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CARLOS LOPES
Comecei, há bastante tempo, a escrever sobre História do Brasil por uma motivação
que pode parecer estranha para alguns leitores: recuperar os direitos da história política.
Obviamente, Marx jamais teve algo a ver com essa gororoba insossa. Não fosse ele o
autor de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”.
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Necessário, ainda, é ressaltar que esse empobrecimento da historiografia não era,
principalmente, uma tentativa ideológica de criticar a literatura didática da época da
ditadura.
Por que, então, essa tendência, cevada durante a ditadura, adquiriu especial
virulência quando sua patrocinadora saiu de cena?
A resposta somente pode ser achada na política: tratava-se, após a ditadura, de não
deixar que as forças nacionais prevalecessem no país. Daí, tanto o favorecimento dessa
aridez, que tornou o estudo da História do Brasil um suplício para as crianças e jovens do
nosso país, quanto, por exemplo o aparecimento do PT, no rastro da reforma partidária,
em 1979, de Golbery do Couto e Silva – o mesmo Golbery que, egresso da War School, de
Fort Leavenworth, EUA, redigira, contra o aumento do salário-mínimo, o “manifesto dos
coronéis” contra Getúlio Vargas e seu ministro do Trabalho, João Goulart, e depois fora o
articulador do golpe de 1964.
Preferi, como de outras vezes, expor, e de maneira mais ou menos extensa, o que
disseram – ou escreveram – os homens e mulheres na temperatura da luta política de sua
época, e, muitas vezes, também os historiadores posteriores (que expressam outra luta
política, a de seu tempo, através da visão que divulgam do passado).
O motivo é aquele referido no final da série: uma grande parte desses materiais
encontra-se, hoje, esquecida, exceto para especialistas acadêmicos – que nem sempre
fazem o melhor uso deles.
C.L.
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Era no tempo do rei.
Esta frase, que inicia uma das obras fundadoras de nossa literatura – “Memórias de
um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida – tem um significado além do
tempo, considerado em sua dimensão meramente cronológica.
Era uma outra realidade. A época em que D. João VI – aquele que, depois, José
Bonifácio chamaria de “João Burro” – era quase outro mundo.
“Em 13 de Maio de 1810, em galardão de meus bons serviços e consideração por meu
pai, me fez o sr. D. João 6º mercê do hábito da ordem de Cristo, com 12 mil réis de Tença”
(cf. Annotações de A.M.V. de Drummond à sua biographia, Annaes da Bibliotheca
Nacional, Vol. XIII, 1890, p. 7).
Não é uma ideia óbvia, para os homens e mulheres de hoje, que a concessão do
“hábito da ordem de Cristo” fosse também uma questão econômica ou financeira – isto é,
que implicasse em uma renda (“tença”), aliás, vitalícia.
Mas assim era. Reparemos, além disso, que, em 1810, quando D. João concedeu a
Drummond a renda que era consequência do “hábito de Cristo”, Drummond tinha, apenas,
16 anos.
PORTO SEGURO
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O governo de D. João VI é descrito, por uma certa historiografia, como um período
benfazejo e progressista. A origem dessa tradição está em Varnhagen, o historiador oficial
do segundo reinado.
“A 16 de janeiro [de 1822] formou o príncipe um novo ministério, com quem pudesse
marchar, em virtude da nova face que havia tomado a política do país. Confiando os
negócios da fazenda a Caetano Pinto de Miranda Montenegro, capitão general de
Pernambuco ao estalar a revolução de 1817, os do reino ao mineralogista José Bonifácio
d’Andrada, que regressara da Europa antes de aí se proclamar a constituição, e os da
guerra ao marechal Joaquim de Oliveira Álvares, que se distinguira nas campanhas contra
Artigas, conservou na pasta da marinha a Manuel Antônio Farinha. Faltam-nos
documentos suficientes para julgarmos, desde já e de um modo definitivo,
cada um destes novos ministros: – e por outro lado nem o cremos mui
essencial, no pouco tempo que ainda temos que historiar, durante o qual os
próprios sucessos e a estrela do príncipe os vão guiar, da mesma sorte que os
arrastariam, se eles quisessem opor-se-lhes” (Varnhagen, Historia Geral do Brazil,
T. 2, Laemmert, Rio, 1857, p. 429, grifo nosso).
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Em outro texto, depois de escrever que José Bonifácio era dado a “falar demasiado”,
exemplifica o que disse com o seu único encontro com Bonifácio, quando tinha cinco
anos de idade:
“Esta qualidade [falar demasiado], tenho eu ainda mui presente desde a meninice,
quando, em abril de 1821, pela única vez, vi ao mesmo José Bonifácio em nossa casa no
Ipanema. Era o dia do batizado de uma irmã minha (Gabriela): eu fui incumbido da
‘derrama dos confeitos’, e ainda tenho nos ouvidos a voz rouquenha do mesmo José
Bonifácio, acompanhada de alguns borrifos e perdigotos, que me amedrontaram, e não
mais lhe apareci, apesar de estar nosso hóspede” (cf. Varnhagen, História da
Independência do Brasil, RIHGB, vol. 173, 1938, p. 155, nota).
No entanto, Varnhagen tinha algum juízo, como, entre outras coisas, mostra a sua
recusa ao pedido de Pedro II para que defendesse “A Confederação dos Tamoios” – poema
de outro áulico, Gonçalves de Magalhães, depois visconde do Araguaia – contra a
demolidora análise de José de Alencar.
Enfim, ele reconhece o papel de José Bonifácio – mas à sua maneira, ressaltando
defeitos, supostos ou verdadeiros, até quando se refere ao que ele mesmo reconhece como
positivo:
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por fim em colisão, por falta de bom acordo com o príncipe regente, dotado igualmente das
mesmas qualidades. Entretanto, cumpre confessar que parte dos seus defeitos
na crise que atravessava o Brasil, foram qualidades recomendáveis, conforme
também sucedeu com respeito ao chefe do Estado, o príncipe-regente e fundador do
Império. Em todo caso, era então José Bonifácio um zeloso monarquista, muito amigo não
só do país, como do príncipe, de quem era o mais fiel servidor, e que chegou a depositar no
mesmo José Bonifácio tanta confiança e a admirá-lo tanto, que até foi acusado de o
haver imitado em alguns dos seus defeitos, começando pelo da pouca
gravidade e falta de decoro e recato nas palavras, que em José Bonifácio chegavam
a raiar em desbocamento, e não era muito que, na flor da mocidade, o príncipe, ouvindo-as
na boca de um sábio, chegasse a querer até nisto imitá-lo” (idem, pp. 155-156, grifos
nossos).
É verdade que José Bonifácio não era um homem de linguagem recatada. Inclusive
em algumas composições poéticas. Como nota Tobias Monteiro em “A Elaboração da
Independência”, ele não compôs apenas a Ode aos Baianos, seu poema mais conhecido
– ou os outros que também foram reunidos em “Poesias de Américo Elysio”. Além disso,
por exemplo, escreveu sobre Carvalho e Melo, visconde da Cachoeira e ministro das
Relações Exteriores de 1823 a 1825, um puxa-saco assíduo ao beija-mão do imperador:
“Sátiro já decrépito, que sabe/ Por obras a arte inteira do Vieira,/ E quer por isso agora
ser ministro,/ Um pontapé lhe deu e o cu voltando/ Este risonho o lambeu três vezes”.
Já quase setuagenário, quando soube dos regentes escolhidos pela Câmara para
substituir o ex-imperador na menoridade de seu filho, comentou: “Dois são camelos e um
é velhaco”. O que, é claro, logo foi parar nas páginas dos jornais, sobretudo no jornal de
Evaristo da Veiga, Aurora Fluminense (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, História dos
Fundadores do Império do Brasil, vol. I – “José Bonifácio”, 2ª ed., J. Olympio Ed., Rio,
1957, p. 332).
No texto de Varnhagen que por último citamos, é evidente que ele mirava outro
objetivo, além dos historiográficos: para D. Pedro II, separado do pai aos cinco anos de
idade, atribuir os defeitos – fantasiosos ou reais – de seu pai à influência de José Bonifácio,
devia, no mínimo, ser algo consolador.
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Não sabemos se era assim. José Bonifácio fora tutor de Pedro II por quase três anos
– mas sempre em conflito com Mariana Verna Magalhães, a quem o imperador
considerava uma segunda mãe.
Se a atribuição de defeitos a José Bonifácio tinha esse efeito sobre Pedro II,
realmente, não sabemos. Entretanto, quase com certeza, Varnhagen achava que era assim.
REVOLUÇÃO
Varnhagen é um historiador importante, mas não por suas opiniões políticas, e sim
pela quantidade de material histórico que reuniu em suas obras. Um caso semelhante,
embora de menor envergadura – mas contemporâneo de Varnhagen -, é o de Mello
Moraes, autor de “História do Brasil-Reino e Brasil-Império” (1871) e de “A
Independência e o Império do Brasil” (1877).
Mas que é irritante ler certos trechos de Mello Moraes, lá isso é. Por exemplo:
“José Bonifácio (…) veio de Lisboa para São Paulo em setembro de 1819, e era oposto
à independência do Brasil, pelas vantagens que recebia do Erário real. Antônio Carlos,
como conhecia o modo de pensar do seu irmão José Bonifácio, constantemente lhe
escrevia de Lisboa, para que se empenhasse pela independência da Pátria, e que, portanto,
a aderiu forçado e não por sentimentos espontâneos à causa do Brasil” (cf. A. J. de Mello
Moraes, A Independência e o Império do Brasil, 1ª Typ. Pop. do Globo, 1877, p. 71).
Ou, então:
“José Bonifácio logo que tomou posse do Ministério em janeiro de 1821, criou um
partido seu, denominado Andradista, e circulou-se de gente muito ordinária, para
instrumento de suas paixões; com o fim de praticarem crimes e horrores; e muito
concorreu por um manifesto, justificando o procedimento do Brasil contra as loucuras das
cortes portuguezas.” (idem, p. 72).
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Em ambos os trechos, Mello Moraes, em função de sua opinião política, falsifica os
fatos.
Não é somente que, em sua vida, tanto pública quanto particular, José Bonifácio
sempre foi um desprendido em questões de dinheiro e de honrarias – e raras vezes, já
idoso, houve folga em seu orçamento familiar, se é que houve alguma, apesar de sua
origem abastada.
REPRESSÃO
Voltemos, depois desse pequeno passeio historiográfico, ao tempo do rei descrito nas
memórias de Vasconcellos de Drummond:
“Fui com efeito denunciado de pedreiro livre [maçom] por José Anselmo Corrêa, pai
do atual visconde de Seisal, atual ministro de Portugal em Bruxelas, e eu não era, não fui e
ainda hoje não sou pedreiro livre!
“A denúncia fez grande impressão no ânimo d’el-rei e de Tomás Antônio [de Vila
Nova Portugal – o ministro favorito de D. João VI], porque ambos me tinham em bom
conceito.
“José Albano Fragoso, juiz da Inconfidência, com quem eu tinha estreitas relações de
amizade, foi encarregado por Tomás Antônio de se prevalecer desta estreita amizade para
descobrir a verdade e desviar-me de maus conselhos. José Albano Fragoso, no
desempenho desta comissão, conduziu-se tão indignamente que muito contribuiu para
agravar as circunstâncias em que então me achei. Sabia muito bem que eu não era pedreiro
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livre, que a denúncia era falsa, e comigo lamentava que o governo se achasse em
circunstâncias de autorizar espiões para macular reputações.
“O ser pedreiro livre era então um crime. Mas a Tomás Antônio dizia ele o contrário
do que sabia e conversava comigo. Não me acusava diretamente, nem confirmava a
denúncia, mas com palavras misteriosas sustentava a suspeita, ora menos, ora mais
fortemente, e emitia a opinião de ser eu mandado para fora do Brasil. Esta opinião calou
no ânimo de Tomás Antônio, que se decidiu por ela. S. Exª declarou-me enfim que me
preparasse para ir no paquete para Londres, afim de servir na Embaixada, sem me dizer
em que posto.
“Respondi que voluntariamente não partia, que eu era inocente e que os inocentes
não pediam perdão nem aceitavam a comiseração de quem quer que fosse. Que se me
julgava criminoso mandasse pôr-me em processo, e que se me julgava inocente não
consentisse que se abusasse da sua boa fé, nem que o fizessem instrumento da perseguição
de um moço que no princípio da sua carreira tinha já dado boas provas da sua honra e da
sua probidade.
“Esta resposta fez abalo no ânimo de Tomás Antônio, e como eu me achasse então
moralmente doente com os desgostos que me causava a perseguição, conviemos em ir para
Santa Catarina mudar de ares, com seis meses de licença.
“Da denúncia ao dia de minha partida decorreram muitos meses, mais de um ano, e
neste longo intervalo a minha saúde sofreu muito. José Albano abusava da minha amizade,
atraiçoava a verdade e mentia ao ministro, e tudo para quê? Sem vergonha o não digo.
Queria desconceituar-me ou perder-me para ficar um lugar vago na chancelaria-mor que
ele solicitava para seu enteado Manoel Plácido da Cunha Valle!” (cf. Annotações de A. M.
V. de Drummond à sua biographia, Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro,
Volume XIII, 1890, pp. 8-9).
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Preso por sua participação na Revolução Pernambucana de 1817, Antonio Carlos de
Andrada, no calabouço, esperava a execução – nove líderes da revolução já haviam sido
enforcados, e, quatro, fuzilados, além dos que morreram sob tortura ou pelas condições
hediondas do cárcere.
Foi então que Antonio Carlos escreveu um poema, um soneto: “Sagrada emanação
da divindade/ Aqui, do cadafalso eu te saúdo,/ Nem com tormentos, com reveses mudo:/
Fui teu votário, e sou, ó Liberdade!// Pode a vida brutal ferocidade/ Arrancar-me em
tormento mais agudo:/ Mas das fúrias do déspota sanhudo/ Zomba d'alma a nativa
dignidade.// Livre nasci, vivi, e livre espero/ Encerrar-me na fria sepultura/ Onde
império não tem mando severo;// Nem da morte a medonha catadura/ Incutir pode
horror num peito fero,/ Que aos fracos somente a morte é dura”.
Antonio Carlos permaneceria na cadeia por quatro anos. Somente em 1821, quase às
vésperas da Independência, ele e outros líderes de 1817 seriam soltos.
“Estava em armas toda a guarnição da cidade, e parte marchou com tochas acesas
para conduzir os desembarcados à cadeia, onde, entrando, pareceu-lhes entrar no Inferno,
e que todas as legiões de demônios preparavam-se para recebê-los. A luz opaca de um
velho candieiro, que apenas mostrava o ingresso daquela medonha caverna, refletindo
sobre os diversos objetos em roda, prestava-lhes mais lúgubre aspecto; o estrondo das
portas ferradas, que abriam-se, e fechavam-se ao mesmo tempo, o rumor das correntes,
que preparavam-se como mais pesadas para troca das que foram trazidas de bordo da
embarcação; os gemidos mandados da enxovia pelos escravos aí detidos, e que todos os
dias eram barbaramente açoitados; o empestado fedor da nojenta cloaca amalgamado com
o fumo, que exalavam os cornos, em que trabalhavam alguns dos velhos encarcerados mais
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diligentes; tudo concorria para alterar a guarnição, já assaz debilitada pelos atos violentos
anteriormente praticados” (Muniz Tavares, “História da Revolução de Pernambuco
em 1817”, 2ª ed., 1884, pp. 212-214).
CRISE
Porém, quais eram esses limites da união com Portugal? O Brasil ultrapassara o
estatuto de colônia. Que limites, então, constrangiam o país, no quadro do “Reino Unido”?
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de que esta política levava ao resultado oposto, ao implicar na manutenção da dependência
à Inglaterra.
O francês, nota Oliveira Lima, errava nas causas: “a razão da escassez de comestíveis
de primeira necessidade é que Maler falsamente atribuía à improdutividade do terreno da
costa e matas para essa cultura. [John] Luccock acertadamente a fornece ao falar também
na carestia dos mantimentos, da farinha nomeadamente, porque pagando o algodão
melhor, na província se não cultivavam bastante gêneros alimentícios, como
mandioca e feijão. Por outro lado a capital consumia abundantes provisões de boca,
provocando sua importação, e a guerra do Sul [a invasão da Banda Oriental, o futuro
Uruguai, pelos portugueses] com seus repetidos fornecimentos estava fazendo encarecer
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todos os gêneros. Para cúmulo a estação de 1816 fora muito seca no Norte, portanto
escassas as safras” (idem, p. 788, grifos nossos).
[NOTA: John Luccock, comerciante inglês que residiu por 10 anos no Brasil, em
1820 publicou um livro importante sobre o nosso país entre 1808 e 1818: “Notes on Rio
de Janeiro and the Southern Parts of Brazil”.]
TRATADO
Até mesmo Calógeras, em geral propenso a simpatizar com o lado direito – isto é,
antinacional - do espectro ideológico, afirma que “os tratados de 19 de fevereiro de 1810”
foram um “triunfo diplomático e financeiro para as praças exportadoras da Grã-Bretanha”
porque “entregavam à Inglaterra, contra o próprio Portugal, o comércio
privilegiado do Brasil” (J. Pandiá Calógeras, “A Política Exterior do Império”, Vol.
1, RIHGB, 1927, p. 342, grifo nosso).
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Assim ele resume as cláusulas do Tratado de 1810:
“... as alfandegas cobrariam, não mais 24%, como mandava a carta régia de Abertura
dos portos, de 28 de Janeiro de 1808, mas 15%, quando as próprias importações de
Portugal eram oneradas com 16 %. A base das cobranças era ad-valorem, provado o preço
pelas faturas. Óbvia, a facilidade do contrabando por meio de declarações
inexatas. Para julgar os pleitos entre ingleses e nacionais, continuava instituído um juiz
conservador dos ingleses. Duraria eternamente o tratado comercial, só podendo ser
revisto e modificado por aprazimento mútuo, e decorridos quinze anos de sua vigência. As
demais cláusulas sobre reciprocidade e sobre regimes de exceção só tinham valor e alcance
para os mercadores de Londres, e deixavam praticamente aos portugueses sem proteção”
(idem, p. 344, grifos nossos).
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Porém, os ingleses não ficaram satisfeitos. Em um ofício para Londres, Strangford
relata que “exprimindo-lhe D. João a esperança de ter satisfeito ao Governo de S.M.B. [Sua
Majestade Britânica] a abertura dos portos ao comércio do mundo, [Strangford] responde
‘que esta medida não podia deixar de causar bom efeito na Inglaterra mas
necessariamente produziria maior satisfação se tivesse sido autorizada a admissão de
navios e manufaturas britânicas em condições mais vantajosas que as concedidas aos
navios e mercadorias de outras nações estrangeiras’.” (cf. Tobias Monteiro, “A
Elaboração da Independência”, ed. cit., p. 74).
“... deve-se registrar a grande devastação das matas do litoral por efeito da
permissão, dada aos ingleses no tratado, de nelas cortarem madeiras de construção para as
suas embarcações. A madeira carregada para a Inglaterra o foi não somente para uso nos
estaleiros, como para todas as aplicações possíveis no país de destino e noutros países”.
