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Versão revista de uma comunicação ao I Congresso Internacional Fernando Pessoa, Lisboa, 25-28 de
Novembro de 2008. Publicada em Pessoa – Revista de Ideias, n.º 3, Junho de 2011, pp. 17-34, sob o
título “Fernando Pessoa e Salazar: Sobre o pensamento político do escritor e a sua ruptura com o
salazarismo”
I.
Se outros motivos não existissem para estudar o pensamento de Fernando Pessoa acerca
de Salazar e do salazarismo, bastaria talvez a circunstância de se tratar de dois ícones —
ambos controversos, embora não igualmente — do século XX português. É conhecido,
também, uma espécie de incidente tacitamente desenrolado entre os dois, que girou em
torno das palavras proferidas por Salazar na sessão de distribuição de prémios do
Secretariado de Propaganda Nacional, em 21 de Fevereiro de 1935, a que Pessoa
decidiu não estar presente. Essas palavras de Salazar foram consideradas por Pessoa
como um enxovalho feito a todos os escritores portugueses. Assumiu-as (por essa razão
ou por outra, sobre o que só podemos especular) como dirigidas a si e reagiu-lhes com
indignação e sarcasmo em poemas e textos que não pôde publicar.
A estes motivos de interesse há porém que acrescentar, se não mesmo preferir, outros
mais substanciais: a independência política de Pessoa, a sua preparação intelectual e
vasta cultura, o raro “olhar inglês” (Eduardo Lourenço) que lançou sobre Portugal, bem
como o facto de ter vivido num período que viu a queda da Monarquia, a instauração e o
declínio da 1.ª República, a génese do Estado Novo e o triunfo pessoal de Salazar,
acontecimentos que acompanhou sempre com vivo interesse e, por vezes, alguma
paixão. Não em último lugar, refira-se que o espólio de Pessoa encerra uma quantidade
apreciável de textos e fragmentos com referências directas e indirectas a Salazar, alguns
dos quais já conhecidos do público.
Logo em 1935, dias após a sua morte, se verificou a primeira tentativa de apropriação
política do legado do escritor com a republicação, no semanário Bandarra (jornal
lançado, através da Editorial Império, pelo Secretariado de Propaganda Nacional, de
António Ferro), do folheto O Interregno, obra de 1928 que Pessoa havia entretanto
repudiado.4 Seguir-se-ia, em 1940, a publicação, pela mesma editora, do poema “À
Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, que fora inicialmente publicado em 1920
(sem o “Rei” no título), acompanhado agora da chamada “Nota autobiográfica” de
Fernando Pessoa, de Março de 1935, amputada de cerca de metade dos seus parágrafos,
precisamente aqueles em que Pessoa repudiava O Interregno, considerando-o como
“não existente”, e se definia como um conservador liberal de “estilo inglês”, anticatólico
e “absolutamente anti-reaccionário”, além de anticomunista e anti-socialista.5 As
2
Joel Serrão, Fernando Pessoa, Cidadão do Imaginário, Livros Horizonte, Lisboa, 1981, p. 20.
3
João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa: História de uma Geração , Bertrand, Lisboa,
1950 (vols. I-II), e Pedro Veiga (Petrus), “Considerações finais”, em Fernando Pessoa, Crónicas
Intemporais, C.E.P., s.l., s.d. [ca. 1952], pp. 91-110.
4
O Interregno foi republicado, a seguir à morte de Pessoa, nos quatro últimos números do semanário
Bandarra, entre Dezembro de 1935 e Janeiro de 1936. Pessoa tinha repudiado essa obra de 1928 na “nota
autobiográfica” que escreveu em Março de 1935 e distribuíra entre amigos. Pensa -se que o amigo íntimo
Augusto Ferreira Gomes terá sido o responsável pela publicação de O Interregno no jornal Bandarra.
5
À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes, Editorial Império, Lisboa, 1940. Pedro Veiga (op. cit., p.
