava o feminismo numa posição
pela associação entre capitalismo e patriarcado. Considerando a produção essencialista.
e reprodução como determinantes.
Sobre o conceito de opressão, percebeu-se um alargamento. A
Já o feminismo radical acredita que a origem da subordinação feminina é contextualização do movimento feminista radical foi influenciada pelo
no processo reprodutivo. Acreditam que as diferenças entre os papéis marxismo que definia a exploração em critérios determinados
sociais e econômicos, no poder político de homens e mulheres é a objetivamente, como por exemplo, o de “classe”. No entanto se levassem
reprodução humana tal como ela é. E acreditam que a solução seria a em conta o conceito de opressão objetiva, não se consideraria que mulheres
reprodução artificial, extinguindo o significado cultural das diferenças brancas de classe média sofriam opressão. E na verdade todas as mulheres
genitais. sofrem. Logo, as feministas radicais afirmavam a validade e das teorias
subjetivas de opressão contra as objetivas.
Embora estas vertentes tragam as diferenças supracitadas, o cerne entre
elas é a questão da função reprodutiva feminina aparece como cerne Patriarcado = dominação masculina
produtos da desigualdade sexual.  Corpo como centro por onde emana e
pra onde convergem as opressões e desigualdades.
O “político” é essencialmente definido como poder. E as instituições  As hipóteses sobre a origem da opressão feminina foram se
tradicionais como capitalismo e Estado. Toda atividade que perpetuasse a esvaindo na medida em que foram questionadas, foi neste momento que
dominação política passou a ser considerada política. Então as feministas buscaram ferramentas mais adequadas para “desnaturalizar” a opressão.
procuraram desvendar a multiplicidade das relações de poder não só na Foi neste momento que o conceito de gênero emergiu.
política mas também em todos os aspectos da vida social, o que as levou a
Mulher “versus” gênero?
agir em diversas esferas.
 Cada relação homem/mulher deveria ser vista como uma relação Na atualidade é comum a oposição entre “estudos sobre a mulher” aos
política. “estudos de gênero”. Ao mesmo tempo também é comum a confusão entre
“gênero” e “mulher”.
 Como a dominação masculina estaria presente através do tempo e
das culturas, poucas instituições estariam livres do patriarcado Os estudos de gênero surgiram em meio à turbulência acadêmica
demonstrada anteriormente em meio aos estudos sobre mulher. No entanto
 O patriarcado exclui as mulheres da história, da política e das compartilhou vários dos seus pressupostos, mas sempre buscando superar
teorias. os problemas relacionados algumas categorias centrais nos estudos sobre
 Ocorreu então uma efervescência acadêmica com a confrontação de mulheres.
conceitos existentes e criações de novos conceitos.  revisaram Os estudos feministas começaram a introduzir o conceito de gênero no
disciplinas como antropologia, história, ciência política, acrescentando debate sobre as causas da opressão da mulher.
assim, o “ponto de vista feminino”.
Gênero era visto a partir das diferenças sexuais. Foi de grande utilidade
 No entanto com o uso do termo “patriarcado” de forma banalizada, para o feminismo o conceito de sistema de gênero de Gayle Rubin: “Um
sem considerar o desenvolvimento histórico, sua dinâmica, seus conjunto de arranjos através dos quais a matéria-prima biológica do ser
componentes, este termo tornou-se sinônimo apenas de “dominação humano e da procriação e modelada pela intervenção social humana”
masculina”.  O sistema opressivo foi tratado como essência. O termo é
essencializante porque ancora a análise de dominação na diferença física Para a autora a diferença sexual é cultural e não natural: se a natureza
entre homens e mulheres, considerada como aspecto universal e invariável. fornece “dados” tais dados comprovariam que a diferença é cultural, afinal
homens e mulheres não diferem tanto entre si.
O uso do termo desta maneira obscurece a compreensão das relações
sociais que organizam diversas formas de discriminação. Tornou-se Outro pressuposto de Rubin o parentesco cria o gênero. Ou seja, instaura a
vulnerável as críticas pela sua generalidade. diferença, a oposição, exacerbado no plano cultural as diferenças
biológicas entre os sexos. Ou seja, para a autora o gênero é um imperativo
cultural que opõe homens e mulheres através do parentesco. Novas versões do conceito de gênero foram sendo criadas, no entanto, com
uma postura mais crítica, pois tira a legitimidade de uma suposta
Os dualismos operados por Rubin, levantaram críticas feministas homologia entre diferenças biológicas e sociais. → natureza diferente de
posteriores, no entanto, seu trabalho originou deslocamentos e cultura.
significativos na teoria: 1) o primeiro deles foi pensar as construções Os pressupostos presentes na distinção sexo-gênero foram criticados no
sociais da mulher em torno de sistemas culturais; 2) o segundo sentido de re-elaborar o conceito de maneira abarcar também as diferenças
deslocamento refere-se à exigência de compreender as realidades internas ao movimento. Isto é, considerando mulheres negras, o “terceiro
empíricas diversas, considerando contextos específicos nos quais o sistema mundo” e lésbicas.