“Ao passo que os gêneros coloniais entraram a baixar depois da paz geral
[1814/1815], mercê da crescente produção de Cuba e dos Estados Unidos, fazendo as
exportações destas terras temível concorrência ao nosso algodão, ao nosso açúcar e ao
nosso fumo, (…) as pobres manufaturas do Reino viram-se afastadas em proveito das
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superiores manufaturas britânicas, pela redução que às últimas fora concedida.
Igualmente, exerceu essa redução pernicioso efeito sobre certas indústrias e culturas
incipientes no reino ultramarino, tais como da seda, do anil, da cochonilha, do cânhamo,
do trigo, dos tecidos de algodão, dos cortumes e das salinas, que a metrópole
anteriormente impedira e que à sombra da franquia de 1808 tinham começado a medrar
sob bons auspícios. (...) não podia o tratado com a Inglaterra deixar de representar para
Portugal uma capitulação e para o Brasil uma inferioridade” (cf. Oliveira Lima, op. cit., pp.
375-383).
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Na época de sua assinatura, o tratado comercial de Portugal com a Inglaterra foi
minuciosamente analisado, e denunciado, no “Correio Brasiliense”, por Hipólito José da
Costa.
Em seguida, Hipólito procede ao exame do tratado, artigo por artigo, a começar pelo
seu caráter perpétuo, estabelecido no primeiro dispositivo. Três anos depois, respondendo
a um jornal que defendera o tratado, foi ainda mais enfático:
“Desde que lançamos os olhos pela primeira vez naquele instrumento miserável, nos
persuadimos da tendência, que tinha, não só a arruinar o comércio dos portugueses, mas a
atacar as fontes da opulência da Nação”.
“A situação deste ministro, em Londres, era então a mais favorável para negociar
com o Ministério inglês; principalmente depois que se fez em Portugal o levantamento
contra os franceses. Tinha o ministro português em Londres a casa sempre cheia de
negociantes ingleses, que lhe pediam permissão para ir com suas mercancias ao Brasil;
oficiais militares, que lhe requeriam ir servir na guerra em Portugal; cartas do Ministro de
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Estado [da Inglaterra], que lhe rogavam atendesse às representações do comércio quase
arruinado e olhando para o Brasil como para sua última âncora da esperança.
TERREMOTO
Por toda a vida, Muniz Tavares, que era padre, foi um defensor da Revolução de 1817
(em “D. João VI no Brasil”, Oliveira Lima chamou a Revolução Pernambucana de 1817
de “revolução de padres” – nada menos que 51 padres estiveram entre os revolucionários).
O livro de Muniz Tavares, publicado em 1840, entre outras coisas, como nota o
prefaciador de sua segunda edição (1884), o historiador paraibano Maximiano Lopes
Machado, destrói a depreciação da Revolução de Pernambuco por Varnhagen – e também
pelo conselheiro Pereira da Silva, na sua História da Fundação do Império
Brasileiro (v. o tomo IV da obra de Pereira da Silva, Garnier, Rio, 1865, pp. 129-133 e
137-202).
No dia 29 de março de 1817, ele escreveu a seu irmão mais novo, Martim Francisco:
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“Martim – Já saberás a estas horas o sucesso de Pernambuco. No dia 6 do corrente,
estando eu de correição, levantou Pernambuco a bandeira da independência e o conseguiu,
tendo nisto grande parte a fraqueza do general Caetano Pinto. Fui chamado pelo novo
governo e cheguei no dia 9, e tenho assistido à mor parte dos conselhos. Este sucesso tem
sido muito aplaudido por todo o povo: eu tenho, porém, um grande desgosto com ele, que
é o nos vermos separados, talvez para sempre. O destino assim o quer; que remédio!
Particulares e autoridades, tudo tem reconhecido o novo governo, e a forma republicana.
Participa à nossa mãe estas notícias; tem, porém, cuidado em tranquilizá-la a meu
respeito. Tu bem sabes quanto jeito é preciso, para que estas novas a não acabem, visto a
sua grande idade”
“P. S. Acabo de vir do conselho, assombrado de ver a imensa tropa que baixa do
interior: há mais de 6.000 homens de tropa regular, o que com as milícias e ordenanças
formará um exercito de 30.000. O sistema de administração da justiça está se reformando,
as ouvidorias vão abaixo, eu… perdendo o meu lugar, além do risco de perder o ofício que
tenho em S. Paulo. Sinto, mas tenho paciência. Dá-me notícias tuas.”
Quinze dias depois, Antonio Carlos escreveu ao seu irmão mais velho, José Bonifácio,
que estava na Europa (José Bonifácio somente voltaria ao Brasil em 1819):
“Tendo recebido a última carta tua em véspera de correição não respondi logo,
guardando para quando viesse, mas como fui chamado antes de findar a correição agora o
faço.
“… a sorte que é minha adversa, faz gorar todas as minhas ideias. Eis-me de novo sem
meios certos de subsistência.
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se sujeitarem mais ao poder real; se alguns ânimos vacilam, o geral é aferrado à nova
ordem.
“Eis-me, portanto, separado dos meus, visto os dous partidos em que nos achamos
alistados, o que me custa.
“A lista civil tem sido mal paga, que é o mesmo que dizer-te que estou pobre.
“Adeus.
AÇÃO
Diz Armitage, sobre o segundo irmão Andrada, que “foi preso como cúmplice, e
mandado à Bahia, onde esteve encarcerado quatro anos, tempo que empregou em ensinar
a alguns dos seus companheiros a retórica, línguas estrangeiras, e elementos de
jurisprudência” (J. Armitage, História do Brasil, 2ª ed. bras., S. Paulo, 1914, p. 30).
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Ribeiro Andrada Machado e Silva” (cf. BN, Documentos Históricos, Revolução de 1817,
vol. CIV, Rio, 1954, pp. 95-96).
“Eis um personagem que alia a um espírito vasto, uma concepção viva, uma dialética
sutil e persuasiva, um caráter firme e uma vontade determinada. Se o sr. Antonio Carlos
fosse militar seria homem a assenhorear-se de todos os poderes da república. Tal qual é, a
sua habilidade é ainda assaz grande para fazer sombra aos seus colegas”. Em nota, o autor
acrescenta que “desenhei-lhe a fisionomia moral com cores demasiado pálidas” (cf.
Tollenare, “Notas Dominicais 1816, 1817, 1818”, trad. Alfredo de Carvalho, 1905,
p. 194).
PRISÃO
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Andradas – nem à Revolução de 1817 – é mais exato quando, ao falar da saída dos
Andradas do governo de Pedro I, lembra:
Sobre a via-crúcis em Recife, existe uma testemunha que estava entre os presos – o
padre Muniz Tavares:
“A estes três indivíduos conjuntamente com o Padre Mestre Fr. Joaquim Caneca,
contra os quais a raiva dos Realistas era mais acesa, em vez das cordas coube a distinção de
pesada corrente de ferro ao pescoço.
“Com a cabeça descoberta aqueles quatro indivíduos precediam a marcha dos outros,
que em fila caminhavam rodeados por um forte destacamento; (…). O pranto das esposas,
dos filhos, dos parentes desses presos, era o canto de glória, que ouviram com deleite os
promotores do espetáculo.
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aqueles patriotas duríssimo tratamento. Foram todos encerrados no fundo do porão:
grilhões aos pés substituíram as cordas, que nos braços traziam; uma gargalheira atando
estreitamente o pescoço de cada um, com as duas pontas cravadas no pavimento, obrigava
a todos a permanecerem deitados sem outro leito fora das alcatroadas tábuas do mesmo
porão. Três sentinelas armadas de baionetas, e chibata, velavam continuamente, proibindo
não só a comunicação da palavra, como o desafogo dos gemidos. A sede aumentada pela
qualidade do alimento salgado, que era exclusivamente subministrado, não podia ser
saciada senão por uma só medida d’água em todo o dia; como se aquelas três sentinelas
não bastassem para a rigorosa vigilância, de hora em hora vinha um inspetor, que
diligentemente examinava se os ferros tinham sido limados. O sono, refrigério dos aflitos,
era de tal modo disputado por aqueles desumanos algozes. Leitor, aprende como são
tratados os vassalos de um Rei absoluto” (idem, pp. 209-211).
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Estamos nos detendo, com alguma ênfase, na Revolução Pernambucana de 1817,
porque foi um acontecimento decisivo para a nossa Independência – não somente pelo seu
significado sócio-econômico e pela sua importância nacional já na época da eclosão
do movimento (é significativo que, além dos pernambucanos e da expansão
revolucionária na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, foi notável a participação de
homens que nasceram em outras partes do Brasil, como Domingos Martins, que era
capixaba, ou Antonio Carlos, que era paulista; em 1845, por sinal, em sua última atividade
política, Antonio Carlos foi eleito senador por Pernambuco).
Ocorre, além disso, que a Independência foi marcada pela participação de homens
que, em 1817, estavam nas fileiras da revolução republicana, e, mesmo aqueles que não
estiveram lá, foram profundamente marcados por essa revolução – e pela repressão
sanguinária da Coroa portuguesa (o melhor livro sobre os líderes da revolução e sobre as
vítimas da repressão continua sendo “Os Mártires Pernambucanos Vítimas da
Liberdade nas Duas Revoluções Ensaiadas em 1710 e 1817”, escrito em 1823 pelo
padre Joaquim Dias Martins – portanto, logo após a Independência – e publicado
postumamente em 1853).
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O então capitão de artilharia José Inácio de Abreu e Lima, em 1817, servia ao exército
português na Bahia quando seu pai – o Padre Roma – foi preso ao chegar àquela província.
Quase trinta anos depois, no primeiro tomo de sua obra sobre a História do Brasil, o
general Abreu e Lima, que acompanhou o pai até o seu martírio, relataria os
acontecimentos:
“No entanto, pela parte do Sul a revolução não tinha dado um passo, e era de onde
justamente tudo havia que recear. Um homem houve que, conhecendo a importância de
dar mais impulso àquele movimento, se ofereceu para ir às Alagoas [na época, Alagoas era
parte de Pernambuco], e dali à Bahia, correndo ele só todo o risco da sua temerária
empresa.
“Este cidadão era o Doutor José Ignácio Ribeiro de Abreu e Lima, um dos mais
hábeis advogados de Pernambuco, vulgarmente conhecido, depois da sua infausta morte,
pela denominação de Padre Roma. Suas relações na parte meridional da província lhe
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inspiravam grande confiança, e na verdade a sua marcha até às Alagoas foi um constante
triunfo; por toda a parte consegue fazer com que os povos e as autoridades se decidam pela
revolução; e quando julga oportuno, volta a Maceió, freta uma balsa, e se dirige para a
Bahia.
“Abreu e Lima, sem embargo de seus variados conhecimentos, era homem, como
todos os seus correligionários, inexperiente dos manejos ocultos das revoltas; sem nenhum
disfarce apresentou-se sempre, desde que saiu do Recife, como se fosse o emissário de um
governo autorizado. Ainda antes da sua marcha, sabia-se geralmente qual era a sua missão
e dela tinha sido informado o Conde dos Arcos na Bahia com muita antecipação; assim foi
que ao saltar em terra no lugar da barra, foi logo preso e conduzido à cadeia da cidade.
“Por uma espécie de pressentimento teve ele o bom acordo de lançar à água todos os
papéis, que levava consigo, não só proclamações como várias cartas para indivíduos
relacionados com os liberais de Pernambuco; mas isto só serviu para alentar na covardia
aqueles mesmos, que o deixaram sacrificar sem nenhuma mostra de gratidão. O Conde dos
Arcos tinha já em seu poder o corpo de delito, que era a ata da eleição do governo
provisório de Pernambuco, na qual seu nome aparecia em segundo lugar. Verificada a
identidade da pessoa, foi julgado por uma comissão militar, condenado à morte, e fuzilado
no dia 29 de Março no Campo da Pólvora” (op. cit. pp. 283-284).
Neste momento de seu texto histórico, o general Abreu e Lima introduz uma nota
pessoal candente, por aquilo que preserva e condensa de nossa História:
“Meu pai foi preso ao anoitecer de 26 de março; no dia seguinte fizeram-se todas as
perguntas do costume, confrontação de testemunhas, e nomeou-se a Comissão Militar, que
o devia julgar; no dia 28 foi condenado à morte, e passou para o Oratório às três horas da
tarde; foi fuzilado às oito da manhã do dia 29.
“No momento em que escrevo estas linhas, assalta-me todo o horror daquela
tremenda noite, em que fui quase companheiro da vítima: era eu que parecia o condenado,
e não ela. Tenho visto morrer milhares de homens nos campos de batalha, e muito nos
suplícios, mas nunca presenciei tanta coragem, tanta abnegação da vida, tanta confiança
nos futuros destinos da sua pátria, tanta resignação enfim; era meu pai quem me animava,
porque eu parecia inconsolável: uma mão de ferro me arrancava o coração; meu pranto e
minha dor comoviam a todos os que se achavam presentes; era mister separar-me então
para dar alívio às minhas lágrimas, e me conduziam à outra prisão, donde voltava depois a
poder de minhas súplicas, até que foi forçoso arrancarem-me de seus braços para sempre.
26
“Uma circunstância mais que todas vinha de quando em quando agravar essa espécie
de martírio, com que os algozes de meu pai queriam amargurar ainda mais seus últimos
instantes: meu irmão Luiz, moço de compleição mui débil e delicada, fora preso em sua
companhia, e achava-se metido em um dos imundos calabouços do Oratório chamados
segredo. Nu em carne, e estendido sobre a lama, mais parecia um espectro do que ser
vivente; coberto de lodo, faziam-no sair algumas vezes para que meu pai o visse: nesse
momento terrível para seu coração de pai, parecia comovido, beijava a meu irmão, e como
para distrair-se, dirigia a palavra a algum dos sacerdotes, que o acompanhavam. Contudo
essa prova tremenda de brutal ferocidade não fez desmentir um só instante sua resignação
como filósofo nem como cristão.
EMANCIPADA
Nenhum deles formulou a questão dessa maneira – que parece mais própria, sob
essa forma, às revoluções do século XX. Mas isso foi verdade, independente da formulação,
não apenas para Antônio Carlos de Andrada, Muniz Tavares, e, inclusive, Cipriano Barata
– mas também para os que, como o irmão mais velho de Antônio Carlos, José Bonifácio,
viram de longe a Revolução de 1817 (no caso de Bonifácio, de Portugal, onde residia desde
1783), e até não concordando com ela, como, explicitamente, Hipólito José da Costa em
seu Correio Braziliense.
27
Numa carta a Pedro de Araújo Lima – o futuro marquês de Olinda – em que
demonstra sua irritação com José Bonifácio, Gonçalves Ledo escreveu:
“Fui ao Paço no dia 4 deste [quatro de outubro de 1822] chamado por um recado
escrito pelo Imperador, que me ofereceu o título de ‘Marquês da Praia Grande’. O
Conselheiro José Bonifácio, sabendo que ainda no ano passado era eu republicano e que
agora trabalho por uma monarquia constitucional, sem nobreza outra senão a dos
sentimentos, certo teve parte neste convite, que reputo ofensivo à minha dignidade.
Imediatamente agradeci a S.M. permitisse recusar o título nobiliárquico, dizendo-lhe que
não o merecia, e não desejava. Interveio o Conselheiro com estas palavras: ‘Ora, Sr. Ledo, é
um prêmio aos seus serviços no jornal e na Maçonaria, em favor da Independência’.
Afirmei que não podia aceitar e que o melhor título para mim seria o de brasileiro patriota
e homem de bem, contentando-me com a nobreza do coração…”
Obviamente, a situação política – mas a esta não era estranha a herança de 1817.
Depois de falar da união cultural entre o Brasil e Portugal, disse José Bonifácio aos
seus colegas acadêmicos lusitanos: “consola-me igualmente a lembrança de que de vossa
parte pagareis a obrigação em que está todo o Portugal para com a filha emancipada, que
precisa de pôr casa”.
[NOTA: Em seu livro sobre D. João VI, Oliveira Lima atribui essa versão a Mello
Moraes – o que, geralmente, torna duvidosa qualquer versão – e ainda acrescenta: “sem
documentos aliás que comprovem sua asserção”. No entanto, o próprio Oliveira Lima,
28
logo em seguida, escreve que “o fato encontra-se realmente assim na correspondência
reservada dos plenipotenciários portugueses ao Congresso de Viena” – e acaba por
confirmar o que antes colocara em dúvida (cf. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil,
primeiro volume, Typ. do Jornal do Commercio, Rio, 1908, pp. 519 e segs.). O fato é que a
expressão “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” apareceu pela primeira vez no
“tratado de 8 de abril de 1815, assinado em Viena entre aqueles representantes de
Portugal e os da Inglaterra, pelo qual o primeiro desses países se obrigava a aceder a
todas as estipulações aceitas pelas grandes potências no tratado de 25 de março do
mesmo ano” (cf. Tobias Monteiro, op. cit., p. 349). D. João VI, que estava no Rio de
Janeiro, não foi consultado. Mas legalizou a situação oito meses depois, de acordo com o
acertado em Viena.]
Voltemos a José Bonifácio: além do que já foi dito, tratar o seu país de origem no
feminino – logo ele, um admirador dedicado das mulheres – não parece um acaso, ainda
que possa ser inconsciente: a expressão que nos ocorre, ao ler essas palavras,
naturalmente, é “nação brasileira”.
Certamente, tal evocação pode ser apenas uma espécie de miragem, causada pelo fato
de que nos localizamos, no tempo, quase 200 anos após o discurso de José Bonifácio,
quando a “nação brasileira” tem uma história que não tinha naquela época.
Pode ser. Mas o seguinte trecho, do mesmo discurso de despedida, em 1819, não
parece casual:
“E que país esse, senhores, para uma nova civilização e novo assento da ciência! Que
terra para um grande e vasto Império!” (v. “O Patriarca da Independência – José
Bonifácio de Andrade e Silva”, CEN, 1939, p. 14).
29
5
A questão de que o Brasil poderia constituir, ou constituiria, um “novo império”, tão
presente nas ideias de José Bonifácio ainda antes de voltar ao país natal – e também nas
ideias de Hipólito José da Costa - torna necessário uma nota de caráter historiográfico
sobre a época de D. João VI, ainda que correndo o risco de colocar o carro na frente dos
bois – já que não encerramos a questão da dependência lusitana, a base econômica inicial
de todo esse período da História.
João Ribeiro, às vezes, é lembrado como gramático ou filólogo. Ou, mais raramente,
como um crítico literário que conseguiu enxergar no romance nordestino algo que ele
ainda não realizara - João Ribeiro faleceu em 1934 - ou somente realizara em parte. É
verdade que, para apreciar o romance nordestino, ele, nascido em Sergipe, estava mais
capacitado que a maioria dos homens de letras da época.