100) denunciou a intenção dos redactores do Bandarra e da Editorial Império de ocultarem, em 1935 e
em 1940, uma parte do pensamento de Pessoa. A expressão “Presidente-Rei” não aparecia no título
original do poema, publicado no n.º 4 do jornal Acção (27 de Fevereiro de 1920) nem no corpo do
mesmo, mas Pessoa acrescentou à mão, num exemplar do jornal que lhe pertenceu, a palavra “Rei”,
precedida de hífen, à palavra “Presidente” no título do poema Assim figura também em dois projectos
editoriais de Pessoa de 1935, confirmando que a alteração foi feita pelo autor, embora o poema só
postumamente tivesse sido publicado s ob o novo título.
tentativas de apropriação do pensamento de Pessoa e, até, do seu recrutamento como
profeta e escritor político tinham começado ainda em vida, por parte dos meios
estadonovistas, como adiante se mostrará, mas a essas pôde o próprio escritor reagir,
repelindo-as. Não me proponho aqui historiar a longa série de distorções introduzidas,
até à actualidade, através de diferentes critérios de selecção, edição ou interpretação dos
escritos políticos de Pessoa, mas é notório que as tentativas de manipulação não
acabaram, apenas começaram com o Estado Novo, tendo-se desde então diversificado.
Perante dada afirmação ou posição que Fernando Pessoa tenha deixado registada, é
quase sempre possível encontrar, na obra publicada ou no espólio, uma posição
aparentemente diversa ou oposta, mesmo sem considerar as oscilações puramente
devidas ao jogo heteronímico pessoano. Tem, assim, sido possível opor, muitas vezes
sem qualquer preocupação hermenêutica, textos pessoanos pró e contra o liberalismo, a
democracia, a ditadura, o regime republicano, o regime monárquico, o direito de voto
feminino, a Revolução Francesa, a política inglesa, a política alemã, Afonso Costa,
Salazar, o cristianismo, o catolicismo, a Maçonaria, etc. Deste modo, o próprio ideário
6
“Apoteose ou segunda morte de Fernando Pessoa?” (1985), republicado em Eduardo Lourenço,
Fernando, Rei da nossa Baviera, INCM, Lisboa, 1993, pp. 45-53.
7
Raúl Morodo, Fernando Pessoa e as “Revoluções Nacionais” Europeias, Caminho, Lisboa, p. 65.
político de Pessoa aparece como “oximorónico”, e não apenas as expressões que
construiu jogando com oposições de sentidos.
8
“Carta a Fernando Pessoa”, em Jorge de Sena, Fernando Pessoa e C.ª Heterónima, edições 70, Lisboa,
2000, p. 19.
9
Brunello de Cusatis, Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa , Caixotim, Porto,
2005, p. 68.
puramente conjunturais, outros não o são e, obviamente, não podem ser ignorados ou
menosprezados nem sob a alegação do propósito de “escandalizar” que os teria
motivado (Jacinto Prado Coelho10 ), nem com o argumento de que os textos em que se
encontram teriam sido deixados impublicados pelo autor em vida (como se apenas dele
tivesse dependido a sua publicação), inferindo-se daí a sua menor valia ou
genuinidade11 — objecção não considerada quando se tratou de publicar centenas de
outros textos deixados inéditos, de tema político ou não, como a maior parte do Livro do
Desassossego, que hoje alguns consideram já a obra prima de Pessoa.
Elevado nas últimas décadas a mito ou glória nacional com lugar nos Jerónimos, é de
prever que o debate sobre o seu pensamento se vá eternizando. Independentemente do
seu valor intrínseco, originalidade e potencial provocatório, que ainda não murcharam
(não nos esqueçamos que, há mais de 50 anos, Pedro Veiga tinha augurado a Pessoa o
papel de “agitador póstumo”), o pensamento de Pessoa tornou-se num património
nacional que cada um tenta recortar e adequar à sua medida e necessidades. A isto
chamou Onésimo Teotónio de Almeida, com espírito certeiro, o “Fernando-Pessoa-
tudo-para-todos”.12 Mas não seria esse mesmo o necessário resultado da paciente
construção por Pessoa de uma auréola de sábio ou génio vogando, como Romain
Rolland ou Julien Benda, au-dessus de la mêlée, guiado apenas por valores eternos e
universais, como a verdade e a beleza?