sexo-gênero operacionaliza as relações de poder. Teóricas desconstrucionistas (como Scott Joan e Judith Butler, por
exemplo) questionam modelos teóricos totalizantes, valorizam a
Desta forma o gênero pode ser uma alternativa interessante para substituir linguagem, o discurso como prática relacional que produz e constrói as
a categoria de análise do patriarcado. Em comparação à categoria de instituições e os próprios homens enquanto sujeitos históricos e culturais.
patriarcado o sistema de gênero é um termo neutro, pois se refere a esses Butler, por exemplo, mostra que parte da dualidade sexual foi produzida
mundos sexuados indicando que neles a opressão não é inevitável, pois a discursivamente por meio de diversos discursos científicos.
opressão seria produto de relações sociais específicas. De maneira geral essa frente teórica tenta eliminar qualquer naturalização
na conceitualização da diferença sexual.
Tais características colocam Rubin numa linha de questionamentos a ideia Essas abordagens sobretudo:
monolítica de opressão feminina Universal. Nos estudos antropológicos  contrapõem a ideia de fluidez fixidez do gênero ancorada em bases
pode-se perceber que em algumas sociedades primitivas não havia muitos biológicas presentes nas primeiras formulações de gênero
indícios de que esses povos dicotomizem seus mundos em termos de  difundem a noção de múltiplas configurações nas quais o poder
domínios de poder. opera de maneira difusa à ideia de dominação Universal das
mulheres
O que se pode aferir, portanto é que conceito de gênero foi desenvolvido a  promovem a interseção entre as múltiplas diferenças e
partir de uma inquietação feminista com as causas da opressão como uma desigualdades ao privilégio da diferença sexual entendida como
alternativa ao conceito de patriarcado. Os estudos de gênero não se limitam diferença entre homem e mulher.
apenas aos estudos sobre as mulheres, mas também buscam saber como o  contribuíram para linhas de pesquisa e reflexão de gênero não
gênero, como sistema, opera em outras sociedades. centradas em mulheres. Tal fato pode ser percebido pelo aumento
de pesquisas referentes à teoria queer e masculinidade.
No entanto, as formulações desconstrutivistas geraram críticas quanto a
incompatibilidade entre essas abordagens e a prática política feminista.
Reformulações do conceito de gênero “como assim, gênero sem mulheres?”
O fato de algumas características exercerem papel dominante nesta rede
“Desconstrutivismo” e feminismo durante longos períodos no tempo e em certos contextos, não quer dizer
que elas podem ser universalizadas.
Percebeu-se a incongruência entre os pressupostos descontrutivitas nos
quais se ancoram as formulações contemporâneas do gênero e aqueles que O sentido da re-criação desta categoria, é sobretudo político. Possibilita o
orientam o feminismo. mapeamento de semelhanças, reconhece diferenças e não inviabiliza a
prática política. Tratam-se de políticas de coalizão → compostas por listas
A teoria feminista e a política feminista pensam na cultura construída sob de reivindicações referentes às diferentes necessidades dos grupos que
a base da supremacia masculina e o controle das mulheres e tem suas raízes constituem (temporariamente” essas coalizões.
no conceito “mulher”. Logo as perspectivas desconstrutivistas são
acusadas de sublimar essa categoria, além de distanciar a reflexão teórica Conclusão
do movimento político.
O que esperam de uma teoria feminista?
Revelou aspectos sugestivos das tensões e descompassos entre o ativismo
Alternativa seria o “feminismo global”, difundindo-o no mundo todo. e as teorizações, evidenciando as influências do aspecto político, como
Consistiriam em teorias “aproveitáveis” a curto prazo, em projetos que ocorre em qualquer teorização.
universalizem mas que também reconheçam as diferenças. Estudos que
façam a interseção entre genero-raça e trabalhos sobre multiculturalismo. Outra importante contribuição foi como a teoria social e os interesses
feministas tiveram uma relação de mutualismo, onde o conceito de gênero
foi desenvolvido e reformulado, e ciências como antropologia, ciência
Gênero versus “mulher”? política e sociologia, tais como relações entre público e privado, produção
e reprodução, estatuto e teorias de parentesco, significado de poder entre
outras.
Nova ideia de “mulher” diferente da anterior, isto é, longe de qualquer
essencialismo. Mas o autor não deixa de notar que por não se enquadrar na “utilidade”
política para o pensamento feminista, o gênero foi abandonado destas
É uma idéia de mulher atenta à historicidade e não possui um sentido teorizações. Mas não se sabe ao certo o futuro deste conceito para a teoria
definido, de maneira que não pode ser elucidado por uma característica social.
específica, mas por meio de uma rede complexa de características que não
podem ser pressupostas mas sim descobertas.

You might also like