Depois de frisar os avanços que o Brasil conseguiu após a mudança de D. João para o
Brasil, Ribeiro escreve:
“Se vindo para o Brasil, D. João VI nos trouxe o inestimável prêmio da autonomia,
embora ainda sob as formas do absolutismo, entretanto não havia na mesquinheza do seu
espírito dotes suficientes para criar como logo disse ‘um novo império’. Desmazelado, fútil
e colocando vulgares diversões acima dos encargos do governo, ignorante da nova situação
que a sua falta de heroísmo lhe criara, tendo preferido servir aos interesses ingleses que
30
coincidiam com a poltroneria própria, a sucumbir com a pátria, aqui chegando no
ambiente da América ainda mais olvidou a dignidade de sua posição.
(…)
“Essa nobreza nova, muito mais odiosa e principalmente mais corrupta que a antiga,
e que recaía sobretudo nos homens do comércio português, contribuía ainda mais para
afundar o sulco de antagonismo entre os portugueses e os nacionais, que começavam a ver
na monarquia a velha usurpação tradicional, que nenhuma necessidade aconselhava
31
transplantar para o novo solo. O próprio constitucionalismo parecia-lhes uma nova insídia
e preferiam vencer a converter o antigo gentilismo político” (cf. João Ribeiro, “História
do Brasil, 2ª edição, Liv. Cruz Coutinho, Rio, 1901, pp. 308-310).
E, logo adiante:
Valeria a pena, em outro trabalho, abordar a teoria histórica esboçada por João
Ribeiro. Aqui, é suficiente citar as suas palavras na introdução à primeira edição de seu
livro sobre a História do Brasil: “nas suas feições e fisionomia própria, o Brasil, o que ele é,
deriva do colono, do jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravos negros”.
Não era algo óbvio, na época em que essas palavras foram escritas. Mais de 50 anos
depois, em sua importante obra sobre a República (“História da República”, com
edições revisadas pelo autor de 1940 a 1954), José Maria Bello iria insistir, ainda, na
superioridade dos brancos e na sua maior importância para a História do nosso país, em
relação aos negros, índios – e, por consequência, também em relação aos mestiços,
mulatos ou mamelucos.
PANOS E VINHOS
32
O Tratado de Panos e Vinhos ficou conhecido como Tratado de Methuen porque esse
era o nome do embaixador inglês - John Methuen - que distribuiu propinas entre a
nobreza lusitana e membros do governo português, para consegui-lo.
Por esse tratado, Portugal escancarou seu território – e o de suas colônias, como o
Brasil – aos produtos industrializados ingleses, em troca de uma “abertura” supostamente
semelhante (na verdade, totalmente falsa, ilusória, fantasiosa) para os vinhos portugueses
no mercado inglês.
Mesmo se os ingleses cumprissem o tratado – o que jamais fizeram, pois até na época
de Napoleão, em pleno bloqueio continental, a Inglaterra preferia importar vinhos da
França – ele seria um desastre (como, aliás, foi) para os portugueses.
PARA TRÁS
“Com esta sábia e patriótica providência, foram os portugueses tão bem sucedidos e
as suas manufaturas de lã aumentaram, e a tal ponto se aperfeiçoaram, que tanto Portugal
como o Brasil foram inteiramente supridos pelas fábricas nacionais, sendo as matérias
primas desta manufatura lãs portuguesas e espanholas.
33
“Tal era a situação próspera do fabrico de panos em Portugal; mas esta prosperidade
não era possível durar muito tempo: tal tem sido a má estrela, que sempre tem perseguido
a infeliz Nação Portuguesa, essa estrela do Norte, ou para falarmos mais claro, essa estrela
da Grã-Bretanha, nossa aliada invejosa e cheia de emulação pela nossa prosperidade.
“Ela não se descuidou de fazer com que o tirânico, imbecil e anti-patriota Governo
Português, anuí-se a suas pretensões, tornando a admitir, pelo sobredito Tratado de
Methuen, as fazendas de lã britânica, depois de uma exclusão de 20 anos, e isto a desprezo
das instâncias e justas queixas dos nossos fabricantes, cujos estabelecimentos ficaram por
isso arruinados!” (cf. Francisco de Assis Castro e Mendonça, “Memória Histórica
Acerca da Pérfida e Traiçoeira Amizade Inglesa”, Typ. Faria e Silva, Porto, 1840,
pp. 50-51).
A LOUCA
“E até nas mesmas terras minerais ficará cessando de todo, como já tem
consideravelmente diminuído a extração do ouro, e diamantes, tudo procedido da falta de
braços, que devendo empregar-se nestes úteis, e vantajosos trabalhos, ao contrário os
deixam, e abandonam, ocupando-se em outros totalmente diferentes, como são os das
referidas fábricas, e manufaturas.
34
“... e consistindo a verdadeira, e sólida riqueza nos frutos, e produções da terra, as
quais somente se conseguem por meio de colonos, e cultivadores, e não de artistas, e
fabricantes: e sendo além disto as produções do Brasil as que fazem todo o fundo, e base,
não só das permutações mercantis, mas da navegação, e do comércio entre os meus leais
vassalos habitantes destes reinos, e daqueles domínios, que devo animar, e sustentar em
comum benefício de uns, e outros, removendo na sua origem os obstáculos, que lhe são
prejudiciais, e nocivos.
“... em consideração de tudo o referido: hei por bem ordenar, que todas as fábricas,
manufaturas, ou teares de galões, de tecidos, ou de bordados de ouro, e prata. De veludos,
brilhantes, cetins, tafetás, ou de outra qualquer qualidade de seda: de belbutes, chitas,
bombazinas, fustões, ou de outra qualquer qualidade de fazenda de algodão ou de linho,
branca ou de cores: e de panos, baetas, droguetes, saietas ou de outra qualquer qualidade
de tecidos de lã; ou dos ditos tecidos sejam fabricados de um só dos referidos gêneros, ou
misturados, tecidos uns com os outros; excetuando tão somente aqueles dos ditos teares, e
manufaturas, em que se tecem, ou manufaturam fazendas grossas de algodão, que servem
para o uso, e vestuário dos negros (…)
“... todas as mais sejam extintas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos
meus domínios do Brasil, debaixo da pena do perdimento, em tresdobro, do valor de cada
uma das ditas manufaturas, ou teares, e das fazendas, que nelas, ou neles houver, e que se
acharem existentes, dois meses depois da publicação deste; repartindo-se a dita
condenação metade a favor do denunciante, se o houver, e a outra metade pelos oficiais,
que fizerem a diligência; e não havendo denunciante, tudo pertencerá aos mesmos
oficiais”.
No entanto, houve, antes de Dª Maria, a louca, uma tentativa de mudar essa situação.
Oliveira Lima chamaria a essa tentativa, muito justamente, de “lampejo pombalino”, em
virtude do homem que a empreendeu: o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e
Mello, principal ministro de D. José I.
35
6
Os homens que lideraram a revolução da Independência, a começar por José
Bonifácio, formaram-se sob a luz da reforma do marquês de Pombal, que subsistiu, na
Universidade de Coimbra, mesmo depois da queda de seu patrono, em 1777, e de sua
morte, em 1782.
MUDANÇAS
Lembrou Rui que “em 1772, por um só ato, [Pombal] instituiu 837 cadeiras públicas
de instrução primária e secundária” e comentou: “Imaginai, no meio do marasmo
nacional daquele tempo, o arrojo inconcebível dessa medida, que inaugurava a escola
essencialmente popular, firmando o princípio da gratuidade do ensino”.
“Quatro anos antes”, continuou Rui Barbosa, “principiara esse impulso com a
reforma da Universidade de Coimbra. Por toda a superfície da península, a instrução
cientifica não existia. Em 1786 um célebre escritor castelhano, comparando as
matemáticas à alquimia, ufanava-se da ignorância delas em sua pátria, como sinal
36
irrefragável da sua superioridade sobre as outras nações. Nos meados desse século não
havia em toda a Espanha um químico prático. Mais de cento e cinquenta anos depois de
Harvey ainda se desconhecia ali a circulação do sangue. A Universidade de Salamanca, em
1771, recusara entrada, pública, desdenhosa e terminantemente, aos descobrimentos de
Newton, Gassendi e Descartes, por se não coadunarem com Aristóteles. Em Portugal os
estudos universitários vegetavam sob a rotina teológica, do mesmo modo
como os colégios eram monopólio das ordens religiosas, e as raras escolas
primárias não passavam, digamos assim, de estabelecimentos diocesanos, sob
a direção dos clérigos e a inspeção dos bispos” (Rui Barbosa, op. cit., pp. 218-219,
grifo nosso).
Aqui, correndo mais uma vez o risco de alongarmo-nos demasiado em uma citação,
se poderá sentir o motivo de todo o ódio que Pombal suscitou entre a sebosa, falida,
arrogante – e, ao mesmo tempo, subserviente – aristocracia e seus porta-vozes literários:
37
abuso dos legados a estabelecimentos religiosos, monomania geral, que explorava as
famílias, nutrindo a ociosidade e o fanatismo. Amplia as leis de amortização. Desfecha
golpe fatal na instituição dos morgados. Acaba com a iniquidade da prisão por dívidas
contra os devedores de boa-fé. Proclama a nobreza da profissão comercial, para cujo
desenvolvimento se esforça, com a sua eficácia habitual, instituindo o ensino dessa
especialidade. Inaugura o princípio da concorrência e igualdade de todos os cidadãos
perante os cargos do Estado, abolindo o direito consuetudinário, que consagrava a
hereditariedade dos empregos” (Rui Barbosa, idem, pp. 220-221).
DIPLOMACIA
38
de muito remotas distâncias” – cf. “Cartas e Outras Obras Selectas do Marquez de
Pombal”, Tomo II, 5ª ed., Costa Sanches, Lisboa, 1861, pp. 23-24).
Depois que, em mar territorial lusitano, a marinha inglesa atacou navios franceses
– que eram, na Guerra dos Sete Anos, inimigos da Inglaterra, mas não de Portugal –
escreveu Pombal (na época, conde de Oeiras) a William Pitt, primeiro-ministro da
Inglaterra:
“Eu sei que o vosso gabinete tem tomado um império sobre o nosso; mas sei também
que já é tempo de o acabar; se meus predecessores tiveram a fraqueza de vos conceder
tudo quanto queríeis, eu nunca vos concederei senão o que devo. É esta a minha última
resolução; regulai-vos por ela” (cf. “Cartas e Outras Obras Selectas do Marquez de
Pombal”, Tomo I, ed. cit., p. 5).
“Eu rogo a v. ex. que me não faça lembrar das condescendências, que o governo
português há tido com o governo britânico; elas são tais, que não sei que potência alguma
as haja tido semelhantes com outra. Era justo que essa autoridade acabasse alguma vez, e
que fizéssemos ver a toda a Europa que tínhamos sacudido um jugo estrangeiro. Não o
podemos melhor provar do que pedindo ao vosso governo uma satisfação que por nenhum
direito nos deve negar. A França nos consideraria no estado de maior fraqueza se lhe não
déssemos alguma razão do estrago que sofreu a sua esquadra em as nossas costas
marítimas, onde por todos os princípios se devia julgar em segurança.”
39
“Vós fazíeis bem pequena figura na Europa, quando nós já a fazíamos mui grande.
Vossa ilha apenas formava um pequeno ponto, sobre a carta geográfica, ao passo que
Portugal quase a enchia toda com seu nome.
“Há cinquenta anos a esta parte tendes tirado de Portugal mil e quinhentos milhões,
soma enorme, e tal, que a história não aponta igual com que uma só nação tenha
enriquecido outra. O modo de haver estes tesouros vos tem sido mais favorável ainda, que
os mesmos tesouros: porque é por meio das artes [isto é, da produção manufatureira] que
a Inglaterra se tem tornado senhora de nossas minas, e nos despoja, regularmente de seu
produto.
“Um mês depois que a frota do Brasil chega, já dela não há uma só moeda de ouro em
Portugal; grande utilidade para Inglaterra, pois que continuamente aumenta sua riqueza
numerária: e a prova é, que a maior parte de seus pagamentos de banco se fazem com o
nosso ouro, por efeito de uma estupidez nossa, de que não há exemplo em toda a história
universal do mundo econômico.
“Assim permitimos nós, que nos mandeis nosso vestuário, bem como todos os
objetos de luxo, que não é pouco considerável; e assim, damos emprego a quinhentos mil
vassalos del-rei Jorge, população, que à nossa custa se sustenta na capital de Inglaterra.
“Também são vossos campos os que nos sustentam; e são vossos lavradores os que
substituem os nossos, quando em tempos antigos éramos nós quem vos fornecia os
mantimentos; mas a razão é que enquanto vós roteáveis vossas terras, deixávamos nós
ficar as nossas sem cultura.
40
“Contudo se nós somos os que vos temos elevado ao maior grau de vossa grandeza,
também nós somos os únicos que dele vos podemos derribar. Muito melhor podemos nós
passar sem vós, do que vós podeis passar sem nós: uma só lei pode transtornar vosso
poder, e diminuir vosso império. Não temos mais do que proibir com pena de morte a
saída de nosso ouro, e ele não sairá.
“Verdade é que a isto podeis responder-me que, apesar de todas as proibições, ele
sempre sairá, como tem saído, porque vossos navios de guerra têm o privilégio de não
serem registrados na sua saída: mas não vos enganeis com isso: se eu fiz com que se
degolasse um duque de Aveiro, porque atentou contra a vida del-rei Nosso Senhor, mais
facilmente farei enforcar um dos vossos capitães por levar sua efígie contra o determinado
por a lei.
“Há tempos em que nas monarquias um só homem pode muito. Vós sabeis que
Cromwell, em qualidade de protetor da república inglesa, fez morrer o irmão do
embaixador del-rei fidelíssimo: sem ser Cromwell eu me sinto também com poder de
imitar o seu exemplo, em qualidade de ministro, protetor de Portugal. Fazei logo o que
deveis, que eu não farei tudo quanto posso.
“Em que viria a parar a Grã-Bretanha se por uma vez se lhe cortassem as fontes das
riquezas da América? Como pagaria ela suas tropas de terra, e de mar: e como daria a seu
soberano os meios de viver com o esplendor de um grande rei? E mais ainda: donde tiraria
ela os subsídios com que paga às potências estrangeiras para apoiarem a sua?
“Bem verdade é, que me podeis dizer que a ordem das coisas não se muda tão
facilmente como se diz; e que um sistema estabelecido depois de muitos anos não se muda
em uma hora: assim é; porém posso-vos responder, que não deixando eu perder a ocasião
oportuna de preparar esta reforma, não me é difícil no entanto estabelecer um plano de
economia que conduza ao mesmo fim.
“Há muito tempo que a França nos convida para lhe recebermos suas manufaturas de
lã: e se as recebermos, que será das vossas? Também a Barberia [costa dos atuais
41
Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia], que abunda em trigos, no-los pode fornecer por o
mesmo preço: e então vereis com extrema mágoa como vossa marinha gradualmente se
extingue. Vós, que tão versado sois na política do ministério, sabeis muito bem que a
marinha mercante é o viveiro de oficiais e maruja da marinha real; e só com esta, e aquela,
tendes feito toda a vossa grandeza.
“A satisfação que vos peço é conforme com o direito das gentes. Sucede todos os dias
que os oficiais de mar, e terra, façam por zelo, ou ignorância, o que não deviam fazer; é
portanto a nós que pertence o puni-los e fazer emendar, e remediar os danos que eles têm
causado. Nem se deve julgar que estas reparações ficam mal ao Estado que as faz: ao
contrário, sempre é mais bem estimada aquela nação que de boamente se presta a fazer
tudo o que é justo. Da boa opinião dependeu sempre o poder; e a força das nações” (idem,
pp. 6-9).
42
7
A dependência – melhor seria dizer: a submissão – de Portugal à Inglaterra foi a
condição de fundo em que se realizou a Independência do Brasil. O conflito com as Cortes
de Lisboa foi, fundamentalmente, um conflito com a dependência portuguesa.
O pronunciamento dos homens da Independência era claro sobre essa questão, ainda
que muitas vezes de modo indireto. Por exemplo, escreveu José Bonifácio, já em agosto
de 1822 – portanto, antes da proclamação oficial da Independência – nas suas instruções
ao nosso representante em Londres, Felisberto Caldeira Brant, o futuro marquês de
Barbacena:
E, mais adiante:
“… é bem óbvio e evidente que o Brasil não receia as potências europeias, de quem
se acha apartado por milhares de léguas, e nem tampouco precisa delas, por ter no seu
próprio solo tudo o que lhe é preciso, importando somente das nações estrangeiras
objetos pela maior parte de luxo, que estas trazem por próprio interesse seu”.
“O Brasil quer viver em paz e amizade com todas as outras nações, há de tratar
igualmente bem a todos os estrangeiros, mas jamais consentirá que eles intervenham nos
negócios internos do país. Se houver uma nação que não queira sujeitar-se a esta
43
condição sentiremos muito, mas nem por isso nos havemos de humilhar nem submeter à
sua vontade” (cf. “Annotações de A.M.V. de Drummond à sua Biographia”,
Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XIII (1885-1886), 1890, p. 45).
“Meu querido Senhor, o Brasil é uma Nação e como tal ocupará o seu posto, sem ter
que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais potências. A elas se enviarão os
agentes diplomáticos ou ministros. As que nos recebam nessa base e nos tratem de nação
a nação continuarão sendo admitidas aos nossos portos e favorecidas em seu comércio.
As que se neguem serão excluídas deles” (cit. in Otaciano Nogueira, “O colosso que forjou
uma nação“, Plenarium, v. 5, nº 5, out./2008, p. 257).
Não era uma questão nova, em seu pensamento. Ainda residindo em Portugal, quatro
anos antes da volta ao Brasil, ele havia refletido sobre ela:
“… o Brasil tem bens reais, e não precisa de fictícios – não convertamos o supérfluo
em necessário, nem demos alimento a ocas vaidades e desejos e gozos pueris.”
É o mesmo espírito que lhe faz escrever, já velho e recolhido à Ilha de Paquetá:
“Os políticos da moda querem que o Brasil se torne Inglaterra ou França; eu quisera
que ele não perdesse nunca os seus usos e costumes simples e naturais e antes
retrogradasse que se corrompesse.”
44
A questão era um consenso – ou quase isso – entre os dois partidos que lideraram a
Independência. Temos, a esse respeito, o testemunho de José Clemente Pereira – que, com
Gonçalves Ledo, era a figura mais em evidência do grupo que disputava, com os Andradas,
a direção do movimento da Independência.
“Fácil era de prever os resultados necessários de tudo isto; os bons patriotas os viram
logo; e eles foram, com efeito, o desaparecimento de nossa moeda, quando do Brasil se foi
esconder nas burras de Londres e de Paris; e assim devia de ser necessariamente, porque,
recebendo nós do estrangeiro anualmente 50, por exemplo, nas ofertas que nós
importávamos, e não produzindo para lhes dar em paga senão 30, que eles de nós
exportavam, o saldo dos 20 devia sair em metais preciosos e porque a mesma operação se
tem repetido por tantos anos sucessivos, milagre é que ainda exista alguma moeda de
6$400 ou 4$000.
“Se tais tratados se não tivessem feito, sábias leis teriam podido remediar em alguma
parte este mal, proibindo a entrada de certos gêneros de luxo, ou impondo-lhes o
pagamento de direito nas alfândegas que fizesse mais dificultosa a sua introdução.