II.
Alguns dos escritos políticos inéditos que se foram revelando desde 1974 — primeiro os
poemas satíricos sobre Salazar e o Estado Novo, depois também textos de análise
política sobre esses e muitos outros temas — vinham aparentemente pôr em causa uma
imagem de Pessoa há muito existente, talvez dominante: a de um pensador nacionalista,
ao mesmo tempo conservador e moderno, defensor de governos musculados; a de um
elitista que olhava com ostensivo desprezo não só as lutas operárias, mas também a
própria “democracia moderna” (em contraponto com a democracia ateniense); a de um
escritor-profeta que fizera poemas a ditadores messiânicos e defendera a Ditadura
Militar. Imagem que, não sendo falsa, pecava por incompleta, unilateral e datada. Como
conjugar essa velha imagem com o pensamento político desconhecido que muitas
centenas, se não milhares de páginas das arcas de Pessoa começaram a revelar? Em
particular, como entender e situar o pensamento de Pessoa relativamente à génese e
consolidação do Estado Novo salazarista?
10
Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 11.ª edição, Verbo, Lisboa,
1998, p. 232.
11
Alfredo Margarido, “Sobre as posições políticas de Fernando Pessoa”, Colóquio-Letras, n.º 23, Janeiro
de 1975, pp. 66-68. Defende este autor, a propósito dos escritos de Pessoa: “O documento inédito pode
revelar uma tendência [...]. O texto revelador é aquele que na praça pública define a posição do autor e
define as posições políticas de uma época”.
12
Onésimo Teotónio de Almeida, “O Fernando Pessoa-tudo-para-todos e o manifesto de Lourenço”, JL
- Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 1 de Outubro de 1985.
Iniciado o debate sobre o pensamento político de Pessoa à luz de um universo de textos
em constante ampliação, as posições foram-se dividindo por vários grupos, de que
destaco alguns, sem preocupação de exaustão:
1) Os que sustentavam que Pessoa, embora tivesse formulado muitas opiniões ao longo
da vida, não possuía um pensamento político coerente, nem talvez mesmo qualquer
pensamento político caracterizável segundo coordenadas comummente estabelecidas.
Pessoa teria sido acima de tudo ou exclusivamente um artista, um poeta, cujo discurso
político não seria situável no “domínio referencial”, pois remeteria sempre e apenas
para uma “lógica poética”. José Augusto Seabra é o representante principal desta linha,
com vários trabalhos sobre os escritos políticos de Pessoa, o primeiro dos quais 13 ,
fundador da sua tese, sintomaticamente anterior à organização por Joel Serrão de três
volumes recheados de inéditos, no final da década de 70.14
13
José Augusto Seabra, “Poética e política em Fernando Pessoa”, Persona, n.º 1, 1977, pp. 11-20.
14
Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979; Da
República, Ática, Lisboa, 1979; e Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Ática, Lisboa, 1980;
organização e introdução de Joel Serrão, recolha e leitura de Isabel Rocheta e Paula Morão.
15
Ver, especialmente, Alfredo Margarido, entre outros trabalhos, “Introdução”, em Fernando Pessoa,
Santo António, São João, São Pedro, A Regra do Jogo, Lisboa, Lisboa, 1986, pp. 9-90; António Costa
Pinto, “Modernity versus Democracy? The Mystical Nationalism of Fernando Pessoa”, em Zeev
Sternhell, The Intellectual Revolt against Liberal Democracy, The Israel Academy of Science and
Humanities, Jerusalém, 1996, pp. 343-355; e Manuel Villaverde Cabral, “A estética do nacionalismo:
modernismo literário e autoritarismo político em Portugal no início do século XX”, em Nuno Severiano
Teixeira e António Costa Pinto, A Primeira República Portuguesa: Entre o Liberalismo e o
Autoritarismo, Colibri, Lisboa, 2000, pp. 181-211.