45
“Para que serão boas estas coisas entre nós? Acaso nossas senhoras não vestiam com
decência ao tempo em que não tínhamos modistas francesas, suas cabeças não eram mais
formosas enquanto seus cabelos naturais não foram substituídos pelos artificiais que ao
Brasil lhes vieram dos cemitérios franceses? Seus pés ficavam porventura mais delicados
depois que os sapatinhos de Paris, que não chegam a durar um dia, substituíram os que
dantes calçavam?
“Não se entenda que queríamos que alguma nação fosse excetuada no pagamento de
direitos; o que queríamos era que com nenhuma se tivessem feito tratados de comércio e
que os direitos de importação fossem por nossas leis elevados, ou diminuídos a nosso
arbítrio, segundo a natureza dos gêneros, a necessidade que deles tivéssemos, ou a
utilidade que deles nos adviesse.”
Nesse texto, publicado após sua morte, José Clemente Pereira faz justiça à obra de
José Bonifácio e dos Andradas – de quem fora adversário e mesmo inimigo político -, razão
pela qual voltaremos a ele mais adiante. Sobre a questão da dependência aos ingleses, ele
diz:
“… como tomamos por tarefa aproveitar todas as ocasiões que se nos oferecem de
fazer ver que o Augusto Fundador do Império [D. Pedro I] viu sempre as coisas em melhor
sentido que alguns de seus ministros, aqui será lugar de publicar que no tempo do
Ministério dos Srs. Andradas, ele era de opinião de que se não fizessem tais tratados,
decerto porque essa era a opinião dos mesmos senhores, e grande parte das
pessoas que se achavam no Paço no dia 12 de outubro de 1822, foram testemunhas das
expressões significativas destes sentimentos ouvidos ao Ministério” (grifo nosso).
46
sobre os préstimos da marquesa, Octávio Tarquínio de Sousa, “História dos
Fundadores do Império do Brasil”, Vol. III, 3ª ed., J. Olympio, 1957, p. 638).]
MALES
José Clemente Pereira é implacável sob o significado dos tratados aceitos por D.
Pedro I, após a queda dos Andradas: a redução das taxas de importação era “a principal
origem da introdução de um luxo que nos devora, e da saída dos metais preciosos, cuja
falta nos vai precipitando em um abismo (…); e a decantada reciprocidade não existe senão
no papel dos tratados, porque nenhum comércio fazemos com o estrangeiro em nossos
navios, e portanto é uma guerra e um verdadeiro fantasma, e logro escrito para nos iludir
com o estrangeiro, que quis palear suas vantagens, como nossos negociadores se quiseram
deixar iludir; mas o povo não se iluda, porque já lá vai o tempo de enganar a homens.
Por fim, Clemente Pereira examina a principal alegação dos defensores desses
tratados – a de que as concessões neles aceitas eram o preço do reconhecimento do Brasil
como país independente:
“Se nos dissessem que os tratados eram necessários para o reconhecimento da nossa
Independência, negaremos essa necessidade (…). Eles necessitavam mais de nós que nós
47
deles. Era isto necessário para dar saída a nossos gêneros. Bem – diminuir os direitos de
saída e aumentar os de entrada, a causa será a mesma, com a diferença de ser mais
favorável aos nossos lavradores. (…) Tudo recairá sobre o consumidor, mas o lavrador
ficou aliviado, porque pagará o imposto só do que vender.
“Mas do modo que a coisa está o Corpo Legislativo vê-se no grande embaraço de dar
uma doutrina regular aos impostos, porque não pode carregar os de importação, nem
aliviar os de exportação, como todos os principais economistas políticos ensinam, e as
necessidades de proteger nossa agricultura e indústria imperiosamente exigem.
MARQUÊS DE POMBAL
48
fatos com sua opinião política. Há menos desses preconceitos herdados do século XVIII na
obra pioneira dos estudos históricos sobre Pombal: v. Francisco Luiz Gomes, “Le
marquis de Pombal – esquisse de sa vie publique”, de 1869 (livro escrito e
publicado em francês, apesar do autor, nascido em Goa, ser lusitano).]
49
8
Euclides da Cunha, em seu ensaio “Da Independência à República”, ao escrever
sobre José Bonifácio, referiu-se, com seu característico estilo, à “figura anormal desse
homem que sobranceou o seu tempo, mercê de uma cultura integral dilatando-lhe o
espírito por todas as ordens de conhecimentos, da mineralogia transfigurada por
Werner à química recém-instituída por Lavoisier, até as mais transcendentes cogitações
de Kant ou de Fichte” (cf. Euclides da Cunha, “À Margem da História”, Lello Brasileira,
1967, p. 185).
“Os horrores das revoluções talvez sejam menores que os da matança de São
Bartolomeu; e, todavia, esta matança não acabou com o Catolicismo. E por que quererão
acabar hoje com as verdades que patenteou e inculcou a Revolução Francesa?”
Ou, também:
“Os que se opõem às reformas por nímio respeito da antiguidade, por que não
restabelecem a tortura, a queima dos feiticeiros etc.? Seriam nossos pais culpáveis para
com os seus antigos quando adotaram o Cristianismo e destruíram a escravidão na
Europa? Não era isto abandonar a antiguidade para ser moderno? E por que não
aproveitaremos nós as luzes do nosso tempo para que a nossa posteridade tenha também
uma antiguidade que de nós provenha, mas que o deixe de ser logo que o progresso do
espírito humano assim o exigir?” (ambas as citações estão na coletânea organizada por
Octávio Tarquínio de Sousa, “O Pensamento Vivo de José Bonifácio”, Liv. Martins,
1944).
O HOMEM
Um autor, que não foi um admirador dos Andradas, escreveu sobre as “preciosas
qualidades, intelectuais e morais, que se encontravam reunidas em José Bonifácio (…). A
sua tenacidade era um contrapeso às vacilações de D. Pedro, cuja iniciativa ele encorajava.
50
Mareschal [o representante da Áustria e da Santa Aliança (Áustria, Prússia e Rússia) no
Rio de Janeiro] notou-lhe desde logo essa superioridade sobre o Conde dos Arcos, que
procurava adormecer as faculdades do Príncipe para governar livremente. A sua espantosa
atividade, a sua extrema viveza causavam admiração ao Ministro austríaco (…). O
Almirante Roussin duvidava que existisse no mundo ‘velhinho mais fogoso; aos sessenta e
seis anos, nem seu corpo, nem seu espírito um momento sequer estavam em repouso’. (…)
Apresentando a eficácia da política seguida no Brasil, em contraste aos desacertos e
lentidão da política das Cortes, dizia Borges Carneiro [um dos líderes das Cortes de
Lisboa]: ‘Ali, um só homem, José Bonifácio de Andrada e Silva, com a energia do seu
caráter, improvisa forças de mar e terra, acha recursos em abundância e os põe pela porta
afora com a maior sem-cerimônia possível.’
“Além de grande probidade”, continua esse autor, “(…) a sua cultura intelectual era
intensa e punha-o acima de quase todos os brasileiros ilustrados do seu tempo. Era
laureado em filosofia e letras; conhecia Shakespeare e Dante tão bem como Camões, as
musas francesas tão intimamente quanto as que haviam inspirado a Schiller e Goethe; a
toda essa cultura moderna precedia o seu convívio com os clássicos gregos e latinos. Os
centros científicos estrangeiros tinham-no em alta conta. A Sociedade de História Natural
de Paris publicou-lhe nas respectivas atas a memória acerca dos diamantes do Brasil e as
descobertas de novas espécies de minerais. O fato de falar seis línguas e entender onze
avultava-lhe os dotes, no meio da gente a quem tal dom pareceria quase sobrenatural.
“José Clemente reconhece que ele era ‘o único homem apontado então para dirigir a
revolução’, porque além de ter o favor da popularidade ‘reunia vasto saber, imaginação
viva, atividade sem igual e intrepidez remarcável’. São dignas da sua memória as palavras
proferidas a seu respeito, poucos anos depois da sua morte, por esse generoso adversário,
um dos mais atingidos pela sua cólera: ‘Os serviços desse grande homem nunca poderão
ser assaz remunerados; honrou com os seus talentos a sua pátria no pais e no
estrangeiro, e o seu nome será sempre inseparável da Independência do Brasil, a qual lhe
é devida em grande parte’.” (cf. Tobias Monteiro, “A Elaboração da Independência”,
Tomo 2, ed. cit., pp. 733-735).
O BRASILEIRO
51
“Nos fins do século XVIII a maioria dos talentos do Reino [de Portugal] já era de
origem brasileira, e a população do Brasil já era a maior e mais rica. Latino [o escritor e
político português Latino Coelho] lembra os nomes de Morais, do Dicionário, do poeta
Pereira Caldas, do jornalista e publicista Hipólito, de Azeredo Coutinho (bispo de Eivas),
do matemático Vilela Barbosa (Marquês de Paranaguá), dos químicos Nogueira da Gama
(Marquês de Baependi) e Seabra, do botânico Conceição Veloso, do explorador e zoólogo
Alexandre Rodrigues Ferreira, do mineralogista Feijó, de Câmara Bitencourt (companheiro
de José Bonifácio na viagem científica pela Europa), dos médicos Melo Franco e Elias da
Silveira. No Brasil tinham crescido e floresciam Antônio José [o teatrólogo Antonio José da
Silva, executado pela Inquisição em 1739], Basilio da Gama, Santa Rita Durão, Cláudio
[Manoel da Costa], Alvarenga Peixoto. Aliás, poderia ainda aumentar aquele rol com
outros nomes que então já brilhavam ou começaram a brilhar ao abrir-se o século XIX: o
botânico Arruda Câmara, Baltazar Lisboa, o bispo Azeredo Coutinho, Souza Caldas, Aires
Casal, Fr. Leandro do Sacramento, Picanço, Silva Lisboa, João Severiano (Queluz),
Mariano da Fonseca (Maricá), Fernandes Pinheiro (São Leopoldo), Carneiro de Campos
(Caravellas), José Egídio (Santo Amaro), os irmãos Andrada” (op. cit, p. 501).
Havia nesses homens – e, progressivamente, cada vez mais – uma altivez advinda de
suas conquistas intelectuais, que identificavam, também progressivamente, com a terra em
que nasceram ou cresceram. Portugal tornara-se pequeno demais para eles – não qualquer
Portugal, mas o decadente país em que este se tornara, cada vez mais dependente da
economia inglesa e mais submisso à política da Inglaterra.
Não espanta, portanto, que o ânimo, as ideias – em suma, o espírito – dos homens da
Independência (segundo o testemunho de José Clemente Pereira, inclusive de D. Pedro I
durante o ministério dos Andradas, período que vai de janeiro de 1822 a julho de 1823),
eram antagônicos à dependência externa do país, especialmente da Inglaterra.
52
imperatriz Leopoldina era, também, uma arquiduquesa austríaca, isto é, filha do
imperador da Áustria, Francisco I.
Porém, em público, ela sempre fazia questão de falar português – e até sua
correspondência com José Bonifácio foi escrita em português, o que, para ela, devia ser um
esforço não pequeno. Apesar disso, como observou Afonso d’Escragnolle Taunay, “para
uma estrangeira, e para o tempo, as cartas de dona Leopoldina se apresentam bem
escritas, quanto à ortografia e sintaxe portuguesa. O marido, por exemplo, escrevia pior do
que ela” (v. “Cartas inéditas da imperatriz Leopoldina a José Bonifácio”, RIHGB, T. 91,
Vol. 145, 1922, p. 704).
A imperatriz Leopoldina parece uma exceção – talvez por sua identificação com um
projeto de Nação que era oposto ao esclerosado credo dos Habsburgos.
Ela fez o possível para facilitar a vida do novo país. Por exemplo, diz ela ao imperador
Francisco I, em carta do dia 6 de abril de 1823:
“Desde que meu esposo tomou as rédeas do Estado, Deus sabe que, não por sede de
poder ou ambição, mas para satisfazer o desejo do probo povo brasileiro, que se sentia sem
regente, dilacerado em seu íntimo por partidos que ameaçavam com uma anarquia ou
República; qualquer um que se encontrasse na mesma situação faria o mesmo: aceitar o
título de Imperador para satisfazer a todos e criar a unidade.
“É meu dever fazer o papel de intercessora do nobre povo brasileiro, pois todos nós
lhe devemos algo; nas circunstâncias mais críticas, este povo fez os maiores sacrifícios, que
demonstram amor à pátria, para proteger sua unidade e o poder real.
“Todas as províncias se unem pelo mesmo interesse, mesmos anseios. Agora, nada
mais me resta desejar senão que o senhor, querido pai, assuma o papel de nosso
verdadeiro amigo e aliado; certamente será para meu esposo e para mim um dos nossos
dias mais felizes, quando tivermos essa certeza; quanto a mim, caríssimo pai, pode estar
convicto de que, caso aconteça o contrário, para nosso maior pesar, sempre permanecerei
53
brasileira de coração, pois é o que determinam minhas obrigações como esposa e mãe, e a
gratidão a um povo honrado que se dispôs, quando nos vimos abandonados por todas as
potências, a ser nosso esteio, não temendo quaisquer sacrifícios ou perigos”.
“Estou certa, meu caríssimo pai, haver quem vos tenha dito ou escrito que aqui se
queria fazer uma Constituição como a dos pérfidos portugueses ou das sanguinárias Cortes
espanholas; mas garanto-vos ser mentira e ocorre-me o dever de dar os motivos principais
da minha opinião. Na Assembleia das Cortes [é como ela se refere à Constituinte do Brasil]
há membros de elevados talentos e grande retidão, respeitosos do Poder Real e que o
sabem sustentar. A Assembleia compõe-se de duas Câmaras. O Imperador possui o direito
do veto absoluto. Ao seu Conselho Privado e aos seus ministros, todos de sua escolha, não é
dado o menor direito nem de intervir nem de opor-se; são todos como a domesticidade e os
oficiais da Corte. O Imperador possui igualmente todos os atributos que auxiliam a
manutenção da sua força, tais como, Chefe do Poder Executivo e Chefe dos Negócios
Políticos”.
Esta carta foi escrita, por Dª Leopoldina, 27 dias antes da abertura dos trabalhos da
Constituinte. Na mesma carta, ela também argumenta com os interesses comerciais da
Áustria – que eram muito restritos no Brasil, com o quase monopólio por parte da
Inglaterra:
O SUL
54
Em um informe para Viena – ou seja, ao príncipe de Metternich – o barão Mareschal
relatou, a 17 de maio de 1822:
“… o Senhor d’Andrada vai mais longe e eu o ouvi dizer na Corte, diante de vinte
pessoas, todas estrangeiras, que se fazia necessária a grande Aliança ou Federação
Americana, com liberdade de comércio; que se a Europa se recusasse a aceitá-la, eles
fechariam os seus portos e adotariam o sistema da China, que se viéssemos atacá-los, suas
florestas e suas montanhas seriam as suas fortalezas, que numa guerra marítima nós
teríamos mais a perder do que eles” (cf. José Vicente de Sá Pimentel (org.), “Pensamento
Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-
1964)”, Volume 1, Fundação Alexandre de Gusmão/MRE, Brasília, 2013, p. 89).
“No Brasil, após as primeiras medidas de política interna, José Bonifácio inicia pelo
Prata a ação externa do Brasil independente, ainda em maio de 1822, convocando Antônio
Manuel Corrêa da Câmara para representar o país em Buenos Aires. (…) Câmara devia
fazer ver a Buenos Aires que aquele era o momento de apoiar o Brasil, pois, uma vez
‘consolidada a sua Reunião e Independência’, a Europa naturalmente entenderia ser
impossível restabelecer o domínio colonial sobre ele e sobre as demais colônias
americanas.
55
de Buenos Aires, mas também que prestasse ‘todo o favor e proteção possível’ ao mestre da
embarcação Paquete do Rio da Prata, que aportara recentemente. Ademais, deveria ficar o
Juiz ‘na inteligência de que assim deverá praticar para o futuro com qualquer outra
embarcação daquele Estado, que aqui haja de aportar’.” (cf. João Alfredo dos Anjos, “José
Bonifácio, Primeiro Chanceler do Brasil”, ed. cit., pp. 102-105 e 106-108).
56
9
José Bonifácio combateu na resistência à invasão francesa de Portugal. É necessário
expor o significado histórico desse ato – o que é, também, expor a sua importância na
formação da personalidade política do Andrada, que foi, no Batalhão Acadêmico, major,
tenente-coronel, comandante da defesa de Coimbra, e, por fim, comandante do próprio
Batalhão.
NÚMEROS
Não é conhecido, ao certo, o número de nobres – e sua criadagem – que vieram com
D. João para o Brasil. As estimativas variam entre 521 (420 membros da corte mais 101
oficiais da Marinha portuguesa) e 15.000 (quinze mil), o que deve ser um recorde de
margem de erro.
57
Além da família real – composta por 14 pessoas, incluindo as crianças -, apenas 19
nobres, que vieram de Lisboa com D. João, tiveram esse “direito” no Rio de Janeiro, de
acordo com a documentação recolhida ao Arquivo Nacional (cf. Nireu Oliveira Cavalcanti,
art. cit., p. 155, nota).
Realmente, a fonte dos 15 mil portugueses que teriam saído de Portugal em 1807,
com o então príncipe regente, é duvidosa: um oficial da marinha inglesa, o conde irlandês
Thomas O’Neill, que não estava presente na partida da família real, apesar de descrevê-la
melodramaticamente – e até inventar um encontro do comandante francês, general
Andoche Junot, com D. João (em seu “D. João VI no Brasil”, Oliveira Lima chamou o
relato de O’Neill de “imaginosa narração”, apesar de conceder a ele um crédito de
veracidade que não é coerente com esse conceito).
O Rio de Janeiro tinha, então, 7.500 imóveis urbanos. A chegada de 15 mil pessoas
seria, portanto, uma comoção, para dizer o mínimo, mesmo com a suposição, pouco
fundamentada, de que uma parte dessas pessoas pudesse ter ficado na Bahia, onde D. João
primeiramente aportou, ou na Paraíba, onde arribou, antes do Rio, a nau D. João de
Castro.
Mas é preciso acrescentar que parte da frota – inclusive três dos principais navios (as
naus Rainha de Portugal, Príncipe do Brasil e Infante D. Henrique), com parte da família
real – veio direto para o Rio de Janeiro, chegando a 17 de janeiro de 1808, enquanto D.
João somente chegou a 7 de março (cf. o relato de uma testemunha do desembarque, o
padre Luiz Gonçalves dos Santos, “Memorias para servir a historia do reino do
Brazil”, Impressão Regia, Lisboa, 1825 – existe uma edição fac-similar publicada pela
Câmara dos Deputados).
58
Ministério de Estrangeiros e Guerra” (cf. Oliveira Lima, “D. João VI no Brasil”, ed. cit.,
pp. 47-48).
A biblioteca, por exemplo, era constituída por 60 mil volumes. Qualquer um que já
tentou organizar uma quantidade até muito menor de livros, sabe o espaço que eles
ocupam. Mas isso significava menos espaço para transportar pessoas.
Também Oliveira Lima transcreve trecho de uma carta de Junot à esposa, a duquesa
de Abrantes: “Quanto aos diamantes brutos e talhados da coroa de Portugal, levaram tudo,
até um pedaço de cristal que te recordarás de haver visto no gabinete de história natural de
Lisboa, lapidado à imitação perfeita do famoso diamante de Portugal”.
O POVO
“O muito nobre e sempre leal povo de Lisboa, não podia familiarizar-se com a ideia
da saída d’El-Rei para os Domínios Ultramarinos. Encarava o futuro, e além da orfandade,
que descobria, ruminava no pensamento a série de males, que ameaçavam os horizontes da
sua cara Pátria. (…) Vagando tumultuariamente pelas praças, e ruas, sem acreditar mesmo,
que via, desafogava em lágrimas, e imprecações à opressão dolorosa, que lhe abafava na
arca do peito o coração inchado de suspirar: tudo para ele era horror; tudo mágoa; tudo
saudade; e aquele nobre caráter de sofrimento, em que tanto tem realçado acima dos
outros povos, quase degenerava em desesperação!” (cf. “Exposição analytica, e
justificativa da conducta, e vida publica do Visconde do Rio Seco”, Imprensa
Nacional, 1821, pp. 3-4).
59
Conta ele que, ao se aproximar do cais de Belém, foi “envolvido em uma nuvem de
verdadeiros filhos, que desacordadamente lhe pediam contas do seu Chefe, do seu
Príncipe, do seu Pai, como se ele fora o autor de um expediente, que tanto os flagelava! A
nada se poupou para serenar a multidão; desculpas oficiosas, protestações sinceras de que
ele nada influíra para tais sucessos, preces, rogos, tudo era perdido para um povo, que no
seu excesso de dor o caracterizava de instrumento do seu martírio, sem se abster de o
sentenciar de traidor!”.
D. João saiu de Lisboa para o mar no dia 29 de novembro de 1807. No dia seguinte,
as tropas de Junot – mescla mais espanhola que francesa – entraram na cidade. Poucos
dias depois, o frenesi, de que falava o visconde de Rio Seco, transformou-se em revolta
popular:
NOBRES
Pouco antes da invasão, escrevendo a um amigo, o último rebento dos Távoras, Pedro
José de Almeida Portugal, 3º marquês de Alorna e 6º conde de Assumar – cujos avós
60
foram executados no processo de 1759 e “reabilitados” após a queda do marquês de
Pombal – dizia:
Na mesma carta, Alorna diz que “nada queria com política”. Sob a ocupação francesa,
tornou-se comandante da Legião Portuguesa, que integrou o exército de Napoleão na
invasão da Rússia.
Não era um caso isolado na velha aristocracia lusitana – a parte que não fugiu para o
Brasil, aderiu em massa a Napoleão, mesmo com o povo português em revolta, e, muitas
vezes, massacrado:
“Não cabendo em si da honra que merecera de ser recebido pelo novo senhor, a
deputação dirigia um manifesto aos seus compatriotas, onde não faltava requinte de
bajulação ‘ao grande príncipe’ e ao seu ‘poderoso gênio’. À sua vista tinham compreendido
o império que exercia no coração de todos. ‘Se alguma coisa pode igualar o seu gênio é a
elevação da sua alma e a generosidade dos seus princípios’, exclamavam embevecidos e
derretidos diante da ‘afabilidade verdadeiramente paternal’, que traduzia o amor por ele
consagrado aos que tinham a fortuna de ser seus súditos. Podiam enfim conhecer-lhe os
intuitos e proclamá-los; só agora sabiam a condição sob a qual tinham vivido e por isso
cabia-lhes exprobar o procedimento do senhor, a quem até a véspera haviam servido: ‘o
61
Imperador não pode consentir uma colônia inglesa no continente; não pode, nem quer
deixar aportar a Portugal o Príncipe que o deixou, confiando-se na proteção de navios
ingleses’. Mas também o Imperador não sabia ainda que sorte mereciam os portugueses;
primeiro queria julgar se ‘eram dignos de formar uma nação’!
Resta dizer que todos os traidores, aderentes à Napoleão, foram perdoados pela
Coroa depois que os franceses saíram do país – e os ingleses o ocuparam.
CAPITULAÇÃO
Existe, hoje ainda, uma intensa polêmica em Portugal sobre a fuga de D. João.
Porque o exército de Junot que chegou a Lisboa era uma tropa mal armada, com uma
única boca de fogo por artilharia, com soldados descalços e em farrapos. Mas não houve
resistência ao seu avanço.
“Com o exército ‘partido’, roto e faminto, Junot atingiu Castelo Branco (20
Novembro) de pilhagem em pilhagem, no limiar da subsistência. As dificuldades
aumentaram na marcha para Abrantes (onde chegaram a 22 de Novembro), ‘com a difícil
passagem do Zêzere, (…) a desolação da terra e a pobreza dos habitantes’, agravadas por
62
um Inverno particularmente rigoroso e chuvoso. Mais do que uma força militar
conquistadora e temida, que se apressava para ‘libertar o país da perniciosa tutela dos
ingleses’, como proclamava Junot, o exército francês parecia pedir clemência e estar à
beira do fim, a largos quilômetros de atingir Lisboa” (cf. Abílio Pires Lousada, “A invasão
de Junot e o levantamento em armas dos camponeses de Portugal. A especificidade
transmontana.”, Revista Militar, nº 2482/novembro de 2008).
O autor nota que esse exército somente pôde atravessar Portugal devido “sobretudo,
à quase total ausência de resistência. Este foi o legado do regente Dom João (…), vincando
a preocupação em evitar escusado derramamento de sangue e a depredação das
localidades. Semelhante atitude mostravam as ‘pastorais’ das autoridades religiosas
nacionais, sugerindo à população ‘toda a quietação e auxílio às tropas francesas’.”
63
10
A desolação em Portugal, nas semanas que seguiram à fuga da família real, foi
retratada, de maneira comovente, pelo bispo do Rio de Janeiro, Dom José Caetano da Silva
Coutinho, retido em Lisboa pela invasão francesa (somente no final de abril de 1808, três
meses depois da comitiva de D. João, o bispo conseguiu chegar ao Brasil).
Dom José Caetano – que, em 1823, seria o primeiro presidente da Câmara dos
Deputados do Brasil, e, depois, senador – descreve o sentimento do povo, após a partida da
família real, como “a maior consternação, e desalento, que jamais se experimentou nas
calamidades de Portugal”. A maior importância de seu livro é a percepção – que ele não
explicita, mas é decorrente do relato – de que os maiores responsáveis pela restauração da
popularidade da família real, bastante abalada após a fuga para o Brasil, foram os
franceses (v. D. José Caetano da Silva Coutinho, “Memória Histórica da Invasão dos
Franceses em Portugal no Ano de 1807”, Impressão Regia, Rio, 1808).
Trata-se de algo praticamente geral nas guerras napoleônicas após 1804 – e mais
evidente na Rússia, Portugal e Espanha. A brutalidade das tropas – e da administração –
francesas provocou revoltas populares, nas quais os antigos representantes do feudalismo
(desde a Coroa portuguesa até o czar da Rússia) foram tomados como símbolos nacionais.
Mesmo no caso da Espanha, em que Carlos IV, e, depois, Fernando VII – respectivamente,
pai e irmão da rainha de Portugal, Carlota Joaquina – se submeteram a Bonaparte, mas
foram, em seguida, substituídos por um irmão do imperador francês: a revolta do povo fez
lembrar a primeira grande obra da literatura espanhola, o Poema do Meu Cid: “Deus! Para
tão bom vassalo, tão mau rei!” (no original: ¡Dios, qué buen vassallo, si oviesse buen
señor!).
64
LEVANTE
“Havia mais de um mês que no Régio Hospital daquela vila se achavam quatrocentos
franceses, comendo todos os mantimentos que havia de sobressalente, e consumindo as
suas rendas futuras, de maneira que por muitos anos não podem prestar o costumado
socorro e curativo aos pobres; e estes hóspedes não estavam tão doentes que não tivessem
cometido várias desordens e distúrbios na terra, e indisposto contra si ânimos dos
moradores; até que finalmente apareceram um dia sete granadeiros moços e robustos, que
se julgaram mandados de propósito da Praça de Peniche a insultar as pessoas mais
pacíficas que encontravam e a desatender algumas mulheres na sua própria casa.
“Numa destas casas, que fica na rua do Olival, ouviram-se altos gritos de uma
mulher, que se queixava dos franceses; acudiu a vizinhança e vários cadetes e soldados do
segundo Regimento do Porto, que então ali se achava aquartelado; travou-se uma rixa em
que ficaram feridos alguns franceses.
“… A consequência foi aparecer dentro de poucos dias rodeada a vila das Caldas de
um pé de Exército de quase seis mil homens de Infantaria, de Cavalaria, e nove peças de
Artilharia. No mesmo dia em que chegaram, começou uma horrorosa pilhagem nas casas e
65
nos campos, que não cessou em todos os seis dias que ali estiveram, e a que não escapou
gado, pão, vestidos, trastes, vinho, azeite, dinheiro do rico e do pobre.
“No dia seguinte, que era um sábado, prenderam-se perto de vinte pessoas, paisanos
e soldados do Porto; no domingo e na segunda-feira se inquiriram e acarearam muitas
pessoas, a que assistia o Juiz de Fora da terra, António Amado, na presença do General
Loison, Chefe do Exército, e da comissão mandada por Junot; e finalmente, na terça-feira
pela manhã, sem mais processo nem figura de juízo, mandaram-se sair da prisão Pedro
José Pedrosa, escrivão da Câmara, João de Proença, filho do Correio Mór, ambos rapazes
de vinte anos, um padeiro da vila chamado Casimiro, um tenente do Regimento do Porto
chamado Manuel Joaquim, um cadete, três soldados e um tambor do mesmo Regimento.
Três ou quatro clérigos acompanharam estes nove desgraçados desde a cadeia até um
campo que fica nos arrebaldes da vila; e este foi todo o tempo e todo o socorro espiritual
que lhes foi concedido.
“Em todo aquele dia um terror inexplicável se apoderou dos moradores, que se
fecharam em casa. Na quarta-feira seguinte, no mesmo sitio e no meio do mesmo bélico
aparato, mandou-se formar o segundo Regimento do Porto, e com a maior infâmia, se lhe
despiram as fardas, e se lhe tiraram as armas, lançando-se com desprezo as reais bandeiras
sobre os tambores; e dissolvido o corpo, na mesma hora se dispersaram os soldados para
fora da vila. Deste modo se vingaram de um Regimento que na Guerra do Rossilhão lhes
fez sentir os golpes da sua bravura” (D. José Caetano da Silva Coutinho, op. cit., pp. 50-53).
66
Mas havia poucas armas, e, sobretudo, faltavam pólvora e balas. É nesse momento
que José Bonifácio se destaca:
Entre as 10 horas da noite e às seis da manhã do dia 27, foram fabricados 3.000
cartuchos em Coimbra.
Porém, o país todo estava levantado – antes de qualquer intervenção externa, pois as
tropas inglesas do general Wellesley (o futuro duque de Wellington) somente
desembarcariam em Portugal a 1º de agosto de 1808.
Isso fez com que Junot desviasse outra vez as hordas do “Maneta”, que não chegaram
a Coimbra.
ROMPIMENTO
67
Mas é possível falar em “formação” a propósito de um homem que, em 1808, no
levante de Coimbra, tinha 45 anos?
Pior ainda – com certeza – deveriam ser, para José Bonifácio, aqueles que se
tornaram parasitas e áulicos de Bonaparte.
A resistência aos franceses tornou mais nítido, para ele, o significado daquela
nobreza que sufocava Portugal. Algo disso transpareceu de forma explícita, anos depois, na
sua recusa em aceitar qualquer título nobiliárquico – embora ele não tenha sido, nisso,
único entre os homens da Independência: Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira
também recusaram assumir títulos do que era, na opinião deles, uma simulação da
nobreza metropolitana perfeitamente ridícula. E, realmente, assim era.
BAHIA
Notemos que, muito depois do fim das invasões de Napoleão, em 1816, quando o
mulato baiano Francisco Gomes Brandão – conhecido na História do Brasil pelo nome que
escolheu após a Independência, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma – foi estudar em
Coimbra, o clima (ou, seria melhor dizer, o espírito) dos estudantes brasileiros era de mal
contido inconformismo.
68
Especialmente Montezuma iria condensar esse espírito, naquilo que os mestres
portugueses consideravam mau comportamento. Quando de sua formatura em Direito e
Filosofia, no ano de 1821, o conceito da banca examinadora sobre esse estudante foi o
seguinte: “Em procedimento e costumes, aprovado por 2, reprovado por 6; em mérito
literário, muito bom por 1, bom por 7; em probidade, prudência e desinteresse, aprovado
por 4, reprovado por 4” (v. Helio Vianna, “Vultos do Império”, CEN, 1968, p. 76).
Mesmo assim, foi diplomado. Talvez fosse um daqueles casos, referidos por Machado
de Assis, na voz, vinda do além-túmulo, de Brás Cubas: “… desembarquei em Lisboa e
segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as
muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a
solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de
saudades, — principalmente de saudades. (…) No dia em que a Universidade me atestou,
em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso
que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso”.
Machado – que, aliás, seria autor de uma reminiscência sobre Montezuma, em seu
artigo “O Velho Senado”, escrito já na época da República, em 1898 – devia saber do que
estava falando: bacharéis do tipo de Brás Cubas, formados em Coimbra, existiam aos
montes, no Brasil.
Mas, ao contrário de Brás Cubas, Montezuma preferiu voltar logo à Bahia, onde, em
seguida, se engajou na sangrenta Guerra de Independência do Brasil.
69
Porém, na Bahia, as vilas de Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco, representadas
por suas Câmaras, se declaram pelo governo do Rio de Janeiro. Salvador, ocupada pelas
tropas lusitanas, está, a partir daí, isolada.
A lembrança mais marcante desta viagem, para Montezuma, foi a lepra – a atual
hanseníase – que afetava extensa parte da população no interior do Brasil.
70
11
A trajetória de Montezuma – que, depois da Guerra da Independência, foi
constituinte (exilado, com os Andradas, quando a Assembleia foi dissolvida por D. Pedro
I), deputado, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, embaixador
plenipotenciário em Londres, e uma das principais figuras no Senado do Império,
recebendo o título de visconde de Jequitinhonha “com grandeza” (antes, no primeiro
reinado, recusara o título de “barão da Cachoeira”) é uma boa introdução a um tema que
aparece, em 1822, muitas vezes – sobretudo nos gritos lusitanos contra a Independência: a
cor do povo brasileiro na época da separação de Portugal.
“Cabra” era o termo pejorativo para os filhos de brancos com mulatas. A “cabrada”,
referida pela soldadesca lusitana, era o povo brasileiro.
Maria Graham, que esteve no Campo de Santana, escreveu que, às quatro da manhã
do dia 12 de janeiro, quatro mil pessoas se concentravam lá, para enfrentar a tropa
portuguesa, “não somente prontos, mas ansiosos para a ação, e, ainda que deficientes
quanto à disciplina, formidáveis pelo número e pela disposição. Os portugueses de modo
algum esperavam tal prontidão e decisão” (M. Graham, “Diário de uma Viagem ao
71
Brasil – e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e
1823”, trad. Américo Jacobina Lacombe, CEN, 1956, p. 203).
Por uma observação sobre o discurso de D. Pedro no Teatro de São João, na noite em
que os portugueses começaram as depredações, pode-se tirar alguma conclusão do
primeiro choque enfrentado pelas tropas de Avilez – isto é, quem resistiu primeiramente a
elas. Diz Maria Graham que o então príncipe regente falou “que ele já havia dado ordens
para reconduzir os soldados amotinados, que se haviam empenhado em briga com os
negros, de volta a seus quartéis” (p. 202).
Aliás, sobre o tema que nos ocupa, a senhora Graham é uma excelente fonte. Por
exemplo, desembarcando em Pernambuco, durante a revolta de 1821 contra o capitão-
general lusitano Luís do Rego, diz ela:
“Cerca de duas milhas adiante do último posto avançado das tropas de Luís do Rego,
chegamos ao primeiro posto dos patriotas, em uma casa de campo numa encosta, com
armas ensarilhadas à frente, e uma espécie de guarda esfarrapada, consistindo num negro
de olhar alegre, com uma espingarda de caça, um brasileiro com um bacamarte, e dois ou
três sujeitos de cor dúbia com cacetes, espadas, pistolas, etc., que nos disseram haver ali
um oficial” (p. 126).
[NOTA: A autora, como outros naquela época, usa a palavra “brasileiro” como
equivalente a “branco nascido no Brasil”. Embora, mesmo então, esse uso, que se refere a
um país em mudança, não é fixo ou único.]
A descrição que ela faz de Pernambuco, por exemplo, é bastante, digamos, colorida:
Mais adiante, visitando uma fazenda próxima ao Rio de Janeiro, ela diz:
72
Fiquei muito grata às observações que ele fez sobre muitas coisas que achei novidades, e à
perfeita compreensão que parecia ter de todos os trabalhos de campo.
CONCEPÇÃO
Não sabemos, com precisão, como era a distribuição da população 50 anos antes –
mas a tendência, que esses números apontam, era, seguramente, a mesma.
73
– e especialmente as leis, que são uma expressão da vida social – decide tudo. Por
exemplo, ele escreve:
Porém, também escreve, sobre os índios, em uma nota, em parte, corroída pelo
tempo:
Ou, maldizendo aqueles que “folgam ser padres, rábulas, escrivães, porque são
modos de vida que não carecem de trabalho aturado, e de boa conduta – ser lavrador e
negociante exigiria deles atividade e mais economia, que detestam”, diz: “Os ofícios são
para negros e mulatos, ou para os pobres de Portugal, que chegam de novo e ainda não
estão afeitos à preguiça e orgulho bestial”.
Por fim:
“o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora; pois reúne a vivacidade
impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu”
UNIVERSAL
74
seus escritos como mistura ou amalgamação) como um instrumento civilizatório, capaz de
transmitir hábitos e valores tidos como universais. (…) Suas propostas tiveram como foco
principal as camadas da população vistas como ‘inferiores’, ou seja, índios, negros,
mulatos, mestiços e brancos pobres. Por meio do contato cotidiano e dos casamentos
mistos, José Bonifácio esperava torná-los mais ‘ativos’ e, paralelamente, promover sua
inclusão social através do trabalho, suplantando a necessidade da mão-de-obra escrava e,
ao mesmo tempo, propiciando a ‘homogeneidade’ social.
REVOLTA
Mas, onde se podia localizar tal inferioridade, se o Brasil era maior, mais populoso,
no geral tornara-se mais desenvolvido que Portugal, e, inclusive, era a terra dos indivíduos
de maior destaque no Reino?
75
Cortes e da Revolução do Porto – um dos cinco membros da Junta de governo que tomou o
poder em 1820 -, ao defender o envio de tropas da metrópole para submeter o Brasil, falou
“com desdém da população do Brasil, inclinada à anarquia em consequência de a
constituírem ‘negros, mulatos, brancos crioulos e brancos europeus’”.