16
Raúl Morodo, op. cit., pp. 63-64 e 99-102. A contradição é resolvida pelo autor com a afirmação de
que o Estado Novo real (de partido único, corporativista, estatista e católico) não era o “Estado Novo”
implícito no pensamento de Fernando Pessoa. A concluir o seu estudo, Morodo rotula ainda Pessoa de
“anarquista utópico de direita”.
3) Os que achavam que Pessoa, se bem que tivesse passado por uma fase aguda de
contestação doutrinária do democratismo parlamentarista republicano, teria na realidade
sido um liberal anti-autoritário (opinião partilhada por Pedro Veiga e Jorge de Sena),
alguém que teria prezado acima de tudo as liberdades individuais e que,
consequentemente, teria sido um opositor do Estado Novo (opinião partilhada por
Jacinto do Prado Coelho). Já nos anos 20, mais exactamente em 1923, Pessoa teria dado
provas (em “Aviso por causa da moral” e “Sobre um manifesto de estudantes”) do anti-
fascismo que os seus poemas anti-salazaristas revelariam mais tarde. Como
representante desta última tese, surgida em 1974, deve citar-se Pedro da Silveira, que
não teve dúvidas em retratar Fernando Pessoa como “anti-salazarista e anti-fascista” e
em datar o seu “antifascismo” de 1923. 17
Não se pretende neste trabalho analisar cada uma das linhas reveladas no debate,
iniciado este numa época em que boa parte dos textos políticos das arcas pessoanas
ainda era desconhecida. Não são posições que qualitativamente se equivalham, mas em
todas elas há, porventura, algum fundamento real, alguma parcela de “verdade”. Tentar-
se-á, em compensação, situar o assunto principal da polémica — a relação de Pessoa
com o salazarismo — no campo dos factos, dos textos pessoanos e do seu contexto, para
assim apontar algumas realidades que se afiguram indiscutíveis.
III.
São conhecidos alguns textos provenientes da arca de Pessoa em que o escritor enumera
as qualidades que teriam feito de Salazar um dirigente prestigiado no país e fora dele,
em que faz um balanço positivo da obra administrativa do ditador e em que chega a
declarar-se um “situacionista por aceitação” (adiante se verá o que queria dizer com
isso). Estes escritos ou simples trechos contendo juízos positivos sobre Salazar, bem
como os de sinal contrário, não podem obviamente ser isolados do conjunto a que
pertencem, pois só conjuntamente têm um sentido preciso e verdadeiro. Mas antes
mesmo de se considerar o teor dos textos políticos pessoanos vindos a lume pós-1974, é
indispensável assentar numa coisa: em vida, Fernando Pessoa nunca apoiou
17
[Pedro da Silveira], “Nota adicional” a Jorge de Sena, “Quatro poemas anti-salazaristas de Fernando
Pessoa”, Seara Nova, n.º 1545, Julho de 1974, p. 20. A nota não é assinada, mas foi atribuída a Pedro da
Silveira, que a não rejeitou. Que a cruzada da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa contra os livros
imorais, em Fevereiro-Abril de 1923, era de inspiração fascista, isso não escapava a Pessoa, que guardou
na sua arca um recorte do Diário de Notícias de 26 de Fevereiro de 1923, noticiando as “medidas de
Mussolini contra os livros imorais” e defendendo uma “medida severa” idêntica para Portugal (BNP/E3,
135C-103).
publicamente Salazar ou o salazarismo, nem através da sua actividade de publicista nem
por qualquer outra tomada de posição conhecida. Não há nada que documente esse
apoio público, ainda que se tenha especulado em torno de certos factos que, realmente,
não provam nada.
18
Alfredo Margarido, op. cit., p. 12.
19
Idem, p. 14.
20
Alfredo Margarido, “Pessoa, ídolo dos nacional-sindicalistas”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
29 de Novembro de 1983.