E Moura continuou:
“Era difícil a esse liberal ardente, que pregava sem cessar o direito dos povos de se
governarem a seu gosto, conciliar a doutrina com a defesa de um ato que pressupunha o
desconhecimento formal daquele direito. Esfalfou-se por isso em explicar que aprovava a
expedição, não por ser ele contrário à independência, mas porque esta contrariava a
opinião dominante em além-mar [ou seja, no Brasil].
76
que aconteceria no Brasil, se fosse consumada a Independência. O que provocou a réplica
de Antonio Carlos:
“… clamam uns nobres preopinantes, e tem-se neste recinto aturdido a todos com a
repetição da mesma linguagem: é para guardar os brasileiros contra os negros que se lhes
mandam os batalhões não pedidos, antes detestados. Assombrosa audácia! Terrível
zombaria acrescentada à mais escandalosa opressão! Tão ignorantes nos acreditam que
imaginam recebemos como obséquio insultos e ofensas?! (…) Até quando há de continuar
o vergonhoso comércio de falsidades e enganos, que pródigas entornam línguas de mel, ao
mesmo tempo em que o coração está ensopado de mais refinado fel? Declare-se enfim a
guerra abertamente: deputados haverá, e eu sou um deles, que preferirão a manejar
inutilmente a imbele língua o lançar-se nas fileiras dos seus irmãos, e morrer nelas
repulsando a injusta agressão de qualquer parte que ela venha” (Sessão de 22 de julho de
1822).
77
12
Nas Cortes de Lisboa – a Constituinte originária da Revolução do Porto, também
chamada “Soberano Congresso” – o ponto de vista lusitano pode ser resumido, em geral, a
que a Independência do Brasil era impossível.
Não são apenas as medidas tomadas pelas Cortes que mostram que o absurdo, em
termos ideológicos, pode predominar – e, com efeito, predominou. Um dos principais
deputados portugueses, Borges Carneiro – um dos líderes do levante de 1820 e um dos
autores da Constituição que saiu das Cortes – disse, em discurso no plenário:
“O partido do príncipe [D. Pedro] não tem importância alguma; mandem-se [para o
Brasil] militares e almirantes não afeiçoados ao paço, e com eles uma alçada para o
exercício da Justiça, que se restaurará prontamente o respeito aos poderes públicos de
Portugal.”
Dos deputados portugueses, Borges Carneiro é considerado até hoje – e com razão –
o mais sensível às reivindicações brasileiras. Pode-se imaginar os outros.
Tais afirmações não eram iniciais nas Cortes de Lisboa, mas “diziam-se essas coisas
quando já haviam soado no Congresso informações oficiais do entusiasmo com que os
povos [do Brasil] acolhiam as resoluções do governo do Rio” (cf. Gomes de Carvalho, “Os
Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821”, ed. cit., p. 309).
“Os povos não são rebanhos de ovelhas, cuja propriedade pertença a alguém. O
Brasil tem tão livre a sua vontade e tanto direito de a manifestar como tem e teve
Portugal no famoso dia 24 [de agosto de 1820: a Revolução do Porto]” (Villela Barbosa,
sessão de 27/08/1822).
78
Poder Executivo do Brasil nunca recaia na pessoa do herdeiro da Coroa e que Sua Alteza
Real regresse para Portugal.
“Ora, por que fatalidade se faria este artigo ao mesmo tempo que todo o Brasil obrava
em sentido contrário, assinando Sua Alteza regente defensor perpétuo do Brasil?
“Por que fatalidade o soberano Congresso, cujas deliberações não devem chocar
diretamente com a vontade dos povos, havia de sancionar um artigo contrário à vontade
expressa e geral de uma tão preponderante parte da nação?
“É porventura ainda fato duvidoso que os brasileiros não querem que o príncipe
venha para Portugal?
“Há alguma porção do Brasil que se não tenha declarado a favor dele, se excetuarmos
o Pará e o governo do Maranhão, mas não o povo do Maranhão, como já ontem disse?
“A mesma Bahia, apesar de subjugada pelas armas europeias, não tem proclamado o
príncipe em todas as vilas do Recôncavo?
REVOLUÇÃO
Notemos que a disposição primeira dos deputados brasileiros não era pela
separação do Brasil de Portugal. Mesmo aqueles que tinham participado de levantes
republicanos contra a Coroa, como Cipriano Barata:
“O Brasil não se quer separar de Portugal, desde que os seus deputados aqui
chegaram tem procurado a união: eu mesmo tenho falado sempre com a maior sinceridade
e entusiasmo; mas o Congresso é incrédulo; pois eu afirmo que Portugal se não há de
separar do Brasil, porque o Brasil não quer; o Brasil há de lançar-lhe arpéus com que o há
de unir e prender a si; e ainda haverá quem diga que o Brasil aspira à desunião?”
“A respeito de se dizer que os povos, apesar de gozarem os mesmos direitos, não hão
de ter todos as mesmas comodidades, digo que isto, se assim fosse, a nossa união não
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duraria um mês. Os povos do Brasil são tão portugueses como os povos de Portugal e por
isso hão de ter aqui iguais direitos. Enquanto a força dura, dura a obrigação de obedecer. A
força de Portugal há de durar muito pouco, e cada dia há de ser menor, uma vez que se não
adotem medidas profícuas e os brasileiros não tenham iguais comodidades” (sessão de
13/02/1822).
Essa era a disposição de dois deputados que estavam entre os maiores representantes
do nacionalismo brasileiro de então. Somente para ressaltar o sentido em que evoluiu a
luta dentro das Cortes de Lisboa, lembremos que Antonio Carlos, poucos meses depois,
respondendo aos insultos assacados contra os brasileiros, dirá, da mesma tribuna:
“Quando fala um deputado brasileiro, cala a canalha portuguesa” (cf. Casimiro Neto, “A
Construção da Democracia: Síntese histórica dos grandes momentos da
Câmara dos Deputados, das Assembleias Nacionais Constituintes e do
Congresso Nacional”, Câmara, 2003, p. 63).
“Não há produção de Portugal que o Brasil não possa comprar com seu ouro a melhor
mercado, ou trocar por outras produções suas em países estrangeiros. Mas Portugal tanto
precisa do Brasil, que o deputado das Cortes Fernandes Tomás, homem judicioso, e que se
instruiu a fundo nesta matéria, foi obrigado a confessar no seu relatório às Cortes, que as
exportações de Portugal para o Brasil estavam longe de contrabalançar o valor dos gêneros
recebidos daquele país.”
[NOTA: Fernandes Tomás era o principal deputado português nas Cortes, maior
líder da Revolução do Porto e membro da Junta que tomou o poder em 1820. Diz o
principal historiador dessa revolução: “A primeira revolução liberal portuguesa tem a sua
verdadeira personificação em Fernandes Tomás. O marquês de Pombal com a sua
energia e vasta inteligência representa a revolução das ideias contra o passado dos
jesuítas, da inquisição e dos frades; Manoel Fernandes Tomás representa a última
palavra da grande obra pombalina, ou a revolução política” (cf. José D’Arriaga,
“História da Revolução Portuguesa de 1820”, vol. 2, Portuense/Lopes & Cia.,
Porto, 1887).]
80
Hipólito da Costa estava exilado em Londres desde 1805, após escapar dos cárceres
da Inquisição portuguesa, em que permanecera três anos por ordem de Pina Manique, o
brutal chefe de polícia de Dª Maria I, a Louca, por ser maçom.
“Os procedimentos em Portugal, pelo que respeita o Brasil, têm até aqui levado uma
direção mui errada; e até contraditória, que nos parece tendente a causar a separação
daqueles dous Estados.
“Por que não tinham aplicação? (…) se o povo de Portugal assenta que como povo
tem o direito de escolher para si a Constituição que quiser, e não a que outrem lhe
imponha, seguramente deve convir que não tem direito de ir impor essa constituição, que
fizer, ao povo do Brasil, que nela não teve parte.
“E que maior causa de divisão e discórdia se pode apresentar a duas porções de uma
monarquia, do que tentar uma delas ditar leis constitucionais, sem primeiro buscar de
ouvir o voto da outra?
“Um dos deputados das Cortes, que nelas tem mostrado mais justas ideias de
política, propôs que se admitisse certa representação nominal, por meio de substitutos aos
deputados das províncias ultramarinas. Sem entrar no escrupuloso exame desta
proposição, nem de seus resultados práticos, podemos dizer que a mera adoção deste
projeto mostraria o desejo das Cortes de reunir com Portugal, no sistema constitucional, as
outras partes da Monarquia. Mas esta proposta encontrou mui geral oposição, e por
motivos evidentemente especiosos; o que não pode deixar de produzir no Brasil o
correspondente efeito.
“… Se, por outra parte, (…) os deputados que a isto se opuseram desejam a união
política dos dous Reinos, aparecerá como inexcusável enfatuação tratar de
bagatela todo o Reino do Brasil, superior ao de Portugal em extensão de
território, em população, em riquezas, e em recursos de toda a qualidade.
81
“… Na sessão das Cortes em que tantos membros foram de parecer que não convinha
procurar os deputados do Brasil, geralmente se admitiu que se chamassem deputados das
Ilhas; ora, as razões que se expendiram contra os do Brasil, eram exatamente aplicáveis às
Ilhas, logo há razão para supor que existem outros motivos, que se não alegaram.
“Primeiramente, mal vai ao povo na sua terra, se é preciso proibir-se-lhe que saiam
dela; porque só a má vivenda pode obrigar os homens a deixar o seu país, em tal número,
que precise isso impedir-se por medidas do Governo.
“Se é reino unido, a passagem da gente de umas províncias para outras não pode
chamar-se emigração; e a prisão dos indivíduos em uma província, a respeito de outra,
mostra uma espécie de servidão, que mui mal se compadece com as presentes ideias de
liberdade em Portugal.
“… não é possível que todos os povos do Brasil fechem os olhos ao abatimento a que
se submetem, aceitando uma Constituição feita por quem os não quis consultar; e
tornando assim o Brasil a retrogradar para o estado de colônia de Portugal,
quando era já Reino, considerado igual em direitos, por concessão de seu Rei comum.
“… se o Brasil tem de ser administrado por leis feitas pelas Cortes de Portugal, sem os
povos do Brasil serem nisso ouvidos, ficarão reduzidos a mera colônia.”
O fecho desse artigo é algo, até hoje, modelar – pela sua lucidez política e ao remeter
o fundo da questão aos fatores econômicos:
“Ora, Portugal nem tem, nem pode ter, sequer o pão, que lhe é necessário para seu
sustento; o Brasil, abundante em todas as produções necessárias, só precisa de que se lhe
não impeça a indústria; a separação, portanto, dos dous Reinos, que os sentimentos das
82
Cortes, em oposição ao projeto de procurar deputados do Ultramar, dão lugar para recear,
não pode deixar de ser mui nociva a Portugal; e é em respeito a este, que a lamentamos” (v.
Correio Braziliense, volume XXVI, nº 154, março/1821, pp. 339-345, grifos nossos).
CHEGADA
Afinal, foi admitida a representação brasileira nas Cortes de Lisboa, embora, com os
deputados de Portugal em esmagadora maioria. Nas palavras de Cipriano Barata, nas
Cortes: “Mas que sucesso pode ter o meu discurso, quando os ilustres membros são mais
de cem, e nós, brasileiros, trinta ou quarenta, que, à exceção de poucos, os mais são tais e
quais e nada valem” (Cipriano referia-se, nesta última parte, aos deputados que, embora
nascidos no Brasil, oscilavam seus votos, às vezes em proveito da posição lusitana).
Nessa época, 1821, talvez pela juventude, Araújo Lima ainda não era, pelo menos não
definitivamente, aquele “espírito grave e profundamente conservador, (…) que será
durante quarenta e nove anos de vida pública” (v. Gomes de Carvalho, op. cit., p. 93).
83
O primeiro deputado brasileiro a perceber que estava diante de uma tentativa de
recolonização do Brasil foi, justamente, Cipriano Barata.
Dois dias após a sua posse como deputado às Cortes de Lisboa, na sessão de 17 de
dezembro de 1821, Cipriano propôs o adiamento de qualquer discussão sobre o Brasil até
que toda a bancada brasileira estivesse em Portugal.
Porém, com um incidente que provocou tremenda algazarra nas Cortes, Cipriano
Barata marcou o limite da tolerância brasileira. Não muito surpreendentemente, o
incidente foi com um deputado brasileiro que favorecia Portugal, e não com um deputado
português.
“Barata, o idealista Barata, a quem leis sem espírito de justiça não passavam de abuso
de poder, e não deviam ser respeitadas, explodiu acerbamente contra o colega. (…) A
comissão de polícia e a comissão de regimento interno pronunciaram-se severamente
contra o férvido ancião, propondo a última a sua exclusão da assembleia até que a justiça
ordinária julgasse o crime. Lino Coutinho e Antônio Carlos impugnavam o parecer por
aplicar pena sem devassa e prevenir, por conseguinte, o ânimo dos juízes”.
Pinto da França, que era militar de profissão (já era general no exército português),
tinha 10 anos menos que Cipriano Barata. Este, além disso, era um homem de altura tão
pequena, que ele mesmo se dizia “breve de corpo e resoluto de espírito” – o que era
verdade.
84
Talvez por isso, dias depois, Pinto da França voltou ao plenário, algo contundido,
inclusive no rosto, desistindo da ideia – que assustara Feijó – de duelar com o adversário.
85
13
Muito se escreveu sobre a relação entre o Estado monárquico no Brasil e a
preservação da unidade nacional.
Nas Cortes, foi um deputado baiano, Lino Coutinho, participante da “junta” que
desligara a Bahia do governo do Rio, em fevereiro de 1821, que fez a condenação mais
eloquente à fragmentação do Brasil.
Ao chegar a Lisboa, Coutinho ainda era partidário das “juntas” em cada província.
Porém, sua opinião mudou, no correr dos debates. Na sessão de 3 de julho de 1822, ao
repelir a proposta de criação de “agentes d’el-rei” em cada província do Brasil, disse ele:
86
Lino Coutinho, como demonstraria sua carreira posterior (ou até mesmo pela
maneira de mencionar D. João VI no trecho acima), estava muito longe de ser um radical
ou progressista, do ponto de vista social. Entretanto, a questão da unidade nacional foi
suficiente – afinal, não era qualquer questão – para fazê-lo recusar a Constituição
portuguesa que saiu das Cortes.
Ele esteve entre os deputados brasileiros que preferiram sair de Portugal do que jurar
essa Constituição. Os outros foram Antônio Carlos de Andrada, Cipriano Barata, o padre
Diogo Antonio Feijó, Silva Bueno, Costa Aguiar de Andrada e o padre Francisco Agostinho
Gomes.
Embora esse específico ato de recusa, sobretudo pelo manifesto lançado por esses
deputados brasileiros ao chegar em Falmouth, Inglaterra, tenha sido importante para o
movimento da Independência, acrescentaremos que, na bancada do Brasil, a recusa a jurar
a Constituição das Cortes foi mais ampla: 29 deputados recusaram-se a jurar e 18 juraram
essa Constituição.
Mesmo assim, o ato de Antonio Carlos, Cipriano Barata e seus companheiros, ao sair
de Portugal, teve, na época, como registrou Hipólito no “Correio Brasiliense”, importância
política. Diz o manifesto de Falmouth:
“Desde que tomaram assento no Congresso de Portugal, lutando pela defesa dos
direitos e interesses de sua Pátria, do Brasil e da Nação em geral, infelizmente [os que
assinam o manifesto] viram malogrados todos os seus esforços, e até avaliados estes como
outros tantos atentados contra a mesma Nação.
“Os abaixo-assinados não podiam, sem merecer a execração dos seus concidadãos,
sem ser atormentados dos eternos aguilhões da consciência, sem sujeitar-se à maldição da
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posteridade, subscrever, e muito menos jurar, uma tal Constituição, feita como de
propósito para exaltar e engrandecer Portugal à custa do Brasil, recusaram portanto fazê-
lo” (Correio Brasiliense, vol. XXIX, nº 174, novembro/1822, pp. 530-532).
RAZÃO
Mas aqui temos uma complicação: uma vez estabelecido um “regime de leis”, foi
possível aos liberais, no Brasil, conviverem, durante 66 anos, com a escravidão. No Brasil,
inclusive, seria correto dizer que os conservadores surgiram como dissidência dos liberais,
a começar pelo seu primeiro chefe, Bernardo Pereira de Vasconcelos.
88
Para ele, os rapapés supostamente liberais eram uma farsa, pois, “como poderá haver
uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma
multidão imensa de escravos brutais e inimigos?” (idem).
“Quando o espírito mercantil predomina, quando se avalia cada ação como cada
mercancia, vendem-se os talentos e virtudes e todos são mercadores e ninguém é homem.”
A LUTA
89
Ou, mais adiante, no mesmo volume:
Aqui, é necessário, em nossa opinião, voltar à luta política anterior, entre os partidos
que fizeram a Independência.
Pois, o conflito entre o partido dos Andradas – então no governo – e o grupo original
da maçonaria (cujos principais líderes eram Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira,
Januário da Cunha Barbosa, Domingos Alves Branco Muniz e Luís Pereira da Nóbrega de
Sousa Coutinho) é, ainda, um dos episódios mais intrigantes – em vários sentidos – da
Independência do Brasil.
Não se trata de que tenha sido pouco abordado. Pelo contrário: esse conflito deu
origem a uma vasta gama de interpretações, que podemos resumir – ainda que seus
autores, provavelmente, não concordem com essa redução de outras interpretações a
variantes destas duas – aos que afirmam o papel central de José Bonifácio na revolução da
Independência (como Oliveira Lima e Octávio Tarquínio de Souza), e àqueles que negam
esse papel, em geral ressaltando o papel de Gonçalves Ledo como substituto.
[NOTA: O melhor exemplo, no século XIX, dessa última tendência, é Mello Moraes
em “A Independência e o Império do Brasil”, Rio, 1877. Depois, na República Velha,
Assis Cintra condensou as alegações contra José Bonifácio – e a favor de Ledo – em “O
Homem da Independência”, 1921. Um texto mais moderno e interessante – na
primeira tendência – é o de Emília Viotti da Costa, “José Bonifácio: mito e história”, in
“Da Monarquia à República: Momentos Decisivos”, Unesp, 6ª ed., 1999, pp. 61-
130).]
Depois de meses de tensão entre os dois partidos, no dia 30 de outubro de 1822, foi
desencadeada o que alguns chamaram de “Bonifácia”, com a prisão de José Clemente
Pereira, Januário da Cunha Barbosa, Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Nóbrega e
outros líderes da maçonaria, depois deportados para a França. Gonçalves Ledo conseguiu,
com a ajuda do cônsul da Suécia no Rio, asilar-se em Buenos Aires.
Todos – quatorze réus – foram julgados a 5-7 de julho de 1823. Todos, com exceção
de Soares Lisboa, dono do “Correio do Rio de Janeiro”, foram absolvidos da acusação de
90
fazer parte de “uma facção oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas”
(portaria de José Bonifácio de 11/11/1822) e voltaram ao Brasil.
Seria um pequeno exílio, diante dos seis anos que os Andradas permaneceram no
exterior, após a dissolução da Constituinte (12 de novembro de 1823), com sua prisão e
deportação – também para a França.
DISPUTA
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A descrição do que ocorreu logo depois da Independência – a divergência entre os
Andradas e o grupo da maçonaria sobre o “juramento prévio” de aceitação da Constituição,
que fosse elaborada pela Assembleia Constituinte (juramento que, segundo o último grupo,
D. Pedro deveria realizar) – como o conflito entre um “partido democrático” e um partido
que tendia ao absolutismo, é de todos os modos e sob todos os ângulos, completamente
superficial. Ou, mais do que isso, errada.
A principal questão democrática dessa época era a própria questão nacional – isto é,
a Independência. Nesse sentido, é absolutamente clara a mensagem de José Bonifácio que
alcançou D. Pedro nas margens do Ipiranga (“Senhor o dado está lançado e de Portugal
não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha V. A. R. quanto antes e decida-
se; porque irresoluções e medidas d’água morna, à vista desse contrário que não nos
poupa, para nada servem e um momento perdido é uma desgraça”).
92
14
João Manuel Pereira da Silva, além de político do Partido Conservador – chegou a
conselheiro imperial e senador – foi autor, entre outras obras, de uma “História da
Fundação do Império Brasileiro”, em sete tomos, publicada entre 1864 e 1868.
Nessa obra, Pereira da Silva marca a agudização da luta política entre os Andradas e
a maçonaria a partir da campanha pela convocação, antes da Independência, de uma
Constituinte:
“Nos artigos que escrevia Ledo notavam-se talento particular de polêmica, instrução
variada das doutrinas de liberdade política e de regime parlamentar, e estilo fluido,
elegante e agradável, que atraía a atenção e excitava o interesse. Produzia assim o
Revérbero imensa sensação, arrastava os espíritos, e agrupava-os em torno dos
verdadeiros princípios e máximas do governo representativo. Incomodava tanto mais o
ministério quanto unia a uma lógica tenaz e cerrada fórmulas moderadas e finas, à
oposição decente contra os atos governativos uma dedicação decidida e extrema, uma
afeição grata e sincera ao príncipe regente, que preconizava como o anjo tutelar do Brasil, e
cujos sentimentos briosos e cavalheirescos e opiniões livres incessantemente encomiava”
(cf. J.M. Pereira da Silva, op. cit., Tomo VI, Livro 11, Garnier, 1865, pp. 4-5).
Do mesmo modo, é o manifesto ao povo do Rio, escrito por Gonçalves Ledo após o
Ipiranga e a volta de D. Pedro à capital:
“Cidadãos!
93
“Independência ou Morte!
“Eis o grito de Honra, eis o brado nacional, que dos corações assoma aos lábios e
rápido ressoa desde as margens do corpulento Prata, quase a tocar o gigantesco
Amazonas. A impulsão está dada, a luta encetou-se, tremam os tiranos, a vitória é nossa.
“Eis um passo, e tudo está vencido. Aclamemos o digno herói, o magnânimo Pedro,
nosso primeiro Imperador Constitucional. Este feito glorioso assombre a Europa, e,
recontado por milhares de cidadãos em todos os climas do universo, leve à posteridade o
festivo anúncio da Independência do Brasil.”
94
PROJETO
Isso não quer dizer, naturalmente, que tenha sido pouca a contribuição de Gonçalves
Ledo, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa, e outros membros da
maçonaria, para a Independência.
O que queremos aqui ressaltar é uma questão de caráter de classe, pois, a oposição
dos Andradas à escravidão, que era, primeiro, uma questão humana (José Bonifácio
escreveu: “Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir
também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito
do costume e a voz da cobiça, que veem homens correr lágrimas de outros homens sem
que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura”), também, ao
mesmo tempo, era algo que adquiria sentido dentro de um projeto nacional de
desenvolvimento do país, que favorecia, já naquela época, a industrialização –
evidentemente, industrialização nos limites técnicos então existentes (como, por exemplo,
preconizara Alexander Hamilton para os EUA, em seu “Report on Manufactures”,
apresentado ao Congresso norte-americano em 1791, portanto, mais de 30 anos antes da
Independência do Brasil).
[NOTA: Para os leitores interessados nos acontecimentos do período que vai de 1822
a 1831 (isto é, o primeiro reinado), que não abordaremos nesta série (exceto quando possa
esclarecer algo sobre a Independência), o secretário particular de D. Pedro, Francisco
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Gomes da Silva, conhecido como o “Chalaça”, após sua demissão e saída do Brasil –
debaixo da pressão pública, em 1830 – publicou um livro de memórias em que, ao
pretender fazer sua própria defesa, produz um interessante panfleto do “partido
português”; por exemplo, sobre a Assembleia Constituinte de 1823: “parecia querer-se
começar a independência brasileira pela destruição do Brasil”; ele não cita os Andradas
pelo nome, mas a referência é clara quando escreve sobre “planos adotados por certos
homens de notórios princípios destruidores” para “roubar” os bens dos portugueses no
Brasil; cf. “Memorias offerecidas a nação brasileira pelo Conselheiro Francisco
Gomes da Silva”, L. Thompson, Londres, 1831, p. 47.]
Houve, inclusive, alegações de que José Clemente Pereira – que nascera em Portugal
e somente chegara ao Brasil em 1815, com 28 anos de idade – tinha relações com o
“partido português”. José Honório Rodrigues, no quinto volume de “Independência:
revolução e contrarrevolução”, vai até mesmo mais longe:
“A aceitação da causa do Brasil por parte de José Clemente foi também de máximo
proveito para essa mesma causa. Homem ativo e enérgico, ele trabalhou com empenho
pela ideia nacional, mas a proficuidade do seu concurso nasceu de outro motivo.
96
“Na parte da população portuguesa favorável à independência estavam os cargos
públicos, a riqueza e a ilustração: José Clemente era alma e direção dessa importante
massa.
“Aderindo ele à causa do Brasil não era um simples voto, que pronunciava-se por
essa causa; era um partido poderoso, que por ela vinha combater. Daí pois mostra-se quão
valioso foi o concurso desse atleta para a causa da independência. Ele não trazia
simplesmente um nome, nem uma individualidade: trazia após si um partido e uma força
considerável” (cf. Tristão Alencar Araripe, “Patriarcas da Independência Nacional”,
RIHGB, tomo LVII, parte 1, pp. 175-176).
É possível, é até mesmo provável, que seja verdade. Mas, realmente, gostaríamos de
mais provas a esse respeito. Infelizmente, não as encontramos nos autores que alegam essa
relação, nem mesmo em José Honório Rodrigues. O fato de que Clemente nascera em
Portugal é insuficiente, nos parece, para essa conclusão.
Porém, se aceita como premissa essa relação entre Clemente – apesar de toda a sua
identificação com o Brasil – e os portugueses, seria mais fácil ajustar à sua figura histórica
alguns acontecimentos, por exemplo, seu projeto, apresentado em 19 de maio de 1826, de
proibir o tráfico de escravos em… 31 de dezembro de 1840, ou seja, 14 anos depois! (cf.
Calógeras, “A Política Exterior do Império”, ed. cit, vol. 2, p. 495).
“Possuía José Clemente duas fazendas denominadas das Cruzes e Santa Eugenia, em
Vassouras, onde tinha perto de 400 escravos. Não admitindo ele o concubinato dos servos,
eram casados a maior parte deles. A cada mãe de sete crias, concedia ele a carta de alforria”
(cf. Ernesto Senna, José Clemente Pereira, RIHGSP, vol. XII, 1907, p. 72).
97
CATIVEIRO
Sobre Gonçalves Ledo, podemos apenas dizer que não se conhece um texto – ou um
pronunciamento – sobre a escravidão que seja tão claro como aquele de José Bonifácio:
“É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que
fomentamos entre os selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos
milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão dos nossos navios, mais
apinhados que fardos de fazenda: é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e
martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso
próprio território.
(…)
“Com efeito, senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade do
que a portuguesa, de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só terras
da África e da Ásia, como disse Camões, mas igualmente as do nosso país. Foram os
portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante D. Henrique, fizeram um ramo de
comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus
e americanos. Ainda hoje perto de 40 mil criaturas humanas são anualmente arrancadas
da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas
regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a
trabalhar toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos e os filhos de
seus filhos para todo o sempre!
(…)
“Qual é a religião que temos, apesar da beleza e santidade do evangelho, que dizemos
seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e de abusos
antissociais; o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se
serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio e pela agricultura, e para
formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas um harém turco.
(…)
98
escravidão, porque o homem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolência
e a indolência traz todos os vícios após si.
(…)
“Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a
propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e
qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de
pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade que
querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode
ser objeto de propriedade” (cf. José Bonifácio, “Representação à Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”).
Nem mesmo Assis Cintra – apologista de Gonçalves Ledo que ataca José Bonifácio
por ter comprado um escravo de Vasconcellos Drummond e por ter deixado, como
herança, dois escravos à sua filha Narcisa – conseguiu apresentar um posicionamento de
Ledo sobre a escravidão, muito menos algum que se compare ao do Andrada (cf. Assis
Cintra, “O Homem da Independência”, ed. cit., pp. 183-189).
RELATO
99
15
Em 1841, a animosidade entre os Andradas e seus adversários de 1822, no mínimo,
esmaecera. Os líderes de 19 anos antes, José Bonifácio e Gonçalves Ledo, já pertenciam à
eternidade da História – o primeiro, falecido em 1838, na sua casa da Ilha de Paquetá; o
segundo, retirado na sua fazenda de Sumidouro, no interior do Rio de Janeiro (faleceria
em maio de 1847).
O nobre deputado, por ocasião de uma declaração que eu fiz de ter tido a principal
parte na representação para a convocação de uma assembleia no Brasil, disse que
entendera que eu me referia ao dia 9 de Janeiro, conhecido pelo Dia do Fico; e que, a ser
assim, queria reclamar, porque a glória da preferência neste caso pertencia a S. Paulo e
não ao Rio de Janeiro.
O nobre deputado com muita razão desempenha o seu ofício de bom procurador
dos paulistas, mas há de permitir-me que, como procurador dos fluminenses, eu chame a
sua atenção sobre alguns fatos, dos quais se deduz que a prioridade, se prioridade houve,
pertence aos fluminenses.
100
O SR. DEPUTADO ANDRADA MACHADO (Antônio Carlos): … [diz algumas
palavras não ouvidas pela secretaria dos trabalhos.]
O SR. MINISTRO DA GUERRA: Pois bem, ainda mesmo como quer que seja, o
nobre deputado há de ter lembrança de que em 22 de dezembro de 1821 saiu um
comissário mandado do Rio de Janeiro ao governo de S. Paulo, convidando para
cooperar para a ficada do príncipe regente; foi o Sr. Pedro Dias, hoje marquês de
Quixeramobim. E no dia 20 saiu daqui para Minas outro comissário também por parte
do Rio de Janeiro, encarregado de igual comissão, foi o Sr. Paulo Barbosa da Silva…
O SR. MINISTRO DA GUERRA: Não, senhor, esse foi para a aclamação; estou
bem certo nos fatos; foi o Sr. Paulo Barbosa. Em virtude destas enviaturas aconteceu que
alguns povos de Minas mandaram as suas representações com data de dezembro (eu
quero dar aos mineiros a parte da glória que lhes pertence). A vila de Barbacena enviou
a sua representação datada de 27 de dezembro; a Câmara de Mariana enviou também a
sua em data de 2 de janeiro. Mas no Rio de Janeiro foi este negócio tratado com muita
antecipação, e convém que se dê o seu a seu dono. Devo declarar que os primeiros que se
lembraram desta medida, ou ao menos que a fizeram sentir e levar a efeito, foram o Sr.
José Mariano [de Azeredo Coutinho] e o Sr. José Joaquim da Rocha.
101
O SR. MINISTRO DA GUERRA: E isto antes do dia 15 do mês de dezembro…
isto creio que até anda impresso; e tanto que se me fez crime porque não fui dos
primeiros a concordar com a medida como se me apresentava.
O Sr. José Mariano foi à minha casa, por ser então eu presidente do Senado da
Câmara, comunicar-me a resolução em que se achavam de pedir ao príncipe regente do
Brasil que quisesse ficar no Brasil porque assim convinha aos interesses do país.
Nessa ocasião eu disse que julgava de necessidade a ficada do príncipe, mas que
não julgava prudente que o Rio de Janeiro fizesse a representação só por si, por que não
havia a força necessária, muito mais existindo no Rio de Janeiro uma força portuguesa
assaz forte, que, como o nobre deputado sabe por informações, até nos ameaçou com as
armas.
Estas minhas palavras serviram até, depois, para uma devassa por crime de
republicano, na qual houvera quem fosse jurar que eu era tão republicano que tinha feito
as observações que acabo de referir.
Mas o caso é que o Sr. José Mariano e o Sr. José Joaquim da Rocha acharam boas
as minhas observações, e concordaram em que se deviam dirigir aos governos de S.
Paulo e de Minas; e em consequência deste acordo partiram, para S. Paulo, como já
disse, o Sr. marquês de Quixeramobim, e, para Minas, o Sr. Paulo Barbosa.
Ora, agora acresce mais que, tendo eu, como me convinha, tratado de saber do
príncipe regente qual era a sua opinião a este respeito, porque corria a notícia de que ele
queria ir para Portugal (o que depois reconheceu-se que era política sua, porque sempre
teve vontade de ficar), dirigi-me logo depois da comunicação do Sr. José Mariano a [o
palácio de] São Cristóvão, e Sua Alteza com efeito ainda reservou de mim sua verdadeira
opinião; mas tomando consistência a opinião do povo fluminense, e estando eu decidido
a cooperar para ela em todo o caso, procurei novamente o príncipe (e lembro-me bem)
na véspera do dia de Natal, e falei-lhe na tribuna da capela imperial, dizendo a S. A. Real
102
que o povo do Rio de Janeiro tratava de dirigir-lhe uma súplica no sentido que lhe havia
participado dias antes, e que devia esperar igual representação de Minas e S. Paulo,
porque era impossível que estas duas províncias não anuíssem às comunicações que lhe
foram feitas pelo Rio de Janeiro; e Sua Alteza teve a bondade de responder-me que
ficaria.
No dîa 26 de dezembro fui à casa do Sr. José Mariano, onde se achava o Sr. Rocha e
o Sr. padre Frei Francisco de Sampaio, que foi quem redigiu a representação…
Creio que estas observações não são indiferentes para a história (apoiados), e fui
dizer-lhes que a representação devia fazer-se, que estava disposto a cooperar para ela, e
que deveria ter lugar no dia 9 de janeiro.
Tratou-se desde logo de dar a este ato o aparato mais majestoso possível, e na
verdade creio que não será possível nos nossos dias tornar a haver um dia tão solene!
(Numerosos apoiados.) Nele apresentaram-se sessenta e tantos cidadãos das
primeiras classes do Rio de Janeiro, vestidos com o uniforme de capa e volta que então se
usava: reuniu-se a eles o povo do Rio de Janeiro, com o maior entusiasmo e interesse, e
isto no meio da grande oposição dos batalhões de Portugal, que chegaram a ameaçar-
nos com o emprego da força!
LUTA
103
não chegara ao Rio, mas as instruções políticas aos representantes paulistas, redigidas por
José Bonifácio, já eram conhecidas na capital, pois foram citadas pelo próprio José
Clemente Pereira, no discurso que pronunciou diante de D. Pedro.
“A saída de Vossa Alteza Real dos Estados do Brasil será o fatal Decreto que sancione
a independência deste Reino! Exige, portanto, a salvação da pátria que Vossa Alteza Real
suspenda a sua ida, até nova determinação do soberano congresso.”
Depois de referir-se ao passado colonial (“[o Brasil] recorda sempre com horror os
dias da sua escravidão recém-passada”), o discurso de Clemente Pereira aponta “o grito
da opinião pública nesta província” e examina a situação política em outras províncias:
“Minas, principiou por atribuir-se um poder deliberativo, que tem por fim examinar
os decretos das Cortes soberanas, e negar obediência àqueles que julgar opostos aos seus
interesses; já deu acessos militares; trata de alterar a lei dos dízimos; tem entrado, segundo
dizem, no projeto de cunhar moeda – e que mais faria uma província que se tivesse
proclamado independente?
“S. Paulo, sobejamente manifestou os sentimentos livres que possui, nas políticas
instruções, que ditou aos seus ilustres deputados. Ela aí corre a expressá-los mais
positivamente pela voz de uma deputação, que se apressa em apresentar a V. A. R. uma
representação igual à deste povo!
104
O discurso de Clemente é longo – nos dias atuais seria considerado quase
interminável – mas não era fácil a sua causa: fazer o herdeiro da Coroa enfrentar o governo
da metrópole.
Como se pode ler nas cartas de D. Pedro a seu pai, ele – com poderoso estímulo dos
homens da Independência – considera que D. João VI é prisioneiro dos liberais das Cortes.
Por isso, não tem obrigação de obedecer a estas.
“… verá Vossa Majestade o amor que os brasileiros honrados lhes consagram à sua
sagrada, e inviolável Pessoa, e ao Brasil, que a providência divina lhes deu em sorte livre, e
que não quer ser escravo de lusos-espanhóis quais os infames déspotas (constitucionais in
nomine) dessas facciosas, horrorosas, e pestíferas Cortes. (cf. carta de 19/06/1822
in “Cartas de D. Pedro, Príncipe Regente do Brasil a seu pai D. João VI, Rei de
Portugal (1821-1822)”, Rothschild & Cia., S. Paulo, 1916, p. 103).
Oliveira Lima aponta, com razão, que, mesmo antes da viagem de D. Pedro a São
Paulo, na qual haveria o Grito do Ipiranga, a Independência já existia inclusive em
documento oficial, como a circular do ministro José Bonifácio ao corpo diplomático
acreditado no Rio de Janeiro, datada de 14 de agosto de 1822, exatamente o dia em que o
príncipe viajou para São Paulo.
“Tendo o Brasil, que se considera tão livre como o reino de Portugal, sacudido o
jugo da sujeição e inferioridade com que o reino irmão o pretendia escravizar,
105
e passando a proclamar solenemente a sua independência, e a exigir uma
assembleia legislativa dentro do seu próprio território, com as mesmas atribuições que a de
Lisboa, salva, porém, a devida e decorosa união com todas as partes da grande família
portuguesa e debaixo de um só chefe supremo, o senhor D. João VI, ora oprimido em
Lisboa por uma facção desorganizada e em estado de cativeiro, o que só bastava para que o
Brasil não reconhecesse mais o Congresso de Lisboa nem as ordens do seu executivo, por
serem forçadas e nulas por direito…”.
106
16
Em 14 de dezembro de 1821 – um mês antes do “Fico” – D. Pedro escrevia a D. João
VI:
“… a publicação dos decretos [das Cortes de Lisboa] fez um choque mui grande nos
brasileiros e em muitos europeus aqui estabelecidos, a ponto de dizerem pelas ruas: ‘Se a
constituição é fazerem-nos mal, leve o diabo tal cousa; havemos fazer um termo para o
Príncipe não sair, sob pena de ficar responsável pela perda do Brasil para Portugal, e
queremos ficar responsáveis por ele não cumprir os dois decretos publicados; havemos
fazer representações juntos com S. Paulo e Minas, e todas as outras que se puderem juntar
dentro do prazo, às Cortes, e sem isso não há de ir’.