21
Alfredo Margarido, “Nota curta para lembrar que Pessoa admirou Mussolini”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias. Lisboa, n.º 85, 21 de Fevereiro de 1984.
escritor sobre a personalidade do Duce e daí partir, confessadamente, para “uma
extrapolação não documentada” (sic), em que chega a fazer a insinuação delirante de
que “[...] para Pessoa a figura carismática por excelência é, naturalmente, Mussolini,
cujo verbo e cuja veemência física se aproximam de Hitler, mas se afastam de
Salazar”.22 Teríamos, assim, um Pessoa de “extrema-direita”, mais atraído pelo carisma
de Mussolini e Hitler do que por Salazar. A verdade, porém, é que não há nenhum texto
conhecido de Pessoa, publicado ou inédito, que sustente tal posicionamento ou atracção
do escritor. O reconhecimento da personalidade carismática (ou magnética, como se
dizia na época) de Mussolini pertence ao domínio do óbvio. Sobre a personalidade de
Hitler, o juízo de Pessoa é de desprezo: “His very moustache is pathological. Lack of
sense of humour”.23 Textos divulgados nos últimos vinte anos mostram o desdém pleno
de sarcasmo de Pessoa pelo fascismo, que numa nota definiu como “nacionalismo
mórbido” e, noutra, como “nacionalismo animal”.24 Vários textos de Pessoa sustentam
que há uma “identidade fundamental” entre fascismo, nacional-socialismo e
comunismo.25 Outros escritos de Pessoa, até há pouco desconhecidos, vão em idêntico
sentido, revelando, por exemplo, a sua viva reacção de condenação da invasão da
Etiópia pela Itália fascista em Outubro de 1935, acto imperialista que, para Pessoa,
estava intimamente ligado à natureza do próprio fascismo.26
22
Idem.
23
BNP/E3, 92I-51, publicado pela primeira vez em Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre Génio e
Loucura, INCM, Lisboa, 2007, p. 216. Como Pizarro observa, a falta de sentido de humor era, para
Pessoa, um sinal de distúrbio mental.
24
José Barreto, “Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista”, op. cit.
25
Idem.
26
Idem.
rejeição. Pessoa classificou as teses defendidas por Salazar no histórico “Discurso da
Sala de Conselho de Estado” como “um apanhado dos princípios políticos da contra-
revolução”, identificando-os com “as doutrinas dos chamados integralistas”. E
acrescentava, num texto em que se propunha “contraditar os princípios expostos” quer
do manifesto da União Nacional (que fora lido previamente pelo primeiro-ministro
militar) quer do discurso de Salazar, então ministro das Finanças: “Há razões para
supor […] que dois terços do país estão com a Ditadura Militar; o que não há razão para
supor é que os mesmos dois terços, ou qualquer coisa que se pareça com esses dois
terços, estejam com o Integralismo Lusitano”.27 E em Julho de 1932, com a tomada
formal das rédeas do governo por Salazar, Pessoa considerou que nova transformação
fora operada no padrão da Ditadura portuguesa, de uma simples “ditadura militar à
Primo de Rivera” para a “actual ditadura à Mussolini”.28
O facto de, em 1934, o órgão de propaganda governamental dirigido por António Ferro,
ter desejado premiar Pessoa pela Mensagem, poema de um nacionalismo herético (do
ponto de vista católico) e sebastianista, também não prova a adesão do poeta ao regime
nem aos cânones estéticos do salazarismo. Prova somente, junto com outros factos, que
Pessoa foi cortejado pelo poder, isto é, convidado, com adiantamento de prémio (e, até,
do custo de impressão do livro), a pôr a sua veia poética, profética e messiânica ao
serviço dos fins políticos do regime. Esse “convite”, se quisermos, indirecto, foi
reiterado de modo mais explícito nas páginas do órgão político do regime, o Diário da
Manhã, pelo escritor monárquico João Ameal, ideólogo do Estado Novo e colaborador
de António Ferro. O artigo laudatório de Ameal, em 21 de Janeiro de 1935, apresentava
a Mensagem e o seu grito final “É a hora!” como uma profecia da “Hora” do Estado
Novo.29 Fernando Pessoa não podia senão repelir tal abordagem, que o comprometia
politicamente, deixando até a impressão de que Ameal pretendia cobrar serviço político
em troca do prémio literário concedido a Pessoa. A tentativa de apropriação política da
Mensagem por João Ameal foi, dias depois, simbolicamente rejeitada na praça pública
por Pessoa, com a publicação no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935 do artigo
“Associações Secretas”, em defesa da Maçonaria.
Este artigo “bomba” (como o autor lhe chamou, com visível comprazimento), sob a
forma de protesto contra a proposta de lei antimaçónica, foi, acima de tudo, um acto
público de demarcação de Pessoa em relação ao Estado Novo e como tal perfeitamente
entendido pelas gentes do regime. “Vá lá a gente fiar-se em poetas!” — escreveu no dia
seguinte deselegantemente o Diário da Manhã, o mesmo jornal em que na semana
anterior Ameal tinha tentado apresentar o autor da Mensagem como um profeta do
Estado Novo. O artigo de Pessoa tinha feito esgotar o Diário de Lisboa nas bancas,
suscitando um interesse nunca em vida igualado por outro escrito seu. A tentativa de
recrutamento do escritor visionário pelo S.P.N. tinha falhado estrondosamente: Pessoa
não só não aceitava ser profeta ou propagandista do regime, como ainda o atacava
publicamente. “Vá lá a gente fiar-se em poetas!” — o desabafo na primeira página do
27
BNP/E3, 111-53 e 55.
28
BNP/E3, 92M-39 e 40 (original em francês, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito,
Livros Horizonte, Lisboa, 1993, p. 370).
29
José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, op. cit., pp. 181-183.
órgão da União Nacional, dirigido expressamente a Fernando Pessoa, é muito
esclarecedor sobre a relação do escritor com o salazarismo.
O artigo “Associações Secretas” tinha surgido num momento bem preciso da vida
política e cultural portuguesa. Quatro dias antes, a 31 de Janeiro de 1935, duzentos
escritores, artistas e jornalistas tinham-se reunido num banquete em Lisboa e aprovado
o envio de um documento de protesto contra a Censura ao presidente da recém-
inaugurada Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis.32 A assinatura de Fernando
Pessoa não se encontra entre os signatários do documento, embora não se saiba se foi
solicitada. Certo é que, quatro dias depois da reunião dos intelectuais, com a publicação
do seu artigo, Pessoa tomou uma posição individual de oposição ao regime que pode ser
interpretada como uma espécie de alinhamento desalinhado com a posição colectiva dos
duzentos escritores e artistas. O artigo “Associações Secretas”, que pôde beneficiar de
uma tolerância censória que Pessoa não voltaria mais a usufruir, acabou por ter muito
maior repercussão pública do que o abaixo-assinado dos duzentos, já que a Censura
proibiu toda a publicidade na imprensa ao documento colectivo dos intelectuais.33 O
semanário O Diabo ainda pôde noticiar, em primeira página, o banquete dos
intelectuais, mas nem uma palavra foi permitida sobre o documento contra a Censura
que foi redigido e subscrito nessa reunião.34
30
Richard Zenith, Fotobiografias Século XX. Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, p.
164.
31
O Diabo, 10 de Fevereiro de 1935, p. 1.
32
Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro nº 1, fls. 123 a 142, 8 de Fevereiro
de 1935.
33
Richard Zenith, op. cit., p. 164.
34
“A fundação de um centro cultural em Lisboa”, O Diabo, n.º 32, 3 de Fevereiro de 1935.
basicamente de pretexto a Pessoa para aparecer publicamente a demarcar-se do poder
político. Pessoa esclarece os seus reais motivos num escrito de 1935, até há pouco
inédito35 , que o autor destinava ao Diário de Lisboa e, obviamente, não foi publicado.
Diz aí:
Este trecho contribui para lançar nova luz sobre toda a produção anti-salazarista
pessoana de 1935, constituída por uma torrente de poemas e textos em prosa, uns
visando Salazar, outros o Estado Novo, outros ainda os seus ideólogos, membros do
governo e deputados. Atente-se também na afirmação por Pessoa de que “há muito”
tomara a decisão de combater pelos meios ao seu alcance, as forças e influências
políticas que ameaçavam a “dignidade do Homem” e a “liberdade do espírito”.