“Veja Vossa Majestade a que eu me expus pela nação e por Vossa Majestade. Sem
embargo de todas estas vozes eu me vou aprontando com toda a pressa e sossego, afim de
ver se posso, como devo, cumprir tão sagradas ordens, porque a minha obrigação é
obedecer cegamente, e assim o pede a minha honra, ainda que perca a vida: mas nunca
pela exposição ou perdimento dela fazer perder milhares.
“Faz-se muito preciso, para desencargo meu, seja presente ao soberano congresso
esta carta, e Vossa Majestade lhe faça saber da minha parte que – me será sensível
sobremaneira se for obrigado pelo povo a não dar o exato cumprimento a tão
soberanas ordens: – mas que esteja o congresso certo que hei de fazer com razões ou
mais fortes argumentos, diligenciando o exato cumprimento quanto nas minhas forças
couber” (cf. “Cartas de D. Pedro Príncipe Regente do Brasil a Seu Pai D. João VI
Rei de Portugal (1821-1822)”, Rothschild & Cia, S. Paulo, 1916, pp. 37-38, grifos
nossos). Pedro sabia que suas cartas ao pai eram, sempre, entregues às Cortes de Lisboa –
dizem alguns que por covardia de D. João VI. Assim, ao escrever ao pai, ele sabia que
estava, também, escrevendo às Cortes. Daí a fórmula, algo protocolar, “seja presente ao
soberano congresso esta carta”.
BRASILEIRO
107
Portugal, contra o absolutismo de seu irmão, D. Miguel, que usurpara o trono de sua filha
Maria da Glória (Dª Maria II); mesmo quando, vitorioso, designado regente do país
lusitano, em nome da filha menor de idade.
Muito perto da morte, acontecida em 1834 – quando tinha apenas 35 anos – ele
“provava que sabia expor a vida pela liberdade e, se combatia à frente dos
constitucionalistas portugueses, não renunciara por isso à cidadania brasileira”. Como
diz o mesmo autor:
“Por difícil que parecesse à primeira vista justificar essa posição, o certo é que D.
Pedro a ela se aferrou e teve-a como clara e legítima. Por amor e por escrúpulo continuou
depois de 7 de abril de 1831 a considerar-se brasileiro, sem embargo de sua participação na
política de Portugal.
108
“Do Porto, entre portugueses, regente de Portugal, em hora de provocações,
desabafava em carta de 9 de janeiro de 1833, cujo alcance o filho criança nada ou pouco
perceberia: ‘Meu coração se sente estalar de dor por me ver tão longe de ti e de tuas manas,
fora do pais em que me criei e do seio daquela nação a que pertenço (…) hoje fazem [sic]
onze anos que os Brasileiros me pediram que ficasse no Brasil, e quem me diria, a mim,
que neste ano me acharia tão longe?’
RÉQUIEM
“… Longe nisso de tantos reis que vivem e expiram sobre o trono, sem que a sua vida
seja sentida, sem que a sua morte valha ou uma ocorrência notável, ou uma consideração
de momento, D. Pedro de Alcântara, quer durante o curso agitado da sua existência, quer
por seu falecimento, abriu o campo a sucessos importantes, e influiu mais ou menos nos
destinos do império do Brasil e do reino de Portugal.
“Posto que ainda não seja chegado o tempo em que a voz imparcial da história se faça
escutar a seu respeito, nos países ao leme de cujos negócios existiu; o tempo em que os
diversos movimentos de afeição ou de ódio deixem de influir no juízo que se forma desse
Príncipe; todavia a religião da campa que cobre seus restos, reclama hoje que não se lhe
insulte a memória, e que se recordem mesmo algumas boas qualidades suas, os serviços
que prestou à causa da humanidade, da civilização e da liberdade em ambos os Mundos.
“Agora que o nome de d. Pedro deixou de ser o estandarte de uma facção que
ameaçava o futuro e a glória do nosso país, podemos dizer afoitamente que o ex-imperador
do Brasil não foi um príncipe de ordinária medida; que existia nele o gérmen de grandes
109
qualidades que defeitos lamentáveis e uma viciosa educação sufocaram em parte; e que a
Providência o tornou um instrumento poderoso de libertação, quer no Brasil, quer em
Portugal. Se existimos como corpo de Nação livre, se a nossa terra não foi retalhada em
pequenas repúblicas inimigas, aonde só dominasse a anarquia e o espírito militar, devemo-
lo muito à resolução que ele tomou de ficar entre nós, de soltar o primeiro grito de nossa
Independência” (cf. Aurora Fluminense, ed. 05/11/1834).
Mas isso foi em 1822. Depois da dissolução da Constituinte, no ano seguinte, Evaristo
se tornara mais e mais oposicionista. Por isso, sua afirmação de que “o ex-imperador do
Brasil não foi um príncipe de ordinária medida” tem bastante importância.
AO PAI
Além de seus atos – inclusive aqueles que foram, na sua época e depois, discutíveis –
o melhor documento que demonstra essa extraordinária medida são suas cartas ao pai, D.
João VI, no período da Revolução da Independência.
A 2 de janeiro, sete dias antes do “Fico”, D. Pedro comunica a seu pai – e remete a ele
– a representação dos paulistas, escrita por José Bonifácio, entregue ao príncipe, na noite
do dia anterior, por um emissário especial.
Na noite do Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, D. Pedro escreveu outra vez ao pai:
110
seguinte: Como é para bem de todos, e felicidade geral da Nação, estou pronto: diga ao
povo, que fico.
ENTEADOS
“Por cá vai tudo mui bem, se lá [em Lisboa] formos considerados como irmãos, tanto
melhor para um como para outro hemisfério; mas se o não formos, ir-nos-á melhor a nós,
Brasileiros, que aos Europeus malvados, que dizem uma cousa, e tem outra na coração” (p.
95).
“Peço a V. M. que mande apresentar esta às Cortes Gerais, para que elas saibam, que
a opinião brasileira, e a de todo o homem sensato, que deseja a segurança, e integridade da
Monarquia, é que haja aqui Cortes Gerais do Brasil, e particulares relativamente ao Reino
Unido, para fazerem as nossas leis municipais.
“V. M., quando se ausentou deste rico, e fértil país, recomendou-me no seu real
decreto de 22 de Abril do ano próximo passado, que tratasse os Brasileiros como filhos, eu
não só os trato como tais, mas também como amigos; tratando-os como filhos, sou Pai; e
tratando-os como amigos, sou outro; assim quaisquer destas duas razões me obrigam a
fazer-lhes as vontades razoáveis, esta (de quererem Cortes como acima fica dito) não só é
razoável, mas útil a ambos os hemisférios, e assim ou as Gerais nos concedem de bom
grado as nossas particulares, ou então eu as convoco, a fim de me portar, não só como V.
M. me recomendou, mas também como tenho buscado, e alcançado ser, que é defensor dos
direitos natos de povos tão livres, como os outros, que os querem escravizar.
111
como enteados, sendo todos nós irmãos, e súditos do mesmo grande Monarca que nos
rege” (pp. 97-98).
DEFENSOR
Nesta carta de D. Pedro, ele já se considera, em abril de 1822, mais brasileiro que
português. Mas é na carta de 21 de maio de 1822, ao saudar o pai pelo aniversário (D. João
VI completara 55 anos a 13 de maio), que D. Pedro explicita completamente a sua posição
antes da Independência:
“O 13 de Maio foi, é e será para sempre um dia de júbilo no Brasil inteiro. É este o dia
que os leais habitantes desta cidade escolheram para assinalar ao mesmo tempo duas
épocas memoráveis: o nascimento de V. M., e a minha elevação ao titulo de
Defensor Perpétuo do Brasil. Depois do beija-mão, a municipalidade mandou pedir-
me uma audiência, que eu lhe concedi imediatamente, e esta corporação, pelo órgão de seu
presidente, dirigiu-me um discurso muito enérgico, no qual me suplicou aceitasse o título
de Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil, pois que tal era a vontade de toda a província e
do Brasil inteiro. Respondi-lhe: honro-me e me orgulho do título que me confere
este povo leal e generoso; mas não o posso aceitar tal como se me oferece. O
Brasil não precisa da proteção de ninguém; protege-se a si mesmo. Aceito
porém o titulo de Defensor Perpétuo e juro mostrar-me digno dele enquanto
uma gota de sangue correr nas minhas veias” (grifos nossos).
“Defenderei o Brasil que tanto me honrou, como a V. M., porque tal é o meu dever
como brasileiro e como príncipe. Um príncipe deve sempre ser o primeiro a morrer pela
pátria; deve trabalhar mais que ninguém pela felicidade dela; porque os príncipes são
os que mais gozam da felicidade da nação e é por isso que eles devem
esforçar-se por bem merecer as riquezas que consomem, e as homenagens
que recebem dos outros cidadãos” (grifo nosso).
Esta é uma definição que ele considera – com razão – no campo dos princípios. Na
mesma carta, ele entra, também, nas questões políticas – basicamente, a necessidade de
uma Constituinte específica do Brasil:
“É necessário que o Brasil tenha Cortes suas: esta opinião generaliza-se cada dia
mais. O povo desta capital prepara uma representação que me será entregue para suplicar-
me que as convoque, e eu não posso a isso recusar-me, porque o povo tem razão, é muito
112
constitucional, honra-me sobremaneira, e também a V. M., e merece toda a sorte de
atenções e felicidade. Sem Cortes o Brasil não pode ser feliz. As leis feitas tão longe de nós
por homens que não são brasileiros, e que não conhecem as necessidades do Brasil não
poderão ser boas.
“O Brasil deve ter Cortes (…): não posso recusar este pedido do Brasil porque é justo,
funda-se no direito das gentes, é conforme aos sentimentos constitucionais, oferece enfim
mais um meio para manter a união, que de outro modo breve cessará inteiramente. Sem
igualdade de direito, em tudo e por tudo não há união. Ninguém se associa
para ver piorar a sua condição, e aquele que é o mais forte melhor deve saber
sustentar os seus direitos. Eis porque o Brasil jamais perderá os seus, que defenderei
com o meu sangue, sangue puro brasileiro, que não corre senão pela honra, pela nação e
por V. M” (pp. 99-101).
113
17
A personalidade de D. Pedro transparece inteira na última carta dirigida a D. João VI
na época da Independência, escrita a 22 de setembro de 1822 – portanto, após o Grito do
Ipiranga.
Esta carta é resposta a outra – datada de três de agosto – em que o pai diz ao filho:
“Quando escreveres, lembra-te que és um príncipe e que os teus escritos são vistos por
todo o mundo, e deves ter cautela não só no que dizes, mas também no modo de te
explicares”.
A resposta de D. Pedro, lembremos outra vez, foi escrita 15 dias após o Grito do
Ipiranga:
“Vossa Majestade manda-me, que digo!, mandam as cortes por Vossa Majestade que
eu faça executar e execute seus decretos; para eu os fazer executar e executá-los era
necessário que nós brasileiros livres obedecêssemos à facção: respondemos em duas
palavras: “Não queremos”.
114
“Se o povo de Portugal teve direito de se constituir – revolucionariamente – está
claro que o povo do Brasil o tem dobrado, porque se vai constituindo, respeitando-me a
mim e às autoridades estabelecidas.
“Se esta declaração tão franca irritar mais os ânimos desses lusos-espanhóis, que
mandem tropa aguerrida e ensaiada na guerra civil, que lhe faremos ver qual é o valor
brasileiro. Se por descoco se atreverem a contrariar nossa santa causa, em breve verão o
mar coalhado de corsários, e a miséria, a fome e tudo quanto lhes podermos dar em troco
de tantos benefícios, será praticado contra esses corifeus; mas que! quando os desgraçados
portugueses os conhecerem bem, eles lhes darão o justo prêmio.
“Jazemos por muito tempo nas trevas; hoje vemos a luz. Se Vossa Majestade cá
estivesse seria respeitado, e então veria que o povo brasileiro, sabendo prezar sua liberdade
e independência, se empenha em respeitar a autoridade real, pois não é um bando de vis
carbonários, e assassinos, como os que têm a Vossa Majestade no mais ignominioso
cativeiro.
“O Brasil será escravizado, mas os brasileiros não; porque enquanto houver sangue
em nossas veias há de correr, e primeiramente hão de conhecer melhor o — Rapazinho — e
até que ponto chega a sua capacidade, apesar de não ter viajado pelas cortes estrangeiras.
“Peço à Vossa Majestade que mande apresentar esta às cortes! às cortes, que nunca
foram gerais, e que são hoje em dia só de Lisboa, para que tenham com que se divirtam, e
gastem ainda um par de moedas a esse tísico tesouro.
“Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade, como todos nós brasileiros
desejamos.
115
“Sou de Vossa Majestade, com todo o respeito, filho que muito o ama e súdito que
muito o venera.
PEDRO.”
“Rapazinho” era como D. Pedro era chamado pelos liberais de Lisboa – que haviam
decretado, em 29 de setembro de 1821, que ele deveria sair do Brasil para uma viagem,
incógnito, pela Europa, para completar sua educação…
MINISTRO
Resta-nos, para encerrar esta série de artigos, uma figura: Martim Francisco, o irmão
mais novo de José Bonifácio e Antonio Carlos, que, entre outras coisas, foi por duas vezes
ministro da Fazenda (julho de 1822 a julho de 1823 e julho de 1840 a março de 1841).
Martim Francisco – que, diferente dos irmãos, era matemático – mostrou, ainda
antes da Independência, e logo depois, que a nacionalidade era, também, um princípio
econômico.
“Como um final à sua administração das finanças do Brasil, o sr. d. João VI, ao
retirar-se em 1821, para assumir o Governo de Portugal, deixou aos seus leais e amados
súditos do Brasil uma prova de sua real e paternal solicitude pelo seu bem estar,
esvaziando o Tesouro, o Banco [do Brasil] e até o Museu, levando consigo todo o artigo de
valor, inclusive os espécimens de ouro e diamantes, que há anos pertenciam a este último
116
estabelecimento nacional” (cit. in Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, “O Ministro da
Fazenda da Independência”, RIHGB, LXXVI, parte 1, p. 369; este trabalho foi, em
1918, publicado em livro, com o título “O Ministro da Fazenda da Independência e
da Maioridade”).
Mas, apesar da dificuldade, essa não foi a principal razão pela qual Martim Francisco
não tentou ir por esse caminho. Na sua avaliação, havia recursos internos aos quais era
possível, e necessário, recorrer – e eles eram preferíveis aos empréstimos externos.
“Senhores —
“Quando um povo está resolvido a reassumir direitos que lhe usurparam, a conservar
e defender preeminências, dignidades e gozos que lhe contestam, e a quebrar ferros, bem
que dourados, com que de novo o pretendem agrilhoar, deve, com todo o apuro e sem
perda de tempo, começar a nova era da sua vida política por uma legislação própria, que,
transformando o berço do seu nascimento ou de sua adoção, de terra da escravidão em
terra da liberdade; que, estabelecendo e firmando a sua sorte futura, lhe assine lugar
escolhido nos anais das nações bem constituídas; e para obtê-la é mister que, abundante de
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recursos e alhanadas todas as dificuldades, que hajam de estorvá-lo ou empecê-lo no
caminho da glória que vai trilhar, ele possa dizer aos inimigos internos: ou retirai-vos ou
eu vos punirei; aos inimigos externos: não vos temo, tenho força suficiente para repelir
vossas agressões, justiça demasiada para ganhar amigos que protejam minha causa, e
quando esta se decida contra mim, quero antes sepultar-me debaixo das ruínas de minha
pátria, do que viver escravo.
“Seguro desta verdade, o jovem herói de nossa escolha, o perpétuo defensor da nossa
liberdade, o grande e incomparável príncipe que nos rege, vendo o Brasil em algum perigo,
e a assembleia constituinte e legislativa ainda não instalada, persuadiu-se de que, pelo
menos agora, só a ele devia competir o direito e a glória de salvá-lo, e para este fim julgou
indispensável abrir um empréstimo de quatrocentos contos de réis, debaixo das condições
que tenho a honra de apresentar-vos.
RESISTÊNCIA
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“A 20 de agosto de 1824, ao promanar de sua independência política, o Brasil obteve
na praça de Londres o seu primeiro empréstimo externo. Foi de £ 3.686.200 o valor dessa
operação, a qual só logrou ser resgatada em 1863, mediante o levantamento de
outro empréstimo de £ 3.855.300, liquidado, por sua vez, em 1889” (Valentim
Bouças, “Finanças do Brasil”, vol. IX, 1940, grifo nosso).
E, em seguida:
Em outro volume de sua principal obra, Bouças – uma das mais importantes figuras
da administração econômica no primeiro governo Getúlio – foi enfático:
COMISSÕES
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porque de comum nenhuma há, que não tenha sido prevista com antecipação pelos olhos
perspicazes da política e que se não possa remediar sem o cancro dos empréstimos; que,
finalmente, os povos, quando querem ser livres, têm muitos recursos em si próprios (…).
“… Note que já então o Felisberto [Caldeira Brant], sem ter ordem, escrevia ao
Ministério, fazendo ver a necessidade de um empréstimo, entendia-se com os capitalistas
de Londres e os forçava a escrever com o oferecimento das mesmas condições que ele
agora aceitou; ele, pois, levava rasca no negócio.
“Note mais, que nesse tempo eu o recusei com o prêmio de 5% e os juros de 5%, peso
metálico por peso metálico; que não havia moeda, e baixa, fabricada em Londres; que não
havia dividendos retidos, nem as usuras das 300.000 libras esterlinas adiantadas, e nem as
comissões, etc. dos Felisbertos e outros.
“A nada disto atendi; recusei o empréstimo com tão favoráveis condições e disse a
José [Bonifácio], que Felisberto, pelos fatos acima referidos e por outros de conhecida
ignorância, ou de notória lesão dos interesses do Brasil, devia ser mandado recolher.
“Todavia este empréstimo aparece hoje contraído, e o mesmo homem, que antes
traficava sordidamente com os interesses de sua pátria, é dele o principal encarregado!
“Pode haver uma maior traição da parte do Ministério? E que castigos ele e seus
agentes não devem esperar da vingança nacional, se um dia os brasileiros forem capazes de
recobrar sua liberdade?”
Assim era o nosso primeiro ministro da Fazenda – o mais jovem dos três irmãos
Andrada.
FINAL
Terminamos aqui nossa série sobre a Independência. Nosso objetivo foi expor
materiais que hoje estão – com anos de ignorância política, econômica, histórica e escolar
neoliberal – algo esquecidos. Ao mesmo tempo, analisamos algumas questões – a
escravidão e o liberalismo na Independência, os conflitos entre os homens que lideraram a
nossa emancipação política, a herança de Pombal, etc. – que nos parecem pessimamente
abordadas por uma certa vertente da literatura acadêmica atual.
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