Seria, de facto, errado imaginar que a questão da lei maçónica teria provocado por si só,
em 1935, uma repentina e radical mudança de opinião de Pessoa a respeito de Salazar
ou do Estado Novo. Também não parece realista admitir que pudessem ter tido esse
condão mágico as palavras proferidas por Salazar em 21 de Fevereiro de 1935, na
famosa sessão de distribuição dos prémios literários do S. P. N. a que Pessoa faltou, na
qual o ditador defendeu a imposição não só de limitações como também de directrizes à
criação intelectual e artística. É certo que, em numerosos textos e poemas satíricos,
Pessoa atacou violentamente essas palavras de Salazar, que acusou textualmente de
“enxovalhar todos os escritores portugueses”.36 Dificilmente esse episódio poderia
provocar uma mudança súbita na opinião de Pessoa acerca de Salazar, uma vez que essa
política de limitações e directrizes estava perfeitamente definida e institucionalizada
desde 1933, com a constitucionalização do regime de censura e a criação do S.P.N.
Houve, sim, nos primeiros meses de 1935 uma conjunção de acontecimentos que
fizeram desaparecer as últimas réstias de aceitação e confiança de Pessoa na governação
de Salazar — “confiança” e “aceitação” que alguns textos pessoanos deixados inéditos
registam, mas que nunca tinham significado adesão e que sempre tinham sido
permeados de fortes críticas. Esses acontecimentos criaram uma oportunidade, que
Pessoa decidiu aproveitar, para expressar abertamente a sua oposição à governação de
Salazar, focalizando-se particularmente nos temas da censura e da liberdade de
35
BNP/E3, 129-51. Trecho publicado em José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of
Fernando Pessoa”, Portuguese Studies, 24 (2), 2008, p. 186.
36
BNP/E3, 92M-81 (trecho de uma carta ao Presidente da República Óscar Carmona, publicado pela
primeira vez em Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito, op. cit., p. 375.)
expressão e criação, que, como escritor, lhe diziam directamente respeito. A reunião dos
intelectuais em 31 de Janeiro de 1935 e o documento contra a censura nela aprovado
contribuíram certamente para levar Pessoa a revelar enfim publicamente uma atitude de
oposição “há muito” amadurecida, que não se fundava apenas na questão da censura.
Não me baseio apenas no trecho atrás citado para provar que as críticas de Pessoa ao
governo de Salazar eram muito anteriores. Poderiam citar-se praticamente todos os
textos e notas em que Pessoa se refere a Salazar entre 1930 e 1934. Se, em vários desses
escritos provenientes da arca, Pessoa admite confiar, aceitar ou até, uma vez, admirar a
obra administrativa de Salazar, em praticamente nenhum deles faltam, porém,
observações críticas, menosprezando as qualidades de chefia de Salazar, escarnecendo
da sua “cesarização” e “divinização”, apontando a inspiração do salazarismo no
Integralismo Lusitano e em Maurras (ambos detestados por Pessoa), denunciando o
“sovietismo direitista” da União Nacional, discordando explicitamente da Constituição
de 1933 e da orgânica corporativista instaurada no mesmo ano, acusando, enfim, a
“estreiteza mental” de Salazar, que Pessoa atribuía, por um lado, à excessiva
especialização da sua formação e, por outro, à sua formação católica — que reforçava,
na opinião do escritor, a estreiteza mental de Salazar e a agravava com dogmatismo e
intolerância.37
Pessoa era um espírito livre e independente. As suas posições políticas, muitas vezes
vistas como contraditórias e paradoxais, simplesmente não se enquadravam nos
sectarismos e partidarismos existentes na época. Sobre quase tudo, tinha uma opinião
singular, por vezes surpreendente. Na mesma época em que fez as críticas mais
contundentes a Afonso Costa e à “Oligarquia das Bestas”, não deixou, porém, de
reconhecer as qualidades “únicas” de “homem de acção” do mesmo político, chegando
até a esboçar umas curiosas “Razões para apoiar o gabinete Afonso Costa” (1912),
manuscrito ainda inédito.38
37
Um inventário circunstanciado das críticas e dos elogios de Pessoa a Salazar podem encontrar-se em
José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, op. cit.
38
“Razões para apoiar o gabinete Af[fonso] C[osta]” (BN / E3, 92W -62r e 63r).
da Constituição de 1933 e rejeita o regime corporativista, que era para ele a negação dos
sacrossantos princípios do individualismo e do liberalismo económico. A crescente
influência ideológica do tradicionalismo católico e monárquico na génese e
consolidação do Estado Novo é também muitas vezes alvo da sua crítica, desde 1930.
Enfim, sobre a personalidade de Salazar, Pessoa aponta ainda, nestas suas notas, a
mentalidade católica e rural do ditador, a sua falta de imaginação e de entusiasmo, a
falta de contacto com a vida cultural e intelectual e com “todo o tipo de vida”. “Cadáver
emotivo artificialmente galvanizado por uma propaganda” — com esta fórmula
completa Pessoa o retrato humano de Salazar.39
Pessoa não tinha, de facto, grande opinião acerca de Salazar e, em 1935, num artigo em
francês que aparentemente destinava ao semanário Les Nouvelles Littéraires, mas que
ficou inédito, não parecia sequer admitir que ele pudesse governar Portugal durante
muito mais tempo.40 Podemos constatar quanto se enganou a esse respeito...
39
Ver, em particular, alguns dos textos publicados por Teresa Rita Lopes (org.), Pessoa Inédito, op. cit.,
e Fernando Pessoa, Da República, op. cit., e Teresa Sobral Cunha, “Fernando Pessoa em 1935. Da
ditadura e do ditador em dois escritos inéditos”, Colóquio/Letras, n.º 100, Novembro-Dezembro de 1987,
pp. 127-131, e ainda alguns trechos sobre Salazar em: J. Barreto, “Salazar and the New State...”, op. cit.
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BNP/E3, 92V−73 a 96. Este texto foi pela primeira vez publicado por Teresa Sobral Cunha (op. cit.).
A razão de ter sido escrito em francês pode estar relacionada com o projecto que Pessoa tinha de enviar
colaboração para o semanário parisiense Les Nouvelles littéraires (vd. o fac-simile de um elenco de
publicações projectadas por Pessoa em Junho de 1935, em Poemas de Fernando Pessoa. Quadras, ed.
crítica de Luís Prista, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1997, 2.ª página do extratexto entre
pp. 76 e 77). Este texto pode ainda relacionar-se com as notas em francês sobre Salazar “Il a apporté au
gouvernement…” e “Mussolini et Hitler s’en tiennent…” (BNP/E3, 92V−97 e 92M−37 a 40).
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Ver também o texto ainda inédito “Political Conditions in Present -Day Portugal” (BNP/E3, 92−64 a
67), em que Pessoa compara a “democracia anti-liberal” de Hitler com a monarquia absoluta, mas liberal
e tolerante de Frederico II da Prússia.
luminosamente os fundamentos do seu ataque ao salazarismo e da sua oposição aos
totalitarismos seus contemporâneos.
Parece que o opprimir /alguem/ se tornou hoje uma das obrigações sociaes dos
governantes e dos que os acompanham. O sadismo politico tornou-se dever e
regra. O odio ao individuo, que é, afinal, a unica realidade social tangivel e
pensante; o odio ao pensamento, que é, afinal, a unica coisa que
verdadeiramente define o homem como homem; o odio á expressão do
pensamento, que é, afinal, a fórma social e util do pensamento, que, sem isso,
não vale mais que o sonho — são estes trez odios os trez pés das tripeças de
que tendem cada vez mais a fazer seus thronos os governantes modernos. 42
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BNP/E3, 92L96 (fragmento posterior a 21 de Fevereiro de 1935).